A História Natural dos sertões do Ceará em "Notas de ... - anpuh
A História Natural dos sertões do Ceará em "Notas de ... - anpuh
A História Natural dos sertões do Ceará em "Notas de ... - anpuh
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Um científico <strong>de</strong>svenda o sertão: Natureza e Cultura nas narrativas da viag<strong>em</strong> ao<br />
<strong>Ceará</strong> <strong>do</strong> botânico Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão<br />
Francisca Hisllya Ban<strong>de</strong>ira Cavalcante ∗<br />
Ao longo <strong>do</strong> século XIX as viagens científicas ganharam forte especialização e,<br />
consequent<strong>em</strong>ente, isso se refletiu na literatura <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> produzida pelos cientistas<br />
viajantes. Assim, as m<strong>em</strong>órias, os relatos, os diários, as correspondências, as instruções <strong>de</strong><br />
viag<strong>em</strong> e os relatórios científicos apresentavam algumas modificações e reafirmavam-se<br />
cada vez mais como el<strong>em</strong>entos essenciais para o bom cumprimento da tarefa <strong>do</strong> naturalista<br />
viajante. Dentre as categorias que compõ<strong>em</strong> a literatura <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>, perpassan<strong>do</strong> a crônica,<br />
a epístola, o romance, a poesia, o diário <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> e o relato científico, acrescenta<strong>do</strong> não<br />
raramente <strong>do</strong> correspon<strong>de</strong>nte iconográfico, merece <strong>de</strong>staque o Diário <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> <strong>do</strong><br />
naturalista. Nele, assuntos pessoais e profissionais aparec<strong>em</strong> associa<strong><strong>do</strong>s</strong>, revelan<strong>do</strong><br />
aspectos da viag<strong>em</strong> científica que dificilmente figuram nos relatórios e nas comunicações<br />
oficiais. Longe <strong>de</strong> conter<strong>em</strong> apenas informações <strong>do</strong> plano pessoal, os diários compõ<strong>em</strong> um<br />
importante material para a análise da <strong>História</strong> das Ciências. Quase s<strong>em</strong>pre as ativida<strong>de</strong>s<br />
profissionais aparec<strong>em</strong> conjuntamente com informações sobre a vida e o cotidiano <strong>de</strong><br />
qu<strong>em</strong> escreve. No caso específico <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> sobre a Comissão Científica <strong>de</strong><br />
Exploração, encontramos enquadra<strong>do</strong> nesse tipo <strong>de</strong> literatura <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> o Diário <strong>de</strong><br />
Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão, que torna possível o mapeamento da dinâmica <strong>do</strong> trabalho<br />
científico e o cotidiano das localida<strong>de</strong>s que foram visitadas por esse cientista.<br />
A Comissão Cientifica <strong>de</strong> Exploração das províncias <strong>do</strong> Norte ou Comissão<br />
Cientifica <strong>do</strong> Império, ou ainda Imperial Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração ou apenas<br />
Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração, Comissão <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong> ou até mesmo Comissão das<br />
Borboletas e Comissão Deflora<strong>do</strong>ra 1 , são títulos diferentes para uma mesma experiência:<br />
uma viag<strong>em</strong> naturalista <strong>em</strong>preendida por cientistas brasileiros ao interior das províncias<br />
mais distantes da corte imperial na segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XIX. A instauração <strong>de</strong>ssa<br />
expedição esteve diretamente aliada às vivências políticas, científicas e culturais <strong>do</strong><br />
Império brasileiro, <strong>em</strong> vias <strong>de</strong> construção e legitimação.<br />
O século XIX vai ser marca<strong>do</strong> no Brasil como o momento <strong>de</strong> sua afirmação<br />
enquanto uma nação soberana e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Após o processo <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência o Brasil<br />
∗ Mestranda <strong>em</strong> <strong>História</strong> – MAHIS - Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong><br />
1 Para fins <strong>de</strong> simplificação será referenciada nesse texto, a partir <strong>de</strong> agora, apenas como Comissão Científica<br />
ou simplesmente Comissão.<br />
1
<strong>de</strong>ixava a condição <strong>de</strong> colônia e passaria a se constituir enquanto um Império, um Esta<strong>do</strong>-<br />
Nação que seguiria a partir <strong>de</strong> então com suas próprias pernas rumo à civilização e ao<br />
progresso. Delinear um perfil para o novo país, conferin<strong>do</strong>-lhe uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
transformara-se numa questão crucial. Pensar a nacionalida<strong>de</strong> significava lançar as bases<br />
políticas, históricas, culturais, naturais e sociais sobre as quais se ergueria a nação, para<br />
tanto, era necessário que foss<strong>em</strong> bases fortes, autônomas e singulares, consolidan<strong>do</strong> um<br />
esta<strong>do</strong> nacional <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria diante das outras nações e <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
com os princípios que norteavam a organização da vida social no século XIX.<br />
A legitimação da nação brasileira seria forjada através da instituição <strong>de</strong> um<br />
passa<strong>do</strong> glorioso e <strong>de</strong> uma <strong>História</strong> nacional total, unânime, valiosa e, para tanto, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />
com Guimarães (1988), tornava-se necessário para os intelectuais e políticos da época<br />
conhecer o Brasil <strong>em</strong> sua totalida<strong>de</strong>; <strong>de</strong>sbravar sua natureza, cultura e história, conquistar o<br />
interior <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> e alargar as fronteiras habitadas e exploradas <strong>do</strong> país, além <strong>de</strong><br />
esclarecer e educar a socieda<strong>de</strong> e criar nela um sentimento <strong>de</strong> amor a pátria e, assim,<br />
afirmar a unida<strong>de</strong> nacional. É nesse momento, que cientistas, literatos, historia<strong>do</strong>res,<br />
políticos e intelectuais brasileiros irão <strong>de</strong>dicar seus esforços para a elaboração da<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> brasileira, para a afirmação cultural e para a construção da totalida<strong>de</strong> nacional.<br />
Nesse contexto, as investigações históricas, etnográficas, etnológicas, geográficas,<br />
botânicas, zoológicas, geológicas e estu<strong><strong>do</strong>s</strong> sobre as raças, hábitos e costumes <strong><strong>do</strong>s</strong><br />
habitantes <strong>de</strong> todas as terras brasileiras apareciam como passos importantes a ser<strong>em</strong> da<strong><strong>do</strong>s</strong><br />
para a construção <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> valioso para o Brasil, que <strong>de</strong>veria adquirir uma<br />
personalida<strong>de</strong> histórico-cultural própria, e na construção <strong>de</strong>ssa personalida<strong>de</strong> a natureza<br />
brasileira ocuparia lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque como el<strong>em</strong>ento simbólico da especificida<strong>de</strong> nacional.<br />
Em mea<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>do</strong> século XIX os homens <strong>de</strong> ciência no Brasil compunham uma<br />
comunida<strong>de</strong> cientifica <strong>em</strong> vias <strong>de</strong> consolidação. Um sist<strong>em</strong>atiza<strong>do</strong> esforço era feito na<br />
tentativa <strong>de</strong> inventariar as riquezas <strong>do</strong> Brasil por meio da ciência, especialmente as ciências<br />
naturais. 2 Com a consolidação <strong>de</strong> instituições científicas e culturais, como o Museu<br />
Nacional e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, os cientistas locais iniciaram um<br />
processo <strong>de</strong> afirmação <strong>do</strong> que seria uma “ciência nacional”. Por ciência nacional, entendiase,<br />
