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artigos - Câmpus do Pantanal

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CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 2<br />

APRESENTAÇÃO<br />

Este segun<strong>do</strong> número da Carandá, assim como o anterior, privilegia o universo <strong>do</strong><br />

discurso literário, ao qual entrelaçam estu<strong>do</strong>s linguísticos, pedagógicos e históricos. Os textos,<br />

embora contenham elementos <strong>do</strong> mesmo campo semântico ou tendências modernas correntes,<br />

revelam visões de mun<strong>do</strong> diferentes: como to<strong>do</strong> discurso, agregam em si a diversidade, a<br />

multiplicidade e a alteridade, sen<strong>do</strong> microcosmos da pluralidade existente na formação social<br />

que representam.<br />

A revista contém trabalhos provenientes da experiência <strong>do</strong>cente, <strong>do</strong> aprofundamento<br />

de estu<strong>do</strong>s acadêmicos e da formação de pesquisa<strong>do</strong>res em programas de pós-graduação de<br />

diversas universidades brasileiras e <strong>do</strong> exterior. São <strong>artigos</strong>, estu<strong>do</strong>s, resenhas, depoimentos e<br />

entrevistas que desvelam estudiosos que <strong>do</strong>minam com segurança o discurso da teoria da<br />

literatura e da teoria linguística na interface com outras disciplinas da grande área <strong>do</strong><br />

conhecimento das Ciências Humanas.<br />

Nesta segunda edição temos trabalhos de estudiosos <strong>do</strong>s seguintes esta<strong>do</strong>s: Bahia,<br />

Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso <strong>do</strong> Sul, Minas Gerais, Rio Grande <strong>do</strong> Sul e São Paulo. São<br />

textos que determinam a maneira de perceber e conceber a realidade com olhos em que a<br />

dialogia e a interação constituem elementos fundamentais.<br />

Sob a égide da pluralidade, da diversidade, da democracia, <strong>do</strong> respeito à res publica<br />

que assinalamos na abertura <strong>do</strong> volume inagural da Carandá, perseguimos incansavelmente,<br />

no âmbito <strong>do</strong> serviço público que ao público e não a si mesmo deve servir, a lição pétrea da<br />

Constituição Brasileira, que diz, em seu artigo 37: “A administração pública [...] obedecerá<br />

aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.<br />

Que tal princípio basilar repercuta a cada leitura deste volume é o que desejamos.<br />

Angela Varela Brasil Pessoa<br />

Rauer Ribeiro Rodrigues<br />

Editores


COMISSÃO EDITORIAL:<br />

Angela Varela Brasil (Coordena<strong>do</strong>ra; Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Rauer Ribeiro Rodrigues (Vice-Coordena<strong>do</strong>r; Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Marco Aurélio Macha<strong>do</strong> de Oliveira (História-Mestra<strong>do</strong> em Estu<strong>do</strong>s Fronteiriços-DHL-<br />

CPAN-UFMS)<br />

Rita Maria Baltar Van de Laan (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Teresa Cristina Varela Brasil de Almeida (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

COMISSÃO CIENTÍFICA:<br />

Rauer Ribeiro Rodrigues (Coordena<strong>do</strong>r; Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Fabiana Portela de Lima (Vice-Coordena<strong>do</strong>ra; Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Edgar Apareci<strong>do</strong> da Costa (Geografia-Mestra<strong>do</strong> em Estu<strong>do</strong>s Fronteiriços-DAM-CPAN-<br />

UFMS)<br />

Eduar<strong>do</strong> Gerson de Saboya Filho (História-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Joanna Durand Zwarg (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Kelcilene Grácia-Rodrigues (Letras-Mestra<strong>do</strong> em Letras-DED-CPTL-UFMS)<br />

Marcelo Dias de Moura (Matemática-DEX-CPAN-UFMS)<br />

Maria Adélia Menegazzo (Letras-Mestra<strong>do</strong> em Estu<strong>do</strong>s de Linguagens-CCHS-UFMS)<br />

Mônica de Carvalho Magalhães Kassar (Pedagogia-Mestra<strong>do</strong> em Educação Social-<br />

CPAN-UFMS)<br />

Sandra Hahn (Letras-CCHS-UFMS)<br />

PARECERISTAS DA 2ª EDIÇÃO:<br />

Angela Varela Brasil – 13 pareceres (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Elizabete Bilange – 2 pareceres (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Fabiana Portela de Lima – 2 pareceres (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Joanna Durand Zwarg – 2 pareceres (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Kelcilene Grácia-Rodrigues – 9 pareceres (Mestra<strong>do</strong> em Letras Letras-CPTL-UFMS)<br />

Luciene Lemos de Campos – 1 parecer (SED-MS, Três Lagoas, MS)<br />

Rauer Ribeiro Rodrigues – 10 pareceres (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Regina Baruki – 2 pareceres (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Rita Baltar Van der Laan – 2 pareceres (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Suzana Vinícia Mancilla Barreda – 2 pareceres (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Teresa Cristina Varela Brasil de Almeida – 2 pareceres (Letras-DHL-CPAN-UFMS)<br />

Vanessa Bivar – 2 pareceres (História-DHL-CPAN-UFMS)<br />

PERIODICIDADE: Anual ― ISSN: 2176-6835<br />

Mês de Circulação: nº 2, maio de 2010<br />

Capa – foto e arte: Marcelo Dias de Moura<br />

Editoração: Rauer Ribeiro Rodrigues<br />

Endereço: CARANDÁ – Revista <strong>do</strong> Curso de Letras<br />

DHL / <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> / UFMS<br />

Profs. Angela e Rauer – editores<br />

Av. Rio Branco, 1270 – sala 217, Bloco H<br />

79304-902 – Corumbá – MS<br />

(67) 3234-6830<br />

angelavbr@brturbo.com.br / rauer.rauer@uol.com.br<br />

http://www.cpan.ufms.br/index.php?option=com_content&view=article&id=79&Itemid=208<br />

A responsabilidade de cada artigo, no que se<br />

refere ao teor e à revisão <strong>do</strong> texto, é <strong>do</strong> autor.


