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1 178 Em Sonhos d’ouro, como vimos, a idéia de passeio está repleta de melancolia: o devaneio provocado pelo passeio é o ruminar das idéias. O tropos do passeador solitário é encarnado no protagonista: Ricardo, 28 anos, advogado simples, brilhante, sem clientes e sem favores. Um herói que não usa roupas da moda, ouro ou relógio: signos negados do capitalismo. Mas, sobretudo, Ricardo é artista e alia sua sensibilidade a uma moral que o torna estranho em um mundo onde a trapaça, a frivolidade e o materialismo imperam. Ricardo é principalmente um solitário. Um típico herói romanesco, como nos lembra Georg Lukács, ao indicá-lo como um ser deslocado no mundo, em conflito com as regras da sociedade e com o seu propósito pessoal. Solidão, melancolia e arte: eis o seu perfil. Ele se perde em devaneios, não por ser demasiado emotivo, mas por sua sensibilidade dotá-lo de uma lucidez capaz de transformá-lo em melancólico, a travar consigo diálogos e reflexões, pois já não encontra reflexo no mundo exterior. A arte é a ponte a ligar a melancólica reflexão, a que a sua sensibilidade o condena, à solidão. O passeio solitário franqueia ao herói o encontro com o seu eu interior. Podemos conectar esta leitura do texto alencarino à reflexão sobre a condição do intelectual brasileiro oitocentista: pensador periférico a buscar a qualidade, a maturação da arte – lembremo-nos de que Alencar era um estudioso de questões estéticas; solitário em sua lucidez, enfrentando a “musa industrial”, ele assistiu à implantação de novos signos, oriundos da desorganização do cotidiano brasileiro, de uma nova ordem, imposta pelo capitalismo e pela recente condição pós-colonial introduzida no país. Como instrumento para reorganizar e decifrar os novos códigos que se impunham escolheu a escrita, concebida a partir da leitura em palimpsesto que faz do mundo em suas narrativas. Autor-leitor de intertextos, Alencar é perspicaz na captação dos tempos, olhares

1 179 e espaços cruzados que, em constante tensão – como a imagem do porto, constituíam as suas tramas. Em sua escritura, o mar e o porto apresentam-se como signos-limite do artista. Ao reivindicar a alcunha de Sênio, Alencar revela o deslocamento do escritor frente a esse panorama: a alusão à senilidade é uma metáfora deste desenraizamento e traz em si a postura do abandono, da desesperança, da melancolia e da desilusão frente aos seus contemporâneos. E remete à condição de guardião da memória: lança o olhar ao passado e procura o consolo em meio à recordação: Aí começa outra idade do autor, a qual eu chamei de mimha velhce literária, adotando o pseudônimo de Sênio, e outros querem que seja a da decrepitude. Não me afligi com isto, eu que, digo-lhe com todas as veras, desejaria fazer-me escritor póstumo, trocando de boa vontade os favores do presente pelas severidades do futuro. (ALENCAR, 1966, p. 154). Todavia, mesmo antes de assumir o pseudônimo, os textos críticos de Alencar, pelo menos desde Iracema, já revelam uma postura melancó lica e a sua desilusão com a política e o fracasso de público e crítica de suas peças teatrais; a escrita do romance seria uma forma de se evadir destes problemas (até que ponto, se também as questões políticas são ali discutidas alegoricamente?). Mais tarde, como demonstrado em “Benção Paterna”, nome revelador da noção do autor como “pai” do texto, responsável por seus sentidos, essa desilusão é também relacionada à fria recepção de seus romances. Soma-se a isso o alijamento de Alencar em dois canais competentes: no âmbito escolar, já que suas obras foram ignoradas no Curso de Literatura do Colégio Pedro II, importante formador de cânon; e no Instituto Histórico Brasileiro, que jamais o aceitou como membro, apesar de ter sido indicado formalmente por Luís Vieira.

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e espaços cruzados que, em constante tensão – como a imagem do porto, constituíam as<br />

suas tramas. Em sua escritura, o mar e o porto apresentam-se como signos-limite do artista.<br />

Ao reivindicar a alcunha <strong>de</strong> Sênio, Alencar revela o <strong>de</strong>slocamento do escritor frente<br />

a esse panorama: a alusão à senilida<strong>de</strong> é uma metáfora <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>senraizamento e traz em si a<br />

postura do abandono, da <strong>de</strong>sesperança, da melancolia e da <strong>de</strong>silusão frente aos seus<br />

contemporâneos. E remete à condição <strong>de</strong> guardião da memória: lança o olhar ao passado e<br />

procura o consolo em meio à recordação:<br />

Aí começa outra ida<strong>de</strong> do autor, a qual eu chamei <strong>de</strong> mimha<br />

velhce literária, adotando o pseudônimo <strong>de</strong> Sênio, e outros<br />

querem que seja a da <strong>de</strong>crepitu<strong>de</strong>. Não me afligi com isto, eu<br />

que, digo-lhe com todas as veras, <strong>de</strong>sejaria fazer-me escritor<br />

póstumo, trocando <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong> os favores do presente<br />

pelas severida<strong>de</strong>s do futuro.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 154).<br />

Todavia, mesmo antes <strong>de</strong> assumir o pseudônimo, os textos críticos <strong>de</strong> Alencar, pelo<br />

menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Iracema, já revelam uma postura melancó lica e a sua <strong>de</strong>silusão com a política<br />

e o fracasso <strong>de</strong> público e crítica <strong>de</strong> suas peças teatrais; a escrita do romance seria uma<br />

forma <strong>de</strong> se evadir <strong>de</strong>stes problemas (até que ponto, se também as questões políticas são ali<br />

discutidas alegoricamente?). Mais tar<strong>de</strong>, como <strong>de</strong>monstrado em “Benção Paterna”, nome<br />

revelador da noção do autor como “pai” do texto, responsável por seus sentidos, essa<br />

<strong>de</strong>silusão é também relacionada à fria recepção <strong>de</strong> seus romances.<br />

Soma-se a isso o alijamento <strong>de</strong> Alencar em dois canais competentes: no âmbito<br />

escolar, já que suas obras foram ignoradas no Curso <strong>de</strong> Literatura do Colégio Pedro II,<br />

importante formador <strong>de</strong> cânon; e no Instituto Histórico Brasileiro, que jamais o aceitou<br />

como membro, apesar <strong>de</strong> ter sido indicado formalmente por Luís Vieira.

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