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Tese de doutorado - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - UFF

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1 1<br />

SUMÁRIO<br />

Resumo.......................................................................................................................p. 02<br />

Introdução...................................................................................................................p. 04<br />

Parte I: A arte <strong>de</strong> tecer enganos..................................................................................p. 14<br />

Capítulo 1: Memória e Literatura...............................................................................p. 15<br />

Capítulo 2: A Poética da Restauração – imagem e memória em Alencar..................p. 45<br />

Parte II: Quadros em movimento, esquadros da memória..........................................p. 92<br />

Capítulo 1: Imagens nacionais na poética da restauração...........................................p. 93<br />

Capítulo 2: A <strong>de</strong>scrição do Brasil e o Brasil da <strong>de</strong>scrição: espaço e memória...........p.141<br />

Capítulo 3: Ser intelectual no Oitocentos: reflexões em claro-escuro....................... p. 171<br />

Conclusão....................................................................................................................p. 197<br />

Anexos.........................................................................................................................p. 204<br />

Bibliografia..................................................................................................................p. 215


1 2<br />

RESUMO<br />

Este trabalho preten<strong>de</strong> abordar as relações entre memória e imagem na narrativa <strong>de</strong> José <strong>de</strong><br />

Alencar, a partir <strong>de</strong> sua percepção como instrumento capaz <strong>de</strong> tecer <strong>de</strong>terminadas<br />

modulações sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional. Tais modulações são construídas em torno do que<br />

conceituamos como uma poética da restauração na proposta crítica e literária alencarina,<br />

instâncias complementares e representadas na metáfora pictórica do claro-escuro, tanto na<br />

arquitetura textual como enquanto metáfora das relações entre o histórico e o literário.<br />

Nossa proposta é analisar como as relações entre a imagética e a memória revelam a<br />

potência do literário como suporte me morialístico, capaz <strong>de</strong> criar imagens que reverberem<br />

no imaginário nacional, muitas vezes invertendo e <strong>de</strong>slocando imagens produzidas pela<br />

memória histórica. Pensaremos como este <strong>de</strong>slocamento permite a instauração <strong>de</strong> um novo<br />

olhar na narrativa alencarina, reelaborando o olhar europeu.<br />

Nesta perspectiva, serão analisados nessas narrativas <strong>de</strong>terminados signos<br />

produtores <strong>de</strong> imagem – a paisagem, o mar e o porto, bem como a reflexão sobre a<br />

condição do intelectual neles alegorizada.<br />

Palavras-chave: José <strong>de</strong> Alencar; Romantismo; literatura e artes plásticas; memória.


1 3<br />

ABSTRACT<br />

The main aim of this work is to analyse the relations between memory and image in<br />

the novels of José <strong>de</strong> Alencar, consi<strong>de</strong>ring they as an important key to weave certains<br />

configurations about brazilian i<strong>de</strong>ntity, ma<strong>de</strong> around what we assume as a poetic of<br />

restauration at Alencar´s work, as a theorist and a writter, figured on the picturial<br />

metaphora of chiaroscuro – in the text architeture and as a metaphora of the boun<strong>de</strong>ries<br />

between history and story.<br />

Our propose is to verify how these relations reveal the ficctional work as a potencial<br />

memorialistic hol<strong>de</strong>r, able to create images into national imaginary´s, replacing images<br />

built up by historic memory what allows the creation of a new point of view towards the<br />

past in Alencar´s texts. On this way, what we called signs image´s productors – the<br />

landscaped, the sea, the harbour, will be analysed, as well the role of the artist, figured by<br />

these images.<br />

Key-words: José <strong>de</strong> Alencar, Romanticism, Memory, Literature and Painting.


1 4<br />

INTRODUÇÃO<br />

Conta a biografia da moça que o seu pai lhe dava como recompensa pelas longas<br />

horas <strong>de</strong> estudo a permissão para ler romances <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar.<br />

A moça em questão é a princesa Isabel, filha daquele que se tornaria o gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>safeto <strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus romancistas favoritos. O caso revela mais do que a mera<br />

curiosida<strong>de</strong>: a referência ao papel secundário do romance na formação intelectual,<br />

consi<strong>de</strong>rado como puro entretenimento.<br />

Sem educação principesca, embora ilustrado, Alencar, ao escrever “Como e porque<br />

sou romancista”, resgatou o romance da condição menor, elegendo-o como peça<br />

fundamental <strong>de</strong> sua formação, para além da evasão e do divertimento.<br />

A leitura dos melodramas para as mulheres da família na infância é somente o ponto<br />

<strong>de</strong> partida para o encontro <strong>de</strong> escritores como Chateaubriand, Walter Scott e, aquele que<br />

primeiro o impressionara profundamente, Balzac. O acesso aos seus romances na<br />

adolescência e juventu<strong>de</strong> permitiu a intuição da forma romanesca como elemento po<strong>de</strong>roso<br />

<strong>de</strong> reflexão e conscientização do leitor frente ao mundo.<br />

E o mundo <strong>de</strong> Alencar é pós-colonial, precário em sua ambígua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O<br />

romance surge então como estratégia <strong>de</strong> formação e conformação <strong>de</strong> imagens capazes <strong>de</strong><br />

contribuir para o <strong>de</strong>lineamento da face nacional.<br />

Nesta tese, tentaremos indicar alguns caminhos reflexivos para o estudo do romance<br />

alencarino, pertencente a um contexto a clamar por (re) leituras. Intentamos analisar as<br />

relações entre memória e literatura na ficção romântica oitocentista brasileira, mais


1 5<br />

precisamente em Iracema, Ubirajara, O guarani, Sonhos d´Ouro, Lucíola, Senhora, Minas<br />

<strong>de</strong> Prata, O Garatuja, Guerra dos Mascates e O sertanejo.<br />

Em relação aos textos críticos, o corpus por nós escolhido abarca “Cartas sobre A<br />

Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”, “Como e porque sou romancista”, “Benção Paterna”, O nosso<br />

cancioneiro, “Carta a Dr. Jaguaribe” e o “Pós- escrito” <strong>de</strong> Iracema, principalmente, embora<br />

recorramos também a outros textos críticos e publicados nos jornais.<br />

Analisaremos os modos pelos quais os romances alencarinos constróem elementos<br />

que contribuem para o <strong>de</strong>lineamento <strong>de</strong> uma memória nacional, <strong>de</strong>sdobrando-se em<br />

múltiplas faces e fissuras a partir das formas poéticas organizadas.<br />

Uma <strong>de</strong>stas faces revela-se no que percebemos como relações interdiscursivas na<br />

formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> romântica e do imaginário nacional do oitocentos brasileiro nas<br />

interfaces da literatura e da pintura. Desta forma, buscamos investigar, como propõe o<br />

nosso título, as paisagens em claro-escuro tecidas por Alencar em suas narrativas em torno<br />

do diálogo entre a literatura, a memória e a imagem no oitocentos.<br />

Nossa investigação é tecida a partir dos seguintes fios condutores: a análise da<br />

questão da representação <strong>de</strong> uma nação pelo viés da literatura e o espaço <strong>de</strong> articulação do<br />

pictórico <strong>de</strong>ntro do universo literário, percebendo-os como meios <strong>de</strong> representação, a<br />

dialogar <strong>de</strong> forma privilegiada com a memória: como maneiras diversas <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r o<br />

real, <strong>de</strong> posicionar-se face à reflexão e <strong>de</strong> dar sentido ao mundo.<br />

Esta preocupação coaduna-se à análise do que percebemos como um jogo <strong>de</strong> claro-<br />

escuro na escritura <strong>de</strong> Alencar; um jogo que apreen<strong>de</strong>mos como a construção <strong>de</strong> metáforas<br />

pictóricas a servirem <strong>de</strong> pontes para o questionamento e a construção da escritura<br />

romântica, investigando assim a articulação entre o literário e o pictórico.


1 6<br />

Tal jogo organiza-se em torno do que apontamos como uma poética da restauração<br />

na narrativa <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar, conceito construído em nossa dissertação <strong>de</strong> mestrado,<br />

intitulada O tempo e o palimpsesto: mito, memória, ficção e história em José <strong>de</strong> Alencar e<br />

aprofundado por nós neste trabalho; aprofundamento <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> sua articulação com o que<br />

reconhecemos como a criação <strong>de</strong> metáforas para o nacional na obra alencarina, produzidas<br />

em torno da analogia com o jogo pictórico do claro-escuro.<br />

As imagens e termos relacionados ao pictórico, empregados por Alencar em seus<br />

textos são elementos <strong>de</strong> reflexão sobre o artesanato literário; uma relação pouco explorada<br />

pela crítica, mas que, contudo, constrói-se como o catalisador <strong>de</strong> novas questões e<br />

problematizações sobre a literatura romântica brasileira.<br />

O objetivo principal <strong>de</strong>sta pesquisa é, pois, problematizar e refletir sobre as relações<br />

entre memória, imagem e literatura na ficção romântica do oitocentos brasileiros, a partir da<br />

escritura <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar, apontando as tensões e diálogos presentes nas relações entre a<br />

literatura e a pintura.<br />

Buscamos, a partir <strong>de</strong>ste objetivo principal, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma pesquisa que<br />

alimentasse as nossas reflexões sobre as especificida<strong>de</strong>s das narrativas verbais e visuais, as<br />

possíveis convergências estruturais e a visão acerca <strong>de</strong>ste diálogo no século <strong>de</strong>zenove.<br />

Coube à literatura romântica o <strong>de</strong>staque e a recuperação criativa das especificida<strong>de</strong>s<br />

do Brasil: raciais, lingüísticas, dos costumes e das instituições. Neste contexto era<br />

perfeitamente cabível o perfil i<strong>de</strong>ológico do Romantismo, que apostava na valorização do<br />

particular, do irregular e do perene, no senso <strong>de</strong> História e no resgate do passado.<br />

Desta maneira, o romance romântico no Brasil serviu como um aliado <strong>de</strong>cisivo ao<br />

nacionalismo emergente, semeado a partir da in<strong>de</strong>pendência, e incitou o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

expressão do orgulho da pátria, contribuindo para a criação <strong>de</strong> uma literatura in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte


1 7<br />

e fazendo com que a ativida<strong>de</strong> intelectual ganhasse status <strong>de</strong> tarefa patriótica na construção<br />

da nação. É este senso <strong>de</strong> missão presente no romantismo que, segundo Antônio Cândido,<br />

teria o intuito <strong>de</strong> exprimir a realida<strong>de</strong> específica da socieda<strong>de</strong> brasileira (CANDIDO, 1969).<br />

O Romantismo <strong>de</strong>ve ser compreendido em sua amplitu<strong>de</strong> e complexida<strong>de</strong>, não<br />

limitando a sua compreensão à esfera literária, mas também a sua dimensão política.<br />

Apesar <strong>de</strong> ser impossível obter uma <strong>de</strong>finição formal do movimento, po<strong>de</strong>mos afirmar seu<br />

caráter consciente e militante e situar suas origens em aproximadamente em mil e<br />

oitocentos, com o fim da Revolução Francesa.<br />

Seus propósitos evi<strong>de</strong>ntes são relativos a uma postura regressiva tanto em relação ao<br />

eu (abandono a <strong>de</strong>vaneios e à solidão), quanto em relação ao mundo (recuperação da<br />

simbiose perdida entre homem e natureza, <strong>de</strong>sejo do retorno à pátria, busca do exotismo,<br />

reinvenção do bom selvagem e a nostalgia do passado).<br />

A nostalgia romântica, todavia, assume direcionamentos diversos, ora <strong>de</strong>nunciando<br />

as <strong>de</strong>ficiências <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> corrompida - em uma conotação revolucionária, ora<br />

reivindicando uma continuida<strong>de</strong> histórica, que estabelecesse uma ponte com o<br />

establishment <strong>de</strong>sta socieda<strong>de</strong>, em uma perspectiva conservadora.<br />

A primeira geração romântica brasileira, que difundiu o movimento no país, era<br />

formada por Araújo Porto Alegre, Torres Homem, Pereira da Silva, Azeredo Coutinho e<br />

Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães: Era o chamado “grupo parisiense”, que <strong>de</strong> 1833 a 1836, li<strong>de</strong>rado<br />

pelo último, entraram em contato em Paris com as novas tendências culturais. É também<br />

neste momento que vem à tona a necessida<strong>de</strong> da criação <strong>de</strong> uma literatura especificamente<br />

brasileira.<br />

Neste espírito, o grupo funda em Paris a revista “Niterói”, iniciando a divulgação<br />

dos i<strong>de</strong>ais nacionalistas românticos. Os escritores, como Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães,


1 8<br />

incitaram o forjar <strong>de</strong> uma literatura para a nação, focando a possibilida<strong>de</strong> da in<strong>de</strong>pendência<br />

brasileira alçar a esfera intelectual.<br />

A principal resposta encontrada para este dilema foi a utilização e valorização do<br />

elemento indígena; resposta orientada pelas leituras <strong>de</strong> Ferdinand Denis, jovem francês<br />

apaixonado pelo Indianismo. Durante uma viagem ao Brasil, embalado pela aventura<br />

romântica da busca <strong>de</strong> lugares exóticos, Denis escreveu Scènes <strong>de</strong> la nature sous le<br />

tropique (1824) e Résumé <strong>de</strong> la histoire litteraire du Brésil (1826), ensaios que <strong>de</strong>fendiam a<br />

necessida<strong>de</strong> do Brasil, uma vez in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, possuir sua própria literatura.<br />

A utilização da temática indígena conciliou os anseios dos românticos brasileiros <strong>de</strong><br />

a<strong>de</strong>quação à estética literária européia à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> afirmar uma literatura nacional<br />

autêntica e fundar a memória da nação, inventando a tradição <strong>de</strong> um passado glorioso<br />

comum a todos os seus membros. Um passado capaz <strong>de</strong> agregar os brasileiros, suscitando<br />

um sentimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação social e histórica.<br />

Entretanto, como <strong>de</strong>sejamos apontar neste trabalho, a busca <strong>de</strong>sse passado não é o<br />

resgate <strong>de</strong> algo naturalmente estabelecido e estático, que espera somente uma <strong>de</strong>scoberta<br />

para revelar-se, uma vez que constrói-se artificialmente, a partir <strong>de</strong> escolhas, <strong>de</strong> lembranças<br />

e <strong>de</strong> esquecimentos.<br />

A construção da memória nacional, <strong>de</strong> uma memória coletiva – aqui compreendida<br />

como “o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado”<br />

(NORA, apud LE GOFF, 1996, p. 472), não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> só dos documentos históricos ou da<br />

tradição oral, mas do que estes suportes provocam nos homens e da maneira como serão<br />

reorganizados pelas várias instâncias que se articulam com a memória, como a própria<br />

literatura, na tessitura <strong>de</strong> uma memória literária.


1 9<br />

Através da memória ficcional é possível recontextualizar o real, fazer emergir o que<br />

foi dissolvido em forma <strong>de</strong> ruínas psíquicas e históricas, já que esta se encontra suspensa<br />

entre a verda<strong>de</strong> e a mentira. Ela é ficcional, construção criativa e sem interditos. Cria<br />

sentidos a partir <strong>de</strong> resquícios do imaginário, que não são nem revelados nem <strong>de</strong>struídos,<br />

mas naturalizados.<br />

Ao tentar readministrar um imaginário, a memória literária mitifica-se em tradições<br />

recentemente inventadas travestidas em temporalida<strong>de</strong>s profundas. Traz à tona as<br />

ambigüida<strong>de</strong>s e impasses da formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira. Através da leitura do texto<br />

ficcional encontram-se dimensões que po<strong>de</strong>m ser acrescentadas aos textos que o leitor filtra<br />

da realida<strong>de</strong>, do mundo em que vive, já que a literatura é um campo no qual a palavra<br />

construída artisticamente cria situações simbólicas.<br />

A proposta <strong>de</strong> problematizar a representação da memória brasileira via ficção<br />

romântica <strong>de</strong>riva a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refletir acerca das potencialida<strong>de</strong>s e funções <strong>de</strong> uma<br />

memória literária autônoma da memória histórica, ainda que interligada a esta 1 .<br />

A partir do que propusemos como os eixos principais do trabalho – a problemática<br />

da memória literária no oitocentos brasileiro e o seu <strong>de</strong>sdobramento na ficção romântica <strong>de</strong><br />

Alencar (em meio ao turbilhão a que se convencionou chamar memória nacional),<br />

teceremos uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos e temas que se entrecruzam e perpassam estes eixos.<br />

Assim, em torno <strong>de</strong> uma concepção da memória como instância pluridimensional,<br />

propomo-nos a investigar as relações entre memória coletiva e memória subjetiva e a sua<br />

representação no jogo literário romântico brasileiro, investigando as relações entre os<br />

efeitos discursivos e a restauração <strong>de</strong> imagens do passado.<br />

1 Evi<strong>de</strong>ntemente consi<strong>de</strong>ramos a pluralida<strong>de</strong> do conceito <strong>de</strong> memória, bem como a interpenetração <strong>de</strong><br />

elementos da memória histórica, literária, coletiva e subjetiva, impossíveis <strong>de</strong> serem pensadas <strong>de</strong> forma<br />

solipsista.


1 10<br />

Em Alencar, a literatura revelou-se um instrumento po<strong>de</strong>roso <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> imagens<br />

relacionadas à memória coletiva brasileira. Fio a unir na mesma trama representação,<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e imaginação, o jogo ficcional é latente <strong>de</strong> dimensões que po<strong>de</strong>m ser<br />

acrescentadas aos textos que o leitor filtra da realida<strong>de</strong>, já que é um campo no qual a<br />

palavra construída artisticamente cria situações simbólicas.<br />

Interessa-nos analisar a emergência, via literatura, <strong>de</strong> um novo olhar em direção ao<br />

passado colonial, fundado pela prosa romântica <strong>de</strong> Alencar; focalização que se constrói<br />

também no diálogo com os textos dos cronistas e viajantes coloniais. Assim, investigamos a<br />

emergência do que percebemos como a fundação do olhar do colono que se assume<br />

cidadão: o mar à vista. Dentro <strong>de</strong>sta perspectiva, também analisaremos o signo do mar em<br />

sua polissemia, bem como os espaços do porto e do sertão.<br />

O trabalho organiza-se em duas partes: “A arte <strong>de</strong> tecer enganos” e “Quadros em<br />

movimento, esquadros da memória”.<br />

A primeira parte <strong>de</strong>sdobra-se em dois capítulos: “Memória e Literatura” e “A<br />

poética da restauração”.<br />

No primeiro capítulo, “Memória e Literatura ”, discutiremos o caráter plural da<br />

memória e os entrecruzamentos e limites <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sdobramento nos suportes histórico,<br />

coletivo, literário e subjetivo. A partir do mapeamento <strong>de</strong> conceituações em torno das<br />

instâncias produtoras <strong>de</strong> memória, nos propomos a abordar a construção <strong>de</strong> reflexões sobre<br />

a memória no século <strong>de</strong>zenove, em sua relação com o campo literário.<br />

No segundo capítulo, “A poética da restauração”, indicaremos a presença na escrita<br />

alencarina <strong>de</strong> uma poética refletida em seus textos críticos e transformada em práxis em<br />

seus textos ficcionais, remissiva à construção <strong>de</strong> imagens reveladoras da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

nacional e que contribuem para a renovação do imaginário brasileiro.


1 11<br />

Tais imagens são tecidas em torno da tensão entre lembrança e esquecimento e das<br />

articulações entre a memória histórica e a memória coletiva. O papel do escritor frente a<br />

este processo será analisado a partir da proposta, feita por Alencar, <strong>de</strong> um artesanato<br />

romântico que reelabora a mimese aristotélica ao propor o veto ao artista dos espaços já<br />

dominados pelo discurso historiográfico, liberando-o apenas para restaurar o que este<br />

discurso silencia, em uma estratégia metaforizada na imagem do jogo pictórico <strong>de</strong> luz e<br />

sombra 2 .<br />

O enfrentamento <strong>de</strong>sta tarefa estabelece uma analogia entre a função do escritor –<br />

capaz <strong>de</strong> povoar mundos ao resgatar as ruínas da memória da penumbra não penetrada pelo<br />

discurso histórico – e o restaurador <strong>de</strong> quadros, aludindo ao papel da imaginação na<br />

construção da memória.<br />

Esta proposta, entretanto, não é tecida <strong>de</strong> forma imediata; José <strong>de</strong> Alencar foi um<br />

escritor que organizou as suas reflexões <strong>de</strong> forma lenta e complexa, sem um projeto<br />

acabado e totalizador: as ambigüida<strong>de</strong>s e contradições <strong>de</strong> sua obra anunciam estes<br />

impasses, geridos em uma visão melancólica do nacional. Seus projetos radicalizam o<br />

sentido da palavra, sempre apontando o momento coevo como uma das etapas <strong>de</strong> um<br />

processo em aberto, projetado para o futuro.<br />

Na segunda parte <strong>de</strong>sta tese, analisaremos como a projeção das imagens ligadas ao<br />

nacional organiza-se na proposta aludida na primeira parte.<br />

No primeiro capítulo, “Imagens do nacional na poética da restauração”,<br />

investigaremos a figuração da metáfora do claro-escuro e as interfaces entre o pictórico e o<br />

2 Apesar <strong>de</strong>ssa proposta, Alencar muitas vezes reelabora aspectos já discutidos historicamente, como veremos<br />

adiante. Cabe aqui sublinhar a labilida<strong>de</strong> das fronteiras dos discursos literário e historiográfico no Brasil.


1 12<br />

poético em algumas narrativas <strong>de</strong> Alencar, precisamente em Sonhos d´Ouro, Senhora, O<br />

Garatuja e Lucíola.<br />

Preten<strong>de</strong>mos analisar a construção <strong>de</strong> uma arquitetura textual em diálogo com a<br />

sintaxe pictórica, a consi<strong>de</strong>rar a paisagem como elemento fundamental <strong>de</strong> representação e<br />

questionamento do nacional, ao mesmo tempo em que é proposta a propedêutica do “olhar<br />

<strong>de</strong> artista”, que propõe uma visão civilizadora da natureza, na emergência <strong>de</strong> uma nova<br />

sensibilida<strong>de</strong>. Propomo-nos ainda a pensar como algumas narrativas alencarinas<br />

representam as relações entre arte e palavra.<br />

No segundo capítulo, “A <strong>de</strong>scrição do Brasil e o Brasil da <strong>de</strong>scrição: espaço e<br />

memória em Alencar”, estudaremos as relações entre a melancolia romântica, a solidão e o<br />

topos do passeio em Sonhos d´Ouro contrapondo-o a narrativa <strong>de</strong> um outro autor<br />

romântico, Um passeio pela cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong> Joaquim Manuel <strong>de</strong> Almeida, a<br />

fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar em torno <strong>de</strong>sta análise contrastiva a figuração do passeador romântico na<br />

obra alencarina.<br />

Preten<strong>de</strong>mos, da mesma forma, estudar a tessitura do que chamamos signos<br />

moduladores <strong>de</strong> imagem na escrita alencarina, mais precisamente o mar e o sertão.<br />

Interessa-nos pensar a produção <strong>de</strong> uma nova perspectiva para a apreensão e<br />

significação do espaço brasileiro proposta via ficção romanesca por Alencar, coadunada à<br />

inversão do olhar colonizado e do sentido mar-terra.<br />

Na implementação ficcional do sentido terra-mar, as imagens coloniais são<br />

<strong>de</strong>sarticuladas e reconstruídas em torno <strong>de</strong> um olhar que potencializa o sertão como espaço<br />

épico e instaura o signo do porto como local limítrofe das tensões entre natureza e<br />

civilização, colônia e metrópole.


1 13<br />

O porto como signo-limite e como metáfora da solidão do intelectual periférico é a<br />

questão central do terceiro capítulo, “Ser intelectual no Oitocentos: reflexões em claro-<br />

escuro”. Nele preten<strong>de</strong>mos apontar as reflexões tecidas nos textos críticos <strong>de</strong> Alencar,<br />

principalmente no confessional “Como e porque sou romancista”, sobre o papel do escritor<br />

no Brasil do século <strong>de</strong>zenove. Tentamos também pensar a representação do artista e do<br />

homem <strong>de</strong> letras em algumas narrativas alencarinas e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> diálogo por elas<br />

aventadas em relação ao dilaceramento do intelectual brasileiro frente à condição <strong>de</strong><br />

periférico, à solidão romântica e a ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate; possibilida<strong>de</strong> que por vezes é diluída<br />

em um silêncio merecedor <strong>de</strong> atenção.<br />

“Palavra, palavra / que estranha potência a vossa!”, anunciou o eu lírico <strong>de</strong> Cecília<br />

Meireles, em Romanceiro da Inconfidência. É a força da palavra capaz <strong>de</strong> gerar universos<br />

tão complexos, a ponto <strong>de</strong> contribuírem para a modulação <strong>de</strong> imagens ligadas a nossa<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> como cidadãos brasileiros, o fio que nos guiou pelo labirinto alencarino.<br />

A escrita melancólica <strong>de</strong> Alencar faz-se sábia ao negar qualquer solução<br />

instantânea para se pensar as questões ligadas à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da nação. Gerada na lentidão e<br />

na reflexão solitária apresenta-se ainda hoje como <strong>de</strong>safiadora leitura, se consi<strong>de</strong>rarmos os<br />

aspectos sub-reptícios <strong>de</strong> seus textos que, como as minas <strong>de</strong> prata <strong>de</strong> Robério Dias, não se<br />

dão ao primeiro olhar àqueles que, como Dom Pedro II, percebem a sua tessitura romanesca<br />

como divertimento a premiar um exaustivo dia <strong>de</strong> estudo.<br />

Aos que adivinham a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> complexas reflexões travestidas em narrativas<br />

que são bem mais do que açucaradas tramas amorosas, a leitura <strong>de</strong> Alencar ergue-se como<br />

instigante estudo: tentemos.


1 14<br />

PARTE I: A ARTE DE TECER ENGANOS


1 15<br />

CAPÍTULO 1: MEMÓRIA E LITERATURA<br />

Ao elegermos como chave <strong>de</strong> leitura para nossa tese as relações entre a literatura, a<br />

imagem e a memória no oitocentos, assumimos a percepção da memória como elemento<br />

fundamental na articulação i<strong>de</strong>ntitária e cultural <strong>de</strong> um país. Postulamos assim a percepção<br />

das transformações culturais como canais dinâmicos, construídos em torno da dialética<br />

entre tradição e ruptura.<br />

A partir <strong>de</strong>ste posicionamento seria legítimo <strong>de</strong>rivar a impossibilida<strong>de</strong> da memória<br />

cristalizar-se em um passado estático, paralisante: antes a acreditemos vária e labiríntica, a<br />

cruzar espaços e temporalida<strong>de</strong>s.<br />

Olhar o passado é construir o presente: leitura sempre em atraso – na expressão<br />

barthesiana - contaminada e oblíqua. Resi<strong>de</strong>, porém, nestas lacunas a rica criação <strong>de</strong> novos<br />

sentidos e imagens, a remeterem duplamente para o hoje e o ontem: a única leitura possível<br />

da tradição é a que <strong>de</strong>svela o presente.<br />

A pesquisa sobre a tradição romântica, orientada pela crítica à poética alencarina,<br />

traduz-se na busca <strong>de</strong> caminhos para pensar questões cruciais e ainda atuais: o<br />

<strong>de</strong>lineamento da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, os limites e possibilida<strong>de</strong>s do intelectual brasileiro, a<br />

sobrevivência <strong>de</strong> uma memória coletiva no contexto pós-mo<strong>de</strong>rno.<br />

Reza o texto bíblico sobre a <strong>de</strong>sobediência <strong>de</strong> Lot; invertamos o mito: a paralisação<br />

não advém <strong>de</strong> olhar para trás, mas do abandono <strong>de</strong> elementos importantes para pensarmos o<br />

presente. Negar a releitura da tradição (em nome <strong>de</strong> uma concepção que incensa a ruptura e<br />

a novida<strong>de</strong> perpétua) é não compreen<strong>de</strong>r a relação atávica a enlaçar cultura e memória,<br />

erigida no choque <strong>de</strong> tempos e espaços diversos.


1 16<br />

Olhemos, então, para trás e retomemos um texto seminal que elucida o título da<br />

primeira parte <strong>de</strong> nosso trabalho :<br />

Eles me pressionam para que me case e eu venho tecendo<br />

enganos; para começar, um <strong>de</strong>us suscitou-me a idéia <strong>de</strong><br />

instalar em meus aposentos um gran<strong>de</strong> tear e pôr -me a tecer<br />

um pano <strong>de</strong>licado e <strong>de</strong>masiado longo, e daí lhes disse:<br />

“Moços, preten<strong>de</strong>ntes meus, visto como morreu o divino<br />

Odisseu, pacientai em vosso ardor pela minha mão até eu<br />

terminar a peça, para que não se <strong>de</strong>sperdice o meu urdume: é<br />

uma mortalha para o bravo Laertes, para quando o prostrar<br />

o triste <strong>de</strong>stino da dolorosa morte, a fim <strong>de</strong> que nenhuma das<br />

aquéias do país se indigne comigo por jazer sem um sudário<br />

quem possui tantos haveres”. Assim falei e os seus corações<br />

altivos <strong>de</strong>ixaram -se persuadir. Daí, <strong>de</strong> dia, ia tecendo uma<br />

trama imensa: <strong>de</strong> noite, mandava acen<strong>de</strong>r tochas, e a<br />

<strong>de</strong>sfazia. (HOMERO, 2000, p. 223 – grifo nosso).<br />

O mito <strong>de</strong> Penélope po<strong>de</strong> ser lido como a tentativa (con<strong>de</strong>nada à precarieda<strong>de</strong>) <strong>de</strong><br />

preservar o vivido – que para isto precisa ser <strong>de</strong>struído e refeito. Como o seu manto, o<br />

movimento da memória não é o da tessitura linear e permanente: a esposa <strong>de</strong> Odisseu tece<br />

enganos; ilu<strong>de</strong>, joga, articula o fazer e o <strong>de</strong>sfazer. A memória por sua vez estaria não só<br />

próxima ao movimento construtivo, à preservação, mas também ao engano, à incerteza e ao<br />

esquecimento; não aponta apenas para o passado, mas orquestra os resquícios do pretérito e<br />

as projeções para o futuro.<br />

A crença no retorno <strong>de</strong> Ulisses motiva Penélope a tecer e a <strong>de</strong>stecer, adiando a<br />

escolha <strong>de</strong> um novo esposo; a mortalha <strong>de</strong>ve assegurar a sobrevivência da memória <strong>de</strong><br />

Laertes, seu sogro, e, principalmente, a <strong>de</strong> suas experiências passadas. Todavia, seu<br />

trabalho só sobrevive porque é <strong>de</strong>sfeito e refeito, como a memória, que <strong>de</strong> modo idêntico ao<br />

da teia <strong>de</strong> Penélope, tece enganos – incapaz que é <strong>de</strong> resgatar o passado e assegurar a<br />

preservação da experiência vivida. E o que seria a memória? A luxuosa e <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira veste


1 17<br />

dos fragmentos a partir da qual o indivíduo e a coletivida<strong>de</strong> se reinventam? Precária,<br />

incompleta e frágil - como a mortalha <strong>de</strong> Laertes.<br />

Os gregos representam a memória como Mnemosine, que na Teogonia <strong>de</strong> Hesíodo é<br />

a musa capaz <strong>de</strong> revelar tudo o que fo i, é e será. Mnemosine presenteia os poetas não só<br />

com o dom da vidência do pretérito (enquanto os adivinhos voltam-se para o futuro, o poeta<br />

vira-se para o passado). Todavia, Mnemosine confere ao poeta o dom da lembrança, mas<br />

também o do esquecimento:<br />

Se um homem traz o luto em seu coração inexperiente à dor, e<br />

sua alma <strong>de</strong>finha no <strong>de</strong>sgosto, logo que um cantor, servo das<br />

Musas, celebra os altos feitos dos homens <strong>de</strong> outrora ou os<br />

<strong>de</strong>uses felizes, habitantes do Olimpo, rapidamente ele esquece<br />

suas tristezas e seus <strong>de</strong>sgostos não se lembra mais. O<br />

presente das <strong>de</strong>usas <strong>de</strong>sviam-no disto. (HESÍODO, 1996, p.<br />

8).<br />

A memória, incorporada classicamente na figura <strong>de</strong> Mnemosine, como a teia <strong>de</strong><br />

Penélope, escreve e rasura; conserva e <strong>de</strong>strói, reelaborando o passado, ressignificando o<br />

presente e abrindo brechas para o futuro. E se o fator surpresa é o que prepon<strong>de</strong>ra no porvir,<br />

existe na tessitura da memória espaço para a fantasia e a ficção.<br />

O mito <strong>de</strong> Mnemosine nos permite tecer algumas reflexões a respeito da memória.<br />

Irmã <strong>de</strong> Chronos, o tempo e Oceano, mãe das nove musas, a sua ausência impossibilitaria a<br />

fruição das artes: os sons e as palavras não se fixariam. A personificação da memória como<br />

uma <strong>de</strong>usa responsável pela poesia traça <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Antigüida<strong>de</strong> a sua união à fabulação e ao<br />

conhecimento:<br />

Os gregos da época arcaica fizeram da memória uma <strong>de</strong>usa,<br />

Mnemosine (...)Lembra aos homens a recordação dos heróis<br />

e <strong>de</strong> seus altos feitos, presi<strong>de</strong> à poesia lírica. O poeta é pois<br />

um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do<br />

passado, como o adivinho o é do futuro. É a testemunha


1 18<br />

inspirada dos tempos antigos, da ida<strong>de</strong> heróica, e por isso da<br />

ida<strong>de</strong> das origens.<br />

A poesia i<strong>de</strong>ntificada com a memória, faz <strong>de</strong>sta um saber e<br />

mesmo uma sageza, uma sophia. O poeta tem o seu lugar<br />

entre os mestres da verda<strong>de</strong> e, a origens da poética grega, a<br />

palavra poética é uma inscrição viva que se inscreve na<br />

memória como mármore. (LE GOFF, p.21, 1997)<br />

É como reação ao caráter especificamente transitório da memória que os sujeitos se<br />

armam, criando memórias artificiais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os inícios dos tempos, em múltiplas superfícies:<br />

pedras, pergaminhos, couros, argila, placas <strong>de</strong> cera e outros tipos <strong>de</strong> suporte registraram<br />

imagens, retratos, textos visuais e escritos.<br />

Da mesma maneira, as relações entre memória e escrita se reportam à Antiguida<strong>de</strong>.<br />

Ao dialogar sobre as relações entre o conhecimento e a verda<strong>de</strong>, Platão, no Teeteto<br />

metaforizou a memória através da imagem da placa <strong>de</strong> cera: dádiva <strong>de</strong> Mnemosine, variável<br />

<strong>de</strong> sujeito para sujeito, mas presente em todos. O reconhecimento platônico da lembrança é,<br />

então, originado na correspondência entre o que é percebido e as impressões gravadas<br />

previamente na memória.<br />

Outra imagem platônica alusiva à memória é a do aviário na alma. A representação<br />

da memória através <strong>de</strong>sta imagem sugere a idéia <strong>de</strong> preservação, da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reter e<br />

fixar a experiência latente <strong>de</strong> lembranças. A recordação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria do retorno a este lugar e<br />

da procura da imagem certa, caso contrário po<strong>de</strong>ríamos nos <strong>de</strong>parar com “um pombo torcaz<br />

ao invés <strong>de</strong> um pombo manso” (PLATÃO APUD DRAAISMA, 2005, p. 54), ou seja, com<br />

uma informação “errada”.<br />

Tanto a imagem do bloco <strong>de</strong> cera, quanto à do aviário remetem a idéia da memória<br />

como centro <strong>de</strong> armazenamento, que semeou no discurso literário oci<strong>de</strong>ntal variações sobre<br />

estas imagens.


1 19<br />

Enquanto a metáfora da placa <strong>de</strong> cera em Platão é apenas uma imagem alusiva,<br />

lúdica, Aristóteles, em De memoria et reminiscentia, perceberá literalmente as impressões<br />

da memória como materialida<strong>de</strong>, como algo que realmente ficaria registrado no corpo.<br />

Seria através dos sentidos que a memória produziria imagens; segundo Draaisma:<br />

Na época <strong>de</strong> Aristóteles, a alma (pneuma) era o principal<br />

conceito da física, e a ciência aristotélica do substrato físico<br />

dos vestígios da memória se encaixa nesse conceito: a<br />

memória é o movimento que se enfraquece gradualmente, por<br />

meio da qual a pneuma transporta pelo corpo as impressões<br />

dos sentidos. O <strong>de</strong>stino provisório <strong>de</strong>sse transporte é o<br />

coração, se<strong>de</strong> das emoções. O que é preciso “saber <strong>de</strong> cor”<br />

fica armazenado no centro do sistema cardiovascular. Depois<br />

<strong>de</strong> armazenadas no coração, as impressões superiores – as da<br />

visão, da audição e do olfato – são transportadas pelo<br />

pneuma até o cérebro. (DRAAISMA, 2005, p.52).<br />

A visão aristotélica da ligação sensual entre a memória e o coração legou<br />

etimologicamente o verbo latino recordari e a expressão “<strong>de</strong> cor”, referindo às informações<br />

gravadas pela memória. Aristóteles estabeleceu ainda a distinção entre a mnemê – a<br />

memória pensada em sua potência <strong>de</strong> conservação do passado, e a mamnesi – o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

recuperar <strong>de</strong> forma voluntária este passado: a memória está “agora incluída no tempo, mas<br />

num tempo que permanece, também para Aristóteles, rebel<strong>de</strong> à inteligibilida<strong>de</strong>”. (LE<br />

GOFF, 1997, p. 22)<br />

Em Platão e Aristóteles, a memória é percebida como um elemento da alma, mas<br />

como manifestação sensível e não intelectual. A imagem platônica do bloco <strong>de</strong> cera já<br />

manifestaria a perda da aura mítica na memória, mas ainda não procuraria “fazer do<br />

passado um conhecimento: quer subtrair-se à experiência temporal” (LE GOFF, 1997, p.<br />

22).


1 20<br />

Se os textos seminais <strong>de</strong> Platão e Aristóteles já nos anunciam o caráter armazenador<br />

da memória, para além da faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> retenção, po<strong>de</strong>ríamos perceber a sua dinâmica<br />

como transgressora do âmbito do vivido e da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao passado, construindo-se pari<br />

passu à lembrança e ao esquecimento. Aproximar-se-ia assim, tanto da História, quanto da<br />

Literatura, na medida em que o passado está con<strong>de</strong>nado a ser sempre construção do<br />

presente, e por isto <strong>de</strong>sviante e precário.<br />

A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar a memória como matéria comum à Literatura e à História<br />

não exclui a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar os limites entre as duas instâncias. Apesar <strong>de</strong><br />

reconhecermos a tenuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tais fronteiras, é tão necessário sublinhá-las quanto evitar a<br />

armadilha <strong>de</strong> um simplismo crítico redutor do discurso histórico a mero relato e a do<br />

literário a espelho fiel da socieda<strong>de</strong>.<br />

O tempo interno móvel e a mescla dos enunciados permitem ao discurso literário<br />

uma maior autonomia em relação ao histórico. Como suporte produtor <strong>de</strong> memórias, à<br />

literatura é permitido adivinhar os silêncios, os <strong>de</strong>svios e as lacunas, propositais ou não, da<br />

escrita historiográfica. Por apostar no dilema e no paradoxo, o discurso literário abdica da<br />

totalida<strong>de</strong>. Por isso, falhas e rasuras não po<strong>de</strong>m ser vistas como “erros”, mas como<br />

instrumentos sem os quais o discurso literário não se construiria em sua ambigüida<strong>de</strong> e<br />

polissemia.<br />

Ao figurar a realida<strong>de</strong>, o discurso literário “abre uma janela”, “salva um afogado”,<br />

na fala <strong>de</strong> Mário Quintana, ou seja: como potência <strong>de</strong> leitura do mundo, a escritura<br />

ficcional po<strong>de</strong> dar voz aos silenciados, aos vencidos e aos esquecidos pelo discurso<br />

hegemônico. Além disto, po<strong>de</strong> trazer à tona não só leituras compartilhadas do real (no<br />

sentido <strong>de</strong> aceitas como verda<strong>de</strong>iras em um dado recorte temporal, espacial e social), como


1 21<br />

fazer emergir o imaginável, o possível e o impossível da “realida<strong>de</strong>”, pois por ser<br />

inconcebível em sua totalida<strong>de</strong>, a dúvida e a certeza a habitam.<br />

Esta relação estabelecida entre a literatura e a memória é possibilitada pelo jogo <strong>de</strong><br />

lembrança e esquecimento presente em todo o imaginário e melhor compreendida através<br />

<strong>de</strong> uma concepção da memória coletiva como um corpus (evi<strong>de</strong>ntemente dinâmico e jamais<br />

fixo) no qual se inscrevem imagens elaboradas e compartilhadas por <strong>de</strong>terminados grupos<br />

sociais, e que abarcam o virtual e o real, o vivido e o sonhado, o <strong>de</strong>sejado e o temido, o<br />

pesa<strong>de</strong>lo e o sonho, a experiência e a imaginação. A literatura semeia no imaginário<br />

coletivo novas visões e idéias, oriundas também do sonho e da fantasias, veículos<br />

legitimados do ficcional, inaugurando formas alternativas <strong>de</strong> encarar e transformar a<br />

realida<strong>de</strong> do grupo social.<br />

Se crermos, como Borges, que “o sonho <strong>de</strong> um é parte da memória <strong>de</strong> todos”,<br />

po<strong>de</strong>remos conceber o discurso literário como eixo mediador <strong>de</strong> imagens significativas para<br />

o <strong>de</strong>lineamento da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nação. Na construção <strong>de</strong>stas imagens ligadas à<br />

memória nacional, o sonho, matéria prima da ficção, assume, então, um relevante papel.<br />

O discurso literário po<strong>de</strong> então ser compreendido como elemento que interfere na<br />

constituição da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nação percebida por nós (em torno da proposta <strong>de</strong><br />

Benedict An<strong>de</strong>rson) como uma comunida<strong>de</strong> imaginada a partir da palavra. Desta forma,<br />

imagem e memória coadunam-se como esferas potentes e atadas à luta pelo po<strong>de</strong>r:<br />

manipular a memória e o esquecimento é condição importante na instauração e perpetuação<br />

<strong>de</strong> um grupo hegemônico, já que historicamente a memória coletiva é<br />

posta em jogo <strong>de</strong> forma importante na luta das forças sociais<br />

pelo po<strong>de</strong>r. Tornar-se senhores da memória e do<br />

esquecimento é uma das gran<strong>de</strong>s preocupações das classes,<br />

dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as<br />

socieda<strong>de</strong>s históricas.(LE GOFF, 1989, p. 423)


1 22<br />

Foi no século XIX que se inaugurou, junto à ascensão burguesa, uma nova<br />

percepção temporal, acelerada e responsável por minar a memória espontânea e coletiva.<br />

Tal ritmo tornaria necessária a construção do que Nora chama <strong>de</strong> “lugares <strong>de</strong> memória”:<br />

lugares simbólicos passíveis <strong>de</strong> alocar objetos <strong>de</strong> inscrição da memória nacional - como<br />

festas, monumentos, hinos, capazes <strong>de</strong> fixar a idéia <strong>de</strong> nação.<br />

Conceber a literatura como um lugar <strong>de</strong> memória, isto é, como potência criadora <strong>de</strong><br />

imagens capazes <strong>de</strong> modular <strong>de</strong>terminados aspectos da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> coletiva, não significa<br />

reduzi-la à condição <strong>de</strong> mero documento histórico portador <strong>de</strong>sta memória, tampouco a<strong>de</strong>rir<br />

à criação <strong>de</strong> um microcosmos ficcional a leitura mecanicista <strong>de</strong> recortes da realida<strong>de</strong>.<br />

Este posicionamento clarifica-se na percepção da memória e da História como<br />

instâncias separadas:<br />

Memória, história: longe <strong>de</strong> serem sinônimos, tomamos<br />

consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é vida,<br />

sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está<br />

em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e<br />

do esquecimento, inconsciente <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>formações<br />

sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações,<br />

susceptível <strong>de</strong> longas latências e <strong>de</strong> repentinas revitalizações.<br />

A história é a reconstrução sempre problemática e<br />

incompleta do que não existe mais. A memória é um<br />

fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a<br />

história uma representação do passado (NORA, 1993, p. 10)<br />

Separação reiterada pelo olhar <strong>de</strong> Halbwachs, para quem também a memória<br />

coletiva opor-se-ia ao discurso histórico, oposição fundada no fim da tradição:<br />

geralmente a história começa somente no ponto on<strong>de</strong> acaba a<br />

tradição, momento em que se apaga ou se <strong>de</strong>compõe a<br />

memória social....a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever a história <strong>de</strong> um<br />

período, <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, e mesmo <strong>de</strong> uma pessoa <strong>de</strong>sperta<br />

somente quando eles já estão muito distantes no passado,<br />

para que se tivesse a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar por muito


1 23<br />

tempo em torno <strong>de</strong> muitas testemunhas que <strong>de</strong>la conservem<br />

alguma lembrança. (HALBWACHS, s.d., p.80 e p. 81)<br />

Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>rivar que: “tal como o passado não é a história, mas seu objeto, também<br />

a memória não é a história, mas um dos seus objetos e simultaneamente um nível elementar<br />

<strong>de</strong> elaboração histórica” (LE GOFF, 1996). A memória, portanto, não se liga<br />

necessariamente à História, embora (também) seja por esta manipulada.<br />

Outro ponto <strong>de</strong> intersecção acerca do discurso sobre a memória produzido por Le<br />

Goff, Nora e Halbwachs, é a eleição da memória como elemento essencial “do que se<br />

costuma chamar i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, individual ou coletiva, cuja busca é uma das ativida<strong>de</strong>s<br />

fundamentais dos indivíduos, na febre e na angústia” (LE GOFF, 1997, p. 46).<br />

O discurso literário é capaz <strong>de</strong> radicalizar o verbo inventar, oriundo do latim in-<br />

venire: criar e inventariar. Com isto queremos afirmar o texto literário em sua dupla<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inventar e inventariar a memória, catalogando-a (o que o aproximaria do<br />

discurso historiográfico) e criando-a (o que a afastaria <strong>de</strong>ste mesmo discurso, em sua<br />

“vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>”, como nos lembra Foucault em A or<strong>de</strong>m do discurso).<br />

Po<strong>de</strong>mos, portanto, indicar a memória como matéria <strong>de</strong> construção e <strong>de</strong>formação <strong>de</strong><br />

duas instâncias: a histórica e a literária. E assim pensar, objeto fundamental que é na<br />

construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, o discurso literário como potência <strong>de</strong> reinvenção da ipseida<strong>de</strong> e<br />

da alterida<strong>de</strong>.<br />

Exemplo da força da escrita literária como elemento organizador <strong>de</strong> imagens da<br />

memória coletiva é a referência do historiador Evaldo Cabral <strong>de</strong> Melo ao romance Guerra<br />

dos mascates. Segundo Melo, antes <strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> análise sistêmica, o episódio histórico<br />

já fora utilizado como marco romanesco em obras <strong>de</strong> ficção <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar e <strong>de</strong><br />

Franklin Távora.


1 24<br />

O movimento <strong>de</strong> migração <strong>de</strong> uma memória reconhecida como coletiva e ligada à<br />

espontaneida<strong>de</strong> – chamada por Nora <strong>de</strong> memória <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, até a percepção emergente <strong>de</strong><br />

uma memória fabricada em torno da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> subjetiva tem as suas sementes na Europa,<br />

em fins do setecentos.<br />

Esta nova percepção encontra e abre caminho nos discursos posteriormente<br />

elaborados pelas Ciências Humanas – nas teses freudianas sobre a personalida<strong>de</strong> psíquica,<br />

na concepção <strong>de</strong> durée proposta por Henri Bérgson e na literatura <strong>de</strong> Marcel Proust.<br />

Mutadis mutandis, em todos estes discursos po<strong>de</strong>ríamos perceber o processo da<br />

memória como a tentativa <strong>de</strong> recompor imagens passadas: tentativa impossibilitada <strong>de</strong><br />

resgatar o traço primeiro, a origem, <strong>de</strong> preencher o vazio. O seu processo <strong>de</strong> recomposição<br />

articular-se-ia ao <strong>de</strong>svanecimento das imagens, instaurando, <strong>de</strong> forma dialética, a perda<br />

junto ao trabalho <strong>de</strong> construção.<br />

Para Freud, o processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> memória seria percebido fora da<br />

linearida<strong>de</strong>; ele a concebeu como produção que não se reduz à busca das imagens vividas,<br />

mas elaborada também como criação subjetiva. Em seu artigo “Construções em análise”,<br />

ele traçou a analogia entre o processo <strong>de</strong> análise e a imagem da memória como uma<br />

escavação arqueológica. Percebida <strong>de</strong>sta forma, a memória seria construída a partir <strong>de</strong><br />

fragmentos; como o arqueólogo que, frente aos vestígios e ruínas <strong>de</strong> uma civilização, é<br />

capaz <strong>de</strong> criar (e não simplesmente recriar) a imagem do todo perdido, o psicanalista<br />

mediaria o esforço do paciente em reconstruir as imagens da memória, em um exercício <strong>de</strong><br />

enfrentamento <strong>de</strong> lapsos e silêncios jamais resgatáveis. Na inevitabilida<strong>de</strong> da ausência,<br />

funda-se a manipulação <strong>de</strong> textos criados, capazes <strong>de</strong> alinhavar as lacunas <strong>de</strong>ste processo.<br />

Henri Bergson construiu o conceito <strong>de</strong> durée (duração), percebendo-o como a<br />

retomada incessante do fluxo contínuo temporal, como “continuida<strong>de</strong> realmente vivida,


1 25<br />

mas artificialmente <strong>de</strong>composta para a maior comodida<strong>de</strong> do conhecimento usual”<br />

(BERGSON, 1999, 217). A idéia <strong>de</strong> duração advém da percepção <strong>de</strong> um tempo indivisível,<br />

simbolizado pela imagem <strong>de</strong> uma lâmina atravessada por uma chama: a sua separação em<br />

espaços temporais seria uma forma artificial <strong>de</strong> mensurá-lo e permitir ao homem conhecer<br />

o seu fluxo constante, conhecimento permitido por esta espacialização.<br />

Bergson vale-se da leitura freudiana sobre o inconsciente para afirmar, como leitura<br />

interna da durée, a intuição como campo privilegiado da produção imagética, que com a<br />

força <strong>de</strong> sua polissemia instaura o resgate do tempo pela memória:<br />

Toda imagem é interior a certas imagens e exterior a outras;<br />

mas do conjunto das imagens não é possível dizer que ele nos<br />

seja interior ou que nos seja exterior, já que a interiorida<strong>de</strong> e<br />

a exteriorida<strong>de</strong> não são mais que relações entre imagens<br />

(BERGSON, 1999, p. 21).<br />

O título do livro – Matéria e memória, já revela a preocupação <strong>de</strong> Bergson em<br />

instaurar a diferença entre a percepção e a lembrança. O passado co nservar-se-ia inteiro,<br />

subsistindo na inconsciência. A consciência seria a responsável por trazer à tona a<br />

lembrança existente como latência, a memória presente no inconsciente.<br />

Em torno <strong>de</strong>sta premissa, ele percebe o que chamamos <strong>de</strong> memória como fruto <strong>de</strong><br />

um processo <strong>de</strong> relações entre a lembrança pura, a lembrança imagem e a percepção:<br />

Distinguimos três termos, a lembrança pura, a lembrança –<br />

imagem e a percepção, dos quais nenhum se produz, na<br />

realida<strong>de</strong>, isoladamente. A percepção não é jamais um<br />

simples contato do espírito com o objeto presente; está<br />

inteiramente impregnada das lembranças-imagens que a<br />

completam, interpretando-a. A lembrança- imagem, por sua<br />

vez, participa da “lembrança pura” que ela começa a<br />

materializar e da percepção na qual ten<strong>de</strong> a se encarnar:<br />

consi<strong>de</strong>rada <strong>de</strong>sse último ponto <strong>de</strong> vista, ela po<strong>de</strong>ria ser<br />

<strong>de</strong>finida como uma percepção nascente. Enfim, a lembrança<br />

pura, certamente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> direito, não se manifesta<br />

normalmente a não ser na imagem colorida e viva que a<br />

revela (BERGSON, 1999, p. 155-6)


1 26<br />

Por isto, seria impossível <strong>de</strong>marcar a origem e o término <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>stes<br />

processos. Assim, Bergson rompe com a percepção da memória como meramente uma<br />

categoria <strong>de</strong> armazenamento e indica que<br />

o papel do corpo não é armazenar as lembranças, mas<br />

simplesmente escolher, para trazê-la à consciência distinta<br />

graças à eficácia real que lhe confere, a lembrança útil,<br />

aquela que completará e esclarecerá a situação presente em<br />

vista da ação final. É verda<strong>de</strong> que esta segunda seleção é bem<br />

menos rigorosa que a primeira, porque nossa experiência<br />

passada é uma experiência individual e não mais comum,<br />

porque temos sempre muitas lembranças diferentes, capazes<br />

<strong>de</strong> se ajustarem igualmente a uma mesma situação atual, e<br />

também porque a natureza não po<strong>de</strong> ter aqui, como no caso<br />

da percepção, uma regra inflexível para <strong>de</strong>limitar nossas<br />

representações. Uma certa margem é portanto<br />

necessariamente <strong>de</strong>ixada <strong>de</strong>sta vez à fantasia; e, se os<br />

animais não se aproveitam muito <strong>de</strong>la, cativos que são da<br />

necessida<strong>de</strong> material, parece que o espírito humano, ao<br />

contrário, lança -se a todo instante com a totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua<br />

memória <strong>de</strong> encontro à porta que o corpo lhe irá entreabrir:<br />

daí os jogos da fantasia e o trabalho da imaginação –<br />

liberda<strong>de</strong>s que o espírito toma com a natureza. (BERGSON;<br />

1999, 210).<br />

O tempo espacializado, o tempo da história, é confrontado na proposta bergsoniana<br />

ao tempo percebido como durée, como tempo da experiência interna, por ele consi<strong>de</strong>rado o<br />

da “verda<strong>de</strong>ira” memória, a perceber a temporalida<strong>de</strong> como um novelo no qual se enredam<br />

o passado e o futuro, alcançado pela intuição pura.<br />

A noção bergsoniana <strong>de</strong> imagem é central para a compreensão do cruzamento entre<br />

a memória e a percepção, realçando assim a ligação entre memória e espírito. Esta noção<br />

influenciou sobremaneira o discurso literário, principalmente o proustiano que, <strong>de</strong> uma<br />

forma inédita, propôs a articulação da tría<strong>de</strong> mito- história- romance, gerando uma nova<br />

concepção sobre as relações entre memória e forma romanesca.


