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1 136 mobiliada, função que dialoga com a rejeição romântica ao consumo capitalista. O diálogo com as artes plásticas faz-se também presente na reivindicação da arte clássica como forma de relativizar a presença do erótico no romance, em um paralelo entre o classicismo e sua nudez que não enrubesceria 47 no diálogo com a narratária do romance: Entretanto, se a senhora não conhece as Odes de Horácio e os amores de Ovídio, se nunca leu a descrição da festa de Baco e não tem notícia dos mistérios de Adônis ou do rito afrodísio das virgens de Pafos, que em comemoração ao nascimento da deusa iam certos dias do ano banhar-se na espuma do mar e oferecer as primícias do seu amor a quem mais cedo as cobiçava; se ignora tudo isto, rasgue estas folhas (...) (ALENCAR, 1966, p. 339). Relação retomada pelo narrador ao comentar a revolta de Paulo com a cena: Quando a mulher se desnuda para a arte, a inspiração a transporta para mundos ideais, onde a matéria se depura ao hálito de Deus; quando porém a mulher se desnuda para cevar, mesmo com a vista, mesmo com a concupiscência de muitos, há nisto uma profanação da beleza e da criatura humana, que não tem nome. (ALENCAR, 1966, p. 352) Entretanto, como na obra de Manet, a figura nua escandaliza por aludir ao mundo coevo a Alencar; é a condição de moderna que gera o interdito à “bacante” Lúcia. A cena do bacanal é descrita segundo a dicção pictórica, como a aparição de Guida. Em chiaroscuro e tons de vermelho, cor índice da luxúria na narrativa, o cenário lascivo da casa de Sá é erguido em múltiplos espelhos, desvendando identidades não assumidas no espaço social em uma atmosfera propositalmente confusa, de aparências: A sala não é grande, mas espaçosa; cobre as paredes um papel aveludado de sombrio escarlate, sobre o qual se destacam entre espelhos duas ordens de quadros 47 Podemos aludir comparativamente à “Dejéuner sur l´herbe” de Eduard Manet e o escândalo produzido pela nudez que, nas palavras poéticas de Drummond, “pela primeira vez nos provoca”: o nu escandaliza por ser contemporâneo e não uma alusão mítica.

1 137 representando os mistérios de Lesbos. Deve fazer idéia da energia e aparente vitalidade com que as linhas e colorido dos contornos se debuxavam no fundo rubro, ao trêmulo da claridade deslumbrante do gás. (...) Havia tal profusão de espelhos, que multiplicava e reproduzia ao infinito, numa confusão fantástica, os menores objetos. As imagens, projetando-se ali em todos os sentidos, apresentavam-lhe por mil faces.(...) O aspecto brilhante das iguarias esquisitas, entre as irradiações do cristal e os reflexos áureos, rubros ou violáceos do madeira, do porto e do Borgonha... (ALENCAR, 1966, p. 340) A arquitetura do texto organiza-se em um quadro a dialogar com a pintura romântica, na expressividade das cores quentes a indiciar o ambiente de luxúria. À remissão ao jogo de claro-escuro da ceia de Sá continua, desta vez na relação entre loucura e razão, na fala de Sá: “abolição completa da razão, do tempo, da luz; e inauguração do reinado das trevas e da loucura”. (ALENCAR, 1966, p. 342). Lúcia situa-se neste quadro no embate acima aludido: desliza entre a luz e a sombra como enigma para Paulo. A encenação de Lúcia como pintura viva, baseada nos quadros de Sá inspirados “nas filhas de Lesbos” (ALENCAR, 1966, p. 348), entre o depurar e o cevar (no sentido de satisfazer) coloca-se em xeque a questão das relações entre a moral e a mimese artística, presente nas entrelinhas da carta a narratária. 48 Ao abandonar o campo estético, o motivo das pinturas torna-se torpe e degradante. O que seria, segundo Sá:“o original delas; não o original frio e calmo, mas um verdadeiro modelo, vivendo, palpitando, sorrindo, esculpindo em carne todas as paixões que deveriam 48 Na remissão de Lúcia, enquanto Paulo lia Bernadin de Saint-Pierre para ela, sua imagem é novamente comparada a Safo: “Lúcia deixou pender a cabeça sobre o seio, cruzou as mãos nos joelhos dobrando o talhe, como a estatueta da Safo de Pradier que por aí anda tão copiada em marfim e porcelana”. Inversa à cena do bacanal e ao seu passado “sombrio”, a cena pictórica neoclássica é reelaborada em um quadro frio e calmo, como as pinturas de Sá. Por outro lado, a doçura e inocência da cena “verdadeira” revela-se superior às reproduções da estatueta : a aura permanece, aqui, na realidade.