ÍNDICE<br />

ARTIGOS<br />

Entre Dandys, Lésbicas e Prostitutas: Considerações<br />

Sobre os Contos “História de Gente Alegre” e<br />

“Duas Criaturas”, de João<strong>do</strong> Rio<br />

Ariano Suassuna e o Diálogo Intertextual<br />

com seus Paradigmas<br />

O Poder da Palavra na Poética<br />

de Guimarães Rosa<br />

Elaine <strong>do</strong>s Santos<br />

Márcia Maria de Melo Araújo<br />

Maria da Luz Alves Pereira<br />

Dos Resquícios de uma Utopia às Introjeções de um Sentimento de<br />

Derrota: Bar Don Juan e Sempreviva<br />

Quintal e Galinha: Espaços Poéticos em A Vida<br />

Íntima de Laura, de Clarice Lispector<br />

A Identidade Feminina Revisitada: Um Estu<strong>do</strong> da<br />

Mulher em Virginia Woolf e Clarice Lispector<br />

Giselia Rodrigues Dias da Silva<br />

Mariângela Alonso<br />

Priscila Berti Domingos<br />

Não Sei Lidar com a Inclusão de Alunos Sur<strong>do</strong>s: Falta de Preparo<br />

e Formação <strong>do</strong>s Professores de Inglês.<br />

Tânitha Gléria de Medeiros<br />

Drª Maria Cristina Faria Dalacorte Ferreira<br />

Laços de Sangue: Alguns Aspectos Socioculturais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s no Século XX<br />

Patricia Dayse Alves Alvino Moreira<br />

Rejane de Souza Ferreira<br />

A Vida na Casa de Vidro: The Crucible e a Vigilância na<br />

Sociedade Estadunidense<br />

O Fantástico em “O Jovem Goodman<br />

Brown”, de Nathaniel Hawthorne<br />

Vanessa Cianconi Vianna Nogueira<br />

A<strong>do</strong>lfo José de Souza Frota<br />

Me<strong>do</strong>, Inveja, Vergonha: As Paixões no Conto La Forma de la<br />

Espada, de Jorge Luis Borges<br />

Neusa Teresinha Bohnen<br />

A Poesia Invade o Palco: Aspectos<br />

Poéticos no Teatro de José Régio<br />

Isabelle Regina de Amorim-Mesquita<br />

8<br />

27<br />

37<br />

49<br />

64<br />

76<br />

93<br />

108<br />

126<br />

138<br />

158<br />

170


A Leitura Cognitiva Através da Hermenêutica<br />

de Paul Ricouer: Compreender a Realidade<br />

por Meio da Linguagem<br />

Sirlene Cristófano<br />

Estruturalismo e Pós-Estruturalismo na Linguagem: Leituras<br />

Centrífugas <strong>do</strong> Mesmo e <strong>do</strong> Diferente<br />

Nelson de Jesus Teixeira Júnior<br />

A Tópica Crítica e a Intensividade <strong>do</strong>s<br />

Símbolos em Cecília Meireles<br />

Cassia <strong>do</strong>s Santos Teixeira<br />

Soraya Borges Costa<br />

A Política de Aristóteles na Obra Hipérion ou O<br />

Eremita na Grécia, de Friedrich Hölderlin<br />

Fábio Luís Chiqueto Barbosa<br />

Apareci<strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r Júnior<br />

RESENHA<br />

Língua e Literatura: Opressão e Liberdade<br />

Ana Karla Pereira de Miranda<br />

Isaias Leonidio Farias<br />

POESIA:<br />

CONTO:<br />

FOTOGRAFIA:<br />

LITER’ARTES<br />

Limites<br />

Roberto Santos<br />

A vela<br />

Glacy Magda de Souza Macha<strong>do</strong><br />

CARANDÁS: Mosaico<br />

Marcelo Dias de Moura<br />

BÓRIS & DÓRIS – O FILME<br />

Dossiê<br />

Entrevista com Rauer :<br />

A Liberdade, o Desafio e o Para<strong>do</strong>xo da Arte<br />

Lavínia Resende Passos<br />

184<br />

200<br />

207<br />

224<br />

236<br />

243<br />

244<br />

247<br />

249


Depoimento: Gelsimara Cunha <strong>do</strong>s Santos 252<br />

Depoimento: Henrique Cezaretti 253<br />

Depoimento: Juliana Gomes 256<br />

Depoimento: Ione Eler E Herler 257<br />

Filme abre seminário sobre literatura<br />

no Vestibular da UFMS<br />

Perfil, News, 19 nov. 2007<br />

O permear da incomunicabilidade<br />

em Boris e Dóris – o filme<br />

Cristiane Passáfaro Guzzi<br />

Sutilezas, fidelidade, novos senti<strong>do</strong>s<br />

Luciene Lemos de Campos<br />

258<br />

259<br />

260<br />

Depoimento: Luiz Vilela 262<br />

Fragmento: Boris e Dóris, a novela de Luiz Vilela 264<br />

Boris e Dóris: um flagrante cotidiano<br />

Revoluções pessoais: diálogo<br />

intenso e reflexão social<br />

SERVIÇO<br />

Jairo Rodrigues<br />

Maurício Melo Júnior<br />

CARANDÁ n° 3 - Chamada e Normas Para Colaborações<br />

265<br />

268<br />

270


ARTIGOS


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 8<br />

ENTRE DANDYS, LÉSBICAS E PROSTITUTAS:<br />

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONTOS “HISTÓRIA DE<br />

GENTE ALEGRE” E “DUAS CRIATURAS”, DE JOÃO DO RIO<br />

Elaine <strong>do</strong>s Santos 1<br />

RESUMO: Este trabalho apresenta um breve estu<strong>do</strong> a respeito de <strong>do</strong>is textos curtos de<br />

João <strong>do</strong> Rio, prosa<strong>do</strong>r brasileiro <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX, que se filia à tradição<br />

decadentista francesa e retrata um mun<strong>do</strong>, teoricamente, deprava<strong>do</strong> em uma sociedade<br />

marcada pelos ideais católicos e positivistas que relegavam a mulher a um plano<br />

secundário. Surgem lésbicas e prostitutas como contraponto à mulher casada, rainha <strong>do</strong><br />

lar, submissa ao pai e ao mari<strong>do</strong>.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Decadentismo – Narrativa – Androginia - Sociedade<br />