1 27<br />

Na alusão proustiana à memória involuntária como gatilho <strong>de</strong> revelação da<br />

temporalida<strong>de</strong> perdida, o conceito <strong>de</strong> duração pura é questionado. Na escritura <strong>de</strong> Proust, a<br />

percepção do instante é relativizado: nem tudo o que acontece ocorre ao sujeito; a<br />

apreensão do real <strong>de</strong>corre da experiência imaginada, como reflete o narrador, ao notar,<br />

entretido em sua leitura, que não ouvira o sino da igreja tocar:<br />

nem tudo o que acontece me ocorre: o sino tocando em Saint<br />

Hilaire: Muitas vezes até essa hora prematura soava duas<br />

batidas a mais que a última ; havia, portanto, uma que eu não<br />

ouvira, algo que ocorrera não acontecera para mim; o<br />

interesse na leitura, mágico feito um sono profundo, iludira<br />

meus ouvidos alucinados e apagara o sino <strong>de</strong> ouro sobre a<br />

superfície azulada do silêncio. (PROUST, 1992, p. 91).<br />

Proust percebeu o instante como meio <strong>de</strong> atualização da memória e como porta <strong>de</strong><br />

acesso a um tempo contínuo, que, entretanto, não será resgatado por inteiro, mas<br />

reconstruído em meio à percepção da memória como instância <strong>de</strong>scontínua e múltipla.<br />

Assim, a narrativa <strong>de</strong> Em busca do tempo perdido representaria através da supressão<br />

da memória voluntária a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resgatar, via memória involuntária, a fusão das<br />

imagens pretéritas a partir do presente:<br />

Acho bem razoável a crença céltica <strong>de</strong> que as almas das<br />

pessoas que per<strong>de</strong>mos se mantêm cativas em algum ser<br />

inferior, um animal, um vegetal, uma coisa inanimada, e <strong>de</strong><br />

fato perdidas para nós até o dia, que para muitos não chega<br />

jamais, quando ocorre passarmos perto da árvore, ou<br />

entrarmos na posse do objeto que é sua prisão. Então elas<br />

palpitam, nos chamam, e tão logo as tenhamos reconhecido, o<br />

encanto se quebra. Libertas por nós, elas venceram a morte e<br />

voltam a viver conosco.<br />

O mesmo se dá com o nosso passado. É trabalho baldado<br />

procurar evocá-lo, todos os esforços <strong>de</strong> nossa inteligência<br />

serão inúteis. Está escondido, fora <strong>de</strong> seu domínio e <strong>de</strong> seu<br />

alcance, em algum objeto material (na sensação que esse<br />

objeto mat erial nos daria), que estamos longe <strong>de</strong> suspeitar.<br />

Tal objeto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> apenas do acaso que o reencontremos


1 28<br />

antes <strong>de</strong> morrer, ou que não o encontremos jamais.<br />

(PROUST, 1992, p. 55).<br />

Benjamin propõe uma instigante leitura em “A imagem <strong>de</strong> Proust” (1997), ao<br />

indicar o manto tecido por Penélope como imagem mo<strong>de</strong>lar da obra proustiana,<br />

percebendo-a na tecedura entre a lembrança e o esquecimento, apontado como positivo,<br />

como elemento criador.<br />

Ao aludir à possibilida<strong>de</strong> da experiência humana ser construída pela memória<br />

atemporal, percebida <strong>de</strong> forma caleidoscópica, Proust eleva a arte à condição <strong>de</strong> espaço<br />

privilegiado do cruza mento tempo-espacial, percebendo-a como único núcleo possível <strong>de</strong><br />

representação da síntese operada entre instante e duração.<br />

Os discursos produzidos no oitocentos sobre o caráter criador da memória, situando-<br />

a assim fora da compreensão da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um resgate tranqüilo, reaparecem nos<br />

discursos da historiografia e da filosofia do novecentos. A partir <strong>de</strong>ste esteio, a memória é<br />

percebida como peça fundamental na construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e impensável fora da<br />

relação entre o individual e o coletivo. Do mesmo modo, é reconhecido o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>linear a ipseida<strong>de</strong> a um grupo <strong>de</strong> indivíduos que compartilhem <strong>de</strong>terminadas crenças e<br />

aparatos simbólicos, fazendo com que se reconheçam como membros <strong>de</strong> um grupo.<br />

Jacques Le Goff apresenta a memória em sua condição dúbia: fruto do testemunho e<br />

da ficção. A memória conjugaria em um jogo áporo a lembrança e o esquecimento, que<br />

necessariamente a compõem. Le Goff a indica como elemento crucial, como cruzamento <strong>de</strong><br />

temporalida<strong>de</strong>s e olhares; e, ao percebê-la assim, sinaliza para a sua multiplicida<strong>de</strong>.<br />

Deveríamos, então, falar em memórias, consi<strong>de</strong>rando a condição <strong>de</strong> teia do discurso<br />

memorialístico, a perpassar as relações entre os modos possíveis <strong>de</strong> leitura e expressão <strong>de</strong>


1 29<br />

suas dimensões coletiva e individual. A memória, como fruto da confrontação, <strong>de</strong>ve ser lida<br />

como geradora da pluralida<strong>de</strong> do olhar.<br />

Desta forma, po<strong>de</strong>mos apontar para a relação distinta, mas jamais exclu<strong>de</strong>nte entre<br />

as memórias coletiva e subjetiva; a memória seria sempre:<br />

social mesmo quando relativa a um único indivíduo e nunca<br />

prescindindo dos indivíduos mesmo quando coletiva, a<br />

memória faz das diferentes linguagens – nunca<br />

exclusivamente individuais - matéria-prima <strong>de</strong> suas<br />

construções (NEVES, 1998, 215).<br />

Isto posto, seria legítima a referência ao papel potente do discurso romanesco na<br />

produção <strong>de</strong> imagens coletivas, já que, em um circuito <strong>de</strong> incessante tensão, a recepção<br />

através do romance <strong>de</strong> imagens sobre um passado comum gerariam imagens introjetadas<br />

subjetivamente e por sua vez expressas e compartilhadas em um grupo.<br />

A imagem da memória como elo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação possibilita, por outro lado, o<br />

retorno à narrativa mítica, já que a percepção da memória como construção erigida a partir<br />

do passado e elaborada sempre pelo presente a torna um elo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, a partir do<br />

qual o olhar em relação ao futuro po<strong>de</strong> ser orientado:<br />

Ponto <strong>de</strong> interseção entre passado, presente e futuro, é na<br />

memória portanto que se entrelaçam as distintas<br />

temporalida<strong>de</strong>s que, na história <strong>de</strong> cada homem como na<br />

história das coletivida<strong>de</strong>s, permitem expressar a tensão<br />

dialética entre as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e os projetos ( NEVES, 1998,<br />

p.216).<br />

As relações entre memória individual e memória coletiva são o objeto <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong><br />

Maurice Halbwachs, que se interessou pelo modo como se organizavam os quadros da<br />

memória coletiva. Dentro <strong>de</strong>sta perspectiva, Halbwachs sublinhou a profunda ligação entre


1 30<br />

a memória subjetiva e a memória coletiva e <strong>de</strong>sta com o conceito <strong>de</strong> tradição. Muitas vezes<br />

as lembranças, inclusive as subjetivas<br />

que parecem não pertencer a ninguém senão a nós, po<strong>de</strong>m<br />

bem se encontrar em meios sociais <strong>de</strong>finidos e ali se<br />

conservar; e que os membros <strong>de</strong>sses grupos (<strong>de</strong> que não<br />

cessamos <strong>de</strong> fazer parte) saberiam ali <strong>de</strong>scobri-los e nos<br />

mostrá-los, se os interrogássemos como seria necessário. (...)<br />

Cada memória individual é um ponto <strong>de</strong> visa sobre a<br />

memória coletiva (...) este ponto <strong>de</strong> vista muda conforme o<br />

lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo<br />

as relações que mantenho com outros meios (HALBWACHS,<br />

s.d., p. 50 e p. 51)<br />

Para Halbwachs, a partilha das imagens da memória só po<strong>de</strong>ria ocorrer em torno da<br />

aproximação provocada pela linguagem. Seria por conta <strong>de</strong>sta aproximação que po<strong>de</strong>riam<br />

organizar-se na memória os elementos oriundos do sonho, da lembrança e da vigília. Ao<br />

propor a linguagem como elo entre a produção <strong>de</strong> imagens circulantes nas duas dimensões<br />

da memória, Halbwachs apontou a impossibilida<strong>de</strong> da memória individual constituir-se<br />

<strong>de</strong>ntro do solipsismo.<br />

A idéia bergsoniana <strong>de</strong> um passado inteiro, esperando para ser resgatado pela<br />

consciência, é posta em xeque pela crença na quase impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> preservação<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e completa <strong>de</strong>ste passado mesmo <strong>de</strong> modo inconsciente. Halbwachs<br />

sublinhou o caráter <strong>de</strong> construção da memória, elaborada pelas representações do presente.<br />

A imagem do passado estaria necessariamente alterada pela visão <strong>de</strong> mundo e valores<br />

contemporâneos ao sujeito, ace<strong>de</strong>ndo à sua diferença em relação ao passado:<br />

a lembrança é em larga medida uma reconstrução do<br />

passado com a ajuda <strong>de</strong> dados emprestados do presente, e<br />

além disso, preparada por outras reconstruções feitas em<br />

épocas anteriores e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> a imagem <strong>de</strong> outrora manifestouse<br />

já bem alterada. É possível encontrar um gran<strong>de</strong> número<br />

<strong>de</strong>ssas correntes antigas que haviam <strong>de</strong>saparecido somente<br />

na aparência. (...) a lembrança é uma imagem engajada em


1 31<br />

outras imagens, uma imagem genérica que reporta ao<br />

passado (HALBWACHS, s.d., p. 75).<br />

Benjamin, em “Sobre alguns temas em Bau<strong>de</strong>laire”, também propôs uma instigante<br />

releitura sobre a postura bergsoniana, que esvazia a <strong>de</strong>terminação histórica da experiência<br />

em torno da qual o filósofo francês constrói os seus estudos acerca da memória. Proust<br />

confrontaria, segundo Benjamin, a percepção bergsoniana na práxis <strong>de</strong> sua escritura, na<br />

mutação da memória pura em involuntária, sujeitando esta “à tutela do intelecto”<br />

(BENJAMIN, 1997, p. 106).<br />

Na escritura proustiana, a tentativa voluntária <strong>de</strong> acessar o passado é <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

princípio con<strong>de</strong>nada ao fracasso, já que este não po<strong>de</strong>ria ser chamado à tona senão pela via<br />

da memória involuntária, experiênc ia <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do puro acaso. Benjamin discorda da<br />

visão proustiana neste ponto: “As inquietações <strong>de</strong> nossa vida interior não têm por natureza,<br />

este caráter irremediavelmente privado. Elas só as adquirem <strong>de</strong>pois que se reduziram todas<br />

as chances dos fatos exteriores se integrarem à nossa experiência.” (Benjamin, 1997, p.<br />

106).<br />

Em um olhar que transcen<strong>de</strong> esta perspectiva, Benjamin propõe o reconhecimento<br />

da experiência como matéria da tradição, seja em uma perspectiva individual ou coletiva;<br />

assim a experiência seria formada “menos com dados isolados e rigorosamente fixados na<br />

memória, do que com dados acumulados, e com freqüência inconscientes, que afluem à<br />

memória” (BENJAMIN, 1997, p. 105).<br />

A partir <strong>de</strong>sta premissa, Benjamin tentará <strong>de</strong>monstrar que, quando existente, a<br />

experiência agrega na memória tanto o passado coletivo quanto o individual; e que a


1 32<br />

conceituação <strong>de</strong> Proust dialoga com um momento histórico no qual o indivíduo assiste ao<br />

esfacelamento da experiência coletiva, tornando-se cada vez mais isolado 3<br />

On<strong>de</strong> há experiência no estrito do termo, entram em<br />

conjunção na memória, certos conteúdos do passado<br />

individual com outros do passado coletivo. Os cultos com<br />

seus cerimoniais, suas festas (que, possivelmente, em parte<br />

alguma da obra <strong>de</strong> Proust foram mencionados), produziam<br />

reiteradamente a fusão <strong>de</strong>stes dois elementos da memória.<br />

Provocavam a rememoração em <strong>de</strong>terminados momentos e<br />

davam -lhe pretexto <strong>de</strong> se reproduzir por toda a vida. As<br />

recordações voluntárias e involuntárias per<strong>de</strong>m, assim, sua<br />

exclusivida<strong>de</strong> recíproca (BENJAMIN, 1997, p. 107).<br />

Em torno da análise acima, Benjamin distinguirá duas formas <strong>de</strong> experiência: a<br />

experiência (erfahrung), contínua, inconsciente e involuntária, e a vivência (erlebnis)-<br />

individual, imediata, consciente e voluntária. A exper iência é possibilitada pela vivência<br />

comunitária, prolongada; a vivência não teria este <strong>de</strong>sdobramento, mas apenas a<br />

assimilação imediata.<br />

O século XIX po<strong>de</strong> ser percebido como o limiar da perda da erfahrung. A remissão<br />

oitocentista a um passado nostálgico foi menos um refúgio do que uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar a<br />

angústia <strong>de</strong>sta perda e a sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento.<br />

Como vimos, a imagem do poeta como adivinho do passado e profeta do futuro está<br />

presente na concepção clássica <strong>de</strong> memória, mergulhada no que passou, no que é, e no que<br />

que virá a ser. José <strong>de</strong> Alencar dialoga com esta percepção em seus estudos críticos, como<br />

por exemplo na Carta sobre “A Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”, ao apontar o poeta como<br />

vate, como aquele que é “ao mesmo tempo historiador do passado e profeta do futuro ”.<br />

(ALENCAR, 1963, p. 891).<br />

3 De modo igual, evi<strong>de</strong>ntemente, Benjamin percebe também em Bau<strong>de</strong>laire a impossibilida<strong>de</strong> da experiência<br />

coletiva na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.


1 33<br />

A percepção do poeta como vate, que per<strong>de</strong>u a sua força após o classicismo, foi<br />

retomada e reatualizada pelo Romantismo. A concepção da imagem do poeta como gênio<br />

dialoga com esta imagem e refere à missão do artista como um sacerdócio, revestido <strong>de</strong><br />

uma aura <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong> (ainda que esta aura comece já então a corromper-se frente ao jogo<br />

do mercado), tecida nas ruínas da experiência religiosa.<br />

Da mesma forma, as profundas transformações em relação às concepções estéticas<br />

mo<strong>de</strong>rnas, instauradas pelos românticos, conferem ao poeta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar<br />

ficcionalmente modulações em relação à construção da memória, inclusive da memória<br />

coletiva, em meio à fixação dos Estados-nação. 4 Como índices <strong>de</strong>sta construção aparecem<br />

principalmente os signos da paisagem, do labirinto, da caverna e do mar recuperando em<br />

sua polissemia várias possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura da memória coletiva e individual.<br />

A sensibilida<strong>de</strong> romântica substitui o conceito mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> imitatio pela livre<br />

expressão da subjetivida<strong>de</strong> 5 ; há a concepção <strong>de</strong> que a vida não mais se encaixa em um<br />

mo<strong>de</strong>lo universal, único e, logo, a verossimilhança passa a ligar-se aos modos plurais <strong>de</strong><br />

vivência e experimentação. Isto é, a própria vida passa a ser a matéria por excelência do<br />

intelectual romântico, tanto mais que a veracida<strong>de</strong> da obra coadunava-se ao potencial <strong>de</strong><br />

expressão da vivência, <strong>de</strong> forma autônoma a mo<strong>de</strong>los impostos e/ ou generalizados. Assim,<br />

a liberação romântica da imitatio abre espaço para a primazia da fantasia enquanto<br />

4 Destacamos aqui o conceito <strong>de</strong> Estado-Nação, coevo à emergência do movimento romântico, sublinhando a<br />

passagem dos governos monárquicos e centralistas para a hegemonia política da burguesia e a busca <strong>de</strong><br />

marcos que <strong>de</strong>lineassem – física e simbolicamente, a idéia <strong>de</strong> nação e a fomentação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pátria,<br />

como a língua nacional e a própria literatura. No Brasil, este processo dá-se <strong>de</strong> modo sui generis, visto que<br />

historicamente difere-se das <strong>de</strong>mais colônias latino-americanas, implementando o seu processo <strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>pendência a partir da monarquia centralizadora <strong>de</strong> Dom Pedro I.<br />

5 Schlegel, por exemplo, em Conversa sobre a poesia (e outros fragmentos) apontava a falência do mo<strong>de</strong>lo<br />

da imitatio mo<strong>de</strong>rna, ao mesmo tempo em que propunha a revisitação aos paradigmas do classicismo.<br />

(SCHLEGEL, 1994).


1 34<br />

elemento regulador dos recortes filtrados do mundo empírico, regido, na ficção romântica,<br />

pelos limites da verossimilhança.<br />

Em 1817, Coleridge propõe a distinção entre a imaginação e a fantasia. Sua<br />

percepção acerca da primeira po<strong>de</strong>-se ligar à própria conceituação que tentamos traçar<br />

sobre a memória, enquanto instância dinâmica, em perpétuo movimento e que se perfaz no<br />

choque contínuo entre a construção e a ruína, a lacuna e o esquecimento:<br />

A imaginação dissolve. Dissemina, dissipa <strong>de</strong> modo a recriar;<br />

ou on<strong>de</strong> este processo é impossível ainda, em todos os<br />

eventos, luta por i<strong>de</strong>alizar e unificar. É essencialmente vital,<br />

mesmo se todos os objetos (como objetos) sejam<br />

essencialmente fixos e mortos. (COLERIDGE, APUD LIMA,<br />

1984, p. 94).<br />

Se a imaginação <strong>de</strong>sestabiliza e metamorfoseia em seu jogo dialético, em<br />

contraposição, a fantasia revelar-se-ia em sua fixi<strong>de</strong>z, pois não disporia “<strong>de</strong> outras fichas<br />

com que jogar senão coisas fixas e <strong>de</strong>finidas”. (I<strong>de</strong>m, 1984, p. 94).<br />

Apesar <strong>de</strong>, como afirmamos acima, relacionarmos a memória à concepção <strong>de</strong><br />

imaginação tecida por Coleridge, é a fantasia que este liga à primeira, afirmando ser a<br />

última um outro “modo da memória, emancipada da or<strong>de</strong>m do tempo e do espaço” (I<strong>de</strong>m,<br />

1984, p. 94). Coleridge mostra, ainda, como ambas, imaginação e fantasia, são elementos<br />

fundamentais para a apreensão da obra <strong>de</strong> arte: instâncias aliadas à ficção e que permitem a<br />

percepção da arte como muito mais do que a mera ponte entre o sujeito e a natureza, por<br />

trazer em si a metamorfose do olhar subjetivo, percebido como único.<br />

A partir <strong>de</strong> então, talvez se torne possível construir uma relação entre a percepção<br />

romântica que une a memória, a fantasia e a imaginação à observação, relação bastante<br />

presente na crítica romântica <strong>de</strong> Alencar e, <strong>de</strong> modo oblíquo, em algumas narrativas<br />

ficcionais, indicadoras da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não apenas observar, mas <strong>de</strong> ver com olhos <strong>de</strong>


1 35<br />

artista, tecendo novas modulações em torno da construção da memória via literatura.<br />

No jogo ficcional <strong>de</strong> Alencar, o narrador aparece como um compilador, um<br />

mediador <strong>de</strong> testemunhos a armar a ponte entre o público-leitor e a história que <strong>de</strong>tém e que<br />

<strong>de</strong>seja preservar no próprio ato <strong>de</strong> revelá-la na escritura. Tomemos como exemplo o<br />

prólogo “Ao autor”, <strong>de</strong> Lucíola : “Reuni as suas cartas e fiz um livro. Eis o <strong>de</strong>stino que lhe<br />

dou...” (ALENCAR, 1966, p.310) ou o prefácio à Diva, que segundo o narrador seria uma<br />

história vivida pelo protagonista - o jovem médico Amaral, com quem se correspondia:<br />

Um belo dia recebi pelo seguro uma carta <strong>de</strong> Amaral;<br />

envolvia um volumoso manuscrito e dizia: “Adivinho que<br />

estás muito queixoso <strong>de</strong> mim, e não tens razão. Há tempos me<br />

escreveste pedindo notícias <strong>de</strong> minha vida íntima; <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

então comecei a resposta, que só agora concluí: é a minha<br />

história numa carta”. O manuscrito é o que lhe envio agora,<br />

um retrato ao natural que a senhora dará, como ao outro, a<br />

graciosa moldura. (ALENCAR, 1966, p. 461-462 ).<br />

Também esta construção é revelada no prólogo a Senhora :<br />

A história é verda<strong>de</strong>ira; e a narração vem <strong>de</strong> pessoa que<br />

recebeu diretamente, em circunstâncias que ignoro, a<br />

confidência dos principais atores <strong>de</strong>ste drama curioso.<br />

O suposto autor não passa rigorosamente <strong>de</strong> editor. É certo<br />

que tomando a si o encargo <strong>de</strong> corrigir a forma e dar-lhe um<br />

lavor literário, <strong>de</strong> algum modo apropria-se não a obra, mas o<br />

livro.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 951).<br />

Relação que se anuncia no “Prólogo” <strong>de</strong> O Guarani, ao narrador revelar o processo<br />

<strong>de</strong> construção do romance, na verda<strong>de</strong> originado <strong>de</strong> um manuscrito em ruínas por ele<br />

recuperado; e ainda em Cinco minutos, na confissão ao narratário : “É uma história curiosa a<br />

que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história e não um romance”. (ALENCAR,<br />

1996, p 55). Assim, o narrador aparece como o responsável por uma história que <strong>de</strong>ve ser<br />

contada - para divertir, saciar a curiosida<strong>de</strong>, levar à reflexão e – romanticamente, ao


1 36<br />

aperfeiçoamento moral. Ficcionalmente, o narrador assume o papel <strong>de</strong> responsável por<br />

tornar memória a narrativa que lhe foi confiada, tecendo uma ligação entre oralida<strong>de</strong> e<br />

romance.<br />

A memória metaforizada na imagem da nu<strong>de</strong>z é recorrente em alguns textos críticos<br />

<strong>de</strong> Alencar. Este motivo inscreve uma percepção do passado como origem a ser resgatada,<br />

abafada por imagens distorcidas:<br />

Tempo virá em que surjam os gran<strong>de</strong>s escritores para<br />

imprimir em nossa poesia o cunho do gênio brasileiro, e<br />

arrancando os andrajos coloniais que andam por aí a vestir a<br />

bela estátua americana, a mostrem ao mundo em sua<br />

majestosa nu<strong>de</strong>z: naked majesty. (ALENCAR, 1966, p. 700).<br />

Este é um topos do romantismo 6 presente em textos <strong>de</strong> intelectuais diversos como<br />

Michelet e antes <strong>de</strong>le Fénélon, que já em 1714 afirmou: “A história tem uma “nudité si<br />

noble et si majesteuse”, (...) que não necessita <strong>de</strong> nenhum adorno poético.” (KOSELLECK<br />

APUD LIMA, 1984, p. 117-8).<br />

Instaura-se <strong>de</strong>starte o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> resgate <strong>de</strong> uma memória “<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>”, manipulada<br />

e silenciada pelo discurso colonial que a cobriu <strong>de</strong> trapos e instaurou um olhar a interditar o<br />

reconhecimento da beleza pátria: bela e majestosa porque perdida. Neste discurso, natureza<br />

e origem se mesclam em uma visão utópica, tão reconhecida na iminente falência, adiada<br />

para um tempo in<strong>de</strong>terminado: o tempo da re<strong>de</strong>nção, no qual será reconhecido “o gênio<br />

americano”.<br />

No reconhecimento da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> efetuar este resgate, Alencar transforma a<br />

percepção romântica que liga a nu<strong>de</strong>z à verda<strong>de</strong> ao reivindicar junto à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

6 No próximo capítulo aprofundaremos esta discussão; este topos foi reelaborado por Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> no<br />

texto “A escrava que não é Isaura” (ANDRADE, 1972, p. 201-300), no qual representa a poesia como a<br />

“escrava do Ararat”, na urgência <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>snuda, para assim sofrer um processo <strong>de</strong> recriação.


1 37<br />

<strong>de</strong>spir o passado a <strong>de</strong> adorná-lo, trabalhando a literatura através da memória e ligando-a -<br />

ao contrário da proposta <strong>de</strong> Coleridge, não à fantasia, mas à imaginação. Afirmamos isto ao<br />

reconhecer a sua escritura principalmente como busca, como caminho distante <strong>de</strong> um ponto<br />

<strong>de</strong> chegada localizado em um futuro que não se alça a não ser na espera.<br />

Longe <strong>de</strong> indicar um projeto literário positivo e cerrado, ao propor a leitura da<br />

memória brasileira pelo discurso ficcional, Alencar <strong>de</strong>sfaz-se <strong>de</strong> uma imagem luminosa do<br />

passado e o compreen<strong>de</strong> (no duplo sentido) em seus escuros, sua s lacunas. Seu<br />

posicionamento não libera o discurso literário para o preenchimento com promessas <strong>de</strong><br />

certezas, mas para a remo<strong>de</strong>lagem <strong>de</strong>ste passado, através <strong>de</strong> construções simbólicas que<br />

simultaneamente o <strong>de</strong>spem / vestem via ficção. Deste modo, diversas imagens e signos do<br />

passado são modulados em uma escritura vital e dinâmica.<br />

No “Prólogo” <strong>de</strong> O Guarani encontramos, como dito, a explicação pelo narrador do<br />

fictício processo <strong>de</strong> composição do livro, oriundo da compilação <strong>de</strong> um velho manuscrito,<br />

encontrado por acaso na casa que comprou; a voz narrativa tece um cadafalso para o leitor,<br />

ao fingir-se incapaz <strong>de</strong> escrever um romance, endossando a imagem do narrador como<br />

mediador. Em tal jogo (irônico, obviamente), o narrador anuncia essa incapacida<strong>de</strong> como<br />

fruto <strong>de</strong> sua dificulda<strong>de</strong> em não ser verda<strong>de</strong>iro; escrever um romance seria algo<br />

irrealizável, apesar <strong>de</strong> ter feito <strong>de</strong> sua vida um romance 7 . Percebamos que a sua vida não é<br />

7 É interessante notar que em outro texto ficcional, A pata da gazela, José <strong>de</strong> Alencar tece também através da<br />

voz narrativa a idéia <strong>de</strong> fazer da própria vida arte, ainda que <strong>de</strong> forma irônica, já que é uma das opiniões<br />

equivocadas do protagonista, Horácio: “Se o Almeida poupasse <strong>de</strong>sse tempo tão esperdiçado alguns<br />

momentos no dia para <strong>de</strong>dicá-los a algum fim sério e útil, à ciência, à literatura, à arte, que belos triunfos não<br />

obteria sua rica imaginação servida por um espírito cintilante? Mas o nosso leão tinha a esse respeito idéias<br />

excêntricas. [...] -Literatura e arte são plágios; quem po<strong>de</strong> fazer poesia e romance ao vivo, não se dá ao<br />

trabalho <strong>de</strong> reproduzi-los; nem contempla estátuas, quem lhes admira os mo<strong>de</strong>los animados e palpitantes ”<br />

(ALENCAR, 1995, p. 18). A propósito, Lukács nos lembra que “A vida faz-se criação literária, mas com isso<br />

o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor <strong>de</strong> sua própria vida e o observador <strong>de</strong>ssa vida como uma obra<br />

<strong>de</strong> arte criada” (LUKÁCS, 2000, p. 124).


1 38<br />

simplesmente um romance, mas que ele a torna um. Antes ainda, anuncia o porque <strong>de</strong>sta<br />

impossibilida<strong>de</strong>:<br />

...quando se conta aquilo que nos impressionou<br />

profundamente, o coração é quem fala; quando se exprime<br />

aquilo que os outros sentiram ou po<strong>de</strong>m sentir, fala a<br />

memória, a imaginação.<br />

Esta po<strong>de</strong> errar, po<strong>de</strong> exagerar-se; o coração é sempre<br />

verda<strong>de</strong>iro, não diz senão o que sentiu; e o sentimento,<br />

qualquer que ele seja, tem a sua beleza. (ALENCAR, 1995,<br />

p. 10).<br />

Ou seja, a voz narrativa tece uma correlação entre verda<strong>de</strong>, memória e sentimento<br />

(“coração”, na metonímia alencarina). Assim, relaciona a vivência empírica às emoções<br />

profundas; a memória, por sua vez, relacionar-se-ia à imaginação, ao risco do erro e do<br />

exagero. A memória é o excesso (ou a falta), a expressão do possível, do que “os outros<br />

sentiram ou po<strong>de</strong>m sentir ” (ALENCAR, 1995, p. 10).<br />

Assim, Alencar seduz o leitor convidando-o a ler uma história (com h minúsculo)<br />

que ilusoriamente não seria forjada nem pela verda<strong>de</strong> (já que não teria sido vivida, mas<br />

apenas compilada), tampouco pela memória e conseqüentemente pela imaginação, já que,<br />

segundo o álibi ficcional, não teria sido inventada. Pelo diálogo ficcional entre o narrador e<br />

o narratário é gerada a ilusão <strong>de</strong> um entrelugar para este discurso a articular a razão à<br />

subjetivida<strong>de</strong> e à imaginação.<br />

Segundo Lukács, o romance surge em um momento em que o curso histórico aponta<br />

para uma profunda melancolia: o tempo age, revelando a falência da idéia <strong>de</strong> perenid a<strong>de</strong>,<br />

uma vez que a “forma romanesca é a imagem especular <strong>de</strong> um mundo que saiu dos trilhos”<br />

(LUKÁCS, 2000, p. 14). Um mundo no qual o divórcio entre idéia e realida<strong>de</strong> é patente e<br />

expressa na própria percepção do tempo como a durée bergsoniana na constituição


1 39<br />

romanesca. Assim, o romance é capaz do que Lukács chama <strong>de</strong> recordação criadora, que ao<br />

invés <strong>de</strong> cristalizar e fossilizar o objeto, o capta e o subverte.<br />

Isto torna possível a percepção da forma romanesca como expressão capaz <strong>de</strong> lidar<br />

com a mudança na me ntalida<strong>de</strong> oitocentista em relação ao significado da memória,<br />

compreendida como uma forma <strong>de</strong> subversão continuamente reelaborada em seu atrito com<br />

a percepção do tempo enquanto duração.<br />

Cabe apontar, porém, que as relações entre tempo e memória nos romances <strong>de</strong> José<br />

<strong>de</strong> Alencar ainda não se coadunam à perspectiva da durée, embora já compartilhem <strong>de</strong> uma<br />

abordagem diferente acerca da questão temporal em sua relação com a memória. Em A pata<br />

da gazela, por exemplo, o jovem Leopoldo, absorto em suas reminiscências, abstrai-se em<br />

relação ao ambiente que o cerca; a lembrança é representada, sobretudo, como um<br />

mergulho tão profundo na subjetivida<strong>de</strong> que pressupõe o abandono do mundo exterior:<br />

(...) Leopoldo, sentado à janela <strong>de</strong> peitoril <strong>de</strong> sua casa,<br />

fumava um charuto com os olhos engolfados no azul diáfano<br />

do céu, on<strong>de</strong> cintilava a primeira estrela. A seus pés<br />

<strong>de</strong>sdobrava-se a baía plácida e serena como um lago, com a<br />

sua graciosa cintura <strong>de</strong> montanhas, caprichosamente<br />

recortadas.<br />

O espírito do moço não se embebia <strong>de</strong>certo na perspectiva<br />

<strong>de</strong>ssa encantadora natureza, sempre admirada e sempre<br />

nova. Ao contrário, abandonava-se todo às recordações <strong>de</strong><br />

seu encontro pela manhã e aos enlevos que lhe <strong>de</strong>ixava a<br />

contemplação da linda moça. Passava e repassava em sua<br />

memória, como em um cadinho, todas as circunstâncias<br />

mínimas <strong>de</strong>ste gran<strong>de</strong> e importante acontecimento...<br />

(ALENCAR, 1995, p. 22).<br />

Da mesma forma, neste texto, a memória não pressupõe a verda<strong>de</strong>, não se assume<br />

como a reconstrução fiel do que foi vivido, mas, ao lado da imaginação, reconstrói a<br />

experiência subjetiva, projetando-se mais como o <strong>de</strong>sejo e o sonho, como a leitura <strong>de</strong>ste<br />

outro trecho <strong>de</strong> A pata da gazela nos permite inferir:


1 40<br />

Houve uma ocasião em que o mancebo quis representar em<br />

sua lembrança a imagem da moça (...) Como era ela?(...) A<br />

nenhuma <strong>de</strong>stas interrogações satisfez a memória; porque<br />

não recebera a impressão particular <strong>de</strong> cada um dos traços<br />

da moça. Não obstante, a aparição encantadora ressurgia<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua alma; ele a revia tal como se <strong>de</strong>senhara a seus<br />

olhos algumas horas antes. Era a imagem diáfana <strong>de</strong> um<br />

sonho que tomara vultos graciosos <strong>de</strong> mulher.<br />

-(...) Não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>screvê-la, como um poeta...Mas que<br />

importa? Pois que eu a sinto em mim; pois que eu a possuo<br />

em meu coração. (ALENCAR, 1995, p. 22).<br />

E, ligada às sensações, a memória, segundo Alencar, citando a mesma obra, estaria<br />

sujeita a perda do controle, ao involuntário:<br />

A memória apresenta às vezes um fenômeno curioso;<br />

conserva por muito tempo oculta e sopitada uma impressão<br />

<strong>de</strong> que não temos a menor consciência. De repente, porém,<br />

uma circunstância qualquer evoca essa reminiscência<br />

apagada; e ela ressurge com vigor e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>. (ALENCAR,<br />

1995, p. 37).<br />

Na trama ficcional <strong>de</strong> Lucíola, a dimensão involuntária da memória é novamente<br />

representada, sendo percebida como uma “extravagância”, capaz <strong>de</strong> mergulhar o homem<br />

em sua estrutura labiríntica:<br />

Enquanto acompanhava com os olhos a cortesã <strong>de</strong>sprezível<br />

que se balançava lubricitante no seu novo carro, insultando<br />

com o luxo <strong>de</strong>smedido as senhoras honestas que passavam a<br />

pé, sabe <strong>de</strong> que me lembrei? Não foi da ceia em casa <strong>de</strong> Sá,<br />

nem do mês que acabava <strong>de</strong> passar; foi unicamente da suave<br />

aparição da Rua das Mangueiras no dia <strong>de</strong> minha chegada.<br />

São extravagâncias da memória. Quem conhece o fio<br />

misterioso que leva o pensamento através do labirinto do<br />

passado a uma lembrança remota? (ALENCAR, 1966, p.<br />

385).<br />

Ainda em Lucíola, Paulo, o narrador, mostra como a observação confun<strong>de</strong>; seriam a<br />

vivência e a experiência o que permitiriam a sobrevivência da memória, capaz <strong>de</strong> ser


1 41<br />

resgatada, sensualmente, pelas impressões:<br />

Se naquela noite me viesse a idéia <strong>de</strong> estudar como hoje faço<br />

à luz das minhas recordações o caráter <strong>de</strong> Lucia, <strong>de</strong>sanimara<br />

por certo à primeira tentativa. Felizmente era ator neste<br />

drama e guar<strong>de</strong>i, como urna <strong>de</strong> cr istal guardada por muito<br />

tempo a essência já evaporada, as impressões que então<br />

sentia. É com elas que recomponho este fragmento <strong>de</strong> minha<br />

vida.<br />

(ALENCAR, 1966, p.357).<br />

A viuvinha talvez seja o texto ficcional que tenha - ainda que em uma passagem, a<br />

percepção do tempo mais próxima da idéia <strong>de</strong> durée; enquanto procura a mulher por quem<br />

se apaixonara, o narrador confessa ao narratário (a prima): “continuava tristemente o meu<br />

caminho atrás <strong>de</strong>sta sombra impalpável que eu procurava havia quinze longos dias, isto é,<br />

um século para o pensamento <strong>de</strong> um amante” (ALENCAR, s.d, p. 57).<br />

Po<strong>de</strong>mos, entretanto, apenas indicar uma certa aproximação, visto que o narrador não<br />

passa pela experiência <strong>de</strong> perceber o tempo relativamente, mas procura uma analogia<br />

(hiperbólica) para a sua impaciência em encontrar a amada.<br />

De qualquer forma, seria possível apontar a presença, em alguns textos alencarinos, da<br />

referência à memória como construção em torno do embate, construído no diálogo com a<br />

imaginação, entre as lembranças voluntária e involuntária.<br />

Deste modo, po<strong>de</strong>mos articular a presença na escrita <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar <strong>de</strong> uma<br />

representação da memória análoga à produzida pelo historiador francês Jules Michelet, que<br />

também relacionou a memória à imaginação e à poesia, relação inferida no prefácio por ele<br />

preparado para uma tradução <strong>de</strong> Memoria et phantasia, do filósofo italiano Vico.<br />

fantasia:<br />

Neste prefácio, Michelet apresenta a memória como elemento construtor da


1 42<br />

Os latinos <strong>de</strong>signam a memória por memoria quando ela<br />

reúne a percepção dos sentidos, e por reminiscentia quando<br />

os restitui. Mas <strong>de</strong>signavam da mesma forma a faculda<strong>de</strong><br />

pela qual formamos imagens, a que os gregos chamavam<br />

phantasia, e nós imaginativa, e os latinos memorare (...)<br />

Os gregos contam também na sua mitologia que as Musas, as<br />

virtu<strong>de</strong>s da imaginação, são filhas da memória. (MICHELET<br />

APUD LE GOFF, 1997, p. 37).<br />

Ao tomarmos como base a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conceitos produzidos em torno da idéia<br />

<strong>de</strong> memória em tempos e espaços diferentes, po<strong>de</strong>mos apontar essas concepções, presentes<br />

nas narrativas <strong>de</strong> Michelet e Alencar, como parte da própria visão romântica sobre as<br />

relações entre memória e imaginação, pois o Romantismo reencontraria “<strong>de</strong> um modo mais<br />

literário que dogmático a sedução da memória”. (LE GOFF, 1997, p.463.).<br />

Não seria exagerado aferir na dicção poética <strong>de</strong> Alencar a presença <strong>de</strong> uma<br />

concepção <strong>de</strong> memória articulada à produzida pelo romantismo europeu. Isto significa<br />

pensar a memória como elemento que se faz presente através da imaginação. Assim, a<br />

memória opor-se-ia à noção <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, que por sua vez estaria coadunada ao discurso da<br />

História e aos documentos e / ou manuscritos, vinculada à percepção empírica e à emoção:<br />

o que é verda<strong>de</strong> é o que eu posso sentir e perceber; o que eu lembro é o que eu posso<br />

imaginar. 8<br />

Como suporte <strong>de</strong> memória, o discurso literário permite o recorte <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas<br />

visões a orientar formas <strong>de</strong> pensar o mundo. Neste processo, a literatura brasileira arvora-se<br />

em sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nutrir uma tradição cultural e dotar, nas palavras <strong>de</strong> Antonio<br />

Candido, a um “país <strong>de</strong> mestiços o álibi duma raça heróica, e a uma nação <strong>de</strong> história curta,<br />

a profundida<strong>de</strong> do tempo lendário”. (CANDIDO, 1993, p. 203).<br />

8 Como postulamos ao analisar o prólogo <strong>de</strong> O Guarani neste capítulo.


1 43<br />

Dentro <strong>de</strong>ste quadro, imagem, imaginação e memória dialogam em torno da<br />

escritura ficcional. A narrativa <strong>de</strong> Alencar propõe o artesanato da memória via ficção,<br />

tarefa em que se lança justamente em um momento no qual a memória espontânea<br />

apresenta-se <strong>de</strong> forma precária. Po<strong>de</strong>mos perceber este discurso como um lugar <strong>de</strong><br />

memória não só por ser construção artificial, mas por sua condição livre, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

referentes da realida<strong>de</strong>, como toda ficção:<br />

Diferentemente <strong>de</strong> todos os objetos da história, os<br />

lugares <strong>de</strong> memória não tem referentes na<br />

realida<strong>de</strong>...Não que não tenham conteúdo, presença<br />

física ou história, ao contrário. Mas o que os fazem<br />

lugares <strong>de</strong> memória é aquilo pelo que exatamente<br />

escapam da História...Os lugares <strong>de</strong> memória nascem<br />

e vivem do sentimento <strong>de</strong> que não há memória<br />

espontânea, que é preciso criar arquivos...Há locais<br />

<strong>de</strong> memória porque não há mais meios <strong>de</strong> memória.<br />

(NORA, 1993, pp.6 – 28)<br />

A literatura <strong>de</strong> Alencar faz-se lugar <strong>de</strong> memória ao apresentar personagens<br />

receptáculos <strong>de</strong> memória – como o índio, mas também o sertanejo e até mesmo, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

uma perspectiva mais subjetiva, a personagem urbana - e ao se construir também como tal,<br />

na medida em que seus textos simulam dialogar com um passado reatualizado no cotidiano,<br />

Ao se tornar público discurso da memória, o texto ganha a chance <strong>de</strong> ser divulgado:<br />

a literatura é uma via <strong>de</strong> espargimento <strong>de</strong> discursos, silenciados por uma memória oficial e<br />

passíveis <strong>de</strong> serem ficcionalmente reor<strong>de</strong>nados. Esta divulgação po<strong>de</strong> garantir a<br />

sobrevivência da palavra escrita ou, ao menos, a promessa <strong>de</strong> disseminação das imagens<br />

circulantes no texto, que po<strong>de</strong>rão atuar na geração e expansão <strong>de</strong> outras imagens, em outros<br />

textos.<br />

Nos textos <strong>de</strong> Alencar circularam imagens que se converteram em sinais instigantes<br />

para se pensar os labirintos do país. A alusão ao topos do manuscrito, por exemplo,


1 44<br />

instaurou o lúdico na representação da memória e jogou com a historicida<strong>de</strong> sem assumir o<br />

discurso histórico, especialmente porque em suas narrativas os manuscritos são os fios <strong>de</strong><br />

investigações que nos levam à ficção.<br />

À percepção mo<strong>de</strong>rna da memória como instância crucial, múltipla (temporal e<br />

espacialmente falando), duplamente individual e coletiva, articulada na tensão entre<br />

memória e esquecimento – o que lhe confere caráter <strong>de</strong> criação - e construída no choque do<br />

esfacelamento da experiência coletiva po<strong>de</strong>mos erguer nossa leitura da representação da<br />

memória no texto alencarino: problemática e problematizadora <strong>de</strong> um passado sobrevivente<br />

como ruína e refigurado em imagem.<br />

Gostaríamos, então, <strong>de</strong> investigar a relação entre imagem e ruína na complexa<br />

articulação entre romantismo, memória e imaginação, em torno <strong>de</strong> alguns textos <strong>de</strong> José <strong>de</strong><br />

Alencar em nosso próximo capítulo.


1 45<br />

CAPÍTULO 2: A POÉTICA DA RESTAURAÇÃO - IMAGEM E MEMÓRIA EM<br />

ALENCAR<br />

Ao relembrar o caminho percorrido na infância em dias <strong>de</strong> sol, pela rua dos<br />

Perchamps, a voz narrativa <strong>de</strong> Em busca do tempo perdido revela o seu <strong>de</strong>sconcerto frente à<br />

sua extinção: “em vão buscaríamos na Combray <strong>de</strong> hoje porque no lugar <strong>de</strong> seu antigo<br />

traçado se ergue a escola” (PROUST, 1992, p.157) .<br />

A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resconstituição dos quadros <strong>de</strong> sua infância resi<strong>de</strong> em percorrer<br />

os caminhos da memória, vias labirínticas a se constituirem em um jogo dialético entre o<br />

resgate e a recriação. A tessitura da teia da memória, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do aspecto involuntário<br />

para se erguer, será comparada pela voz narrativa ao trabalho artístico dos restauradores:<br />

Porém, meu <strong>de</strong>vaneio (semelhante a esses arquitetos que<br />

seguiram a escola <strong>de</strong> Viollet –Le- Duc, que, julgando<br />

encontrar sob um púlpito renascentista e um altar do século<br />

XVII os traços <strong>de</strong> um coro romano, repõem todo o prédio no<br />

estado que <strong>de</strong>via estar no século XII) não <strong>de</strong>ixa uma só pedra<br />

da nova construção <strong>de</strong> pé, e torna a abrir e “restitui” a rua<br />

dos Perchamps. Aliás, para essas reconstituições ela dispõe<br />

<strong>de</strong> dados mais precisos do que geralmente têm os<br />

restauradores: algumas imagens conservadas na minha<br />

memória, as últimas que talvez existam hoje, e votadas a<br />

<strong>de</strong>saparecer em breve, do que era Combray na minha<br />

infância; e como foi a própria cida<strong>de</strong> que as <strong>de</strong>lineou em mim<br />

antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer, têm toda a emoção – se é que se po<strong>de</strong><br />

comparar um obscuro retrato às efígies gloriosas cuja<br />

reprodução minha avó tanto gostava <strong>de</strong> me dar – das<br />

gravuras antigas da Ceia ou <strong>de</strong>sse quadro <strong>de</strong> Gentile Bellini<br />

nos quais se vêem, num estado que já não possuem hoje, a<br />

obra prima <strong>de</strong> Da Vinci e o pórtico <strong>de</strong> São Marcos.<br />

(PROUST, 1992, p.157).<br />

O <strong>de</strong>vaneio permite ao narrador reconstituir a rua dos Perchamps, e garante a sua<br />

sobrevivência simbólica. Esta reconstituição é comparada não gratuitamente ao processo <strong>de</strong>


1 46<br />

restauração arquitetônico romântico, li<strong>de</strong>rado pelo francês Eugène Emmanuel Viollet-Le-<br />

Duc, autor do verbete “Restauração”, do Dictionnaire Raisonné <strong>de</strong> l’Architeture Française<br />

du XI ao XVI siècle, publicado entre 1854 e 1868.<br />

Na história da arte, o conceito <strong>de</strong> restauração coaduna -se às relações entre passado e<br />

presente e à preservação da memória, pelo menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVIII. Este senso <strong>de</strong><br />

preservação da memória foi posto em xeque pela prática polêmica <strong>de</strong> Viollet-le-Duc: o<br />

arquiteto propunha gran<strong>de</strong>s intervenções nos monumentos e prédios, por vezes<br />

<strong>de</strong>scaracterizando o projeto original, já que procurava restaurá-los imaginando como este<br />

seria se os arquitetos da época possuíssem os conhecimentos do século XIX.<br />

A imaginação é elemento fundamental na prática <strong>de</strong> Viollet-Le-Duc. Proust, ao<br />

comparar as suas práticas <strong>de</strong> restauro ao movimento <strong>de</strong> construção da memória –não à toa<br />

chamado <strong>de</strong> restituição entre aspas – <strong>de</strong>staca a condição <strong>de</strong> criação <strong>de</strong>ste processo. Ao<br />

mesmo tempo, expõe a força e a tenuida<strong>de</strong> das imagens psíquicas: mais precisas do que os<br />

dados históricos, porém lábeis, <strong>de</strong>vem ser agarradas no instante do <strong>de</strong>vaneio, reveladas em<br />

todo o seu esplendor. 9<br />

Dentro <strong>de</strong>sta sensibilida<strong>de</strong>, partilhada por Proust e Viollet-Le-Duc, o retorno ao<br />

original é sempre um <strong>de</strong>svio. Restaurar é recriar, e não resgatar, pois o restauro não seria a<br />

conservação da matéria, mas do espírito da construção – inapreensível exceto pela<br />

imaginação. Restaurar, seja a arquitetura na proposta simplista <strong>de</strong> Viollet-Le-Duc, seja a<br />

memória no jogo complexo arquitetado por Proust, é reconstruir o sonho e não a realida<strong>de</strong>.<br />

Alencar já era morto em 1913, ano <strong>de</strong> lançamento do primeiro volume da obra<br />

prima <strong>de</strong> Proust e é muito provável que jamais tenha ouvido falar sobre a proposta do<br />

9 Verificar as discussões acerca das relações entre memória e imaginação no movimento romântico, no<br />

primeiro capítulo.


1 47<br />

arquiteto francês. Entretanto, po<strong>de</strong>mos perceber traços <strong>de</strong> intersecção entre esta nova<br />

conceituação <strong>de</strong> restauração e a proposta poética <strong>de</strong> Alencar.<br />

Em seus textos, a idéia <strong>de</strong> restauração não está ligada à noção <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong><br />

algo pré-estabelecido, mas da modulação <strong>de</strong> novos sentidos através da articulação dos<br />

mecanismos <strong>de</strong> memória e esquecimento. Em torno <strong>de</strong>sta proposta, Alencar constrói o que<br />

percebemos como uma poética da restauração. 10<br />

A poética da restauração instaura-se na obra <strong>de</strong> Alencar como metáfora para o<br />

trabalho do artista. Opõe-se à concepção clássica do trabalho do restauro como a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resgate do pretérito. Na poética alencariana, restaurar é ressignificar,<br />

reor<strong>de</strong>nar ruínas e fazer emergir novos sentidos acerca do nacional.<br />

A idéia <strong>de</strong> restauração em Alencar aproxima-se da percepção benjaminiana do conceito<br />

<strong>de</strong> origem (Ursprung), compreendido como dinâmica que se opõe à gênese (Entstehung). A<br />

origem não é o retorno que redime; é promessa, potência <strong>de</strong> revelação:<br />

a origem, apesar <strong>de</strong> ser uma categoria totalmente<br />

histórica, não tem nada que ver com a gênese. O<br />

termo origem não <strong>de</strong>signa o vir-a-ser daquilo que se<br />

origina, e sim algo que emerge do vir-a –ser e da<br />

extinção (BENJAMIN, 1984, p.67)<br />

Deste modo, percebemos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refletir acerca da idéia <strong>de</strong> restauração a<br />

partir do conceito <strong>de</strong> origem, que não postula o retorno a uma dimensão temporal<br />

imobilizada a se resgatar, constituíndo-se como remissão a um passado mediado pela<br />

lembrança: “A origem benjaminiana visa, portanto, mais que um projeto restaurativo<br />

ingênuo, ela é, sim, uma retomada do passado, mas ao mesmo tempo – e porque o passado<br />

10 Conceito <strong>de</strong>senvolvido em nossa dissertação <strong>de</strong> Mestrado, “O tempo e o palimpseto: mito, memória, ficção<br />

e história em José <strong>de</strong> Alencar”.


1 48<br />

enquanto passado só po<strong>de</strong> voltar numa não.i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cinsigo mesmo – abertura sibre o<br />

futuro, acabamento constitutivo”. (GAGNEBIN, 1994, p. 17)<br />

Prenhe <strong>de</strong> temporalida<strong>de</strong> e concebível em sua aliança com o presente, a origem é<br />

promessa, sobretudo, em seu inacabamento, a exigir para além da leitura do passado a<br />

mudança no presente.<br />

O conceito <strong>de</strong> origem nos permite perceber a poética alencarina como algo que se<br />

instaura em um campo <strong>de</strong> forças temporais que trazem em si o choque entre o resgate e a<br />

<strong>de</strong>struição, pois só a partir <strong>de</strong>sta dialética – entre o revelar e a ruína há a compreensão <strong>de</strong>ste<br />

conceito, uma vez que “não se <strong>de</strong>staca dos fatos, mas se relaciona com sua pré e pós –<br />

história” (BENJAMIN, 1984, p. 68).<br />

Em torno do que foi dito, o conceito benjaminiano <strong>de</strong> alegoria nos auxilia na<br />

compreensão da leitura alencarina frente às ruínas do imaginário, em sua potência <strong>de</strong> se<br />

darem como objeto significante àquele que pu<strong>de</strong>r lê-las como constelação, em uma reflexão<br />

capaz <strong>de</strong> estabelecer relações a gerarem novas significações. A leitura alegórica permite a<br />

mobilida<strong>de</strong> dos sentidos ao dizer o outro, fala a emergir na relação entre o lúdico e o luto,<br />

percebidos pelo olhar benjaminiano no trauerspiel barroco.<br />

Em O nosso cancioneiro (1874), compilação <strong>de</strong> cartas trocadas com Joaquim Serra<br />

sobre a cultura popular nor<strong>de</strong>stina, Alencar alu<strong>de</strong> à metáfora da restauração para falar do<br />

papel do artista frente aos silêncios e ruínas <strong>de</strong> uma cultura perdida, como a rua <strong>de</strong><br />

Combray.<br />

Ao tentar coletar as canções ouvidas em sua infância, ao propor-se a editar o<br />

folclore <strong>de</strong> seu povo e assim salvá-lo do esquecimento pelo suporte escrito, Alencar<br />

<strong>de</strong>parou-se com a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> coletar material. Decepcionado, confessa nas cartas


1 49<br />

encontrar apenas vestígios das canções, ainda assim perdidos e “<strong>de</strong>formados” pela<br />

transmissão oral.<br />

Frente à impossibilida<strong>de</strong> da essência e à tentativa <strong>de</strong> reconstruir as tradições do<br />

povo, o escritor criou um método <strong>de</strong> trabalho, que o capacitaria a enfrentar as ruínas <strong>de</strong> uma<br />

cultura reelaborada na transmissão oral e perdida no esquecimento:<br />

Este método comparava o trabalho do pesquisador da<br />

tradição popular ao do restaurador <strong>de</strong> quadros e sugeria a<br />

interferência direta do primeiro, retocando o material<br />

coletado, inventando e complementando-o, visando com isto<br />

restabelecer o (seu) traço primitivo (ALENCAR, 1966, p.<br />

972).<br />

Como o restaurador, a “interferência” do artista na reconstrução da tradição seria<br />

legítima. A analogia traz em si a interseção entre memória e imaginação: a sobrevivência<br />

das imagens do passado só é possível pela recriação. A interdição <strong>de</strong> um resgate absoluto<br />

instaura-se junto à aporia <strong>de</strong> uma tradição que precisa ser reinventada 11 .<br />

A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reinventar tradições, como visto no primeiro capítulo, liga-se a um<br />

momento em que a memória coletiva se esvanece. A perplexida<strong>de</strong> frente à escassez <strong>de</strong><br />

material (<strong>de</strong> uma certa forma, reflexo <strong>de</strong>ste esvanecimento) revela os limites <strong>de</strong> um escritor<br />

que assumiu a tarefa <strong>de</strong> mapear e tentar reconstruir a memória <strong>de</strong> seu país – que tem na<br />

tradição oral uma <strong>de</strong> suas peças <strong>de</strong> resistência.<br />

No quebra-cabeça do passado, Alencar conta com poucas peças: os relatos dos<br />

cronistas e viajantes, os documentos/monumentos oficiais, os ruídos <strong>de</strong> uma memória<br />

11 Segundo o psicólogo e pesquisador holandês Douwe Draaisma, historicamente, a linguagem<br />

relacionada à memória vale-se <strong>de</strong> mol<strong>de</strong>s metafóricos, principalmente a cotidiana, que po<strong>de</strong>m remeter a<br />

espaços <strong>de</strong> armazenagem (a<strong>de</strong>gas, pombais – esta na clássica referência platônica, bibliotecas, cofres...), a<br />

prédios (palácios, teatros, etc.) e à paisagem, especialmente em referência à condição oculta da memória<br />

(grutas, minas, as profun<strong>de</strong>zas do mar). Desta forma, a metáfora projeta pela palavra imagens po<strong>de</strong>rosas para<br />

se pensar o nacional , se consi<strong>de</strong>rarmos a imagem como potência relacionada aos processos da memória.<br />

(DRAAISMA, 2005).


1 50<br />

oculta nestes textos e anunciada nos ecos da toponímia, das quadrinhas, do canto popular.<br />

A sua escrita orquestrará estes elementos, alocando-os e ressignificando-os em textos que<br />

tentam <strong>de</strong>cifrar as lacunas do passado.<br />

Em alguns textos, como Alfarrábios e Guerra dos mascates, o narrador apresenta-se<br />

como mediador capaz <strong>de</strong> recuperar tradições e, assim, <strong>de</strong> <strong>de</strong>smobilizar a leitura historicista<br />

do Instituto Histórico Brasileiro que, em sua retórica cientificista e formal, coloca em<br />

segundo plano a memória popular. Tais textos apontam a discrepância entre o<br />

conhecimento oficial, pre<strong>de</strong>stinado a confinar-se na poeira dos arquivos e uma memória<br />

“viva”, representada geralmente na imagem do ancião.<br />

Há um paradoxo no <strong>de</strong>sejo do narrador em transmitir a experiência coletiva e<br />

estabelecer laços com a comunida<strong>de</strong>, pois esta construção é <strong>de</strong>spida do caráter original e<br />

único da narração oral <strong>de</strong> histórias 12 ; a experiência do passado foi arruinada pela<br />

colonização e há um vazio capaz <strong>de</strong> ser transformado pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> adivinhá-lo. A<br />

experiência autêntica, a erfahrung na complexa leitura benjaminiana, dissolve-se no novo<br />

ritmo <strong>de</strong> vida imposto pela civilização capitalista. Este tipo <strong>de</strong> experiência, calcada na<br />

tradição cultural, é paulatinamente substituída por uma vivência imediata (a erlebnis) e pela<br />

vivência <strong>de</strong> choque.<br />

A imaginação emerge como meio criativo <strong>de</strong> dialogar com um passado abafado por<br />

séculos <strong>de</strong> domíno colonial; a leitura <strong>de</strong>ste passado aceita a ficção e a subjetivida<strong>de</strong> autoral<br />

como peças integrantes <strong>de</strong> seu processo. A sensibilida<strong>de</strong> do artista também colabora, pois<br />

“sem uma rigorosa intuição do pensamento, que produziu o poema popular, e do centro em<br />

que ele vivia, não é possível conseguir essa ressurreição da obra literária” (ALENCAR,<br />

1966, p. 972).<br />

12 Evi<strong>de</strong>ntemente nos remetemos ao artigo seminal <strong>de</strong> Walter Benjamin, “O narrador”.


1 51<br />

Po<strong>de</strong>mos estabelecer um paralelo entre a homologia construída por Alencar em<br />

relação ao exercício das tarefas do artista-pintor e do artista-escritor, veiculada em O nosso<br />

cancioneiro, e a proposta <strong>de</strong>senvolvida paulatinamente em seus textos <strong>de</strong> crítica literária.<br />

Nestes, a função do escritor / artista está vinculada a uma perspectiva “restauradora”.<br />

Entretanto, como já alertamos, esta idéia não significa a recuperação <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m<br />

pré-estabelecida, mas a organização <strong>de</strong> um novo sentido, através da manipulação dos<br />

mecanismos <strong>de</strong> memória e esquecimento: forjar através da “raspagem da crosta” o que se<br />

quer esquecer, “suprir a lacuna” projetando seus <strong>de</strong>sejos e apenas retocando o que parece<br />

já estar completo, o que é eleito como válido <strong>de</strong> ser rememorado:<br />

Na apuração das cantigas populares , penso eu que <strong>de</strong>ve<br />

proce<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> modo idêntico à restauração dos antigos<br />

painéis. On<strong>de</strong> o texto está completo é somente espoá-las e<br />

raspar alguma crosta que porventura lhe embote a cor ou<br />

<strong>de</strong>sfigure o <strong>de</strong>senho. Se aparecerem soluções <strong>de</strong><br />

continuida<strong>de</strong>s provenientes <strong>de</strong> escaras <strong>de</strong> tintas que se<br />

<strong>de</strong>spegou da tela é preciso suprir a lacuna, mas com a<br />

condição <strong>de</strong> restabelecer o traço primitivo. Esse traço<br />

primitivo e original, como conhecê -lo quem não tenha o dom<br />

<strong>de</strong> adivinhar?<br />

(ALENCAR, 1966, p.972).<br />

Em uma crítica em que <strong>de</strong>fendia a sua peça O jesuíta 13 , Alencar sublinhou a relação<br />

entre as narrativas histórica e literária, metaforizadas no jogo <strong>de</strong> luz e sombra:<br />

O domínio da arte na história é a penumbra em que esta<br />

<strong>de</strong>ixou os acontecimentos, da qual a adivinhação surge por<br />

uma admirável intuição, por uma exumação do pretérito, a<br />

imagem da socieda<strong>de</strong> extinta. Só aí é que a Arte po<strong>de</strong> criar, e<br />

que o poeta tem o direito <strong>de</strong> inventar, mas o fato autêntico,<br />

não se altera sem mentir à história (ALENCAR, 1966, p.<br />

1013).<br />

Contrariando a proposta aristotélica do poeta como fabulador, com liberda<strong>de</strong> para<br />

13 Parte da famosa polêmica entre Alencar e Joaquim Nabuco.


1 52<br />

falar dos fatos não como são, mas como po<strong>de</strong>riam ser, Alencar limita a possibilida<strong>de</strong><br />

mimética ao interditar a recriação do “fato autêntico”, termo que, aliás, vai ao encontro da<br />

percepção historicista. O “direito <strong>de</strong> inventar” só seria recomendável nos campos<br />

silenciados da História: “Para mim essa escola que falseia a história, que adultera a verda<strong>de</strong><br />

dos fatos, e faz dos homens do passado manequins <strong>de</strong> fantasia, <strong>de</strong>ve ser banida ”.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1013).<br />

Se por um lado, na concepção alencarina, o autor que reinventasse o fato<br />

historicizado incorreria em mentira, por outro a ficção recupera a sua força ao ser eleita,<br />

nesta concepção, a única via capaz <strong>de</strong> recriar, em meio à “penumbra” e as ruínas, a imagem<br />

perdida do passado 14 .<br />

Talvez fosse possível apontar traços em comum entre Alencar e “a few writers, who<br />

wished save both the premises of positivism and the validity of poetry” (ABRAMS, s.d., p.<br />

320) em sua sugestão <strong>de</strong> uma poesia que não fosse nem mentira, nem verda<strong>de</strong>, “neither true<br />

nor false”. (i<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m).<br />

Suspensa entre os espaços do mito e da História, a ficção <strong>de</strong> Alencar <strong>de</strong>lineia-se em<br />

contraste com as sombras da História, o que o faz afirmar a necessida<strong>de</strong> do escritor<br />

enfrentar estes silêncios buscando a leitura alegórica dos laivos do passado, pensados como<br />

peças <strong>de</strong> um processo que permanecia em seu tempo, como escreveu na nota ao segundo<br />

volume <strong>de</strong> Guerra dos Mascates:<br />

Para <strong>de</strong>screver a nossa socieda<strong>de</strong> colonial é necessário<br />

reconstruí-la pelo mesmo processo <strong>de</strong> que usam os<br />

naturalistas com os animais antediluvianos. De um osso, eles<br />

recompõem a carcaça, guiados pela analogia e pela ciência.<br />

O escritor que no Brasil tenta o romance histórico, há <strong>de</strong><br />

cometer antes <strong>de</strong> tudo essa árdua tarefa <strong>de</strong> recompor com os<br />

14 Como dissemos na nota 2, os textos ficcionais <strong>de</strong> Alencar, entretanto, alimentam e são alimentados por<br />

elementos do discurso histórico, dada a circularida<strong>de</strong> entre esses discursos.