segun<strong>do</strong> os estatutos e normas das instituições científicas existentes, o conhecimento <strong>de</strong><br />
t<strong>em</strong>as brasileiros, realiza<strong>do</strong> por brasileiros. A natureza tropical <strong>do</strong> país era compreendida<br />
2 Ciência <strong>Natural</strong> e/ou <strong>História</strong> <strong>Natural</strong> no século XIX abrange to<strong>do</strong> o universo, sen<strong>do</strong> seu objeto tão extenso<br />
quanto a natureza – os astros, o ar, animais, vegetais e minerais, <strong>em</strong> sua superfície e profundida<strong>de</strong>. Entre os<br />
animais estavam incluí<strong><strong>do</strong>s</strong> os homens, <strong><strong>do</strong>s</strong> quais o comportamento e a língua eram características a ser<strong>em</strong><br />
classificadas e comparadas.<br />
2
como objeto por excelência para os estu<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> cientistas pátrios.<br />
Certos <strong>de</strong> que apenas os brasileiros po<strong>de</strong>riam e saberiam <strong>de</strong>svendar a natureza e o<br />
passa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil, os cientistas passaram a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a efetivação <strong>de</strong> meios que<br />
possibilitass<strong>em</strong> uma série <strong>de</strong> estu<strong><strong>do</strong>s</strong>, os quais abririam as cortinas <strong><strong>do</strong>s</strong> lugares mais<br />
distantes da corte imperial, <strong>de</strong>sbravan<strong>do</strong> os espaços <strong>de</strong>sconheci<strong><strong>do</strong>s</strong>, como os <strong>sertões</strong>, que se<br />
supunham com extensas matas, povoações s<strong>em</strong> instrução e povos indígenas que<br />
caminhavam a passos largos para a inexistência <strong>em</strong> seu “esta<strong>do</strong> primitivo”, tornan<strong>do</strong>-os<br />
conheci<strong><strong>do</strong>s</strong>, colocan<strong>do</strong>-os sob maior controle da socieda<strong>de</strong> nacional, esquadrinhan<strong>do</strong>,<br />
assim, to<strong>do</strong> território e suas gentes, que já eram, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>do</strong> século XVIII, o paraíso<br />
<strong><strong>do</strong>s</strong> naturalistas estrangeiros. “Apagar as legendas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> mapas <strong>do</strong> Brasil e<br />
da natureza brasileira, <strong>de</strong>limitar fronteiras, integrar o país à civilização, passaram a se<br />
constituir <strong>em</strong> consígnias nacionais e científicas.” (LOPES, 2001:82) Diante <strong>de</strong>ssa<br />
realida<strong>de</strong>, a construção da nacionalida<strong>de</strong> brasileira não se daria s<strong>em</strong> o respal<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
pesquisas cientificas, afinal, situar e conhecer to<strong>do</strong> o território <strong>do</strong> país, assim como seus<br />
habitantes, era objetivo das ciências naturais ao mesmo t<strong>em</strong>po que era objetivo da política<br />
imperial.<br />
Foi no cerne <strong>do</strong> IHGB que se elaborou um <strong><strong>do</strong>s</strong> projetos mais audaciosos na<br />
tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer as barreiras internas fortalecidas pela pouca integração entre as<br />
províncias. Em sua seção Ordinária <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1856, contan<strong>do</strong> com a presença <strong>do</strong><br />
Impera<strong>do</strong>r D. Pedro II, o naturalista Manuel Ferreira Lagos lançou uma proposta que,<br />
diante das circunstâncias nas quais se encontravam os estu<strong><strong>do</strong>s</strong> científicos no Brasil,<br />
agradava os personagens que compunham o quadro científico nacional. Em seu discurso,<br />
<strong>de</strong>stacou:<br />
Propomos que o IHGB se dirija ao governo imperial, pedin<strong>do</strong>-lhe haja nomear<br />
uma comissão <strong>de</strong> engenheiros e <strong>de</strong> naturalistas nacionais para explorar algumas<br />
das províncias menos conhecidas <strong>do</strong> Brasil, com a obrigação <strong>de</strong> formar<strong>em</strong><br />
também para o Museu Nacional uma coleção <strong>de</strong> produtos <strong><strong>do</strong>s</strong> reinos orgânicos e<br />
inorgânicos e <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> quanto possa servir <strong>de</strong> prova <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> civilização,<br />
indústria, usos e costumes <strong><strong>do</strong>s</strong> nossos indígenas. (REVISTA DO IHGB, t. 19,<br />
1856, p.12)<br />
Lagos tornava pública a intenção <strong>de</strong> se estudar o Brasil a partir das suas áreas<br />
menos conhecidas, portanto, menos produtivas e mais agressivas para o Império.<br />
Entretanto, quais seriam os ganhos para os naturalistas nacionais e para o governo imperial<br />
se acatass<strong>em</strong> essa sugestão <strong>de</strong> Lagos? Ele mesmo ensaia uma justificação: formar para o<br />
Museu Nacional uma coleção <strong>de</strong> produtos que facilitass<strong>em</strong> e engran<strong>de</strong>cess<strong>em</strong> os estu<strong><strong>do</strong>s</strong><br />
científicos no país e, <strong>de</strong> forma ainda discreta, ressalta a preocupação <strong>em</strong> saber como estava<br />
3
organizada a indústria nas regiões distantes da corte. Enquanto naturalista, Lagos <strong>de</strong>veria<br />
preocupar-se muito mais com os ganhos para a ciência, mas tinha compreensão que um<br />
<strong>em</strong>preendimento <strong>de</strong>sse tipo necessitava apresentar ganhos materiais para o governo<br />
imperial, afinal, somente garantin<strong>do</strong> ganhos para o governo <strong>do</strong> Império os cofres <strong>do</strong><br />
mesmo ficariam a disposição <strong>de</strong> tal Comissão.<br />
Continuan<strong>do</strong> a exposição <strong>de</strong> suas i<strong>de</strong>ias, lagos ressalta que:<br />
Tu<strong>do</strong> seria <strong>do</strong> mais alto interesse nessa exploração; conhecimentos positivos da<br />
Topografia, <strong><strong>do</strong>s</strong> cursos <strong><strong>do</strong>s</strong> rios, <strong><strong>do</strong>s</strong> minerais, plantas e animais, <strong><strong>do</strong>s</strong> costumes,<br />
língua e tradições <strong><strong>do</strong>s</strong> autóctones, cuja catequese seria também mais facilmente<br />
compreendida. O governo imperial ficaria melhor habilita<strong>do</strong> para conhecer as<br />
urgências <strong>do</strong> interior e <strong>de</strong>cretar a abertura <strong>de</strong> novas vias <strong>de</strong> comunicação, que<br />
aumentariam as relações comerciais e, por conseqüência, a renda nacional (...).<br />
(REVISTA DO IHGB, t. 19, 1856, p.14)<br />
O discurso <strong>do</strong> naturalista evi<strong>de</strong>ncia o intuito <strong>de</strong> conhecer o Brasil para melhor<br />
<strong>do</strong>minar as possíveis potencialida<strong>de</strong>s ainda não exploradas. Eliminan<strong>do</strong> as diferenças,<br />
encurtan<strong>do</strong> as distâncias seria possível conhecer que riquezas o país tinha a oferecer para<br />
aumentar, como ele mesmo fala, a renda nacional. Essa explanação agra<strong>do</strong>u o Impera<strong>do</strong>r,<br />
pois prontamente se disponibilizou a apoiar a expedição ao Norte brasileiro, portanto, na<br />
mesma seção <strong>em</strong> que foi lançada, a proposta foi aprovada pelos sócios m<strong>em</strong>bros <strong>do</strong> IHGB.<br />
Além da exaltação da inteligência nacional e da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> novos<br />
recursos para o país, uma justificativa colocada para a necessida<strong>de</strong> da Comissão<br />
direcionava a atenção para o Museu Nacional. Buscava-se, na época, tornar o museu um<br />
espaço com condições <strong>de</strong> trabalho para os estudiosos da <strong>História</strong> <strong>Natural</strong>, como eram os<br />
museus europeus.<br />
Na prática, buscou-se por diferentes meios a formação <strong>de</strong> um acervo <strong>de</strong> objetos<br />
naturais, principalmente brasileiros, pois segun<strong>do</strong> vários naturalistas estrangeiros<br />
que visitaram o Museu, e mesmo naturalistas nacionais, a falta <strong>de</strong> objetos que<br />