ENTRE DANDYS, LESBIANAS Y PROSTITUTES: CONSIDERACIONES A<br />

CERCA DE “HISTÓRIA DE GENTE ALEGRE” Y “DUAS CRIATURAS”, DE JOÃO<br />

DO RIO<br />

RESÚMEN: Este estudio presenta breves consideraciones a cerca de <strong>do</strong>s textos cortos<br />

de João <strong>do</strong> Rio, prosa<strong>do</strong>r brasileño del principio del siglo XX, que se ayunta a la<br />

tradición francesa del decadentismo y mira un mun<strong>do</strong>, teóricamente, en depravación en<br />

una sociedad cuya marca son los ideales católicos e positivistas que conducirón a mujer<br />

a un según plan. Aparecen lesbianas y prostitutes como una oposición a la mujer, reina<br />

del hogar, sometida a su padre y a su mari<strong>do</strong>.<br />

PALABRAS CLAVE: Decadentismo – Narrativa – Androginia - Sociedad<br />

INTRODUÇÃO<br />

Dentro da noite é uma coletânea formada por 18 contos, publicada em 1911, por<br />

João <strong>do</strong> Rio, pseudônimo a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por Paulo Barreto (1881 – 1921). Desfilam, em<br />

histórias curtas, as mais variadas facetas <strong>do</strong> Rio de Janeiro que assistiu à passagem <strong>do</strong><br />

século XIX para o século XX e que, portanto, vivenciou a belle époque tropical.<br />

1 Professora mestre em Estu<strong>do</strong>s literários, <strong>do</strong>utoranda <strong>do</strong> Programa de Pós-graduação em Letras da<br />

Universidade Federal de Santa Maria. Banca de elaboração de provas de língua espanhola e banca de<br />

correção de redações da UFSM; experiência <strong>do</strong>cente em Literatura nos ensinos médio e superior.<br />

Endereço eletrônico: e.kilian@gmail.com


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 9<br />

O que chama a atenção, na obra, são personagens que carregam taras, vícios,<br />

elas aparecem, têm suas vidas devassadas, em geral, por um narra<strong>do</strong>r que conta histórias<br />

em primeira pessoa, como se fora protagonista ou testemunha. O narra<strong>do</strong>r, que traz à<br />

tona os eventos – presencia<strong>do</strong>s ou que lhe foram conta<strong>do</strong>s –, não parece preocupar-se<br />

com a “opinião alheia” e faz desfilar um catálogo de perversões, com a naturalidade que<br />

se concederia à mãe que conta histórias de ninar ao filho em seu berço. Tu<strong>do</strong> parece<br />

possível, tu<strong>do</strong> parece aceitável para este narra<strong>do</strong>r que, ao fim e ao cabo, faz a crônica da<br />

sociedade carioca que vivenciava os primeiros anos da República Nova (e, ao que<br />

parece, pouco interesse lhe devotava).<br />

Em “Dentro da noite”, conto que dá título à coletânea, o leitor depara-se com a<br />

inusitada situação de Ro<strong>do</strong>lfo Queiroz que se compraz a alfinetar, primeiro, a namorada<br />

Clotilde e, posteriormente, qualquer mulher que a ocasião lhe ofereça, seja em<br />

concertos, apresentações teatrais, trens ou até mesmo na rua: “Aproximo-me, tomo<br />

posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa (...). Mas<br />

ninguém descobre se foi proposital” (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p. 5) 1 .<br />

As perversidades, a dependência quase macabra pelo jogo, a prostituição, o<br />

roubo – ou a cleptomania - desfilam em vários contos, como é o caso de “Emoções”, em<br />

que Praxedes, um sino-português, sucumbe ao vício pelo jogo, ganha, perde e continua<br />

perden<strong>do</strong>, mas, de maneira desesperada, luta em prol da cartada final que lhe garantiria<br />

a fortuna ou a mera satisfação, momentânea, da vitória. O que se vê, ao término <strong>do</strong><br />

conto, é a morte: incapaz de superar as próprias forças que o impeliam para qualquer<br />

forma de jogo, Praxedes prefere morrer. Sua morte, contu<strong>do</strong>, é uma simples emoção –<br />

passageira – vivida pelo barão Belfort: diga-se de passagem, personagem recorrente em<br />

vários contos e que apresenta o comportamento típico de um dandy.<br />

As narrativas, em sua maioria, situam-se em ambientes requinta<strong>do</strong>s – talvez,<br />

fosse pertinente afirmar-lhes “pseu<strong>do</strong>-requinta<strong>do</strong>s”, com certo toque de decadência -, e<br />

“escorregam” para o sombrio, o macabro, o devasso, o mórbi<strong>do</strong>. Neste universo, por<br />

vezes, surgem mulheres: Elsa d’Aragon, Elisa, Maria Azeve<strong>do</strong> – a Chilena. O que elas<br />

representam? São mulheres, prostitutas, homossexuais? Entre dandys, coronéis,<br />

1 O texto de Dentro da noite, coletânea de contos de João <strong>do</strong> Rio, que se faz referência neste trabalho,<br />

encontra-se disponível em http://www.<strong>do</strong>miniopublico.gov.br/<strong>do</strong>wnload/texto/bn000064.pdf


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 10<br />

embaixa<strong>do</strong>res, fazendeiros, elas trazem à tona um mun<strong>do</strong>, em que a degradação – física,<br />

mental, social, moral – é a nota <strong>do</strong>minante.<br />

Em um país pre<strong>do</strong>minantemente católico, em que a moral cristã determinou o<br />

sexo apenas como forma de procriação; em um país em que à mulher concedeu-se o<br />

papel de anjo tutelar, senhora e protetora <strong>do</strong> lar, as personagens femininas de João <strong>do</strong><br />

Rio subvertem o modelo concebi<strong>do</strong> por aquela moral. Sensualidade, lascívia,<br />

libertinagem, licenciosidade perpassam as páginas de “História de gente alegre” e<br />

“Duas criaturas”, contos seleciona<strong>do</strong>s para esta análise.<br />

No segmento inicial <strong>do</strong> trabalho, traça-se um breve histórico da condição<br />

feminina no Brasil, desde o processo colonizatório até os anos iniciais <strong>do</strong> século XX,<br />

destacan<strong>do</strong>-se a condição católica que conforma a sociedade em estu<strong>do</strong> e as influências<br />

positivistas que se fazem marcantes na passagem <strong>do</strong> século XIX para o século XX. No<br />

segmento seguinte, retomam-se estu<strong>do</strong>s sobre Decadentismo, a literatura <strong>do</strong> final <strong>do</strong><br />

século XIX que, em Paris, se produzia. Neste aspecto, dá-se ênfase à figura <strong>do</strong> dandy e<br />

a sua contrapartida feminina: mulheres cujo destino não é a mera procriação. Assim<br />

posto, no segmento final, analisa-se os contos cita<strong>do</strong>s para demonstrar que, em sua obra,<br />