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representando os mistérios <strong>de</strong> Lesbos. Deve fazer idéia da<br />

energia e aparente vitalida<strong>de</strong> com que as linhas e colorido<br />

dos contornos se <strong>de</strong>buxavam no fundo rubro, ao trêmulo da<br />

clarida<strong>de</strong> <strong>de</strong>slumbrante do gás. (...)<br />

Havia tal profusão <strong>de</strong> espelhos, que multiplicava e reproduzia<br />

ao infinito, numa confusão fantástica, os menores objetos. As<br />

imagens, projetando-se ali em todos os sentidos,<br />

apresentavam-lhe por mil faces.(...)<br />

O aspecto brilhante das iguarias esquisitas, entre as<br />

irradiações do cristal e os reflexos áureos, rubros ou<br />

violáceos do ma<strong>de</strong>ira, do porto e do Borgonha...<br />

(ALENCAR, 1966, p. 340)<br />

A arquitetura do texto organiza-se em um quadro a dialogar com a pintura<br />

romântica, na expressivida<strong>de</strong> das cores quentes a indiciar o ambiente <strong>de</strong> luxúria. À<br />

remissão ao jogo <strong>de</strong> claro-escuro da ceia <strong>de</strong> Sá continua, <strong>de</strong>sta vez na relação entre loucura<br />

e razão, na fala <strong>de</strong> Sá: “abolição completa da razão, do tempo, da luz; e inauguração do<br />

reinado das trevas e da loucura”. (ALENCAR, 1966, p. 342).<br />

Lúcia situa-se neste quadro no embate acima aludido: <strong>de</strong>sliza entre a luz e a sombra<br />

como enigma para Paulo.<br />

A encenação <strong>de</strong> Lúcia como pintura viva, baseada nos quadros <strong>de</strong> Sá inspirados<br />

“nas filhas <strong>de</strong> Lesbos” (ALENCAR, 1966, p. 348), entre o <strong>de</strong>purar e o cevar (no sentido <strong>de</strong><br />

satisfazer) coloca-se em xeque a questão das relações entre a moral e a mimese artística,<br />

presente nas entrelinhas da carta a narratária. 48<br />

Ao abandonar o campo estético, o motivo das pinturas torna-se torpe e <strong>de</strong>gradante.<br />

O que seria, segundo Sá:“o original <strong>de</strong>las; não o original frio e calmo, mas um verda<strong>de</strong>iro<br />

mo<strong>de</strong>lo, vivendo, palpitando, sorrindo, esculpindo em carne todas as paixões que <strong>de</strong>veriam<br />

48 Na remissão <strong>de</strong> Lúcia, enquanto Paulo lia Bernadin <strong>de</strong> Saint-Pierre para ela, sua imagem é novamente<br />

comparada a Safo: “Lúcia <strong>de</strong>ixou pen<strong>de</strong>r a cabeça sobre o seio, cruzou as mãos nos joelhos dobrando o talhe,<br />

como a estatueta da Safo <strong>de</strong> Pradier que por aí anda tão copiada em marfim e porcelana”. Inversa à cena do<br />

bacanal e ao seu passado “sombrio”, a cena pictórica neoclássica é reelaborada em um quadro frio e calmo,<br />

como as pinturas <strong>de</strong> Sá. Por outro lado, a doçura e inocência da cena “verda<strong>de</strong>ira” revela-se superior às<br />

reproduções da estatueta : a aura permanece, aqui, na realida<strong>de</strong>.

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