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Studart, o Ceará era um estado em que “se bebe muito” e o alcoolismo uma “praga” que a cada dia se estendia pelo solo cearense. Seu discurso apresentava uma delimitação espacial e social do uso do álcool na cidade: de um lado, os ricos em seus clubes, cafés e restaurantes; do outro, os trabalhadores pobres nas bodegas e tascas, sendo a conferência endereçada a estes. O Mal é quase geral; bebe-se sob a cúpula doirada dos clubs, onde os ricos distrahem seus tédios e esvaziam as bolsas com prazeres fugaces; bebe-se nos cafés e restaurantes, em cujas mesas saltam os dados e as cartas de jogar ao som das taças que se entrechocam e dos risos escarninhos e críticos dos maldizentes e bisbilhoteiros; bebe-se nas tabernas e nas tascas, onde o parco vintém adquerido penosamente pelo operário, pelo humilde trabalhador vae conveter-se em veneno, que aos poucos lhe queimará as entranhas, lhes esphacelará o cérebro, o inutilisará para o trabalho em breve tempo, fal-o-á um peso e uma carga para a família e um motivo de escarneo ou commiseração dos companheiros e o atirará, triste remate, sobre a enxerga de um hospital ou dentro das grades de lôbrega prisão. 4 O trecho, apesar de longo, sintetiza os espaços de consumo e distinção em torno das bebidas alcoólicas. O próprio Studart não desconsiderava o fato de que uma parcela abastarda da sociedade consumia bebidas alcoólicas em locais próprios da elite fortalezense como os clubes, os restaurantes e os cafés da cidade. Do outro lado, estavam os pobres nas tabernas, bodegas e tascas que predominavam nos arrabaldes da cidade, tendo como freqüentadores os operários advertidos nessa conferência. Por outro lado, as práticas de consumo da elite fortalezense, foram postas de lado: “... deixemos os ricos nos seus clubs, nos seus salões de viciados elegantes; não me interesso por elles; prefiro occupar-me dos homens do matar o bicho do calixto, da tallagada, do tira- gosto, occupar-me dos pobres e dos ignorantes em summa” 5 . Seu discurso, portanto, se dirige a um público específico de trabalhadores, na medida em que o álcool seria uma fonte de energia enganosa que aos poucos se revelaria como um veneno corruptor do corpo do trabalhador. Por sua vez, a inaptidão para o trabalho traria conseqüências funestas para a família, à sociedade e a nação, sendo, dessa forma, o alcoolismo um grande mal social. A cura, segundo o médico, seria a regeneração moral com o auxílio espiritual. Rodolfo Teófilo fora outro intelectual cearense enpenhado na luta antialcoólica. O farmacêutico considerava sua iniciativa de fundar a Liga Cearense Contra o Alcoolismo, em seu sítio na Pajuçara,como pioneira no país. 6 Nesse sentido, relatou sua experiência de tratamento do alcoolismo junto a um popular: 2
[...] Desejando que aquelle homem tão trabalhador, tão amigo da família se regenerasse, levei-o para nossa casa a passar uma temporada comigo no „Alto da Bonança” (...) Quando o julguei curado, minha mulher, para consolidar a cura mandou, no pensar della, celebrar uma missa em acção de graças, que o bebado ouviu e durante a qual commugou com compucção (...) No dia seguinte se despediu de nós com lagrimas de gratidão. Voltou à casa. Oito dias depois, tomou uma formidável bebedeira e espancou a mulher como tinha feito antes. 7 O malogro de sua experiência o fez concluir que o alcoolismo não consistia em uma questão moral, mas orgânica. Para Teófilo, haveria nos alcoólatras “células” do alcoolismo, daí a impossibilidade de uma reeducação moral. O alcoolismo figurava também como uma preocupação dos órgãos de saúde pública. A Inspetoria de Higiene Pública do Ceará em seu relatório de 1917 8 classificava de “triunvirato da dô” a ocorrência simultânea da tuberculose, do alcoolismo e da sífilis na capital cearense. A dificuldade do trabalho preventivo estaria ligada à falta de medidas legais e políticas: “... a prophylaxia da syphilis é por enquanto, sem a regulamentação da prostituição, improvável; a do alcoolismo uma utopia nos tempos que correm; e a da tuberculose, dificílima em face da precária situação financeira”. 9 A preocupação sanitarista incluía o alcoolismo como desafio à saúde pública, ao lado das doenças dos “tempos modernos”, como a sífilis e a tuberculose, o que nos remete as tensões sociais características da cidade urbanizada, já que esses males eram associados à população pobre. Além de uma questão médica e de saúde pública, o alcoolismo era também caso de polícia. O relatório do Dr. Eduardo Torres Câmara 10 apresentava uma seção intitulada Combate ao Alcoolismo, na qual recomendava a formação de “ligas contra a aguardente” que, segundo sua análise, era responsável pela criminalidade e pela maioria das detenções na capital. A cachaça era um elemento nocivo às classes populares na medida em que agravava seu quadro de inferioridade racial: Si se attentar em que nosso povo pertence a uma raça eivada de elementos heterogêneos, uns de inferioridade clara e incontestável, outros, bem que ethinicamente superiores, esmagados entretanto ao peso de uma decadência irremediável, certo se poderá calcular a influencia fatal que o álcool determina para a desorganização e degenerescencia das classes populares 11 Em geral, a categoria médica alcoolismo, era empregada muitas vezes para designar práticas de lazer e consumo populares desqualificadas pelo discurso elitista. A própria construção discursiva do alcoolismo como doença não estava alheia às prédicas 3
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