João <strong>do</strong> Rio capta a dualidade que se expressava no Brasil que assistiu à passagem da<br />

Monarquia para a República, isto é, o fastio com o mun<strong>do</strong> burguês instaura<strong>do</strong> que se<br />

denota em comportamentos que transcendem a moral construída pela sociedade<br />

brasileira sob influxo católico e, contraditoriamente, positivista.<br />

II. A MULHER NA SOCIEDADE BRASILEIRA: da colonização à república<br />

No ensaio “A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia”, Araújo (2006,<br />

P. 45) indica, de imediato, o poder coercitivo exerci<strong>do</strong> pela lei, pela família, pela crença<br />

no senti<strong>do</strong> de “abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o<br />

equilíbrio <strong>do</strong>méstico, a segurança <strong>do</strong> grupo social e a própria ordem das instituições<br />

civis e eclesiásticas”. Às mulheres <strong>do</strong> Brasil Colônia cabia a obediência servil ao pai e,<br />

posteriormente, ao mari<strong>do</strong>. O autor ainda pondera:<br />

A to<strong>do</strong>-poderosa Igreja exercia forte pressão sobre o<br />

adestramento da sexualidade feminina. O fundamento escolhi<strong>do</strong>


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 11<br />

para justificar a repressão da mulher era simples: o homem era<br />

superior, e portanto cabia a ele exercer a autoridade (...). A<br />

mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente<br />

pelo erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao peca<strong>do</strong> e<br />

tirou da humanidade futura a possibilidade de gozar da<br />

inocência paradisíaca. Já que a mulher partilhava da essência de<br />

Eva, tinha de ser permanentemente controlada (Araujo, 2006, p.<br />

46).<br />

Entendida, pois, como um mal a ser constantemente controla<strong>do</strong>, a mulher era<br />

subjugada pelo pai e, posteriormente, pelo mari<strong>do</strong>, negava-se-lhe a voz, o direito à<br />

expressão e, sobretu<strong>do</strong>, a manifestação <strong>do</strong> desejo carnal. Não é à toa que, em muitos<br />

momentos da História, a figura da mulher foi vinculada à imagem de bruxas, detentoras<br />

de poderes sobre o bem e o mal.<br />

Dependente de Portugal, a colônia brasileira sofria o mesmo atraso daquele país,<br />

enquanto que, na França, na Inglaterra ou na Holanda, havia um significativo progresso<br />

científico. Os portugueses e, em conseqüência, os brasileiros tinham o conhecimento<br />

médico pauta<strong>do</strong> pelas idéias pregadas pelos jesuítas e pelo Tribunal <strong>do</strong> Santo Ofício;<br />

ademais, conjugavam crenças que incluíam a alquimia medieval, a astrologia e uma<br />

grande <strong>do</strong>se de empirismo, de tal sorte que o despreparo para compreender as <strong>do</strong>enças e<br />

suas causas grassava na Metrópole e na Colônia. Não raro, o corpo da mulher era<br />

subestima<strong>do</strong>, ti<strong>do</strong> como inferior.<br />

Além de investir em conceitos que subestimavam o corpo<br />

feminino, a ciência médica passou a perseguir as mulheres que<br />

possuíam conhecimento sobre como tratar <strong>do</strong> próprio corpo.<br />

Esse saber informal, transmiti<strong>do</strong> de mãe para filha, era<br />

necessário para a sobrevivência <strong>do</strong>s costumes e das tradições<br />

femininas. Conjuran<strong>do</strong> espíritos, curandeiras e benzedeiras, com<br />

suas palavras e ervas mágicas, suas orações e adivinhações para<br />

afastar entidades malévolas, substituíam a falta de médicos e<br />

cirurgiões. Era também a crença na origem sobrenatural da<br />

<strong>do</strong>ença que levava tais mulheres a recorrer a expedientes<br />

sobrenaturais; mas essa atitude acabou deixan<strong>do</strong>-as na mira da<br />

Igreja, que as via como feiticeiras capazes de detectar e debelar<br />

as manifestações de Satã nos corpos a<strong>do</strong>enta<strong>do</strong>s (Del Priore,<br />

2006, p. 81).


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 12<br />

Assim posto, inúmeros processos correram, ao longo <strong>do</strong>s séculos, contra<br />

mulheres que, na verdade, apenas tentavam salvar vidas em uma terra em que a<br />

medicina levaria anos para estabelecer-se e os <strong>do</strong>gmas religiosos haviam finca<strong>do</strong> pé.<br />

De outra forma, o pensamento positivista, <strong>do</strong>minante no Brasil ao final <strong>do</strong> século<br />

XIX, especialmente, com a instauração da República, também imporia seus <strong>do</strong>gmas e,<br />

assim como a religião, determinaria o cerceamento da liberdade feminina, conforme<br />

registra Ismério (1995, p. 37):<br />

Aparentemente o Positivismo e a Igreja Católica<br />

opunham-se frontalmente. O primeiro possuía suas bases no<br />

discurso científico enquanto que a Igreja, em fundamentações<br />

teológicas. Mas nas questões relacionadas à família, propriedade<br />

e moral, ambos tinham discursos semelhantes (...). Em ambas, a<br />

mulher era a guardiã da moral e <strong>do</strong> culto religioso, resultante da<br />

reprodução rotineira de seu quotidiano, onde lhe são<br />

transmiti<strong>do</strong>s símbolos e signos de uma cultura.<br />

Sob tal perspectiva, firmava-se o papel da mulher: protetora <strong>do</strong> lar e das<br />

tradições familiares, educa<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s filhos e obediente ao mari<strong>do</strong>. Sua presença era,<br />

deste mo<strong>do</strong>, mais restrita ao lar e aos afazeres <strong>do</strong>mésticos, não se registran<strong>do</strong> atuação<br />

social que, aos poucos, com a afirmação burguesa no país, passaria a ocorrer, posto que<br />

o homem burguês deveria “ostentar” a honra e a sacralidade familiar.<br />

O Código Penal de 1890 dedicou longo espaço à mulher e, gesta<strong>do</strong> em uma<br />

sociedade sob influência católica e positivista, ocupou-se de questões como<br />

defloramento, estupro, reparo da honra ou, nos dizeres de Caulfield (2000, p. 81),<br />