1 53<br />

fragmentos catados nos velhos cronistas a colônia portuguesa<br />

da América, tal como ela existiu, a separar-se dia a dia da<br />

mãe pátria e já preparando o futuro império. (ALENCAR,<br />

1966, p. 109).<br />

A poética da restauração propõe ao escritor brasileiro a tarefa <strong>de</strong> fazer da arte uma<br />

maneira <strong>de</strong> preencher a “penumbra” <strong>de</strong>ixada pela História. A arte, aliada por excelência da<br />

imaginação, seria, pois, o espaço organizador das imagens que substituiriam os silêncios<br />

em que mergulhava, no Brasil, a memória <strong>de</strong> um tempo passado, convertido em ruínas pela<br />

experiência da colonização.<br />

Em seus textos críticos – e em alguns ficcionais, Alencar trabalha com a questão da<br />

restauração a partir da apropriação da metáfora pictórica do claro-escuro. O autor organiza,<br />

a partir <strong>de</strong>sta metáfora, uma série <strong>de</strong> reflexões sobre a representação do nacional, em torno<br />

das modulações tecidas pela História e pela literatura.<br />

Alencar propõe, como visto, que o escritor não altere o que já se sabe, ou seja, o que<br />

a História já teria iluminado (trabalhando assim com uma noção <strong>de</strong> representação que liga<br />

História à luz, iluminação, verda<strong>de</strong>), mas que trabalhe a partir das sombras <strong>de</strong>sta História,<br />

buscando na liberda<strong>de</strong> ficcional da literatura a sanção para iluminar a penumbra do que<br />

precisa ser adivinhado (no sentido <strong>de</strong> criado e intuído). Também po<strong>de</strong>mos pensar este jogo<br />

<strong>de</strong> claro-escuro relacionando-o ao interior <strong>de</strong>sesperado da postura romântica, e ao fato <strong>de</strong><br />

que, neste movimento, a História e a arte não remetiam a idéias claras, já que o<br />

Romantismo alimentava-se na tensão entre o eu e a socieda<strong>de</strong>, a utopia e o terror, a vida e a<br />

morte - o claro e o escuro.<br />

Em meio à nebulosida<strong>de</strong>, instaurada pela arte e pela história romântica, a<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> na corte do Segundo Império brasileiro foi pautada pela entronização da<br />

fotografia no país e no cotidiano das pessoas. Ao contrário da arte da pintura, em sua


1 54<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> reinventar o real, a fotografia inaugurava um compromisso do imagético com a<br />

<strong>de</strong>scrição objetiva da realida<strong>de</strong>. A fotografia coadunava-se a uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,<br />

presente na historiografia historicista. Este, em sua procura <strong>de</strong> reconstrução absoluta do<br />

passado, reafirma a supremacia do documento escrito como fonte da interpretação objetiva.<br />

Tal postura reflete a autorida<strong>de</strong> conferida ao ofício do historiador, ao mesmo tempo<br />

em que indica uma tendência que assume seu ápice no século XIX: o <strong>de</strong>sejo do efeito do<br />

real pela socieda<strong>de</strong> oitocentista. Roland Barthes aponta este <strong>de</strong>sejo como o responsável pela<br />

voga do romance realista, do diário íntimo, da literatura documental, dos museus históricos,<br />

das exposições <strong>de</strong> antiguida<strong>de</strong>, que tanto ganham força naquela época. Entre estes<br />

instrumentos que po<strong>de</strong>riam servir <strong>de</strong> pontes para o alcance da realida<strong>de</strong>, a fotografia ocupa<br />

um lugar especial.<br />

Com olhos inscritos no século XX, Roland Barthes anunciou o impacto exercido<br />

pela fotografia, ainda em nossos dias, ao <strong>de</strong>screver a sua reação ao ver o retrato do irmão <strong>de</strong><br />

Napoleão Bonaparte: “Eu me disse então com um espanto que jamais pu<strong>de</strong> reduzir: ‘Vejo<br />

os olhos que viram o Imperador’” (BARTHES, 1984a, p. 11). As fotografias revelam “os<br />

olhos que viram”, já que vemos através do olhar do outro a cena, nunca imortalizada, em<br />

sua condição <strong>de</strong> suporte para novas leituras sentidos. O olhar-visão testemunha e<br />

testemunhou ao mesmo tempo a sua época, pois “uma foto não po<strong>de</strong> ser transformada (dita)<br />

filosoficamente, ela está inteiramente lastreada com a contingência <strong>de</strong> que ela é o<br />

envoltório transparente e leve.” (BARTHES, 1984, p. 14).<br />

A fotografia seria necessariamente real; a pintura facultativamente. Enquanto é<br />

franqueado à pintura simular uma realida<strong>de</strong>, mesmo que não tenha sido vista, a fotografia<br />

(em que pese a manipulação e as estratégias <strong>de</strong> edição <strong>de</strong> cena) tem como referente não a


1 55<br />

remissão à imagem ou ao signo, “mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante<br />

da objetiva, sem a qual não haveria fotografia”.(BARTHES, 1984, p. 114 e 115).<br />

Mesmo a pintura que se queira a mais realista possível diverge do efeito fotográfico,<br />

já que o que é visto na fotografia não é lembrança, nem imaginação, mas “o real no estado<br />

passado: a um só tempo o passado e o real” (BARTHES, 1984, p.124), constituindo-se<br />

“nem imagem, nem real, um ser novo, verda<strong>de</strong>iramente: um real que não se po<strong>de</strong> mais<br />

tocar” (BARTHES, 1984, p. 130). A presença do objeto não é metafórica, a fotografia<br />

anuncia-se ruína no sentido mais profundamente benjaminiano, já que é a imagem viva <strong>de</strong><br />

uma coisa morta. (BARTHES, 1984, p. 118).<br />

Uma arte <strong>de</strong>sejosa <strong>de</strong> reconstruir fielmente a realida<strong>de</strong>: assim po<strong>de</strong>ríamos<br />

caracterizar a fotografia oitocentista. A partir <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>sejo, as fotografias são transformadas<br />

em documentos. Assim, a representação fotográfica aproximar-se-ia mais do factual,<br />

enquanto a literatura por po<strong>de</strong>r liberar-se do referencial <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>, ligar-se-ia à<br />

pintura.<br />

Em Sonhos d’ouro, enquanto o protagonista Ricardo – simples, artista e com força<br />

moral - pinta aquarelas, Guida, a mocinha capitalista e caprichosa, coleciona cartões-<br />

postais. Ricardo cria, Guida compra; Ricardo lê o mundo com olhos <strong>de</strong> poeta e Guida ,<br />

como boa burguesa, exibe um bem, que a transporta a um espaço não conhecido e<br />

civilizado: a Europa.<br />

Os álbuns <strong>de</strong> Guida circulam entre as visitas da casa: a apropriação simbólica do<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> civilização, traduzido nas imagens congeladas e justapostas, forma o mosaico da<br />

civis i<strong>de</strong>al e <strong>de</strong>nota o <strong>de</strong>sejo burguês <strong>de</strong> exposição, capaz <strong>de</strong> reificar o que há <strong>de</strong> mais<br />

sagrado: a imagem da pessoa amada (BENJAMIN, 1994). Perda aurática da imagem já<br />

possível <strong>de</strong> ser apreendida na fala <strong>de</strong> Aurélia, em Senhora:


1 56<br />

- O álbum das pessoas <strong>de</strong> minha amiza<strong>de</strong> eu o guardo<br />

comigo. Estes são álbuns <strong>de</strong> sala, tabuletas semelhantes às<br />

que tem os fotógrafos na porta.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1095).<br />

As vistas urbanas alimentam uma função social, a <strong>de</strong> colaborar no processo <strong>de</strong> auto-<br />

representação da socieda<strong>de</strong> burguesa. Isto faz com que “a fotografia passe a integrar o<br />

elenco <strong>de</strong> suportes aptos à formação e veiculação <strong>de</strong> seu imaginário urbano” (LIMA, 1998,<br />

p. 78-79). A fotografia <strong>de</strong>stas paisagens “abstrai o tempo e reor<strong>de</strong>na elementos do real na<br />

síntese da imagem” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m). Tal abstração permite nivelar as cenas congeladas das<br />

terras brasileiras ao cosmopolitismo <strong>de</strong> França, Inglaterra e mesmo Portugal: no romance,<br />

os convidados <strong>de</strong> Guida folheiam os álbuns com “lindas vistas da Suíça, da Escócia, <strong>de</strong><br />

Sintra e da Tijuca” (ALENCAR, 1966, p.767, grifo nosso).<br />

Em outra passagem, o Dr. Nogueira - um dos preten<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Guida, narra a história<br />

e a vida dos principais artistas e pensadores europeus, ao contemplar os cartões-postais<br />

(ALENCAR, 1966, p.778 a 781); em Sonhos d’ouro os cartões apresentam-se como fios da<br />

memória, a guardar um papel civilizador.


1 57<br />

Como vimos, as imagens e termos relacionados à pintura são muitas vezes<br />

metáforas empregadas por Alencar em seus textos para a reflexão acerca do artesanato<br />

literário. Uma <strong>de</strong>stas metáforas remete a um jogo entre a sombra e a luz, on<strong>de</strong> o claro-<br />

escuro extrapolaria seu sentido, saindo do universo da pintura e abrangendo o do romance.<br />

Este jogo <strong>de</strong> claro-escuro na narrativa <strong>de</strong> Alencar <strong>de</strong>sdobra-se em três níveis; o mais<br />

explícito <strong>de</strong>ntre eles é, nos textos ficcionais, a ambientação da narrativa, pintada como um<br />

quadro, em seus jogos <strong>de</strong> sombra e luz, em inúmeras passagens em seus livros, como em<br />

Iracema, ao apresentar a protagonista em um cenário <strong>de</strong> pura harmonia, pintada em<br />

equilibrados tons <strong>de</strong> claro-escuro:<br />

Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da<br />

floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais<br />

fresca do que o orvalho da noite. Os ramos <strong>de</strong> acácia<br />

silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos.<br />

Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto (<br />

ALENCAR, s.d., p.14)<br />

Pura natureza, em seu espaço natural Iracema é o foco <strong>de</strong> luz da paisagem<br />

selvagem; ao final do livro, frente ao espaço limite do litoral, <strong>de</strong>slocada e prestes a ser<br />

abandonada, a personagem figura-se como sombra na vida <strong>de</strong> Martim e representa-se<br />

visualmente como tal:<br />

Iracema é a folha escura que faz sombra em tua alma; <strong>de</strong>ve<br />

cair para que a alegria alumie teu seio (ALENCAR, s.d., p.<br />

77)<br />

Vimos que a presença da metáfora do jogo pictórico do claro-escuro é tecida nos<br />

textos críticos (a partir da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler os claros e escuros da memória, cuja parte<br />

"verda<strong>de</strong>ira" correspon<strong>de</strong>ria ao claro e à História, enquanto a penumbra, a dúvida e o oculto<br />

correspon<strong>de</strong>riam à ficção) e na práxis da escritura, na reflexão acerca da tarefa do escritor


1 58<br />

intelectual, representando seus limites e possibilida<strong>de</strong>s em <strong>de</strong>linear ficcionalmente o país<br />

através do romance 15 (ver ALENCAR, 1966, p.863).<br />

A imagem alencarina do “artista– restaurador” é construída por uma singular proposta<br />

do exercício literário através da idéia <strong>de</strong> restauração. Estabelece uma correspondência entre<br />

o artesanato ficcional e a técnica pictórica, mais precisamente, a recuperação <strong>de</strong> pinturas,<br />

abandonando a idéia tradicional <strong>de</strong> restauração, vista como o restabelecimento das origens<br />

ou como reprodução <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>nação pré-estabelecida. E passa a focalizá-la como uma<br />

via <strong>de</strong> reflexão sobre as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relação entre a literatura e memória, como<br />

veremos adiante.<br />

Alencar, em “Cartas sobre A Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”, sublinha a força da<br />

constituição <strong>de</strong> um microcosmo ficcional que, tecido em torno da imaginação, faz emergir<br />

aspectos <strong>de</strong>sconhecidos – a palavra é bússola e, mágica, revela o que antes mergulhado em<br />

mistério (no caso, o passado do país) é resgatado pela força criativa do artista.<br />

Assim, Alencar se assumiria “historiador à minha maneira”, como escreve em um<br />

texto recuperado por Fábio Freixieiro, no qual lança a proposta da escrita <strong>de</strong> um romance<br />

sobre a história da cida<strong>de</strong> do R io <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Não escrevo os annaes <strong>de</strong> um povo, e sim a vida <strong>de</strong> uma<br />

cida<strong>de</strong>; colijo os fatos, as lembranças, as tradições, as<br />

conjecturas, os usos e costumes; faço <strong>de</strong> uma terra selvagem,<br />

ou <strong>de</strong> uma mole <strong>de</strong> casas um livro: copio a crônica <strong>de</strong> um<br />

lugar, como escreveria as reminiscências <strong>de</strong> um homem, ou<br />

as memórias literárias <strong>de</strong> um escritor.<br />

Vou folheando uma a uma as páginas <strong>de</strong>sse álbum <strong>de</strong> pedra<br />

15 A relação entre lembrança e esquecimento aparece representada como jogo <strong>de</strong> luz e sombra na filosofia <strong>de</strong><br />

Friedrich Nietzsche, que escreveu em 1874, alguns anos após a morte <strong>de</strong> Alencar: Quem não se instala no<br />

limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz <strong>de</strong> manter-se sobre um ponto como uma<br />

<strong>de</strong>usa <strong>de</strong> vitória, sem vertigem e medo, nunca saberá o que é felicida<strong>de</strong> e, pior ainda, nunca fará algo que<br />

torne outros felizes. Pensem o exemplo extremo, um homem que não possuísse a força <strong>de</strong> esquecer (...) Todo<br />

agir requer esquecimento: assim como a vida <strong>de</strong> tudo o que é orgânico requer não somente luz, mas também<br />

escuro. (NIETZSCHE, 2000, p.273).


1 59<br />

no qual mais <strong>de</strong> três séculos <strong>de</strong>ixarão gravada a sua<br />

passagem; no qual o tempo, esse sublime arquiteto <strong>de</strong><br />

ruínas, elevou umas sobre as outras estas diversas gerações<br />

<strong>de</strong> casas, <strong>de</strong> cujos tetos <strong>de</strong>saparecerão outras tantas gerações<br />

<strong>de</strong> homens.<br />

(ALENCAR APUD FREIXIEIRO, 1981, p. 111)<br />

Frente às ruínas do “sublime arquiteto”, lidas no álbum <strong>de</strong> pedra da cida<strong>de</strong> em suas<br />

gerações <strong>de</strong> casas e homens <strong>de</strong>saparecidos, caberia ao artista “ligar os diversos fragmentos<br />

que se encontrão nos livros para fazer <strong>de</strong>les um quadro ou uma estátua” (ALENCAR<br />

APUD FREIXIEIRO, p. 111). Como alinhavador <strong>de</strong>stas ruínas e tecelão <strong>de</strong> um texto capaz<br />

<strong>de</strong> resgatar a memória, o escritor orquestra o caos dos resíduos do passado:<br />

Tracei o meu plano, e comecei a procurar aqui e ali os<br />

elementos para a minha história; tomei notas e<br />

apontamentos, fiz lembranças, esmerilhei em todos os<br />

cronistas que me vieram a mão; e por fim <strong>de</strong> contas achei-me<br />

possuidor <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro caos, no qual havia um mundo,<br />

se eu tivesse o po<strong>de</strong>r necessário para criá-lo.<br />

(ALENCAR APUD FREIXIEIRO, 1981, p. 110).<br />

“Do caos surge a estrela bailarina”: o po<strong>de</strong>r criativo do artista o capacita a criar um<br />

universo simbólico cuja riqueza resi<strong>de</strong> em sua potência <strong>de</strong> trazer à tona imagens do passado<br />

impossíveis <strong>de</strong> emergir fora do discurso ficcional. O escritor <strong>de</strong>veria criar em sua tessitura<br />

literária um optimum entre os discursos histórico e estético, fazendo da arte o ponto <strong>de</strong><br />

contraste às brechas do primeiro, imagem metaforizada na técnica artística do claro-escuro:<br />

Era pois a poesia em toda a sua beleza plástica, e ao mesmo<br />

tempo a história em sua verda<strong>de</strong> severa; era um poema das<br />

crônicas brasileiras, ou antes um romance dos fatos reais aos<br />

quais a imaginação apenas servia <strong>de</strong> quadro para fazê-los<br />

sobressair como em relevo no fundo obscuro dos tempos.<br />

(ALENCAR APUD FREIXIEIRO, p. 110).<br />

Como indicamos, a imagem do artista-restuarador é maturada por Alencar nas cartas<br />

<strong>de</strong> O nosso cancioneiro. Em meio ao pretexto <strong>de</strong> divagar sobre canções folclóricas


1 60<br />

nor<strong>de</strong>stinas, estas cartas discutiam concepções <strong>de</strong> crítica e estética literária, como o próprio<br />

Alencar avisou: “e não estranhe se à sombra da epígrafe <strong>de</strong> nosso cancioneiro, vou dando<br />

folgas à pena para essas digressões [sobre a ‘índole literária’ brasileira]” (Alencar, 1994,<br />

p.27).<br />

As cartas versavam sobre a poesia popular cearense, mais especificamente sobre<br />

dois romances 16 coletados por Alencar: “O boi Espácio” e o “Rabicho da Geralda” 17 . Nas<br />

epístolas, José <strong>de</strong> Alencar engendrou algumas reflexões sobre o que qualificou como<br />

pertencente ao gênero pastoril: poesias populares sertanejas, nas quais o próprio boi<br />

apareceria como herói, e não o vaqueiro.<br />

O autor buscou encontrar caracteres específicos, que sublinhassem a questão<br />

nacional nestas poesias. Para tanto, as contrapôs ao paradigma dos clássicos greco-<br />

romanos, situando a especificida<strong>de</strong> das poesias sertanejas na estruturação diferente, no<br />

contexto que a cercava e, principalmente, na linguagem empregada e na natureza.<br />

Ao aliar à análise da poesia popular a estilística, as condições <strong>de</strong> gênese da obra e a<br />

lingüística, é à última que Alencar enfatiza; <strong>de</strong>ste modo, a análise da poesia popular<br />

funcionou como mote para a exposição <strong>de</strong> sua reflexão sobre a constituição e <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> um<br />

idioma nacional, que perpassa toda a sua fortuna crítica. 18<br />

A discussão sobre poesia popular veiculava, então, concepções da crítica literária <strong>de</strong><br />

Alencar, que também aparecem em outros textos: as <strong>de</strong>fesas da nacionalida<strong>de</strong> literária,<br />

possibilitada pelo retorno às origens, e a <strong>de</strong> uma “língua portuguesa brasileira”, <strong>de</strong> um<br />

16 Entenda- se o termo romance aqui como composição poética narrativa do romanceiro popular.<br />

17 Narrativas que reaparecem em O sertanejo, como apontaremos posteriormente.<br />

18 Era fundamental para movimentos nacionalistas a reivindicação <strong>de</strong> uma língua original para a pátria,<br />

utilizando- a como via <strong>de</strong> unificação e reconhecimento. Para Alencar, a questão da língua também estaria<br />

ligada à disseminação do saber: “Nós, os escritores nacionais, se quisermos ser entendidos do nosso povo,<br />

havemos <strong>de</strong> falar-lhe em sua língua, com os termos ou locuções que ele enten<strong>de</strong>, e que lhe traduz os usos e<br />

sentimentos”.(ALENCAR, 1994).


1 61<br />

“dialeto brasileiro”.<br />

O povo para o autor – parafraseando Garret, seria não só o primeiro dos clássicos,<br />

mas, especialmente, dos gramáticos. Sua poesia seria a fonte verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> seu espírito, e<br />

sua língua, o instrumento <strong>de</strong> reiteração da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional e da resistência ao<br />

colonizador, marcadora por excelência das idiossincrasias nacionais.<br />

Ao construir uma imagem da poesia popular como manancial legítimo da poesia<br />

brasileira, contrapôs o gosto nacional ao gosto luso e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a criação <strong>de</strong> um universo<br />

mítico e o uso <strong>de</strong> formas e conteúdos novos e diferentes na literatura brasileira, como os<br />

presentes na poesia sertaneja. Universo mítico, que adivinharia no romance “O Rabicho da<br />

Geralda”, a contar em versos a saga <strong>de</strong> um boi fugitivo.<br />

Para Alencar, a figura do boi no “Rabicho da Geralda”, e em poesias análogas,<br />

constituir-se-ia um mito, traçando assim o autor uma analogia em relação à construção<br />

mítico clássica dos heróis. A conferência <strong>de</strong> traços míticos ao protagonista do poema – o<br />

boi, permite entrever na análise do autor um olhar que atribui à poesia sertaneja a<br />

predominância do gênero épico sobre o lírico, mesmo se consi<strong>de</strong>rarmos que sua atenção na<br />

abordagem do poema está mais concentrada nos seus traços formais e estilísticos. A aposta<br />

<strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar seria nos mitos e heróis do país, no veio épico brasileiro iniciado com o<br />

indianismo e que tinha no sertanejo a abertura <strong>de</strong> uma nova senda.<br />

A poesia sertaneja seria a primeira tentativa <strong>de</strong> integrar à cultura erudita os traços<br />

estilísticos e temáticos da tradição oral. José <strong>de</strong> Alencar, assim, teve o mérito <strong>de</strong><br />

estabelecer, uma ponte entre a cultura popular e erudita, ainda que pautado no paradigma<br />

das poesias pastoris clássicas européias.<br />

Representante da literatura culta, o autor se aproximou da produção popular<br />

entregando-se ao que chamou <strong>de</strong> “escavações pacientes”, ou seja, a procura do que


1 62<br />

consi<strong>de</strong>raria a verda<strong>de</strong>ira poesia oriunda do povo. Atribui algumas características ao que<br />

seria a cultura popular, aliás, não <strong>de</strong>nominada por ele nem como cultura, nem como<br />

folclore (até mesmo porque as cartas foram escritas um pouco antes da generalização do<br />

conceito). A poesia popular para ele seria a produzida em um tempo remoto, perdida no<br />

anonimato 19 : “É nas trovas populares que se sente mais viva a ingênua alma <strong>de</strong> uma nação”<br />

(ALENCAR, 1994, p.19).<br />

A atribuição da natureza ingênua, pela cultura erudita, à cultura popular revela a sua<br />

visão como instância dotada <strong>de</strong> pureza e transformada em objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo pela primeira, a<br />

alimentar a promessa do resgate do que se per<strong>de</strong>u através dos tempos.<br />

Essa visão também está ligada a uma imagem que atrela o popular à infância, seja à<br />

própria infância do autor, quase sempre ligada ao motivo ou início <strong>de</strong> seu interesse pela<br />

cultura popular 20 , seja à idéia do popular como germe da civilização, perspectiva que <strong>de</strong><br />

certa maneira aponta laivos evolucionistas. Alencar, por exemplo, ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r sua<br />

convicção <strong>de</strong> que os he róis sertanejos eram revestidos <strong>de</strong> cunho mitológico, propõe a<br />

mitologia como etapa civilizatória:<br />

Na infância dos povos certas individualida<strong>de</strong>s mais pujantes<br />

absorvem em si a tradição <strong>de</strong> fatos praticados por indivíduos<br />

cujo nome se per<strong>de</strong>; e tornam- se por esse modo símbolo <strong>de</strong><br />

uma idéia ou <strong>de</strong> uma época.<br />

Com o incremento da civilização, que nivela os homens,<br />

<strong>de</strong>bilita-se aquela tendência; e o mitologismo só aparece nas<br />

latitu<strong>de</strong>s sociais on<strong>de</strong> ainda não dissiparam-se <strong>de</strong> todo a<br />

primitiva ru<strong>de</strong>za e ingenuida<strong>de</strong> do povo (ALENCAR, 1994,<br />

p. 52, grifo nosso)<br />

A metáfora da escavação, empregada por Alencar ao referir-se à recriação das<br />

19 O anonimato parece ser uma característica fundamental no reconhecimento do popular por Alencar. No<br />

entanto, mais tar<strong>de</strong>, Araripe Junior retomará o romance do “Rabicho da Geralda” apontando o autor e o<br />

contextualizando espacial e temporalmente.<br />

20 Como o próprio José <strong>de</strong> Alencar.


1 63<br />

imagens pretéritas, é recorrente no século <strong>de</strong>zenove, inclusive nos textos <strong>de</strong> Michelet e<br />

Freud, como visto no capítulo anterior. Se Freud a emprega para referir-se à condição <strong>de</strong><br />

recriação da memória, Michelet a percebe como tradução do passado enquanto<br />

temporalida<strong>de</strong> passível <strong>de</strong> ressurreição; <strong>de</strong>sta forma, os silêncios do passado seriam<br />

apresentados como uma continuida<strong>de</strong> do presente, através <strong>de</strong> uma ponte recriada pelo<br />

historiador 21 .<br />

Alencar da mesma forma aponta para a metáfora da exumação como forma <strong>de</strong> criar<br />

um elo entre o passado e o presente, a partir <strong>de</strong> um leitura capaz <strong>de</strong> organizar as ruínas do<br />

pretéritos <strong>de</strong> forma significante para o presente. Exumar o passado está intimamente ligado<br />

à reflexão sobre o agora 22 .<br />

O topos da adivinhação dos silêncios da História pelo literato relaciona a<br />

divinização do autor (ou seja, o conceito <strong>de</strong> autor como Deus) à adivinhação, dotando a<br />

interpretação romântica <strong>de</strong> um caráter divinatório. A imagem do escritor como um ser<br />

capaz <strong>de</strong> adivinhar o passado e o futuro, como vimos, retoma a concepção clássica do vate.<br />

Esta perspectiva projeta na escrita alencarina a tentativa <strong>de</strong> adivinhar os traços <strong>de</strong><br />

nossa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, possível em uma poética da restauração, na construção simbólica <strong>de</strong> um<br />

passado vindo à tona no jogo entre memória e esquecimento.<br />

A compreensão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional como construção fundada nesse jogo<br />

aparecerá mais tar<strong>de</strong> nas reflexões <strong>de</strong> Renan em “O que é uma nação”; segundo o autor o<br />

que faria um grupo <strong>de</strong> indivíduos se reconhecerem como membros <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong><br />

nacional não seria a raça ou a língua, mas a consciência moral <strong>de</strong>ste pertecimento, “une<br />

21 É claro o que com isto não estamos afirmando a ficção alencarina como reveladora <strong>de</strong> tudo o que foi<br />

silenciado pelo discurso histórico. O próprio texto alencarino tem também a sua penumbra e elege<br />

<strong>de</strong>terminados temas como dignos <strong>de</strong> serem lembrados, enquanto outros são silenciados.<br />

22 Alguns exemplos <strong>de</strong>ste elo seriam a alusão às práticas políticas do segundo reino em Guerra dos mascates e<br />

a proposta <strong>de</strong> uma organização política e social calcada na hierarquização e na meritocracia em Ubirajara.


1 64<br />

conscience morale qui s'appelle une nation” (RENAN, 1882). Como princípio espiritual, a<br />

nação seria constituída por<br />

<strong>de</strong>ux choses qui, à vrai dire, n'en font qu'une, constituent cette<br />

âme, ce principe spirituel. L'une est dans le passé, l'autre<br />

dans le présent. L'une est la possession en commun d'un riche<br />

legs <strong>de</strong> souvenirs ; l'autre est le consentement actuel, le désir<br />

<strong>de</strong> vivre ensemble, la volonté <strong>de</strong> continuer à faire valoir<br />

l'héritage qu'on a reçu indivis. (RENAN, 1882).<br />

A criação e organização <strong>de</strong> lembranças, capazes <strong>de</strong> tecerem a teia que une o passado<br />

ao presente, inventa tradições e permiteo reconhecimento dos cidadãos. Lembrar,<br />

entretanto, é tão importante como esquecer na articulação da memória 23 pois, para Renan, o<br />

esquecimento e até mesmo o erro histórico: “sont un facteur essentiel <strong>de</strong> la création d'une<br />

nation, et c'est ainsi que le progrès <strong>de</strong>s étu<strong>de</strong>s historiques est souvent pour la nationalité un<br />

danger” (RENAN, 1882). Um perigo, pois iluminaria a violência onipresente no surgimento<br />

<strong>de</strong> qualquer Estado –Nação. A luz da história, reveladora, em suas possibilida<strong>de</strong>s, na leitura<br />

<strong>de</strong> Alencar, é para Renan ameaçadora, pois <strong>de</strong>snudaria o domínio e a cruelda<strong>de</strong> inerentes às<br />

formações políticas:<br />

L'investigation historique, en effet, remet en lumière les faits<br />

<strong>de</strong> violence qui se sont passés à l'origine <strong>de</strong> toutes les<br />

formations politiques, même <strong>de</strong> celles dont les conséquences<br />

ont été le plus bienfaisantes.<br />

La politique turque <strong>de</strong> la séparation <strong>de</strong>s nationalités d'après<br />

la religion a eu <strong>de</strong> bien plus graves conséquences : elle a<br />

causé la ruine <strong>de</strong> l'Orient. Prenez une ville comme Salonique<br />

ou Smyrne, vous y trouverez cinq ou six communautés dont<br />

chacune a ses souvenirs et qui n'ont entre elles presque rien<br />

en commun. Or l'essence d'une nation est que tous les<br />

individus aient beaucoup <strong>de</strong> choses en commun, et aussi que<br />

tous aient oublié bien <strong>de</strong>s choses. Aucun citoyen français ne<br />

sait s'il est burgon<strong>de</strong>, alain, taïfale, visigoth ; tout citoyen<br />

23 Tópico brilhantemente retomado no século vinte por Jorge Luis Borges, em “Funes, el memorioso”.


1 65<br />

français doit avoir oublié la Saint-Barthélemy, les massacres<br />

du Midi au XIII e siècle. (RENAN, 1882)<br />

A partilha do silêncio revela em seu anverso o pacto entre os patriotas: “esquecer”,<br />

rejeitar episódios vergonhosos, traumáticos e catastróficos como a Noite <strong>de</strong> São<br />

Bartolomeu na seleção das lembranças em comum (lábeis e construídas na longa duração,<br />

sabemos) torna-se necessário na assunção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> coletiva.<br />

A percepção do esquecimento como construtor da memória expõe-se também na<br />

pintura <strong>de</strong> Pedro Américo ao questionar os limites impostos pelas profundas relações entre<br />

a pintura brasileira e o projeto político do Segundo Império, como explicita em seu<br />

comentário a “O grito do Ipiranga”, escrito em 1888, no qual revela os impasses vividos<br />

frente a tentativa <strong>de</strong> ser “sincero reprodutor das faces essenciais do fato, sem esquecer<br />

totalmente as difíceis e severas lições da ciência do belo”. A opção entre a veracida<strong>de</strong><br />

factual e a estética, revela ainda a consciência da arte como instância produtora <strong>de</strong> memória<br />

e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manipular o esquecimento como forma <strong>de</strong> manter o traço épico. Desta<br />

forma, compara esta manipulação à presente na construção historiográfica:<br />

Se o historiador afasta dos seus quadros todos os inci<strong>de</strong>ntes<br />

perturbadores da clareza das suas lições e da magnitu<strong>de</strong> dos<br />

seus fins, com muito mais razão o faz o artista, que proce<strong>de</strong><br />

dominado pela idéia da impressão estética que <strong>de</strong>verá<br />

produzir no espectador a sua obra.(...)<br />

A realida<strong>de</strong> inspira, não escraviza o pintor.<br />

Assim, por exemplo, dizendo-nos os companheiros <strong>de</strong> Dom<br />

Pedro que sua alteza, no momento mais solene daquela tar<strong>de</strong><br />

memorável, montava um cavalo zaino tocado a escuro,<br />

afirmando certa tradição ppopular que ele cavalgava então<br />

um asno baio (...) não há dúvida <strong>de</strong> que o pintor, no interesse<br />

moral e artístico do seu trabalho, <strong>de</strong>verá preferir a primeira<br />

afirmativa, ainda mesmo quando as mais justas<br />

consi<strong>de</strong>rações, baseadas na importância do cavaleiro e na


1 66<br />

circunstância <strong>de</strong> sua próxima entrada na cida<strong>de</strong>, não se<br />

opusessem á verosimilhança da segunda. (AMÉRICO, 1999,<br />

p. 19 e p. 20).<br />

Alencar ao propor, via literatura, um projeto <strong>de</strong> reflexão sobre o nacional e revisar<br />

<strong>de</strong>terminadas imagens imprimindo um novo olhar para o passado, assume algumas<br />

lembranças que po<strong>de</strong>riam ser esquecidas, salvando-as do silêncio: a barbárie portuguesa<br />

contra os indígenas – embora abafada pela tentativa <strong>de</strong> representar o pacto harmônico entre<br />

senhor e colonizado, baseado contraditoriamente no livre arbítrio e no reconhecimento ao<br />

patriarcalismo, sustentado por forte hierarquia e pelos valores da honra e da coragem.<br />

A contradição instaurada no projeto alencarino liga-se à percepção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

pós-colonial como precária e dúbia. Ao articulá-la no jogo <strong>de</strong> lembrança e esquecimento<br />

em torno do qual ur<strong>de</strong> a poética da restauração, o artista assume a missão <strong>de</strong> conduzir o<br />

povo no período <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong> em que se encontram, <strong>de</strong>lineando a face da nação:<br />

Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas,<br />

escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da<br />

formação <strong>de</strong> uma nacionalida<strong>de</strong>. São estes operários<br />

incubidos <strong>de</strong> polir o talhe e as feições da individualida<strong>de</strong> que<br />

e vai esboçar no viver do povo. (ALENCAR, 1966, p. 699 -<br />

700).<br />

O escritor <strong>de</strong>veria assumir a “missão” <strong>de</strong> ser “historiador do passado e profeta do<br />

futuro”, reconstruindo<br />

sobre o nada uma geração que <strong>de</strong>sapareceu da face da terra<br />

para mostrá-la à posterida<strong>de</strong>, é preciso que tenha bastante<br />

confiança, não só no seu gênio e na sua imaginação, como na<br />

palavra que <strong>de</strong>ve surgir esse mundo novo e <strong>de</strong>sconhecido<br />

(ALENCAR, 1966, p. 891).


1 67<br />

A literatura é percebida, pois, como espaço potencial para o encontro <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, nascida “frente a uma realida<strong>de</strong> histórica e (...) contra essa realida<strong>de</strong>”, nas<br />

palavras <strong>de</strong> Otávio Paz, uma utopia, pois “antes <strong>de</strong> ter existência história própria,<br />

começamos por ser uma idéia européia” (2003, p. 126). A releitura <strong>de</strong>ste olhar europeu,<br />

reinventado <strong>de</strong> forma não menos utópica, guia a proposta literária <strong>de</strong> Alencar em seus<br />

textos indianistas e alusivos ao período colonia l.<br />

As citações dos textos coloniais por Alencar po<strong>de</strong>m ser lidas como o esforço <strong>de</strong><br />

conhecimento orientado pelo entrecruzamento entre um discurso <strong>de</strong>senraizado política,<br />

cultural e temporalmente e a tentativa <strong>de</strong> refletir sobre a condição <strong>de</strong> brasileiro. Tal<br />

discurso ligava-se intrinsecamente a uma proposta <strong>de</strong> leitura da historicida<strong>de</strong> (alternativa ao<br />

discurso historiográfico produzido pelo Instituto Histórico Brasileiro) construíd a na<br />

percepção da literatura como suporte memorialístico, capaz <strong>de</strong> assumir a reconstrução dos<br />

escuros do passado 24 .<br />

A ficção alencarina trazia alternativas a esse discurso por on<strong>de</strong> aludiriam os<br />

resíduos latentes <strong>de</strong> um passado dizimador, a falar e refletir sobre o seu presente e a dar voz<br />

aos atores excluídos do discurso historiográfico. Constrói <strong>de</strong>sta forma um discurso<br />

fundador, fundador <strong>de</strong> sentidos on<strong>de</strong> “outros sentidos foram instalados”(ORLANDI, 2001,<br />

p. 13), dialogando, apropriando-se e reelaborando diferentes sentidos.<br />

Desta forma ele articula-se ao conceito <strong>de</strong> Orlandi <strong>de</strong> um texto fundador como o<br />

criador <strong>de</strong> uma nova tradição, pois “re-significa o que veio antes e institui aí uma memória<br />

24 O Instituto Histórico Brasileiro, posteriormente Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, foi o principal<br />

centro <strong>de</strong> articulação do discurso historiográfico brasileiro durante o Segundo Império. Dentre os diversos<br />

caminhos historiográficos do século XIX, a orientação do IHB era historicista, segundo Arno Wehling. Isto<br />

significa, conforme as pesquisas do autor, a exclusão <strong>de</strong> uma historiografia orientada pela lenda ou pela<br />

imaginação – como na história-ficção ou na crônica histórica – no Brasil, em prol <strong>de</strong> uma postura positivista,<br />

embora com contradições.


1 68<br />

outra” e apóia-se “em retalhos para significar o novo”. O texto alencarino produziria “sítios<br />

<strong>de</strong> significância” (ORLANDI, 2001, p. 13)..<br />

Se Alencar explicita as ruínas da História em seus textos que falam sobre o passado<br />

colonial e <strong>de</strong> personagens invisíveis aos relatos historicistas do IHB, a tentação <strong>de</strong> lê-los<br />

como capazes <strong>de</strong> trazer à tona a história dos vencidos é gran<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>ve ser refletida.<br />

Ao tentar traçar o mapa da memória e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira, através da<br />

articulação entre memória e esquecimento, Alencar elegeu alguns fatos para representar as<br />

imagens da nação. Se a criação <strong>de</strong> uma história nacional é uma das piéces <strong>de</strong> resistance <strong>de</strong><br />

um país civilizado, a proposta <strong>de</strong> inventariar – no sentido <strong>de</strong> inventar e reunir, por nós já<br />

aludido, a memória do país pela palavra ancora-se na proposta <strong>de</strong> uma história que resgate a<br />

voz dos vencidos, como a proposta por Benjamim.<br />

A memória dos vencidos ressalta o relato diverso, <strong>de</strong>sloca o olhar puramente<br />

exótico e capaz <strong>de</strong> esvaziar o índio <strong>de</strong> historicida<strong>de</strong>, e <strong>de</strong>nuncia a barbárie da conquista.<br />

Resgata o índio como sujeito histórico e cultural em um projeto <strong>de</strong> literatura nacional, no<br />

qual tece reflexões sobre a tradição literária, as transformações lingüísticas à história da<br />

nação e relaciona estes termos à organização social, política e cultural do país.<br />

Entretanto, ao resgatar a voz do outro, o texto alencarino incorre no mesmo<br />

“cadafalso” dos cronistas e viajantes, uma vez que fala pelo outro e interpreta-o <strong>de</strong> acordo<br />

com sua própria lógica <strong>de</strong> homem civilizado. Apesar <strong>de</strong> criticar tais textos por seu<br />

preconceito e ignorância etnográfica, <strong>de</strong> percebê-los como “andrajos”, restos que abafam a<br />

grandiosida<strong>de</strong> americana, o próprio Alencar apropria-se da cultura ameríndia como meio <strong>de</strong><br />

abordar os projetos <strong>de</strong> seu tempo e <strong>de</strong> sua classe. 25<br />

25 O trabalho <strong>de</strong> resgate da voz do outro permeia a reflexão crítica <strong>de</strong> Alencar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as “Cartas sobre A<br />

Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”, quando afirma que não bastaria a simples compilação <strong>de</strong> dados sobre o indígena


1 69<br />

Cabe perguntar ainda: quem são estes vencidos, estas vozes abafadas pela violência<br />

colonial? Os negros, não. A referência aos escravos é rara, aparecendo como elemento<br />

periférico 26 em seus textos.<br />

Po<strong>de</strong>ríamos apontar essa voz como a do aborígene. Contudo, o índio é representado<br />

como herói alegórico, representante i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> um passado livre e reivindicado pela classe<br />

hegemônica brasileira. Alencar confessa em “Benção Paterna” a extrema consciência da<br />

i<strong>de</strong>alização da imagem do indígena, constrastada à sua <strong>de</strong>cadência no oitocentos:<br />

No Guaruani, o selvagem é um i<strong>de</strong>al, que o escritor intenta<br />

poetizar, <strong>de</strong>spindo-o da crosta grosseira <strong>de</strong> que o envolveram<br />

os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele<br />

projetaram os restos embrutecidos da quase extinta raça.<br />

(ALENCAR, 1967, p. 69)<br />

Abafada pela leitura etnocêntrica do período colonial, caberia ao escritor restaurar<br />

através da i<strong>de</strong>alização a imagem do selvagem, tomada como signo construtor <strong>de</strong> uma<br />

continuida<strong>de</strong> artificial em relação à classe dominante contemporânea ao escritor. Como<br />

signo modulador <strong>de</strong> imagens nacionais, o indígena congrega forte carga simbólica e reune<br />

na força <strong>de</strong> sua imagem as idéias <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, unida<strong>de</strong> e orgulho pátrio.<br />

O vencido <strong>de</strong> ontem é o vencedor <strong>de</strong> hoje: o elemento central dos romances<br />

alencarinos, ao qual dá vez e voz, são os colonos, membros do grupo social que<br />

para a confecção <strong>de</strong> uma poesia nacional: a tarefa primordial do poeta consistiria em “vestir” a visão dos<br />

cronistas, através <strong>de</strong> uma linguagem especificamente brasileira e da reelaboração dos mitos e lendas<br />

indígenas. Existem outras metáforas , como a visão do olhar colonizador a respeito do índio como nu e cru,<br />

cabendo ao poeta vesti –lo com seu “realce”: “Quando examinei os caracteres principais d’A Confe<strong>de</strong>ração<br />

dos Tamoios, mostrei que o Sr. Magalhães havia <strong>de</strong>ixado em toda a sua nu<strong>de</strong>z cronística ou histórica, e tinha<br />

feito uma tradução em verso <strong>de</strong> algumas páginas <strong>de</strong> escritores bem conhecidos (...)Esses mesmos costumes e<br />

lendas achão –se, com alguma diferença <strong>de</strong> palavras, no Caramuru <strong>de</strong> Santa Rita Durão, o qual bebeu nos<br />

nossos cronistas, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> as tirou o Sr. Magalhães: o poeta contentou -se em referi-las como o versificador<br />

mineiro, e não se <strong>de</strong>u ao trabalho <strong>de</strong> vesti-las e orna-las com as belas imagens que <strong>de</strong>sperta sempre a<br />

cosmogonia <strong>de</strong> um povo, por mais bárbaro que seja” (ALENCAR, 1966)<br />

26 A exceção são as peças O <strong>de</strong>mônio familiar e Mãe; ainda assim, as personagens não são protagonistas; há<br />

certa ambigüida<strong>de</strong> na postura <strong>de</strong> Eduardo, senhor <strong>de</strong> Pedro, o “<strong>de</strong>mônio” da peça, ao conferir a alforria para<br />

que o escravo fosse punido com a condição <strong>de</strong> responsável por seus atos.


1 70<br />

historicamente conquistou a hegemonia durante e após o processo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência - os<br />

que tornar-se-iam os vencedores.<br />

Como “filho do novo mundo” (ALENCAR, 1966, p. 314), o colono é visto como o<br />

que congrega “as tradições da raça indígena”, pois “vive ao contato <strong>de</strong> quase todas as raças<br />

civilizadas que aportam a suas plagas trazidas pela emigração”, já que no Brasil “o<br />

estrangeiro é um veículo <strong>de</strong> novas idéias e um elemento da civilização nacional”<br />

(ALENCAR, 1966, p. 314). Alencar constrói um discurso em diálogo com a proposta<br />

<strong>de</strong>fendida por Martius em “Como se <strong>de</strong>ve escrever a história do Brasil”, texto vencedor do<br />

concurso proposto pelo Instituto Histórico Brasileiro, a pregar o amálgama racial como<br />

solução possível na busca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pátria.<br />

Neste sentido, Alencar categoriza os colonos e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes como:<br />

Os operários da transformação <strong>de</strong> nossas línguas são esses<br />

os representantes <strong>de</strong> tantas raças, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a saxônia até a<br />

africana, que fazem neste solo exuberante amálgama do<br />

sangue, das tradições e da língua. (ALENCAR, 1966, p.<br />

314).<br />

Assim, po<strong>de</strong>mos afirmar que em um Brasil que assistia a reelaboração <strong>de</strong> seu<br />

imaginário, a ficção <strong>de</strong> Alencar fez aflorar as ruínas históricas e psíquicas e a fundação <strong>de</strong><br />

novos sentidos na elaboração da me mória nacional.Esta reelaboração dialoga com o projeto<br />

<strong>de</strong> Alencar para a construção da literatura nacional, em uma perspectiva aproximada ao<br />

sistema <strong>de</strong> pensamento evolucionista <strong>de</strong> Spencer, bem como <strong>de</strong> Do grotesco e do sublime,<br />

prefácio <strong>de</strong> Victor Hugo a Cromwel, Alencar constrói e sistematiza um projeto orgânico<br />

para a literatura nacional, apresentado em “Benção Paterna”.<br />

Victor Hugo apresenta em Do grotesco e do sublime um manifesto romântico, no<br />

qual estabelece analogias classificatórias entre as três ida<strong>de</strong>s do gênero humano, as três


1 71<br />

fases históricas e três tipos <strong>de</strong> poesia: no tempo primitivo, a lírica; na antiguida<strong>de</strong>, a<br />

epopéia; e na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, o drama; assim, a literatura ligar-se-ia à História e reflexão<br />

sobre o literário abrangeria o pensar sobre a própria sensibilida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna.<br />

Alencar, ao contrário da proposta <strong>de</strong> Hugo, não liga <strong>de</strong> uma forma linear os<br />

períodos da literatura brasileira à temporalida<strong>de</strong> linear. Ao dividir a literatura <strong>de</strong> sua terra<br />

em três gran<strong>de</strong>s fases, classifica as obras não <strong>de</strong> acordo com o seu momento <strong>de</strong> produção,<br />

mas pela temática abordada.<br />

Assim, o que chama <strong>de</strong> fase primitiva abarca textos como Ubirajara e Iracema.<br />

São construções a partir da ruína, <strong>de</strong> uma terra ainda, mas prestes a ser dizimada e<br />

conquistada:<br />

A [fase] primitiva, que se po<strong>de</strong> chamar aborígine, são as<br />

lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as<br />

tradições que embalaram a infância do povo, e ele escutava<br />

como o filho que a mãe acalenta no berço com as canções da<br />

pátria que abandonou. (ALENCAR, 1966, p. 697, grifo<br />

nosso).<br />

Apenas em sua segunda fase, a literatura brasileira passa a ser um elo para a<br />

construção do histórico, já que a primeira fase ligar-se –ia aos mitos e lendas. O histórico<br />

nesta proposta começa com o a colonização, <strong>de</strong>nunciada como violenta em Ubirajara, mas<br />

percebida como consórcio neste texto crítico. O estatuto <strong>de</strong> histórico legitima-se na<br />

percepção da construção do povo brasileiro na fusão racial e da dominação portuguesa:<br />

O segundo período é histórico: representa o consórcio do<br />

povo invasor com a terra americana, que <strong>de</strong>le recebia a<br />

cultura, e lhe retribuía nos eflúvios <strong>de</strong> sua natureza virgem e<br />

nas reverberações <strong>de</strong> um solo esplêndido. (ALENCAR, 1966,<br />

p. 697).<br />

A terceira fase, relativa ao tempo coevo a Alencar, seria a da infância da literatura,<br />

gestada durante a colonização: “A terceira fase, a infância <strong>de</strong> nossa literatura, começada


1 72<br />

com a in<strong>de</strong>pendência política, ainda não terminou”. (ALENCAR, 1966, p. 697).<br />

Para escrever os livros da chamada primeira fase, Alencar precisou fazer da luz da<br />

ficção a bússola a orientá-lo na “penumbra ” da História. A restauração, em Iracema e<br />

Ubirajara, da memória indígena, explicita nas imagens elaboradas do passado a<br />

ambigüida<strong>de</strong>, por ele aludida em “Benção Paterna”, do presente. Se, muito especialmente<br />

em Ubirajara, a leitura dos ameríndios pelos cronistas é questionada, reelaborada e<br />

adaptada ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> interpretação do tempo pretérito por Alencar, por outro se pauta em<br />

sua visão <strong>de</strong> mundo, suas contradições e seus preconceitos.<br />

Apesar <strong>de</strong> situar Iracema e Ubirajara na categoria <strong>de</strong> lendas e mitos, a presença <strong>de</strong><br />

um tempo mítico, a-histórico e imemorial, a conferir significância às crenças e à visão <strong>de</strong><br />

mundo <strong>de</strong> um povo, escapa. A narrativa revela a marcação espacial e cronológica, e mesmo<br />

<strong>de</strong> forma implícita fala <strong>de</strong> um passado possível e instrumentaliza o suporte lendário como<br />

forma viável <strong>de</strong> reescrever a História em suas histórias.<br />

O discurso <strong>de</strong> Iracema é datado e o <strong>de</strong> Ubirajara refere-se ao momento anterior à<br />

chegada dos colonizadores. A ausência <strong>de</strong> datação cerrada nas narrativas opõe-se à<br />

abundância <strong>de</strong> referências espaciais. A localização espacial age como ponto <strong>de</strong> ligação da<br />

narrativa às imagens brasileiras, pois aloca a história ao território pátrio e anuncia, assim, a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber a narrativa como ponto <strong>de</strong> compreensão da origem brasileira.<br />

Ambos os romances são indiciados por uma localização espacial específica, todavia<br />

enquanto em Iracema há índices temporais, Ubirajara apresenta uma temporalida<strong>de</strong> menos<br />

<strong>de</strong>finida, mas marcada na espera da iminente catástrofe:<br />

As duas nações, dos araguaias e dos tocantins, formaram a<br />

gran<strong>de</strong> nação dos Ubirajaras, que tomou o nome do herói.<br />

Foi esta po<strong>de</strong>rosa nação que dominou o <strong>de</strong>serto.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, quando vieram os caramurus, guerreiros do mar,<br />

ela campeava ainda nas margens do gran<strong>de</strong> rio.


1 73<br />

Ubirajara, s.d., p.64)<br />

( ALENCAR,<br />

O argumento histórico presentes não só nas narrativas acimas como em O Guarani<br />

situa historicamente a narrativa, mas não prova a existência das personagens e tampouco<br />

confere à ficção o estatuto <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong>. A especificida<strong>de</strong> ficcional não é estrangulada pela<br />

exigência <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um microcosmos literário capaz <strong>de</strong> espelhar, no sentido estrito, um<br />

macrocosmos social.<br />

A proposta, anunciada em seus textos críticos, da liberação da poiese nos espaços<br />

em que o discurso historiográfico não penetrara, presentifica-se na preocupação <strong>de</strong><br />

esclarecer <strong>de</strong>terminados pontos da narrativa à luz da documentação histórica, como avisa o<br />

autor em Iracema, preocupado com uma possível censura <strong>de</strong> ter sido “infiel à verda<strong>de</strong><br />

histórica” ( ALENCAR,1980, p.13).<br />

Iracema e Ubirajara são, portanto, narrativas dotadas <strong>de</strong> temporalida<strong>de</strong> histórica,<br />

inclusive a segunda, inauguradora <strong>de</strong> uma temporalida<strong>de</strong> inexistente nos livros <strong>de</strong> História<br />

da época: o período pré-cabralino que, mergulhado na penumbra, só po<strong>de</strong> sobreviver na luz<br />

lançada pela ficção em um tempo suspenso entre os suportes mítico e histórico; nele, a<br />

libertação das correntes simbólicas impostas pela colonização ainda recente po<strong>de</strong>riam ser<br />

quebradas.<br />

Ubirajara <strong>de</strong>sconstruirá o paradigma histórico instaurador da origem nacional em<br />

1500 27 , data seminal, traduzida na legitimação i<strong>de</strong>ológica do domínio metropolitano<br />

português e no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> naturalizar uma unida<strong>de</strong> política e territorial árdua e<br />

violentamente conquistada.<br />

27 Nos manuais históricos da época, como o <strong>de</strong> Varnhagen e Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo, o marco original do<br />

Brasil situa-se no ano da chegada dos portugueses; quando há, no discurso histórico da época, referência a<br />

uma temporalida<strong>de</strong> anterior não há a vinculação <strong>de</strong>ste tempo a um tempo nacional.


1 74<br />

O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> reverberar a imagem <strong>de</strong> um país uno, em diversos níveis, está presente<br />

também nesse romance. Por outro lado, Ubirajara inaugura um marco histórico alternativo,<br />

ao historicizar o tempo pré-cabralino. Este direcionamento na narrativa dota <strong>de</strong> sentido um<br />

tempo cronológico <strong>de</strong>sprezado. O romance contribui para a fundação <strong>de</strong> um novo<br />

imaginário histórico ao romper com um tempo histórico colonizador que marca a origem do<br />

Brasil a partir da conquista, resgatando o que foi apagado pela escrita da voz do vencedor,<br />

pelo relato oficial da História.<br />

A representação do rio Paquequer, em O Guarani, também alegoriza a concepção<br />

<strong>de</strong> um tempo histórico alternativo, construído na analogia entre as relações do Paquequer e<br />

do Paraíba e da metrópole com a colônia. Assim como o rio é livre em sua foz e submete-se<br />

ao Paraíba, a pátria submetida a Portugal era livre nos primórdios. A enchente anuncia a<br />

revolta do rio servil e conduz à <strong>de</strong>struição.<br />

É o retorno à “foz” (ligada implicitamente a Peri, o “filho indômito <strong>de</strong>ssa pátria <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong>”) que a narrativa <strong>de</strong> “Ubirajara” metaforiza: o retorno a um passado reelaborado,<br />

carregado <strong>de</strong> esperanças em um futuro conjugado como o futuro do pretérito 28 :<br />

a idéia <strong>de</strong> um organismo sociológico que se move pelo<br />

calendário através do tempo vazio apresenta uma analogia<br />

precisa com a idéia <strong>de</strong> nação, que também é concebida como<br />

uma comunida<strong>de</strong> compacta que se move firmemente através<br />

da história. (ANDERSON, s.d., p.34)<br />

Ubirajara contribui para a fundação <strong>de</strong> um novo imaginário histórico ao romper<br />

com um tempo histórico colonizador que marca a origem do Brasil a partir da conquista;<br />

com a metodologia do restaurador, o narrador remove a “crosta” e tenta criar uma outra<br />

visão do tempo histórico, em um discurso pautado pela diferença cultural, na medida em<br />

28 “A filosofia da história <strong>de</strong> Benjamin se <strong>de</strong>sdobra no tempo paradoxal do futuro do pretérito”. Peter Szondi,<br />

apud GAGNEBIN, Jeanne. “Walter Benjamin”.


1 75<br />

que não busca uma origem pré – estabelecida, mas estabelece, através do discurso, sua<br />

fundação. 29<br />

A localização da origem do povo brasileiro antes do momento da conquista libera a<br />

história brasileira da européia: leitura viabilizada pela condição ficcional. Esta proposta está<br />

presente também no folhetim “O Rio <strong>de</strong> Janeiro”, ao situar o início do tempo histórico à<br />

“existência política”, relacionada por ele ao momento inicial da colonização. Contudo, a<br />

sua proposta é <strong>de</strong> extrapolar este marco e abordar uma temporalida<strong>de</strong> prévia e chamada por<br />

ele <strong>de</strong> mitológica:<br />

A minha história, ou antes a minha memória, abre-se<br />

rigorosamente no momento em que se lançou à (sic) primeira<br />

pedra da construção da cida<strong>de</strong>; é daí que começou a sua<br />

existência política, é daí pois que <strong>de</strong>ve principiar a missão do<br />

historiador.<br />

Entretanto tomei a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver anteriormente a<br />

cena on<strong>de</strong> se passarão os primeiros acontecimentos, e dizer<br />

alguma cousa sobre o passado obscuro <strong>de</strong>ssa terra ainda<br />

<strong>de</strong>sconhecida, sobre aquilo que bem podíamos chamar os<br />

tempos mitológicos da cida<strong>de</strong>.<br />

(ALENCAR APUD FREIXIEIRO, 1981, p. 110).<br />

Desta forma, po<strong>de</strong>mos pensar que “the notion of historical origins is <strong>de</strong>familiarized<br />

if the new nations can <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> where national history begins, if origin is chosen rather than<br />

given” (WASSERMAN, 1994, p. 194): e a partir do momento em que a origem é escolhida<br />

e não dada são dissolvidos laços po<strong>de</strong>rosos <strong>de</strong> dominação simbólica.<br />

29 HELENA, Lucia. “Nação, narração e fundação: José <strong>de</strong> Alencar e Machado <strong>de</strong> Assis”, p.4.


1 76<br />

A escrita alencarina reescreve <strong>de</strong>terminadas facetas do discurso historiográfico em<br />

um momento em que escrita e memória formavam um par intrinsecamente relacionado:<br />

segundo o historicismo, os povos sem escrita não possuíam história. A visão do aborígene<br />

era a apresentada pelos textos coloniais.<br />

Estes textos servirão <strong>de</strong> contraponto à tessitura da ficção alencarina, como falamos,<br />

sendo reelaborados em torno <strong>de</strong> uma nova concepção das relações entre civilização e<br />

barbárie, invertendo por vezes a lógica <strong>de</strong>sta relação, em um possível intertexto com<br />

Rousseau e Montaigne 30 (este último citado nas notas <strong>de</strong> Ubirajara):<br />

Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, se<br />

não <strong>de</strong> todo o período colonial, <strong>de</strong>vem ser lidos à luz <strong>de</strong> uma<br />

crítica severa. É indispensável sobretudo escoimar os fatos<br />

comprovados das fábulas a que serviam <strong>de</strong> mote, e das<br />

apreciações a que os sujeitavam espíritos acanhados, por<br />

<strong>de</strong>mais embuídos <strong>de</strong> uma intolerância ríspida.<br />

( ALENCAR, s.d., p. 65)<br />

As estratégias poéticas <strong>de</strong> Ubirajara reavaliam os textos coloniais e <strong>de</strong>slocam a<br />

relação colonizador/colonizado ao <strong>de</strong>nunciar a barbárie da conquista:<br />

Homens cultos, filhos <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> velha e curtida por<br />

longo trato <strong>de</strong> séculos, queriam esses forasteiros achar nos<br />

indígenas <strong>de</strong> um mundo novo e segregado da civilização<br />

universal uma perfeita conformida<strong>de</strong> <strong>de</strong> idéias e costumes.<br />

Não se lembravam, ou não sabiam, que eles mesmos<br />

provinham <strong>de</strong> bárbaros ainda mais ferozes e grosseiros do<br />

que os selvagens americanos. Foi <strong>de</strong>pois da colonização, que<br />

os portugueses assaltando-os como feras e caçando-os a<br />

<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> cão, ensinaram-lhes a traição que não conheciam. A<br />

raça invasora buscava justificar suas cruezas rebaixando<br />

aborígenes à condição <strong>de</strong> feras, que era forçoso montear.<br />

(ALENCAR, Ubirajara, s.d., pp.65, 69 e 78).<br />

30 Alguns cronistas, viajantes e autores <strong>de</strong> textos produzidos no período colonial citados por José <strong>de</strong> Alencar<br />

nas notas <strong>de</strong> O Guarani, Ubirajara e Iracema: Gabriel Soares <strong>de</strong> Sousa, Antonio Vieira, Carl Friedrich Von<br />

Martius, Jean <strong>de</strong> Lé ry, Simão <strong>de</strong> Vasconcelos, Ives d´Evrèux. O autor vale -se também <strong>de</strong> estudos <strong>de</strong> seu<br />

contemporâneo, Gonçalves Dias.


1 77<br />

A narrativa indianista <strong>de</strong> Alencar não se restringe, portanto, a uma recuperação da<br />

instância mítica como modo <strong>de</strong> exclusão da historicida<strong>de</strong>, tampouco resolve <strong>de</strong> forma<br />

tranqüila os conflitos entre colonizador e colonizado. Se em O Guarani, <strong>de</strong> 1857, interesses<br />

contrários em diversos níveis são conciliados (mas não todos, tensão que encontrou a<br />

solução no trágico), em Ubirajara, <strong>de</strong> 1874, estes conflitos emergirão com mais vitalida<strong>de</strong><br />

nas notas 31 da narrativa, <strong>de</strong>monstrando um refinamento da reflexão alencariana sobre as<br />

questões da cultura e da barbárie.<br />

O suporte lendário apresenta esta tensão, e a presença mítica conecta a narrativa aos<br />

discursos circulantes na socieda<strong>de</strong> sobre a fundação <strong>de</strong> suas origens, inventando tradições,<br />

já que<br />

Por “tradição inventada” enten<strong>de</strong>-se um conjunto <strong>de</strong> regras<br />

práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou<br />

abertamente aceitas; tais práticas, <strong>de</strong> natureza ritual ou<br />

simbólica, visam inculcar certos valores e normas <strong>de</strong><br />

comportamento através da repetição, o que implica<br />

automaticamente: uma continuação com o passado. Aliás,<br />

sempre que possível, tenta-se estabelecer continuida<strong>de</strong> com<br />

um passado histórico apropriado.(HOBSBAWN, 1997, p.9)<br />

Po<strong>de</strong>ríamos assim dizer que há nestas narrativas a produção <strong>de</strong> uma mitologia<br />

ficcional sobre a própria mitologia indígena passível <strong>de</strong> ser percebida como uma mitologia<br />

<strong>de</strong> segundo grau, conceito que emprestamos <strong>de</strong> Barthes.<br />

A idéia <strong>de</strong> uma mitologia segunda, que visa à naturalização <strong>de</strong> imagens artificiais,<br />

31 As notas <strong>de</strong> Ubirajara não <strong>de</strong>vem ser lidas à margem da narrativa; nelas, o esforço reflexivo sobre<br />

os textos coloniais chega ao seu ápice, pela voz <strong>de</strong> um narrador capaz <strong>de</strong> mediar o processo <strong>de</strong> leitura das<br />

ruínas da memória indígena, reelaborando-a a partir <strong>de</strong> sua própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e visão <strong>de</strong> mundo.<br />

Não só em Ubirajara , mas em outros textos alencarinos, as notas são valorizadas, <strong>de</strong> acordo com a<br />

proposta estética romântica, como a via <strong>de</strong> compreensão do processo autoral e relacionadas à expressão da<br />

subjetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro da relação leitor / autor. São um importante instrumento na construção da<br />

verossimilhança narrativa, revelando a erudição do autor e os seus intertextos.<br />

Nas notas alencarinas há muito mais a elaboração <strong>de</strong> hipóteses do que a indicação <strong>de</strong> certezas.


