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1 134 colorido. A cor é o ápice da expressividade pictórica, é sua característica mais viva e, nesse sentido, garante a criatividade de um artista mesmo quando seu trabalho parte de um desenho adotado. (CAMPOFIORITO, 1983, p.21). Ironicamente, é justamente a cor que caracteriza (ou melhor, seria: caricaturiza) o pintor copista Belmiro como um tipo desengonçado e ridículo, que traz no corpo e no figurino as marcas do seu ofício: “As pastas de alvaiade que tinha pelo cabelo ruivo e assanhado, bem como as dedadas de oca e zarcão, apalpadas nas mangas e peitos do gibão de cor indescritível, estavam lhe denunciando o ofício de pintor” (ALENCAR, 1966, p.1277). Se Belmiro converte-se em um confuso painel de tintas, tal e qual a própria questão da arte colonial, apresentada como cópia de influências da matriz, Sebastião não pode ser dissociado da burocracia e do poder do documento, dado a ele, personagem apresentada como sem reflexão e mecânica: leitura metaforizada do papel do documento oficial, tão procurado pelas expedições dos eleitos do imperador e pelos antiquários, mas, por sua vez, desprezado pelo narrador do texto e relativizado pela proposta poética de Alencar, que insiste em fazer da literatura uma ferramenta para trazer à tona, via ficção, as imagens do passado abafadas ou silenciadas pelo discurso historiográfico. Ao contrário do velho que o narrador encontra e que daria mote para as histórias do Garatuja, o personagem Sebastião não foge da fúria dos que querem congelar o seu discurso em uma história imobilizante e a serviço de uma erudição vazia. Ao contrário ele tem uma relação simbiótica com o ambiente de trabalho, um espaço de veneração à regra, ao automatismo, a um poder ausente de coerência ou reflexão, como a própria pintura de Belmiro, na qual o belo da arte se esvazia em meio à reprodução oca de sentido e à ausência da consciência artística.

1 135 O aparentemente despretensioso O Garatuja pode revelar as entrelinhas de uma discussão tecida, via ironia, sobre as relações entre arte e poder, mostrando um Brasil colonial – que desde o começo é assumido pelo narrador como uma paródia do país de seu tempo. Neste entrecruzamento de tempos e espaços, a tessitura narrativa é arrematada pelo questionamento da mimese, pensando a arte como transfiguração do real, por excelência. O final cômico oculta a profunda melancolia da falência da liberdade artística perante a hegemonia e a mediocridade, caminhando lado a lado na narrativa. Pode-se ainda, talvez, estabelece uma ponte entre a representação do fracasso final de Ivo como artista e as reflexões de Alencar acerca da condição do intelectual no século dezenove, dispersas muitas vezes na forma de queixas não aprofundadas em seus textos críticos. As relações entre o pictórico e o poético também podem ser inferidas na leitura de Lucíola, romance no qual quadros em claro-escuro são tecidos como metáforas criadas à luz das tensões entre corpo e alma presentes no romance, considerado uma Dama das Camélias brasileira para desgosto de Alencar que, se por um lado assume o intertexto no próprio romance, por outro reage à acusação de plágio ao mostrar que o diálogo excede a mera cópia literária. A construção da personagem também é feita através de claros e escuros, em nuances cambiantes que a apresentam como Lúcia (Maria da Glória) / luz e Lúcifer/escuridão, entre o angélico e o demoníaco:“De resto, a senhora sabe que não é possível pintar sem que a luz projete claros e escuros. As sombras do meu quadro, se esfumam traços carregados, contrastam debuxando o relevo e colorido de límpidos contornos” (ALENCAR, 1966, p. 312). Oposição esclarecida nos trajes e móveis da personagem, que troca o vermelho pelo azul e branco celestiais e a mansão e o mobiliário luxuosos pela casa modestamente

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colorido. A cor é o ápice da expressivida<strong>de</strong> pictórica, é sua<br />

característica mais viva e, nesse sentido, garante a<br />

criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um artista mesmo quando seu trabalho parte<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>senho adotado. (CAMPOFIORITO, 1983, p.21).<br />

Ironicamente, é justamente a cor que caracteriza (ou melhor, seria: caricaturiza) o<br />

pintor copista Belmiro como um tipo <strong>de</strong>sengonçado e ridículo, que traz no corpo e no<br />

figurino as marcas do seu ofício: “As pastas <strong>de</strong> alvaia<strong>de</strong> que tinha pelo cabelo ruivo e<br />

assanhado, bem como as <strong>de</strong>dadas <strong>de</strong> oca e zarcão, apalpadas nas mangas e peitos do gibão<br />

<strong>de</strong> cor in<strong>de</strong>scritível, estavam lhe <strong>de</strong>nunciando o ofício <strong>de</strong> pintor” (ALENCAR, 1966,<br />

p.1277).<br />

Se Belmiro converte-se em um confuso painel <strong>de</strong> tintas, tal e qual a própria questão<br />

da arte colonial, apresentada como cópia <strong>de</strong> influências da matriz, Sebastião não po<strong>de</strong> ser<br />

dissociado da burocracia e do po<strong>de</strong>r do documento, dado a ele, personagem apresentada<br />

como sem reflexão e mecânica: leitura metaforizada do papel do documento oficial, tão<br />

procurado pelas expedições dos eleitos do imperador e pelos antiquários, mas, por sua vez,<br />

<strong>de</strong>sprezado pelo narrador do texto e relativizado pela proposta poética <strong>de</strong> Alencar, que<br />

insiste em fazer da literatura uma ferramenta para trazer à tona, via ficção, as imagens do<br />

passado abafadas ou silenciadas pelo discurso historiográfico.<br />

Ao contrário do velho que o narrador encontra e que daria mote para as histórias do<br />

Garatuja, o personagem Sebastião não foge da fúria dos que querem congelar o seu<br />

discurso em uma história imobilizante e a serviço <strong>de</strong> uma erudição vazia. Ao contrário ele<br />

tem uma relação simbiótica com o ambiente <strong>de</strong> trabalho, um espaço <strong>de</strong> veneração à regra,<br />

ao automatismo, a um po<strong>de</strong>r ausente <strong>de</strong> coerência ou reflexão, como a própria pintura <strong>de</strong><br />

Belmiro, na qual o belo da arte se esvazia em meio à reprodução oca <strong>de</strong> sentido e à<br />

ausência da consciência artística.

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