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1 156 O devaneio não é o perder-se a si, mas perder o fio linear da narrativa, em uma escritura repleta de digressões. Um passeio pelos mais distintos assuntos, que desembocam no mesmo lugar: o patriotismo. O passeio é, antes de tudo, didático, a desejar ordenar as imagens do passado nacional, salvá-las do silêncio e do esquecimento (embora esse, e qualquer outro, passeio esteja sempre condenado a silenciar algo). É preciso passear “onde houver coisas que referir e reco rdações que avivar” (MACEDO, 1991, p.118). Nos antigos mapas e documentos coloniais eram privilegiados instituições, construções e monumentos ligados à religião, ao governo, à manutenção do domínio colonial, pela sua segurança. Era impresso um olhar de colonizador, de terra à vista, marcando no corpus da urbe os pontos que lhe interessam. Lembremo-nos aqui de Pero Magalhães Gandavo: a barbárie dos índios é um fato lingüístico, pois sem terem L,F e R lhes faltam a Lei, a Fé e o Rei: os pilares da civilização à época moderna. O narrador do passeio “caminha” não só pela cidade e suas ruas, mas pela própria memória urbana – mais até do que pela história urbana, pois o passeio extrapola a esfera do histórico, agregando diversos outros suportes memorialísticos, pois nele, como vimos, cabem não só o documento (signo do historicismo, pedra de toque do IHB do qual Macedo é membro), como também a fantasia. Os vários passeios físicos simulados na narrativa agregam-se em um só passeio pluridimensional. O olhar de Macedo – como os cronistas e cartógrafos coloniais, continua privilegiando a Fé – ao eleger, para o seu itinerário, passeios a várias igrejas, e a Lei (e o Rei) – ao escolher como ponto de partida o edifício representativo do poder, o palácio imperial. Todavia, ao invés de concentrar seu olhar nos fortes, expressão do desejo de segurança (garantida através da mesma violência que possibilitou a integridade física e o

1 157 domínio metropolitano da América portuguesa), o narrador ressalta em seu olhar de pós- colono o afã da civilização (necessária para assegurar a hipotética integração da nação e criar laços comunitários em torno da tessitura artificial de uma memória e história brasileiras). Por isto, ilumina em sua caminhada os itinerários do Passeio Público – local de exercício do convívio social, do ver e do ser visto, o Imperial Colégio Dom Pedro II – esperança na formação de uma inteligência ilustrada, e o Recolhimento de Nossa Senhora do Parto – casa de “caridade” para a correção moral de mulheres desviadas do padrão familiar patriarcal. Ao dar suporte escrito às mitologias urbanas, mesclando-as a informações históricas, Macedo tenta fixar um passado histórico; fixação travestida na pretensa mobilidade narrativa de uma voz que reivindica a liberdade ficcional, menos para dar mobilidade à história do que para controlar a sua fixação. No passeio empreendido pelo narrador macediano a anedota e o riso não escondem a melancolia de uma fragmentação velada sob o signo da unidade. O passeio macediano é mais frívolo do que o do flâneur ou o do promeneur. Todavia, podemos ler neste texto ficcional (em suas multifaces) um esforço constante e nada tranqüilo de homogeneizar, de construir via escritura aparatos para a consecução de um projeto nacional a reunir o desejo de unificar e de construir noções de civilização e de comunidade, e a carregar a vontade de instaurar a historicidade. O passeador de Macedo limita-se a flanar pelos signos da civilização de seu país – a religião, o governo, a família e a História. Esta se apresenta como uma quimera, mas ao invés de ser encarada como um desafio, é amestrada em uma mescla de textos de cronistas coloniais e anedotas, cantigas populares, lendas urbanas e ficções do próprio autor. Mas o que poderia ser uma mescla extremamente interessante perde-se em uma narrativa

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O <strong>de</strong>vaneio não é o per<strong>de</strong>r-se a si, mas per<strong>de</strong>r o fio linear da narrativa, em uma escritura<br />

repleta <strong>de</strong> digressões. Um passeio pelos mais distintos assuntos, que <strong>de</strong>sembocam no<br />

mesmo lugar: o patriotismo. O passeio é, antes <strong>de</strong> tudo, didático, a <strong>de</strong>sejar or<strong>de</strong>nar as<br />

imagens do passado nacional, salvá-las do silêncio e do esquecimento (embora esse, e<br />

qualquer outro, passeio esteja sempre con<strong>de</strong>nado a silenciar algo). É preciso passear “on<strong>de</strong><br />

houver coisas que referir e reco rdações que avivar” (MACEDO, 1991, p.118).<br />

Nos antigos mapas e documentos coloniais eram privilegiados instituições,<br />

construções e monumentos ligados à religião, ao governo, à manutenção do domínio<br />

colonial, pela sua segurança. Era impresso um olhar <strong>de</strong> colonizador, <strong>de</strong> terra à vista,<br />

marcando no corpus da urbe os pontos que lhe interessam. Lembremo-nos aqui <strong>de</strong> Pero<br />

Magalhães Gandavo: a barbárie dos índios é um fato lingüístico, pois sem terem L,F e R<br />

lhes faltam a Lei, a Fé e o Rei: os pilares da civilização à época mo<strong>de</strong>rna. O narrador do<br />

passeio “caminha” não só pela cida<strong>de</strong> e suas ruas, mas pela própria memória urbana – mais<br />

até do que pela história urbana, pois o passeio extrapola a esfera do histórico, agregando<br />

diversos outros suportes memorialísticos, pois nele, como vimos, cabem não só o<br />

documento (signo do historicismo, pedra <strong>de</strong> toque do IHB do qual Macedo é membro),<br />

como também a fantasia.<br />

Os vários passeios físicos simulados na narrativa agregam-se em um só<br />

passeio pluridimensional. O olhar <strong>de</strong> Macedo – como os cronistas e cartógrafos coloniais,<br />

continua privilegiando a Fé – ao eleger, para o seu itinerário, passeios a várias igrejas, e a<br />

Lei (e o Rei) – ao escolher como ponto <strong>de</strong> partida o edifício representativo do po<strong>de</strong>r, o<br />

palácio imperial.<br />

Todavia, ao invés <strong>de</strong> concentrar seu olhar nos fortes, expressão do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

segurança (garantida através da mesma violência que possibilitou a integrida<strong>de</strong> física e o

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