d<strong>em</strong>onstrass<strong>em</strong> a varieda<strong>de</strong> natural <strong>do</strong> Brasil consistia uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiência <strong>do</strong><br />
Museu. (PINHEIRO, 2002:25)<br />
Aprovada a idéia, inicia<strong><strong>do</strong>s</strong> os preparativos, justificada a necessida<strong>de</strong> da Comissão,<br />
chegava o momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir um itinerário, preparar o material, adquirir equipamentos e<br />
fazer a viag<strong>em</strong> propriamente dita.<br />
Uma expedição verda<strong>de</strong>iramente Nacional<br />
Em fevereiro <strong>de</strong> 1859 os integrantes da Comissão <strong>de</strong>s<strong>em</strong>barcaram no <strong>Ceará</strong>. Os<br />
científicos mostravam-se “cheios <strong>de</strong> entusiasmo com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que iam prestar um serviço<br />
relevante ao seu País, almejavam com veras o momento <strong>de</strong> entrar <strong>em</strong> exercício, e<br />
4
confiavam (...) no zelo, na boa vonta<strong>de</strong>, no amor pátrio <strong>de</strong> que se achavam anima<strong><strong>do</strong>s</strong>.”<br />
(Trabalhos da Comissão Cientifica <strong>de</strong> Exploração. In: BRAGA, 2004:246) Esperançosos<br />
estavam <strong>de</strong> encontrar<strong>em</strong> alguma coisa <strong>de</strong> essencial ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> Brasil e<br />
revelar<strong>em</strong> um mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s no campo das Ciências naturais e da <strong>História</strong>. “Para o<br />
povo, a Comissão vinha <strong>em</strong> busca das minas, das jazidas inesgotáveis que nutriam a crença<br />
cearense e oferecia a to<strong><strong>do</strong>s</strong> uma expectativa <strong>de</strong> riqueza súbita e imprevista.” (Trabalhos da<br />
Comissão Cientifica <strong>de</strong> Exploração. In: BRAGA, 2004:246)<br />
Seis meses após a chegada a Fortaleza, na segunda quinzena <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1859, a<br />
Comissão iniciou sua viag<strong>em</strong> pelo interior cearense. Por conveniência <strong>de</strong> abastecimento,<br />
diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estu<strong><strong>do</strong>s</strong> e afinida<strong>de</strong>s pessoais dividiu-se a Comissão <strong>em</strong> três turmas. A<br />
primeira era composta das Seções Botânica e Zoológica e levava consigo o pintor José <strong><strong>do</strong>s</strong><br />
Reis Carvalho e seguiria pelas margens <strong>do</strong> Jaguaribe; a segunda, das Seções Geológica e<br />
Etnográfica, cujos chefes, Capan<strong>em</strong>a e Gonçalves Dias, nutriam fortes laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> se<br />
internaria seguin<strong>do</strong> o caminho <strong>de</strong> Baturité e Quixeramobim e a terceira era formada<br />
exclusivamente pela Seção Astronômica e Geográfica que, para dar maior flui<strong>de</strong>z aos seus<br />
trabalhos, subdividir-se-ia <strong>em</strong> turmas <strong>de</strong> adjuntos, os quais seguiriam diversas direções.<br />
Antes <strong>de</strong> partir<strong>em</strong> combinaram o reencontro no Crato.<br />
Em menos <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> pelo <strong>Ceará</strong> os probl<strong>em</strong>as apareceriam. Cortes<br />
financeiros e falta <strong>de</strong> esclarecimentos ao presi<strong>de</strong>nte da Comissão acerca da liberação <strong><strong>do</strong>s</strong><br />
recursos para a jornada acabaram levan<strong>do</strong> à <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> retornar<strong>em</strong> as Seções à Capital da<br />
Província, <strong>em</strong> março <strong>de</strong> 1860, um ano antes <strong>do</strong> que havia si<strong>do</strong> planeja<strong>do</strong> pelos seus<br />
integrantes. Em Fortaleza, combinou-se um novo itinerário para cada Seção. Os probl<strong>em</strong>as<br />
enfrenta<strong><strong>do</strong>s</strong> pela Comissão extrapolavam os financeiros, <strong>de</strong>corriam também das condições<br />
climáticas, das precarieda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> sertão, <strong><strong>do</strong>s</strong> conflitos pessoais entre alguns <strong>de</strong> seus<br />
m<strong>em</strong>bros, <strong><strong>do</strong>s</strong> mal entendi<strong><strong>do</strong>s</strong> com as autorida<strong>de</strong>s e populações locais e <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong> enfrenta<strong><strong>do</strong>s</strong> por quase to<strong><strong>do</strong>s</strong> os m<strong>em</strong>bros da Comissão, que chegaram a levar <strong>do</strong>is<br />
<strong>de</strong>les ao óbito. Diante das adversida<strong>de</strong>s, foram refeitos os roteiros iniciais da viag<strong>em</strong> e os<br />
científicos retornaram aos trabalhos pelo interior da província, trabalhos esses que se<br />
sustentariam por mais um ano.<br />
Em abril <strong>de</strong> 1861 reunir-se-iam novamente <strong>em</strong> Fortaleza os chefes <strong>de</strong> Seção e<br />
diagnosticaram que a Científica <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> estar <strong>em</strong> condições <strong>de</strong> trabalho, “<strong>de</strong>cidiram<br />
pedir para ser<strong>em</strong> chama<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>de</strong> volta à Corte. No dia 13 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1861, <strong>em</strong>barcaram<br />
rumo à capital <strong>do</strong> Império.” (DIAS, 1862:11)<br />
No Rio, os m<strong>em</strong>bros da Comissão assumiriam uma nova fase <strong>de</strong> seus estu<strong><strong>do</strong>s</strong><br />
5
científicos, era necessário catalogar o material recolhi<strong>do</strong>, estudá-los minuciosamente e<br />
principalmente, apresentar resulta<strong><strong>do</strong>s</strong> concretos que justificass<strong>em</strong> a existência da Comissão<br />
e mostrass<strong>em</strong> a utilida<strong>de</strong>, já tão contestada por políticos e intelectuais <strong>do</strong> Império, <strong><strong>do</strong>s</strong><br />
trabalhos feitos no <strong>Ceará</strong>. No IHGB os relatórios <strong>de</strong> Capan<strong>em</strong>a, Freire Al<strong>em</strong>ão e Lagos<br />
foram li<strong><strong>do</strong>s</strong> nas sessões <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong> outubro, 22 <strong>de</strong> nov<strong>em</strong>bro e 6 <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro,<br />
respectivamente. Gonçalves Dias e Gabaglia não apresentaram relatórios. O <strong>de</strong> Gabaglia,<br />
segun<strong>do</strong> Capan<strong>em</strong>a nos seus “Apontamentos sobre as secas <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>” (CAPANEMA e<br />
GABAGLIA, 2006:167), foi escrito e estaria nas mãos <strong>de</strong> particulares, no entanto nada<br />
sab<strong>em</strong>os sobre o relatório da Seção Astronômica e Geográfica. O relatório da Secção<br />
Etnográfica não foi escrito. Enfermo, Gonçalves Dias concluiu apenas a Parte Histórica e<br />
os Proêmios <strong><strong>do</strong>s</strong> Trabalhos da Comissão Cientifica <strong>de</strong> Exploração – I – Introdução,<br />
publica<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>em</strong> 1862.<br />
A existência da Comissão ren<strong>de</strong>u para o Museu <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro mais <strong>de</strong> 14.000<br />
amostras <strong>de</strong> plantas. A coleção Zoológica, também cedida para o Museu, era estimada <strong>em</strong><br />
17.000 ex<strong>em</strong>plares, entre insetos, répteis, peixes e aves, a maior parte não figurava nos<br />
seus armários. Para o Museu foram encaminha<strong><strong>do</strong>s</strong> os instrumentos e materiais para uso na<br />
preparação <strong>de</strong> produtos, assim como os livros, mais <strong>de</strong> 2000 títulos que iriam constituir<br />
uma parte da Biblioteca <strong>do</strong> Museu, lá também foi <strong>de</strong>positada uma série <strong>de</strong> estampas <strong>de</strong><br />
zoologia, etnologia e mineralogia.<br />
Além <strong>do</strong> Museu Nacional, o IHGB recebeu muito <strong>do</strong> material consegui<strong>do</strong> pelos<br />