1 78<br />

po<strong>de</strong> ser percebida na proposta romântica <strong>de</strong> um modo geral, já que esta conceberia o<br />

estudo da mitologia popular como material primordial para a compreensão das tradições do<br />

povo, o que por sua vez franquearia o acesso à sua “alma”. Her<strong>de</strong>r, neste sentido, proporá a<br />

<strong>de</strong>finição da mitologia como:<br />

tanto colecção e sistema dos mitos <strong>de</strong> um povo, como a<br />

ciência que se ocupa do seu significado...tornou-se<br />

freqüentemente como estágio necessário ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />

da história da humanida<strong>de</strong>, uma “ida<strong>de</strong> mítica” assinalada<br />

por uma “consciência mítica” especial. (APUD BURKERT,<br />

s.d., p.15-16).<br />

Ao confrontarmos a visão her<strong>de</strong>riana à proposta alencarina po<strong>de</strong>mos perceber,<br />

mesmo que Alencar jamais o tivesse lido, como ponto <strong>de</strong> interseção a articulação entre o<br />

nacionalismo, o saber popular e a presença <strong>de</strong> uma ida<strong>de</strong> mítica, comum a todos os grupos<br />

da humanida<strong>de</strong>; em Alencar, estes elementos serão organizados no processo <strong>de</strong><br />

reelaboração <strong>de</strong> imagens nacionais, a partir das ruínas presentes no imaginário.<br />

As ruínas não estão presentes só no que concerne à releitura da cultura ameríndia,<br />

mas se articulam à construção <strong>de</strong> outros textos, alu<strong>de</strong>m às ruínas dos centros urbanos -<br />

catrizes a servirem <strong>de</strong> gatilho para a restauração <strong>de</strong> imagens do passado pelo discurso<br />

literário, ou às ruínas das relações humanas, em um tempo em que o capitalismo fragiliza<br />

os laços interpessoais.<br />

No primeiro volume <strong>de</strong> Guerra dos Mascates, por exemplo, o narrador<br />

ironicamente anuncia no prólogo uma advertência, “indispensável contra enre<strong>de</strong>iros e<br />

maldizentes”, para “evitar certos comentos”, pois “não faltariam malignos que julgassem<br />

ter sido esta crônica inventada à feição e sabor dos tempos <strong>de</strong> agora” no “tocante às cousas<br />

da governança” (ALENCAR, 1966, p. 33).


1 79<br />

Ao <strong>de</strong>stacar a <strong>de</strong>fesa contra a possível acusação <strong>de</strong> parodiar o universo político <strong>de</strong><br />

seu tempo no microcosmos fictício do tempo colonial, Alencar, <strong>de</strong> forma paradoxal (e <strong>de</strong><br />

propósito?) assume o engenho 32 .<br />

É nessa advertência que se dá o anúncio da <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> uma caixa contendo<br />

três antigualhas, dignas <strong>de</strong> uma memória do Instituto<br />

Histórico. Eram: uma cabeleira <strong>de</strong> rabicho que naturalmente<br />

pertenceu ao último juiz do povo; uma liga <strong>de</strong> belbute com<br />

atacadores <strong>de</strong> prata em forma <strong>de</strong> corações, a<strong>de</strong>reço<br />

casquilho <strong>de</strong> alguma Egéria dos tempos coloniais; e<br />

finalmente um grosso rolo <strong>de</strong> escrita enleado com um<br />

cadarço do Lamego (ALENCAR, 1966, p.27).<br />

As ruínas do passado po<strong>de</strong>m ser manipuladas pelo escritor em uma leitura alegórica,<br />

no sentido benjaminiano, capaz <strong>de</strong> dotar <strong>de</strong> sentido os fragmentos que se apresentam como<br />

índice e enigma <strong>de</strong> um tempo outro.<br />

Como fetiches, os objetos da caixa são alvos <strong>de</strong> leituras confusas. A comicida<strong>de</strong><br />

vela a violenta crítica aos <strong>de</strong>smandos políticos e estabelece, via ironia, o elo entre o coevo e<br />

o passado, presente, aliás, na imagem do narrador como mediador <strong>de</strong> um documento em<br />

ruínas, como ocorre também em O Guarani.<br />

Os fragmentos da memória popular reelaborados nos romances alencarinos seriam<br />

recolhidos na tradição oral em quadrinhas, canções ou nas reminiscências dos mais velhos,<br />

<strong>de</strong>slocados em meio aos novos signos impostos pelo capitalismo.<br />

A maior dificulda<strong>de</strong> apontada por Alencar em sua pesquisa sobre o cancioneiro<br />

popular seria a tocante à coleta e à compilação do material poético, feita especialmente<br />

através da memória voluntária <strong>de</strong> pessoas das classes populares e <strong>de</strong> sua própria lembrança,<br />

32 Esta prevenção é relativizada no segundo volume do romance, com a dicção irônica peculiar a este<br />

romance: “Ora, o autor não preten<strong>de</strong> certamente <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se do pecado <strong>de</strong> uma ou outra alusão, que lhe corre<br />

às vezes sem querer dos bicos da pena. Mas essas <strong>de</strong>masias, não as têm sobre a política, que já é <strong>de</strong> si um<br />

longo e interminável epigrama ” (ALENCAR, 1966, p. 111).


1 80<br />

ainda que as canções não lhe fossem mais que uma parca reminiscência da infância.<br />

A mediação entre o escritor e o anelo perdido da pureza popular é realizada então<br />

pelas crianças, signo do ingênuo e incontaminado, e principalmente pelos idosos,<br />

entendidos como <strong>de</strong>positários da tradição. José <strong>de</strong> Alencar <strong>de</strong>screveu emp olgado seu<br />

encontro com um senhor, “o velho Felipe”, apesar <strong>de</strong> lhe ter sido basicamente inútil, por<br />

não recordar mais do que uma quadra da poesia que procurava: “Este velho é um livro<br />

curioso. Aprendi mais com ele do que com uma biblioteca, on<strong>de</strong> não encontraria as<br />

antigualhas que me contou”(ALENCAR, 1994, p. 34).<br />

Alencar visa sanar essa dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> angariar material através da proposição <strong>de</strong><br />

uma “metodologia” <strong>de</strong> coleta similar ao procedimento <strong>de</strong> “restauração <strong>de</strong> antigos painéis”,<br />

como vimos, tornando legítimo a compilação <strong>de</strong> três ou quatro versões <strong>de</strong> um romance em<br />

uma única.<br />

A “missão do compilador” seria, pois, reescrever o texto, apagando através das<br />

próprias corruptelas outras on<strong>de</strong> não coubesse o “traço primitivo e original” que buscava na<br />

poesia popular, tendo o escritor a missão <strong>de</strong> resgatar tais tradições realizando uma<br />

“ressurreição literária”, e as inscrevendo na tessitura da memória nacional, como símbolos<br />

<strong>de</strong> representação do caráter e da natureza brasileiros; e também <strong>de</strong> inscrição no círculo das<br />

nações consi<strong>de</strong>radas paradigmaticamente como civilizadas: possuir uma memória nacional<br />

era um dos requisitos primordiais para o reconhecimento <strong>de</strong> um país como civilizado.<br />

Alencar lembra a questão ao se queixar do não reconhecimento da importância da poesia<br />

popular sertaneja por alguns:<br />

Haverá muito quem lamente o espaço tomado com estas<br />

histórias <strong>de</strong> boi. É da or<strong>de</strong>m das cousas que as preocupações<br />

do presente absorvam a atenção pública. Por <strong>de</strong>sconto muitas<br />

nações cultas se interessam pelos singelos carmes <strong>de</strong> sua<br />

infância, e os conservam como tradições venerandas; que,


1 81<br />

entretanto, não guardaram na memória do aluvião <strong>de</strong><br />

palavras gastas com os negócios da república. (ALENCAR,<br />

1994, p. 37).<br />

Na carta número três <strong>de</strong> O nosso cancioneiro, Alencar revelava a preocupação com<br />

essa escassez e dificulda<strong>de</strong> em coletar material para seus estudos sobre o folclore, perdidos<br />

e <strong>de</strong>formados pela transmissão oral, em sua opinião. Frente à tentativa <strong>de</strong> reconstruir as<br />

tradições do povo, em um país cuja intelectualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>svalorizava a memória popular,<br />

elaborou um método <strong>de</strong> trabalho para os possíveis candidatos à folclorista. Como já vimos:<br />

Este método comparava o trabalho do pesquisador da<br />

tradição popular ao do restaurador <strong>de</strong> quadros e sugeria a<br />

interferência direta do primeiro, retocando o material<br />

coletado, inventando e complementando-o, visando com isto<br />

restabelecer o (seu) traço primitivo (ALENCAR, 1966, p.<br />

972).<br />

A concepção sobre o popular presente em seus textos vincula-se ao posicionamento<br />

alencarino em relação às classes subalternas e o seu cotidiano, criado em diálogo com as<br />

convenções da elite intelectual romântica, que ten<strong>de</strong> a associar a ingenuida<strong>de</strong> – presente nas<br />

imagens do velho e da criança – à genuida<strong>de</strong>. A condição <strong>de</strong> popular remete ainda ao<br />

anonimato a respaldar, seja no suporte oral ou escrito, a procura <strong>de</strong> caminhos para se pensar<br />

a nação. Tais convenções alu<strong>de</strong>m à tentativa <strong>de</strong> superação da voz do eu/indivíduo pela voz<br />

do nós/ nação, ao tecer a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento dos sujeitos como membros da<br />

mesma pátria.<br />

Assim, como aludimos, a pureza da criança e a experiência do velho ligar-se-iam à<br />

idéia <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, já que alu<strong>de</strong>m à inocência e ao empirismo. Se no imaginário europeu a<br />

figura do camponês perfazia-se como elo entre o compilador e as tradições perdidas do<br />

passado, no Brasil ele é representado pelos signos do ancião e do infante, percebidos como


1 82<br />

guardiães da memória. Esta postura resgata as tradições populares do rótulo <strong>de</strong><br />

irracionalistas a elas imprimidas pelo Iluminismo.<br />

A remissão a estas imagens liga-se à tentativa <strong>de</strong> valorização da cultura popular;<br />

latentes <strong>de</strong> resíduos à espera <strong>de</strong> uma leitura que os ressignifiquem, estas referência revelam<br />

a missão tomada por Alencar <strong>de</strong> restaurar – na perspectiva da restauração – quadros da<br />

memória coletiva. Resgate intranqüilo e áporo pois, como vimos, a poética da restauração<br />

mo<strong>de</strong>la no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> leitura dos cacos da memória perdida a imaginação <strong>de</strong> uma ponte com<br />

o presente, simulando artificialmente a idéia <strong>de</strong> uma tradição contínua e <strong>de</strong>positada em<br />

núcleos capazes <strong>de</strong> mantê-la inviolável pela experiência, pelo isolamento ou pela<br />

ingenuida<strong>de</strong>.<br />

A fundamentação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> forjada na tensão entre um passado imaginado<br />

e o presente que o imagina revela-se ainda na remissão ao topos do manuscrito. O<br />

pergaminho contém a experiênc ia das gerações passadas; o autor é aquele que o salva da<br />

transitorieda<strong>de</strong> da memória, tornando a experiência pública ao passá-la para frente através<br />

do suporte da escrita.<br />

Signo da sobrevivência, pela escrita, da lembrança frente ao esquecimento, ele<br />

chega em ruínas às mãos do narrador, como já aludido, em O Guarani:<br />

...quero aproveitar as minhas horas <strong>de</strong> trabalho em copiar e<br />

remoçar um velho manuscrito que encontrei em um armário<br />

<strong>de</strong>sta casa, quando a comprei.<br />

Estava abandonado e quase todo estragado pela umida<strong>de</strong> e<br />

pelo cupim...(ALENCAR, 1995, p.10)<br />

A simulação pela voz narrativa da <strong>de</strong>scoberta do texto em ruínas constrói-se como<br />

metonímia <strong>de</strong> uma memória coletiva fragmentada como o manuscrito. As ruínas da


1 83<br />

memória / manuscrito são pistas a serem <strong>de</strong>cifradas pelo escritor na construção <strong>de</strong> imagens<br />

do passado, sempre filtradas pelo olhar coevo.<br />

O resgate da memória é possibilitado pela palavra, que a salva e a “remoça”,<br />

elevando o texto para além da mera cópia e o autor à condição <strong>de</strong> restaurador, capaz <strong>de</strong><br />

criar nos interditos provocados pela <strong>de</strong>struição <strong>de</strong>ste texto-memória.<br />

Memória e imaginação dialogam entre si: ao jogo da memória (em torno da<br />

encenação, pela voz narrativa, do encontro do manuscrito em ruínas, o que po<strong>de</strong> ser lido<br />

como analogia da memória coletiva brasileira) articula-se o papel fulcral da imaginação, a<br />

capacitar a mediação entre passado e presente, proposta pelo narrador, e percebida como<br />

peça chave no exercício <strong>de</strong> leitura do passado. Como restaurador, o escritor pinta com cores<br />

ficcionais a penumbra <strong>de</strong>ixada pela História.<br />

A relação entre a ruína e o trágico emerge na narrativa na irrisão das relações entre<br />

colonizador e colonizado, resolvidas ficcionalmente no gran<strong>de</strong> incêndio sofrido pela Casa<br />

<strong>de</strong> Mariz 33 , e no final em aberto, após o dilúvio do qual Peri e Ceci escapam (?) em uma<br />

palmeira. Água e fogo, signos a carregar a ambigüida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>struição e da salvação,<br />

instauram a dúvida sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência da memória coletiva face à lábil<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira e indicam a leitura da história como catástrofe: as ruínas anunciadas<br />

no manuscrito retornam ao final do romance.<br />

É a catástrofe – tanto o incêndio, quanto o dilúvio – que, paradoxalmente, aprofunda e<br />

limita a relação entre Peri e Ceci; aproxima, ao fazer <strong>de</strong> Ceci “uma verda<strong>de</strong>ira americana” e<br />

ao permiti-la enxergar Peri não mais como amigo, mas como “um herói”: potencializado no<br />

33 Em As minas <strong>de</strong> prata reaparece a personagem Diogo <strong>de</strong> Mariz, como único sobrevivente da catástrofe: “ D.<br />

Diogo <strong>de</strong> Mariz teria cerca <strong>de</strong> trinta e cinco anos; mas os últimos cinco <strong>de</strong>corridos <strong>de</strong>pois da catástrofe que<br />

lhe roubara <strong>de</strong> um só golpe toda a família, haviam assolado aquela mocida<strong>de</strong> robusta e viçosa...recordava-se<br />

com <strong>de</strong>sespero que fora ele, inconsciente é verda<strong>de</strong>, a causa primeira da calamida<strong>de</strong> que o isolara do mundo”.<br />

(ALENCAR, s.d., p. 343).


1 84<br />

espaço da selva, Peri recupera a aura <strong>de</strong> epicida<strong>de</strong>, condição proibitiva no espaço da<br />

civilização.<br />

Como solução complexa ao impasse da relação entre a colona e o selvagem, o mito<br />

indígena do dilúvio remete à própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira, colocada, como o casal no<br />

horizonte: promessa a ser alcançada e nunca cumprida:<br />

Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao<br />

olho da palmeira...Todos morreram. A água tocou o céu três<br />

sóis com três noites; <strong>de</strong>pois baixou; baixou até que <strong>de</strong>scobriu<br />

a terra. Quando veio o dia, Tamandaré viu que a palmeira<br />

estava plantada no meio da várzea; e ouviu a avezinha do<br />

céu, o guanaumbi, que batia as asas. Desceu com sua<br />

companheira e povoou a terra ( I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p.201 e 202).<br />

A escolha pelo mito <strong>de</strong> Tamandaré constrói um ponto <strong>de</strong> interseção entre as culturas<br />

ameríndia e cristã, por sua analogia em relação ao mito bíblico <strong>de</strong> Noé, e impõe a tensão<br />

entre o <strong>de</strong>sespero e a esperança, a vida e a morte. A dúvida, semeada pelo final a sumir no<br />

horizonte narrativo, manipula tanto o topos universal do dilúvio, quanto a alegoria das<br />

ruínas. A catástrofe emerge como contradição proponente da purificação e da reconstrução,<br />

em uma promessa que não se realiza a não ser na espera e na dúvida intencionais.<br />

O final em aberto em O Guarani dissolve as certezas e dribla a fórmula folhetinesca<br />

do final feliz; torna-se mais importante do que o amor entre Peri e Ceci a indagação sobre a<br />

formação nacional e a construção i<strong>de</strong>ntitária: como construir algo, fruto da <strong>de</strong>struição que<br />

somos, torna-se a questão fundamental por trás do pano romanesco.<br />

Em Iracema, o início da narrativa já anuncia a fragilida<strong>de</strong> como condição<br />

representativa da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira, ao projetar a relação espaço-tempo em um locus<br />

aparentemente utópico, “além, muito além daquela serra” (ALENCAR, 1980, p. 14) -que<br />

ainda “azula” no horizonte, pontificando o elo com o agora - já que a utopia, stricto sensu, é


1 85<br />

dissolvida pelo emolduramento histórico das notas, a servir <strong>de</strong> contraponto à criação <strong>de</strong><br />

quadros da memória a partir da imaginação.<br />

Fragilida<strong>de</strong> passível <strong>de</strong> ser lida na primeira imagem da narrativa, a da jangada que<br />

ruma ao horizonte, com Martim, Moacir e um cão, em um momento em que Iracema não<br />

mais existe senão como eco, recordação e ruína.<br />

Moacir, o primeiro brasileiro, personagem cercado <strong>de</strong> silêncio pela narrativa, ruma<br />

ao horizonte sem saber para on<strong>de</strong> ir: o seu <strong>de</strong>stino é mergulhado no vazio . As notas do<br />

romance indicam o futuro <strong>de</strong> Martim como fundador da “mairi” cristã, mas a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

brasileira apresenta-se como enigma. Como memória do encontro entre o colonizador e o<br />

colonizado, Moacir tem a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> suspensa entre os liames da natureza e da cultura,<br />

situados na fronteira entre os tripulantes da jangada: Martim, pertencente ao espaço da<br />

cultura, e o cão, ao da natureza.<br />

A personagem é o “primeiro” cearense que “ainda no berço, emigrava da terra da<br />

pátria ” (ALENCAR, 1980, p. 86). Ser cearense po<strong>de</strong> significar mais do que habitar o<br />

território a ser conhecido como o Ceará. O conceito <strong>de</strong> pátria, até o século XIX, <strong>de</strong>signava<br />

o local <strong>de</strong> nascimento. Ao referir a Moacir emigrando <strong>de</strong> sua pátria, a ambigüida<strong>de</strong><br />

instaura-se na narrativa: Moacir é cearense porque marca o encontro entre as duas raças que<br />

disputaram aquele espaço, o que o torna, em sua condição <strong>de</strong> mestiço, “filho da dor”,<br />

brasileiro.<br />

Paz nos lembra sobre o modo como o batismo prece<strong>de</strong>nte à realida<strong>de</strong> moldou a<br />

labilida<strong>de</strong> da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> americana: “O nome que nos <strong>de</strong>ram nos con<strong>de</strong>nou a ser um mundo<br />

novo. Terra <strong>de</strong> eleição do futuro: antes <strong>de</strong> ser, a América já sabia como iria ser” (PAZ,<br />

2003, p. 127). Tal condição faria do colono um ser <strong>de</strong>slocado por excelência, pois “mal se<br />

transplantou para as nossas terras o emigrante europeu já perdia a sua realida<strong>de</strong> histórica:


1 86<br />

<strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ter passado e convertia -se em um projeto <strong>de</strong> futuro” 34 (PAZ, 2003, p. 127). O<br />

silêncio em torno <strong>de</strong> Moacir, o primeiro brasileiro, po<strong>de</strong> ser lido pela compreensão do<br />

<strong>de</strong>slocamento do americano, palavra que <strong>de</strong>signara durante mais <strong>de</strong> trezentos anos “um<br />

homem que não se <strong>de</strong>finia pelo que fizera e sim pelo que faria” (PAZ, 2003, p. 127). A<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> enigmática une-se à projeção <strong>de</strong> um futuro-mais-que-perfeito, inalcançável, o<br />

que torna o americano “um ser <strong>de</strong> pouca realid a<strong>de</strong>” (PAZ, 2003, p. 127), sem passado, não<br />

tendo “mais do que o futuro”: “Americanos: homens <strong>de</strong> pouca realida<strong>de</strong>, homens <strong>de</strong> pouco<br />

peso” (PAZ, 2003, p. 127).<br />

Moacir liga-se aos brasileiros <strong>de</strong> outras localida<strong>de</strong>s, através <strong>de</strong> sua história, pela<br />

mestiçagem. Ser cearense significa não ser: indígena ou colonizador. Moacir não pertence<br />

aos povos <strong>de</strong> Iracema e Martim, mas ao povo brasileiro, resultado do choque e do<br />

sofrimento. A diferença instaura a construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> terceira.<br />

Pensada como alegoria da nação, a personagem título é violada e esquecida, pois<br />

“Tudo passa sobre a terra”. A relação impossível com Martim, solucionada na narrativa<br />

com a sua morte, a faz caminhar rumo à catástrofe, tão mais perto quanto mais Iracema<br />

afasta-se do espaço selvagem, rumo ao litoral, local limítrofe <strong>de</strong> sua sobrevivência física e<br />

simbólica.<br />

Na tensão entre memória e esquecimento presente na narrativa, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sobrevivência da memória <strong>de</strong> Iracema é a <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> pistas – ainda que imaginárias,<br />

para a construção <strong>de</strong> imagens alternativas do passado brasileiro, construída em intenso<br />

diálogo com os textos coloniais e historicistas, em um exercício <strong>de</strong> criação e reelaboração.<br />

34 O <strong>de</strong>senraizamento como condição do colono é metaforizado em As minas <strong>de</strong> prata e em Guerra dos<br />

Mascates, por exemplo, como mostraremos na próxima parte do trabalho.


1 87<br />

Esquecida por sua ave <strong>de</strong> estimação, a lembrança <strong>de</strong> Iracema sobrevive no filho Moacir,<br />

garantia lábil, já que este apaga-se na narrativa. A Martim resta a sombra <strong>de</strong> Iracema, ruína<br />

<strong>de</strong> uma lembrança <strong>de</strong>stinada . a morrer:<br />

A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que<br />

ressoa entre o marulho das vagas:<br />

-Iracema!<br />

O moço guerreiro, encostado ao<br />

mastro, leva<br />

os olhos presos na sombra fugitiva da<br />

terra...<br />

(ALENCAR, p.<br />

12)<br />

Neste quadro, cabe ao narrador estabelecer a mediação entre os restos <strong>de</strong>ssa história<br />

e o leitor. Ao exumar a morta Iracema dos ecos da tradição oral 35 o narrador a legitima<br />

como “fonte importante da história, e às vezes a mais pura e verda<strong>de</strong>ira” (ALENCAR,<br />

1980, p. 13), pois percebida como resgardada em um núcleo protetor, criado pelo<br />

afastamento entre interior e metrópole e pela ingenuida<strong>de</strong>/genuida<strong>de</strong> resguardadas no<br />

anonimato das vozes transmissoras da lenda 36 . Assim como a jangada à <strong>de</strong>riva, na cena<br />

inicial, a lenda <strong>de</strong> Iracema paira, como promessa <strong>de</strong> um mistério a ser <strong>de</strong>cifrado, como<br />

ruína a ser exumada. A sua leitura perfaz-se como potência <strong>de</strong> enunciação <strong>de</strong> signos<br />

<strong>de</strong>rivados da imaginação criativa, a <strong>de</strong>cifrar o legado fragmentado <strong>de</strong> uma história possível.<br />

Se as notas revelam a erudição e a intenção autoral, a narrativa, por sua vez, simula<br />

o narrador como editor <strong>de</strong> um legado oral, <strong>de</strong>ixado por Martim, personagem fictício<br />

inspirado em Martim Soares Moreno, na visão do narrador mais do que “um dos excelentes<br />

35<br />

Por outro lado, a própria tradição oral era na maior parte das vezes acessada em compilações, em uma<br />

leitura filtrada pelo olhar da elite intelectual.<br />

36<br />

Entretanto, alguns anos mais tar<strong>de</strong>, em As minas <strong>de</strong> prata, a tradição é representada como passível <strong>de</strong> ser<br />

falsa, no diálogo entre Estácio e Vaz Caminha: “- Sei <strong>de</strong>la (da história sobre as minas <strong>de</strong> prata) o que me tem<br />

ensinado a tradição popular; contam que meu pai conhecia o segredo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s minas <strong>de</strong> prata, que recusou<br />

<strong>de</strong>scobrir por lhe haver El-Rei negado a recompensa que pedia.<br />

- A tradição mente, filho.” ( ALENCAR, 1977, p. 25)


1 88<br />

cabos portugueses que libertaram o Brasil da invasão holan<strong>de</strong>sa”, mas o “verda<strong>de</strong>iro<br />

fundador” do Ceará (ALENCAR, 1980, p.12 e p. 13), posto que semeia, para além <strong>de</strong> uma<br />

nova territorialida<strong>de</strong>, a miscigenação, o primeiro cearense.<br />

O legado mais precioso <strong>de</strong> Martim não é, entretanto, Moacir, seu filho e o primeiro<br />

brasileiro (porque fruto da miscigenação), mas a lenda <strong>de</strong> Iracema, índice ficcional da<br />

fundação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pátria:<br />

Que <strong>de</strong>ixara ele [Martim] na terra do exílio?Uma história<br />

que me contaram nas lindas várzeas on<strong>de</strong> nasci, à calada da<br />

noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos,<br />

e a brisa rugitava nos palmares. (ALENCAR; 1980)<br />

Outra imagem alusiva à ruína é a construída em torno da personagem Maranguab, o<br />

“sabedor da guerra” (ALENCAR, 1980, p. 62), avô <strong>de</strong> Peri e guardião da memória da tribo.<br />

Sua sabedoria o tornaria não só guardião do passado, mas também do futuro, ao profetizar a<br />

<strong>de</strong>struição da raça indígena pelos colonizadores, reforçada pelo autor nas notas explicativas<br />

à fala do ancião sobre o encontro do neto com o representante do grupo responsável pela<br />

ruína <strong>de</strong> seu povo: “Tupã quis que estes olhos vissem, antes <strong>de</strong> se apagarem, o gavião<br />

branco junto da narceja” (ALENCAR, 1980, p. 63). A nota explica que, ao afirmar isto,<br />

Maranguab “profetiza nesse paralelo a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> sua raça pela raça branca”.<br />

O caráter catastrófico da colonização fica patente no encontro entre Martim,<br />

instrumento da colonização, e Maranguab, signo da memória e da honra indígena, alocado<br />

em um tempo intocado pelo domínio português. A ruína física do velho índio alegoriza o<br />

massacre <strong>de</strong> seu povo 37 .<br />

37 Personagem construída <strong>de</strong> modo similar a Maranguab é o índio Abaré. Movido pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

vingança, o ancião revelara a Robério Dias o segredo das minas <strong>de</strong> prata; assiste, em seus últimos dias, a<br />

<strong>de</strong>cadência <strong>de</strong> sua raça: “Oh! dor! Seus filhos, os valentes, os fortes, a quem ele transmitia outrora as palavras<br />

<strong>de</strong> Tupã, renegaram das cenças <strong>de</strong> seus pais, e são agora conduzidos, como um bando <strong>de</strong> capivaras, pelo<br />

homem negro, abaruna, que serve ao Deus dos brancos!” (ALENCAR, s.d., p. 463).


1 89<br />

Os restos <strong>de</strong> Maranguab jazem em um camucim, em uma oca abandonada,<br />

protegida por urtigas. A imagem revela o abandono da memória dos povos indígenas, mas<br />

ao mesmo tempo traz o alento da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> restauração, já que não foi <strong>de</strong>struída, mas<br />

apenas silenciada. Àqueles que com sensibilida<strong>de</strong> artística lerem este silênc io, nos resíduos<br />

da tradição oral, a recompensa será dada.<br />

Lenda tecida e modulada por Alencar, <strong>de</strong> acordo com a perspectiva do que<br />

reconhecemos como uma poética da restauração, Iracema alegoriza a tensão presente no<br />

par cultura / barbárie, reconstruindo literariamente o choque, a violência e o <strong>de</strong>sejo<br />

presentes no tempo da conquista.<br />

A tessitura <strong>de</strong> uma literatura que se propõe a restaurar as ruínas do passado não se<br />

restringe aos textos indianistas, entretanto. Lendas urbanas e histórias, que remetem à<br />

modulação das cicatrizes do corpo da cida<strong>de</strong>, são lidas como pistas a serem <strong>de</strong>sveladas nas<br />

imagens literárias e estão presentes em textos como Alfarrábios, Guerra dos Mascates e As<br />

minas <strong>de</strong> prata.<br />

Em As minas <strong>de</strong> prata, a tradição oral reveladora do mito do Eldorado é o mote para<br />

um romance capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>scortinar um rico e complexo painel da Salvador colonial. É<br />

contado em várias versões, sob o ponto-<strong>de</strong>-vista <strong>de</strong> vários personagens em um emaranhado<br />

alinhavado pela busca do protagonista Estácio do roteiro das minas <strong>de</strong> prata <strong>de</strong>scobertas por<br />

seu pai.<br />

Os documentos sobre a localização das minas <strong>de</strong> prata eram insuficientes para fazer<br />

Estácio encontrá-las: para exumar o passado, é necessário ir além da palavra escrita; mesmo<br />

quando encontra o local das minas <strong>de</strong> prata, o protagonista ilu<strong>de</strong>-se ao <strong>de</strong>parar-se com as<br />

pedras eram falsas, sem saber do tesouro escondido no sub solo. O resgate do tesouro, da<br />

essência, é interditado, como em Iracema, ao indicar o túmulo <strong>de</strong> Maranguab protegido por


1 90<br />

urtigas. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperação plena do passado é vedada; o reencontro com a<br />

memória perdida ocorre pela reelaboração ficcional <strong>de</strong> seus vestígios.<br />

O olhar <strong>de</strong> Estácio é o do colono, pobre, mas com ascendência nobre, neto <strong>de</strong> Diogo<br />

Álvares. A criação <strong>de</strong> uma genealogia imaginada imprime profundida<strong>de</strong> temporal à<br />

narrativa e estabelece laços históricos, formadores <strong>de</strong> uma continuida<strong>de</strong> histórica, <strong>de</strong> uma<br />

tradição inventada, presente também na construção da personagem Vaz Caminha, o mais<br />

sábio letrado da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador (ALENCAR, 1977, p.13), que nos remete a Pero Vaz<br />

<strong>de</strong> Caminha, o autor do primeiro documento brasileiro.<br />

Desejoso <strong>de</strong> recuperar a sua história, Estácio é <strong>de</strong>senraizado não só por sua<br />

condição <strong>de</strong> colono, mas por não conhecer as suas origens. Órfão, entra em contato com a<br />

história <strong>de</strong> seu pai pela palavra do povo nas ruas, como o artista restaurador. Como em O<br />

Guarani, a catástrofe se instaura na narrativa: Caminha tem a sua obra consumida pelo<br />

incêndio que o mata e <strong>de</strong>strói a sua casa; Estácio, após a falência <strong>de</strong> seu projeto <strong>de</strong> vida, é<br />

dado como morto e assume uma outra i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, isolando-se com Inês do mundo.<br />

Po<strong>de</strong>mos então <strong>de</strong>rivar que a ficção converteu-se em ferramenta na missão tomada<br />

por Alencar <strong>de</strong> pensar caminhos para o <strong>de</strong>lineamento da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pátria. A tradição oral é<br />

percebida como senda para a restauração <strong>de</strong> uma memória fragmentada, cabendo ao artista<br />

reorganizar junto ao processo criativo os cacos presentes nas lendas e mitos. Ao <strong>de</strong>senhar o<br />

mapa narrativo da missão civilizatória, através das lendas e da história, a questão da<br />

diferença cultural emerge e<br />

O sentido anterior é <strong>de</strong>sautorizado . Instala – se outra<br />

tradição <strong>de</strong> sentidos que produz outros sentidos nesse lugar .<br />

Instala – se uma nova filiação. Esse dizer irrompe no<br />

processo significativo <strong>de</strong> tal modo que pelo seu próprio surgir<br />

produz memória.<br />

(ORLANDI, 2003, p. 9).


1 91<br />

Cada época elabora em seu imaginário a representação <strong>de</strong> seu passado histórico.<br />

Enquanto a História trabalha com documentos em leituras que vão também sendo sempre<br />

reatualizadas, a narrativa <strong>de</strong> Alencar suga as diferentes formas <strong>de</strong> realização mental <strong>de</strong>ste<br />

passado transformando-o e reelaborando-o a partir <strong>de</strong> sua mediação; assim como havia<br />

leitores <strong>de</strong> suas histórias, necessários em uma socieda<strong>de</strong> majoritariamente ágrafa, Alencar<br />

leria uma nova concepção me ntal <strong>de</strong> tempo histórico, capaz <strong>de</strong> suger ir imagens po<strong>de</strong>rosas<br />

em uma socieda<strong>de</strong> em busca <strong>de</strong> seu próprio espelho, que, como tudo relacionado à busca da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, é sempre distorcido e inacabado.<br />

A liberda<strong>de</strong> ficcional do texto alencarino fecunda no imaginário algumas sementes<br />

capazes <strong>de</strong> reelaborar visões do passado, <strong>de</strong>sestabilizando-as, pintando-as <strong>de</strong> novas cores.<br />

Alencar tenta fundar uma memória nacional pelo resgate do relato silenciado na penumbra<br />

da história, contribuindo para a construção da idéia <strong>de</strong> nação brasileira como uma<br />

comunida<strong>de</strong> politicamente imaginada; 38 como forma <strong>de</strong> imaginação, o romance alencarino<br />

seria ferramenta fundamental <strong>de</strong>sta representação.<br />

Po<strong>de</strong>mos concluir que as imagens nos textos alencarinos são elementos <strong>de</strong> reflexão<br />

sobre a linguagem literária. A análise das relações, indicadas em sua crítica, entre o<br />

pictórico e o poético, entre a luz e a sombra em seus textos ficcionais será o foco da<br />

próxima parte <strong>de</strong> nosso trabalho.<br />

38 Ver ANDERSON, 1999.


1 92<br />

PARTE II: QUADROS EM MOVIMENTO, ESQUADROS DA MEMÓRIA


1 93<br />

CAPÍTULO 1: IMAGENS NACIONAIS NA POÉTICA DA RESTAURAÇÃO<br />

“A lição <strong>de</strong> pintura”<br />

Quadro nenhum está acabado,<br />

Disse certo pintor;<br />

Se po<strong>de</strong> sem fim continuá-lo,<br />

Primeiro, ao além <strong>de</strong> outro quadro<br />

Que, feito a partir <strong>de</strong> tal forma,<br />

Tem na tela, oculta, uma porta<br />

Que dá a um corredor<br />

Que leva a outras e a muitas outras.<br />

(João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto)<br />

Ao apresentarmos José <strong>de</strong> Alencar como criador <strong>de</strong> imagens ligadas à modulação da<br />

i<strong>de</strong>ntificação nacional oitocentista, sublinhamos, em sua escritura crítica e ficcional, as<br />

reflexões acerca das relações entre memória e imagem, criadas em torno do que<br />

conceituamos como uma poética da restauração.<br />

Tentamos <strong>de</strong>sta forma <strong>de</strong>monstrar como o pictórico arvora-se no projeto literário<br />

alencarino como metáfora do nacional, a partir da tessitura <strong>de</strong> uma trama questionadora dos<br />

lábeis limites entre a verda<strong>de</strong> e a imaginação, relacionando-os ao jogo plástico do claro-<br />

escuro e analisando a presença <strong>de</strong> uma arquitetura textual em diálogo com a linguagem<br />

visual.<br />

A correspondência entre o pictórico e o poético nos textos <strong>de</strong> Alencar não se<br />

restringe ao uso <strong>de</strong> termos emprestados do vocábulo das artes plásticas em sua crítica, a<br />

servirem como via <strong>de</strong> construção à sua reflexão sobre a natureza literária: extrapola m este<br />

campo inicial e alcançam a sua produção romanesca, como práxis dos seus<br />

questionamentos sobre os limites entre o histórico e o ficcional.


1 94<br />

Lembremo-nos do ensaio nas “Cartas sobre A Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios” <strong>de</strong> uma<br />

proposta poética criada em meio à percepção do embate entre a emergência <strong>de</strong> uma<br />

literatura nacional e a impossibilida<strong>de</strong> da linguagem épica traduzir este novo olhar. Por sua<br />

vez, em O Guarani, tais questionamentos são respondidos ao apontar, neste exercício<br />

romanesco, caminhos temáticos e formais para a construção <strong>de</strong> uma arte literária brasileira,<br />

maturados posteriormente em um exercício intelectual construtor <strong>de</strong> uma dialética entre as<br />

vias crítica e literária.<br />

Outra importante chave <strong>de</strong> leitura das “Cartas sobre A Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”<br />

refere-se às reflexões nela presentes sobre a poesia, a pintura e as suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

diálogo ao apontar para a orientação do fazer poético pela força da imagética. Por isso, ao<br />

criticar Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães, Alencar revela que:<br />

Se me perguntarem o que falta, <strong>de</strong>certo não saberei<br />

respon<strong>de</strong>r; falta um quer que seja, esta riqueza <strong>de</strong> imagens,<br />

esse luxo da fantasia que forma na pintura, como na poesia, o<br />

colorido do pensamento, os raios e as sombras, os claros e os<br />

escuros do quadro. (ALENCAR, 1966, p.864).<br />

Sabemos que historicamente a aproximação entre o pictórico e o poético remonta à<br />

Antiguida<strong>de</strong> Clássica, na filosofia <strong>de</strong> Platão, Aristóteles, Simôni<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ceos e Horácio ,<br />

com o seu famoso Ut pictura, poiesis.<br />

A percepção teórica da literatura como instância in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do pictórico<br />

estabeleceu-se <strong>de</strong> modo consistente, porém, a partir da reflexão <strong>de</strong>senvolvida por Lessing<br />

em seu Laocoonte (1766). A partir <strong>de</strong> então, a autonomia do pictórico instaurou-se,<br />

inaugurando uma dinâmica que se <strong>de</strong>senrola até os nossos dias.<br />

Em seu tratado filosófico, sobre as relações entre os discursos poético e pictórico,<br />

Lessing construiu problematizações que permitiram tecer uma até então inédita concepção


1 95<br />

estética. Para tanto, o filósofo questionou e refutou os pressupostos dos críticos<br />

contemporâneos a ele, acusando-os <strong>de</strong> forçar à poesia os limites da pintura e <strong>de</strong> insistir para<br />

que o pictórico ocupasse o amplo espaço do poético. Todavia, Lessing também revisitou as<br />

reflexões <strong>de</strong> filósofos clássicos, como Simôni<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ceos, em sua afirmativa: “a pintura é<br />

uma poesia muda e a poesia uma pintura que fala” (APUD LESSING, 1998, p.80, nota 11).<br />

Lessing <strong>de</strong>slocou a discussão para a questão da temporalida<strong>de</strong> e da espacialida<strong>de</strong>,<br />

interessado em refletir acerca das artes espaciais e temporais, percebendo as especificida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>stes meios <strong>de</strong> expressão no que toca à construção <strong>de</strong> signos representativos da realida<strong>de</strong>.<br />

O tratado <strong>de</strong> Lessing analisa a escultura clássica Laocoonte. Nela, o sacerdote<br />

Laocoonte é representado junto a seus dois filhos: os três são enroscados e envenenados por<br />

duas serpentes. Segundo a lenda, a punição <strong>de</strong>via-se a uma falta junto aos <strong>de</strong>uses. Este tema<br />

é retomado na Eneida e em Filoctétes, peça <strong>de</strong> Sófocles.<br />

Da comparação entre a representação plástica da lenda na arte estatuária e verbal -<br />

nas narrativas <strong>de</strong> Vírgilio e Sófocles, Lessing <strong>de</strong>riva o <strong>de</strong>lineamento dos limites entre as<br />

duas artes. Demonstra que a pintura e a literatura são gêneros diferentes, mas que po<strong>de</strong>m<br />

contribuir mutuamente e teoriza a constituição <strong>de</strong> três gêneros artísticos: as artes plásticas –<br />

arte espacial, limitada pelas regras da mimese e puramente imitativa (e por isto com um<br />

espaço mais restrito do que a poesia épica); a poesia épica – arte temporal, imitativa <strong>de</strong><br />

ações e centrada em uma perspectiva mais ampla que as artes espaciais, e a poesia<br />

dramática, simultaneamente arte temporal e espacial.<br />

Se Lessing separou o poético do pictórico, inaugurando uma importante releitura da<br />

tradição clássica, a percepção romântica <strong>de</strong> mundo recupera, por sua vez, o diálogo entre<br />

ambos, percebendo a arte como um reflexo divino, que se <strong>de</strong>sdobraria na tría<strong>de</strong> pintura,<br />

poesia e música. Para Novalis, por exemplo:


1 96<br />

A vida é algo como cores, sons e força. O romântico estuda a<br />

vida do mesmo modo que o pintor, o músico e o mecânico<br />

estudam a cor, o som, a força. O estudo atento da vida faz o<br />

romântico, tal qual o estudo zeloso da cor, forma, som e força<br />

faz o pintor, o músico e o mecânico. (NOVALIS apud<br />

GOMES & VECCHI, 1992, p. 54).<br />

Desta forma, consi<strong>de</strong>ra articulação entre as artes (e a mecânica) e as aponta como instâncias<br />

autônomas, embora em diálogo permanente.<br />

Alencar postula em “Cartas sobre A Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios ” um<br />

posicionamento similar, percebendo a poesia, a pintura e a música (e não a mecânica, como<br />

Novalis) como partes <strong>de</strong> um todo articulado, não só pelo divino, mas historicamente:<br />

Essa união da poesia, da pintura e da música é tão clara, que<br />

encontro sempre na história o mesmo gênio nas suas três<br />

gran<strong>de</strong>s revelações; sinto igual impressão lendo um livro,<br />

vendo um quadro ou uma estátua, e ouvindo uma ópera.[...].<br />

Deus criou três linguagens para o artista: a linguagem da<br />

forma, a pintura; a linguagem dos sonos, a música; e a<br />

linguagem da palavra, a poesia, a mais sublime porque fala<br />

não só ao coração como a inteligência. (ALENCAR, 1966,<br />

p.728, 883 e 884).<br />

A arte é percebida, pois, como expressão <strong>de</strong> um universo sensível e passível <strong>de</strong> ser<br />

traduzido por linguagens artísticas diferentes, <strong>de</strong>ntre as quais a poesia alçaria <strong>de</strong>staque:<br />

palavra e pensamento unem-se em uma concepção <strong>de</strong> arte na qual o verbal é, por<br />

excelência, elemento <strong>de</strong> reflexão.<br />

A analogia entre o trabalho do poeta e o do artista plástico, poeta ou pintor, revela a<br />

percepção supracitada e potencializa o papel da plasticida<strong>de</strong> no trabalho do escritor. Neste<br />

sentido, afirma com uma certeza questio nável aos olhos contemporâneos, mas coerente<br />

com a concepção <strong>de</strong> arte por ele <strong>de</strong>fendida, que Victor Hugo “teria sido um gran<strong>de</strong> pintor”,<br />

porque capaz <strong>de</strong> tecer em suas poesias (e também em seus romances, embora Alencar


1 97<br />

refira-se às suas o<strong>de</strong>s) uma arquitetura textual em diálogo com a linguagem pictórica.<br />

A percepção romântica <strong>de</strong> Victor Hugo como gênio capaz <strong>de</strong> criar “do nada” um<br />

universo literário é posteriormente apresentada nos próprios romances alencarinos, a se<br />

<strong>de</strong>senharem em luz e sombra:<br />

Vítor Hugo é o poeta da forma brilhante; quando leio<br />

algumas páginas <strong>de</strong> suas o<strong>de</strong>s, parece -me que me sinto <strong>de</strong><br />

repente sentado a um canto da oficina <strong>de</strong> Tintoretto, ou do<br />

gabinete <strong>de</strong> Cellini, e que vejo o pintor e o escultor traçar<br />

com o pincel ou com o buril um quadro ou um baixo relevo; a<br />

luz cintila formando claros e escuros, a côr reflete os seus<br />

raios cambiantes, tudo se anima, vive e surge do nada, ao<br />

aceno do gênio criador.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 883)<br />

Apesar da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indicarmos estes pontos <strong>de</strong> intersecção entre o<br />

pensamento <strong>de</strong> Alencar e a filosofia romântica, percebemos no romancista uma reflexão<br />

muito mais intuitiva do que teórica.<br />

Há em sua leitura sobre as linguagens artísticas, a percepção <strong>de</strong> uma tría<strong>de</strong>, formada<br />

por pensamento, linguagem e forma, como <strong>de</strong>monstra ao esboçar um cânone nas cartas:<br />

Homero, Miguel Ângelo e Rossini, é o mesmo homem, ora<br />

poeta, ora escultor, ora músico; Virgílio, Donizeti e o<br />

Ticiano, é a mesma trinda<strong>de</strong> poética e artística; Shakespeare,<br />

o Veronese e Meyerbeer são três transformações <strong>de</strong> um só<br />

gênio; Píndaro, Rafael e Verdi, é o mesmo lirismo na poesia,<br />

na pintura e na música [...] Eis como eu compreendo a poesia<br />

e como a estudo num poema ou num livro <strong>de</strong> versos; quero<br />

ver, sentir e ouvir o pensamento do poeta que fala por essa<br />

tríplice frase da razão, do coração e dos sentimentos.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 884).<br />

e relacionar a tría<strong>de</strong> música – pintura- poesia à razão-coração-sentimento: assim como as<br />

artes são irmãs, a razão e a emoção comporiam a construção da visão <strong>de</strong> mundo do gênio.<br />

Visão <strong>de</strong>vidamente orientada não só pela razão e pelos sentidos, como pela imaginação,


1 98<br />

plasmada pela imagem, como revela ao comentar a citação <strong>de</strong> Lamartine, <strong>de</strong> que a poesia:<br />

forma uma linguagem perfeita, que exprime o homem em toda<br />

a sua humanida<strong>de</strong>, que fala ao espírito pela idéia, à alma<br />

pelo sentimento, à imaginação pela imagem, e ao ouvido pela<br />

música [...] E por isso, como diz Lamartine, a poesia <strong>de</strong>ve<br />

falar ao homem pelo pensamento, pela imaginação, e pelos<br />

sentidos, ao mesmo tempo. O som, a forma, a cor, a luz, a<br />

sombra, o perfume, são as palavras inarticuladas <strong>de</strong>ssa<br />

linguagem divina. (ALENCAR, 1966, p. 882).<br />

Através da imagem a imaginação dar-se-ia a ver e constituiria um microcosmos<br />

ficcional elaborado pela força criativa.<br />

A metáfora pictórica organizada por Alencar em sua poética liga-se a este processo<br />

<strong>de</strong> percepção <strong>de</strong> mundo, não limitado ao universo crítico, pois alcança a construção <strong>de</strong><br />

imagens subjetivas. Em textos confessionais nos quais Alencar constrói a narrativa <strong>de</strong> sua<br />

própria vida - “Benção Paterna” e “Como e porque sou romancista”, a lembrança emerge<br />

pela via imagética: a memória organiza-se pelo pictórico, a visualida<strong>de</strong> põe em cena e<br />

encena a i<strong>de</strong>ntificação com a pátria:<br />

Em Olinda, on<strong>de</strong> estudava meu terceiro ano e na velha<br />

biblioteca do convento <strong>de</strong> São Bento à ler os cronistas da era<br />

colonial; <strong>de</strong>senhavam-se a cada instante na tela das<br />

reminiscências, as paisagens do meu pátrio Ceará. [...]<br />

Cenas estas que eu havia contemplado com olhos <strong>de</strong> menino<br />

<strong>de</strong>z anos antes, ao atravessar essas regiões em jornada do<br />

Ceará a Bahia; e que agora se <strong>de</strong>buxavam na memória do<br />

adolescente, e coloriam-se ao vivo com as tintas frescas da<br />

palheta cearense. (ALENCAR, 1995, p.32-33).<br />

Como já nos referimos antes, esta leitura do mundo emerge <strong>de</strong> uma sensibilida<strong>de</strong><br />

especial, <strong>de</strong> um olhar <strong>de</strong> artista. Olhar já anunciado pelos românticos alemães, como<br />

Schlegel, ao afirmar que:<br />

Somente ela [a poesia romântica], tal como a epopéia, po<strong>de</strong><br />

tornar-se reflexo da realida<strong>de</strong> do meio circundante, imagem


1 99<br />

da época. E, não obstante, é ela que efetivamente tem mais<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ficar pairando tanto acima do que é<br />

representado, como do autor da representação, livre <strong>de</strong><br />

qualquer interesse real e i<strong>de</strong>al, nas asas da reflexão poética,<br />

po<strong>de</strong>ndo potencializar esta reflexão e como que multiplicá-la<br />

numa série interminável <strong>de</strong> espelhos. (SCHLEGEL, APUD<br />

GOMES & VECCHI, 1992, p. 51).<br />

Ao apresentar a poesia romântica afastada da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar <strong>de</strong> modo<br />

transparente a subjetivida<strong>de</strong> do artista, Schlegel a metaforiza como um jogo <strong>de</strong> espelhos,<br />

que remete não só ao sujeito, mas também ao mundo que o cerca. Jogo múltiplo e infinito,<br />

pois a poesia surge do interior do poeta, “bastando que ele olhe e perscrute o mundo sem<br />

nenhum preconceito, livre <strong>de</strong> qualquer intenção que não seja a poética” (GOMES &<br />

VECCHI, 1992, p. 53).<br />

Os múltiplos reflexos <strong>de</strong>sfazem a percepção neoclássica da arte como o espelho:<br />

The use of painting to illuminate the essential character of<br />

poetry – ut pictura poesis – so wi<strong>de</strong>spread in the eigtheenth<br />

century, almost disappears in the major criticism of the<br />

romantic period; the comparisons between poetry and<br />

painting that survive are casual, or, as the instance of mirror,<br />

show the canvas reversed in or<strong>de</strong>r to image the inner<br />

substance of the poet.<br />

(ABRAMS, s.d., p. 50)<br />

À metáfora setecentista da arte como espelho (a refletir e or<strong>de</strong>nar as imagens<br />

recortadas do real), oriundo da concepção da mente como reflexo do mundo externo, os<br />

românticos contraporiam a metáfora da lâmpada; a percepção da mimese <strong>de</strong>sloca-se da pura<br />

imitação para a expressão, pois o processo criativo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser visto como “a reassambly<br />

of “i<strong>de</strong>as” which were literally images or replicas of sensations” (ABRAMS, s.d., p. 69).<br />

O poeta apreen<strong>de</strong>r ia o mundo através da sua sensibilida<strong>de</strong> e humanizaria a natureza,<br />

como pensaram Hazlitt:


1 100<br />

e Coleridge, para quem a arte é :<br />

The light of poetry is not only a direct but also a reflected<br />

light, that while shews us the object, throws a sparkling<br />

radiance on all around it<br />

(APUD ABRAMS, s.d., p. 52)<br />

The mediatress between, and reconciler of, nature and man. It<br />

is, therefore, the power of humanizing nature, of infusing the<br />

thoughts and passions of man into everything which is the<br />

object of his contemplation.<br />

(APUD ABRAMS, s.d., p. 52).<br />

Como lâmpada, a mirada <strong>de</strong> artista proposta por Alencar perfaz-se em uma prosa<br />

que tem como alterida<strong>de</strong> o lirismo e a plasticida<strong>de</strong>: a poesia mo<strong>de</strong>rna, para o autor, seria<br />

por excelência plástica. Na busca pela “impossível” epopéia nacional, a plasticida<strong>de</strong> é<br />

resgatada na forma romanesca. Entretanto, ao pintar com palavras o seu país, o literato não<br />

se converte em um mero <strong>de</strong>scritor da paisagem, mas em um escritor que a percebe com<br />

olhos <strong>de</strong> artista, o que implicaria na transfiguração da natureza. A alusão à paisagem cria a<br />

correspondência entre os fatos da natureza e da alma, revelando a subjetivida<strong>de</strong> romântica<br />

ao projetar os estados da alma, tecendo a simbiose entre o eu e o exterior.<br />

A <strong>de</strong>scrição da natureza exuberante anuncia-se insuficiente; é mister apren<strong>de</strong>r a<br />

olhar a paisagem brasileira, a interpretá-la e contá-la em uma arte capaz <strong>de</strong> redimensioná-la<br />

e <strong>de</strong> transformá-la, como anuncia, por exemplo, as notas <strong>de</strong> Ubirajara :<br />

transportemo-nos agora, não como homens e cristãos, mas<br />

como artistas ao seio das florestas seculares, às tabas dos<br />

povos guerreiros que dominavam a pátria selvagem<br />

(ALENCAR, s.d., p.80, grifo nosso).<br />

A crítica do jovem Alencar a Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães apoiou-se na pobreza<br />

imagética <strong>de</strong> A Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios e na sua incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> traduzir a cor local.


1 101<br />

Magalhães teria feito da epopéia uma sombra pobre da arte clássica européia: é neste<br />

sentido que Alencar o critica, apontando a falência da tarefa do escritor brasileiro – tecer,<br />

aliando as imagens da natureza à idéia <strong>de</strong> nação, uma literatura que encontrasse o seu lugar<br />

entre a “simplicida<strong>de</strong>” da arte clássica e a plasticida<strong>de</strong> característica da poesia a eles<br />

(quase) contemporânea:<br />

O Sr. Magalhães nem conservou a simplicida<strong>de</strong> antiga, a<br />

simplicida<strong>de</strong> primitiva da arte grega; nem imitou o caráter<br />

plástico da poesia mo<strong>de</strong>rna: <strong>de</strong>sprezando ao mesmo tempo a<br />

singeleza e o colorido, quis às vezes tornar-se simples e fez-se<br />

árido, quis outra vez ser <strong>de</strong>scritivo e faltaram -lhe as imagens.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 884).<br />

Intuitivamente (como visto, ao respon<strong>de</strong>r sobre o que falta em Magalhães ele diz:<br />

“se me perguntarem o que falta, <strong>de</strong>certo não saberei respon<strong>de</strong>r”), Alencar percebe a<br />

exigência <strong>de</strong> uma arte literária que reelabora, <strong>de</strong> certa forma, o Ut pictura, poesis: percebe<br />

as artes como partes <strong>de</strong> um todo, porém constituídas com autonomia. Assim, apesar da<br />

poesia se sobrepor às <strong>de</strong>mais artes, como a pintura, esta <strong>de</strong>veria constituir-se pela via<br />

imagética revelando, como já citado, “os claros e os escuros do quadro ”. (ALENCAR,<br />

1966, p.864).<br />

Na analogia supracitada, Alencar refere-se mais uma vez à técnica plástica do claro-<br />

escuro. Já vimos que, nos textos críticos, as relações estabelecidas por Alencar entre o<br />

pictórico e o poético alcançam um nível mais complexo <strong>de</strong> reflexão, ao questionarem o<br />

processo <strong>de</strong> produção literário.<br />

Nessa proposta literária a se insinuar também pela via imagética, o que<br />

conceituamos como “signos moduladores <strong>de</strong> imagens” - o mar, o porto, a paisagem, estão<br />

interligados em uma trama i<strong>de</strong>ntificada com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sublinhar a cor local, na qual<br />

a Natureza surge como elemento diferenciador do nacional.


1 102<br />

Isto posto, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>rivar a emergência, nos textos <strong>de</strong> Alencar, <strong>de</strong> uma tensão<br />

entre Natureza e Civilização; tal tensão po<strong>de</strong> ser tomada como índice da aporia presente em<br />

uma literatura organizada em torno do embate entre o local e o universal e o periférico e o<br />

central.<br />

Como dissemos anteriormente, há um projeto literário tecido por Alencar, latente<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as “Cartas sobre A Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”, a buscar as brechas a partir das<br />

quais se po<strong>de</strong>ria criar uma literatura nacional, frente à intuição da falência do épico neste<br />

projeto:<br />

A forma com que Homero cantou os gregos não serve para<br />

cantar os índios; o verso que disse as <strong>de</strong>sgraças <strong>de</strong> Tróia, e<br />

os combates mitológicos não po<strong>de</strong> exprimir as tristes<br />

en<strong>de</strong>chas da Guanabara, e as tradições selvagens da<br />

América. (ALENCAR, 1966, p. 875).<br />

Contudo, se o romance emergiu como o campo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> sentidos que<br />

orientariam as modulações para a fabricação <strong>de</strong> imagens do nacional, a opção do<br />

romanesco em <strong>de</strong>trimento à epopéia não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> alimentar a permanência <strong>de</strong> veios épicos.<br />

A busca <strong>de</strong> resposta para a equação acima não é imediata, mas melancolicamente<br />

(no sentido benjaminiano <strong>de</strong> um lento ruminar) maturada e experimentada em seus textos 39 ,<br />

especialmente em Iracema, como afirma na carta ao Dr. Jaguaribe, pós-escrito ao livro, um<br />

“como e por que escrevi Iracema”, como afirma o próprio autor (ALENCAR, 1966, p.<br />

307).<br />

39 Não estamos com isso afirmando a existência <strong>de</strong> uma progressiva qualida<strong>de</strong> em seus textos: Ubirajara, por<br />

exemplo, é consi<strong>de</strong>rado pela crítica inferior a Iracema; O Sertanejo, escrito um ano após Ubirajara e <strong>de</strong>z anos<br />

mais tar<strong>de</strong> do que Iracema não apresenta um salto qualitativo, ao contrário: apresenta uma construção<br />

superficial das personagens e diversos lapsos <strong>de</strong> coerência interna, como a famosa passagem do tigre que vira<br />

onça algumas páginas <strong>de</strong>pois. O que intentamos apontar é a ausência <strong>de</strong> um projeto cristalizado e rígido para<br />

se pensar a literatura brasileira em Alencar, pois este é antes prenhe <strong>de</strong> limites e questionamentos.


1 103<br />

Na carta, Alencar revela o seu caráter experimental face à busca <strong>de</strong> uma nova forma<br />

<strong>de</strong> (re) escrever a literatura nacional. Neste pós-escrito, Alencar confessa o seu fracasso em<br />

escrever uma epopéia capaz <strong>de</strong> traduzir a pátria – fracasso que po<strong>de</strong> ser tomado como o da<br />

própria forma épica.<br />

O escritor busca ter êxito nessa tarefa, como já havia tentado em O Guarani, ao<br />

mo<strong>de</strong>rnizar a prosa clássica. Esta tentativa é indicada no pós-escrito a Iracema, em uma<br />

interessante experiência estética: a reescritura em mol<strong>de</strong>s clássicos <strong>de</strong> um trecho <strong>de</strong> O<br />

Guarani, escrito, nas palavras do autor, <strong>de</strong> forma mo<strong>de</strong>rna (ALENCAR, 1966, p. 319). A<br />

presença <strong>de</strong>sta discussão em Iracema revela a percepção do escritor <strong>de</strong> sua busca como um<br />

processo.<br />

Em Iracema a experimentação realiza-se através da construção <strong>de</strong> um poema em<br />

prosa, trabalhada em diálogo com a língua tupi, o que indicaria a originalida<strong>de</strong> reivindicada<br />

por Alencar. Uma experiência construída em caráter aberto:<br />

Lembrou-me <strong>de</strong> fazer uma experiência em prosa. O verso pela<br />

sua dignida<strong>de</strong> e nobreza não comportam certa flexibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> expressão, que entretanto não vai mal à prosa a mais<br />

elevada. A elasticida<strong>de</strong> da frase permitiria então que se<br />

empregassem com mais clareza as imagens indígenas, <strong>de</strong><br />

modo a não passarem <strong>de</strong>sapercebidas.<br />

Este livro é, pois, um ensaio, ou antes mostra. Verá<br />

realizadas nele minhas idéias a respeito da literatura<br />

nacional; e achará aí poesia inteiramente brasileira, haurida<br />

na língua dos selvagens. A etimologia dos nomes das diversas<br />

localida<strong>de</strong>s e certos modos <strong>de</strong> dizer, tirado da composição<br />

das palavras, são <strong>de</strong> cunho original. (ALENCAR, 1966, p.<br />

319).<br />

A consciência da impossibilida<strong>de</strong> da permanência <strong>de</strong> uma dicção totalmente épica<br />

na literatura brasileira busca novas formas <strong>de</strong> representar o nacional; frente a ela <strong>de</strong>staca-se<br />

o espaço da natureza como cenário épico, majestoso e sublime.


