Tese de doutorado - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - UFF
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1 16 Olhemos, então, para trás e retomemos um texto seminal que elucida o título da primeira parte de nosso trabalho : Eles me pressionam para que me case e eu venho tecendo enganos; para começar, um deus suscitou-me a idéia de instalar em meus aposentos um grande tear e pôr -me a tecer um pano delicado e demasiado longo, e daí lhes disse: “Moços, pretendentes meus, visto como morreu o divino Odisseu, pacientai em vosso ardor pela minha mão até eu terminar a peça, para que não se desperdice o meu urdume: é uma mortalha para o bravo Laertes, para quando o prostrar o triste destino da dolorosa morte, a fim de que nenhuma das aquéias do país se indigne comigo por jazer sem um sudário quem possui tantos haveres”. Assim falei e os seus corações altivos deixaram -se persuadir. Daí, de dia, ia tecendo uma trama imensa: de noite, mandava acender tochas, e a desfazia. (HOMERO, 2000, p. 223 – grifo nosso). O mito de Penélope pode ser lido como a tentativa (condenada à precariedade) de preservar o vivido – que para isto precisa ser destruído e refeito. Como o seu manto, o movimento da memória não é o da tessitura linear e permanente: a esposa de Odisseu tece enganos; ilude, joga, articula o fazer e o desfazer. A memória por sua vez estaria não só próxima ao movimento construtivo, à preservação, mas também ao engano, à incerteza e ao esquecimento; não aponta apenas para o passado, mas orquestra os resquícios do pretérito e as projeções para o futuro. A crença no retorno de Ulisses motiva Penélope a tecer e a destecer, adiando a escolha de um novo esposo; a mortalha deve assegurar a sobrevivência da memória de Laertes, seu sogro, e, principalmente, a de suas experiências passadas. Todavia, seu trabalho só sobrevive porque é desfeito e refeito, como a memória, que de modo idêntico ao da teia de Penélope, tece enganos – incapaz que é de resgatar o passado e assegurar a preservação da experiência vivida. E o que seria a memória? A luxuosa e derradeira veste
1 17 dos fragmentos a partir da qual o indivíduo e a coletividade se reinventam? Precária, incompleta e frágil - como a mortalha de Laertes. Os gregos representam a memória como Mnemosine, que na Teogonia de Hesíodo é a musa capaz de revelar tudo o que fo i, é e será. Mnemosine presenteia os poetas não só com o dom da vidência do pretérito (enquanto os adivinhos voltam-se para o futuro, o poeta vira-se para o passado). Todavia, Mnemosine confere ao poeta o dom da lembrança, mas também o do esquecimento: Se um homem traz o luto em seu coração inexperiente à dor, e sua alma definha no desgosto, logo que um cantor, servo das Musas, celebra os altos feitos dos homens de outrora ou os deuses felizes, habitantes do Olimpo, rapidamente ele esquece suas tristezas e seus desgostos não se lembra mais. O presente das deusas desviam-no disto. (HESÍODO, 1996, p. 8). A memória, incorporada classicamente na figura de Mnemosine, como a teia de Penélope, escreve e rasura; conserva e destrói, reelaborando o passado, ressignificando o presente e abrindo brechas para o futuro. E se o fator surpresa é o que prepondera no porvir, existe na tessitura da memória espaço para a fantasia e a ficção. O mito de Mnemosine nos permite tecer algumas reflexões a respeito da memória. Irmã de Chronos, o tempo e Oceano, mãe das nove musas, a sua ausência impossibilitaria a fruição das artes: os sons e as palavras não se fixariam. A personificação da memória como uma deusa responsável pela poesia traça desde a Antigüidade a sua união à fabulação e ao conhecimento: Os gregos da época arcaica fizeram da memória uma deusa, Mnemosine (...)Lembra aos homens a recordação dos heróis e de seus altos feitos, preside à poesia lírica. O poeta é pois um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do passado, como o adivinho o é do futuro. É a testemunha
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Eles me pressionam para que me case e eu venho tecendo<br />
enganos; para começar, um <strong>de</strong>us suscitou-me a idéia <strong>de</strong><br />
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“Moços, preten<strong>de</strong>ntes meus, visto como morreu o divino<br />
Odisseu, pacientai em vosso ardor pela minha mão até eu<br />
terminar a peça, para que não se <strong>de</strong>sperdice o meu urdume: é<br />
uma mortalha para o bravo Laertes, para quando o prostrar<br />
o triste <strong>de</strong>stino da dolorosa morte, a fim <strong>de</strong> que nenhuma das<br />
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quem possui tantos haveres”. Assim falei e os seus corações<br />
altivos <strong>de</strong>ixaram -se persuadir. Daí, <strong>de</strong> dia, ia tecendo uma<br />
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O mito <strong>de</strong> Penélope po<strong>de</strong> ser lido como a tentativa (con<strong>de</strong>nada à precarieda<strong>de</strong>) <strong>de</strong><br />
preservar o vivido – que para isto precisa ser <strong>de</strong>struído e refeito. Como o seu manto, o<br />
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próxima ao movimento construtivo, à preservação, mas também ao engano, à incerteza e ao<br />
esquecimento; não aponta apenas para o passado, mas orquestra os resquícios do pretérito e<br />
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A crença no retorno <strong>de</strong> Ulisses motiva Penélope a tecer e a <strong>de</strong>stecer, adiando a<br />
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Laertes, seu sogro, e, principalmente, a <strong>de</strong> suas experiências passadas. Todavia, seu<br />
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