naturalistas no <strong>Ceará</strong>. Gonçalves Dias vasculhou boa parte <strong><strong>do</strong>s</strong> arquivos municipais por<br />
on<strong>de</strong> passou e obteve <strong>do</strong>cumentos e extratos <strong>de</strong> notícias acerca da <strong>História</strong> e Geografia <strong>do</strong><br />
<strong>Ceará</strong>. O mesmo fizeram Lagos e Freire Al<strong>em</strong>ão. Essa <strong>do</strong>cumentação foi entregue ao<br />
Instituto, assim como o material indígena, também coleta<strong>do</strong> por Gonçalves Dias, e as<br />
estampas etnográficas, representan<strong>do</strong> utensílios, ornatos, armas e outros artefatos<br />
indígenas.<br />
Dentre os cientistas que participaram da Comissão Cientifica <strong>de</strong> Exploração um, <strong>em</strong><br />
particular, <strong>de</strong>stacava-se pela experiência e pelo largo respeito adquiri<strong>do</strong> perante a<br />
comunida<strong>de</strong> cientifica nacional. Tratava-se <strong>do</strong> Botânico e Médico Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão<br />
<strong>de</strong> Cysneiros 3 , que veio a ser chefe da Seção Botânica e Presi<strong>de</strong>nte da Comissão. A<br />
3 Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão <strong>de</strong> Cysneiros nasceu <strong>em</strong> 17941 na Freguesia <strong>de</strong> Campo Gran<strong>de</strong>. Filho <strong>de</strong> João<br />
Freire Al<strong>em</strong>ão e Feliciana Angélica <strong>do</strong> Espírito Santo, apren<strong>de</strong>u latim ainda no início da sua instrução,<br />
quan<strong>do</strong> tornou-se sacristão. Doutorou-se <strong>em</strong> medicina pela faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris, tornan<strong>do</strong>-se posteriormente<br />
professor <strong>de</strong> Botânica e Zoologia da Faculda<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. Após ser jubila<strong>do</strong> neste cargo, lecionou na<br />
Escola Central, a pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> próprio Impera<strong>do</strong>r, ocupação que exercia na ocasião <strong>de</strong> seu nomeio para<br />
6
escolha <strong>de</strong> Freire Al<strong>em</strong>ão para esses cargos representava um reconhecimento <strong>do</strong> governo<br />
imperial e da comunida<strong>de</strong> cientifica como um to<strong>do</strong>, representada pelo IHGB, ao largo e<br />
eficiente trabalho <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por ele na área das ciências no Brasil.<br />
À frente da Seção Botânica Al<strong>em</strong>ão <strong>de</strong>senvolveu um extenso trabalho. Escrevia<br />
diariamente – ofícios, relatórios, notas, informações e um diário, estudava, coletava e<br />
catalogava plantas, fazen<strong>do</strong> observações botânicas e sociológicas.<br />
O Diário <strong>de</strong> Viag<strong>em</strong> era o espaço on<strong>de</strong> registrava seus comentários, narrativas,<br />
observações e impressões relativas ao clima, relevo, hábitos alimentares, festas, topônimos,<br />
condições econômicas, disputas políticas, traça<strong>do</strong> urbano, aspectos da arquitetura,<br />
probl<strong>em</strong>as internos da Comissão entre outros, s<strong>em</strong> a preocupação <strong>de</strong> escrever para um<br />
público especializa<strong>do</strong>, eram seus escritos particulares, portanto podia redigir seus mais<br />
íntimos e inconfessáveis pensamentos e i<strong>de</strong>ias. Ele anotou passo a passo sua viag<strong>em</strong> pelo<br />
<strong>Ceará</strong>, atentan<strong>do</strong> para os mais varia<strong><strong>do</strong>s</strong> aspectos da vida no sertão. Descreve o ambiente<br />
<strong><strong>do</strong>s</strong> saraus, a graça e <strong>de</strong>senvoltura das moças, a presença cotidiana <strong><strong>do</strong>s</strong> escravos, as<br />
conversas nas calçadas, o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>baraço das crianças, a sonorida<strong>de</strong> da fala popular, os<br />
préstimos <strong><strong>do</strong>s</strong> anfitriões, os serviços presta<strong><strong>do</strong>s</strong> nos povoa<strong><strong>do</strong>s</strong> e vilas, <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> com<br />
riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes as singularida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> viver cearense na segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XIX.<br />
Estudamos o Diário <strong>de</strong> Freire Al<strong>em</strong>ão na perspectiva <strong>de</strong> probl<strong>em</strong>atizar,<br />
questionar as impressões <strong>do</strong> cientista frente ao sertão e ao sertanejo cearense,<br />
historicizan<strong>do</strong> as observações, os comentários, as narrativas da viag<strong>em</strong>, relatos,<br />
principais assuntos, as relações com outros personagens liga<strong><strong>do</strong>s</strong> à Comissão, entre<br />
outros aspectos, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> também a importância <strong>do</strong> Diário no trabalho <strong>do</strong><br />
<strong>Natural</strong>ista viajante.<br />
As narrativas da viag<strong>em</strong> ao <strong>Ceará</strong> no Diário <strong>de</strong> Freire Al<strong>em</strong>ão<br />
O cotidiano <strong>de</strong> Freire Al<strong>em</strong>ão no <strong>Ceará</strong> era <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> por seus objetivos<br />
científicos. Não havia dia que não fizesse algum tipo <strong>de</strong> investigação. Durante seu t<strong>em</strong>po<br />
livre, principalmente à noite, <strong>de</strong>pois das conversas com a população, anotava no Diário sua<br />
rotina, b<strong>em</strong> como suas impressões sobre o local, a população, as informações colhidas,<br />
entre outras. Além disso, preparava e <strong>em</strong>pacotava as plantas coletadas e cuidava da<br />
presi<strong>de</strong>nte da Comissão Científica. Em 1866, já com mais <strong>de</strong> 70 anos e carreira consolidada, Freire Al<strong>em</strong>ão<br />
foi nomea<strong>do</strong> diretor <strong>do</strong> Museu Nacional <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. Al<strong>em</strong>ão esteve à frente <strong>do</strong> Museu até o ano <strong>de</strong> sua<br />
morte, 1874. Foi sócio da Acad<strong>em</strong>ia <strong>de</strong> Medicina, <strong>do</strong> IHGB, da Socieda<strong>de</strong> Auxilia<strong>do</strong>ra da Indústria Nacional,<br />
da Acad<strong>em</strong>ia Filomática <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong>ntre outras. Foi também sócio funda<strong>do</strong>r e presi<strong>de</strong>nte da<br />
Socieda<strong>de</strong> Vellosiana. Quan<strong>do</strong> a botânica brasileira <strong>do</strong> século XIX é estudada, o nome <strong>de</strong> Francisco Freire<br />
Al<strong>em</strong>ão aparece com imenso <strong>de</strong>staque.<br />
7
correspondência oficial para o governo, tarefa que o cargo <strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nte da Comissão<br />
exigia que fosse por ele executada. Conversa<strong>do</strong>r, por tu<strong>do</strong> se interessava. Anotava tu<strong>do</strong>.<br />
Nas suas indagações valia-se tanto da gente, quanto da gente <strong>do</strong> povo. As riquezas <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>talhes presentes <strong>em</strong> suas anotações comprovam a observância sua metódica e o<br />
compromisso que assumia na condição <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> <strong>de</strong> ciência, mas também d<strong>em</strong>onstram o<br />
exímio observa<strong>do</strong>r e analista da socieda<strong>de</strong> que o circundava.<br />
A intensa mobilida<strong>de</strong> da Seção Botânica é evi<strong>de</strong>nciada no Diário. Sua dinâmica<br />
pelo interior <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong> <strong>de</strong>senrola-se folha após folha. Suas páginas dão conta das<br />
inumeráveis movimentações ocorridas no transcurso <strong><strong>do</strong>s</strong> povoa<strong><strong>do</strong>s</strong> e vilas. Ali também<br />
estão algumas transcrições <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos históricos encontra<strong><strong>do</strong>s</strong> nas localida<strong>de</strong>s,<br />