1 104<br />

Ao herói que habita este espaço – como Peri e Arnaldo, contudo, é vedada a<br />

magnificência épica, pois embora ele apresente características sobre humanas, como o dom<br />

para falar com os bichos, a força <strong>de</strong>scomunal e a coragem, e seja moralmente<br />

irrepreensível, há limites para a sua atuação e estes são <strong>de</strong>marcados pela hierarquia<br />

patronal, bem como pelo espaço da civilização, instâncias que na verda<strong>de</strong> se interagem:<br />

O sertanejo curvou-se e beijou a mão ao fazen<strong>de</strong>iro, costume<br />

patriarcal já em voga no sertão e que ele praticava por um<br />

impulso d´alma, pois habituara-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância a<br />

respeitar no velho Campelo um outro pai, além do que lhe<br />

<strong>de</strong>ra a natureza.(...)<br />

(Fala <strong>de</strong> Arnaldo a Campelo): -Uma vez já pedi permissão ao<br />

sr. Capitão-mor para dizer lhe que eu não pertenço ao<br />

serviço da fazenda. Não sei lidar com os homens; cada um<br />

tem seu gênio; o meu é para viver no mato.(...)<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1080).<br />

Como herói, Arnaldo flutua entre a liberda<strong>de</strong> e a servidão (travestida em lealda<strong>de</strong>) e<br />

entre a solidão do individualista herói romanesco e o sacrifício em prol da coletivida<strong>de</strong>,<br />

como faria o herói épico:<br />

(Fala <strong>de</strong> Arnaldo a Campelo) -Procuro o sertão, e moro nele<br />

para estar só. Mas fique vossa senhoria <strong>de</strong>scansado, que se<br />

não presto para camarada ou vaqueiro, quando se tratar <strong>de</strong> o<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r ou acatar, a si ou aos que lhe são caros, po<strong>de</strong> contar<br />

que não tem servidor mais pronto, nem mais <strong>de</strong>voto. Minha<br />

vida lhe pertence, é dispor <strong>de</strong>la como lhe aprouver. (...)<br />

( Fala <strong>de</strong> Arnaldo a mãe) –Para <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer -lhe era preciso<br />

que ele tivesse o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar -me que fosse um vil, mas<br />

esse po<strong>de</strong>r ele não o possui, nem alguém neste mundo.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1083 e p. 1105, grifo nosso).<br />

A tensão entre o <strong>de</strong>sejo épico e a sua impossibilida<strong>de</strong> instaura-se como fissura no<br />

projeto literário alencarino; mas é justamente a aporia que o faz rumar ao horizonte da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, horizonte intranqüilo como a promessa ambígua do epílogo <strong>de</strong> O<br />

Guarani.<br />

Em O nosso cancioneiro, como vimos, ao discutir a importância da poesia popular


1 105<br />

como manancial legítimo da poesia brasileira, Alencar <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a presença <strong>de</strong> um universo<br />

mítico, adivinhado nos versos populares <strong>de</strong> “O Rabicho da Geralda” e “Boi Espácio”, que<br />

contam a saga <strong>de</strong> um boi fugitivo. O boi, signo natural, é a possibilida<strong>de</strong> da existência<br />

épica. Mas até uma imagem que po<strong>de</strong>ria ser pura natureza emerge na tensão entre natureza<br />

e cultura, entre autonomia e submissão, pois, apesar da tentativa <strong>de</strong> ser domesticado por sua<br />

dona, foge para a liberda<strong>de</strong>.<br />

E embora, em O sertanejo, em uma relação intertextual, o boi Dourado, comparável<br />

ao “Rabicho”, fosse domado pelo vaqueiro Arnaldo (para <strong>de</strong>pois ser libertado, em<br />

reconhecimento ao seu “heroísmo”), a impossibilida<strong>de</strong> épica continua, na interdição do<br />

relacionamento entre Arnaldo e Flor, mesmo quando este é perfilhado por seu pai e senhor.<br />

Esta tensão é alegorizada na submissão amorosa. Desta forma, ao a<strong>de</strong>ntrar na casa <strong>de</strong><br />

Campelo, Arnaldo transforma-se: “O sertanejo dos dias antece<strong>de</strong>ntes, o filho do <strong>de</strong>serto,<br />

livre e indômito como o cervo das campinas, ficou lá fora. Quem entrou foi um mancebo<br />

tímido e acanhado” (ALENCAR, 1966, p. 1073).<br />

Um poema épico, segundo Alencar em “Cartas a Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”, <strong>de</strong>ve<br />

dar “uma origem divina, ou ao menos heróica, ao povo que quer cantar” (ALENCAR,<br />

1066, p. 866), “<strong>de</strong>ve abrir-se por um quadro majestoso” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m), apresentar o<br />

elemento maravilhoso e fazer do escritor “autor e ator” (I<strong>de</strong>m, p.870), pois além <strong>de</strong> “tirar<br />

partido da ilusão teatral” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m) seria preciso usar uma linguagem elevada.<br />

O apontamento do fracasso da epopéia <strong>de</strong> Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães para se pensar o<br />

Brasil remete (felizmente) à ausência <strong>de</strong> uma fórmula épica capaz <strong>de</strong> traduzir o nacional,<br />

intuindo o <strong>de</strong>slocamento discutido por Georg Lukács, já no século vinte, em Teoria do<br />

Romance: a insuficiência da epopéia na problematização <strong>de</strong> questões ligadas ao mundo


1 106<br />

capitalista, que encontra na forma romanesca a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diálogo com “um mundo<br />

fora dos trilhos”, on<strong>de</strong> o herói problemático e <strong>de</strong>slocado, sem fé, insatisfeito e em uma<br />

busca incessante tenta achar o seu lugar no mundo.<br />

Por isso, Alencar aventa a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever, fora do <strong>de</strong>calque da tradição<br />

clássica “um poema, mas não um poema épico; um verda<strong>de</strong>iro poema nacional, on<strong>de</strong> tudo<br />

fosse novo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o pensamento até a forma, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a imagem até o verso” (ALENCAR,<br />

1966, p. 876)<br />

Um dos caminhos para a sobrevivência <strong>de</strong>sta dicção épica no romance alencarino<br />

articula-se a este jogo <strong>de</strong> claro-escuro presente em sua narrativa, percebido, assim, não mais<br />

como simples elemento ilustrativo. Tal jogo cria uma estrutura verbal que se apropria da<br />

sintaxe épica pictórica e a reelabora no discurso romanesco.<br />

Esta reelaboração dar-se-á em uma narrativa que se vale <strong>de</strong> alguns índices <strong>de</strong> uma<br />

plasticida<strong>de</strong> épica orientada, principalmente, pelas temáticas greco-romanas e bíblicas, para<br />

modulá-los não apenas em uma nova dimensão discursiva, mas também temática: o seu<br />

foco é reorientado para a representação do nacional, tecida - como dissemos, em torno <strong>de</strong><br />

imagens que se arvoram em meio à complexa engenharia textual que articula, na escritura<br />

alencarina, o par Natureza/ Civilização, <strong>de</strong>sfazendo qualquer relação tranqüila <strong>de</strong> oposição,<br />

substituída pelo embate dialético.<br />

Assim, percebemos o jogo <strong>de</strong> claro-escuro no romance alencarino como a tensão<br />

entre a consagração da forma romanesca e os resíduos da dicção épica e como solução para<br />

a permanência <strong>de</strong>sta tensão, através <strong>de</strong> uma sintaxe verbal que dialoga com a sintaxe<br />

pictórica do “gran<strong>de</strong> gênero”, isto é, da pintura histórica, transfigurando-o, porém.<br />

A partir <strong>de</strong> 1840 (ano da maiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Dom Pedro II), as artes plásticas no Brasil<br />

passam a ter uma nova orientação. Uma geração <strong>de</strong> artistas emerge, educada pelas Missões


1 107<br />

Artísticas fomentadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil. Pintores<br />

como Vitor Meirelles, Pedro Américo e João Zeferino da Costa <strong>de</strong>senvolveram-se no rigor<br />

do ensino acadêmico, implementado no Brasil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1816, por professores europeus. O<br />

arcabouço <strong>de</strong>sta formação era a pintura neoclássica européia. O preconceito em relação ao<br />

que seria a Bela Arte traduzia-se em técnicas e composições dirigidas e na valorização das<br />

temáticas clássicas e religiosas.<br />

Porém, em torno da década <strong>de</strong> 50 do século XIX, algumas mudanças são<br />

implementadas: começa-se, ainda que <strong>de</strong> uma maneira branda, a amenizar esse dirigismo e<br />

os pintores “<strong>de</strong>scobrem” a natureza (embora pintando quase sempre <strong>de</strong>ntro dos ateliês) e os<br />

chamados quadros <strong>de</strong> gêneros, que buscavam tematizar cenas mais cotidianas. Além disto,<br />

recebiam como encomendas retratos e quadros históricos, “documentação figurativa <strong>de</strong><br />

interesse óbvio ”. (CAMPOFIORITO, 1983, p. 19).<br />

De qualquer forma, já na década <strong>de</strong> 40, a pintura da paisagem começava a se firmar,<br />

segundo Campofiorito, como gênero autônomo. Ganha força, no final da década <strong>de</strong> setenta,<br />

a pintura ao ar-livre, proposta pelo novo mestre da Aca<strong>de</strong>mia, o alemão Georg Grimm.<br />

Apesar disso, a paisagística continuava a ser consi<strong>de</strong>rada um gênero menor,<br />

apreciado pela fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> com que o pintor a executava. Na premiação da Aca<strong>de</strong>mia em<br />

1864, por exemplo, o diretor elogiou o trabalho <strong>de</strong> Vinet por que este: “expôs paisagens<br />

estudadas com esmero; são trabalhos conscienciosos, em que nada é omitido; para este fino<br />

observador, todos os aci<strong>de</strong>ntes da natureza são preciosos e a todos representa em sua tela”.<br />

(SANTOS APUD CAMPOFIORITO, 1983, p. 21).<br />

O imperador patrocinava várias viagens à Europa aos acadêmicos que mais se<br />

<strong>de</strong>stacavam. Com isto, os discípulos po<strong>de</strong>riam estudar com os mestres europeus e entrar em<br />

contato com as gran<strong>de</strong>s obras nos museus. Entretanto, as inovações técnicas e temáticas não


1 108<br />

influenciaram os brasileiros. O imperador financiava as bolsas <strong>de</strong> estudo e os bolsistas eram<br />

obrigados a estudar com os mestres europeus indicados, geralmente artisticamente<br />

conservadores. Isto significa que enquanto Delacroix 40 e Ingres revolucionavam a pintura<br />

romântica européia, os pintores brasileiros tendiam a se afastar <strong>de</strong>sta vertente.<br />

Entretanto, a percepção <strong>de</strong> uma submissão total à estética neo-clássica na pintura<br />

oitocentista brasileira merece um olhar relativista. Algumas telas superam a pura imitatio e<br />

se revelam campos interessantes <strong>de</strong> análise.<br />

“Gruta” (anexo 11) foi pintada por Manuel <strong>de</strong> Araújo Porto-Alegre, em 1845.<br />

Representa um pequeno grupo, formado por duas mulheres, uma criança e um jovem, a<br />

uma caverna. Assustadas, as mulheres se retraem atrás do rapaz, que carrega uma tocha. Ele<br />

aponta e ilumina um dos lados da gruta. Em claro-escuro, as luzes inci<strong>de</strong>m sobre o grupo,<br />

no centro da composição, e à direita, ao fundo.<br />

Matizado, o local apontado pela tocha revela um grupo <strong>de</strong> peças em forma <strong>de</strong><br />

pirâmi<strong>de</strong>; no topo se i<strong>de</strong>ntifica a figura <strong>de</strong> uma mulher com os braços para cima, em uma<br />

pose ambiguamente referente à posição <strong>de</strong> prece e a um corpo acorrentado. Figuras<br />

angélicas e humanas a circundam, e estas vão se tornando menos i<strong>de</strong>ntificáveis quanto mais<br />

se afastam do topo, confundindo o que po<strong>de</strong>ria ser uma estátua ao que faz parte da sinuosa<br />

formação rochosa. O aspecto gótico confirma-se na presença <strong>de</strong> âncoras colocadas a frente<br />

<strong>de</strong> um pequeno barco, dispostas como cruzes.<br />

A ambigüida<strong>de</strong> da tela impõe a reflexão sobre a representação tecida por Porto-<br />

Alegre sobre as relações entre arte e natureza. A metáfora da concepção mimética como<br />

lâmpada, referida por Abrams, po<strong>de</strong>ria ser percebida na figuração <strong>de</strong> um espaço natural<br />

40 Ainda que consi<strong>de</strong>remos que o próprio Delacroix não se percebia como um romântico (Ver HAUSER,<br />

2000).


1 109<br />

percebido como cultura e metamorfoseado em cena gótica pelo artista que , como o jovem,<br />

guia o (ainda que parco) público com sua visão transformadora, capaz <strong>de</strong> perceber como<br />

arte a natureza assustadora.<br />

A maioria dos pintores sobrevivia do patronato do imperador e da encomenda <strong>de</strong><br />

retratos, principalmente, bem como <strong>de</strong> paisagens e <strong>de</strong> quadros religiosos. As paisagens<br />

pintadas sob solicitação não eram o exercício <strong>de</strong> um olhar artístico ante a natureza, capaz <strong>de</strong><br />

construir uma nova experiência <strong>de</strong> ver, fora do condicionamento <strong>de</strong> valores tomados como<br />

naturais pela socieda<strong>de</strong>; era um olhar encomendado para figurar o espaço natural<br />

capitalizado em proprieda<strong>de</strong>, abafado no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mostrar, preservar e legar às gerações<br />

futuras o po<strong>de</strong>r sobre a cena natural transformada em mercadoria, congelada pela moldura<br />

em bem <strong>de</strong> consumo.<br />

Alguns pintores, todavia, tentaram extrair da pintura sob encomenda um olhar a<br />

mais, contemplativo e preservar nesta mercantilização da arte a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar para<br />

além da encomenda, um universo sensível em diálogo com a sua percepção <strong>de</strong> mundo,<br />

tornando visível aspectos até então invisíveis, representando em um movimento pendular<br />

não só a natureza, mas a si mesmo, pois o cenário natural é <strong>de</strong>snaturalizado pelo olhar <strong>de</strong><br />

artista, instaurando a fratura da linguagem da memória. Como exemplo, po<strong>de</strong>ríamos citar as<br />

obras <strong>de</strong> Facchinetti, artista capaz <strong>de</strong> imprimir um olhar pessoal que transcen<strong>de</strong> o puro<br />

mimetismo nas obras pagas pelos gran<strong>de</strong>s proprietários rurais.<br />

Para além da percepção neoclássica, estes quadros <strong>de</strong>slocam a percepção da<br />

natureza como mero conteúdo e a realocam como forma artística, erguida pela olhar<br />

sensível do pintor. Neles, a natureza não se apresenta como espaço a ser totalizado no<br />

quadro <strong>de</strong>talhista em um <strong>de</strong>calque objetivo, como revela o discurso do diretor da Aca<strong>de</strong>mia<br />

Nacional <strong>de</strong> Belas Artes.


1 110<br />

Como objeto estético dado à lâmpada, a natureza é iluminada pela sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

um olhar que a transforma em paisagem por a recortar, particularizar e emoldurar. Ao fazê-<br />

lo, a limita como heterocosmo revelador <strong>de</strong> imagens invisíveis ao puro <strong>de</strong>scritivismo. Neste<br />

sentido po<strong>de</strong>ríamos enten<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> Facchinetti: ir ao local, <strong>de</strong>senhar a<br />

paisagem a lápis e ampliá-la na tela: “miniatura aplicada a paisagem”, como perceberia em<br />

crítica, Gonzaga Duque (APUD MARTINS, 2004, p. 13) em raro elogio ao autor, pela<br />

fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus quadros. Entretanto, o recorte da paisagem e a sua transformção em<br />

miniatura parecem estar além do puro <strong>de</strong>scritivismo, situando-se como ampliação do<br />

espaço recortado pela subjetivida<strong>de</strong> impressa na escolha dos ângulos, dos tons e da<br />

perspectiva da paisagem.<br />

A i<strong>de</strong>ntificação da obra <strong>de</strong> Facchinetti com o <strong>de</strong>scritivismo talvez se <strong>de</strong>va às<br />

próprias anotações feitas pelo autor atrás <strong>de</strong> suas encomendas: “quadro pintado fielmente”,<br />

indo ao encontro das expectativas do comprador. Por isso, po<strong>de</strong>ríamos percebê-lo em<br />

nuances que o <strong>de</strong>slocam entre o <strong>de</strong>sejo verista da paisagem e a, ainda que tênue, expressão<br />

subjetiva.<br />

Mesmo se a situarmos como <strong>de</strong>rivada do racionalismo iluminista, ela não <strong>de</strong>ixaria<br />

<strong>de</strong> comportar “interferências da memória e da imaginação”, como lembra Piccoli (2004, p.<br />

27). Seria possível compreen<strong>de</strong>r este posicionamento <strong>de</strong>slizante, por exemplo, em “Porto<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro” (anexo 08), <strong>de</strong> 1890, tela que representa a paisagem portuária esvaziada<br />

<strong>de</strong> sentido econômico, integrando-se harmonicamente à natureza como pura paisagem, em<br />

um olhar a partir da casa da criança, que dá as costas para o cenário familiar entretida com<br />

o balanço.<br />

As reflexões advindas das obras <strong>de</strong> Porto-Alegre e Facchinetti articulam-se a uma<br />

discussão mais ampla: a questão da representação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional. Nesta dimensão,


1 111<br />

os questionamentos dos literatos românticos dialogam com o <strong>de</strong>bate em torno da paisagem<br />

como gênero nacional, proposta por Félix Emile Taunay na década <strong>de</strong> 1840, pois <strong>de</strong>veria<br />

figurar a ação humana frente à natureza majestosa, posicionamento influenciado pela visão<br />

dos viajantes e da filosofia francesa sobre as relações entre a civilização e a natureza.<br />

Como no discurso literário, embora <strong>de</strong> forma mais tênue, a paisagem brasileira<br />

constituir-se-ia em torno das relações entre cultura e natureza ; no discurso acadêmico,<br />

produzido pelo estrangeiro, o po<strong>de</strong>r da primeira sobre a segunda é ressaltado; no texto<br />

alencarino, estas relações revelam-se como tensão insolúvel.<br />

Entretanto, ainda que a cultura prevaleça, o próprio Félix Taunay a retratou<br />

romanticamente, já em 1830, como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição, pela implementação do<br />

progresso, em “Floresta reduzida a carvão” (anexo 10), tema, aliás, retomado por Alencar.<br />

a paisagem:<br />

Dentro <strong>de</strong>sta perspectiva, Piccoli atenta para o olhar diferencial <strong>de</strong> Facchinetti sobre<br />

Não são as paisagens naturais, a floresta virgem ou o aspecto<br />

ainda primitivo da natureza brasileira – tão prezados por<br />

estrangeiros em visita ao país – que atraem seu interesse.<br />

Mesmo nas numerosas cascatas que registrou, o artista não<br />

sugere grandiosida<strong>de</strong> ou ameaça, mas sensações <strong>de</strong><br />

aconchego e proximida<strong>de</strong> entre homem e natureza.<br />

O que parece interessar a Facchinetti é, sobretudo, a<br />

paisagem trabalhada pelo homem.<br />

(Piccoli, 2004, p. 33).<br />

Se a paisagem trabalhada pelo homem é fundamental para a sobrevivência do<br />

artista, já que tema <strong>de</strong> suas encomendas (e talvez por isto o interesse aludido), o topos da<br />

natureza como espaço acolhedor e, por isso, civilizado, presentifica-se nas obras <strong>de</strong> outros<br />

pintores, e, <strong>de</strong> maneira mais complexa no texto alencarino, a dialogar com estas visões.<br />

Como Facchinetti, Manuel <strong>de</strong> Araújo Porto-Alegre alia a perspectiva iluminista à<br />

contemplação artística. Olhar brasileiro em meio aos estrangeiros da missão francesa,


1 112<br />

Porto-Alegre teve acirrado <strong>de</strong>bate com August Muller, professor <strong>de</strong> pintura <strong>de</strong> paisagem, ao<br />

propor que a paisagem só i<strong>de</strong>ntificaria a pátria se abandonasse as cópias <strong>de</strong> gravuras<br />

européias e se focasse na representação da natureza física brasileira.<br />

Sua “Floresta Brasileira” (anexo 06), <strong>de</strong> 1853, exibe a tensão entre o <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong>scritivista à percepção da mimese romântica como lâmpada por ele metaforizada em<br />

“Gruta”. Em um cenário grandioso a ocupar totalmente a tela, a floresta torna-se metáfora<br />

do nacional (SQUEFF, 2005, p. 28).<br />

A selva é composta <strong>de</strong> forma integrada, historicizada como cena tranqüila, na qual<br />

passeiam o próprio artista carregando suas pranchas e um amigo, portando uma arma <strong>de</strong><br />

fogo: paisagem dominada pelos capazes <strong>de</strong> criar a imagem e impor pela violência o seu<br />

domínio – o po<strong>de</strong>r bélico alegoricamente caminha na mata civilizada ao lado da arte.<br />

Se compararmos a pintura <strong>de</strong> Porto-Alegre a outra “Floresta Brasileira” (anexo 05),<br />

<strong>de</strong> Rugendas, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar o olhar do pintor romântico que, ao se construir como<br />

lâmpada, revela ma is que a subjetivida<strong>de</strong>: a própria paisagem representada no <strong>de</strong>sejo<br />

dúplice <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>la signo épico e <strong>de</strong> esvaziá-la da bárbarie, transforma ndo-na em<br />

mistério 41 . À floresta <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada, perigosa e habitada somente pelos índios opõe-se a cena<br />

civilizada <strong>de</strong> Porto-Alegre, revelando-se como passeio aos jovens elegantes, fazendo da<br />

floresta selvagem a mata reduzida a vitrines <strong>de</strong> espécies botânicas (SQUEFF, 2005, p. 29).<br />

É certo que essas pinturas preservam os índices plásticos neoclássicos, mas o seu<br />

posicionamento frente à paisagem propõe um novo olhar ao gênero por representar o<br />

espaço natural com contornos épicos, em uma figuração grandiosa e restrita geralmente, à<br />

época, à pintura histórica.<br />

41 Daí a representação da paisagem na “Gruta” <strong>de</strong> Porto-Alegre, retomada, provavelmente <strong>de</strong> forma<br />

inconsciente, por Alencar ao encenar a seca do sertão em uma paisagem gótica, como indicaremos no<br />

próximo capítulo.


1 113<br />

Outro ponto interessante diz respeito à dicção épica presente nas representações dos<br />

quadros históricos. O conflito percebido na linguagem literária por Alencar em relação ao<br />

épico é predominantemente abafado pelo exercício acadêmico da emulação, bem como pela<br />

submissão ao patronato. Neste sentido, o escritor era mais livre do que o pintor, que por<br />

vezes precisava <strong>de</strong> apoio até para a compra do caro material <strong>de</strong> trabalho.<br />

Uma obra dissonante em meio a este quadro é “A batalha <strong>de</strong> Avahy” (anexo 03), <strong>de</strong><br />

Pedro Américo, patrocinado por Dom Pedro II e autor <strong>de</strong> vários quadros neoclássicos, a<br />

maioria, como era praxe, emulações 42 . Mas <strong>de</strong>ntro do ambiente acadêmico oitocentista, por<br />

vezes <strong>de</strong>stacava-se a diferença, como em “Moisés e Jacobed ” (anexo 02): a temática bíblica<br />

é representada em uma tela na qual emerge em primeiro plano a figura feminina, a dominar<br />

a cena. A tragédia <strong>de</strong> Jacobed choca-se contra a sensualida<strong>de</strong> com que é retratada. O barrete<br />

na cabeça, a abertura do roupão, o atrito entre o <strong>de</strong>sespero e o erótico invertem a tradição<br />

da pintura bíblica e apontam para traços presentes em “Grécia nas ruínas <strong>de</strong> Missolonghi”,<br />

núcleos <strong>de</strong> significação presentes em outras telas, como “A liberda<strong>de</strong> guia o povo”,<br />

apropriados também, mesmo que inconscientemente, por Alencar, na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Guida,<br />

em Sonhos d´ouro <strong>de</strong> 1872. Pedro Américo só pintaria “Moisés e Jacobed”, entretanto, em<br />

1884.<br />

Em 1872, Pedro Américo iniciava os seus estudos para “A batalha <strong>de</strong> Avahy”. A<br />

pintura <strong>de</strong> batalhas fora revigorada pela guerra do Paraguai, episódio que <strong>de</strong>veria ser<br />

transformado em capital histórico, nas tintas épicas do gênero, inventor <strong>de</strong> tradições. 43<br />

Épico na temática e nas gigantescas dimensões, o quadro <strong>de</strong>staca-se em meio a uma parca<br />

42 Pedro Américo pintou “O grito do Ipiranga” alguns anos <strong>de</strong>pois; contudo neste trabalho a presença do épico<br />

coloca-se <strong>de</strong> forma quase inquestionável, em uma tela que manipula o silêncio como forma <strong>de</strong> produzir<br />

memória, como apontamos na primeira parte do trabalho.<br />

43 Segundo Jorge Coli, “quadros <strong>de</strong> batalha foram sempre ficção construtora <strong>de</strong> memória” (2002, p. 115).


1 114<br />

produção acadêmica, não só pela sua grandiosida<strong>de</strong>, mas também pelo questionamento<br />

embutido em sua construção do domínio épico.<br />

A <strong>de</strong>cadência da pintura épica na Europa oitocentista articula-se a fragmentação do<br />

herói épico frente a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, no compasso da ascensão do herói romanesco. No Brasil,<br />

o contexto exposto exigia a reprodução do gênero em um momento em que ele se esvazia<br />

<strong>de</strong> sentido, fabricando o pintor “uma exteriorida<strong>de</strong> cuja alma se per<strong>de</strong>u”. (COLI, 2002, p.<br />

114).<br />

Américo é a voz dissonante, pois nesta tela a configuração pictórica põe em xeque a<br />

sobrevivência do gênero que <strong>de</strong>veria constituí-la. A fissura é instaurada no esvaziamento da<br />

figura dos heróis representados, neutralizados pela fúria da multidão a lutar. O povo passa a<br />

ser o protagonista da batalha e opõe a sua doação selvagem à placi<strong>de</strong>z dos heróis oficiais,<br />

que observam a turba <strong>de</strong> uma colina como Caxias, nas palavras <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira, “tão<br />

espectador, tão contemplativamente turístico”, em contraste ao resto da tela que combina <strong>de</strong><br />

forma rara a expressivida<strong>de</strong> e intensida<strong>de</strong> romântica aos resíduos do barroco. Afasta-se,<br />

<strong>de</strong>sta maneira dos núcleos <strong>de</strong> composição do neoclassicismo francês, em um diálogo<br />

inédito com contemporâneos mais experimentais, como Géricault.<br />

A tradição épica é rompida por este <strong>de</strong>slocamento em uma construção plástica que<br />

alija da cena os pretensos heróis, em suas poses banais, protegidos da convulsão da batalha:<br />

“O movimento giratório cria uma espécie <strong>de</strong> fosso visual, brilhando com reflexos e luzes,<br />

com tensões cromáticas, mandando para as suas bordas os grupos que avançam por trás ou<br />

<strong>de</strong>smoronam pela frente”(COLI, 2003, p. 117).<br />

Os questionamentos sobre as relações entre o épico e o mo<strong>de</strong>rno, e entre a na tureza,<br />

a civilização e a arte dialogam com a poética da restauração alencarina, a criar em claro-<br />

escuro quadros em movimento a se instaurarem como esquadros da memória, pois


1 115<br />

constróem imagens produtoras <strong>de</strong> sentidos sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da nação.<br />

Como exercício <strong>de</strong> leitura das imagens alencarinas, tomamos aqui por referência o<br />

primeiro capítulo do romance Sonhos d’Ouro. Nosso interesse é refletir sobre as relações<br />

ecfrásicas ali estabelecidas com a narrativa visual <strong>de</strong> Eugène Delacroix. Consi<strong>de</strong>rado por<br />

Bau<strong>de</strong>laire o verda<strong>de</strong>iro pintor-poeta, Delacroix construiu suas imagens a partir do duplo<br />

movimento da lembrança e da imaginação, usando cores fortes, linhas e formas expressivas<br />

e agitadas, imprimindo aos mitos uma visão subjetiva e criando uma atmosfera intensa,<br />

dominada pela imaginação, em uma contraposição à apreensão fotográfica da realida<strong>de</strong> -<br />

como o próprio olhar do artista romântico. Dentre estes elementos, a cor se <strong>de</strong>stacava como<br />

forma <strong>de</strong> expressivida<strong>de</strong>, contrapondo-se assim a proposta expressiva <strong>de</strong> Ingres, calcada<br />

principalmente nas linhas.<br />

Como crítico <strong>de</strong> arte, Bau<strong>de</strong>laire conseguiu perceber um elemento fundamental para<br />

a compreensão do estilo <strong>de</strong> Delacroix: o modo como suas telas representavam um olhar<br />

capaz <strong>de</strong> transfigurar a realida<strong>de</strong>, por uma apreensão da cena – in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da temática,<br />

pela imaginação, oposta à mera figuração, em um posicionamento contrário, ainda que <strong>de</strong><br />

forma não proposital, ao olhar fotográfico.<br />

A expressivida<strong>de</strong> da cor (“o romantismo e a cor me conduzem imediatamente a<br />

Eugène Delacroix” (BAUDELAIRE, 2002, p. 679)), é capaz <strong>de</strong> criar a transfiguração da<br />

natureza; e embora seja possível, como Delacroix, ser, ao mesmo tempo, <strong>de</strong>senhista e<br />

colorista, os últimos, segundo Bau<strong>de</strong>laire, “são poetas épicos” (i<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m): a sua pintura<br />

<strong>de</strong> Delacroix encontra-se, assim,com estes laivos.<br />

Apesar da paixão pelos motivos literários, em Delacroix a referência à poesia era<br />

um mero pretexto e não um objetivo em si. Era um pintor narrativo, mas esforçava-se por<br />

expressar “em vez <strong>de</strong> idéias literárias, algo que lhe é próprio, algo irracional e semelhante à


1 116<br />

música” (HAUSER, 2000, p. 720). Sua pintura era, antes <strong>de</strong> tudo, exuberante, já que,<br />

segundo o pintor, “le premier mérite d’um tableau est d’être une fête pour l’oeil”<br />

(DELACROIX apud HAUSER, 2000, p.1024).<br />

Logo no início <strong>de</strong> Sonhos d’ouro, Alencar <strong>de</strong>scortina a cena da narrativa <strong>de</strong> forma<br />

grandiosa, na voz <strong>de</strong> um narrador que converte a natureza em quadro expressivo e feérico:<br />

“O sol ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Fevereiro dourava as lindas serranias da Tijuca. Que formosa manhã! O<br />

céu arreava-se do mais puro azul; o ver<strong>de</strong> da relva e da folhagem sorria entre as gotas <strong>de</strong><br />

orvalho, cambiando aos toques da luz”(ALENCAR, 1966, p. 703.).<br />

A Tijuca, sinônimo <strong>de</strong> vida campestre à época do autor, é transformada em cenário<br />

apresentado como um quadro tinto em cores fortes e expressivas: o dourado, o azul e o<br />

ver<strong>de</strong> formam e conformam o palco da história, esfumaçado em claro-escuro, já que é um<br />

cenário cambiante ao toque da luz: a natureza recortada pela moldura artística, que a voz<br />

narrativa <strong>de</strong>lineia, apresenta –se como símile da obra <strong>de</strong> arte.<br />

Po<strong>de</strong>mos indicar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já – além da referência às cores que indiciam a ban<strong>de</strong>ira<br />

nacional, uma relação com a sintaxe pictórica romântica, na medida em que o texto<br />

alegoriza a grandiosida<strong>de</strong> da natureza aludindo à expressivida<strong>de</strong> da cor.<br />

Uma outra possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura, presente também em outros textos, é a que<br />

percebe a figuração da natureza como cenário cambiante e i<strong>de</strong>ntifica esta representação à<br />

relação Natureza/ Civilização, percebida não como uma oposição binária, mas antes como<br />

complexa articulação.<br />

Ou seja, o cenário natural no texto apresenta-se em claro-escuro, indiciando o jogo<br />

<strong>de</strong> luz e sombra como a expressão <strong>de</strong> um espaço que ao mesmo tempo revela e escon<strong>de</strong>, por<br />

um lado; e por outro, que se apresenta como território latente <strong>de</strong> elementos civilizatórios:<br />

um <strong>de</strong>les, como já dito, é a percepção do natural como artístico.


1 117<br />

É neste cenário em claro-escuro que se dará, poucas linhas <strong>de</strong>pois, o primeiro<br />

encontro entre os protagonistas da história: o jovem Ricardo – advogado pobre com alma<br />

<strong>de</strong> artista, e Margarida - Guida, burguesa cujo dinheiro compra tudo, inclusive os ares<br />

aristocráticos.<br />

O encontro acontece em um momento <strong>de</strong> introspecção e comunhão com a na tureza<br />

por parte <strong>de</strong> Ricardo. O moço, envolto em <strong>de</strong>vaneios, é bruscamente chamado à realida<strong>de</strong><br />

pela presença <strong>de</strong> Guida, montada em um cavalo. Se a realida<strong>de</strong> o <strong>de</strong>sperta do sonho, por<br />

sua vez esta relação é revertida, já que a imagem da moça passa imediatamente a se<br />

construir como uma aparição.<br />

A natureza é mimetizada pelo narrador como arte, a aparição <strong>de</strong> Guida é narrada<br />

também como um quadro, mas tecido neste momento da trama pelo olhar <strong>de</strong> artista <strong>de</strong><br />

Ricardo, o único capaz <strong>de</strong> vê-la em “diorama”, em heterocosmo produzido pelo olhar da<br />

personagem artista frente à natureza a remeter à metáfora da mimese romântica como<br />

lâmpada.<br />

A representação grandiosa da paisagem, o posicionamento do homem nela po<strong>de</strong><br />

ligar-se à reengenharia do épico em Alencar. Na narração do quadro <strong>de</strong> Guida a cavalo, o<br />

azul, o dourado e o ver<strong>de</strong> <strong>de</strong>stacam-se (como na <strong>de</strong>scrição do cenário natural, no começo da<br />

narrativa) em imagens que remetem ao movimento e a construção <strong>de</strong> um olhar<br />

transfigurador da realida<strong>de</strong>, como um quadro <strong>de</strong> Delacroix, analogia estabelecida pelo<br />

próprio narrador:<br />

Entre o arvoredo tecido <strong>de</strong> grinaldas amarelas aparecia uma<br />

esfera do azul do céu, como tela fina <strong>de</strong> um painel, cingido<br />

por um medalhão <strong>de</strong> ouro. A sombra <strong>de</strong> uma nuvem errante<br />

infundia ao horizonte suave transparência. Debuxava-se na<br />

tela acetinada o vulto airoso <strong>de</strong> linda moça, que montava com<br />

elegância um cavalo Isabel.[...].<br />

Um roupão <strong>de</strong> cachemira ver<strong>de</strong>-escura, <strong>de</strong>bruado a cairel <strong>de</strong>


1 118<br />

seda preta, com abotoadura <strong>de</strong> aço, moldava um talhe<br />

esbelto, que parecia talhado em mármore, tal era a correção<br />

das linhas e a harmonia dos contornos. O gracioso chapéu <strong>de</strong><br />

castor cor pérola, em vez <strong>de</strong> cobrir lhe a cabeça gentil,<br />

pousava como um pombo na rica ma<strong>de</strong>ixa negra, que lhe<br />

<strong>de</strong>scia caprichosamente pelo pescoço em opulentas cascatas.<br />

Calçava luvas <strong>de</strong> camurça amarela [...].<br />

Da cintura da menina ou <strong>de</strong> silfo nasciam as amplas dobras<br />

do roupão <strong>de</strong> montar, rogaçante sobre os flancos do belo<br />

animal. Como na constante ondulação do mar percebe-se por<br />

inflexão mais forte, a vaga nascente que se empola, assim no<br />

meio das largas pregas do vestido sentia -se o relevo suave da<br />

perna esbelta e nervosa, que esticava o loro, enquanto o pé,<br />

<strong>de</strong>speitado por não se mostrar, agitava impaciente o<br />

estribo.[...].<br />

O lindo Isabel, sentindo a doce pressão das ré<strong>de</strong>as colhidas<br />

pela mão da senhora, estacara<br />

imóvel, com a firmeza correta <strong>de</strong> uma posição acadêmica. As<br />

pernas lançadas pisavam o chão com rígida elegância; a<br />

cauda e a crina conservavam a artística ondulação que lhes<br />

imprimira a mão do escu<strong>de</strong>iro[...].<br />

Eis o quadro original que Ricardo viu <strong>de</strong> relance. O vulto da<br />

moça, esclarecido por um raio <strong>de</strong> sol coado entre a folhagem,<br />

se estampava no fundo azul, com vigor <strong>de</strong> colorido e<br />

animação <strong>de</strong> tons admiráveis. Através da névoa sutil que há<br />

pouco envolvia o espírito, o <strong>de</strong>senhista podia supor um<br />

instante que via uma paisagem <strong>de</strong> Delacroix através da<br />

ilusão diáfana <strong>de</strong> um diorama. (ALENCAR, 1966, p. 710 a<br />

712, grifo nosso).<br />

Para Barthes, “toda <strong>de</strong>scrição literária é uma visão”. (BARTHES, 1992, p. 68).<br />

Po<strong>de</strong>mos daí inferir duas reflexões: primeiro, há uma remissão à sintaxe pictórica<br />

romântica na narrativa, perceptível na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> elementos pictóricos, especialmente no<br />

uso da cor como elemento expressivo. A paisagem torna-se grandiosa, tanto na <strong>de</strong>scrição<br />

inicial, quanto na aparição <strong>de</strong> Guida – pois, se o foco do quadro é a moça, essa imagem<br />

emerge em torno da relação contrastante da personagem com a paisagem.<br />

Segundo, a percepção da natureza através <strong>de</strong> um olhar <strong>de</strong> artista a modula como<br />

espaço <strong>de</strong> cultura (neste momento, pela analogia com o pictórico), instaurando a


1 119<br />

problematização da relação Natureza/Civilização, presente na <strong>de</strong>scrição pelo narrador da<br />

aparição <strong>de</strong> Guida. Po<strong>de</strong>mos percebê-la tanto pela analogia entre a figura da moça e o<br />

espaço natural (“Como na constante ondulação do mar percebe-se por inflexão mais forte, a<br />

vaga nascente que se empola, assim no meio das largas pregas do vestido...”, por exemplo),<br />

como pela relação <strong>de</strong> “senhora” estabelecida por Guida com o seu animal; e, sobretudo, na<br />

transformação – pelo olhar <strong>de</strong> Ricardo, do espaço ocupado por Guida na paisagem, tornada<br />

<strong>de</strong>spojada da condição <strong>de</strong> pura natureza pela imaginação que filtra a cena como um<br />

“diorama”, a vislumbrar a paisagem natural convertida em paisagem artística, em imagem.<br />

Imagem esta potencializada pela organização textual em torno do campo semântico<br />

pictórico: poses, linhas, cores e volumes são alinhavados em um jogo <strong>de</strong> luz e sombras<br />

organizado no espaço da linguagem verbal.<br />

Um caminho tranqüilo para a nossa análise seria a indicação das relações entre a<br />

<strong>de</strong>scrição da aparição <strong>de</strong> Guida (insisto no termo aparição, pensando no efeito <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>slumbramento que a organização textual dá à cena) e a narrativa visual <strong>de</strong> Delacroix, <strong>de</strong><br />

um modo geral, na articulação das cores e formas, na pose “acadêmica” do cavalo<br />

(pensando na presença obsessiva <strong>de</strong>ste elemento na pintura do francês) e <strong>de</strong> um modo<br />

específico no quadro “Grécia nas ruínas <strong>de</strong> Missolonghi” (ver anexo 01), que alegoriza a<br />

Grécia na figura <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sesperada moça com longos cabelos negros em cascata, vestindo<br />

uma espécie <strong>de</strong> roupão, na verda<strong>de</strong>, um traje típico grego. O roupão por sua vez po<strong>de</strong> ser<br />

pensado como signo que aludiria à intimida<strong>de</strong> e à sensualida<strong>de</strong>, como em Senhora e<br />

Lucíola.<br />

Po<strong>de</strong>ríamos ainda indicar como Alencar segue o léxico pictórico ao temporalizar na<br />

escritura o que se po<strong>de</strong> representar no espaço verbal, ao construir o quadro/aparição<br />

indicando semelhanças formais em relação à linguagem visual que “unificariam” a


1 120<br />

composição: a repetição das cores (o amarelo repetido no arvoredo e nas luvas, por<br />

exemplo) e as variações <strong>de</strong> claro-escuro.<br />

Para Horácio, o poema tem que ser como um quadro. Seria uma senda tranqüila<br />

encerrarmos o capítulo com a comparação acima. Mas Alencar ultrapassa – ainda que<br />

talvez intuitivamente, os princípios da estética clássica, ao ir além do Ut pictura, poiese. O<br />

texto alencarino não se reduz ao <strong>de</strong>scritivismo simplório, mas cruza a simulação verbal da<br />

sintaxe pictórica a campos semânticos complexos, através da metaforização <strong>de</strong> “vocábulos”<br />

visuais.<br />

Assim, as simulações do claro-escuro po<strong>de</strong>m ser tomadas como maneiras <strong>de</strong><br />

significar categorias aparentemente opostas – natureza/civilização; história/literatura;<br />

real/mimético, estabelecendo a dialética entre elas: nem o claro, nem o escuro, mas a opção<br />

pela tensão, expressa pelo jogo <strong>de</strong> luz e sombra. Segundo Ostrower,<br />

Remontando a tempos imemoriais, prevalece em nós o sentido<br />

da clarida<strong>de</strong> dos dias e da escuridão das noites. Ao claro e<br />

ao escuro atribuímos significações bastante diversas. Não os<br />

consi<strong>de</strong>ramos polarida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um mesmo ser, pontas <strong>de</strong> uma<br />

escala, que, em transações contínuas, se esten<strong>de</strong>ria do mais<br />

claro ao mais escuro. Pelo contrário, nós o relacionamos em<br />

termos <strong>de</strong> confronto, em total oposição (2003, p. 51).<br />

Para a autora, a complexida<strong>de</strong> expressiva do elemento formal luz elidiria a sua<br />

oposição radical à sombra através da técnica do claro-escuro, a representar:<br />

Uma síntese <strong>de</strong> opostos, claro e escuro. Nela, os componentes<br />

se interligam; e somente quando reunidos tornam-se<br />

expressivos, um em função do outro (...) É pela síntese<br />

integrando e harmonizando estados <strong>de</strong> ser tão conflitantes,<br />

que se explica a complexa expressivida<strong>de</strong> da luz (2003, p.<br />

52).<br />

Deste modo, po<strong>de</strong>mos inferir que ao dialogar com a sintaxe visual romântica,


1 121<br />

Alencar não a <strong>de</strong>screve meramente, mas cria correspondências entre os movimentos visuais<br />

simulados verbalmente e um sentido expressivo.<br />

Ao apropriar-se da metáfora do claro-escuro tanto em sua crítica, quanto na prática<br />

escritural, ele assume uma nova potência <strong>de</strong> leitura do país, inaugurando caminhos para se<br />

pensar relações que se revelam não absolutamente complementares (como sugere Ostrower<br />

em relação à forma pictórica), porém mais ricas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma percepção que as revela<br />

dialeticamente.<br />

Sobre a aparição <strong>de</strong> Guida, po<strong>de</strong>mos ainda relacionar a construção em claro-escuro<br />

não só à problematização das categorias Natureza/ Civilização, mas também à<br />

complexificação, na narrativa, do jogo entre natureza, imaginação e emoção. Ricardo<br />

constrói as suas imagens por meio <strong>de</strong> uma consciência que transcen<strong>de</strong> o cotidiano e na qual<br />

o claro-escuro articula o revelar e o ocultar, a certeza e a dúvida, o concreto e o etéreo. É<br />

justamente esse olhar diáfano, insustentável pela razão, que potencializa a conversão da<br />

paisagem natural à paisagem-arte.<br />

É muito instigante que o narrador compare a paisagem apresentada com um quadro<br />

<strong>de</strong> Delacroix, que vê a natureza “como um vasto dicionário cujas folhas ele passa e consulta<br />

com um olhar seguro e profundo; e esta pintura, que proce<strong>de</strong> em especial <strong>de</strong> lembrança,<br />

fala em especial à lembrança” (BAUDELAIRE, 2003, p. 684).<br />

A percepção da paisagem como espaço construído e construtor <strong>de</strong> memória é<br />

pintada por Delacroix com “o equilíbrio <strong>de</strong> um pintor <strong>de</strong> História, e com a sutileza e o amor<br />

<strong>de</strong> um paisagista” (BAUDELAIRE, 2003, p. 688). Visão romântica a construir a<br />

reengenharia do épico a partir <strong>de</strong> um olhar não mais distanciado, mas emotivo e altamente<br />

subjetivo.<br />

Pintor amado pelos poetas por ser essencialmente literário, segundo o autor das


1 122<br />

Flores do mal, Delacroix pintou imagens dramáticas aliadas à emergência <strong>de</strong> uma nova<br />

sensibilida<strong>de</strong> frente ao mundo, que reinventou o épico no pictórico. A busca <strong>de</strong>ste tom<br />

épico na paisagem talvez possa ser apontada na <strong>de</strong>scrição da narrativa alencarina, que<br />

muitas vezes (embora não exclusivamente) compõe-se na alusão às cores.<br />

Em torno <strong>de</strong>sta postura, surgem obras que elegem a ruína e a barbárie como focos:<br />

“Tudo em sua obra é <strong>de</strong>solação, massacres, incêndios; tudo testemunha contra a eterna e<br />

incorrigível barbárie humana ”, afirma Bau<strong>de</strong>laire. Este tom catastrófico também está<br />

presente na narrativa alencarina, embora em um tom menor, que às vezes alegoriza <strong>de</strong><br />

forma mais palatável a referência à ruína.<br />

É possível que a citação <strong>de</strong> Alencar no capítulo fosse puramente aleatória. Ou que,<br />

talvez, Alencar conhecesse, sim, a obra <strong>de</strong> Delacroix, por livros ou reproduções – aliás, em<br />

O <strong>de</strong>mônio familiar há também referência a sua obra, que compõe como reprodução o<br />

cenário do quarto do protagonista. Não po<strong>de</strong>mos afirmar com certeza isto – ainda que pese<br />

a erudição que Alencar <strong>de</strong>ixa transparecer em alguns textos críticos. Esta discussão nos<br />

interessa bem menos do que pensar o modo como a arquitetura textual alencarina dialoga<br />

com a questão da transfiguração da realida<strong>de</strong> e com a linguagem pictórica romântica.<br />

Entretanto, é interessante notar que a discussão sobre as belas-artes no Brasil era à<br />

época muito rasa. O próprio Alencar discorre em suas crônicas, em Ao correr da pena,<br />

sobre as questões históricas e políticas; e ainda que pese a leveza exigida pelo gênero à<br />

época, a discussão sobre o assunto praticamente inexiste: quando uma exposição é<br />

mencionada, o seu interesse resi<strong>de</strong> em pensá-la exclusivamente como espaço <strong>de</strong> circulação<br />

social.<br />

Po<strong>de</strong>mos, todavia, indicar a representação da paisagem no texto ficcional <strong>de</strong><br />

Alencar, situada além da simples <strong>de</strong>scrição ou mero pano <strong>de</strong> fundo e tecida em diálogo com


1 123<br />

a sintaxe pictórica.<br />

Percebemos isso em Sonhos d’ouro, um texto que remete à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber<br />

o real com olhos <strong>de</strong> artista. Um novo olhar que imprime à natureza o status <strong>de</strong> elemento<br />

civilizatório 44 . A natureza é sugerida <strong>de</strong> forma binária: selvagem, mas também ponto <strong>de</strong><br />

referência da cultura: dominada, ela se transforma em espaço domesticado, em mesa, por<br />

exemplo, em Sonhos d’ouro (ALENCAR, 1966, p. 706 e 708).<br />

O espaço natural, ao invés <strong>de</strong> se opor à civilização, revela-se, em Alencar, como via<br />

<strong>de</strong> acesso a esta, e ambas como fonte <strong>de</strong> construção da noção do nacional, partilhando<br />

reflexões presentes na paisagística romântica.<br />

A Cascatinha da Tijuca, figurada na narrativa <strong>de</strong> Sonhos d’ouro, “em vez da pompa<br />

selvagem respira uma certa gentileza <strong>de</strong> filha do <strong>de</strong>serto; está a duas horas da corte, recebe<br />

freqüentemente diplomatas, estrangeiros ilustres e a melhor socieda<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro”.(ALENCAR, 1966, p. 731). Próximo a 1820, o mesmo espaço foi representado<br />

pelo pintor Nicolas Antoine Taunay, um dos principais membros da Missão Artística<br />

Francesa, que morava em frente ao local.<br />

Na instigante, “La petite casca<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tijuca” (anexo 07), a cascata aparece ao fundo,<br />

indomável e mergulhada no cenário impenetrável da floresta. Ao fundo primitivo e edênico<br />

opõe-se o artista que, <strong>de</strong> costas e cercado por dois escravos e um cão, pinta uma planta.<br />

Abaixo, na penumbra, passam quase imperceptíveis na estrada <strong>de</strong> terra, em direção ao lado<br />

oposto da selva, dois perfis, remissivos às figuras <strong>de</strong> Dom Quixote e Sancho Pança: a<br />

utopia se <strong>de</strong>sloca ao abandonar a floresta, fora da visão do artista <strong>de</strong>sinteressado por sua<br />

grandiosida<strong>de</strong>.<br />

À representação selvagem da “cascatinha” contrapõe-se a sua figuração por<br />

44 Ver Peloggio, 2004.


1 124<br />

Facchinetti em 1878 (anexo 09). Em uma leitura bem menos interessante que a <strong>de</strong> Taunay,<br />

feita por encomenda em um quadro monocromático em claro-escuro, o pintor sintoniza-se,<br />

contudo, com a representação literária do espaço. A paisagem é recortada em uma<br />

aproximação com a parte superior da cascata, centralizada no quadro e cercada pela floresta<br />

que extrapola os limites do enquadramento. O fluxo or<strong>de</strong>nado e as formações rochosas em<br />

forma <strong>de</strong> escada sugerem a harmonia e a ausência <strong>de</strong> perigo presentes na pintura <strong>de</strong> Porto-<br />

Alegre e na prosa alencarina, mutadis mutantis: a paisagem natural é civilizada e a pátria só<br />

faz sentido como imagem que estetiza a natureza.<br />

Hegel questionou a superiorida<strong>de</strong> do belo natural sobre o belo artístico; a idéia daí<br />

<strong>de</strong>rivada era a <strong>de</strong> que a arte seria tanto mais superior quanto fosse capaz <strong>de</strong> aproximar as<br />

suas criações do primeiro. Refutando-a o filósofo afirma que:<br />

o belo artístico é superior ao belo natural, por ser um<br />

produto do espírito, que, superior à natureza, comunica esta<br />

superiorida<strong>de</strong> aos seus produtos, e, por conseguinte, à arte;<br />

por isso é o belo artístico superior ao belo natural. Tudo<br />

quanto provém do espírito é superior ao que existe na<br />

natureza. (Hegel, 2000, p. 27).<br />

O olhar do artista, segundo a estética hegeliana, é aquele que transfigura a natureza.<br />

Se Hegel distingue o belo natural do belo artístico, o narrador <strong>de</strong> Alencar prefigura uma<br />

noção <strong>de</strong> beleza que não opõe o natural ao artístico, mas antes dispõe como elemento<br />

impulsor da arte a própria natureza – se observada com o olhar do artista. Assim, o olhar <strong>de</strong><br />

Ricardo para a planta, que batiza o romance – a Sonhos d’ouro – diverge da <strong>de</strong>scrição<br />

científica veiculada pelos estudos botânicos:<br />

O modo pelo qual ele admirava a pequena flor revelava o<br />

tato do artista ou do poeta. Seu exame nada absolutamente se<br />

parecia com a fria dissecação que o botanista opera nas<br />

diferentes partes <strong>de</strong> uma planta, para conhecer o seu gênero,<br />

classe e família. (ALENCAR, 1966, p.705).


1 125<br />

Ao contrário do olhar neutro da ciência, o olhar <strong>de</strong> artista se aproxima do objeto,<br />

chegando a confundir-se com este: lembremo-nos que Ricardo é flagrado por Guida<br />

beijando a flor, que acabara <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir. (ALENCAR, 1966, p.709 e 710).<br />

Ricardo tem “espírito plástico” (ALENCAR, 1966, p. 727); é a natureza que o dota<br />

do dom <strong>de</strong> pintar e que ao mesmo tempo o ensina:<br />

Ricardo nunca apren<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>senho com os mestres da arte.<br />

Sentira em si a intuição da forma, e cultivara esta disposição<br />

natural, guiado pelas próprias observações. Não teve<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que lhe ensinassem as regras da perspectiva,<br />

pois as tinha diante dos olhos nas paisagens que se<br />

<strong>de</strong>sdobravam pelas lindas várzeas <strong>de</strong> São Paulo.<br />

Ricardo era um poeta da forma; ele fazia verso com as cores.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 727).<br />

Em Sonhos d’ouro, a natureza extrapola a condição selvagem e apresenta-se como signo da<br />

civilização. É mais do que simples paisagem: é arte em suas cores e formas expressivas,<br />

intensas, a se combinarem. A natureza vira tela: “O quadro arrebatador se tinha apagado <strong>de</strong><br />

repente, <strong>de</strong>ixando a tela azul erma da imagem sedutora” (ALENCAR, 1966, p. 713). E<br />

neste ponto, como citado, a alusão ecfrásica a cor é um dos elementos <strong>de</strong> construção do<br />

épico no cenário literário. Desta forma, a paisagem supera o espaço selvagem, e lança-se<br />

como potência <strong>de</strong> cultura, pois, no Romantismo, a natureza está além do mero cenário, na<br />

fusão subjetiva expressa pelo artista.<br />

Se, em seus textos críticos, são traçados paralelos entre a literatura e a pintura, em<br />

Sonhos d’ouro as correspondências entre natureza, civilização e arte são perceptíveis <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o título ambíguo, a significar tanto as ilusões capitalistas como a flor campestre. No<br />

intertexto com a pintura romântica, a narrativa recupera ficcionalmente o pressuposto da<br />

unificação estética intuído por Alencar, ao qual antes nos referimos.


1 126<br />

A questão do olhar do artista reaparece em O Garatuja: Alencar constrói pelo viés<br />

da ironia, em um texto aparentemente <strong>de</strong>spretensioso, uma reflexão complexa sobre as<br />

interfaces do pictórico, do poético e do nacional.<br />

Tal reflexão <strong>de</strong>senvolve-se em duas vias: como um jogo <strong>de</strong> claro-escuro, metáfora<br />

para se pensar sobre o posicionamento da literatura frente às penumbras da História<br />

(indicada, como visto, nas “Cartas sobre A Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”) e como análise<br />

das relações entre pintura, documento, arte e História.<br />

A primeira via anuncia-se ao tomarmos consciência <strong>de</strong> que Alencar retoma nesta<br />

novela um caso jurídico colonial, testificado a partir <strong>de</strong> um documento inscrito nos Anais<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro, por Baltazar da Silva Lisboa. Sabe-se que um tabelião foi amotinado por<br />

servidores do prelado da cida<strong>de</strong>. O ouvidor-geral, após ouvir a queixa, mandou que o<br />

pren<strong>de</strong>sse. O prelado pediu ao Ouvidor que lhe entregasse a <strong>de</strong>vassa e como este não<br />

obe<strong>de</strong>ceu, foi excomungado. A segunda via revela-se na metaforização, no texto, do<br />

confronto entre a memória produzida pelo documento – burocrática e autoritária, e a<br />

memória visual produzida por Ivo – espontânea e subversiva.<br />

Percebemos a práxis do jogo <strong>de</strong> claro-escuro proposto por Alencar, quando ele<br />

constrói o quadro da socieda<strong>de</strong> a partir do jogo entre a penumbra da História e o claro da<br />

ficção, dialeticamente enfrentando-se. Toma este documento oficial como base para a<br />

construção <strong>de</strong> um texto literário. Pelo fio da ironia vai tecendo suas reflexões acerca <strong>de</strong>sta<br />

luta travada entre o po<strong>de</strong>r temporal e o po<strong>de</strong>r secular: na ficção, a motivo do conflito não<br />

são as tensões entre o Estado laico e a Igreja, mas uma confusão armada por uma<br />

personagem ficcional, Ivo, o Garatuja, apaixonado pela filha do tabelião.<br />

Como já citamos, para Alencar, “o domínio da arte na história é a penumbra em que<br />

esta <strong>de</strong>ixou os acontecimentos, e o fato autêntico, não se altera sem mentir à história”


1 127<br />

(ALENCAR, 1966, p. 863), o escritor mantém o nome dos envolvidos e os acontecimentos,<br />

entretanto ficcionaliza o episódio, explorando os seus silêncios - as características pessoais<br />

dos participantes, e, principalmente, a causa do motim:<br />

Escaparam, porém, ao cronista [ao cronista colonial, Baltazar<br />

Lisboa] muitas particularida<strong>de</strong>s, que ele <strong>de</strong>scurou e que eu<br />

pu<strong>de</strong> obter consultando um arquivo arqueológico, bem<br />

provido, e que tenho à minha disposição, para o estudar à<br />

vonta<strong>de</strong>. (ALENCAR, 1966, p.1268).<br />

O arquivo ao qual Alencar refere-se é um velho que conheceu no Passeio Público.<br />

Como já dissemos antes, muitas vezes o idoso é tomado no Romantismo como elemento<br />

privilegiado, no que toca ao conhecimento do passado da pátria e da memória popular:<br />

Era ali in<strong>de</strong>fectível um velho seco e relho, o qual se me<br />

afigurava a metempsicose <strong>de</strong> algum poento in -fólio da<br />

<strong>Biblioteca</strong> Nacional, que porventura fugira da janela, e se<br />

abrigara à sombra dos castanheiros para livrar-se da fúria<br />

arqueológica dos antiquários. (ALENCAR, 1966, p. 1269).<br />

A partir <strong>de</strong>ste jogo lúdico, o narrador opõe ao escritor <strong>de</strong> ficção os antiquários e<br />

àqueles que, às custas dos cofres públicos e movidos pelo favores e pela vaida<strong>de</strong>, dispõem-<br />

se a empreen<strong>de</strong>r o estudo do passado:<br />

Meu arquivo arqueológico[...]não custou um ceitil aos cofres<br />

públicos, nem aspira à honra <strong>de</strong> ser comprado pelo governo<br />

do sr. D. Pedro II [...] não custou nem mesmo o trabalho <strong>de</strong><br />

andar cascavilhando papéis velhos em armários <strong>de</strong><br />

secretarias; ou a canseira <strong>de</strong> trocaras pernas pela Europa,<br />

cosido em fardão algodoado (ALENCAR, 1966, p.1268).<br />

A palavra do povo, travestida na voz do ancião, revela o choque entre a tradição<br />

popular e o processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma memória “oficial”. Ao aludir ao homem do<br />

povo como portador <strong>de</strong> memória, o narrador resgata a cultura do confinamento dos museus<br />

– em uma crítica ao patronato cultural <strong>de</strong> Dom Pedro II, especialmente ao IHB.