“reparo <strong>do</strong> mal”, que “obrigava o ofensor a <strong>do</strong>tar a ofendida”. A autora aponta, em<br />

continuidade, a situação vivida pela mulher casada:<br />

Uma vez casada, a mulher via a liberdade sexual ainda<br />

mais subordinada à honra da família. Os jurisconsultos<br />

concordavam em que, embora os homens pudessem ser culpa<strong>do</strong>s<br />

por crime de atenta<strong>do</strong> ao pu<strong>do</strong>r contra a esposa, o estupro<br />

constava entre os ‘direitos conjugais’ <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Assim como<br />

no código anterior [1830], as esposas adúlteras podiam ser<br />

condenadas a uma pena que variava de um a três anos de prisão,<br />

ao passo que os mari<strong>do</strong>s infiéis somente poderiam ser puni<strong>do</strong>s


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 13<br />

se tivessem ‘concubina teúda e manteúda’. (Caulfield, 2000, p.<br />

83).<br />

A diferença entre homem e mulher estava assim constituída, ao sexo feminino<br />

cabia a submissão ao macho, a preservação <strong>do</strong> lar, a repressão <strong>do</strong>s instintos sexuais e,<br />

ao mesmo tempo, o tratamento legal que a inferiorizava, submeten<strong>do</strong>-a aos desman<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong> mari<strong>do</strong> que podiam, conforme o Código Penal, incluir o uso da violência para a<br />

realização <strong>do</strong> prazer carnal masculino.<br />

A literatura romântica, marcadamente idealiza<strong>do</strong>ra da mulher, colocou-a em um<br />

patamar que, se não contradizia a realidade vigente, apontava-lhe o casamento como<br />

solução, o final feliz deseja<strong>do</strong> por toda mocinha, conforme se evidencia em Senhora, de<br />

José de Alencar (2002, p. 215): “As cortinas cerraram-se, e as auras da noite,<br />

acarician<strong>do</strong> o seio das flores, cantavam o hino misterioso <strong>do</strong> santo amor conjugal”.<br />

Os prosa<strong>do</strong>res realistas e naturalistas, por seu turno, admitiram versar sobre<br />

temas como adultério, prostituição, homossexualismo, demonstran<strong>do</strong> os meandros de<br />

uma sociedade que se desenvolvia entre a aparência, a imagem social e “realidade”<br />

íntima. Entre os realistas, célebre é a conclusão de Brás Cubas ao referir-se à prostituta<br />

Marcela:<br />

... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos<br />

de reis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem <strong>do</strong>s onze<br />

contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as<br />

raias de um capricho juvenil (Assis, 1992, p.44).<br />

Os naturalistas, por seu turno, descem à sordidez humana e se propõem a<br />

analisar os comportamentos, consideran<strong>do</strong> cada personagem como um caso único a ser<br />

estuda<strong>do</strong>. Assim é que, em O cortiço, por exemplo, aparecem a prostituta Leonie, que<br />

introduz a jovem Pombinha nas artes <strong>do</strong> amor homossexual, ou Rita Baiana, a mulata<br />

sensual, responsável pela separação de Jerônimo e Piedade, quan<strong>do</strong> a esposa de origem<br />

lusa descobre o caso entre o mari<strong>do</strong> e a mulata, confirman<strong>do</strong>-se o adultério.<br />

Nos contos de João <strong>do</strong> Rio - “História de gente alegre”, “Duas criaturas” e “Uma<br />

mulher excepcional”-, reaparece a prostituição, nos casos de Elsa e Maria, insinuan<strong>do</strong>-<br />

se, em “História de gente alegre”, o desejo homossexual de Elisa, assim como o


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adultério se faz presente em “Uma mulher excepcional”. No entanto, nos contos, não<br />

parece haver o propósito de analisar a sociedade em questão ou os tipos humanos que<br />

nela transitam, faz-se um recorte da realidade, delineia-se um quadro de costumes à<br />

moda <strong>do</strong> jornalista encanta<strong>do</strong> pelas ruas <strong>do</strong> Rio de Janeiro, por sua gente e, ao mesmo<br />

tempo, senhor de uma época em que o vício, as taras, a devassidão marcavam presença<br />

entre ricos e pobres, independente <strong>do</strong>s preceitos morais e religiosos. Há uma sociedade<br />

– em que certos valores morais e religiosos parecem decair - que se desnuda ou um<br />

narra<strong>do</strong>r capaz de desnudá-la.<br />

Ressalve-se, porém, que, à época de João <strong>do</strong> Rio, a mulher já ganhara o espaço<br />

urbano, para ir à modista ou ao clube, até mesmo, entre as classes menos favorecidas,<br />

permitia-se-lhe o trabalho. O que se ressalta, nos contos de João <strong>do</strong> Rio, é o espaço<br />

interdito à mulher burguesa, cuja reputação seguia os preceitos morais positivistas e/ou<br />

católicos.<br />

III. DO DECADENTISMO FRANCÊS: Entre dandys, prostitutas e certos caracteres de<br />

androginia<br />

A grande reforma parisiense levada a efeito por Napoleão III, impera<strong>do</strong>r francês,<br />

e George Èugene Haussmann, prefeito de Paris e suas cercanias, desnu<strong>do</strong>u a capital<br />

francesa aos olhos <strong>do</strong>s próprios franceses. Assim é que Baudelaire a apresenta no<br />

poema em prosa “Os olhos <strong>do</strong>s pobres”, encontro entre um jovem casal de namora<strong>do</strong>s<br />

“na esquina de um bulevar novo, to<strong>do</strong> sujo ainda de entulho e já mostran<strong>do</strong><br />

gloriosamente seus esplen<strong>do</strong>res inacaba<strong>do</strong>s”. A dualidade entre <strong>do</strong>is universos distintos<br />

se cruza e fica patente a reforma que se empreende, afinal, há entulhos e, ao mesmo<br />

tempo, esplen<strong>do</strong>res inacaba<strong>do</strong>s. Além disso, os enamora<strong>do</strong>s – assim como o café e todas<br />

as novidades aparentes – são observa<strong>do</strong>s por três homens de diferentes idades, cuja<br />

característica fundamental é pobreza física.<br />

Berman (2000, p. 172), a propósito das reformas parisienses, observa:<br />

O empreendimento pôs abaixo centenas de edifícios, deslocou<br />

milhares e milhares de pessoas, destruiu bairros inteiros que aí


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tinham existi<strong>do</strong> por séculos. Mas franqueou toda a cidade, pela<br />

primeira vez em sua história, à totalidade de seus habitantes.<br />

Contu<strong>do</strong>, se, de um la<strong>do</strong>, é permiti<strong>do</strong> a observação <strong>do</strong>s pobres que se<br />

maravilham diante das transformações físicas da cidade e <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de vida <strong>do</strong>s mais<br />

abasta<strong>do</strong>s, de outro la<strong>do</strong>, o que se tem é o contato com a miserabilidade humana que<br />

também habitava Paris. Neste contexto, uma forma literária, em que a representação da<br />

realidade se desnuda em uma mesma/nova cidade, toma forma.<br />

Imbuí<strong>do</strong>s num profun<strong>do</strong> tédio, cansa<strong>do</strong>s e descrentes das<br />

promessas progressistas da civilização burguesa, já por volta <strong>do</strong><br />