principalmente <strong><strong>do</strong>s</strong> livros das câmaras. Transcreve <strong>do</strong>cumentos com os quais entrava <strong>em</strong><br />
contato e que julgava importantes para a <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong> e para a narrativa da viag<strong>em</strong>,<br />
como jornais, revistas, livros e <strong>do</strong>cumentos oficiais. Procurava os <strong>do</strong>cumentos escritos para<br />
que pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> servir <strong>de</strong> contrapeso num meio sociocultural prepon<strong>de</strong>rant<strong>em</strong>ente iletra<strong>do</strong> e<br />
alicerça<strong>do</strong> na tradição oral. Por vezes, procura comparar da<strong><strong>do</strong>s</strong> coleta<strong><strong>do</strong>s</strong> nos arquivos com<br />
o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> alguma test<strong>em</strong>unha ocular <strong>do</strong> acontecimento que investigava.<br />
Estan<strong>do</strong> a pouco mais <strong>de</strong> seis meses no <strong>Ceará</strong>, Freire Al<strong>em</strong>ão arrisca-se a fazer uma<br />
análise <strong>do</strong> povo cearense, classifican<strong>do</strong>-o <strong>em</strong> duas categorias: a gente acaboclada, ou o<br />
povo, e a gente branca. Segun<strong>do</strong> ele, o povo cearense é primordialmente forma<strong>do</strong> pela raça<br />
cabocla 4 : “Pon<strong>do</strong> <strong>de</strong> parte alguns poucos pretos, e por consequência também alguns<br />
poucos mulatos, to<strong>do</strong> o povo <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong> é <strong>de</strong> raça cabocla; mais ou menos mesclada<br />
<strong>de</strong> branco, e também <strong>de</strong> preto; mas <strong>em</strong> geral se conserva ainda b<strong>em</strong> o tipo<br />
americano.” (ALEMÃO. <strong>Notas</strong> sobre Fortaleza e Pacatuba. apud DAMASCENO e<br />
CUNHA, 1961: 210)<br />
Seu referencial teórico nessas observações é a hierarquia das raças, teoria<br />
recorrente no meio científico no qual atuava. Tais idéias tinham como ponto <strong>de</strong> partida a<br />
obra <strong>do</strong> naturalista al<strong>em</strong>ão Carl Von Martius, sintetizadas no seu texto “Como se <strong>de</strong>ve<br />
escrever a <strong>História</strong> <strong>do</strong> Brasil”. Essas i<strong>de</strong>ias eram também compartilhadas por Gonçalves<br />
Dias que, entre outras coisas, <strong>de</strong>fendia que a <strong>de</strong>cadência <strong><strong>do</strong>s</strong> índios não era motivada, e sim<br />
apenas acentuada pelo contato com os brancos. O poeta indianista, como pesquisa<strong>do</strong>r, não<br />
estava à frente das i<strong>de</strong>ias <strong>do</strong> seu t<strong>em</strong>po, apesar <strong>do</strong> interesse que d<strong>em</strong>onstrava pela<br />
população <strong>de</strong> índios, negros e sertanejos e seu lugar na formação <strong>do</strong> povo brasileiro<br />
4<br />
Conforme as <strong>de</strong>finições mais tradicionais, o caboclo, ou mameluco, v<strong>em</strong> da miscigenação da raça branca<br />
com a indígena, com pre<strong>do</strong>minância <strong>de</strong>ssa última.<br />
8
Diante da presença <strong><strong>do</strong>s</strong> cearenses, Al<strong>em</strong>ão d<strong>em</strong>onstra um sentimento <strong>de</strong> estranheza.<br />
Ele percebia muitas diferenças com relação à socieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, marcada pela<br />
gran<strong>de</strong> presença <strong>de</strong> negros e alguns brancos. Em suas observações sobre a gente <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong><br />
escreve:<br />
Ainda não vi nesta gente urna mulher, n<strong>em</strong> um hom<strong>em</strong> d<strong>em</strong>asiadamente<br />
gor<strong><strong>do</strong>s</strong>. São to<strong><strong>do</strong>s</strong> mui inteligentes, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>baraça<strong><strong>do</strong>s</strong>, e falam b<strong>em</strong> (...) e com<br />
termos e frases, às vezes pitorescas; a sua pronuncia é antes <strong>de</strong>scansada que<br />
apressada, corren<strong>do</strong> <strong>em</strong> umas e <strong>de</strong>scansan<strong>do</strong> <strong>em</strong> outras sílabas. Os homens<br />
são <strong>em</strong> geral imprevi<strong>de</strong>ntes, in<strong>do</strong>lentes, e pouco amigos <strong>do</strong> trabalho; pelo<br />
contrário as mulheres estão s<strong>em</strong>pre ocupadas (enquanto eles se balançam nas<br />
re<strong>de</strong>s) faz<strong>em</strong> obras mui mimosas <strong>de</strong> rendas, <strong>de</strong> crivos, e <strong>de</strong> teci<strong><strong>do</strong>s</strong>, etc. As<br />
mulheres são mui prolíficas (o que também acontece a respeito <strong><strong>do</strong>s</strong> brancos).<br />
(ALEMÃO. <strong>Notas</strong> sobre Fortaleza e Pacatuba. apud DAMASCENO e<br />
CUNHA, 1961:210-211.)<br />
Suas impressões aparentam construir uma imag<strong>em</strong> naturalizada das classes<br />
populares. Como l<strong>em</strong>bra Jacques Revel “a cultura das elites molda permanent<strong>em</strong>ente a<br />
cultura popular ao que lhe convém.” (REVEL, 1990: 47). Freire Al<strong>em</strong>ão segue uma<br />
tradição já estabelecida na Europa, nas Américas e na Literatura <strong>de</strong> viag<strong>em</strong>, <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar<br />
o hom<strong>em</strong> como produto <strong>do</strong> meio - sua religião, linguag<strong>em</strong>, artefatos, festas, entre outros<br />
seriam como que produtos <strong>do</strong> solo e da paisag<strong>em</strong>.<br />
Em seus escritos Al<strong>em</strong>ão <strong>de</strong>staca-se <strong>de</strong> seus companheiros da Comissão <strong>em</strong> um<br />
aspecto: ao falar das secas e <strong><strong>do</strong>s</strong> invernos no <strong>Ceará</strong>. Enquanto os outros cientistas<br />
buscavam informações sobre as secas, Al<strong>em</strong>ão procurava saber das cheias, <strong><strong>do</strong>s</strong> t<strong>em</strong>pos<br />
invernosos. Capan<strong>em</strong>a, por ex<strong>em</strong>plo, tratará sobre esse t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> seu Relatório apresenta<strong>do</strong><br />
ao IHGB e <strong>em</strong> vários artigos publica<strong><strong>do</strong>s</strong> a partir <strong>de</strong> 1862 como As secas <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>,<br />
Apontamentos sobre a seca <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong> e A seca no Norte. Para o presi<strong>de</strong>nte da Comissão,<br />
as m<strong>em</strong>órias das quadras invernosas eram mais freqüentes nas conversas com os<br />
sertanejos, apesar <strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>de</strong>sgastes e flagelos que as secas causavam, as cheias <strong><strong>do</strong>s</strong> rios e até<br />
mesmo os prejuízos causa<strong><strong>do</strong>s</strong> pela abundância das águas eram mais relata<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo povo.<br />
Dedica muitas passagens <strong><strong>do</strong>s</strong> seus escritos para falar <strong><strong>do</strong>s</strong> invernos e das chuvas. Em seu<br />
Relatório <strong>de</strong>fine resumidamente o que era o inverno no <strong>Ceará</strong>:<br />
O verda<strong>de</strong>iro inverno, ou mais propriamente a estação das chuvas, começa <strong>em</strong><br />
fins <strong>de</strong> janeiro ou princípios <strong>de</strong> fevereiro, sua força é <strong>de</strong> março a abril e acaba<br />
<strong>em</strong> junho. Ele consiste <strong>em</strong> grossos chuveiros, quase diários, às vezes repeti<strong><strong>do</strong>s</strong>,<br />
mas <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> s<strong>em</strong>pre parte <strong>do</strong> dia livre para o trabalho: raro é o dia ou noite <strong>de</strong><br />
chuva constante no <strong>Ceará</strong>. (ALEMÃO, In: Trabalhos da Comissão Científica <strong>de</strong><br />
Exploração, 1862:313)<br />
E acrescenta, “Ao concurso <strong>de</strong>stas circunstancias e à composição e configuração <strong>de</strong><br />
seu solo <strong>de</strong>ve a Província a sua fertilida<strong>de</strong> e a bela vegetação que a cobre, ainda que não<br />