1 128<br />

O resgate das tradições urbanas <strong>de</strong>smobilizam a memória histórica do IHB, com sua<br />

retórica cientifica e formal, colocando em segundo plano a memória popular em prol dos<br />

quadros eurocêntricos <strong>de</strong> cronistas e viajantes. O fosso entre o conhecimento oficial e<br />

imobilizado, pre<strong>de</strong>stinado a confinar-se na poeira, e a memória “viva”, que conta a sua<br />

versão do passado, é pontificado pela palavra literária.<br />

O narrador assume-se como o artista capaz <strong>de</strong> restaurar a palavra perdida,<br />

disseminada na fala popular, nas histórias dos antigos, dos interioranos; no silêncio das<br />

tribos extintas, sobreviventes no olhar eurocêntrico dos cronistas e na escrita <strong>de</strong> lendas<br />

muitas vezes distorcidas, nos arquivos empoeirados do IHB.<br />

“Álbum <strong>de</strong> pedra”, o espaço urbano constrói-se como palimpsesto temporal:<br />

profusão <strong>de</strong> signos em choque - o mo<strong>de</strong>rno e o antigo, a civilização e a barbárie (ou em Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: verso e reverso: a civilização como forma <strong>de</strong> barbárie), em um jogo que <strong>de</strong>staca<br />

os aspectos negativos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, tomada pelos males do capitalismo, e ressalta a<br />

positivida<strong>de</strong> dos antigos e ingênuos hábitos.<br />

Das ruínas e velhos monumentos da cida<strong>de</strong> emergem as vozes da tradição, dos ditos<br />

populares, do velho, dos documentos: polifonia a projetar as expectativas sobre o passado<br />

possível da cida<strong>de</strong> colonial - a paisagem urbana ergue-se pela palavra, que a figura como<br />

livro <strong>de</strong> história em potencial, corpus tecido na construção e <strong>de</strong>sconstrução incessantes, na<br />

convivência dos símbolos coloniais e do surgimento da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, do tempo do atraso e<br />

do tempo capitalista, traduzidos na narrativa irônica.<br />

Para além, porém, do engessamento <strong>de</strong> um tempo passado, a narrativa estabelece-se<br />

como origem ao alegorizá-lo como microcosmos a dialogar com o tempo presente em um


1 129<br />

elo estabelecido pela crítica ao absolutismo e à mescla entre o público e o privado 45 no<br />

estado brasileiro (HELENA, 2004, p. 37): “ o espaço e o tempo da narrativa se esboçam e<br />

<strong>de</strong>senham fora do impulso <strong>de</strong> uma visão empírica e imediata, <strong>de</strong>slocando-se num processo<br />

<strong>de</strong> migração incessante, para o espaço tempo do que se imagina ficcionalmente”<br />

(HELENA, 2004, p. 40).<br />

Respaldado pelo direito que confere ao escritor <strong>de</strong> inventar, para assim – via<br />

imaginação, fazer falar o silêncio no qual o passado mergulha, Alencar inventa Ivo, o<br />

Garatuja, personagem visto como endiabrado pela socieda<strong>de</strong>, por conta <strong>de</strong> um dom natural:<br />

o da pintura. É através <strong>de</strong>la que Ivo constrói versões não-oficiais das pessoas e dos eventos<br />

da cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sarruma o que está estabelecido e <strong>de</strong>sperta o ódio dos po<strong>de</strong>rosos,<br />

principalmente dos religiosos: “O povo divertia-se a ver as diabruras do rapaz. [...]Os<br />

malignos achavam nos bonecos algumas parecenças com certos gran<strong>de</strong>s da cida<strong>de</strong>, e<br />

<strong>de</strong>scobriam umas alusões aos boatos e mexericos do tempo” (ALENCAR, 1966, p. 1290).<br />

Com características <strong>de</strong> um pícaro, Ivo, assim como a sua arte, é um enjeitado, pois é<br />

fruto <strong>de</strong> uma união fora das regras. Se a sua arte é o salva <strong>de</strong> várias situações, ao final,<br />

porém, ele acaba a<strong>de</strong>quando-se, por amor, às regras vigentes e abandona o seu instrumento<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, a pintura.<br />

Como Ricardo, protagonista <strong>de</strong> Sonhos d’ouro, Ivo tem uma sensibilida<strong>de</strong> artística<br />

inata, pois teria “n’alma as primaveras floridas, que os poetas chamam lirismos”<br />

(ALENCAR, 1966, p.1299). Se por um lado o dom artístico não lhe serve<br />

profissionalmente, por outro, dota-o <strong>de</strong> um olhar especial em relação ao mundo. Mas se a<br />

alma sensível <strong>de</strong> Ricardo reveste-o <strong>de</strong> uma luci<strong>de</strong>z que o leva à amargura e à solidão, em<br />

45 A instigante discussão entre a tenuida<strong>de</strong> dos limites entre o público e o privado no Brasil alegorizados no<br />

romance alencarino está presente em outros textos <strong>de</strong> Helena, como “A solidão tropical e os pares à <strong>de</strong>riva”.


1 130<br />

Ivo esta luci<strong>de</strong>z é um caminho para que ele, enjeitado, ajeite-se socialmente, através da<br />

esperteza e da manipulação, conseguida por sua arte sui generis. Assim, ele se tornaria o<br />

primeiro brasileiro a inventar o “homem da situação”, mobilizando a opinião pública<br />

através da pintura, e fazendo com que o pai <strong>de</strong> sua amada fosse bem sucedido: “Eis como<br />

inventou o Ivo o ‘ homem da situação’. O que ele fez com o seu pincel, ainda há hoje quem<br />

o faça com uma gazeta, e com o mesmo <strong>de</strong>sembaraço e petulância”(ALENCAR, 1966, p.<br />

1366).<br />

A veia artística <strong>de</strong> Ivo, entretanto, não foi incentivada pelos seus educadores - os<br />

padres jesuítas (que, aliás, o expulsam do colégio), nem pela própria socieda<strong>de</strong>, que vê a<br />

arte <strong>de</strong> Ivo como mera travessura.<br />

Embora seu talento não tenha sido reconhecido pelos jesuítas, vai trabalhar com<br />

Belmiro, o pintor da cida<strong>de</strong>. Belmiro não é, todavia, um artista, mas um artífice, pintor <strong>de</strong><br />

tetos e pare<strong>de</strong>s; alguém que faz seu ofício mecanicamente (como Sebastião, o tabelião),<br />

comparado pelo narrador a um moleiro e a uma doceira, dado o seu “escrúpulo <strong>de</strong> copista e<br />

paciência <strong>de</strong> chin” (ALENCAR, 1966, p.1293). É pintor <strong>de</strong> mol<strong>de</strong>s, incapaz <strong>de</strong> “copiar da<br />

natureza, ainda que com o auxílio <strong>de</strong> um espelho” (ALENCAR, 1966, p.1293), o que<br />

confere a sua mediocrida<strong>de</strong>.<br />

Ao contrário <strong>de</strong>le, Ivo é capaz <strong>de</strong>, em sua alma <strong>de</strong> artista, ainda que pícara, trazer à<br />

tona em sua arte os elementos locais, poetizar a natureza pátria (e receber elogios por isto,<br />

embora Belmiro assuma as obras); um pintor colonial, construído com o olhar <strong>de</strong> artista<br />

romântico: “A cansada grinalda e os pássaros com que o Belmiro invariavelmente ornava<br />

as pare<strong>de</strong>s e tetos das casas, foram substituídos por festões <strong>de</strong> flores graciosas, e trechos <strong>de</strong><br />

boscagens que pareciam copiados das florestas da Carioca e da Tijuca” (ALENCAR, 1966,<br />

p.1294).


1 131<br />

Ainda assim, Ivo é consi<strong>de</strong>rado um “mecânico e artífice”, já que “artista naquele<br />

tempo servia para indicar os gramáticos e retóricos, ou os matreiros férteis em manhas ”<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1299).<br />

Do outro lado da teia social está o tabelião Sebastião Ferreira Freire, personagem<br />

histórico que a pena <strong>de</strong> Alencar transforma em ficção, caracterizado pelo ofício que<br />

representa, <strong>de</strong> forma caricata:<br />

No meio da banca, na cava aberta para acomodar o corpo,<br />

surgia um busto <strong>de</strong> homem, coberto <strong>de</strong> tabaco e poeira, com<br />

um chinó tão escandalosamente ruivo, que já frisava com o<br />

vermelho. [...] Às orelhas, que não invejariam a <strong>de</strong> um<br />

perdigueiro [...] servia-lhes <strong>de</strong> ornato duas penas <strong>de</strong> ganso,<br />

que lançando as longas ramas sobre as espáduas, espetavam<br />

lhe na testa os bicos rombos e cobertos com espessa crosta <strong>de</strong><br />

tinta. [...] Tudo ali se revestia do aspecto poento e venerando<br />

daquele alfarrábio vivo, enca<strong>de</strong>rnado em pergaminho<br />

humano.(ALENCAR, 1966, p. 1282).<br />

Sebastião, como dono <strong>de</strong> cartório, domina os códigos burocráticos e os trâmites<br />

legais, assenhoreando-se <strong>de</strong>les a ponto <strong>de</strong> transformar a escrita do cartório, do papel oficial<br />

em enigma – forma <strong>de</strong> manter o seu domínio, mas também <strong>de</strong> exibir o vazio e o<br />

automatismo do papel da escrita documental. Assim, Ivo, que vai trabalhar no cartório para<br />

ficar mais perto <strong>de</strong> sua amada, Marta, a filha <strong>de</strong> Sebastião, não consegue ler nenhum dos<br />

arquivos. Mas o que atrapalha Ivo faz o tabelião regozijar-se, já que consegue fazer <strong>de</strong><br />

olhos fechados o sinal público, que tem: “um quê <strong>de</strong> hieróglifo [...] Se lhe coubesse alguma<br />

vez a mercê do hábito, como o estavam dando os governadores [...], sem dúvida que as<br />

armas da família haviam <strong>de</strong> ser a cópia do sinal público, que autenticava as escrituras<br />

lavradas nas notas” (ALENCAR, 1966, p.1285).<br />

A res publica – tal como o narrador anuncia na introdução, referindo-se ao governo<br />

<strong>de</strong> D. Pedro II, torna-se privada; o privilégio e o pessoal apagam o rastro do coletivo e o


1 132<br />

que documenta o passado colonial aparece em sua ilegibilida<strong>de</strong>. Ao mesmo tempo, a<br />

condição <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong> atribuída ao documento escrito é abalada, dada a carnavalização da<br />

figura do tabelião pelo narrador, como notamos, por exemplo, no capítulo VII: Marta<br />

assusta-se com a sombra <strong>de</strong> Ivo, pensando ser um caipora e Sebastião “<strong>de</strong>creta” que ela está<br />

errada, pois o que vira teria sido um macaco: “Declaro que é macaco, do que dou<br />

testemunho e porto por fé, e em prova <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> firmo com meu público sinal...”<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1298).<br />

Em uma socieda<strong>de</strong> na qual a verda<strong>de</strong> é questionável e ilegível, a arte seria percebida<br />

como mecânica e não fruto da sensibilida<strong>de</strong> poética; o único artista verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> O<br />

Garatuja, Ivo, tem a sua a veia plástica como maldição, como um pecado “ao <strong>de</strong>mais<br />

original, pois lho <strong>de</strong>ra a natureza, e não o podia negar” (ALENCAR, 1966, p.1299), como a<br />

sua própria condição <strong>de</strong> enjeitado.<br />

A arte nesta socieda<strong>de</strong>, como Ivo, é bastarda. Sua alcunha <strong>de</strong> Garatuja significa<br />

tanto rabisco, como <strong>de</strong>senho mal-feito. Isto é tanto mais irônico quando pensamos que o<br />

verda<strong>de</strong>iro Garatuja é o tabelião, entre suas escrituras hieroglíficas: “a mais tabelioa que se<br />

possa imaginar; dificilmente conseguiam os velhos escreventes lhe meter o <strong>de</strong>nte”<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1316) - e o po<strong>de</strong>r que elas <strong>de</strong>mandavam: a verda<strong>de</strong> era a do<br />

documento, ainda que ilegível. A Ivo cabe o outro po<strong>de</strong>r – que <strong>de</strong> tão ameaçador, <strong>de</strong>ve<br />

abandonar após o casamento com Marta, por exigência <strong>de</strong> Sebastião: o <strong>de</strong> uma arte que, se<br />

não é apreciada como Bela Arte, é dotada da força <strong>de</strong> mobilização, através da solidarieda<strong>de</strong><br />

que o riso instaura, como quando <strong>de</strong>senha no pelourinho um gran<strong>de</strong> painel representando<br />

São Sebastião entregando uma ban<strong>de</strong>ira a Sebastião e expulsando os porcos da cida<strong>de</strong>. Os<br />

porcos teriam as feições dos eclesiásticos rivais do tabelião:<br />

Atinando com a alegoria, a multidão disparou em um frouxo


1 133<br />

<strong>de</strong> riso, cujo burburinho cobriu o barulho das ondas a rolar<br />

na praia. Rompeu a revolução da gargalhada, a mais<br />

assoladora, e às vezes a mais cruel <strong>de</strong> todas as revoluções.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1364).<br />

A história da arte nos conta que a pintura colonial no Brasil caracterizava-se,<br />

sobretudo, por sua condição eclética. Havia uma permanente influência <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los<br />

importados, aos quais os artistas – nativos ou portugueses, condicionavam-se, copiando-os,<br />

até porque estes iam ao encontro do gosto das autorida<strong>de</strong>s que faziam as encomendas –<br />

geralmente pinturas religiosas, sendo que ao final do período colonial já há uma <strong>de</strong>manda<br />

por retratos. Ou seja, o tom das artes plásticas do período colonial é o da reprodução do<br />

mo<strong>de</strong>lo europeu. Era muito comum a repetição vulgar da arte européia, muitas vezes<br />

realizada por artistas, a partir <strong>de</strong> técnicas incipientes 46 , como faz a personagem Belmiro.<br />

É interessante notar que a técnica da reprodução manual da arte européia esbarrava<br />

em uma questão: a coloração. Ao ter que colorir, o artista po<strong>de</strong>ria conferir, mesmo a esta<br />

cópia, uma marca pessoal (ou mesmo local) ao trabalho.<br />

Esta edição do trabalho artístico pelos pintores coloniais nos permite inclusive fazer<br />

um paralelo com a questão romântica da busca da cor local, tão postulada pelos românticos,<br />

como o diferencial que sublinharia as especificida<strong>de</strong>s da nação. A coloração era algo<br />

sempre ausente da gravura tomada como mo<strong>de</strong>lo, pelas precárias condições gráficas da<br />

época. É a cor empregada pelo artista que conferirá a expressão da sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada<br />

um:<br />

Isto abria um ângulo inventivo para o nosso pintor, já que lhe<br />

era facultada a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imaginação para as soluções do<br />

46 Evi<strong>de</strong>ntemente há artistas <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> neste período, ainda que poucos, como por exemp lo, Aleijadinho. O<br />

próprio Mestre Valentim é atualmente objeto <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong> uma tese em arquitetura, que tem como hipótese<br />

que as suas obras são meras reproduções européias, conforme anunciado na coluna <strong>de</strong> Ancelmo Góis, no<br />

jornal O Globo, em 14/12/2003.


1 134<br />

colorido. A cor é o ápice da expressivida<strong>de</strong> pictórica, é sua<br />

característica mais viva e, nesse sentido, garante a<br />

criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um artista mesmo quando seu trabalho parte<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>senho adotado. (CAMPOFIORITO, 1983, p.21).<br />

Ironicamente, é justamente a cor que caracteriza (ou melhor, seria: caricaturiza) o<br />

pintor copista Belmiro como um tipo <strong>de</strong>sengonçado e ridículo, que traz no corpo e no<br />

figurino as marcas do seu ofício: “As pastas <strong>de</strong> alvaia<strong>de</strong> que tinha pelo cabelo ruivo e<br />

assanhado, bem como as <strong>de</strong>dadas <strong>de</strong> oca e zarcão, apalpadas nas mangas e peitos do gibão<br />

<strong>de</strong> cor in<strong>de</strong>scritível, estavam lhe <strong>de</strong>nunciando o ofício <strong>de</strong> pintor” (ALENCAR, 1966,<br />

p.1277).<br />

Se Belmiro converte-se em um confuso painel <strong>de</strong> tintas, tal e qual a própria questão<br />

da arte colonial, apresentada como cópia <strong>de</strong> influências da matriz, Sebastião não po<strong>de</strong> ser<br />

dissociado da burocracia e do po<strong>de</strong>r do documento, dado a ele, personagem apresentada<br />

como sem reflexão e mecânica: leitura metaforizada do papel do documento oficial, tão<br />

procurado pelas expedições dos eleitos do imperador e pelos antiquários, mas, por sua vez,<br />

<strong>de</strong>sprezado pelo narrador do texto e relativizado pela proposta poética <strong>de</strong> Alencar, que<br />

insiste em fazer da literatura uma ferramenta para trazer à tona, via ficção, as imagens do<br />

passado abafadas ou silenciadas pelo discurso historiográfico.<br />

Ao contrário do velho que o narrador encontra e que daria mote para as histórias do<br />

Garatuja, o personagem Sebastião não foge da fúria dos que querem congelar o seu<br />

discurso em uma história imobilizante e a serviço <strong>de</strong> uma erudição vazia. Ao contrário ele<br />

tem uma relação simbiótica com o ambiente <strong>de</strong> trabalho, um espaço <strong>de</strong> veneração à regra,<br />

ao automatismo, a um po<strong>de</strong>r ausente <strong>de</strong> coerência ou reflexão, como a própria pintura <strong>de</strong><br />

Belmiro, na qual o belo da arte se esvazia em meio à reprodução oca <strong>de</strong> sentido e à<br />

ausência da consciência artística.


1 135<br />

O aparentemente <strong>de</strong>spretensioso O Garatuja po<strong>de</strong> revelar as entrelinhas <strong>de</strong> uma<br />

discussão tecida, via ironia, sobre as relações entre arte e po<strong>de</strong>r, mostrando um Brasil<br />

colonial – que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo é assumido pelo narrador como uma paródia do país <strong>de</strong> seu<br />

tempo. Neste entrecruzamento <strong>de</strong> tempos e espaços, a tessitura narrativa é arrematada pelo<br />

questionamento da mimese, pensando a arte como transfiguração do real, por excelência.<br />

O final cômico oculta a profunda melancolia da falência da liberda<strong>de</strong> artística<br />

perante a hegemonia e a mediocrida<strong>de</strong>, caminhando lado a lado na narrativa. Po<strong>de</strong>-se ainda,<br />

talvez, estabelece uma ponte entre a representação do fracasso final <strong>de</strong> Ivo como artista e as<br />

reflexões <strong>de</strong> Alencar acerca da condição do intelectual no século <strong>de</strong>zenove, dispersas<br />

muitas vezes na forma <strong>de</strong> queixas não aprofundadas em seus textos críticos.<br />

As relações entre o pictórico e o poético também po<strong>de</strong>m ser inferidas na leitura <strong>de</strong><br />

Lucíola, romance no qual quadros em claro-escuro são tecidos como metáforas criadas à<br />

luz das tensões entre corpo e alma presentes no romance, consi<strong>de</strong>rado uma Dama das<br />

Camélias brasileira para <strong>de</strong>sgosto <strong>de</strong> Alencar que, se por um lado assume o intertexto no<br />

próprio romance, por outro reage à acusação <strong>de</strong> plágio ao mostrar que o diálogo exce<strong>de</strong> a<br />

mera cópia literária.<br />

A construção da personagem também é feita através <strong>de</strong> claros e escuros, em nuances<br />

cambiantes que a apresentam como Lúcia (Maria da Glória) / luz e Lúcifer/escuridão, entre<br />

o angélico e o <strong>de</strong>moníaco:“De resto, a senhora sabe que não é possível pintar sem que a luz<br />

projete claros e escuros. As sombras do meu quadro, se esfumam traços carregados,<br />

contrastam <strong>de</strong>buxando o relevo e colorido <strong>de</strong> límpidos contornos” (ALENCAR, 1966, p.<br />

312).<br />

Oposição esclarecida nos trajes e móveis da personagem, que troca o vermelho pelo<br />

azul e branco celestiais e a mansão e o mobiliário luxuosos pela casa mo<strong>de</strong>stamente


1 136<br />

mobiliada, função que dialoga com a rejeição romântica ao consumo capitalista.<br />

O diálogo com as artes plásticas faz-se também presente na reivindicação da arte<br />

clássica como forma <strong>de</strong> relativizar a presença do erótico no romance, em um paralelo entre<br />

o classicismo e sua nu<strong>de</strong>z que não enrubesceria 47 no diálogo com a narratária do romance:<br />

Entretanto, se a senhora não conhece as O<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Horácio e<br />

os amores <strong>de</strong> Ovídio, se nunca leu a <strong>de</strong>scrição da festa <strong>de</strong><br />

Baco e não tem notícia dos mistérios <strong>de</strong> Adônis ou do rito<br />

afrodísio das virgens <strong>de</strong> Pafos, que em comemoração ao<br />

nascimento da <strong>de</strong>usa iam certos dias do ano banhar-se na<br />

espuma do mar e oferecer as primícias do seu amor a quem<br />

mais cedo as cobiçava; se ignora tudo isto, rasgue estas<br />

folhas (...)<br />

(ALENCAR, 1966, p. 339).<br />

Relação retomada pelo narrador ao comentar a revolta <strong>de</strong> Paulo com a cena:<br />

Quando a mulher se <strong>de</strong>snuda para a arte, a inspiração a<br />

transporta para mundos i<strong>de</strong>ais, on<strong>de</strong> a matéria se <strong>de</strong>pura ao<br />

hálito <strong>de</strong> Deus; quando porém a mulher se <strong>de</strong>snuda para<br />

cevar, mesmo com a vista, mesmo com a concupiscência <strong>de</strong><br />

muitos, há nisto uma profanação da beleza e da criatura<br />

humana, que não tem nome.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 352)<br />

Entretanto, como na obra <strong>de</strong> Manet, a figura nua escandaliza por aludir ao mundo<br />

coevo a Alencar; é a condição <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna que gera o interdito à “bacante” Lúcia.<br />

A cena do bacanal é <strong>de</strong>scrita segundo a dicção pictórica, como a aparição <strong>de</strong> Guida.<br />

Em chiaroscuro e tons <strong>de</strong> vermelho, cor índice da luxúria na narrativa, o cenário lascivo da<br />

casa <strong>de</strong> Sá é erguido em múltiplos espelhos, <strong>de</strong>svendando i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s não assumidas no<br />

espaço social em uma atmosfera propositalmente confusa, <strong>de</strong> aparências:<br />

A sala não é gran<strong>de</strong>, mas espaçosa; cobre as pare<strong>de</strong>s um<br />

papel aveludado <strong>de</strong> sombrio escarlate, sobre o qual se<br />

<strong>de</strong>stacam entre espelhos duas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> quadros<br />

47 Po<strong>de</strong>mos aludir comparativamente à “Dejéuner sur l´herbe” <strong>de</strong> Eduard Manet e o escândalo produzido pela<br />

nu<strong>de</strong>z que, nas palavras poéticas <strong>de</strong> Drummond, “pela primeira vez nos provoca”: o nu escandaliza por ser<br />

contemporâneo e não uma alusão mítica.


1 137<br />

representando os mistérios <strong>de</strong> Lesbos. Deve fazer idéia da<br />

energia e aparente vitalida<strong>de</strong> com que as linhas e colorido<br />

dos contornos se <strong>de</strong>buxavam no fundo rubro, ao trêmulo da<br />

clarida<strong>de</strong> <strong>de</strong>slumbrante do gás. (...)<br />

Havia tal profusão <strong>de</strong> espelhos, que multiplicava e reproduzia<br />

ao infinito, numa confusão fantástica, os menores objetos. As<br />

imagens, projetando-se ali em todos os sentidos,<br />

apresentavam-lhe por mil faces.(...)<br />

O aspecto brilhante das iguarias esquisitas, entre as<br />

irradiações do cristal e os reflexos áureos, rubros ou<br />

violáceos do ma<strong>de</strong>ira, do porto e do Borgonha...<br />

(ALENCAR, 1966, p. 340)<br />

A arquitetura do texto organiza-se em um quadro a dialogar com a pintura<br />

romântica, na expressivida<strong>de</strong> das cores quentes a indiciar o ambiente <strong>de</strong> luxúria. À<br />

remissão ao jogo <strong>de</strong> claro-escuro da ceia <strong>de</strong> Sá continua, <strong>de</strong>sta vez na relação entre loucura<br />

e razão, na fala <strong>de</strong> Sá: “abolição completa da razão, do tempo, da luz; e inauguração do<br />

reinado das trevas e da loucura”. (ALENCAR, 1966, p. 342).<br />

Lúcia situa-se neste quadro no embate acima aludido: <strong>de</strong>sliza entre a luz e a sombra<br />

como enigma para Paulo.<br />

A encenação <strong>de</strong> Lúcia como pintura viva, baseada nos quadros <strong>de</strong> Sá inspirados<br />

“nas filhas <strong>de</strong> Lesbos” (ALENCAR, 1966, p. 348), entre o <strong>de</strong>purar e o cevar (no sentido <strong>de</strong><br />

satisfazer) coloca-se em xeque a questão das relações entre a moral e a mimese artística,<br />

presente nas entrelinhas da carta a narratária. 48<br />

Ao abandonar o campo estético, o motivo das pinturas torna-se torpe e <strong>de</strong>gradante.<br />

O que seria, segundo Sá:“o original <strong>de</strong>las; não o original frio e calmo, mas um verda<strong>de</strong>iro<br />

mo<strong>de</strong>lo, vivendo, palpitando, sorrindo, esculpindo em carne todas as paixões que <strong>de</strong>veriam<br />

48 Na remissão <strong>de</strong> Lúcia, enquanto Paulo lia Bernadin <strong>de</strong> Saint-Pierre para ela, sua imagem é novamente<br />

comparada a Safo: “Lúcia <strong>de</strong>ixou pen<strong>de</strong>r a cabeça sobre o seio, cruzou as mãos nos joelhos dobrando o talhe,<br />

como a estatueta da Safo <strong>de</strong> Pradier que por aí anda tão copiada em marfim e porcelana”. Inversa à cena do<br />

bacanal e ao seu passado “sombrio”, a cena pictórica neoclássica é reelaborada em um quadro frio e calmo,<br />

como as pinturas <strong>de</strong> Sá. Por outro lado, a doçura e inocência da cena “verda<strong>de</strong>ira” revela-se superior às<br />

reproduções da estatueta : a aura permanece, aqui, na realida<strong>de</strong>.


1 138<br />

ferver no coração daquelas mulheres”(ALENCAR, 1966, p. 349) perfaz-se em simulacro<br />

imoral porque instala-se no limite entre arte e natureza, ambas <strong>de</strong>ssacralizadas pela<br />

prostituição. Ao dramatizar os quadros, Lúcia empresta o seu corpo e a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,<br />

como faz ao vendê-lo e assim, mercantiliza a sua atuação.<br />

O erotismo aceitável pelo afastamento na pintura neoclássica, ao ganhar suporte<br />

dramático cria um pathos com o espectador. Esta proximida<strong>de</strong>, inexistente na nu<strong>de</strong>z “fria e<br />

calma”, torna a cena, proibitiva à moral oitocentista:<br />

Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma <strong>de</strong> um<br />

dos jarros <strong>de</strong> flores, trançou-a nos cabelos, coroando -se <strong>de</strong><br />

verbena, como as virgens gregas. Depois, agitando as longas<br />

tranças negras, que se enroscaram quais serpes vivas, retraiu<br />

os rins num requebro sensual, arqueou os braços e começou<br />

a imitar com a posição, com o gesto, com a sensação do gozo<br />

voluptuoso que lhe estremecia o corpo, com a voz que<br />

expirava no flébil suspiro e no beijo soluçante, com a palavra<br />

trêmula que borbulhava dos lábios no <strong>de</strong>líquio do êxtase<br />

amoroso. (ALENCAR, 1966, p. 350).<br />

A representação encenada em “quadros vivos, que se sucediam rápidos”<br />

(ALENCAR, 1966, p.350) apresenta laivos da forma clássica, como a coroa <strong>de</strong> flores, as<br />

tranças e as poses, que em movimento sinestésico e sensual per<strong>de</strong>m a aura acadêmica e<br />

transformam-se em verda<strong>de</strong>, dissolvendo o teor artístico, como anuncia a fala <strong>de</strong> Paulo: “-<br />

(...) Estes quadros são mais expressivos e naturais! São sublimes <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>! (ALENCAR,<br />

1966, p. 351). A linguagem da pintura é metamorfoseada em imagem presente fisicamente<br />

e atinge o seu clímax no gozo encarnado nos gestos que <strong>de</strong>sritualizam o artístico.<br />

Mas como a representação <strong>de</strong> Lúcia seria verda<strong>de</strong>ira se esta finge ser quem não é?<br />

No jogo <strong>de</strong> espelhos da ceia a verda<strong>de</strong>, a mimese, a luz e a sombra apresentam-se em seus<br />

múltiplos disfarces, em seus limites borrados, em suspenso, impondo a dúvida como fonte<br />

<strong>de</strong> reflexão.


1 139<br />

Por outro lado, e <strong>de</strong> forma contraditória, é justamente contra as interdições morais<br />

ao escritor romântico que o narrador se insurge em um paralelo com os caminhos possíveis<br />

a Alencar, entusiasta leitor <strong>de</strong> Balzac, frente ao imaginário oitocentista e ao seu público.<br />

Em Senhora, o jogo <strong>de</strong> espelhos entre verda<strong>de</strong> e mimese constrói-se na imagem do<br />

retrato <strong>de</strong> Seixas, encomendado por Aurélia a “um pintor notável, êmulo <strong>de</strong> Vítor Meireles<br />

e Pedro Américo” (ALENCAR, 1966, p. 1140). A tênue discussão acerca do ambiente<br />

artístico nas crônicas alencarinas talvez dialogue com o silêncio em torno <strong>de</strong>sta personagem<br />

in<strong>de</strong>finida, sem marcas, já que constrói na emulação a arte, como Seixas.<br />

Como o retrato <strong>de</strong> Dorian Gray, “pintado” por Oscar Wil<strong>de</strong> anos <strong>de</strong>pois, o quadro<br />

<strong>de</strong> Seixas <strong>de</strong>ve cindir a pura figuração, no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Aurélia em pintar a alma do homem<br />

que amara um dia.<br />

Ao romper com a percepção mimética clássica do retrato, o pedido <strong>de</strong> Aurélia<br />

confun<strong>de</strong> o pintor. “- Pintei o que vi. Se <strong>de</strong>seja um retrato <strong>de</strong> fantasia, é outra coisa,<br />

respon<strong>de</strong>u o artista”.<br />

Para além das limitações aca<strong>de</strong>micistas, o retrato <strong>de</strong> Seixas propõe uma concepção<br />

<strong>de</strong> arte a superar o visível, só possível ao pintor pela imitação <strong>de</strong> suas expressões artificiais,<br />

fixando a imagem “vista”, já que ele fora incapaz <strong>de</strong> olhar com “olhos <strong>de</strong> artista”, como<br />

propôs Alencar.<br />

Apesar disto, o artista cria mais do que “uma obra <strong>de</strong> arte”, pois a partir do olhar<br />

amoroso <strong>de</strong> Aurélia pinta na tela, como uma ressurreição, uma imagem do passado, levando<br />

a heroína à <strong>de</strong>voção <strong>de</strong>sta imagem.<br />

Po<strong>de</strong>mos concluir que as imagens e os termos relacionados à pintura e empregados<br />

por Alencar em seus textos são elementos <strong>de</strong> reflexão sobre a linguagem literária.<br />

Associada à imagem, a imaginação poética entremeia e dissolve as oposições cartesianas


1 140<br />

entre natureza e civilização, e história e ficção em um olhar romântico capaz <strong>de</strong> tecer a<br />

luci<strong>de</strong>z em meio à fantasia e <strong>de</strong>senhar dialeticamente jogos <strong>de</strong> sombra e <strong>de</strong> luz a <strong>de</strong>linear a<br />

face vária do nacional, a partir das modulações tecidas pela História, pelas artes plásticas e<br />

pela literatura.


1 141<br />

CAPÍTULO 2:<br />

A DESCRIÇÃO DO BRASIL E O BRASIL DA DESCRIÇÃO :<br />

ESPAÇO E MEMÓRIA<br />

Quem chegou, ainda que<br />

apenas em certa medida,<br />

à liberda<strong>de</strong> da razão,<br />

não po<strong>de</strong> sentir-se sobre<br />

a Terra senão como<br />

andarilho – embora não<br />

como viajante em<br />

direção a um alvo<br />

último: pois este não<br />

há.(NIETZSCHE,<br />

2000,99).<br />

A <strong>de</strong>scrição do Brasil inspira-me mais entusiasmo do que o Brasil da <strong>de</strong>scrição” -<br />

confessa (e provoca) o ainda muito jovem José <strong>de</strong> Alencar em suas polêmicas Cartas a<br />

“Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios” (1966, p. 865).


1 142<br />

O jogo <strong>de</strong> palavras supracitado já revelava em suas entrelinhas as sementes do que<br />

se arvoraria como o jogo romanesco a ser por ele construído alguns anos <strong>de</strong>pois: mais do<br />

que aceitar o legado do olhar europeu - em especial o dos cronistas e viajantes - no esforço<br />

<strong>de</strong> se imaginar o Brasil, havia que se reconhecer a sutil diferença entre <strong>de</strong>screver e ser<br />

<strong>de</strong>scrito, entre escrever (a sua história, a sua literatura) ou ser escrito.<br />

A compreensão da palavra como via imaginativa da memória do país é uma<br />

proposta alencarina que extrapola o entusiasmo da juventu<strong>de</strong>, tornando-se recorrente em<br />

sua obra crítica – e convertendo-se em práxis numa produção literária que propõe a<br />

modulação <strong>de</strong> imagens ligadas a memória nacional.Dentre estas imagens, o passeio e a<br />

paisagem <strong>de</strong>stacam-se como meios <strong>de</strong> compreensão sobre o cruzamentos das memórias<br />

coletiva e subjetiva. Em torno <strong>de</strong>ste fio condutor, analisaremos a construção da imagem do<br />

passeador romântico nos textos <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar e <strong>de</strong> Joaquim Manoel <strong>de</strong> Macedo.<br />

Antes, porém, <strong>de</strong> analisá-los faremos referência às reflexões seminais <strong>de</strong> Walter Benjamin<br />

– o que por sua vez nos remete a Charles Bau<strong>de</strong>laire, e àquele que, anteriormente a este,<br />

dota a condição do passeador <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>: Jean – Jacques Rousseau.<br />

A partir <strong>de</strong>ste viés será aberto um leque reflexivo que abarca a riqueza semântica<br />

contida na aparente ingenuida<strong>de</strong> do ato <strong>de</strong> caminhar, que se <strong>de</strong>sdobra em sua polissemia em<br />

uma re<strong>de</strong> significativa bifronte, a abarcar a viagem física e a existencial e a relação entre o<br />

caminhante – a passear ou a flanar, com o corpo urbano, compreendido como potência<br />

ambígua e dialeticamente reveladora e produtora <strong>de</strong> memórias.<br />

Os <strong>de</strong>vaneios do caminhante solitário são na verda<strong>de</strong> não um livro construído para<br />

ser editado, mas manuscritos <strong>de</strong>ixados por Jean –Jacques Rousseau e encontrados por<br />

ocasião <strong>de</strong> sua morte; é obra <strong>de</strong> um filósofo já <strong>de</strong>sencantado e proscrito, que faz <strong>de</strong> suas


1 143<br />

caminhadas as catalisadoras <strong>de</strong> <strong>de</strong>vaneios, em um momento em que <strong>de</strong>siludido com a<br />

tentativa <strong>de</strong> refletir seus problemas na dimensão histórica, <strong>de</strong>sloca-os para uma perspectiva<br />

individual.<br />

Destarte, o mergulho <strong>de</strong> Rousseau na solidão, permitido pelo seu afastamento<br />

voluntário da socieda<strong>de</strong>, é um isolamento muito mais físico do que simbólico, já que se<br />

realiza no incessante <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> esvaziar sua vida da lembrança do(s) outro(s) e do constante<br />

confronto <strong>de</strong> um eu (je) que se revela no contato com a alterida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> um eu (moi) que se<br />

revela a si. 49 Porém, a tentativa <strong>de</strong> abdicar do je, bem como da socieda<strong>de</strong>, revela-se falha, já<br />

que ambos estão introjetados nele mesmo.<br />

A solidão o leva a vislumbrar a fragmentação subjetiva, e não a individuação<br />

completa. Isto é: ao isolar-se, Rousseau, ainda que inconscientemente, torna sua reclusão<br />

um instrumento <strong>de</strong> reflexão.<br />

O indivíduo rousseauniano que se engolfa nos caminhos e <strong>de</strong>scaminhos <strong>de</strong> um eu<br />

não mais unitário, mas fragmentado, semeia a partir <strong>de</strong> seu isolamento a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

“repensar o pacto do social com o natural e com o individual, fora do regime absolutista e<br />

da certeza teológica <strong>de</strong> recorte do mundo” (HELENA, 2000, p. 133).<br />

Por isto, ainda que concebamos o discurso dos <strong>de</strong>vaneios como um monólogo que<br />

não possuía a menor pretensão <strong>de</strong> realizar-se diálogo, é necessário percebê-lo como<br />

construção em relação a uma alterida<strong>de</strong> que permanece, <strong>de</strong>bal<strong>de</strong> os esforços <strong>de</strong> afastamento<br />

realizados, em uma escritura que a torna presente, já que instrumento <strong>de</strong> vivificação do<br />

passado, pois ao processo da lembrança Rousseau alia o da experimentação.<br />

49 Sobre o jogo i<strong>de</strong>ntitário construído a partir e em torno da articulação entre o je e o moi, conferir os artigos<br />

<strong>de</strong> Lucia Helena. (In: HELENA, 2000 e HELENA, 2001).


1 144<br />

Não que o relembrar ressuscitasse o passado em sua integrida<strong>de</strong>; para Rousseau a<br />

lembrança trazida pelo <strong>de</strong>vaneio potencializa uma nova percepção, uma outra sensibilida<strong>de</strong>.<br />

Relembrar o ontem faz com que uma nova <strong>de</strong>lícia da alma surja, pois a leitura / lembrança<br />

<strong>de</strong>ste passado (fixo pela escrita) no presente apresentando-se <strong>de</strong> forma vária, sendo o seu<br />

<strong>de</strong>sdobramento e nunca uma cópia fiel.<br />

Embora a idéia <strong>de</strong> múltiplos <strong>de</strong>slocamentos – que extrapolam a dimensão espacial,<br />

permeiem o relato, este se inicia em uma situação <strong>de</strong> imobilida<strong>de</strong>: “Eis-me, portanto,<br />

sozinho sobre a terra” (ROUSSEAU, 1986, p.23).<br />

Esta conclusão inaugura no presente o ponto <strong>de</strong> partida para o <strong>de</strong>slocamento nesta<br />

caminhada que é, acima <strong>de</strong> tudo, existencial, mas também temporal. É a partir <strong>de</strong>ste<br />

presente fixo que ele irá migrar diversas vezes para o passado, que, contraditoriamente,<br />

quer esquecer e ao mesmo tempo reivindicar a fim <strong>de</strong> fazer-se compreendido, não mais aos<br />

outros, mas a si.<br />

Será justamente a articulação incessante entre passado e presente a premissa para o<br />

alcance, nesse presente fixo, da paz, o que permitirá um vislumbre – ainda que mínimo, do<br />

futuro. Instaura-se então, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a abertura do manuscrito, a dialética do enfrentamento entre<br />

o fixar e o <strong>de</strong>slocar.<br />

Os passeios são indicados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira caminhada até a décima e última<br />

(inacabada) como formas <strong>de</strong> fixar-se no mundo – contra o mundo, na solidão, mas<br />

buscando em um <strong>de</strong>slocamento incessante a paz e a felicida<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>stino fixo <strong>de</strong>senrola-se<br />

dialeticamente em meio ao choque com o <strong>de</strong>slocamento dos <strong>de</strong>vaneios-refúgios.<br />

O <strong>de</strong>vaneio é induzido pela caminhada e revela o confronto entre o per<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> si,<br />

<strong>de</strong> sua imagem enquanto construção social e o encontro do moi; choque eterno perante a<br />

impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se estruturar fora do paradigma da socieda<strong>de</strong>, já que Rousseau abandona


1 145<br />

o mundo, mas do mundo – mesmo em seus <strong>de</strong>vaneios, não escapa. E mesmo o encontro<br />

com o moi não é um encontro transparente, também é um mistério às vezes, que, entretanto<br />

po<strong>de</strong> vir a ser superado pela meditação. A estrutura do <strong>de</strong>vaneio é circular, um retorno a si,<br />

um recolher-se.<br />

A quinta caminhada, famosa pela menção da palavra “românticas” (embora se<br />

apresente no sentido <strong>de</strong> pitoresco), é também assim estruturada, como aliás o cenário <strong>de</strong>sta<br />

caminhada: a ilha em torno <strong>de</strong> um lago arredondado. Neste <strong>de</strong>vaneio, Rousseau se lembra<br />

<strong>de</strong> seu breve retiro na Ilha <strong>de</strong> La Mote. Este círculo, este voltar –se incessantemente a si é<br />

expresso pelo próprio Rousseau que, apesar <strong>de</strong> prisioneiro, saboreava a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

encapsular-se e reencontrar-se. Ainda quando alega o abandono <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>vaneios para o<br />

estudo da botânica (na sétima caminhada) faz <strong>de</strong>ste passatempo também uma fonte <strong>de</strong><br />

divagação: “é a ca<strong>de</strong>ias das idéias acessórias que me liga à botânica. Ela reúne e lembra à<br />

minha imaginação todas as idéias que mais a lisonjeiam” (ROUSSEAU, 1986, p. 102).<br />

Forma <strong>de</strong> indução à meditação, o <strong>de</strong>vaneio é construído no choque entre o fixo e o<br />

móvel, entre o estado (que se quer) eterno <strong>de</strong> solidão e o <strong>de</strong>slocamento incessante do<br />

<strong>de</strong>vaneio. Ao contrário do eu-lírico bau<strong>de</strong>leiriano que se eva<strong>de</strong> na multidão e torna-se só<br />

em meio a ela 50 , o eu-biográfico dos <strong>de</strong>vaneios é <strong>de</strong>vorado pela solidão por ser conhecido 51 ,<br />

apontado, ironizado; ele não é mais um na multidão, não po<strong>de</strong>, em meio a esta, travestir-se<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecido ou reinventar-se em múltiplas máscaras.<br />

Na escritura rousseaniana, os <strong>de</strong>vaneios e encontros com o eu mais íntimo<br />

inauguram a percepção romântica <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, instaurada no signo do passeador. Em<br />

50<br />

Para Bau<strong>de</strong>laire, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> artista é o <strong>de</strong> um “solitário dotado <strong>de</strong> uma imaginação ativa, sempre viajando<br />

através do gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> homens” (BAUDELAIRE, 1997, p. 24).<br />

51<br />

Como po<strong>de</strong>mos notar, por exemplo, na nona caminhada, frente a <strong>de</strong>cepção experimentada ao notar que o<br />

militar inválido que sempre o cumprimentara com a poli<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sconhecido havia virado-lhe a cara.<br />

Rousseau acredita que alguém o reconhecera e contara a sua vida, reprovável aos olhos da socieda<strong>de</strong>, a esse<br />

senhor.


1 146<br />

Bau<strong>de</strong>laire, o homem que passeia pelo caleidoscópio urbano não é mais o promeneur.<br />

O que interessa ao flâneur é o per<strong>de</strong>r-se a si e ao tempo <strong>de</strong>marcado, para então<br />

encontrar na cida<strong>de</strong> uma outra dimensão temporal. A urbe para além da mera paisagem é o<br />

quarto que lhe abriga, mais humano do que o seu próprio, pois não po<strong>de</strong> neste vagar<br />

esquecendo-se <strong>de</strong> sua existência como indivíduo; ao mesmo tempo, é a vitrine que o expõe<br />

à multidão - a dita dialética do flâneur, que “por um lado, [é] o homem que se sente olhado<br />

por tudo e todos, simplesmente o suspeito; por outro o totalmente insondável, o escondido”<br />

(BENJAMIN, op. cit., p. 190). Sua obra encontra-se tão profundamente marcada pelo<br />

“fenômeno” da multidão que nos versos <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire esta se apresenta como mais do que<br />

uma realida<strong>de</strong> exterior: como personagem mesmo.<br />

Para Benjamin, o mundo <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire não admitia mais o passeador romântico,<br />

mas o flâneur, que oferece como esmola ao viaja nte “as gran<strong>de</strong>s reminiscências, o frêmito<br />

histórico” (BENJAMIN, 1997, 185). A sabedoria que lhe interessa não é a histórica; a<br />

posse <strong>de</strong> seu saber <strong>de</strong>riva da vivência e da experimentação. O flâneur concebe o espaço<br />

urbano como enigma: hieróglifos clamam por sua <strong>de</strong>cifração, articulando-se como cacos<br />

em um caleidoscópio aos olhos do flanador: “Por força <strong>de</strong>ste fenômeno [da banalização do<br />

espaço], tudo o que acontece potencialmente neste espaço é percebido simultaneamente. O<br />

espaço pisca ao flâneur: o que terá acontecido em mim?” (BENJAMIN, op. cit., p. 188).<br />

O caminho <strong>de</strong> Rousseau é trilhado por ele próprio, o narrador <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>vaneios é o<br />

eu-biográfico, mas que se anuncia plural, na escrita confessada pelo autor, no embate entre<br />

ser Jean-Jacques, Senhor Rousseau, eu em relação ao(s) outro(s), eu em relação a mim;<br />

escrita ilusória no que toca a ser translúcida, escrita <strong>de</strong>rrisória no que concerne à sua<br />

compreensão como simples <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> organizar e fixar <strong>de</strong>vaneios. Sim, há o apelo – ainda<br />

que inconsciente, ao outro; é no seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> libertação da socieda<strong>de</strong> que Rousseau mais


1 147<br />

aprisiona-se a esta, é na verbalização da vonta<strong>de</strong> da ausência da alterida<strong>de</strong> que esta mais<br />

faz-se presente. O flâneur <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire opõe-se sobremaneira a ele: não passeia mais por<br />

prazer, mas para testar-se e questionar-se em meio aos cacos <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> na qual<br />

percebe a sensação <strong>de</strong> catástrofe iminente. Ele não procura mais a si, seu <strong>de</strong>sejo é o <strong>de</strong><br />

per<strong>de</strong>r-se na multidão. Mas este ato, que po<strong>de</strong>ria ser um <strong>de</strong>vaneio, anuncia-se como uma<br />

concretu<strong>de</strong> dolorosa, junto à impossibilida<strong>de</strong> do reencontro consigo no labiríntico caos<br />

urbano.<br />

Como ao flâneur bau<strong>de</strong>leiriano, o espaço pisca ao passeador romântico dos textos<br />

oitocentistas brasileiro. Mas tal espaço não é somente a urbe que seduz e confun<strong>de</strong> o<br />

flâneur, ou a natureza pitoresca, que engolfa o passeador rousseauniano, como veremos. Da<br />

mesma forma, o passeador dos textos brasileiros não po<strong>de</strong> ser o promeneur solitário <strong>de</strong><br />

Rousseau, que conhecia a todos em sua cida<strong>de</strong>zinha, embora não chegue a per<strong>de</strong>r-se na<br />

multidão, como faria o eu-lírico <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire em tantos poemas, como em “A uma<br />

passante”.<br />

Gostaríamos <strong>de</strong> analisar o signo do passeador, como elemento <strong>de</strong> reflexão<br />

romântica, em dois livros: Sonhos d’ouro, <strong>de</strong> Alencar, e Um passeio pela cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, <strong>de</strong> Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo. Cabe lembrar que o signo do passeio era um topos<br />

conhecido na Europa, retomado, por exemplo, por Sterne, e, <strong>de</strong>pois, por Stendhal.<br />

Em Uma viagem sentimental através da França e da Itália (1768), Laurence Sterne<br />

reapresenta a personagem Yorick 52 , <strong>de</strong> A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy,<br />

neste livro, como protagonista. Pastor tuberculoso, Yorick – apesar do título do livro, não<br />

consegue empreen<strong>de</strong>r sua viagem, pois não atravessa a fronteira italiana. Apesar disto,<br />

52 A personagem Yorick era um pastor da paróquia <strong>de</strong> Shandy; seu nome é claro intertexto com o bobo da<br />

corte do pai <strong>de</strong> Hamlet, cujo crânio é jogado pelos coveiros na frente do príncipe, no 5 o ato da tragédia.


1 148<br />

comenta os fatos ocorridos em Roma, Milão e Florença. Sua viagem transcen<strong>de</strong> a dimensão<br />

física. A paisagem que busca é, sobretudo, humana; não procura os monumentos, mas os<br />

<strong>de</strong>talhes, captados através <strong>de</strong> pequenos acontecimentos pela sua sensibilida<strong>de</strong>; o<br />

sentimento, e não o intelecto, organiza e apreen<strong>de</strong> o mundo. A viagem é uma viagem pela<br />

natureza do Homem. Stendhal, por sua vez, em Rome, Naples e Florence escreve um texto<br />

menos interessado em <strong>de</strong>screver a viagem do que em escrever as confissões do viajante.<br />

Em Alencar e Macedo, a viagem é uma condição cognitiva; mas Alencar<br />

implementa – ao contrário do segundo, a solidão como traço indissolúvel do <strong>de</strong>slocamento.<br />

Mesmo em textos nos quais o lúdico e o humor emergem, como em O Garatuja, esta<br />

condição está presente: no passeio temporal e cognitivo feito pela voz narrativa no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro colonial em um tempo regido pelo sino da Igreja e com monumentos e pontos <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação a anunciar a ruína à época do autor; é também um passeio pelos <strong>de</strong>vaneios<br />

<strong>de</strong>sse narrador:<br />

O Garatuja é a primeira <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> crônicas dos tempos<br />

coloniais, algumas já escritas, outras já esboçadas, em<br />

tempos idos, quando o pensamento, ainda não <strong>de</strong> todo<br />

enredado nas teias do mundo, tinha folga para vaguear pelo<br />

passado. (ALENCAR, 1966, p.1267).<br />

Já em Ao correr da pena (folhetins do correio mercantil do Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong> 1854<br />

a 1850), Alencar anunciava a idéia da flânerie. Ao reclamar do estado <strong>de</strong> abandono e do<br />

<strong>de</strong>sprezo da elite pelo Passeio Público, freqüentado apenas pelos velhos e pelos moleques à<br />

caça <strong>de</strong> passarinhos, Alencar lamenta que apesar dos brasileiros imitarem os hábitos<br />

franceses, ainda não tenham <strong>de</strong>scoberto o hábito da flânerie<br />

uma coisa que eles [os franceses] inventaram. Sabeis o que é<br />

a flânerie? É o passeio ao ar livre, feito lenta e<br />

vagarosamente, conversando ou cismando, contemplando a<br />

beleza natural ou a beleza da arte; variando a cada momento


1 149<br />

<strong>de</strong> aspectos e <strong>de</strong> impressões. O companheiro inseparável do<br />

homem quando flana é o seu charuto; o da senhora é o seu<br />

buquê <strong>de</strong> flores.O que há <strong>de</strong> mais encantador na flânerie é<br />

que ela não produz unicamente o movimento material, mas<br />

também o exercício moral. Tudo no homem passeia: o corpo<br />

e a alma, os olhos e a imaginação. Tudo se agita; porém é<br />

uma agitação doce e calma, que excita o espírito e a fantasia,<br />

e provoca <strong>de</strong>liciosas emoções. (ALENCAR, 1966, p. 664 a<br />

666).<br />

Se na crônica, o narrador <strong>de</strong> Alencar vê na flânerie um passatempo <strong>de</strong>spreocupado,<br />

a catalisar <strong>de</strong>liciosas sensações, em Sonhos d’ouro o passeio está repleto <strong>de</strong> melancolia. Por<br />

outro lado, se o cronista sugere contemplar “a beleza natural ou a beleza da arte”, em<br />

Sonhos d’ouro, com mostrado no capítulo anterior, o belo da arte surge a partir do belo<br />

natural, não se opondo a ele.<br />

Em resposta a uma crítica a Sonhos d’ouro, Alencar relaciona a natureza ao belo da<br />

arte e ao próprio <strong>de</strong>vaneio:<br />

Os Sonhos d’ouro: neste país dos trópicos, on<strong>de</strong> a própria<br />

natureza <strong>de</strong>vaneia ns cambiantes da luz, nos caprichos das<br />

formas, nos contrastes do belo; nestas naturezas meridionais<br />

<strong>de</strong> imaginação vagabunda, cismar será acaso uma<br />

aberração? (ALENCAR, 1966, p. 937).<br />

O passeio é uma metáfora para o <strong>de</strong>vaneio e por isso o <strong>de</strong>slocamento, além <strong>de</strong><br />

físico, é existencial. Como o corpo, o pensamento, seja <strong>de</strong> objeto a objeto, apreciando os<br />

<strong>de</strong>talhes do mundo exterior, seja sondando os mistérios da alma, como faz o protagonista<br />

Ricardo:<br />

Às vezes o pensamento do moço vagava <strong>de</strong> um a outro objeto,<br />

<strong>de</strong>sta àquela moita, do ramo ao tronco, da folha à raiz, como<br />

se procurasse um ponto qualquer on<strong>de</strong> se fixasse, distraindose<br />

das idéias e recordações do íntimo. Outras vezes, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

a<strong>de</strong>jar como uma borboleta, o espírito do solitário passeador<br />

recolhia-se insensivelmente, e abstraía-se <strong>de</strong> quanto o


1 150<br />

cercava, para envolver-se nos refolhos d’alma. (ALENCAR,<br />

1966, p.705).<br />

Ricardo é um passeador físico e espiritual e estas duas dimensões estão ligadas: são<br />

os passeios solitários que permitem o encontro consigo mesmo. O jogo <strong>de</strong> claro-escuro,<br />

como vimos no capítulo anterior, serve a Alencar como metáfora pictórica para ilustrar a<br />

sua proposta poética, apontando o papel do escritor frente à tarefa <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> elementos<br />

que corroborem para imagens que i<strong>de</strong>ntifiquem o nacional. Este jogo é recuperado também<br />

para ilustrar os <strong>de</strong>vaneios <strong>de</strong> Ricardo, em meio à melancolia e a solidão. O vagar da mente<br />

é um arabesco, um labirinto on<strong>de</strong> o claro e o escuro <strong>de</strong>senham um quadro confuso, como a<br />

alma do protagonista:<br />

Ricardo <strong>de</strong>ixou-se ir à mercê da fantasia, que recortava<br />

arabescos em seu espírito. Era um <strong>de</strong>sses sonhos acordados,<br />

em que as noções confusas se agitam num claro-escuro do<br />

espírito. Esse jogo da luz e das sombras d’alma, junto à<br />

extrema volubilida<strong>de</strong> dos pensamentos, não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong>stacarse<br />

cada uma das idéias (ALENCAR, 1966, p. 709).<br />

O <strong>de</strong>vaneio promove a articulação entre o conceito romântico <strong>de</strong> natureza “cheia <strong>de</strong><br />

graça e imprecisão” e o “homem <strong>de</strong>sligado cujo <strong>de</strong>stino vai <strong>de</strong> encontro ao seu mistério”<br />

(CANDIDO, 1993, p. 23).<br />

O passeador <strong>de</strong> Macedo, ao contrário do alencariano, não se engolfa nos <strong>de</strong>vaneios<br />

subjetivos. E <strong>de</strong> forma oposta ao flâneur, faz do fio condutor <strong>de</strong> seu passeio a sabedoria<br />

histórica; é a memória que ele persegue em seus passos, como veremos, ao propor um<br />

passeio pela cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

A partir do século XIX, como já foi dito, a capitalização do Rio <strong>de</strong> Janeiro torna-se<br />

cada vez maior, capitalização ocorrida em diversos níveis. O Rio <strong>de</strong> Janeiro era a capital


1 151<br />

em um sentido pluridimensional, nas dimensões política, administrativa, <strong>de</strong>mográfica,<br />

econômica e simbólica, pois serviu como mo<strong>de</strong>lo para o i<strong>de</strong>al da or<strong>de</strong>m, presidindo o<br />

Estado imperial e porque, principalmente, estava inscrita em uma dimensão representativa,<br />

na qual os corpos urbano e estatal confundiam-se.<br />

A corte imperial era indissolúvel do próprio império, cuja espinha dorsal era a<br />

estrutura escravista, elo para a i<strong>de</strong>ntificação da elite em torno do i<strong>de</strong>al da or<strong>de</strong>m e da<br />

unificação territorial. O corpo da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro era tomado como palco<br />

primordial <strong>de</strong> representação do corpo do Estado, do corpo da nação. A construção <strong>de</strong><br />

mitologias urbanas que <strong>de</strong>sejavam a reelaboração <strong>de</strong> imagens ligadas à imagem da nação,<br />

ou, como nos diz Benedict An<strong>de</strong>rson (1999), a imagi-nação, eram ferramentas po<strong>de</strong>rosas<br />

na realização <strong>de</strong> uma literatura representativa da nacionalida<strong>de</strong> brasileira, a aliar a<br />

expressão estética às especificida<strong>de</strong>s históricas e sociais da nação.<br />

O Rio <strong>de</strong> Janeiro oitocentista era uma cida<strong>de</strong> que, se apresentava melhorias urbanas<br />

e <strong>de</strong>sconstruía um quadro social colonial <strong>de</strong> reclusão familiar, ainda era bastante insipiente<br />

e insalubre. O espaço interno continuava sendo o palco privilegiado do encontro social. A<br />

rua continuava sendo o lugar da “<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m”.<br />

Em 1860 que Macedo começa a presentear seus leitores do Jornal do Comércio com<br />

uma série <strong>de</strong> artigos intitulados Um passeio pela cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro. A proposta do<br />

escritor era, sobretudo, cumprir uma missão patriótica ao legar aos seus concidadãos uma<br />

série <strong>de</strong> informações acerca do passado histórico da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, pois assim<br />

prestaria ao Brasil “um serviço e [...] um tributo <strong>de</strong> patriotismo” (MACEDO, 1991, p.17).<br />

O narrador apresenta-se como o coletor e compilador dos ecos do passado,<br />

recolhidos nos documentos históricos e em fontes por ele legitimadas: cantigas, quadrinhas,<br />

lendas, nomes <strong>de</strong> ruas esquecidos pela historiografia:


1 152<br />

Talvez alguém haja que me lance em rosto o haver misturado<br />

com a narração <strong>de</strong> fatos autenticados na nossa memória<br />

históricas duas tradições populares, que, aliás, se reduzem a<br />

uma única, e que, evi<strong>de</strong>ntemente, pecam por inverossímeis e<br />

falta <strong>de</strong> fundamento.<br />

Mas, tradições como estas abundam nos<br />

arquivos da imaginação e da credulida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os povos, e<br />

encontram-se em todas as nações.<br />

Que mal faz perpetuá-las? São as poesias do<br />

povo, os velhos amam-nas, os meninos as apren<strong>de</strong>m <strong>de</strong> cor,<br />

os poetas as escutam, cobiçosos, a terra da pátria se enfeita<br />

com elas.<br />

Terei ainda <strong>de</strong> referir mais algumas, e <strong>de</strong>stas,<br />

a maior parte colherei muito conscienciosamente nas páginas<br />

dos anais mais sérios e áridos que possuímos.<br />

Quem não gostar <strong>de</strong> um passeio assim dado,<br />

não passeie comigo.<br />

E não zombem do povo, não. Não se riam da<br />

inocente credulida<strong>de</strong> do povo.<br />

Há credulida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sábios doutores que não<br />

ficam aquém da credulida<strong>de</strong> do povo.(MACEDO, 1991, p.<br />

43).<br />

Seus olhos lêem as cicatrizes do Rio <strong>de</strong> Janeiro, cida<strong>de</strong> capital em todos os sentidos,<br />

corte, palco <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s acontecimentos importantes para a memória da nação, espinha<br />

dorsal a unir as vastas regiões do Império: para lá tudo converge. E não só a oralida<strong>de</strong> é<br />

neste “passeio” legitimada como fonte <strong>de</strong> acesso ao passado, mas a própria narrativa elege<br />

uma dicção que quer fazer lembrar a <strong>de</strong> uma narrativa oral; jogo ilusório, habilmente tecido<br />

pelo narrador, pois esta memória que quer compartilhar já não encontra eco imediato: o<br />

final das histórias não mais se renova, mas permanece fechado no suporte escrito. 53 A<br />

mitologia urbana não po<strong>de</strong> sobreviver senão como cristalização, editada e imobilizada nas<br />

páginas do folhetim.<br />

O cronista é um colecionador, a buscar nos cacos e ruínas <strong>de</strong>ste passado uma ponte<br />

53 Conferir as brilhantes reflexões <strong>de</strong> Walter Benjamin, em seu artigo “O Narrador”, por nós já citado<br />

(BENJAMIN, 1997).


