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1 104 Ao herói que habita este espaço – como Peri e Arnaldo, contudo, é vedada a magnificência épica, pois embora ele apresente características sobre humanas, como o dom para falar com os bichos, a força descomunal e a coragem, e seja moralmente irrepreensível, há limites para a sua atuação e estes são demarcados pela hierarquia patronal, bem como pelo espaço da civilização, instâncias que na verdade se interagem: O sertanejo curvou-se e beijou a mão ao fazendeiro, costume patriarcal já em voga no sertão e que ele praticava por um impulso d´alma, pois habituara-se desde a infância a respeitar no velho Campelo um outro pai, além do que lhe dera a natureza.(...) (Fala de Arnaldo a Campelo): -Uma vez já pedi permissão ao sr. Capitão-mor para dizer lhe que eu não pertenço ao serviço da fazenda. Não sei lidar com os homens; cada um tem seu gênio; o meu é para viver no mato.(...) (ALENCAR, 1966, p. 1080). Como herói, Arnaldo flutua entre a liberdade e a servidão (travestida em lealdade) e entre a solidão do individualista herói romanesco e o sacrifício em prol da coletividade, como faria o herói épico: (Fala de Arnaldo a Campelo) -Procuro o sertão, e moro nele para estar só. Mas fique vossa senhoria descansado, que se não presto para camarada ou vaqueiro, quando se tratar de o defender ou acatar, a si ou aos que lhe são caros, pode contar que não tem servidor mais pronto, nem mais devoto. Minha vida lhe pertence, é dispor dela como lhe aprouver. (...) ( Fala de Arnaldo a mãe) –Para desobedecer -lhe era preciso que ele tivesse o poder de ordenar -me que fosse um vil, mas esse poder ele não o possui, nem alguém neste mundo. (ALENCAR, 1966, p. 1083 e p. 1105, grifo nosso). A tensão entre o desejo épico e a sua impossibilidade instaura-se como fissura no projeto literário alencarino; mas é justamente a aporia que o faz rumar ao horizonte da identidade nacional, horizonte intranqüilo como a promessa ambígua do epílogo de O Guarani. Em O nosso cancioneiro, como vimos, ao discutir a importância da poesia popular

1 105 como manancial legítimo da poesia brasileira, Alencar defende a presença de um universo mítico, adivinhado nos versos populares de “O Rabicho da Geralda” e “Boi Espácio”, que contam a saga de um boi fugitivo. O boi, signo natural, é a possibilidade da existência épica. Mas até uma imagem que poderia ser pura natureza emerge na tensão entre natureza e cultura, entre autonomia e submissão, pois, apesar da tentativa de ser domesticado por sua dona, foge para a liberdade. E embora, em O sertanejo, em uma relação intertextual, o boi Dourado, comparável ao “Rabicho”, fosse domado pelo vaqueiro Arnaldo (para depois ser libertado, em reconhecimento ao seu “heroísmo”), a impossibilidade épica continua, na interdição do relacionamento entre Arnaldo e Flor, mesmo quando este é perfilhado por seu pai e senhor. Esta tensão é alegorizada na submissão amorosa. Desta forma, ao adentrar na casa de Campelo, Arnaldo transforma-se: “O sertanejo dos dias antecedentes, o filho do deserto, livre e indômito como o cervo das campinas, ficou lá fora. Quem entrou foi um mancebo tímido e acanhado” (ALENCAR, 1966, p. 1073). Um poema épico, segundo Alencar em “Cartas a Confederação dos Tamoios”, deve dar “uma origem divina, ou ao menos heróica, ao povo que quer cantar” (ALENCAR, 1066, p. 866), “deve abrir-se por um quadro majestoso” (Idem, ibidem), apresentar o elemento maravilhoso e fazer do escritor “autor e ator” (Idem, p.870), pois além de “tirar partido da ilusão teatral” (Idem, ibidem) seria preciso usar uma linguagem elevada. O apontamento do fracasso da epopéia de Gonçalves de Magalhães para se pensar o Brasil remete (felizmente) à ausência de uma fórmula épica capaz de traduzir o nacional, intuindo o deslocamento discutido por Georg Lukács, já no século vinte, em Teoria do Romance: a insuficiência da epopéia na problematização de questões ligadas ao mundo

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como manancial legítimo da poesia brasileira, Alencar <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a presença <strong>de</strong> um universo<br />

mítico, adivinhado nos versos populares <strong>de</strong> “O Rabicho da Geralda” e “Boi Espácio”, que<br />

contam a saga <strong>de</strong> um boi fugitivo. O boi, signo natural, é a possibilida<strong>de</strong> da existência<br />

épica. Mas até uma imagem que po<strong>de</strong>ria ser pura natureza emerge na tensão entre natureza<br />

e cultura, entre autonomia e submissão, pois, apesar da tentativa <strong>de</strong> ser domesticado por sua<br />

dona, foge para a liberda<strong>de</strong>.<br />

E embora, em O sertanejo, em uma relação intertextual, o boi Dourado, comparável<br />

ao “Rabicho”, fosse domado pelo vaqueiro Arnaldo (para <strong>de</strong>pois ser libertado, em<br />

reconhecimento ao seu “heroísmo”), a impossibilida<strong>de</strong> épica continua, na interdição do<br />

relacionamento entre Arnaldo e Flor, mesmo quando este é perfilhado por seu pai e senhor.<br />

Esta tensão é alegorizada na submissão amorosa. Desta forma, ao a<strong>de</strong>ntrar na casa <strong>de</strong><br />

Campelo, Arnaldo transforma-se: “O sertanejo dos dias antece<strong>de</strong>ntes, o filho do <strong>de</strong>serto,<br />

livre e indômito como o cervo das campinas, ficou lá fora. Quem entrou foi um mancebo<br />

tímido e acanhado” (ALENCAR, 1966, p. 1073).<br />

Um poema épico, segundo Alencar em “Cartas a Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”, <strong>de</strong>ve<br />

dar “uma origem divina, ou ao menos heróica, ao povo que quer cantar” (ALENCAR,<br />

1066, p. 866), “<strong>de</strong>ve abrir-se por um quadro majestoso” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m), apresentar o<br />

elemento maravilhoso e fazer do escritor “autor e ator” (I<strong>de</strong>m, p.870), pois além <strong>de</strong> “tirar<br />

partido da ilusão teatral” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m) seria preciso usar uma linguagem elevada.<br />

O apontamento do fracasso da epopéia <strong>de</strong> Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães para se pensar o<br />

Brasil remete (felizmente) à ausência <strong>de</strong> uma fórmula épica capaz <strong>de</strong> traduzir o nacional,<br />

intuindo o <strong>de</strong>slocamento discutido por Georg Lukács, já no século vinte, em Teoria do<br />

Romance: a insuficiência da epopéia na problematização <strong>de</strong> questões ligadas ao mundo

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