9
com igualda<strong>de</strong> por toda ela.” (ALEMÃO, In: Trabalhos da Comissão Científica <strong>de</strong><br />
Exploração, 1862:313)<br />
‘Terra fértil e <strong>de</strong> bela vegetação’, esse reconhecimento <strong>de</strong> Al<strong>em</strong>ão é intrigante,<br />
afinal contradiz o i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong> seca e miséria presente na imag<strong>em</strong> histórica que se tinha <strong>do</strong><br />
<strong>Ceará</strong> <strong>de</strong> então, mas entend<strong>em</strong>os que Al<strong>em</strong>ão, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver o que via, tinha to<strong><strong>do</strong>s</strong> os<br />
cuida<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>de</strong> apresentar uma realida<strong>de</strong> natural e cultural <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong> com elogios e exaltações<br />
que justificass<strong>em</strong> a inserção <strong><strong>do</strong>s</strong> el<strong>em</strong>entos naturais, culturais e sociais da província na<br />
história valiosa, imponente, nobre e singular que estava sen<strong>do</strong> elaborada para o Brasil.<br />
Quan<strong>do</strong> chegou ao <strong>Ceará</strong>, <strong>em</strong> janeiro <strong>de</strong> 1859, iniciava-se na Província a quadra<br />
invernosa, um <strong><strong>do</strong>s</strong> motivos que impediram <strong>de</strong> imediato a viag<strong>em</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> cientistas,<br />
ocasionan<strong>do</strong> a permanência da Comissão por quase seis meses <strong>em</strong> Fortaleza, Segun<strong>do</strong><br />
Gonçalves Dias,<br />
As pessoas práticas <strong>do</strong> sertão, os vaqueanos como se diz na província,<br />
aconselhavam que se diferisse a jornada para mais tar<strong>de</strong>, (...) porque <strong>de</strong> maio<br />
<strong>em</strong> diante nos anos regulares é o t<strong>em</strong>po mais próprio <strong>de</strong> ali se <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>r<strong>em</strong><br />
viagens d<strong>em</strong>oradas pelo sertão. (DIAS, 1862:14)<br />
Quase <strong>do</strong>is anos após a chegada ao <strong>Ceará</strong> Al<strong>em</strong>ão constata que o conselho que<br />
receberam <strong>de</strong> alguns cearenses <strong>em</strong> 1859 era mais que oportuno, viajan<strong>do</strong> pelos arre<strong>do</strong>res<br />
da vila <strong>de</strong> Canindé escreve <strong>em</strong> seu Diário:<br />
Diz<strong>em</strong> os Cearenses q` é um prazer viajar no sertão pelo inverno; e eu acho q` é<br />
um verda<strong>de</strong>iro inferno = são lamas, atoleiros, riachos e rios cheios = chuvas,<br />
trovoadas, moscas, mutucas, meruanhas mariposas, e não sei q`. mais = [...] Ate<br />
<strong>de</strong> agoas se fica mais mal servi<strong>do</strong> = o unico b<strong>em</strong> q` lhe vejo; é a verdura <strong><strong>do</strong>s</strong><br />
campos, e o leite. Se no verão as casas são porcas, no inverno porquissimas.<br />
(ALEMÃO, folha 188:92) 5<br />
Esses relatos nos colocam diante <strong>de</strong> algumas questões. Se por um la<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong><br />
das chuvas era motivo <strong>de</strong> alegrias e prazeres para o cearense, não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser também<br />
momento causa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> infortúnios. Evi<strong>de</strong>nciamos nas palavras <strong>do</strong> cientista como a relação<br />
que o próprio povo <strong>do</strong> sertão estabelecia com a natureza era conflituosa, experimentada <strong>de</strong><br />
múltiplas maneiras, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as circunstâncias que se apresentavam. Para uns, o<br />
inverno dificultava as viagens, para outros, como diz Al<strong>em</strong>ão, era um prazer viajar no<br />
sertão pelo inverno. As palavras <strong>do</strong> botânico enunciam mais duas coisas: a qualida<strong>de</strong> das<br />
águas das quais era servi<strong>do</strong> e a falta <strong>de</strong> asseio que enxergava pelas fazendas <strong>do</strong> sertão.<br />
5 ALEMÃO, Francisco Freire. Diário <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão: 24 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1860 a 24 <strong>de</strong><br />
julho <strong>de</strong> 1861 – volta <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro para o <strong>Ceará</strong> até o retorno <strong>de</strong>finitivo ao Rio <strong>de</strong> Janeiro. Parte<br />
transcrita <strong>do</strong> original – 176pp, folha 188, p.92. Essa parte <strong>do</strong> Diário <strong>de</strong> Freire Al<strong>em</strong>ão ainda não se encontra<br />
publicada e não passou por nenhuma edição, resolv<strong>em</strong>os referenciá-la s<strong>em</strong> nenhuma revisão da escrita.<br />
10
Falar da água quan<strong>do</strong> se está fazen<strong>do</strong> estu<strong><strong>do</strong>s</strong> científicos sobre os aspectos naturais<br />
<strong>do</strong> <strong>Ceará</strong> era mais que uma obrigação, era uma necessida<strong>de</strong>, afinal, esse era o b<strong>em</strong> mais<br />
precioso nessa terra, que sustentava as ativida<strong>de</strong>s agrícolas e pecuárias, ou seja, a economia<br />
da província. Portanto, nossos cientistas não se esquivariam <strong>de</strong> falar sobre a importância da<br />
água, da conservação e melhoramento <strong>de</strong> seus reservatórios naturais, das características<br />
<strong><strong>do</strong>s</strong> rios e lagos, buscan<strong>do</strong> meios para superar os probl<strong>em</strong>as causa<strong><strong>do</strong>s</strong> por sua escassez<br />
periódica. Mas para além <strong>de</strong>sses interesses naturais e econômicos, os científicos não<br />
<strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> anotar o aspecto da água que lhes era oferecida por on<strong>de</strong> passavam.<br />
O Diário <strong>de</strong> Al<strong>em</strong>ão é rechea<strong>do</strong> <strong>de</strong> comentários acerca da qualida<strong>de</strong> da água que ele<br />
tinha que consumir, muitos foram os infortúnios, inclusive físicos (intestinais), que as<br />
águas barrentas, leitosas e turvas lhes causaram.<br />
Quanto às secas, apesar <strong>de</strong> mais timidamente e menos freqüente, Al<strong>em</strong>ão lança<br />
também algumas conjecturas, cumprin<strong>do</strong> a responsabilida<strong>de</strong> e o papel científico que lhe<br />
cabia. Conforme suas análises,<br />
Esta província, pela benignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu clima, pela uberda<strong>de</strong> maravilhosa <strong>de</strong><br />
seu solo, angustia<strong>do</strong> pela t<strong>em</strong>peratura e umida<strong>de</strong> quase constantes, se não fôsse<br />
sujeita a êsse flagelo das sêcas, seria uma das mais preciosas <strong>do</strong> Brasil. É<br />
tradição que nos t<strong>em</strong>pos antigos as sêcas não eram tão freqüentes e tão<br />
<strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>ras. É portanto digno <strong>de</strong> ser averigua<strong>do</strong>. Em outros t<strong>em</strong>pos havia<br />
menos povoação, havia proporção mais <strong>de</strong> pastos, <strong>em</strong> relação a criação, e por<br />
isso o mal não se fazia sentir com tanta fôrça. É conjectura minha. Também os<br />
invernos invariavelmente longos e abundantes são prejudiciais. (DAMASECNO<br />
e CUNHA, 1961:254.)<br />
Al<strong>em</strong>ão não responsabiliza o fenômeno natural das secas pelo atraso da província (e<br />
ele <strong>de</strong>ixa claro que acredita nessa noção <strong>de</strong> atraso <strong>de</strong> que o <strong>Ceará</strong> era (é) porta<strong>do</strong>r), mas a<br />
falta <strong>de</strong> providências humanas práticas para diminuir o impacto que a falta das chuvas<br />
causavam. Mesmo com algumas ressalvas, talvez por não ser sua especialida<strong>de</strong> e<br />
responsabilida<strong>de</strong>, ele ensaia dicas <strong>de</strong> meios que possam atenuar o probl<strong>em</strong>a. Segun<strong>do</strong> sua<br />
visão,<br />
Para r<strong>em</strong>ediar até certo ponto os efeitos da seca, era necessário fazer reservas<br />