último quartel <strong>do</strong> século XIX, os artistas encontravam-se<br />

mergulha<strong>do</strong>s numa atmosfera de pessimismo e decadência. Para<br />

se contraporem aos valores dessa sociedade, esses intelectuais<br />

elevaram a arte ao seu mais alto patamar possível, porque eleita<br />

como forma de exílio cultural e de deleite estético, em um<br />

mun<strong>do</strong> sempre com vistas ao utilitarismo e cujo sistema de<br />

valores já mostrara imensas rachaduras em seu edifício ético<br />

(Gomes, 2008, p. 2).<br />

Assim posto, há uma nova concepção estética, que se opõe aos modelos realista<br />

e naturalista; ela é marcada pelo pessimismo diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> burguês e abre mão <strong>do</strong><br />

ideário utilitarista para se comprazer nos artifícios estilísticos, nas formas preciosas, que<br />

fogem ao cotidiano, ao ordinário, à banalidade.<br />

Catharina (2005, p. 82), por sua vez, amplia a noção temporal de abrangência <strong>do</strong><br />

Decadentismo, que se fazia presente no universo literário francês, e afirma:<br />

Há, guardadas as devidas diferenças, uma continuidade<br />

subjacente de noção de decadência e fim de uma era nos<br />

movimentos romântico, realista-naturalista, decadentista e<br />

simbolista. Do mal du sècle ao spleen e ao ennui, temos a visão<br />

<strong>do</strong> esgotamento de um mun<strong>do</strong> crepuscular e da necessidade <strong>do</strong><br />

novo. No dandy, temos a figura emblemática desse movimento.<br />

De acor<strong>do</strong> com o pesquisa<strong>do</strong>r, a linha mestra desta decadência pode ser rastreada<br />

na Comédia humana, de Honoré de Balzac, da primeira metade <strong>do</strong> século XIX, em que


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se registra a decadência aristocrática e a ascensão burguesa. De acor<strong>do</strong> com Catharina<br />

(2005, p. 84):<br />

A noção de Decadência também está fortemente presente<br />

na obra de Théophile Gautier (...). Em Mademoiselle de Maupin<br />

(1835-1836) a flor ‘angsoka’ conduz à metáfora vegetal ligada à<br />

atmosfera <strong>do</strong>entia da Decadência, que será retomada por<br />

Baudelaire e por Huysmans. Também nesse romance, Gautier<br />

encena a problemática da inversão <strong>do</strong>s sexos, <strong>do</strong> ‘andrógino<br />

decadente’, através da inversão <strong>do</strong>s traços físicos e <strong>do</strong><br />

comportamento de seus protagonistas (...).<br />

A androginia, que se anunciava em Gautier, está associada à figura <strong>do</strong> dandy,<br />

homem elegante, com estilo afeta<strong>do</strong>, em que pre<strong>do</strong>mina o cuida<strong>do</strong> com o vestir e o<br />

andar, o uso <strong>do</strong> perfume, <strong>do</strong> acessório tornan<strong>do</strong>-o um sujeito ímpar.<br />

A continuidade <strong>do</strong> modelo decadentista estaria, conforme Catharina (2005, p.<br />

90), nas produções de Baudelaire, em que, mais uma vez, se faz presente a figura <strong>do</strong><br />

dandy como elemento representativo <strong>do</strong> processo decadente que se apresenta.<br />

O dandy baudelariano está intimamente liga<strong>do</strong> à ascensão<br />

da sociedade burguesa industrializada (...). Ergue-se em reação à<br />

mesmice burguesa que assola a sociedade industrial, crente na<br />

ciência e no progresso. Sinaliza de forma irônica, mordaz, lúdica<br />

porém lúcida, a desordem das coisas e coloca em cena, teatraliza<br />

o capitalismo e a decadência da sociedade que pensa ter atingi<strong>do</strong><br />

um alto grau de civilização. Faz de si mesmo uma obra de arte<br />

móvel, insubmissa às leis de merca<strong>do</strong>, lampejo de eternidade na<br />

fugacidade <strong>do</strong> brilho passageiro.<br />

Embora necessite de dinheiro para manter seu estilo, o dandy não demonstra<br />

uma relação de dependência com o capital que se configura como um meio para a<br />

realização <strong>do</strong>s seus desejos. Sob tal ótica, preocupações materiais não o afetam, visto<br />

que “recusa as amarras da sociedade burguesa e faz rebrilhar o fulgor aristocrático”<br />

(Catharina, 2005, p. 92), postula<strong>do</strong> que se apresenta em consonância com uma<br />

consideração anotada por Baudelaire (2009, p. 17): “O dandismo é o último rasgo de<br />

heroísmo nas decadências (...)”.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 17<br />

Diante destas concepções, o dandy a<strong>do</strong>ta o estilo artificial, renega a natureza e,<br />

deste mo<strong>do</strong>, rejeita a figura feminina, que sempre é associada à maternidade, à<br />

continuidade da vida, das formas naturais. Abre-se, porém, a exceção às prostitutas e às<br />

lésbicas, conforme registra Menezes (2007, p. 21):<br />

Os corpos que ganham destaques são os corpos que se recusam a<br />

servir, a seguir o modelo dita<strong>do</strong> pela sociedade. São corpos com<br />

autonomia, que se revoltam e atribuem a si próprios novos<br />

papéis.<br />

O dandy é um esteta que se satisfaz com a admiração da beleza<br />

de objetos e pessoas. A beleza para ele é essencial (...).<br />

Já as figuras femininas, a prostituta e a lésbica, representam a<br />

quebra <strong>do</strong>s ideais femininos, até então partilha<strong>do</strong>s pela<br />

sociedade. A mulher <strong>do</strong>na-de-casa, mãe zelosa e obediente ao<br />

mari<strong>do</strong> é completamente ignorada por essas figuras. Nelas, a<br />

vida pulsa e o seu papel de procria<strong>do</strong>ra é recusa<strong>do</strong>.<br />

