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1 36 aperfeiçoamento moral. Ficcionalmente, o narrador assume o papel de responsável por tornar memória a narrativa que lhe foi confiada, tecendo uma ligação entre oralidade e romance. A memória metaforizada na imagem da nudez é recorrente em alguns textos críticos de Alencar. Este motivo inscreve uma percepção do passado como origem a ser resgatada, abafada por imagens distorcidas: Tempo virá em que surjam os grandes escritores para imprimir em nossa poesia o cunho do gênio brasileiro, e arrancando os andrajos coloniais que andam por aí a vestir a bela estátua americana, a mostrem ao mundo em sua majestosa nudez: naked majesty. (ALENCAR, 1966, p. 700). Este é um topos do romantismo 6 presente em textos de intelectuais diversos como Michelet e antes dele Fénélon, que já em 1714 afirmou: “A história tem uma “nudité si noble et si majesteuse”, (...) que não necessita de nenhum adorno poético.” (KOSELLECK APUD LIMA, 1984, p. 117-8). Instaura-se destarte o desejo de resgate de uma memória “de verdade”, manipulada e silenciada pelo discurso colonial que a cobriu de trapos e instaurou um olhar a interditar o reconhecimento da beleza pátria: bela e majestosa porque perdida. Neste discurso, natureza e origem se mesclam em uma visão utópica, tão reconhecida na iminente falência, adiada para um tempo indeterminado: o tempo da redenção, no qual será reconhecido “o gênio americano”. No reconhecimento da impossibilidade de efetuar este resgate, Alencar transforma a percepção romântica que liga a nudez à verdade ao reivindicar junto à necessidade de 6 No próximo capítulo aprofundaremos esta discussão; este topos foi reelaborado por Mário de Andrade no texto “A escrava que não é Isaura” (ANDRADE, 1972, p. 201-300), no qual representa a poesia como a “escrava do Ararat”, na urgência de ser desnuda, para assim sofrer um processo de recriação.

1 37 despir o passado a de adorná-lo, trabalhando a literatura através da memória e ligando-a - ao contrário da proposta de Coleridge, não à fantasia, mas à imaginação. Afirmamos isto ao reconhecer a sua escritura principalmente como busca, como caminho distante de um ponto de chegada localizado em um futuro que não se alça a não ser na espera. Longe de indicar um projeto literário positivo e cerrado, ao propor a leitura da memória brasileira pelo discurso ficcional, Alencar desfaz-se de uma imagem luminosa do passado e o compreende (no duplo sentido) em seus escuros, sua s lacunas. Seu posicionamento não libera o discurso literário para o preenchimento com promessas de certezas, mas para a remodelagem deste passado, através de construções simbólicas que simultaneamente o despem / vestem via ficção. Deste modo, diversas imagens e signos do passado são modulados em uma escritura vital e dinâmica. No “Prólogo” de O Guarani encontramos, como dito, a explicação pelo narrador do fictício processo de composição do livro, oriundo da compilação de um velho manuscrito, encontrado por acaso na casa que comprou; a voz narrativa tece um cadafalso para o leitor, ao fingir-se incapaz de escrever um romance, endossando a imagem do narrador como mediador. Em tal jogo (irônico, obviamente), o narrador anuncia essa incapacidade como fruto de sua dificuldade em não ser verdadeiro; escrever um romance seria algo irrealizável, apesar de ter feito de sua vida um romance 7 . Percebamos que a sua vida não é 7 É interessante notar que em outro texto ficcional, A pata da gazela, José de Alencar tece também através da voz narrativa a idéia de fazer da própria vida arte, ainda que de forma irônica, já que é uma das opiniões equivocadas do protagonista, Horácio: “Se o Almeida poupasse desse tempo tão esperdiçado alguns momentos no dia para dedicá-los a algum fim sério e útil, à ciência, à literatura, à arte, que belos triunfos não obteria sua rica imaginação servida por um espírito cintilante? Mas o nosso leão tinha a esse respeito idéias excêntricas. [...] -Literatura e arte são plágios; quem pode fazer poesia e romance ao vivo, não se dá ao trabalho de reproduzi-los; nem contempla estátuas, quem lhes admira os modelos animados e palpitantes ” (ALENCAR, 1995, p. 18). A propósito, Lukács nos lembra que “A vida faz-se criação literária, mas com isso o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor de sua própria vida e o observador dessa vida como uma obra de arte criada” (LUKÁCS, 2000, p. 124).