1 153<br />

para o presente. O eu que passeia na narrativa <strong>de</strong> Macedo, ao contrário do eu<br />

rousseauniano, em permanente conflito entre o je e o moi, arvora-se como o segundo, em<br />

seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> homogeneização: homogeneizar o povo brasileiro, povo do qual faz parte –<br />

não há conflito entre o eu interior e o eu exterior, pois o primeiro é abafado, já que o que<br />

importa aqui é sublinhar o contrato estabelecido entre cidadãos e nação. A escritura<br />

constrói, nos rastros <strong>de</strong>sse passeio, a celebração do pacto do estado-nação, silenciando suas<br />

fraturas e expondo as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação do que se quer como o nacional. Logo,<br />

o passeio pela mui amada e leal cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Sebastião do Rio <strong>de</strong> Janeiro é muito menos<br />

um passeio local e muito mais uma comemoração do nacional: a cida<strong>de</strong> veste-se <strong>de</strong><br />

emblema para o Brasil, revelando-se como palco aon<strong>de</strong> ainda imperam a fé, a lei e o rei.<br />

O narrador do passeio parte em um <strong>de</strong>vaneio artificial, porque não subjetivo. Não há o<br />

encontro com o eu, a evasão, a libertação da imaginação, como em Alencar. O que constrói<br />

como <strong>de</strong>vaneios são na verda<strong>de</strong> informações partilhadas com o público leitor sobre o<br />

passado colonial, que são tecidas em uma mescla <strong>de</strong> documentos históricos, lendas urbanas,<br />

cantigas populares e ficções construídas pelo autor. Estas informações organizam-se em<br />

torno <strong>de</strong> simulações <strong>de</strong> passeios físicos, via linguagem ficcional, aos lugares recortados<br />

pelo autor.<br />

O narrador construído por Macedo é híbrido, <strong>de</strong>slocando-se <strong>de</strong> personagem a<br />

observador; da mesma forma a fronteira entre narrador e eu-biográfico mostra-se lábil.<br />

Narrador híbrido, a narrativa também faz-se mélange: crônica, conto, historiografia. A<br />

dimensão <strong>de</strong>ste hibridismo aumenta ao pensarmos o seu contexto como um momento em<br />

que o jornal substitui a narração tradicional pela informação, geralmente superficial, como<br />

se quer a novida<strong>de</strong> contida no embrulho festeiro com o qual Macedo traveste os ecos da<br />

história pátria, <strong>de</strong> forma a não enfadar o leitor.


1 154<br />

Quem é este leitor? Alfabetizado, branco, alguns homens, poucas mulheres: a<br />

elite fluminense capaz <strong>de</strong> aceitar o convite do narrador, que aparentemente é o <strong>de</strong> conhecer<br />

a história da cida<strong>de</strong>, mas na verda<strong>de</strong> sub repticiamente é um convite para se reconhecerem<br />

como membros <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> imaginada 54 via ficção: história e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> aliam-se<br />

na narrativa, em meio a um narrador que escon<strong>de</strong> a sua subjetivida<strong>de</strong> 55 em nome <strong>de</strong> um<br />

compartilhar, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> homogeneização. O passeio converte-se em mapa e<br />

<strong>de</strong>sdobra-se em múltiplas leituras do tempo e do espaço: o mapa do Rio <strong>de</strong> Janeiro – cida<strong>de</strong><br />

capital, corte – é feito pela ficção, pela mitologia, no sentido barthesiano. O passeio perfaz-<br />

se também nas temporalida<strong>de</strong>s con<strong>de</strong>nsadas no corpo urbano, em um jogo que ao mesmo<br />

tempo as pulsa e as oculta.<br />

Se às vezes pe<strong>de</strong> licença aos leitores para divagar não significa que ele se subtraia ao<br />

constante diálogo com o público para recolher-se a si e entregar-se à imaginação, mas sim<br />

que romperá o fio linear da narrativa ao inserir outra história, utilizando flashbacks ou<br />

forwards. Embora reivindique a mobilida<strong>de</strong> conferida pela liberda<strong>de</strong> ficcional, afirmando<br />

que passeará livremente por tempos e espaços diferentes, esta mobilida<strong>de</strong> atém-se a dois<br />

elementos: o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> homogeneização e a presença do pictórico, a imobilizar a paisagem<br />

fluminense.<br />

O esforço <strong>de</strong> construir em sua crônica-conto-História uma ponte articulada à questão da<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional retém esse narrador em seus <strong>de</strong>vaneios, dotando-o <strong>de</strong> uma opacida<strong>de</strong><br />

subjetiva, que abdica dos <strong>de</strong>vaneios <strong>de</strong> seu eu em nome do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> fortalecer os laços<br />

patrióticos do país; assim, cria tradições inventadas, a servirem como artifício – via<br />

literatura, para o esforço <strong>de</strong> apagar as diferenças internas da nação e mostrá-la em sua<br />

54<br />

Referimo-nos ao conceito <strong>de</strong> Benedict An<strong>de</strong>rson, construído em seu livro Nação e consciência nacional,<br />

por nós já citado..<br />

55<br />

Não me refiro com isso ao eu-biográfico, mas sim ao próprio narrador como construção ficcional.


1 155<br />

artificial unida<strong>de</strong> a partir da História, a partir das histórias: a veracida<strong>de</strong> vale menos (aqui)<br />

do que este <strong>de</strong>sejo. Estas tradições estão a serviço <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al romântico conservador 56 ,<br />

pouco ameaçado pelas queixas constantes sobre a manutenção e a política da cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntro<br />

da narrativa.<br />

Mas o Rio <strong>de</strong> Janeiro não é apenas a vitrine da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. A cida<strong>de</strong> também encerra<br />

cicatrizes dos tempos coloniais em seu corpo e faz <strong>de</strong> suas ruas um espaço on<strong>de</strong> o<br />

cruzamento <strong>de</strong> tempos diferentes emerge, trazendo consigo a potencialida<strong>de</strong> da<br />

reminiscência, da <strong>de</strong>scoberta, do confronto: da memória. É esta memória que o passeador<br />

persegue, não a individual, mas a coletiva, pois a compreen<strong>de</strong> como instrumento <strong>de</strong> partilha<br />

i<strong>de</strong>ntitária diretamente ligada ao movimento <strong>de</strong> seleção do corpus urbano a ser privilegiado<br />

como parte do caminho a percorrer.<br />

A edição do mapeamento simbólico da cida<strong>de</strong>, em torno <strong>de</strong> seu traçado físico,<br />

guarda muito do pictórico com que os antigos cartógrafos coloniais e cronistas mapearam a<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Sebastião do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Se Rousseau abre as suas promena<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>clarando “Eis-me, portanto, sozinho sobre a terra” (ROUSSEAU, 1986, p.23), Macedo<br />

inaugura o seu passeio afirmando “Eis nos em frente ao palácio imperial, no largo do<br />

paço”. O narrador é guia, é um eu que só tem sentido enquanto coletivida<strong>de</strong>. Os leitores não<br />

são apenas companheiros <strong>de</strong> passeio; o são, principalmente, <strong>de</strong> pátria.<br />

Os condutores <strong>de</strong>sse passeio, que permitem a mobilida<strong>de</strong> do narrador pelas diversas<br />

temporalida<strong>de</strong>s, potencializadas no espaço da urbe, são muitas vezes os prédios coloniais<br />

sobreviventes no cenário urbano, como, por exemplo, <strong>de</strong>terminadas igrejas, o hospício dos<br />

Barbadinhos e o Arco dos Telles.<br />

56 Percebemos no texto <strong>de</strong> Macedo um i<strong>de</strong>al romântico conservador, pois nele o resgate do passado é feito<br />

como forma <strong>de</strong> conservar a estruturação política, social e econômica do presente, e não para questiona-la ou<br />

propor novas soluções.


1 156<br />

O <strong>de</strong>vaneio não é o per<strong>de</strong>r-se a si, mas per<strong>de</strong>r o fio linear da narrativa, em uma escritura<br />

repleta <strong>de</strong> digressões. Um passeio pelos mais distintos assuntos, que <strong>de</strong>sembocam no<br />

mesmo lugar: o patriotismo. O passeio é, antes <strong>de</strong> tudo, didático, a <strong>de</strong>sejar or<strong>de</strong>nar as<br />

imagens do passado nacional, salvá-las do silêncio e do esquecimento (embora esse, e<br />

qualquer outro, passeio esteja sempre con<strong>de</strong>nado a silenciar algo). É preciso passear “on<strong>de</strong><br />

houver coisas que referir e reco rdações que avivar” (MACEDO, 1991, p.118).<br />

Nos antigos mapas e documentos coloniais eram privilegiados instituições,<br />

construções e monumentos ligados à religião, ao governo, à manutenção do domínio<br />

colonial, pela sua segurança. Era impresso um olhar <strong>de</strong> colonizador, <strong>de</strong> terra à vista,<br />

marcando no corpus da urbe os pontos que lhe interessam. Lembremo-nos aqui <strong>de</strong> Pero<br />

Magalhães Gandavo: a barbárie dos índios é um fato lingüístico, pois sem terem L,F e R<br />

lhes faltam a Lei, a Fé e o Rei: os pilares da civilização à época mo<strong>de</strong>rna. O narrador do<br />

passeio “caminha” não só pela cida<strong>de</strong> e suas ruas, mas pela própria memória urbana – mais<br />

até do que pela história urbana, pois o passeio extrapola a esfera do histórico, agregando<br />

diversos outros suportes memorialísticos, pois nele, como vimos, cabem não só o<br />

documento (signo do historicismo, pedra <strong>de</strong> toque do IHB do qual Macedo é membro),<br />

como também a fantasia.<br />

Os vários passeios físicos simulados na narrativa agregam-se em um só<br />

passeio pluridimensional. O olhar <strong>de</strong> Macedo – como os cronistas e cartógrafos coloniais,<br />

continua privilegiando a Fé – ao eleger, para o seu itinerário, passeios a várias igrejas, e a<br />

Lei (e o Rei) – ao escolher como ponto <strong>de</strong> partida o edifício representativo do po<strong>de</strong>r, o<br />

palácio imperial.<br />

Todavia, ao invés <strong>de</strong> concentrar seu olhar nos fortes, expressão do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

segurança (garantida através da mesma violência que possibilitou a integrida<strong>de</strong> física e o


1 157<br />

domínio metropolitano da América portuguesa), o narrador ressalta em seu olhar <strong>de</strong> pós-<br />

colono o afã da civilização (necessária para assegurar a hipotética integração da nação e<br />

criar laços comunitários em torno da tessitura artificial <strong>de</strong> uma memória e história<br />

brasileiras). Por isto, ilumina em sua caminhada os itinerários do Passeio Público – local<br />

<strong>de</strong> exercício do convívio social, do ver e do ser visto, o Imperial Colégio Dom Pedro II –<br />

esperança na formação <strong>de</strong> uma inteligência ilustrada, e o Recolhimento <strong>de</strong> Nossa Senhora<br />

do Parto – casa <strong>de</strong> “carida<strong>de</strong>” para a correção moral <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong>sviadas do padrão<br />

familiar patriarcal.<br />

Ao dar suporte escrito às mitologias urbanas, mesclando-as a informações<br />

históricas, Macedo tenta fixar um passado histórico; fixação travestida na pretensa<br />

mobilida<strong>de</strong> narrativa <strong>de</strong> uma voz que reivindica a liberda<strong>de</strong> ficcional, menos para dar<br />

mobilida<strong>de</strong> à história do que para controlar a sua fixação.<br />

No passeio empreendido pelo narrador macediano a anedota e o riso não escon<strong>de</strong>m<br />

a melancolia <strong>de</strong> uma fragmentação velada sob o signo da unida<strong>de</strong>. O passeio macediano é<br />

mais frívolo do que o do flâneur ou o do promeneur. Todavia, po<strong>de</strong>mos ler neste texto<br />

ficcional (em suas multifaces) um esforço constante e nada tranqüilo <strong>de</strong> homogeneizar, <strong>de</strong><br />

construir via escritura aparatos para a consecução <strong>de</strong> um projeto nacional a reunir o <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>de</strong> unificar e <strong>de</strong> construir noções <strong>de</strong> civilização e <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>, e a carregar a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

instaurar a historicida<strong>de</strong>.<br />

O passeador <strong>de</strong> Macedo limita-se a flanar pelos signos da civilização <strong>de</strong> seu país – a<br />

religião, o governo, a família e a História. Esta se apresenta como uma quimera, mas ao<br />

invés <strong>de</strong> ser encarada como um <strong>de</strong>safio, é amestrada em uma mescla <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> cronistas<br />

coloniais e anedotas, cantigas populares, lendas urbanas e ficções do próprio autor. Mas o<br />

que po<strong>de</strong>ria ser uma mescla extremamente interessante per<strong>de</strong>-se em uma narrativa


1 158<br />

anunciada como móbil, mas que se revela presa à fixi<strong>de</strong>z da opacida<strong>de</strong> subjetiva do<br />

narrador e <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> valer-se da literatura como instrumento <strong>de</strong> manutenção da<br />

or<strong>de</strong>m vigente.<br />

O mapa discursivo do Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> Macedo revisita a tría<strong>de</strong> igreja/ po<strong>de</strong>r/<br />

monarquia dos cronistas, lançando, neste passeio ficcional, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> escrever - e<br />

inscrever, no imaginário, a imagem <strong>de</strong> uma nação unificada e homogênea, conduzida por<br />

um narrador que se traveste do je rousseauniano, dotado <strong>de</strong> sentido apenas como<br />

coletivida<strong>de</strong>.<br />

Na contramão <strong>de</strong> Macedo, Alencar convoca as imagens da urbe e, principalmente,<br />

da paisagem, como meio <strong>de</strong> reflexão, em uma relação que articula a tría<strong>de</strong> paisagem, país,<br />

pensamento 57 , como enuncia a lírica drummond ianna, <strong>de</strong> uma paisagem que “vai ser”:<br />

Paisagem, país<br />

Feito <strong>de</strong> pensamento da paisagem,<br />

Na criativa distância espacitempo,<br />

À margem das gravuras, documentos,<br />

Quando as coisas existem com violência<br />

Mais do que existimos: nos povoam<br />

E nos olham, nos fixam. Contemplados,<br />

Submissos, <strong>de</strong>las somos pasto,<br />

Somos a paisagem da paisagem.<br />

(DRUMMOND, 1983, p. 451 e p. 452)<br />

57 Ver artigo <strong>de</strong> Carmen Lucia Negreiros <strong>de</strong> Figueiredo (In: Helena, 2004).


1 159<br />

A criação <strong>de</strong> uma paisagem outra, na alternativa permitida pela distância<br />

“espacitempo”, inventa e é reinventada pelo olhar que marginaliza as gravuras e<br />

documentos - prontos, cristalizados; a reivindicação <strong>de</strong> um discurso outro, em uma relação<br />

<strong>de</strong> mão dupla com a paisagem, construindo e sendo construído, presentifica-se na poética<br />

<strong>de</strong> Alencar, a propor um novo sentido para a visão mar-terra, invertendo o brado do “Terra<br />

à vista” e fissurando a mirada do colonizador já anunciada no texto seminal <strong>de</strong> Caminha.<br />

O olhar <strong>de</strong>senha paisagens, fronteiras e limites, dotando-os <strong>de</strong> sentido. Ao ater-se ao<br />

litoral, o olhar português potencializa o espaço do sertão como terra maldita, enigmática e<br />

perigosa e volta-se para o mar, dando as costas para a terra: mirada do viajante, do<br />

explorador do mar e do além-mar.<br />

A fissura do olhar português instaura-se na narrativa alencarina, <strong>de</strong>slocando a<br />

mirada para o sentido terra-mar. À “contrapelo”, a terra é a referência para a visão do mar e<br />

situa a ótica do colono e do colonizado.<br />

Na inversão do discurso português, o espaço do sertão emerge nos romances <strong>de</strong><br />

Alencar <strong>de</strong>snudando – para usarmos uma metáfora cara a ele, o oculto, e não somente<br />

apropriando-se do que está à vista. Ao revelar e inventar outras paisagens, o texto<br />

alencarino inaugura um outro “<strong>de</strong>scobrimento”, fundador <strong>de</strong> novas origens – como<br />

apontamos na primeira parte do trabalho, no capítulo dois, em relação a Ubirajara. É assim<br />

tecido o discurso do “mar à vista”.<br />

A casa do colono brasileiro é representada <strong>de</strong> frente para o mar, em Guerra dos<br />

Mascates, sinal para os que navegam, com suas cores berrantes e confusas a metaforizar a<br />

pergunta "quem somos nós?":<br />

Larga e baixa, a casa terreira acaçapava-se entre o arvoredo<br />

do quintal que a beirava <strong>de</strong> um e outro lado; mas dava logo<br />

nas vistas pela especialida<strong>de</strong> da pintura extravagante com


1 160<br />

que a haviam lambuzado, pois outra qualificação não<br />

quadraria à incrível borra<strong>de</strong>la. (...)<br />

Sabidas as contas, <strong>de</strong>cidira a Sra. Rufina Ribas que a<br />

fachada fôsse <strong>de</strong> uma côr farfante e para ver-se a léguas, lá<br />

do alto-mar. Antes <strong>de</strong> surdir o navio pelo Lameirão a <strong>de</strong>ntro,<br />

queria a respeitável matrona que sua casa entrasse pelas<br />

vistas da gente que v inha da santa terrinha...<br />

Chamado a conselho o exímio borrador a fim <strong>de</strong> dar aviltre<br />

sôbre o caso, foi <strong>de</strong> voto que não havia como o zarcão, para<br />

fazer o gôsto à Sra. Rufina. Dito e feito: no dia seguinte<br />

amanheceu a pare<strong>de</strong> assenhada com uma crosta do mais<br />

coruscante vermelho.<br />

Barulho no caso; novo apêlo ao borrador que guisou a<br />

combinação do ver<strong>de</strong>te com o zarcão e assim, <strong>de</strong> resinga em<br />

resinga, chegou-se àquele espalhafato <strong>de</strong> tôdas as côres, on<strong>de</strong><br />

o azul brigava com o encarnado, o ver<strong>de</strong> com o vermelho, e o<br />

roxo-terra com o amarelo da oca. Era cousa in<strong>de</strong>scritível,<br />

que o prospet o<strong>de</strong> algumas tabernas <strong>de</strong> hoje não<br />

conseguiriam imitar.<br />

Nos primeiros dias esteve a casa <strong>de</strong> mostra aos basbaques e<br />

pascácios que por lá iam, para se pasmarem diante daquela<br />

maravilha. Por um mês não se falou no Recife doutra cousa;<br />

até que um dia lá apareceu pela manhã escrito a carvão, na<br />

frente, este dístico maligno – Perereca.<br />

(ALENCAR, s.d., Guerra dos Mascates, p. 16 e p.17).<br />

A incerteza da escolha e a opção pelo “espalhafato <strong>de</strong> todas as cores” leva à alcunha<br />

<strong>de</strong> “perereca” (no sentido <strong>de</strong> confuso 58 ), como a casa, remendada em uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

confusa, a face do Brasil oitocentista procurava, em um palimpsesto <strong>de</strong> tintas, pintar a si,<br />

com os pincéis do indígena e da natureza. A alcunha <strong>de</strong> perereca po<strong>de</strong> insinuar também a<br />

crítica a crônica colonial, percebida como oblíqua e contraditória, ao remeter ao Padre<br />

Perereca, o principal cronista do reinado <strong>de</strong> Dom João VI.<br />

Alencar imprime novos olhares, pois novas coisas estariam “à vista”. Ao reverter o<br />

ato <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir, imprime uma outra significação: a <strong>de</strong> não cobrir, <strong>de</strong> arrancar os andrajos,<br />

58 In: ALENCAR, 1966, p. 15).


1 161<br />

como afirma em “Benção Paterna”, revelando assim a nu<strong>de</strong>z americana sufocada na crosta<br />

dos resíduos coloniais 59 .<br />

Deriva da emergência dos novos signos <strong>de</strong> unificação a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mapear o<br />

país, inclusive ficcionalmente, em uma escrita que extrapola o âmbito territorial, e alça os<br />

campos social, temporal e cultural.<br />

Alencar constrói uma geo-grafia – uma escrita da terra – pessoal através <strong>de</strong> seu<br />

olhar para o país, adivinhando espaços, inventando paisagens e fazendo da literatura a<br />

bússola condutora do leitor que conduz por cenários inventados, pelo imaginário sempre<br />

em construção.<br />

Na ficção alencarina a paisagem é elemento <strong>de</strong> configuração da memória. Através<br />

<strong>de</strong> suas lembranças pessoais a propósito <strong>de</strong> sua terra natal, construídas na infância, o autor<br />

transforma a memória individual em esfera <strong>de</strong> passagem para a memória coletiva 60 ,<br />

agregando este espaço ao nacional, indicando o Ceará como um dos elementos territoriais<br />

da nação brasileira; assim, a idéia da unida<strong>de</strong> política vincula-se à sedimentação da imagem<br />

<strong>de</strong> uma nação integrada territorialmente.<br />

O mapa <strong>de</strong> um país uno inaugura-se na viagem: viajar é preciso em um país<br />

impreciso. Mesmo que se viaje apenas na imaginação, como fez Alencar, ao figurar<br />

cenários jamais ou pouco conhecidos por ele fisicamente.<br />

Esta viagem imaginária tem como fonte privilegiada a leitura, capaz <strong>de</strong> erigir<br />

universos simbólicos e potencializar a imagi-nação <strong>de</strong> um Brasil coeso. Extrapola o âmbito<br />

físico e, pluridimensional e polissêmica, <strong>de</strong>rrama-se em um turbilhão <strong>de</strong> espaços e tempos<br />

vários e imbricados.<br />

59 Como analisado na primeira parte, segundo capítulo.<br />

60 Verificar a citação no capítulo anterior sobre os tempos <strong>de</strong> estudante em Olinda.


1 162<br />

A pedagogia <strong>de</strong> um novo olhar, a fundar o sentido terra-mar resi<strong>de</strong> na emergência<br />

do olhar <strong>de</strong> artista, pois a viagem inicia-se pelo percurso para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si. Através da<br />

criação da memória pessoal 61 , o artista constrói narrativas que rumam para o futuro e para o<br />

passado, navegando na pluralida<strong>de</strong> temporal na narrativa.<br />

O conhecimento do país criou-se pela palavra 62 e neste campo a palavra literária<br />

teve forte repercussão. Alencar <strong>de</strong>senha o mapa com o lápis da lembrança e a borracha do<br />

esquecimento, em um artesanato gerador <strong>de</strong> imagens da paisagem brasileira, muitas<br />

também <strong>de</strong>sconhecidas por ele e percorridas via literatura somente. O mapa do Brasil:<br />

sobretudo, discursivo.<br />

Discurso que, como vimos, <strong>de</strong>sloca a imagem do sertão como espaço negativo e o<br />

põe em <strong>de</strong>staque em narrativas como O Gaúcho, O sertanejo, O tronco do ipê, As minas <strong>de</strong><br />

prata e nos romances indianistas. O sertão é o espaço grandioso, on<strong>de</strong> a reengenharia épica<br />

po<strong>de</strong> ser engendrada.<br />

Em meio ao silêncio sobre o sertão, como restaurar a sua memória é a indagação<br />

que se impõe. Das ruínas dos povos extintos, o sertão anuncia os seus ecos na paisagem: a<br />

cena, nomeada por seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, sertanejos como Arnaldo e mestiços como Moacir,<br />

revela na toponímia as pistas que levam ao enigma: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência da<br />

memória silenciada pela catástrofe.<br />

Em O Sertanejo, a narrativa é <strong>de</strong>scortinada no cenário sertanejo, que ganha<br />

contornos épicos, construídos a partir da memória do narrador:<br />

61 Alencar insiste em afirmar em “Como e porque sou romancista” que a sua inspiração para os romances<br />

indianistas foi retirada das viagens feitas em sua terra; na verda<strong>de</strong>, ele passou a maior parte <strong>de</strong> sua vida na<br />

corte, viajando pelo sertão uma vez na infância, aos nove anos e, quando adulto, por questões políticas. A<br />

leitura do espaço do sertão foi construída muito mais pela imaginação do que pelos fatos. Desenvolveremos<br />

esta questão no próximo capítulo.<br />

62 Conferir Figueiredo (1998 e 2004).


1 163<br />

Esta imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é<br />

o sertão <strong>de</strong> minha terra natal.(...)<br />

Assomando sobre o capitel da floresta erguida como o<br />

pórtico do <strong>de</strong>serto, o sol coroado da magnificência tropical<br />

dar<strong>de</strong>java o olhar brilhante e majestoso pela terra, que se<br />

toucara <strong>de</strong> toda a sua louçania para receber no tálamo da<br />

criação ao rei da luz.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1019).<br />

Entretanto, sazonal, este espaço abarca também em sua majesta<strong>de</strong> a ari<strong>de</strong>z; <strong>de</strong>sta<br />

maneira, embora sempre grandioso, o espaço do sertão não é o da natureza acolhedora<br />

apenas.<br />

Ruínas emergem da terra inóspita e muda, como os animais que a habitam,<br />

alegorizando o silêncio sobre o seu passado e a promessa <strong>de</strong> sua restauração. A estratégia<br />

para civilizar um espaço em ruínas, <strong>de</strong>solado e inabitável é transformá -lo em cenário<br />

gótico, impondo a tensão vida/morte, uma vez que as ruínas são ao mesmo tempo<br />

<strong>de</strong>struição e renovação, na mutação da natureza, pois apesar da seca a natureza sobreviverá<br />

(como a memória da terra natal do narrador, na promessa da narrativa):<br />

Pela vasta planura que se esten<strong>de</strong> a per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista, se eriçam<br />

os troncos ermos e nus como esgalhos rijos e encarquilhados,<br />

que figuram o vasto ossuário da antiga floresta(...)<br />

O sol ar<strong>de</strong>ntíssimo côa através do mormaço da terra<br />

abrasada uns raios baços que vestem <strong>de</strong> mortalha lívida e<br />

poenta os esqueletos das árvores enfileirados uns após os<br />

outros como uma lúgubre procissão <strong>de</strong> mortos (...)<br />

Estes ares, em outra época povoados <strong>de</strong> turbilhões <strong>de</strong><br />

pássaros loquazes, cuja brilhante plumagem rutilava aos<br />

raios do sol, agora ermos e mudos como a terra, são apenas<br />

cortados pelo vôo pesado dos urubus que farejam a carniça.<br />

(...)<br />

Quem pela primeira vez percorre o sertão(...) <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> longa<br />

seca, sente confranger lhe a alma até os últimos refolhos em<br />

face <strong>de</strong>sse holocausto da terra.<br />

É mais fúnebre do que um cemitério. Na cida<strong>de</strong> dos mortos as<br />

lousas estão cercadas por uma vegetação que viça e floresce;<br />

mas aqui a vida abandona a terra, e toda essa região que se<br />

esten<strong>de</strong> por centenas <strong>de</strong> léguas não é mais do que o casto


1 164<br />

jazigo <strong>de</strong> uma natureza extinta e o sepulcro da própria<br />

criação. (ALENCAR, 1966, p. 1021 e p. 1022).<br />

O cenário gótico é também o mote para a referência ao elemento maravilhoso<br />

presente na narrativa: as lendas dos bois fantásticos, concatenando artificialmente a<br />

paisagem, a civilização e a tradição ao presente:<br />

Às vezes ouve-se o crepitar dos gravetos. São as reses que<br />

vagam por esta sombra <strong>de</strong> mato (...) Verda<strong>de</strong>iros espectros,<br />

essas carcaças que se movem ainda aos últimos arquejos da<br />

vida, inspiraram outrora as lendas sertanistas dos bois<br />

encantados, que os antigos vaqueiros, <strong>de</strong>itados ao relento no<br />

terreiro da fazenda, contavam aos rapazes nas noites <strong>de</strong> luar.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1022).<br />

No princípio era o verbo: nomear é fazer existir. Ao batizar a paisagem, o narrador<br />

alencarino engendra uma história e inventa tradições; a cena natural é historicizada e dotada<br />

<strong>de</strong> sentido pela narrativa: sua permanência na paisagem oitocentista torna-se ponte para um<br />

passado revelado pela imaginação, e a une à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do brasileiro do século <strong>de</strong>zenove.<br />

Em Iracema, a paisagem é historicizada e a cena natural figura na narrativa como elo<br />

entre o passado e o presente. Os nomes são pistas para o <strong>de</strong>cifrar <strong>de</strong> uma memória<br />

esfacelada. Ao se remeter a lugares da paisagem presente - a serra da Meruoca, da<br />

Uruburetama, o Mocoripe – o narrador cria histórias a partir dos nomes coevos dos locais,<br />

inventando uma história do sertão e estabelecendo, através da lenda, continuida<strong>de</strong>s<br />

históricas:<br />

- Por que chamas tu Mocoripe, ao gran<strong>de</strong> morro das areias?<br />

( pergunta Martim a Poti)<br />

-O pescador da praia, que vai na jangada, lá on<strong>de</strong> voa a ati,<br />

fica triste, longe da terra e <strong>de</strong> sua cabana, em que dormem os<br />

filhos <strong>de</strong> seu sangue. Quando ele torna e seus olhos primeiro<br />

avistam o morro das areias, o prazer volta ao seu coração.<br />

Por isso ele diz que o morro das areias dá alegria.<br />

(ALENCAR, s.d., p.59)


1 165<br />

A história do sertão é organizada na ficção em torno <strong>de</strong> Poti, guerreiro e guardião da<br />

memória <strong>de</strong> sua quase extinta tribo. Abre-se na fala da personagem uma segunda narração<br />

que simula o resgate da memória indígena, articulando paisagem e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>:<br />

Antes que o pai <strong>de</strong> Jacaúna e Poti, o valente guerreiro<br />

Jatobá, mandasse sobre todos os guerreiros pitiguaras, o<br />

gran<strong>de</strong> tacape da nação estava na <strong>de</strong>stra <strong>de</strong> Batuireté, o<br />

maior chefe, pai <strong>de</strong> Jatobá. Foi ele que veio pelas praias do<br />

mar até o rio do jaguar, e expulsou os tabajaras para <strong>de</strong>ntro<br />

das terras, marcando a cada tribo seu lugar; <strong>de</strong>pois entrou<br />

pelo sertão até a serra que tomou seu nome...Quando suas<br />

estrelas eram muitas...Chamou então o guerreiro Jatobá e<br />

disse: - Filho, toma o tacape da nação pitiguara. Tupã não<br />

quer que Batuireté o leve mais à guerra, pois tirou a força <strong>de</strong><br />

seu corpo...Jatobá empunhou o tacape dos pitiguaras.<br />

Batuireté tomou o bordão <strong>de</strong> sua velhice e caminhou. Foi<br />

atravessando os vastos sertões, até os campos viçosos on<strong>de</strong><br />

correm as águas que vêm das bandas da noite. Quando o<br />

velho guerreiro arrastava o passo pelas margens e a sombra<br />

<strong>de</strong> seus olhos não lhe <strong>de</strong>ixava que visse mais os frutos nas<br />

árvores ou os pássaros no ar, ele diz em sua tristeza: - Ah!<br />

Meus tempos passados! A gente que o ouvia chorava a ruína<br />

do gran<strong>de</strong> chefe; e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então passando por aqueles lugares,<br />

repetia suas palavras; don<strong>de</strong> veio chamar-se o rio e os<br />

campos, Quixeramobim...Batuireté veio pelo caminho das<br />

garças até aquela serra que tu vês ao longe, e on<strong>de</strong> primeiro<br />

habitou...Seu filho já dorme embaixo da terra, e ele ainda na<br />

oura lua cismava na porta <strong>de</strong> sua cabana, esperando a noite<br />

que traz o gran<strong>de</strong> sono. Todos os chefes pitiguaras, quando<br />

acordam à voz da guerra, vão pedir ao velho que lhes ensine<br />

a vencer, porque nenhum outro guerreiro jamais soube como<br />

ele combater. Assim, as tribos não o chamam mais pelo nome,<br />

senão o gran<strong>de</strong> sabedor da guerra, Maranguab (ALENCAR,<br />

s.d., p. 61, fala <strong>de</strong> Poti).<br />

A invenção <strong>de</strong> uma narrativa indígena que historiciza e é historicizada pela<br />

paisagem ao mesmo tempo ganha foros <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> pelas notas, que alu<strong>de</strong>m a<br />

historiadores, como Martius e às lendas e tradições indígenas. O artesanato da memória via<br />

ficção constrói-se na manipulação <strong>de</strong>ssas narrativas.


1 166<br />

Na contramão do olhar português, que batizou o espaço bárbaro com nomes<br />

reprodutores – como Nova Lisboa, aludido por Alencar nas notas – e assim, instaurando o<br />

domínio, a narrativa alencarina nomeia a natureza no sertão, cruzando paisagem e memória<br />

na trama fictícia.<br />

Em As minas <strong>de</strong> prata, o sertão é o espaço da barbárie, do indômito, da morte e<br />

cobiça, mas também da riqueza oculta e fora <strong>de</strong> alcance, como as minas <strong>de</strong> prata e a glória<br />

do indígena, extinta na morte <strong>de</strong> Abaré e improvável em Olho, Ouvido e Faro, pois são<br />

pura natureza em suas funções-fetiche 63 . O <strong>de</strong>serto é majestoso e sublime, mas selvagem;<br />

um espaço limítrofe no qual o colo nizado vira dominus, como João Fogaça e Arnaldo, em<br />

O Sertanejo.<br />

A tensão entre a autonomia do colonizado e a sua submissão à estrutura hierárquica<br />

atinge o ápice na narrativa no momento da recusa <strong>de</strong> Arnaldo em obe<strong>de</strong>cer às or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong><br />

Campelo <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar Jó, falsamente acusado <strong>de</strong> atear fogo à mata que circundava a sua<br />

herda<strong>de</strong>:<br />

-Minha vida lhe pertence, sr. Capitão-mor, já lho disse 64 . Se<br />

lhe apraz, po<strong>de</strong> tirar-ma neste momento, que não levantarei a<br />

mão para <strong>de</strong>fendê-la, nem a voz para queixar-me. Essa<br />

or<strong>de</strong>m, porém, que vossa senhoria quer dar -me, se meu pai<br />

ressuscitasse para mandar-me cumpri-la, eu lhe diria:<br />

“não!”(...) (ALENCAR, 1966, p. 1086)<br />

Entretanto, a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa tensão é dissolvida pelos laços <strong>de</strong> afeto entre os<br />

dois e Flor, filha <strong>de</strong> Campelo e amor platônico <strong>de</strong> Arnaldo, em um primeiro momento;<br />

posteriormente, a resolução <strong>de</strong>ssa tensão é abafada pelo narrador, que abandona o conflito e<br />

estabelece o forward na narrativa para o momento da reconciliação.<br />

63 Conferir Figueiredo (1997).<br />

64 Verificar no capítulo anterior a <strong>de</strong>claração aqui referida por Arnaldo, que <strong>de</strong>sta maneira indicia o impasse<br />

perante as tensões indicadas na narrativa, não resolvidas, mas silenciadas.


1 167<br />

Este silêncio revela os impasses <strong>de</strong> Alencar frente a esse conflito; e se, por um lado,<br />

há a suspensão da contradição entre liberda<strong>de</strong> e patriarcalismo (que irresistivelmente nos<br />

remete a aporia entre escravidão e liberalismo presente na socieda<strong>de</strong> do Segundo Império),<br />

por outro a interdição <strong>de</strong> Arnaldo frente ao universo extra natural é marcada pela<br />

irrealização <strong>de</strong> seu amor, lugar comum romântico, mas que na narrativa alcança a tensão<br />

citada.<br />

Se a tensão entre liberda<strong>de</strong> e patriarcalismo não se resolve, a oposição entre<br />

natureza e civilização é <strong>de</strong>sfeita na representação da casa dos Campelo como espaço limite<br />

entre a selva e a civis. Distante do litoral, canal por on<strong>de</strong> chegam as leis e or<strong>de</strong>ns<br />

metropolitanas, a casa <strong>de</strong> Campelo é o espaço remissivo a sua condição <strong>de</strong> senhor feudal,<br />

em alusão ao medievo inexistente no Brasil: 65<br />

Assim, constituíam-se pelo direito da força uns senhores<br />

feudais, por ventura mais absolutos do que esses outros da<br />

Europa, suscitados na Média Ida<strong>de</strong> por causas idênticas. (...)<br />

Esses barões sertanejos só nominalmente rendiam preito e<br />

homenagem ao rei <strong>de</strong> Portugal, seu senhor suserano, cuja<br />

autorida<strong>de</strong> não penetrava no interior senão por intermédio<br />

<strong>de</strong>les próprios. Quando a carta régia ou a provisão do<br />

governador levava-lhe títulos e patentes, eles a acatavam;<br />

mas se tratava <strong>de</strong> cousa que lhes fosse <strong>de</strong>sagradável não<br />

passava <strong>de</strong> papel sujo. 66<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1160).<br />

O local on<strong>de</strong> o colono situa-se abafa não só a distinção entre natureza e civilização,<br />

mas a sua condição <strong>de</strong> produto <strong>de</strong> um violento choque cultural: a natureza convive em<br />

harmonia com os signos da civilização européia, presentes nos móveis suntuosos e nos<br />

65 A narrativa explicita a medievalização <strong>de</strong>ste espaço, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a casa dos Campelo até as vestes <strong>de</strong> couro<br />

usadas por Arnaldo, simulando uma armadura medieval.<br />

66 Chamar as personagens <strong>de</strong> barões, por outro lado, cria um anelo artificial com o baronato do império,<br />

dialogando com a busca da consolidação da autonomia política brasileira.


1 168<br />

artigos <strong>de</strong> luxo da casa 67 : “A tapeçaria e alfaias da casa eram <strong>de</strong> uma suntuosida<strong>de</strong> que se<br />

não encontra hoje igual” (ALENCAR, 1966, p. 1035).<br />

Cenário épico, entretanto, que põe em xeque esta possibilida<strong>de</strong> no homem: se a<br />

natureza po<strong>de</strong> ser majestosa, o homem do sertão apresenta seus limites 68 , ao per<strong>de</strong>r a força<br />

épica frente à hierarquia patriarcal e à civilização. A paisagem apresenta-se em claro-escuro<br />

na tensão entre a cena épica e a personagem trágica, em suas limitações que a levam para a<br />

catástrofe ou para a solidão:<br />

Se Arnaldo conhecesse a cida<strong>de</strong> como conhecia o <strong>de</strong>serto e os<br />

seus habitantes; se estivesse habituado a observar a<br />

fisionomia do homem com a perspicácia do olhar que<br />

penetrava a mais basta espessura, e investigava o semblante,<br />

o gesto, o porte da floresta(...)Mortificava-o isso.<br />

(ALENCAR, 1966, p.1109).<br />

Limite idêntico é imposto a Peri, <strong>de</strong> O Guarani, consciente da perda <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r no<br />

círculo urbano, o que o leva a rejeitar o pedido <strong>de</strong> Ceci <strong>de</strong> acompanhá-la a corte. Como<br />

vimos, Arnaldo, é personagem em simbiose com a natureza. Arnaldo apresenta da mesma<br />

forma que Peri qualida<strong>de</strong>s excepcionais, como o dom para falar com animais e a <strong>de</strong>streza<br />

<strong>de</strong>scomunal. Senhor neste espaço, ele é submetido, ainda que por vonta<strong>de</strong> própria, ao po<strong>de</strong>r<br />

do capitão Campelo.<br />

Por outro lado, como o artista capaz <strong>de</strong> dotar a paisagem <strong>de</strong> sentido através <strong>de</strong> sua<br />

sensibilida<strong>de</strong>, Arnaldo tem um olhar diferente, o que o possibilita a <strong>de</strong>svendar os<br />

hieróglifos da natureza:<br />

A profunda investigação do antiquário que se obstina em<br />

67 A casa luxuosa no meio da selva é motivo presente também em O Guarani; Silviano Santiago, em<br />

“Li<strong>de</strong>rança e hierarquia em José <strong>de</strong> Alencar”, mostra como o espaço da casa dos Mariz é representado como<br />

imbricação dos elementos da selva e da civilização.<br />

68 Como Peri, em O Guarani, na interdição <strong>de</strong> suas forças no espaço da civis, limitada pela casa dos Mariz e<br />

potencializada na sua recusa absoluta <strong>de</strong> ir ao espaço urbana, consciente <strong>de</strong>sta limitação.


1 169<br />

<strong>de</strong>cifrar nas linhas confusas do hieróglifo o sentido ignoto,<br />

não exige <strong>de</strong>certo mais contenção do espírito, nem tão<br />

po<strong>de</strong>rosa reminiscência. (ALENCAR, 1966, p. 1040).<br />

Comparado ao antiquário, o sertanejo é dotado <strong>de</strong> uma sabedoria alternativa,<br />

invisível aos civilizados, para quem a selva “é uma continuação das árvores”:<br />

Lá se <strong>de</strong>staca apenas um tronco secular, ou outro objeto<br />

menos comum, como um rio e um penhasco, que excita- lhe<br />

(sic) a tensão e quebra a monotonia da cena.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1062).<br />

Ao olhar civilizado que modula o quadro da natureza como monótono e pitoresco -<br />

o que po<strong>de</strong>mos remeter aos quadros dos viajantes no tempo da colônia (e até<br />

contemporâneos a Alencar), opõe-se o universo selvagem em sua majesta<strong>de</strong>, enigma<br />

<strong>de</strong>cifrado apenas pelo sertanejo:<br />

Para o sertanejo, a floresta é um mundo, e cada árvore um<br />

amigo ou um conhecido a quem saú<strong>de</strong>, passando. A seu olhar<br />

perspicaz as clareiras, as brenhas, as coroas <strong>de</strong> mato,<br />

distinguem-se melhor do que as praças e ruas com seus<br />

letreiros e números (...).<br />

Lia nesse diário aberto da natureza a crônica da floresta.<br />

Uma folha, um rastro, um galho partido, um <strong>de</strong>svio da<br />

ramagem, eram a seus olhos vaqueanos os capítulos <strong>de</strong> uma<br />

história ou as efeméri<strong>de</strong>s do <strong>de</strong>serto.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1062).<br />

Os olhos perspicazes e “vaqueanos” <strong>de</strong> Arnaldo pintam na narrativa a imagem<br />

civilizada do sertão construída na analogia entre o saber histórico e o saber “selvagem” do<br />

sertanejo, bem como entre os espaços selvagem e urbano, na leitura comparativa da floresta<br />

como cida<strong>de</strong>. De forma alegórica, as ruínas da selva revelam-se como saber ao olhar do ser<br />

engolfado na paisagem.<br />

O olhar <strong>de</strong> artista do narrador alencarino para a natureza a transforma em paisagem,<br />

ruminada em um espaço passível <strong>de</strong> ser concebido pelo sujeito solitário e auto-reflexivo.


1 170<br />

A solidão é um traço in<strong>de</strong>lével da obra alencarina e é a sua presença nesta obra e na<br />

representação do intelectual oitocentista o foco <strong>de</strong> discussão do próximo capítulo.


1 171<br />

CAPÍTULO 3: SER INTELECTUAL NO OITOCENTOS: REFLEXÕES EM<br />

CLARO-ESCURO<br />

Nos capítulos anteriores, vimos como a escritura <strong>de</strong> Alencar dialoga com o que<br />

percebemos como uma poética da restauração: em torno <strong>de</strong>la são tecidos signos<br />

moduladores <strong>de</strong> imagens ligadas ao nacional: a paisagem, o mar e o porto ligam-se no<br />

ambicioso projeto alencarino <strong>de</strong> representar literariamente a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira, em uma<br />

história alternativa. Este projeto une a reflexão sobre os caminhos possíveis para a criação<br />

<strong>de</strong> uma literatura brasileira à prática literária, em uma práxis <strong>de</strong>senvolvida lenta e<br />

gradualmente, e muitas vezes <strong>de</strong> forma contraditória.<br />

Via vária que conduz à mesma encruzilhada, as imagens moduladas por Alencar são<br />

as linhas <strong>de</strong>lineadoras do esboço do rosto brasileiro, a se <strong>de</strong>senhar em claro-escuro, em<br />

tantos tons e nuances quanto às dúvidas que a permeiam.<br />

Ser intelectual no Brasil oitocentista era conviver frente à fratura imposta pela<br />

condição periférica e pós-colonial; pelo liberalismo tupiniquim, a reivindicar o escravismo<br />

como espinha dorsal do projeto Brasil; pela incipiência do diálogo crítico, abafado pela<br />

prática da patronagem e centrado antes nas relações privadas do que na consciência<br />

artística. A solidão é um topos recorrente no Romantismo, mas no contexto brasileiro a sua<br />

marca nos revela a condição do intelectual frente às especificida<strong>de</strong>s do país.<br />

A recorrência <strong>de</strong>sse topos em Alencar não po<strong>de</strong> ser pensado fora dos “impulsos <strong>de</strong><br />

mudança trazerem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> implantar a idéia do marco-zero, na formulação <strong>de</strong> um<br />

reinício sob a égi<strong>de</strong> da alegorização da origem <strong>de</strong> uma coisa e <strong>de</strong> uma causa novas”<br />

(HELENA, 2000, p. 20), a traçar “o contraponto entre a sociabilida<strong>de</strong> e a solidão, que se<br />

inscreverá no rosto mutante do Romantismo” (HELENA, 2000, p. 21):


1 172<br />

O intelectual solitário passa a entrever que o que pensa só<br />

tem justificação em si mesmo, o que o obriga a retomar<br />

incessantemente a palavra, e a <strong>de</strong>rramar-se para <strong>de</strong>ntro dos<br />

limites do próprio eu. [...] A tensão trágica resulta da<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer coincidir, a todo momento, sua solidão<br />

com o bem e com a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus projetos individuais e<br />

coletivos, tais como os reconhece em seu foro íntimo. Mas<br />

ambicionando que assim também estes possam ser<br />

reconhecíveis por todos. (HELENA, 2000, p. 21).<br />

Temática constante no texto <strong>de</strong> Alencar, a solidão emerge no próprio pacto<br />

romântico, no qual leitor e autor estão “carentes <strong>de</strong> convenções que estabeleçam, para um e<br />

outro, o espaço que ocupam na comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> letrados” (HELENA, 2001, p. 107).<br />

A solidão é a metáfora anunciadora do mergulho na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> (como condição<br />

do escritor pós-colonial brasileiro). Junto à noção <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>, esta solidão –<br />

concretizada mais como o sentir –se só no mundo, do que o estar só, anuncia-se como via<br />

<strong>de</strong> encontro com a liberda<strong>de</strong>: só se é em errância. No texto <strong>de</strong> Alencar, a viagem é uma<br />

condição cognitiva, mas que implementa a solidão como traço indissolúvel do<br />

<strong>de</strong>slocamento.<br />

A escritura <strong>de</strong> Alencar está atenta à falência prévia <strong>de</strong> qualquer projeto que pretenda<br />

o resgate tranqüilo do original, em meio às fraturas da memória coletiva. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sobrevivência <strong>de</strong>sta memória esfacelada é a sua reor<strong>de</strong>nação, que jamais rasurará a<br />

violência colonial ou as fissuras i<strong>de</strong>ntitárias do país. Um elemento, um signo ajuda a<br />

compor esta reor<strong>de</strong>nação: a imagem do porto. Imagem não reduzida à dimensão física, mas<br />

que <strong>de</strong>ve ser lida como metáfora da busca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, em perpétuo<br />

<strong>de</strong>slocamento.<br />

Benjamin propõe o conceito <strong>de</strong> origem como tensão entre a promessa e a ruína. É<br />

esta tensão que faz do porto um signo a combinar as diversas dimensões e fragmentos <strong>de</strong>


1 173<br />

outras culturas e temporalida<strong>de</strong>s, que “saltam”, transformando-se em elementos <strong>de</strong> reflexão<br />

e mudança.<br />

Ambígua, dialeticamente reveladora e produtora <strong>de</strong> memórias, a imagem do porto<br />

instaura-se como <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> cultura: espaço a ser lido metaforicamente como o limiar entre o<br />

local e o universal - lugar <strong>de</strong> entrecruzamento <strong>de</strong> idéias, o porto é porta: <strong>de</strong> dilemas e<br />

questionamentos. A análise realizada no capítulo anterior sobre o embate existente na<br />

cultura brasileira entre os sentidos terra - mar e mar - terra, a partir do qual Alencar<br />

inscreve e escreve sua narrativa que vira do avesso o “Terra à vista” – nos ajuda a perceber<br />

o porto como signo fundamental na narrativa alencarina.<br />

O espaço do porto apresenta-se em sua polissemia como local por excelência <strong>de</strong><br />

encontro dos olhares europeu e brasileiro. Cruza sentidos diferentes para os que chegam e<br />

para os que vão embora: sauda<strong>de</strong>, aventura, solidão, novida<strong>de</strong>. É ancoradouro, porto<br />

seguro, lugar <strong>de</strong> encalhe, canal para a <strong>de</strong>scoberta, via <strong>de</strong> dúvida e <strong>de</strong>sejo: dos querem a ida,<br />

a volta ou vivem o paradoxo da escolha entre ficar ou partir.<br />

Em A Era das Revoluções, Eric Hobsbawn indica como o século XVIII enfrentou as<br />

profundas transformações advindas da chamada dupla revolução - Francesa e Industrial, e<br />

em um mundo geograficamente (no que toca ao conhecimento do espaço habitado) menor,<br />

mas paradoxalmente mais distante, dada a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento.<br />

Como as viagens por terra eram longas e <strong>de</strong>sconfortáveis, não seria exagero<br />

apontarmos a imagem do porto nesse momento como portal para o intercâmbio, para a<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir e vir, latente <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas. Como bem nota o autor: “Estar perto <strong>de</strong> um<br />

porto era estar perto do mundo” (HOBSBAWN, 1977, p. 26).<br />

como:<br />

A partir do olhar finissecular do oitocentos, Bau<strong>de</strong>laire constrói a imagem do porto


1 174<br />

uma estância encantadora para a alma fatigada pelas lutas<br />

da vida.A amplitu<strong>de</strong> do céu, a movediça arquitetura das<br />

nuvens, as colorações cambiantes do mar, a cintilação dos<br />

faróis, constituem um prisma singularmente a<strong>de</strong>quado a<br />

recrear os olhos sem nunca os entediar. [...] E sobretudo, há<br />

uma espécie <strong>de</strong> prazer misterioso e aristocrático, para aquele<br />

a quem já não resta curiosida<strong>de</strong> nem ambição, em<br />

contemplar, esquecidamente, <strong>de</strong>itado no miradouro ou<br />

<strong>de</strong>bruçado no quebra–mar, todos os movimentos dos que<br />

partem e dos que voltam, dos que ainda tem a força <strong>de</strong><br />

querer, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> viagens ou <strong>de</strong> riqueza. (BAUDELAIRE,<br />

2OO2, p. 327-328)<br />

Se para Hobsbawn o porto é promessa <strong>de</strong> conhecimento e para Bau<strong>de</strong>laire o<br />

cruzamento <strong>de</strong> olhares contemplativos e <strong>de</strong>sejosos, na literatura <strong>de</strong> Alencar este signo<br />

abarca significações além: é o limite entre mar e terra, fronteira entre o nacional e o<br />

universal, fio tênue por on<strong>de</strong> se equilibram as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se construir a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

pátria.<br />

É canal para on<strong>de</strong> se volta o olhar do colono - como o das personagens que habitam<br />

a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador em As minas <strong>de</strong> prata e aguardam, enquanto olham o horizonte, as<br />

notícias do reino, alvoroçadas à vista do navio, a ponto <strong>de</strong> abandonar a missa:<br />

A festa prosseguia, o coro e o cantochão continuavam<br />

alternando, quando foi ouvido na porta da igreja um ligeiro<br />

rumor causado por muitas pessoas, que voltavam mo rosto<br />

para ver alguma coisa que estava passando fora.<br />

O objeto que tanto excitava a curiosida<strong>de</strong>, a ponto <strong>de</strong> distrair<br />

assim a tenção do ofício divino, era um navio <strong>de</strong> alto porte<br />

que encoberto pelas sombras da noite se avizinhara da terra,<br />

e aos raios do sol nascente aparecia à entrada do porto...<br />

Este fato que hoje não tem muita importância pela sua<br />

freqüência, que naquele tempo <strong>de</strong> raras e difíceis<br />

comunicações entre o Brasil e a metrópole, era um<br />

acontecimento <strong>de</strong> maior interesse. Para os governadores e<br />

empregados do serviço real queria dizer a solução <strong>de</strong> altas<br />

questões da administração do novo Estado; para o povo<br />

exprimia talvez o <strong>de</strong>ferimento aos pedidos das Câmaras sobre<br />

a redução <strong>de</strong> impostos, extinção dos estancos e servidão dos<br />

índios; para os mercadores <strong>de</strong> grosso trato significava o


1 175<br />

recebimento <strong>de</strong> cabedais ou <strong>de</strong> gêneros <strong>de</strong> tráfegos; para os<br />

particulares era o provimento da mercê que haviam<br />

requerido, ou a reforma da sentença que haviam agravado;<br />

para as mulheres, além da parte que tomavam no que dizia<br />

respeito aos seus pais, irmãos e maridos, havia a curiosida<strong>de</strong>,<br />

sentimento po<strong>de</strong>roso em todas as filhas <strong>de</strong> Eva.<br />

69 (ALENCAR, 1966, p. 15-16).<br />

Espera indiciada na figuração da casa <strong>de</strong> Guerra dos Mascates, propositalmente<br />

construída para ser ponto <strong>de</strong> referência aos que chegam do mar 70 ; e na voz narrativa <strong>de</strong> O<br />

Garatuja a <strong>de</strong>scortinar um cenário on<strong>de</strong> os galeões da frota estão sempre a partir para a<br />

metrópole, em uma cida<strong>de</strong> cuja face dá para o mar. (ALENCAR, 1966, p. 1272).<br />

O porto é limite ao olhar do colonizador, quando em solo brasileiro: colono.<br />

Martim, em Iracema, tem sua perspectiva modificada pelo amor à tría<strong>de</strong> Iracema /terra<br />

virgem / natureza, que o faz entrar em conflito. O mar para ele emerge como signo da<br />

guerra e da conquista, mas também como limite: seu em relação à metrópole, o que lhe<br />

causa nostalgia:<br />

Lembra-se do lugar on<strong>de</strong> nasceu, dos entes queridos que<br />

<strong>de</strong>ixou. Saberá ele se tornará a vê-los algum dia? Arrojou-se<br />

nas ondas e pensou banhar seu corpo nas águas da pátria,<br />

como banhara sua alma nas sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>la. (ALENCAR,<br />

1980, p. 23 e 57)<br />

e <strong>de</strong> Iracema – colonizada, em relação ao além-mar, que lhe é vedado.<br />

Assim, as imagens da terra e do mar “<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam uma série <strong>de</strong> metáforas com as<br />

quais se constrói a imagem do Estado na engenharia da usina <strong>de</strong> códigos usados para<br />

promover a interseção entre práticas discursivas e sociais” (HELENA, 2001, p. 111). O mar<br />

69 É interessante como em poucas linhas Alencar mapeia esta imaginária Bahia seiscentista, em um texto que<br />

dialeticamente inventa e inventaria a estrutura social, econômica e política <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> patriarcal,<br />

revelando via ficção o embate entre o po<strong>de</strong>r, o domínio e a liberda<strong>de</strong> no Brasil colonial.<br />

70 Como referido anteriormente no trabalho.


1 176<br />

passa a ser ponto <strong>de</strong> referência para a construção <strong>de</strong> uma nova significação sobre o<br />

nacional.<br />

A leitura interessada do texto alencarino revela-nos uma dupla senda para a<br />

passagem à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: a solidão e o enfrentamento da “musa industrial”.<br />

Em “Benção Paterna”, prefácio a Sonhos d’Ouro, Alencar reclama da crítica<br />

brasileira, do papel do escritor frente à <strong>de</strong>manda das editoras e ao enfrentamento <strong>de</strong> um<br />

novo e quase mecânico modo <strong>de</strong> trabalho:<br />

Os livros <strong>de</strong> agora nascem como flores <strong>de</strong> estufa, ou alface <strong>de</strong><br />

canteiro; guarda-se a inspiração <strong>de</strong> molho, como se usa com<br />

a semente; em precisando é plantá-la, e sai a coisa, romance<br />

ou drama. (ALENCAR, s.d., p.7).<br />

Ao mesmo tempo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se da acusação <strong>de</strong> ter-se vendido a “musa industrial”,<br />

aludindo às dificulda<strong>de</strong>s da profissão <strong>de</strong> escritor no Brasil:<br />

Não faltará quem te acuse [ao livro] <strong>de</strong> filho <strong>de</strong> certa musa<br />

industrial, que nesse dizer tão novo, por aí anda a fabricar<br />

romances e dramas aos feixes.<br />

Musa industrial no Brasil!<br />

(...)Não consta que alguém já vivesse nesta abençoada terra<br />

do produto <strong>de</strong> obras<br />

Musa industrial no Brasil!<br />

[...]<br />

És o livro <strong>de</strong> teu tempo, o próprio filho <strong>de</strong>ste século enxacoco<br />

e mazorral, que tudo aferventa a vapor, seja poesia, arte, ou<br />

ciência. (ALENCAR, 1966, p. 691 e 694).<br />

A condição do intelectual face às transformações e as exigências do mercado, em<br />

um país majoritariamente ágrafo, aliadas a uma “estética da solidão”, traduzem o<br />

enfrentamento <strong>de</strong> códigos emergentes na segunda meta<strong>de</strong> do oitocentos no Brasil, e que<br />

dizem respeito também ao papel do escritor em meio a esta nova engrenagem, substituta do


1 177<br />

mecenato, em um momento em que não havia, no país, quem se <strong>de</strong>dicasse exclusivamente à<br />

ativida<strong>de</strong> literária.<br />

De um outro ângulo, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>notar o começo do processo percebido por<br />

Bau<strong>de</strong>laire como o da perda da aura do poeta. Para Benjamin, a perda da aura liga-se ao<br />

dilaceramento da subjetivida<strong>de</strong> clássica e à fragmentação dos objetos, impostos pelo<br />

capitalismo. O jogo do mercado alcança a arte e a <strong>de</strong>ssacraliza, e o escritor vira um<br />

esgrimista a lutar contra a banalização que já aconteceu.<br />

A prática do mecenato será criticada por Alencar, consciente da função social do<br />

escritor, revelada na crítica à estrutura intelectual da corte, tanto pelo mecenato calcado em<br />

critérios intelectuais, como pelo amadorismo dos escritores. A condição <strong>de</strong> sublime da obra<br />

<strong>de</strong> arte ainda permanece <strong>de</strong> algum modo, entretanto já emerge a consciência da perda <strong>de</strong><br />

seu prestígio frente ao mercado.<br />

O espaço do porto, enquanto re<strong>de</strong> <strong>de</strong> memórias a <strong>de</strong>limitarem e limitarem a<br />

experiência intelectual brasileira, ainda insinua-se como uma imagem po<strong>de</strong>rosa. E talvez a<br />

lição <strong>de</strong> Alencar ainda seja válida em um país <strong>de</strong> analfabetos funcionais, em meio às re<strong>de</strong>s<br />

da globalização: porque a literatura é resistência - escrever o Brasil, e não simplesmente ser<br />

<strong>de</strong>scrito. Porque a literatura é ainda promessa: escrever o Brasil como via reflexiva, não<br />

para obter a impossível resposta, mas para permitir-se a busca.<br />

Na mirada para o mar, inscreve-se a <strong>de</strong>scoberta da paisagem brasileira por Alencar.<br />

Além da busca <strong>de</strong> novas paisagens, esta <strong>de</strong>scoberta concretiza-se na implementação<br />

<strong>de</strong> um novo olhar, ao qua l nos referimos no capítulo anterior, criador <strong>de</strong> uma nova<br />

sensibilida<strong>de</strong> do sujeito em relação a si mesmo e ao mundo, traduzidos na prosa<br />

alencarina pela visualida<strong>de</strong>.