tanto <strong>de</strong> águas (por meio <strong>de</strong> açu<strong>de</strong>s) como <strong>de</strong> forrag<strong>em</strong>, secan<strong>do</strong> a erva e<br />
guardan<strong>do</strong>-a <strong>em</strong> paióis, e <strong>em</strong> proporção conveniente, e como também <strong>de</strong><br />
s<strong>em</strong>entes alimentícias, como milho, arroz, feijão, e também farinha preparada, a<br />
não ser se po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> conservar os mandiocais. Tantos capitais que se aniquilam<br />
com uma seca bastavam talvez para preparar meios e os mo<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>de</strong> se fazer<strong>em</strong><br />
tais reservas. (DAMASECNO e CUNHA, 1961:254.)<br />
Outro aspecto natural que mereceu muita atenção da Comissão Explora<strong>do</strong>ra foi a<br />
vegetação <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>. Os estu<strong><strong>do</strong>s</strong> da vegetação <strong>do</strong> país eram essenciais para que o inventário<br />
das riquezas nacionais fosse feito e coloca<strong>do</strong> a disposição <strong>do</strong> engran<strong>de</strong>cimento da nação. A<br />
tarefa <strong>de</strong> classificação da flora brasileira era uma preocupação <strong>de</strong> longa data, todas as<br />
11
expedições estrangeiras que haviam passa<strong>do</strong> por aqui <strong>de</strong>dicaram esforços nessa tarefa. A<br />
mesma época <strong><strong>do</strong>s</strong> trabalhos da Comissão estava sen<strong>do</strong> organizada por Von Martius a Flora<br />
Brasilienses, um trabalho que objetivava classificar as plantas existentes no Brasil,<br />
<strong>de</strong>limitan<strong>do</strong> seus nomes científicos, características e possíveis usos medicinais e<br />
industriais. Os trabalhos <strong><strong>do</strong>s</strong> cientistas brasileiros no <strong>Ceará</strong> <strong>de</strong>veriam dar a <strong>de</strong>vida<br />
importância que a flora possuía.<br />
Freire Al<strong>em</strong>ão tinha ciência que muito trabalho <strong>de</strong>ixava por ser feito no <strong>Ceará</strong>,<br />
assim como reconhecia a importância <strong>de</strong> tais estu<strong><strong>do</strong>s</strong> e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apoio para esses<br />
<strong>em</strong>preendimentos. Mas muitos foram os infortúnios que enfrentou ao longo das viagens<br />
pelo interior cearense. O cotidiano era marca<strong>do</strong> por perigos, como a travessia <strong>de</strong> rios, a<br />
perda <strong>de</strong> equipamentos, t<strong>em</strong>pesta<strong>de</strong>s, escassez <strong>de</strong> alimentos, tanto para os cavalos como<br />
para os naturalistas, falta <strong>de</strong> dinheiro, água <strong>de</strong> má qualida<strong>de</strong>, a perturbação <strong><strong>do</strong>s</strong> insetos, que<br />
infernizavam as viagens, segun<strong>do</strong> ele um <strong><strong>do</strong>s</strong> maiores tormentos encontra<strong><strong>do</strong>s</strong> no sertão. As<br />
anotações <strong>de</strong> Freire Al<strong>em</strong>ão não serv<strong>em</strong> apenas como noticias <strong><strong>do</strong>s</strong> infortúnios que sofria<br />
pela presença constante <strong><strong>do</strong>s</strong> insetos, mas também como informação acerca das condições<br />
climáticas e produtivas <strong><strong>do</strong>s</strong> lugares e das condições <strong>de</strong> asseio e higiene com que se<br />
<strong>de</strong>parava pelo interior. Natureza e cultura imbricadas a tal ponto <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>rmos<br />
i<strong>de</strong>ntificar qual das duas <strong>de</strong>terminava as características das outras.<br />
De acor<strong>do</strong> com o presi<strong>de</strong>nte da Comissão, a natureza cearense tinha muito a<br />
oferecer cientificamente e economicamente. Em muitos casos, era a forma como o povo<br />
aproveitava seus recursos naturais que precisava ser transformada. O uso prático e cultural<br />
que o povo fazia da natureza era ignora<strong>do</strong>, menospreza<strong>do</strong>, mas também elogia<strong>do</strong>, a atenção<br />
e interpretação que daria <strong>de</strong>pendia <strong>de</strong> como esse uso estava ou não alinha<strong>do</strong> com os<br />
objetivos da expedição, para qu<strong>em</strong> a relação com a natureza <strong>de</strong>veria ser s<strong>em</strong>pre<br />
oportuniza<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> ganhos materiais e/ou científicos, para tanto os habitantes da região<br />
precisavam ser direciona<strong><strong>do</strong>s</strong> a partir <strong><strong>do</strong>s</strong> conhecimentos <strong><strong>do</strong>s</strong> porta-vozes da Ciência, a<br />
<strong>de</strong>tentora <strong><strong>do</strong>s</strong> meios civiliza<strong><strong>do</strong>s</strong> para a <strong>do</strong>minação da natureza a serviço <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Essa<br />
ciência brasileira enfrentava o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> impl<strong>em</strong>entar uma política <strong>de</strong> estabelecimento e<br />
divulgação <strong>de</strong> informações confiáveis sobre a natureza que servisse para incr<strong>em</strong>entar o<br />
controle <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e a utilização que se faria <strong>de</strong>la.<br />
Freire Al<strong>em</strong>ão assumiu no <strong>Ceará</strong> a postura <strong>de</strong> naturalista viajante, que vivenciava<br />
as experiências nas terras cearenses com intensida<strong>de</strong> e compromisso profissional. Em<br />
concordância com Mauad,<br />
12
Para o viajante, a impressão causada pelo olhar é a que fica, fornecen<strong>do</strong> o<br />
estatuto <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> ao relato. O fato <strong>de</strong> ter esta<strong>do</strong> presente, ter si<strong>do</strong> a<br />
test<strong>em</strong>unha ocular <strong>de</strong> um evento ou <strong>de</strong> um hábito cotidiano qualquer, garante à<br />
sua narrativa o teor <strong>de</strong> incontestável. O i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> uma mente livre isenta <strong>de</strong><br />
preconceitos escondia diferentes chaves <strong>de</strong> leitura para uma mesma realida<strong>de</strong>.<br />
Esta seria composta, <strong>em</strong> primeiro lugar, por uma paisag<strong>em</strong> plena <strong>de</strong> atributos <strong>de</strong><br />
oposição ao lugar <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> <strong><strong>do</strong>s</strong> viajantes e, <strong>em</strong> segun<strong>do</strong>, por interesses<br />
próprios aos objetivos <strong>de</strong> cada viag<strong>em</strong>. (MAUAD , 2001:6)<br />
O olhar <strong>de</strong>sse naturalista sob o <strong>Ceará</strong> estava marca<strong>do</strong> pelos i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> conformação<br />
<strong>do</strong> Brasil na lógica da cultura oci<strong>de</strong>ntal, elabora<strong><strong>do</strong>s</strong> pelos agentes culturais da época <strong>em</strong><br />
sintonia com o projeto <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> imperial. “O i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> cultura que os cercava valorizava a<br />
imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma natureza <strong>de</strong> riqueza exuberante, <strong>de</strong> costumes bizarros, <strong>de</strong> heterogeneida<strong>de</strong>,<br />
<strong>de</strong> mistério e distância a nós atribuída pelo outro que nos fixa a vista a partir da perspectiva<br />
iluminista.” (MAUAD, 2001:7). Muitas outras t<strong>em</strong>áticas e questões sobre o <strong>Ceará</strong> e sobre a<br />
atuação da Comissão são abordadas por Freire Al<strong>em</strong>ão no Diário. Este estu<strong>do</strong> consiste <strong>em</strong><br />
apenas um apanha<strong>do</strong> geral <strong><strong>do</strong>s</strong> assuntos aborda<strong><strong>do</strong>s</strong> pelo botânico <strong>em</strong> suas anotações<br />
pessoais.<br />
Em concordância com Rios, “A vinda da Comissão Científica <strong>de</strong>cretava a <strong>de</strong>finitiva<br />