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<strong>de</strong>spir o passado a <strong>de</strong> adorná-lo, trabalhando a literatura através da memória e ligando-a -<br />

ao contrário da proposta <strong>de</strong> Coleridge, não à fantasia, mas à imaginação. Afirmamos isto ao<br />

reconhecer a sua escritura principalmente como busca, como caminho distante <strong>de</strong> um ponto<br />

<strong>de</strong> chegada localizado em um futuro que não se alça a não ser na espera.<br />

Longe <strong>de</strong> indicar um projeto literário positivo e cerrado, ao propor a leitura da<br />

memória brasileira pelo discurso ficcional, Alencar <strong>de</strong>sfaz-se <strong>de</strong> uma imagem luminosa do<br />

passado e o compreen<strong>de</strong> (no duplo sentido) em seus escuros, sua s lacunas. Seu<br />

posicionamento não libera o discurso literário para o preenchimento com promessas <strong>de</strong><br />

certezas, mas para a remo<strong>de</strong>lagem <strong>de</strong>ste passado, através <strong>de</strong> construções simbólicas que<br />

simultaneamente o <strong>de</strong>spem / vestem via ficção. Deste modo, diversas imagens e signos do<br />

passado são modulados em uma escritura vital e dinâmica.<br />

No “Prólogo” <strong>de</strong> O Guarani encontramos, como dito, a explicação pelo narrador do<br />

fictício processo <strong>de</strong> composição do livro, oriundo da compilação <strong>de</strong> um velho manuscrito,<br />

encontrado por acaso na casa que comprou; a voz narrativa tece um cadafalso para o leitor,<br />

ao fingir-se incapaz <strong>de</strong> escrever um romance, endossando a imagem do narrador como<br />

mediador. Em tal jogo (irônico, obviamente), o narrador anuncia essa incapacida<strong>de</strong> como<br />

fruto <strong>de</strong> sua dificulda<strong>de</strong> em não ser verda<strong>de</strong>iro; escrever um romance seria algo<br />

irrealizável, apesar <strong>de</strong> ter feito <strong>de</strong> sua vida um romance 7 . Percebamos que a sua vida não é<br />

7 É interessante notar que em outro texto ficcional, A pata da gazela, José <strong>de</strong> Alencar tece também através da<br />

voz narrativa a idéia <strong>de</strong> fazer da própria vida arte, ainda que <strong>de</strong> forma irônica, já que é uma das opiniões<br />

equivocadas do protagonista, Horácio: “Se o Almeida poupasse <strong>de</strong>sse tempo tão esperdiçado alguns<br />

momentos no dia para <strong>de</strong>dicá-los a algum fim sério e útil, à ciência, à literatura, à arte, que belos triunfos não<br />

obteria sua rica imaginação servida por um espírito cintilante? Mas o nosso leão tinha a esse respeito idéias<br />

excêntricas. [...] -Literatura e arte são plágios; quem po<strong>de</strong> fazer poesia e romance ao vivo, não se dá ao<br />

trabalho <strong>de</strong> reproduzi-los; nem contempla estátuas, quem lhes admira os mo<strong>de</strong>los animados e palpitantes ”<br />

(ALENCAR, 1995, p. 18). A propósito, Lukács nos lembra que “A vida faz-se criação literária, mas com isso<br />

o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor <strong>de</strong> sua própria vida e o observador <strong>de</strong>ssa vida como uma obra<br />

<strong>de</strong> arte criada” (LUKÁCS, 2000, p. 124).

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