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1 34 elemento regulador dos recortes filtrados do mundo empírico, regido, na ficção romântica, pelos limites da verossimilhança. Em 1817, Coleridge propõe a distinção entre a imaginação e a fantasia. Sua percepção acerca da primeira pode-se ligar à própria conceituação que tentamos traçar sobre a memória, enquanto instância dinâmica, em perpétuo movimento e que se perfaz no choque contínuo entre a construção e a ruína, a lacuna e o esquecimento: A imaginação dissolve. Dissemina, dissipa de modo a recriar; ou onde este processo é impossível ainda, em todos os eventos, luta por idealizar e unificar. É essencialmente vital, mesmo se todos os objetos (como objetos) sejam essencialmente fixos e mortos. (COLERIDGE, APUD LIMA, 1984, p. 94). Se a imaginação desestabiliza e metamorfoseia em seu jogo dialético, em contraposição, a fantasia revelar-se-ia em sua fixidez, pois não disporia “de outras fichas com que jogar senão coisas fixas e definidas”. (Idem, 1984, p. 94). Apesar de, como afirmamos acima, relacionarmos a memória à concepção de imaginação tecida por Coleridge, é a fantasia que este liga à primeira, afirmando ser a última um outro “modo da memória, emancipada da ordem do tempo e do espaço” (Idem, 1984, p. 94). Coleridge mostra, ainda, como ambas, imaginação e fantasia, são elementos fundamentais para a apreensão da obra de arte: instâncias aliadas à ficção e que permitem a percepção da arte como muito mais do que a mera ponte entre o sujeito e a natureza, por trazer em si a metamorfose do olhar subjetivo, percebido como único. A partir de então, talvez se torne possível construir uma relação entre a percepção romântica que une a memória, a fantasia e a imaginação à observação, relação bastante presente na crítica romântica de Alencar e, de modo oblíquo, em algumas narrativas ficcionais, indicadoras da necessidade de não apenas observar, mas de ver com olhos de

1 35 artista, tecendo novas modulações em torno da construção da memória via literatura. No jogo ficcional de Alencar, o narrador aparece como um compilador, um mediador de testemunhos a armar a ponte entre o público-leitor e a história que detém e que deseja preservar no próprio ato de revelá-la na escritura. Tomemos como exemplo o prólogo “Ao autor”, de Lucíola : “Reuni as suas cartas e fiz um livro. Eis o destino que lhe dou...” (ALENCAR, 1966, p.310) ou o prefácio à Diva, que segundo o narrador seria uma história vivida pelo protagonista - o jovem médico Amaral, com quem se correspondia: Um belo dia recebi pelo seguro uma carta de Amaral; envolvia um volumoso manuscrito e dizia: “Adivinho que estás muito queixoso de mim, e não tens razão. Há tempos me escreveste pedindo notícias de minha vida íntima; desde então comecei a resposta, que só agora concluí: é a minha história numa carta”. O manuscrito é o que lhe envio agora, um retrato ao natural que a senhora dará, como ao outro, a graciosa moldura. (ALENCAR, 1966, p. 461-462 ). Também esta construção é revelada no prólogo a Senhora : A história é verdadeira; e a narração vem de pessoa que recebeu diretamente, em circunstâncias que ignoro, a confidência dos principais atores deste drama curioso. O suposto autor não passa rigorosamente de editor. É certo que tomando a si o encargo de corrigir a forma e dar-lhe um lavor literário, de algum modo apropria-se não a obra, mas o livro. (ALENCAR, 1966, p. 951). Relação que se anuncia no “Prólogo” de O Guarani, ao narrador revelar o processo de construção do romance, na verdade originado de um manuscrito em ruínas por ele recuperado; e ainda em Cinco minutos, na confissão ao narratário : “É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história e não um romance”. (ALENCAR, 1996, p 55). Assim, o narrador aparece como o responsável por uma história que deve ser contada - para divertir, saciar a curiosidade, levar à reflexão e – romanticamente, ao

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artista, tecendo novas modulações em torno da construção da memória via literatura.<br />

No jogo ficcional <strong>de</strong> Alencar, o narrador aparece como um compilador, um<br />

mediador <strong>de</strong> testemunhos a armar a ponte entre o público-leitor e a história que <strong>de</strong>tém e que<br />

<strong>de</strong>seja preservar no próprio ato <strong>de</strong> revelá-la na escritura. Tomemos como exemplo o<br />

prólogo “Ao autor”, <strong>de</strong> Lucíola : “Reuni as suas cartas e fiz um livro. Eis o <strong>de</strong>stino que lhe<br />

dou...” (ALENCAR, 1966, p.310) ou o prefácio à Diva, que segundo o narrador seria uma<br />

história vivida pelo protagonista - o jovem médico Amaral, com quem se correspondia:<br />

Um belo dia recebi pelo seguro uma carta <strong>de</strong> Amaral;<br />

envolvia um volumoso manuscrito e dizia: “Adivinho que<br />

estás muito queixoso <strong>de</strong> mim, e não tens razão. Há tempos me<br />

escreveste pedindo notícias <strong>de</strong> minha vida íntima; <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

então comecei a resposta, que só agora concluí: é a minha<br />

história numa carta”. O manuscrito é o que lhe envio agora,<br />

um retrato ao natural que a senhora dará, como ao outro, a<br />

graciosa moldura. (ALENCAR, 1966, p. 461-462 ).<br />

Também esta construção é revelada no prólogo a Senhora :<br />

A história é verda<strong>de</strong>ira; e a narração vem <strong>de</strong> pessoa que<br />

recebeu diretamente, em circunstâncias que ignoro, a<br />

confidência dos principais atores <strong>de</strong>ste drama curioso.<br />

O suposto autor não passa rigorosamente <strong>de</strong> editor. É certo<br />

que tomando a si o encargo <strong>de</strong> corrigir a forma e dar-lhe um<br />

lavor literário, <strong>de</strong> algum modo apropria-se não a obra, mas o<br />

livro.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 951).<br />

Relação que se anuncia no “Prólogo” <strong>de</strong> O Guarani, ao narrador revelar o processo<br />

<strong>de</strong> construção do romance, na verda<strong>de</strong> originado <strong>de</strong> um manuscrito em ruínas por ele<br />

recuperado; e ainda em Cinco minutos, na confissão ao narratário : “É uma história curiosa a<br />

que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história e não um romance”. (ALENCAR,<br />

1996, p 55). Assim, o narrador aparece como o responsável por uma história que <strong>de</strong>ve ser<br />

contada - para divertir, saciar a curiosida<strong>de</strong>, levar à reflexão e – romanticamente, ao

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