integração da província <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong> ao projeto <strong>de</strong> constituição da <strong>História</strong> da nação<br />
brasileira.” (RIOS, 2006:11) Afinal, o <strong>Ceará</strong>, entre outras províncias <strong>do</strong> norte, fazia parte<br />
<strong>do</strong> Império <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>. A corte foi ao interior. O Brasil “civiliza<strong>do</strong>” <strong>de</strong>scobriu e aju<strong>do</strong>u<br />
a construir o Brasil “pitoresco.”<br />
Referências Bibliográficas<br />
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão: Fortaleza -<br />
Crato, 1859 – volume I (Coleção Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração, 3). Fortaleza: Museu <strong>do</strong><br />
<strong>Ceará</strong>, Secretaria <strong>de</strong> Cultura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>, 2006.<br />
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão: Crato - Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, 1859 / 1860 – volume II (Coleção Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração, 4). Fortaleza:<br />
Museu <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>, Secretaria <strong>de</strong> Cultura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>, 2007.<br />
ALEMÃO, Francisco Freire. Diário <strong>de</strong> viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão: 24 <strong>de</strong> agosto<br />
<strong>de</strong> 1860 a 24 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1861 – volta <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro para o <strong>Ceará</strong> até o retorno<br />
<strong>de</strong>finitivo ao Rio <strong>de</strong> Janeiro. Parte transcrita <strong>do</strong> original – 176pp<br />
BRAGA, Renato. <strong>História</strong> da Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração. Fortaleza: Edições<br />
D<strong>em</strong>ócrito Rocha, 2004 (Coleção Clássicos Cearenses).<br />
13
CAPANEMA, Guilherme Schurch <strong>de</strong>. Ziguezague da Seção Geológica da Comissão<br />
Cientifica <strong>do</strong> Norte. In: PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Os ziguezagues <strong>do</strong> Dr.<br />
Capan<strong>em</strong>a. (Coleção Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração, 1). Fortaleza: Museu <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>,<br />
Secretaria da Cultura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>, 2006, p. 153-323.<br />
CAPANEMA, Guilherme Schurch <strong>de</strong>. e GABAGLIA, Giacomo Raja. A seca no <strong>Ceará</strong>:<br />
escritos <strong>de</strong> Guilherme Capan<strong>em</strong>a e Raja Gabaglia (Coleção Comissão Científica <strong>de</strong><br />
Exploração, 2). Fortaleza: Museu <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>; Secretaria da Cultura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>, 2006.<br />
CARVALHO, José Murilo <strong>de</strong>. A construção da ord<strong>em</strong>: a elite política imperial. Teatro das<br />
sombras: a política imperial. 5ª edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização brasileira, 2010.<br />
CAVALCANTE, Francisca Hisllya Ban<strong>de</strong>ira. Um sábio cientista visita o sertão: o <strong>Ceará</strong> e a<br />
Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração no Diário <strong>de</strong> Viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão (1859-<br />
1861). Fortaleza, 2009. Monografia <strong>de</strong> Graduação <strong>em</strong> <strong>História</strong>.<br />
DAMASCENO. Darcy. e CUNHA, Waldir da. Os manuscritos <strong>do</strong> botânico Freire Al<strong>em</strong>ão –<br />
catálogo e transcrição. Anais da Biblioteca Nacional - vol. 81, 1961.<br />
DIAS, A. Gonçalves. Proêmio; Parte Histórica. In: Trabalhos da Comissão Cientifica <strong>de</strong><br />
Exploração. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Tipografia Universal La<strong>em</strong>mert, 1862.<br />
DOMINGUES, Heloisa M. Bertol. As ciências naturais e a construção da nação brasileira.<br />
Revista <strong>de</strong> <strong>História</strong>. São Paulo, n.135, <strong>de</strong>z. 1996. Disponível <strong>em</strong><br />
Acesso <strong>em</strong> 12 jan. 2011.<br />
FERREIRA, Lúcio Menezes. Ciência nôma<strong>de</strong>: o IHGB e as viagens científicas no Brasil<br />
imperial. <strong>História</strong>, Ciências, Saú<strong>de</strong> - Manguinhos, vol. 13, nº 2, p. 271-292, abr.-jun. 2006.<br />
GUIMARÃES, Manoel Luis Salga<strong>do</strong>. Nação e Civilização nos trópicos: o Instituto Histórico<br />
e Geográfico Brasileiro e o projeto <strong>de</strong> uma história nacional. Estu<strong><strong>do</strong>s</strong> Históricos, RJ nº 1, 1988.<br />
KURY, Lorelai. A Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração (1859-1861). A Ciência imperial e a<br />
musa cabocla. In: HEIZER, A.; VIEIRA, A. A. P. (orgs). Ciência, civilização e império nos<br />
trópicos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Accsses, 2001b, p. 55-76.<br />
LOPES, Maria Margareth. O Brasil <strong>de</strong>scobre a pesquisa científica: os museus e as ciências<br />
naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 1997.<br />
__________. O local musealiza<strong>do</strong> <strong>em</strong> nacional – aspectos da cultura das ciências naturais no<br />
século XIX, no Brasil. In: HEIZER, A.; VIEIRA, A. A. P. (orgs). Ciência, civilização e<br />
império nos trópicos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Access, 2001, p. 77-96.<br />
14
MARTIUS, Carl F. P. Como se <strong>de</strong>ve escrever a <strong>História</strong> <strong>do</strong> Brasil. Revista <strong>do</strong> Instituto<br />
Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio <strong>de</strong> Janeiro, n. 24, jan. 1845.<br />
MAUAD, Ana Maria. Entre retratos e paisagens: mo<strong><strong>do</strong>s</strong> <strong>de</strong> ver e representar no Brasil<br />
oitocentista. Revista Studium, nº15. Disponível <strong>em</strong>:<br />
Acesso <strong>em</strong> 12/12/2010.<br />
PINHEIRO, Rachel. As <strong>História</strong>s da Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração (1856) nas cartas<br />
<strong>de</strong> Guilherme Schuch Capan<strong>em</strong>a. Campinas / SP, [s. n.], 2002. Dissertação. (Mestra<strong>do</strong> <strong>em</strong><br />
Geociências) – Instituto <strong>de</strong> Geociências, Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas, Campinas.<br />
Revista <strong>do</strong> IHGB, Rio <strong>de</strong> Janeiro, t.19, 1856, p.10-12 / 114-116 (supl<strong>em</strong>ento).<br />
Revista <strong>do</strong> IHGB, Rio <strong>de</strong> Janeiro, t.24, 1861.<br />
REVEL, Jacques. Duas variações acerca <strong>do</strong> popular. In: A invenção da socieda<strong>de</strong>. Lisboa /<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Difel / Bertrand, 1990.<br />
RIOS, Kênia Sousa. Apresentação: A Comissão Científica e a seca <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>. In: A seca no<br />
<strong>Ceará</strong>: escritos <strong>de</strong> Guilherme Capan<strong>em</strong>a e Raja Gabaglia. Fortaleza: Museu <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>;<br />
Secretaria da Cultura <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>, 2006. (Coleção Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração, 2)<br />
SILVA FILHO, Antonio Luiz Mace<strong>do</strong> e. Nota Explicativa. In: ALEMÃO, F. F. Diário <strong>de</strong><br />
viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Francisco Freire Al<strong>em</strong>ão: Fortaleza - Crato, 1859 – volume I. Fortaleza: Museu <strong>do</strong><br />
<strong>Ceará</strong>, Secretaria <strong>de</strong> Cultura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Ceará</strong>, 2006, p.9-39. (Coleção Comissão Científica<br />
<strong>de</strong> Exploração, 3)<br />
THOMAS, Keith. O hom<strong>em</strong> e o mun<strong>do</strong> natural: mudanças <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> <strong>em</strong> relação às plantas e<br />
aos animais, 1500-1800. Tradução <strong>de</strong> João Roberto Martins Filho. São Paulo: companhia das<br />
letras, 1996.<br />
Trabalhos da Comissão Científica <strong>de</strong> Exploração. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Tip. Universal La<strong>em</strong>mert,<br />
1862.<br />
15