Faria (2001) dedica artigo à mulher de acor<strong>do</strong> com a concepção baudelairiana<br />

que se expressa, especialmente, no ensaio O pintor da vida moderna, publica<strong>do</strong> pelo<br />

poeta francês. A estudiosa anota que, para Baudelaire, a indumentária e a maquiagem<br />

concediam certa aura divina ao feminino, de tal sorte que esta mulher maquiada, ornada<br />

com finas jóias não guarda qualquer similaridade com a rainha <strong>do</strong> lar, o anjo tutelar<br />

dedica<strong>do</strong> ao mari<strong>do</strong>, aos filhos e à conservação da vida <strong>do</strong>méstica:<br />

a mulher baudelairiana é, sobretu<strong>do</strong>, um astro, uma divindade<br />

(...). A mulher é objeto de admiração e curiosidade mais viva<br />

(...). Mas este ser fascinante e enfeitiça<strong>do</strong>r não se apresenta<br />

apenas conforme a natureza o esculpiu. Baudelaire faz uma<br />

espécie de apologia aos a<strong>do</strong>rnos e maquilagens que compõem a<br />

mulher (Faria, 2001, p. 137).<br />

Afeito à rua, à cobertura jornalística que o levou aos bairros <strong>do</strong> Rio de Janeiro<br />

que, a exemplo de Paris, no início <strong>do</strong> século XX, experimentava o “bota-abaixo”<br />

protagoniza<strong>do</strong> por Pereira Passos, João <strong>do</strong> Rio traz à cena as mulheres que afrontam a<br />

moral católica, o ideário positivista. “O erotismo e perversão simbolizam a perda da<br />

razão e <strong>do</strong> controle, as quais quebram as regras <strong>do</strong> jogo social, apresentan<strong>do</strong>-se como


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ameaça constante à ordem social instaurada, que zela pela manutenção da humanidade”<br />

(Menezes, 2007, p. 57).<br />

O que parece se destacar nos textos <strong>do</strong> autor, contu<strong>do</strong>, não é a mera cópia <strong>do</strong>s<br />

modelos europeus, mas a capacidade de “trazê-los” para a sociedade brasileira e extrair-<br />

lhes o caráter nacional – sim, existiam prostitutas, lésbicas, ladras entre nós, uma<br />

sociedade que sempre atribuíra à mulher o papel de mãe, responsável pelo lar, aquela<br />

que reprimia seus instintos em prol <strong>do</strong> bem-estar familiar.<br />

Ressalte-se que, na maioria <strong>do</strong>s contos, quem introduz este universo é um dandy:<br />

o barão de Belfort, que se compraz em observar a reação <strong>do</strong>s ouvintes as suas histórias.<br />

IV. OS CONTOS<br />

“História de gente alegre” inicia-se sob o signo <strong>do</strong> calor, <strong>do</strong> mormaço, <strong>do</strong>s<br />

instantes de ócio que antecedem o jantar, no terraço de um refina<strong>do</strong> clube:<br />

Eram sete horas. Com o ardente verão ninguém tinha vontade de<br />

jantar. Tomava-se um aperitivo qualquer, embeben<strong>do</strong> os olhos<br />

na beleza confusa das cores <strong>do</strong> ocaso e no banho viride19 de<br />

to<strong>do</strong> aquele verde em de re<strong>do</strong>r (...). E a viração era tão macia,<br />

um cheiro de salsugem polvilhava a atmosfera tão levemente,<br />

que a vontade era de ficar ali muito tempo, sem fazer nada.<br />

(João <strong>do</strong> Rio, s/d, p. 9).<br />

De forma análoga, o ambiente que <strong>do</strong>mina “Duas criaturas”, no hall de um hotel,<br />

lembra o fastio que se instala entre amigos ao final de um almoço. “Estávamos a<br />

almoçar cinco ou seis (...). Nós já tínhamos ri<strong>do</strong> muito e entrávamos com apetite num<br />

vulgaríssimo salmis de coelho (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p. 20). E, nos <strong>do</strong>is casos, a história que<br />

se conta está sob <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> barão de Belfort, o narra<strong>do</strong>r concede-lhe a voz e a<br />

perspectiva atribuída à narração: “barão Belfort, esse velho dandy sempre impecável,<br />

que dizia as coisas mais horrendas com uma perfeita distinção” (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p.20).<br />

A narrativa que se apresenta em “História de gente alegre” traz como<br />

protagonista Elsa d’Aragon: “uma carnação maravilhosa de dezoito anos, lançada havia<br />

apenas um mês por um manager de music hall, cuja especialidade sexual era<br />

desvirginar meninas púberes” (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p. 10). Ao saber da morte de Elsa, o


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barão passa a narrar-lhe a história, comparan<strong>do</strong>-a com as demais meretrizes, cujas vidas<br />

se resumem ao sexo, à bebida, à gargalhada, à falsidade. Em outras palavras, significa<br />

dizer, de acor<strong>do</strong> com a concepção <strong>do</strong> barão de Belfort que a vida destas mulheres se faz<br />

pelo sem senti<strong>do</strong> da existência, pelo exagero que ofusca o sofrimento, a falta de<br />

identidade e de vínculos afetivos.<br />

Elas acordam para o almoço, em que aparecem vários homens<br />

ricos. O almoço é muito em conta, os vinhos são caríssimos. A<br />

obrigação é fazer vir vinhos (...). À noite, o jantar em que é<br />

preciso fazer muito barulho, dançar entre cada serviço ou<br />

mesmo durante, dizer tolices. Depois o passeio aos music-halls,<br />

com os quais tem (sic) contrato as proprietárias, e a obrigação de<br />

ir a um certo clube aquecer o jogo. Cada uma delas têm o seu<br />

cachet por esse serviço e são multadas quan<strong>do</strong> vão a outro —<br />

que, como é de prever, paga a multa (...).Elas ou tomam ópio, ou<br />

cheiram éter, ou se picam com morfina, e ainda assim, nos<br />

paraísos artificiais são muito mais para rir, coitadas ! mais<br />

malucas no manicômio obrigatório da luxúria (João <strong>do</strong> Rio, s/d,<br />