1 178<br />

Em Sonhos d’ouro, como vimos, a idéia <strong>de</strong> passeio está repleta <strong>de</strong> melancolia: o<br />

<strong>de</strong>vaneio provocado pelo passeio é o ruminar das idéias. O tropos do passeador solitário é<br />

encarnado no protagonista: Ricardo, 28 anos, advogado simples, brilhante, sem clientes e<br />

sem favores. Um herói que não usa roupas da moda, ouro ou relógio: signos negados do<br />

capitalismo. Mas, sobretudo, Ricardo é artista e alia sua sensibilida<strong>de</strong> a uma moral que o<br />

torna estranho em um mundo on<strong>de</strong> a trapaça, a frivolida<strong>de</strong> e o materialismo imperam.<br />

Ricardo é principalmente um solitário. Um típico herói romanesco, como nos<br />

lembra Georg Lukács, ao indicá-lo como um ser <strong>de</strong>slocado no mundo, em conflito com as<br />

regras da socieda<strong>de</strong> e com o seu propósito pessoal. Solidão, melancolia e arte: eis o seu<br />

perfil. Ele se per<strong>de</strong> em <strong>de</strong>vaneios, não por ser <strong>de</strong>masiado emotivo, mas por sua<br />

sensibilida<strong>de</strong> dotá-lo <strong>de</strong> uma luci<strong>de</strong>z capaz <strong>de</strong> transformá-lo em melancólico, a travar<br />

consigo diálogos e reflexões, pois já não encontra reflexo no mundo exterior. A arte é a<br />

ponte a ligar a melancólica reflexão, a que a sua sensibilida<strong>de</strong> o con<strong>de</strong>na, à solidão.<br />

O passeio solitário franqueia ao herói o encontro com o seu eu interior. Po<strong>de</strong>mos<br />

conectar esta leitura do texto alencarino à reflexão sobre a condição do intelectual brasileiro<br />

oitocentista: pensador periférico a buscar a qualida<strong>de</strong>, a maturação da arte – lembremo-nos<br />

<strong>de</strong> que Alencar era um estudioso <strong>de</strong> questões estéticas; solitário em sua luci<strong>de</strong>z,<br />

enfrentando a “musa industrial”, ele assistiu à implantação <strong>de</strong> novos signos, oriundos da<br />

<strong>de</strong>sorganização do cotidiano brasileiro, <strong>de</strong> uma nova or<strong>de</strong>m, imposta pelo capitalismo e<br />

pela recente condição pós-colonial introduzida no país.<br />

Como instrumento para reorganizar e <strong>de</strong>cifrar os novos códigos que se impunham<br />

escolheu a escrita, concebida a partir da leitura em palimpsesto que faz do mundo em suas<br />

narrativas. Autor-leitor <strong>de</strong> intertextos, Alencar é perspicaz na captação dos tempos, olhares


1 179<br />

e espaços cruzados que, em constante tensão – como a imagem do porto, constituíam as<br />

suas tramas. Em sua escritura, o mar e o porto apresentam-se como signos-limite do artista.<br />

Ao reivindicar a alcunha <strong>de</strong> Sênio, Alencar revela o <strong>de</strong>slocamento do escritor frente<br />

a esse panorama: a alusão à senilida<strong>de</strong> é uma metáfora <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>senraizamento e traz em si a<br />

postura do abandono, da <strong>de</strong>sesperança, da melancolia e da <strong>de</strong>silusão frente aos seus<br />

contemporâneos. E remete à condição <strong>de</strong> guardião da memória: lança o olhar ao passado e<br />

procura o consolo em meio à recordação:<br />

Aí começa outra ida<strong>de</strong> do autor, a qual eu chamei <strong>de</strong> mimha<br />

velhce literária, adotando o pseudônimo <strong>de</strong> Sênio, e outros<br />

querem que seja a da <strong>de</strong>crepitu<strong>de</strong>. Não me afligi com isto, eu<br />

que, digo-lhe com todas as veras, <strong>de</strong>sejaria fazer-me escritor<br />

póstumo, trocando <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong> os favores do presente<br />

pelas severida<strong>de</strong>s do futuro.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 154).<br />

Todavia, mesmo antes <strong>de</strong> assumir o pseudônimo, os textos críticos <strong>de</strong> Alencar, pelo<br />

menos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Iracema, já revelam uma postura melancó lica e a sua <strong>de</strong>silusão com a política<br />

e o fracasso <strong>de</strong> público e crítica <strong>de</strong> suas peças teatrais; a escrita do romance seria uma<br />

forma <strong>de</strong> se evadir <strong>de</strong>stes problemas (até que ponto, se também as questões políticas são ali<br />

discutidas alegoricamente?). Mais tar<strong>de</strong>, como <strong>de</strong>monstrado em “Benção Paterna”, nome<br />

revelador da noção do autor como “pai” do texto, responsável por seus sentidos, essa<br />

<strong>de</strong>silusão é também relacionada à fria recepção <strong>de</strong> seus romances.<br />

Soma-se a isso o alijamento <strong>de</strong> Alencar em dois canais competentes: no âmbito<br />

escolar, já que suas obras foram ignoradas no Curso <strong>de</strong> Literatura do Colégio Pedro II,<br />

importante formador <strong>de</strong> cânon; e no Instituto Histórico Brasileiro, que jamais o aceitou<br />

como membro, apesar <strong>de</strong> ter sido indicado formalmente por Luís Vieira.


1 180<br />

Em Iracema, Alencar escreve na carta a Dr. Jaguaribe 71 :<br />

Já estava eu meio <strong>de</strong>scrido das coisas, e mais dos homens; e<br />

por isso buscava na literatura diversão à tristeza que me<br />

infundia o estado da pátria entorpecida pela indiferença. (...)<br />

Se, porém, o livro for acomado <strong>de</strong> cediço e Iracema encontrar<br />

a usual indiferença, que vai acolhendo o bom e o mau com a<br />

mesma complacência, quando não é silêncio <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso e<br />

ingrato, nesse caso o autor se <strong>de</strong>senganará <strong>de</strong> mais esse<br />

gênero <strong>de</strong> literatura, como já se <strong>de</strong>senganou do teatro e os<br />

versos, como comédias, passarão para a gaveta dos papéis<br />

velhos, relíquias autobiográficas. (ALENCAR, 1966, p. 308).<br />

Além disso, os textos assinados por Sênio (ou S.) nem sempre são sérios, mas<br />

valem-se do riso como arma para <strong>de</strong>nunciar as fissuras da socieda<strong>de</strong>: como ocorre em A<br />

pata da gazela ou em Guerra dos Mascates. Mesmo em Sonhos d´Ouro, a visão crítica <strong>de</strong><br />

mundo <strong>de</strong> Ricardo é pontuada pela ironia romântica do narrador.<br />

O intelectual brasileiro construiria a sua imagem ambíguamente; entre a utopia e a<br />

<strong>de</strong>silusão, a sua tarefa <strong>de</strong> criar pela literatura a face da nação era apenas promessa, a ser<br />

perseguida no experimento <strong>de</strong> criar a literatura brasileira na dialética entre o local e o<br />

universal.<br />

Ao mesmo tempo, Alencar alu<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> escapar da transitorieda<strong>de</strong> e dar a<br />

dimensão <strong>de</strong> seu legado: neste sentido escreve “Como e porque sou romancista”, prefácio a<br />

O Guarani no qual refaz a sua experiência como romancista, em um percurso constituído e<br />

construtor <strong>de</strong> imagens da memória subjetiva a cruzarem a coletiva.<br />

Neste texto confessional, o artesanato da memória vincula-se ao romanesco e ambos<br />

ao cruzamento da memória nos âmbitos coletivo e privado (evi<strong>de</strong>ntemente inseparáveis),<br />

em uma reflexão sobre a estética e poética do romance.<br />

71 Indicamos a ambigüida<strong>de</strong> presente na escolha do portador <strong>de</strong>sta carta que discute, sobretudo, caminhos para<br />

a construção <strong>de</strong> uma prosa capaz <strong>de</strong> se posicionar frente à falência do épico: embora Alencar tivesse<br />

realmente um amigo com esse nome, Jaguaribe é um rio que corta o interior do Ceará, alegorizando a idéia <strong>de</strong><br />

um olhar para o sertão, percebido como terra <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>.


1 181<br />

Desta forma, por exemplo, a lembrança da risada do tio padre, ao se <strong>de</strong>parar com as<br />

mulheres da família chorando por conta da leitura do romance, anuncia em suas entrelinhas<br />

a perda histórica do monopólio cultural católico e a ascensão das práticas romanescas,<br />

índices da secularização do pensamento.<br />

Indica ainda a importância do, em suas palavra, “honroso cargo <strong>de</strong> ledor”<br />

(ALENCAR, 1966, p. 131) no universo burguês oitocentista, em um Brasil ainda<br />

majoritariamente analfabeto e com uma circulação <strong>de</strong> livros muito baixa se comparada à<br />

européia.<br />

A condição <strong>de</strong> ledor po<strong>de</strong> ser também relacionada à importância, no Brasil, das<br />

práticas da oratória religiosa e política, o que fará reverberar, não só na escrita <strong>de</strong> Alencar,<br />

mas também <strong>de</strong> outros escritores, a transferência para o romance da dicção oral.<br />

As lembranças pessoais <strong>de</strong> sua terra natal conformam-se em imagens maturadas<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a infância e apresentadas como cromos dispersos em seus livros: a memória subjetiva<br />

é esfera <strong>de</strong> passagem e criação da memória coletiva, tematiza ndo o mote para a<br />

reelaboração da memória da pátria. Sua escrita é uma comemoração da memória da terra<br />

natal tornada memória brasileira.<br />

Ao falar do Ceará, Alencar refere-se também ao Brasil, fazendo com que a palavra<br />

pátria extrapole o sentido que possuía no Brasil colônia – terra natal, lugar <strong>de</strong> nascimento e<br />

origem. Na narrativa alencarina, o localismo é transcendido na percepção do Brasil como<br />

coletivida<strong>de</strong>, como pátria.<br />

Viajar por terra é uma nova maneira <strong>de</strong> conhecer: conhecimento produzido em um<br />

olhar alternativo capaz <strong>de</strong> corroborar o sentido terra-mar instaurado por Alencar. O canal da<br />

viagem não é mais o mar, mas o solo nacional.


1 182<br />

Um novo sentido é sugerido, pois a viagem <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser para e passa a ser a viagem<br />

através – do Brasil, não mais para explorar e transformar o seu interior: na viagem para, o<br />

telos econômico é dissolvido e o significado do sertão como espaço potencial <strong>de</strong> domínio é<br />

<strong>de</strong>slocado, pois o objetivo da viagem passa a ser o conhecimento alternativo <strong>de</strong>ste espaço e<br />

a sua valorização.<br />

Como forma <strong>de</strong> sublinhar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong> seus textos <strong>de</strong>slocando-os para<br />

além das influências <strong>de</strong> Fenimore Cooper, Walter Scott e Chateaubriand, Alencar localiza<br />

as suas “reais” influências na infância, dialogando com os topoi românticos do gênio e da<br />

originalida<strong>de</strong> autoral, negando a cópia do paradigma do romance francês e americano.<br />

A viagem feita na meninice ao Ceará é apontada como fomento para a produção <strong>de</strong><br />

imagens “puras”, pois produzidas por um olhar percebido como ingênuo e livre <strong>de</strong><br />

influências. Alencar reinvindica, em torno <strong>de</strong>sta percepção, como cerne da sua construção<br />

poética a via dupla da imaginação - estimulada por sua mãe quando criança e pela paisagem<br />

– e da memória, construtoras <strong>de</strong> uma visão literária capaz <strong>de</strong> ver a natureza em sua<br />

majesta<strong>de</strong>.<br />

Assim, como afirma em “Como e porque sou romancista”, a imaginação modula o<br />

olhar não só sobre a paisagem, mas sobre a estética européia, reelaborando a cena natural<br />

em um exercício <strong>de</strong> memória capaz <strong>de</strong> trazer à tona as imagens trabalhadas em seus livros.<br />

Alencar pensa a condição do artista, a tarefa do romancista em seus textos críticos –<br />

<strong>de</strong> forma mais profunda, embora esta imagem também esteja representada nos textos<br />

ficcionais, como Senhora, Sonhos d´Ouro, As minas <strong>de</strong> prata e Guerra dos Mascates :<br />

-Já leram a Diva?<br />

Respon<strong>de</strong>u um silêncio cheio <strong>de</strong> surpresa. Ninguém tinha<br />

notícia do livro, nem supunha que valesse a pena <strong>de</strong> gastar o<br />

tempo com essas coisas.


1 183<br />

Alencar tece nos próprios romances a sua discussão, como nesta passagem<br />

intertextual <strong>de</strong> Senhora, que prossegue na compra do livro pela personagem Aurélia e no<br />

seu diálogo com o crítico que sentencia a sua inverossimilhança, questionada pela<br />

protagonista e pela voz narrativa, que se assume como mediador ao afirmar ter conhecido a<br />

heroína, que lhe contou a história agora narrada por ele. Também vale a pena indicar a<br />

<strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Senhora feita por uma certa “Elisa do Vale”, segundo Cavalcanti Proença em<br />

uma alusão a Le lys dans le vale.<br />

Em nenhum texto o escritor usa a palavra intelectual (até porque ela surgirá<br />

posteriormente). Mas será que po<strong>de</strong>ríamos assim consi<strong>de</strong>rá-lo?<br />

Se nos valermos das reflexões <strong>de</strong> Jean-Paul Sartre, em Em <strong>de</strong>fesa dos intelectuais,<br />

obra compiladora das palestras realizadas pelo filósofo em Tóquio, o intelectual é<br />

sobretudo um sujeito envolvido com o que não lhe diz respeito, extrapolando o seu campo<br />

técnico <strong>de</strong> atuação e agindo ao mesmo tempo com liberda<strong>de</strong> e comprometimento. Assim,<br />

um físico comprometido somente com o seu trabalho é um técnico; um físico que se propõe<br />

a <strong>de</strong>nunciar e a discutir as implicações da política <strong>de</strong> armamento nuclear é um intelectual.<br />

Segundo Sartre, o termo intelectual surgiu no término do século <strong>de</strong>zenove (1894),<br />

com a atuação <strong>de</strong> Émile Zola e outros intelectuais no caso Dreyfus, na <strong>de</strong>fesa do oficial<br />

pelo escritor no conhecido e virulento artigo “J`accuse!”. Ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r Alfred Dreyfus, Zola<br />

foi alcunhado pejorativamente <strong>de</strong> intelectual, por estar atuando em uma questão militar que<br />

não lhe diria respeito, assumindo assim o papel do artista como elemento capaz <strong>de</strong><br />

problematizar e interferir nas discussões coletivas.<br />

Ao situar como marco da função intelectual a atuação <strong>de</strong> Zola (e <strong>de</strong> outros<br />

intelectuais) no caso Dreyfus, Sartre estabelece uma distinção entre os intelectuais e os


1 184<br />

philosophes, os pensadores ilustrados: especialistas do saber prático que foram os primeiros<br />

a exce<strong>de</strong>rem as reflexões sobre o seu próprio campo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>.<br />

Como pensar Alencar em meio a estas duas categorias, escritor em um país fora do<br />

processo <strong>de</strong> ilustração (reverberada como eco na produção árca<strong>de</strong>), artista que produz nas<br />

folgas <strong>de</strong> seu trabalho como político, sua principal ocupação?<br />

Respon<strong>de</strong>r a esta pergunta pressupõe a reflexão sobre os limites e as possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> diálogo entre a produção política e literária <strong>de</strong> Alencar que sofreu em vida diversos<br />

ataques na política por sua condição <strong>de</strong> escritor, bem como recebeu críticas ou a indiferença<br />

em relação às suas obras, por sua atuação como político.<br />

Perceber a autonomia da obra literária não eli<strong>de</strong> a compreensão da sua condição<br />

dialógica; entretanto a postura politicamente conservadora <strong>de</strong> Alencar, não se espelhava <strong>de</strong><br />

maneira tranqüila em seus textos reveladores da tensão entre o público e o privado no<br />

Brasil, como analisado por Helena.<br />

Por outro lado, temas exaustivamente discutidos por Alencar politicamente, como a<br />

questão da escravidão, são silenciados na narrativa romanesca ou representados nos textos<br />

teatrais – caso <strong>de</strong> Mãe e O <strong>de</strong>mônio familiar, como questões familiares, fora <strong>de</strong> uma<br />

complexida<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong> ampliar a discussão.<br />

A condição do escritor brasileiro, escrevendo a toque <strong>de</strong> caixa nas horas vagas 72 ,<br />

convertendo a sua arte em mercadoria (ou, como lê Bau<strong>de</strong>laire, ven<strong>de</strong>ndo-a, como a<br />

prostituta ao seu corpo), solitário e <strong>de</strong>slocado não só como opção <strong>de</strong> vida, mas como<br />

condição sine qua non frente ao quadro nacional, torna-se <strong>de</strong> certa maneira a literatura<br />

como a ativida<strong>de</strong> outra, o campo em que o político “não foi chamado”, em uma inversão<br />

72 Surge <strong>de</strong>ste processo as anedotas sobre Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo, que escreveria seus romances nas<br />

aulas do Colégio Dom Pedro II. De fato, José <strong>de</strong> Alencar, por exemplo, escreveu em vinte e três anos nada<br />

menos do que vinte romances e seis peças <strong>de</strong> teatro, sem contar sua produção crítica e política.


1 185<br />

que fissura a idéia do intelectual como revolucionário e questionador, posicionando-o fora<br />

da impossível tradição, como revela em Como e porque sou romancista:<br />

Deixe arrotarem os poetas mendicantes. O Magnus Apollo da<br />

poesia mo<strong>de</strong>rna, o <strong>de</strong>us da inspiração e pai das musas <strong>de</strong>ste<br />

século, é essa entida<strong>de</strong> que se chama editor, eo seu Parnaso<br />

uma livraria. Se outrora houvesse Homeros, Sófocles,<br />

Virgílios, Horácios e Dantes, sem tipografia, nem impressor,<br />

é porque então escrevia-se nessa página imortal que se<br />

chama a tradição. (ALENCAR, 2006, p. 154).<br />

Entretanto, para Sartre a contradição entre o universal e o particular, é inerente ao<br />

intelectual, concebido como o homem-contradição, na aporia entre o questionamento e o<br />

serviço à hegemonia. Mesmo neste sentido, os questionamentos <strong>de</strong> Alencar não apontam<br />

uma revisão radical do projeto <strong>de</strong> unificação política, mas antes caminhos para a sua<br />

consolidação. A consciência da contradição, positivada na leitura sartriana, porém, existe<br />

mais frágil no Alencar político e mais forte em seus textos literários, embora nas<br />

entrelinhas.<br />

Sartre acredita ser escritor é um intelectual, crê que é possível aliar a sua solidão ao<br />

engajamento, nascido da dialética entre a arte e as condições históricas. O engajamento <strong>de</strong><br />

Alencar é para a classe hegemônica, da qual participa. Os posicionamentos contrários<br />

reivindicados por ele são dis sensões entre os membros <strong>de</strong> uma mesma classe, cuja<br />

consolidação se <strong>de</strong>seja.<br />

Para Sartre, o intelectual é aquele que se rebela; a gran<strong>de</strong> rebeldia <strong>de</strong> Alencar é a<br />

melancolia, o ruminar romântico <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cepções frente à ari<strong>de</strong>z intelectual e o silêncio<br />

ou rejeição à sua produção romanesca e teatral.<br />

Todavia, <strong>de</strong>ntro da proposta gramsciana para a compreensão do conceito <strong>de</strong><br />

intelectual, talvez Alencar pu<strong>de</strong>sse ser assim consi<strong>de</strong>rado. Gramsci percebe o intelectual


1 186<br />

orgânico como o pertencente ou cooptado pela classe hegemônica em seu processo <strong>de</strong><br />

formação e <strong>de</strong>senvolvimento, como auxiliar em sua consolidação.<br />

Os textos críticos <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar transparecem o apoio ao projeto <strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>pendência, percebido como um longo processo, ainda em seu princípio. A literatura é<br />

por ele apontada como importante ferramenta simbólica para a consolidação <strong>de</strong>ste processo.<br />

É importante sublinhar a inserção <strong>de</strong> Alencar em uma geração <strong>de</strong> intelectuais – no<br />

sentido gramsciano, formados aca<strong>de</strong>micamente no Brasil, em Direito ou Medicina (como<br />

Bernardo Guimarães e Joaquim Manuel <strong>de</strong> Macedo). Alencar seguiu a trajetória comum a<br />

muitos outros membros da aristocracia rural e política: 73 formar-se em Direito e ingressar<br />

na política, no jornalismo e na literatura.<br />

Perceber Alencar como intelectual orgânico na socieda<strong>de</strong> oitocentista não significa<br />

afirmá-lo fora da consciência dos limites que se impunham a ele na condição <strong>de</strong> escritor em<br />

um país recém-in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte politicamente, mas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte econômica e culturalmente.<br />

A representação do pensador, do artista, na narrativa <strong>de</strong> Alencar é vária; as<br />

personagens mais complexas <strong>de</strong>ste núcleo são pessimistas, solitárias e <strong>de</strong>siludidas. Escritor<br />

a anunciar e enfrentar limites, Alencar teceu reflexões críticas coadunadas à sua prática<br />

literária. Entre os impasses experimentados a imagem <strong>de</strong>sse intelectual no porto – tal qual<br />

Carlos <strong>de</strong> Enéia em Guerra dos Mascates - emerge em sua força ao nos fazer lembrar que a<br />

ruptura só existe em sua dialética com a tradição, e que a pergunta ainda ecoa: o que é o<br />

Brasil? “Como e porquê” literatura brasileira?<br />

73 Embora o pai <strong>de</strong> Alencar fosse clérigo, era senador, inserido na elite política brasileira e participando <strong>de</strong><br />

eventos importantes para a consolidação do Estado- nação brasileiro.


1 187<br />

Carlos <strong>de</strong> Enéia, anagrama <strong>de</strong> Alencar, é <strong>de</strong>scrito como um homem <strong>de</strong> “meia -ida<strong>de</strong>,<br />

metido consigo, vivia dos provarás, porém, mais, da rigorosa economia a que se sujeitara”<br />

(ALENCAR, 1966).<br />

Sua imagem final revela a condição marginal perante a socieda<strong>de</strong> incapaz <strong>de</strong><br />

compreendê-lo e <strong>de</strong> partilhar experiências: silencioso e honrado, ele cumpre homenagem<br />

anônima àquele a que m se opõe: Sebastião Caldas:<br />

Na noite em que Sebastião <strong>de</strong> Castro embarcava na rampa do<br />

palácio para transportar-se a bordo do navio que <strong>de</strong>via<br />

conduzi-lo à Bahia, diversas pessoas o acompanhavam (...)<br />

Só uma era estranha ao governo, e <strong>de</strong>sconhecida para aquela<br />

gente. Sebastião <strong>de</strong> Castro Caldas reconheceu Carlos <strong>de</strong><br />

Enéia, seu antigo secretário, e compreen<strong>de</strong>u que o trazia ali o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r a homenagem <strong>de</strong> seu respeito à adversida<strong>de</strong>,<br />

já que não lhe era dado conjurá-la. (ALENCAR, 1966, p.<br />

218 e p. 219).<br />

Oposto do <strong>de</strong>sajeitado poeta Lisardo, pintado <strong>de</strong> forma carnavalizada (pois o texto<br />

<strong>de</strong>ssacraliza a imagem do poeta como o vate sublime), Enéia é sério e ilustrado. O pensador<br />

ensimesmado, honrado e pobre é imagem repetida na obra alencarina, perfil <strong>de</strong> outras<br />

personagens como Jó, Ricardo e Vaz Caminha. O próprio sobrenome Enéia po<strong>de</strong> ser<br />

indiciado como intertexto com o sensato Enéias, personagem <strong>de</strong> Eneida, em irônico laivo<br />

épico, já que a impotência do intelectual perante o mundo é sublinhada.<br />

A melancolia <strong>de</strong> Enéia o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> agir; é uma postura <strong>de</strong> <strong>de</strong>sesperança e niilismo<br />

em relação à impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser compreedido pelos que o ro<strong>de</strong>iam. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sua práxis revela-se em seu ímpeto <strong>de</strong> escritor. E embora ele escreva para se isolar do<br />

mundo, a palavra revela-se no texto como ferramenta para além do <strong>de</strong>vaneio ou do elogio<br />

amoroso (como os versos <strong>de</strong> Lisardo), mas como força capaz <strong>de</strong> reverberar no tempo, já<br />

que o narrador afirma haver “suspeitas <strong>de</strong> que seja o incógnito autor da crônica manuscrita


1 188<br />

don<strong>de</strong> extraíram-se estas memórias, e na qual porventura se refugiava o advogado do nojo<br />

pelas misérias públicas que o ro<strong>de</strong>avam” (ALENCAR, 1966, p. 130).<br />

Na urdidura da ligação entre Enéia e o narrador <strong>de</strong>svela-se o jogo <strong>de</strong> máscaras entre<br />

autor, personagem e voz narrativa e revela-se a condição alegórica do romance em uma<br />

estratégia presente em outros textos: a discussão complexa do cenário po lítico e cultural,<br />

travestido na trama amorosa:<br />

tenho para mim que no alfarrábio don<strong>de</strong> se vai extraindo esta<br />

crônica anda metida muita alegoria, com que o letrado<br />

Carlos <strong>de</strong> Enéia, seu apócrifo autor, quis significar certos<br />

enredos <strong>de</strong> governo por contos <strong>de</strong> amor , figurando talvez<br />

interessado na sorte das damas quem somente se movia pela<br />

vaida<strong>de</strong> das honras e ambição do mando.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 143).<br />

A estratégia ficcional da suspeita indicia o elo entre o intelectual da colônia e o do<br />

império, fortalecendo a relação já indicada, via ironia, pelo narrador na “Advertência” ao<br />

romance. A melancolia <strong>de</strong>sata-se da passivida<strong>de</strong> e encena a empatia entre a personagem e o<br />

autor, já que este fazia do texto literário a arma para disseminar as suas reflexões, como,<br />

por exemplo, as metáforas políticas circulantes em obras como a citada.<br />

O isolamento leva Enéia à luci<strong>de</strong>z; entretanto, este universo ficcional (construído à<br />

luz da socieda<strong>de</strong> oitocentista que assistiu à crescente fragilização dos laços coletivos) cria<br />

uma socieda<strong>de</strong> na qual, como refletiu Benjamin em “O narrador”, a experiência coletiva<br />

dilui-se e não há mais sentido em contar histórias – e assim o manuscrito é legado a<br />

posterida<strong>de</strong> 74 , ou em dar conselhos – pois a experiência individual é a possível - mesmo<br />

sendo o intelectual o ser platonicamente capaz <strong>de</strong> traduzir muito mais do que o latim: o<br />

texto sub-reptício a esse universo, a orbitar em torno do engano, da aparência e da<br />

74 Po<strong>de</strong>mos aqui indicar o cruzamento entre o texto legado à posterida<strong>de</strong> pelo intelectual incompreendido e a<br />

nossa citação <strong>de</strong> Iracema, como indicamos anteriormente.


1 189<br />

bajulação. Na distinção entre olhar e ver, ao intelectual é dado ler as contradições, no<br />

quadro chiaroscuro do mundo:<br />

- Nisi quis it facere, insidias nescit metuere.<br />

-Que queres dizer com isto? tornou Vital.<br />

-Que vês a imagem alheia no espelho <strong>de</strong> tua alma; mas eu,<br />

que a vejo à luz da experiência, <strong>de</strong>scubri sombras que te<br />

escapam (...)<br />

- Que me aconselhas então?<br />

- Nada. Segue teu caminho; serás iludido por tua vez e<br />

apren<strong>de</strong>rás a tua custa.<br />

(ALENCAR, 1966).<br />

A solidão <strong>de</strong> Enéia não é física, é emocional, existencial, metáfora para a própria<br />

solidão do escritor no Brasil que, quase monasticamente, vive “retirado numa casinha <strong>de</strong><br />

campo” e é “o verda<strong>de</strong>iro tipo <strong>de</strong> anacoreta do século <strong>de</strong>zenove, que lê o jornal pela manhã,<br />

e à noite joga o seu voltarete” (ALENCAR, 1966, p. 868), como Alencar escreve em uma<br />

crônica.<br />

A <strong>de</strong>dicação à reflexão submete-se ao lugar comum do isolamento como pré-<br />

condição para o exercício intelectual. Entretanto, nas entrelinhas da ironia, o pensador<br />

brasileiro é representado como imerso na velocida<strong>de</strong> da informação <strong>de</strong>scartável, significada<br />

na leitura matinal do texto jornalístico e, na ausência <strong>de</strong> diálogo, pois à noite o que lhe resta<br />

é a diversão vazia.<br />

Em um país <strong>de</strong> poucos leitores e difícil acesso à leitura, a natureza dá-se como livro,<br />

e o intelectual culturaliza o espaço selvagem, percebido como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação <strong>de</strong><br />

pensamentos capazes <strong>de</strong> indicar novas veredas para o nacional: “O resto do tempo leio; mas<br />

não leio no livro dos homens, e sim no livro da natureza, on<strong>de</strong> todos os dias encontro um<br />

novo pensamento, uma nova criação ” (ALENCAR, 1966, p. 868).<br />

Em uma nova aboradagem, a figura do pensador emerge em O Sertanejo, na<br />

personagem enigmática <strong>de</strong> Jó, pouco trabalhada na narrativa. Como ocorre a outras


1 190<br />

personagens, como Ricardo e Enéia, a amargura <strong>de</strong> Jó vem <strong>de</strong> sua luci<strong>de</strong>z; além disso, ele é<br />

traumatizado por um acontecimento não revelado na história, e que o epílogo promete ser<br />

<strong>de</strong>svelado em uma continuação do livro que, entretanto, jamais veio a lume.<br />

Jó, nome que remete à personagem bíblica testada em sua fé por Deus, difere dos<br />

<strong>de</strong>mais por ser representado radicalmente fora do espaço da socieda<strong>de</strong>; misto <strong>de</strong> filósofo e<br />

alquimista, torna-se quase pura natureza, em um suicídio simbólico substituto do físico que<br />

não teve coragem <strong>de</strong> cometer:<br />

Os cabelos compridos quase a se mesclarem com a barba,<br />

formavam como um capelo d´alva que lhe cobria todo o<br />

busto. Sob este rebuço das cãs, apenas se distinguiam das<br />

feições as pálpebras, cerradas naquele momento. O trajo do<br />

ancião compunha-se unicamente <strong>de</strong> uma túnica estreita <strong>de</strong><br />

algodão, tinta <strong>de</strong> preto e cuja teia mal urdida era <strong>de</strong><br />

grosseiro fio. Os pés tinha-os <strong>de</strong>scalços e cobertos <strong>de</strong> poeira<br />

e cinza.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1041).<br />

O auto-exílio o <strong>de</strong>sloca para a <strong>de</strong>srazão, para o pensador, a falta <strong>de</strong> fé na<br />

humanida<strong>de</strong>, incapaz <strong>de</strong> compreendê-lo, não trará recompensas: “Jó soltou uma risada alvar<br />

e continuou a <strong>de</strong>sarrazoar; mas as palavras rompiam-lhe dos lábios roucas e <strong>de</strong>sconexas, <strong>de</strong><br />

modo que já não era possível distingui-las, nem compreen<strong>de</strong>r-lhes o sentido” (ALENCAR,<br />

1966, p.1103 ).<br />

De forma diferente à sabedoria selvagem <strong>de</strong> Arnaldo, comentada no capítulo<br />

anterior, o conhecimento do proscrito Jó não po<strong>de</strong> sobreviver no espaço do sertão senão<br />

como saber mumificado e estéril, inconcebível a ponto <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rá-lo como bruxo. Daí a<br />

personificação <strong>de</strong> Jó como uma quase múmia:<br />

Sentado em uma saliência do rochedo, com o corpo imóvel e<br />

hirto, com as pernas dobradas e estreitamente unidas ao<br />

peito, como os cotovelos fincados nos joelhos e a cabeça<br />

inserdia entre os dois braços, o ancião parecia uma múmia


1 191<br />

indígena arrancada a seu camucim e ali esquecida.<br />

(ALENCAR, 1966, p.1101 e p. 1102).<br />

A figuração <strong>de</strong> Jó não como uma múmia qualquer, mas indígena, indica a ruína do<br />

pensador como um elo para a ruína da cultura indígena: ambos massacrados e<br />

<strong>de</strong>sterritorializados em uma socieda<strong>de</strong> que os <strong>de</strong>spreza em nome da aparência e da<br />

imitação, figuradas pelo licenciado Manuel da Silva <strong>de</strong> Ourém: a oposição entre o pensador<br />

maduro e marginal e o poeta atrapalhado e superficial é reapresentada em O Sertanejo,<br />

através <strong>de</strong> Jó e <strong>de</strong> Ourém.<br />

Primo do vilão Marcos Fragoso, Ourém mantém o olhar afastado dos<br />

acontecimentos que comenta, chegando a subir ao alto da colina para observar a caça ao boi<br />

Dourado.<br />

Como uma espécie <strong>de</strong> narrador épico com dicção vazia, Ourém mimetiza a épica<br />

portuguesa em um conhecimento reprodutor e enviesado, que, por sua vez, é confrontado às<br />

canções populares sertanejas, para <strong>de</strong>stacar as últimas em sua capacida<strong>de</strong> maior <strong>de</strong> traduzir<br />

o universo do interior brasileiro, pois “original”, já que tecidas pela tradição oral 75 .<br />

Incapaz <strong>de</strong> enxergar o traço épico fora do <strong>de</strong>calque camoniano, por ele<br />

incessantemente repetido, Ourém não consegue conceber o universo sertanejo fora do<br />

classicismo:<br />

-Mas em suma, senhores, atalhou o Ourém curioso; quem é<br />

esse famoso Dourado, do qual já que o nosso Camões não<br />

teve <strong>de</strong>le notícias, farei eu<br />

Que se espalhe e se cante no universo,<br />

Se tão sublime preço cabe em verso (...)<br />

-O Dourado é um boi...ia começando o padre Teles.<br />

-Um boi? atalhou o Ourém <strong>de</strong>sconcertado. (...)<br />

75 O que vai ao encontro da discussão tecida nos capítulos anteriores sobre os laivos do épico na produção<br />

romanesca alencarina.


1 192<br />

(Fala <strong>de</strong> Ourém) – Já vejo que o Dourado é um herói, um<br />

touro <strong>de</strong> Maraton, que ainda não encontrou o seu <strong>Tese</strong>u. (...)<br />

-Já vejo que este foi uma espécie <strong>de</strong> Minoutauro, pois tinha<br />

<strong>de</strong> homem a fala, observou o Ourém que ria-se (sic) daqueles<br />

entusiasmos sertanejos.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1139 e p. 1140)<br />

Como Ourém, poeta incapaz <strong>de</strong> cria r fora da imitação é Fernando Seixas. Ser<br />

“escrevinhador <strong>de</strong> folhetins” (ALENCAR, 1966, p. 1017), não lhe dava status, adquirido na<br />

roupas caras e ares <strong>de</strong> dândi. A discussão sobre esta condição é abafada na narrativa <strong>de</strong><br />

Senhora.<br />

Homem urbano que a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> sua “índole poética e fidalga” (ALENCAR, 1966,<br />

p. 1079) imprime à natureza o seu olhar artificial gerado na memória literária:<br />

Seixas, como homem <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> que era, conhecia a<br />

natureza <strong>de</strong> tradição apenas, ou quando muito <strong>de</strong> vista. As<br />

árvores, as flores, as perspectivas, eram para ele ornatos, que<br />

se confundiam com os tapetes, cortinas, trastes, dourados e<br />

toda a casta <strong>de</strong> a<strong>de</strong>reços inventados pelo luxo.<br />

À força <strong>de</strong> viverem em um mundo <strong>de</strong> convenção, esses<br />

homens <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> tornam-se artificiais. (...)<br />

Freqüentemente em seus versos, Seixas falava <strong>de</strong> estrelas,<br />

flores e brisas, <strong>de</strong> que tirava imagens para exprimir a graça<br />

da mulher e as expressões do amor. Pura imitação: como em<br />

geral os poetas da civilização, ele não recebia da realida<strong>de</strong><br />

essas impressões, e sim <strong>de</strong> uma variadas leitura. Originais<br />

somente são aqueles engenhos que se inun<strong>de</strong>m na natureza.<br />

Para isso é preciso, ou nascer na ida<strong>de</strong>s primitivas, ou<br />

<strong>de</strong>sprezar a socieda<strong>de</strong> e refugiar-se na solidão.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1083, grifo nosso).<br />

A questão da memória produzida via literatura é importante dilema na formação do<br />

escritor, já percebido por Álvares <strong>de</strong> Azevedo, na reivindicação por Macário da poesia<br />

intimista, fora da poética ufanista <strong>de</strong>fendida por Penseroso:<br />

Falam dos gemidos da noite do sertão, nas tradições das<br />

raças perdidas das florestas, nas torrentes das serranias,<br />

como se lá tivessem dormido ao menos uma noite, como se<br />

acordassem procurando túmulos, e perguntando como


1 193<br />

Hamleto no cemitério a cada caveira do <strong>de</strong>serto o seu<br />

passado.<br />

Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as páginas <strong>de</strong><br />

algum viajante que esqueceu-se (sic) talvez <strong>de</strong> contar que<br />

nos mangues nas águas do Amazonas e do Orenoco há mais<br />

mosquitos e sezões do que inspiração. (AZEVEDO, 2001, p.<br />

86 e 87).<br />

A cesura do olhar romântico para a paisagem proposta por Macário po<strong>de</strong> ser<br />

confrontada à sua construção em O sertanejo; ao dissolvê-la, o texto revela a condição<br />

imaginária da viagem, mitificada inclusive pela crítica alencarina. As imagens da paisagem<br />

são constituídas pela memória literária e reconstituídas em outros textos e suportes. A<br />

nostalgia romântica articula-se em torno do que foi lido e vivido simbolicamente, muitas<br />

vezes fora da empiria: “Apenas concluí o primeiro canto, veio me uma vaga reminiscência<br />

<strong>de</strong> uns quadros da vida selvagem, <strong>de</strong>ssa vida poética dos índios, que em outros tempos<br />

tanto me impressionaram. Era uma sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguma coisa que havia pensado, ou que<br />

tinha lido outrora”. (ALENCAR, 1966, p. 869) 76<br />

A relação entre a natureza e a arte estabelecida pela narrativa mostra-se em íntima<br />

articulação à imagem do artista solitário, formado além do <strong>de</strong>calque e conhecedor da<br />

natureza pela vivência, o que se articula às reflexões <strong>de</strong> Como e por que sou romancista.<br />

Essa tensão entre o original e a cópia na produção artística apresenta-se, ainda que<br />

como elemento secundário, na tradução feita por Seixas <strong>de</strong> “Corsário”; a emoção o tornaria<br />

capaz <strong>de</strong> criar um texto melhor do que o original, <strong>de</strong>slocando, ainda que timidamente, a<br />

superiorida<strong>de</strong> da literatura central sobre a periférica:<br />

76 Esta citação foi recortada por Carmem Lucia Negreiros <strong>de</strong> Figueiredo em seu artigo “Crítica à invenção<br />

Brasil: palavra, país, paisagem” (In: HELENA, 2004, p. 134) no qual reflete sobre a memória literária como<br />

elemento <strong>de</strong> compreensão da cultura brasileira, discussão aprofundada em seu livro Trincheiras <strong>de</strong> sonhos<br />

(1997).


1 194<br />

Não contou o poema do bardo inglês; bordou outro poema<br />

sobre a mesma teia, e quem o ouvisse naquele instante,<br />

acharia pálido e frio o original, ante o plágio eloqüente. È<br />

que neste havia uma alma a palpitar, enquanto que no outro<br />

apenas restam os cantos mudos do gênio que passou.<br />

(ALENCAR, 1966, p. 1095).<br />

A condição do artista como um ser incompreendido é reiterada na impossibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Seixas partilhar o prazer estético do poema <strong>de</strong> Byron. (ALENCAR, 1966, p. 1115 e p.<br />

1116).<br />

Outra personagem “intelectual” figurada por Alencar é Vaz Caminha, “o mais sábio<br />

letrado da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador” (ALENCAR, 1977, p.13), pai adotivo <strong>de</strong> Estácio e que<br />

possui um perfil aproximado ao <strong>de</strong> Enéia. Seu nome aponta a clara intertextualização com<br />

Pero Vaz <strong>de</strong> Caminha, o autor do que é consi<strong>de</strong>rado como o primeiro documento brasileiro,<br />

a “Carta a El-Rey Dom Manuel”, a “certidão <strong>de</strong> nascimento” do Brasil.<br />

Vaz Caminha não só domina o mundo da lei, como o dos documentos e da erudição.<br />

Bacharel e pobre, é um colono que veio ao Brasil pelo sonho, jamais realizado, <strong>de</strong> publicar<br />

suas pesquisas sobre as Or<strong>de</strong>nações Manuelinas. É figurado como cavaleiro andante em As<br />

minas <strong>de</strong> prata, pois o homem ilustrado não po<strong>de</strong> sobreviver senão na utopia. O próprio<br />

nome Caminha po<strong>de</strong>ria indicar o verbo caminhar, em um <strong>de</strong>slocamento que só cessa na<br />

catástrofe: o incêndio que consome a si e a sua obra. A personagem traduz a ilusão e a<br />

promessa não realizadas, revelando os liames e interdições da palavra como potência <strong>de</strong><br />

tradução do mundo colonial e pós-colonial.<br />

Contrapondo-se a Caminha, o vilão Molina é um jesuíta que chega a esta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

após mover-se em várias máscaras durante o seu período <strong>de</strong> formação. Antes Vilarzito, ele<br />

per<strong>de</strong> a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pícara e assume o perfil austero e ambicioso com o qual a imagem<br />

da or<strong>de</strong>m, até por uma questão histórica, constituía-se no imaginário.


1 195<br />

Após falir tanto no projeto <strong>de</strong> resgate das minas <strong>de</strong> prata, quanto no projeto amoroso<br />

abandonado com a sua entrada na or<strong>de</strong>m, ele recolhe-se e apresenta uma outra face: o<br />

velho, o que remete à nossa leitura do intelectual como, ao mesmo tempo, o ser <strong>de</strong>siludido,<br />

isolado e portador <strong>de</strong> uma memória latente, por vezes impossibilitada <strong>de</strong> emergir na<br />

resistência <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> intelectualmente rasa.<br />

Uma personagem presente não na produção roma nesca, mas teatral, emerge com um<br />

perfil a dialogar com Molina, o Dr. Samuel, <strong>de</strong> O jesuíta, nas palavras <strong>de</strong> Alencar, em sua<br />

crítica à peça, “o gênio capaz <strong>de</strong> suscitar da barbárie este império americano, e dar no Novo<br />

Mundo uma pátria à liberda<strong>de</strong> foragida” (ALENCAR, 1966, p. 1018), e <strong>de</strong> gerir o processo<br />

<strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência a concretizar-se posteriormente: o intelectual maduro, com a exceção <strong>de</strong><br />

Jó, é aquele capaz <strong>de</strong> ter uma visão além da imediata.<br />

Em O jesuíta, uma personagem inspirada em uma figura histórica marca presença:<br />

José Basílio da Gama. Curiosamente, sua personagem tem função secundária na obra, como<br />

explica Alencar, usando mais uma vez em sua crítica a metáfora pictórica:<br />

Essas figuras (secundárias, como a personagem Basílio da<br />

Gama ) fazem o efeito <strong>de</strong> baixo-relevos nos socos das estátuas,<br />

as cenas em que entram, semelhantes aos escuros da pintura<br />

servem para realçar o drama. São pontos <strong>de</strong> repouso que<br />

preparam o espectador para as comoções. (ALENCAR,<br />

1966, p. 1021).<br />

Desta maneira, a personagem Basílio da Gama pen<strong>de</strong> para o picaresco; po<strong>de</strong>ríamos<br />

ler na dissolução dos dilemas do escritor, que po<strong>de</strong>riam ter sido indiciados na construção da<br />

personagem, a impotência da literatura colonial em engendrar o projeto grandioso iniciado<br />

por Samuel, que aliás some no final instaurando o impasse e a dúvida no texto.


1 196<br />

Criticado pelo modo como construiu a personagem Basílio da Gama no drama,<br />

Alencar entretanto <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se não da falta <strong>de</strong> discussão do papel do literato, mas da<br />

infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> mimética:<br />

Na biografia do poeta, em seus escritos e<br />

especialmente nas notas ao Uruguai, se<br />

encontram os elementos que serviram para o<br />

esboço do noviço folgazão e espirituoso, que<br />

disfarçava com o motejo e o riso a<br />

repugnância do claustro, e sonhando a<br />

liberda<strong>de</strong> ensaiava nos a<strong>de</strong>jos tímidos<strong>de</strong> sua<br />

vocação poética os vôos épicos. (ALENCAR,<br />

1966, p. 1023).<br />

A figuração do pensador e do artista na obra alencarina constrói-se na fragilida<strong>de</strong>,<br />

na representação da <strong>de</strong>sarticulação da inteligência brasileira e no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> uma educação<br />

do olhar que, se por um lado é quase falho no universo ficcional, por outro é disseminado<br />

em suas narrativas.<br />

É através do olhar para o porto que o texto alencarino constrói este novo olhar, já<br />

que ver e conhecer são verbos que confluem em sua escrita. Ao tecer as veredas do<br />

nacional com múltiplos fios, entrecruza dos em uma dinâmica on<strong>de</strong> a solidão e a luci<strong>de</strong>z<br />

perfazem-se, Alencar pensou a si, como intelectual, e à nação, como quadro a restaurar,<br />

reelaborando e repensando a questão nacional.


1 197<br />

CONCLUSÃO<br />

Convencer é infrutífero.<br />

(Walter Benjamin)<br />

Ao percorremos as sendas do projeto literário alencarino, tecida nos fios <strong>de</strong> sua<br />

produção crítica e literária, tentamos refletir sobre as relações entre memória e literatura na<br />

narrativa alencarina.<br />

Ao refletirmos sobre as nuances do diálogo entre memória coletiva e memória<br />

subjetiva a partir do prisma da memória literária, indicamos a força da narrativa alencarina,<br />

capaz <strong>de</strong> contribuir com novas modulações a respeito das imagens sobre o tempo passado.<br />

Tais modulações são possibilitadas pela criação <strong>de</strong> um efeito discursivo <strong>de</strong> fundação<br />

nos textos que se remetem ao passado colonial, articulado em torno do dialogismo entre a<br />

memória literária e a memória histórica.<br />

A intervenção do discurso literário na produção da memória e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

brasileira redimensiona concepções sobre o passado e sobre as origens e articula-se a um<br />

momento em que era necessária a inauguração <strong>de</strong> um tempo histórico artificialmente<br />

elaborado, a partir do qual os escritores da jovem nação brasileira pu<strong>de</strong>ssem expor a<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> dotar com a idéia <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> temporal a sua recente história enquanto<br />

Estado-Nação.<br />

Ao buscarmos os limites e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> diálogo entre a memória e a<br />

literatura, apontando a instância da memória como pluridimensional, ou seja, como esfera


1 198<br />

com múltiplos suportes em torno dos quais se organiza e projeta no imaginário, evitamos<br />

pensá-la <strong>de</strong> modo unilateral ou construída unicamente pelo discurso histórico.<br />

Apontamos a literatura como instância produtora <strong>de</strong> memórias, e, especificamente, a<br />

literatura alencarina como capaz <strong>de</strong> fundar novos olhares frente ao cruzamento dos tempos<br />

passado, presente e futuro.<br />

Po<strong>de</strong>mos assim indicar o romance alencarino como capaz <strong>de</strong> imprimir, através do<br />

discurso ficcional, o diálogo com a produção dos cronistas e viajantes, invertendo as<br />

concepções <strong>de</strong> imagens nacionais. Neste sentido, construiu-se na proposta alencarina uma<br />

nova referência para a paisagem, transcen<strong>de</strong>ndo o aspecto físico e criando um mapa<br />

discursivo simbólico e latente <strong>de</strong> ressignificações.<br />

Nesta geografia do <strong>de</strong>sejo emergente no discurso ficcional, elaborou-se um olhar<br />

inscrito pela perspectiva do colono, e não mais do colonizador: a inversão do grito “terra à<br />

vista” é construído no avesso do olhar português, a dominar a terra; é feito a partir das<br />

fissuras <strong>de</strong>ste olhar, criando um modo novo <strong>de</strong> mirar o país e sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Uma leitura<br />

do que foi consi<strong>de</strong>rado como excêntrico pelos estrangeiros, como fora do centro e que<br />

agora assume seu lugar central na reconstrução do discurso pós-colo nial brasileiro.<br />

Essa nova sensibilida<strong>de</strong> foi analisada em torno da percepção das relações<br />

interdiscursivas na formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> romântica e do imaginário nacional do<br />

oitocentos brasileiro nas interfaces da literatura e da pintura, no que indicamos como um<br />

jogo <strong>de</strong> claro-escuro na narrativa <strong>de</strong> Alencar, <strong>de</strong>sdobrado na simulação da textura pictórica<br />

na <strong>de</strong>scrição das cenas, com forte visualida<strong>de</strong> e na metaforização do discurso histórico<br />

como luz e <strong>de</strong> seus interditos como penumbra, o que se liga à proposta da poética da<br />

restauração, na medida em que ela indicia o posicionamento, proposto por Alencar, do<br />

escritor frente a seu contexto. Alu<strong>de</strong>, ainda, à tensão presente na escrita alencarina das


1 199<br />

relações entre natureza e civilização, dissolvendo a oposição totalizadora e instaurando a<br />

dúvida e a ambigüida<strong>de</strong>.<br />

A dúvida e a ambigüida<strong>de</strong> tecidas em torno das relações entre o pictórico e o<br />

poético na obra alencarina abre uma senda para a reflexão sobre as possibilida<strong>de</strong>s e os<br />

limites da sobrevivência do épico frente ao contexto brasileiro, questão, aliás, pensada<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito cedo, já nas “Cartas sobre A Confe<strong>de</strong>ração dos Tamoios”, texto semeador <strong>de</strong><br />

um projeto concretizado em O Guarani e maturado ao longo <strong>de</strong> sua obra.<br />

A dúvida e a incompletu<strong>de</strong> como traços do projeto alencarino nos remeteram para a<br />

representação do espaço na narrativa alencarina e a sua transformação através dos signos do<br />

passeio, do mar, do porto e do sertão, instrumentos para a reengenharia <strong>de</strong>stes espaços que<br />

se figuram e se configuram como limites entre o projeto <strong>de</strong> autonomia pátria e os interditos<br />

impostos pela condição pós-colonial. Tais signos são pistas a orientar a construção<br />

permanente da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pátria, não <strong>de</strong> forma unívoca, mas flutuando nos limites entre<br />

civilização e barbárie.<br />

Nas narrativas urbanas po<strong>de</strong>mos também apontar estes limites, na representação dos<br />

novos códigos sociais organizados no texto, na figuração do intelectual, no cruzamento<br />

entre a memória subjetiva e a memória coletiva, pensadas no eixo ficcional. A memória<br />

literária articula-se com espaços e tempos distantes, com o potencial simbólico da cida<strong>de</strong> e<br />

do interior, do sertão e do mar.<br />

As ruínas e pistas <strong>de</strong>ixadas pelo passado colonial são alegorizadas nesses signos, por<br />

nós percebidos como moduladores <strong>de</strong> imagens, capazes <strong>de</strong> arrancar o passado <strong>de</strong> um tempo<br />

proibitivo e o revelar no cruzamento temporal que inva<strong>de</strong> nossas vidas e memórias.<br />

Tais leituras são possíveis se consi<strong>de</strong>rarmos o passado cultural um palimpsesto,<br />

on<strong>de</strong> tempos e visões diversas encontram-se sobrepostos, fusos e confusos. A memória


1 200<br />

surge <strong>de</strong>ste turbilhão como um labirinto, a equacionar-se <strong>de</strong> forma vária frente às suas<br />

interfaces.<br />

A memória literária conduz, portanto, imagens pelas vias tortuosas da construção do<br />

passado nacional só cogitado por estar imbricado no próprio presente. Presente que não é<br />

unívoco, mas constituído na sobreposição <strong>de</strong> múltiplas visões que se arvoram na tentativa<br />

<strong>de</strong> explicar, <strong>de</strong> formar e <strong>de</strong>formar aspectos <strong>de</strong> uma memória fragmentada.<br />

Assim, como lia romances para as mulheres nos serões <strong>de</strong> sua infância, Alencar<br />

torna-se o leitor <strong>de</strong> uma nova concepção mental <strong>de</strong> tempo histórico, que sugere e semeia<br />

sonhos em uma socieda<strong>de</strong> em busca <strong>de</strong> seu próprio espelho que, como tudo relacionado à<br />

busca da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, é distorcido e inacabado, como o próprio passado, a renovar-se<br />

materialmente na novida<strong>de</strong> dos achamentos arqueológicos e arquivísticos e<br />

i<strong>de</strong>ologicamente nas novas leituras <strong>de</strong> mundo a surgir, em uma mirada transformadora<br />

daquilo que o historicismo, em sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, tentou cristalizar.<br />

A liberda<strong>de</strong> ficcional do romance <strong>de</strong> Alencar resgata memórias esquecidas<br />

reelaborando-as e fecunda no imaginário a reelaboração <strong>de</strong> visões do passado,<br />

<strong>de</strong>sestabilizando-as e pintando-as <strong>de</strong> novas cores.<br />

Po<strong>de</strong>mos concluir, então, que a memória é uma instância simbólica produzida e<br />

reiterada através dos tempos e visa à construção e <strong>de</strong>sconstrução <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res. Foi em torno<br />

<strong>de</strong>sta visão que propomos a narrativa alencarina como capaz <strong>de</strong> fundar aspectos da<br />

memória nacional, através da tessitura <strong>de</strong> mitos <strong>de</strong> fundação e do resgate do relato do outro,<br />

reiterando a da idéia <strong>de</strong> nação brasileira.<br />

Como intelectual orgânico <strong>de</strong> um país em formação, Alencar po<strong>de</strong>ria optar por<br />

diversos caminhos para levar a cabo o seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> contribuir para a releitura do<br />

imaginário brasileiro. Foi um entusiasmado estudioso dos cronistas e da etnografia


1 201<br />

indígena; porém, escolheu a literatura como senda para <strong>de</strong>cifrar não só o passado, mas os<br />

novos códigos que se impunham em seu contexto, interligados <strong>de</strong>safios.<br />

Ao escrever para um público predominantemente feminino seus romances <strong>de</strong> fácil<br />

digestão, Alencar, entretanto, busca formar <strong>de</strong>terminadas imagens relacionadas à memória<br />

brasileira, na construção <strong>de</strong> personagens com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s tão ambíguas quanto a nacional,<br />

assim por ele consi<strong>de</strong>rada em Benção Paterna, tematizada em heróis que escapam da<br />

clássica dicção épica justamente na sua contradição entre a inferiorida<strong>de</strong> e a superiorida<strong>de</strong>:<br />

como o Brasil em seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> se civilizar, em meio a esta tensão. Ao propor a missão <strong>de</strong><br />

dar feição a uma face ambígua, no texto, o autor está consciente da precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu<br />

projeto, ainda em estado inicial, projetando a sua consecução para um tempo futuro.<br />

Alijado dos círculos intelectuais que contavam com o patronato do imperador, e<br />

<strong>de</strong>ntre <strong>de</strong>les o importante Instituto Histórico Brasileiro (alvo <strong>de</strong> críticas no prólogo <strong>de</strong><br />

Guerra dos Mascates), Alencar buscou criar dos ecos dos discursos circulantes na<br />

socieda<strong>de</strong>, como do Instituto Histórico Brasileiro, mas também nas parcas lendas (muitas<br />

vezes compiladas pelo olhar colonial) e narrativas orais uma nova visão sobre o Brasil,<br />

abafada em sua complexida<strong>de</strong> pela ficção aparentemente simples.<br />

O anverso <strong>de</strong> seus textos revela as ruínas sobre as quais Alencar “restaurou”<br />

imagens da tela da memória brasileira, em uma perspectiva que não aponta certezas, mas<br />

que se constrói na ambigüida<strong>de</strong> e, muitas vezes, no final em aberto <strong>de</strong> algumas narrativas.<br />

Essa perspectiva coaduna-se à já aludida proposta <strong>de</strong> uma poética da restauração<br />

que alegoriza a questão nacional em um sentido que emprestamos <strong>de</strong> Benjamin, ou seja, na<br />

percepção da alegoria como promessa <strong>de</strong> leitura das ruínas. Isto nos permite <strong>de</strong>rivar o<br />

conflito <strong>de</strong> perspectivas na escritura alencarina.


1 202<br />

Assim, po<strong>de</strong>mos apontar elos entre a narrativa romanesca e a pictórica no Brasil<br />

presentes na vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconstruir o nacional e na consciência, pelo menos intuída na<br />

pintura <strong>de</strong> Pedro Américo, da falência da totalida<strong>de</strong> épica, sobrevivente apenas como ruína,<br />

a ser reinventada pelo artista. Há a tentativa do resgate do herói problemático, presente em<br />

uma aparência épica, mas que revela em suas entrelinhas os seus espaços limítrofes.<br />

Assim, não haveria uma ruptura completa entre os clássicos e os românticos na arte<br />

brasileira, mas a tentativa <strong>de</strong> dialogar com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência do épico em um<br />

momento em que seu domínio é impossível: questão já intuída por Alencar e mais tar<strong>de</strong><br />

aprofundada e sistematizada pelo jovem Lukács, em A Teoria do Romance.<br />

Frente à relativa ociosida<strong>de</strong> intelectual <strong>de</strong> seu tempo, Alencar propõe um projeto<br />

para além da racionalida<strong>de</strong>, calcado em uma percepção <strong>de</strong> mundo sustentada também pela<br />

subjetivida<strong>de</strong> e pela imaginação.<br />

Nela, a personagem do homem pensante, ruminador e melancólico, apóia-se<br />

paradoxalmente no fracasso – criado pelo <strong>de</strong>slocamento, e no sofrimento como meios <strong>de</strong><br />

sustentação da verda<strong>de</strong> e da moral, os únicos caminhos possíveis para a liberda<strong>de</strong>.<br />

Com olhos livres – embora o saibamos contaminados <strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>lével pela<br />

cultura em que estão mergulhados, <strong>de</strong>ntro do truísmo que faz <strong>de</strong> Alencar “um homem <strong>de</strong><br />

seu tempo” – o belo natural é civilizado e tecido par e passo ao belo artístico por aqueles<br />

capazes <strong>de</strong>, no resíduo platônico, ver e não somente olhar, <strong>de</strong> mirar com “olhos <strong>de</strong> artista”,<br />

pois o belo seria antes <strong>de</strong> tudo um reflexo do espírito, na concepção romântica.<br />

Em torno dos jogos <strong>de</strong> sombra e luz, entre o que foi dito e silenciado, a História e a<br />

história, o pictórico e o literário, a lembrança e o esquecimento, os romances do escritor<br />

cearense (mas que se quer mais do que tudo brasileiro) são fios a alinhavar a unida<strong>de</strong> da


1 203<br />

nação na invenção <strong>de</strong> marcos, tradições, signos e imagens capazes <strong>de</strong> congregar a<br />

diversida<strong>de</strong>.<br />

Ao pintar as suas paisagens em claro-escuro, Alencar dissolve os índices binários e<br />

implementa a riqueza da tensão, em uma reflexão que não quer convencer, mas propor a<br />

discussão em um país no qual o <strong>de</strong>bate é geralmente silenciado, frente à insipiência e<br />

incipiência <strong>de</strong> sua elite.<br />

A frase emprestada <strong>de</strong> Walter Benjamin nos alerta que “convencer é infrutífero”: o<br />

<strong>de</strong>bate é mais produtivo do que o convencimento; nossa intenção é a <strong>de</strong> que nossa tese<br />

possa incitar novas perguntas e <strong>de</strong>bates sobre a obra <strong>de</strong> Alencar, acreditando na riqueza da<br />

discordância e do diálogo.


1 204<br />

ANEXOS<br />

ANEXO 01<br />

“Grécia nas ruínas <strong>de</strong> Missolonghi”, <strong>de</strong> Eugène Delacroix (1826).


1 205<br />

ANEXO 02<br />

“Moisés e Jacobed”, <strong>de</strong> Pedro Américo (1884).


1 206<br />

ANEXO 03<br />

“A batalha do Avaí”, <strong>de</strong> Pedro Américo (1877).


ANEXO 04<br />

“Cenas do Massacre em Chios”, <strong>de</strong> Eugène Delacroix (1824).<br />

207


ANEXO 05<br />

“Floresta Brasileira”, <strong>de</strong> Rugendas (1824)<br />

208


ANEXO 06<br />

“Floresta Brasileira”, <strong>de</strong> Manuel <strong>de</strong> Araújo Porto-Alegre (1853).<br />

209


ANEXO 07<br />

“La petite casca<strong>de</strong> <strong>de</strong> Tijuca”, <strong>de</strong> Nicolas Antoine Taunay (circa 1820).<br />

210


ANEXO 08<br />

“Porto do Rio <strong>de</strong> Janeiro”, <strong>de</strong> Nicolau Facchinetti ( 1890).<br />

211


ANEXO 09<br />

“Cascata do Parque Lemgruber na Tijuca”, <strong>de</strong> Nicolau Facchinetti (1878)<br />

212


ANEXO 10<br />

“Floresta reduzida a carvão”, <strong>de</strong> Félix Émile Taunay (1830).<br />

213


ANEXO 11<br />

“Gruta”, <strong>de</strong> Manuel <strong>de</strong> Araújo Porto- Alegre (1845).<br />

214


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