p.11).<br />

Desta forma, o narratário é introduzi<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> da depravação em que, além<br />

da prostituição, existe o jogo de interesses, o lucro que alguns obtêm à custa <strong>do</strong> corpo<br />

de mulheres que renegam às condições propostas pela moral cristã, assim como pelos<br />

ideais positivistas em voga:<br />

Se têm filhos, quan<strong>do</strong> os vão ver fazem tais excessos que<br />

deixam de ser mães, mesmo porque não o são. Duas horas<br />

depois os pequenos estão esqueci<strong>do</strong>s. Se amam, praticam tais<br />

loucuras que deixam de ser amantes, mesmo porque não o são<br />

(...).Uma interessante pequena pode se resumir: nome falso,<br />

crispação de nervos igual à exploração <strong>do</strong>s ‘gigolôs’ e das<br />

proprietárias, mais dinheiro apanha<strong>do</strong> e beijos da<strong>do</strong>s. São<br />

fantoches da loucura movi<strong>do</strong>s por quatro cordelins da miséria<br />

humana (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p. 11).<br />

O que se ressalta em Elsa é a sua beleza e a “nevrose” que a acompanha: uma<br />

evidente insatisfação com o mun<strong>do</strong> que a rodeia e que parece ter si<strong>do</strong> aguçada por uma<br />

correspondência familiar recebida recentemente. Seu esta<strong>do</strong> emocional, segun<strong>do</strong> o<br />

barão, teria si<strong>do</strong> compartilha<strong>do</strong> com ele, na noite anterior – antes que a grande


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excentricidade se consumasse e a morte trágica fosse o final de Elsa. Evidencia-se, nas<br />

palavras daquele que conta a história de Elsa, a falta de alternativas que a acompanha:<br />

um convento ou uma vida honesta – que se supõe corresponda ao casamento de acor<strong>do</strong><br />

com os preceitos <strong>do</strong>minantes - demandariam saudade da ausência de normas, <strong>do</strong><br />

exagero em que prostitutas levam suas vidas.<br />

Sabe-se, então, que Elsa opta pelo excesso, pela extravagância, que fora sugerida<br />

pelo barão, e esta opção é que a condenará:<br />

E apareceu na ceia da pensão como uma louca, a mandar abrir<br />

champanhe por conta própria. Quan<strong>do</strong> por volta de uma hora<br />

apareceu a figura de larva49 da Elisa, deu um pulo da cadeira,<br />

agarrou-lhe o pulso : ‘Vem; tu hoje és minha!’ (...). No fim,<br />

Elsa, pálida e ardente, dizia: ‘Viens, mon cheri, que je te baise!’<br />

e mordia raivosamente o pescoço da Elisa. Via-se a repugnância,<br />

a raiva com que ela fazia a cena de Lesbos (...). Elsa às duas e<br />

meia fez erguer-se a Elisa, calada e misteriosamente fria (...). E<br />

a desaparição foi teatral ainda (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p.12/13).<br />

Neste caso, além da prostituição, a narrativa traz à cena o lesbianismo, o desejo<br />

que Elisa nutre por Elsa, a subversão da condição feminina – aquela que, em<br />

conformidade com os preceitos <strong>do</strong>minantes, deveria dedicar seu amor a um homem,<br />

casar-se, procriar e manter as tradições familiares, opta pelo corpo de outra mulher,<br />

deseja uma que lhe é igual e, desta maneira, contradiz a ordem dita natural <strong>do</strong>s fatos.<br />

Elisa, pois, ao la<strong>do</strong> de Elsa, se faz protagonista <strong>do</strong> conto: se a coccote escolheu uma<br />

vida de depravação, de orgias em que as festas, os saraus, os concertos eram o<br />

divertimento que, em contrapartida, exigia-lhe o corpo e a alma, Elisa escolheu o<br />

mun<strong>do</strong> sombrio, da subserviência. No entanto, Elisa segue seus valores, entrega-se aos<br />

seus desejos e sonda, acompanha, observa, aguarda em silêncio: “É feia, não deve<br />

agradar aos homens, mas presta-se a to<strong>do</strong>s os pequenos serviços (...) e dizem-na com<br />

to<strong>do</strong>s os vícios, desde o abuso <strong>do</strong> éter até o unisexualismo.” (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p. 11).<br />

As duas criaturas, ao final, encontrarão o vazio: Elsa, a morte; Elisa, a loucura.<br />

Uma nota, porém, as distancia: Elsa morre jovem, admirada; Elisa enlouquece na<br />

penumbra que parece ter si<strong>do</strong> a própria vida. Entretanto, ainda há mais a ser recomposto<br />

na história delas. Para Elsa, a noite e os salões; para Elisa, o dia e as pequenas


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atribuições rotineiras, cotidianas. Para Elsa, o ócio, a falta de um trabalho que lhe<br />

envolvesse e que lhe permitisse transpor a superficialidade da vida a que se entregara;<br />

para Elisa, o trabalho miú<strong>do</strong>, a satisfação <strong>do</strong> interesse, <strong>do</strong> desejo alheio. Para ambas, o<br />

excesso, o vício – vidas levadas ao extremo em que a banalidade cede espaço para a<br />

voracidade <strong>do</strong> desejo, da extravagância que o sexo, mero instinto, pode promover.<br />

Se especialmente Elsa aparece associada ao frescor da juventude, aos excessos<br />

da vida noturna, às excentricidades, em que pulsam, portanto, o desejo, o calor da carne,<br />

que se associa ao verão, a Chilena, <strong>do</strong> conto “Duas criaturas” é figura de inverno,<br />

daquela estação que, conforme o barão, possibilita o ressurgir de criaturas com passa<strong>do</strong><br />

duvi<strong>do</strong>so a exigir o respeito, a consideração <strong>do</strong> meio social.<br />

No entanto, o apeli<strong>do</strong> que recebe, “Chilena”, guarda também a sua significação<br />

picante. Esporas colocadas na bota, arrastan<strong>do</strong> ao chão, denotam a virilidade masculina<br />

e a “Chilena” traz consigo o desejo da saciedade da carne que vibra, que se manifesta.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, é inegável que se as esporas arrastam ao chão, a “Chilena” também<br />

transita à margem da terra, em um substrato inferior se comparada às damas da Corte –<br />

senhoras preparadas para o casamento -, enquanto ela provoca o arrepio <strong>do</strong>s homens, as<br />

lembranças de histórias picantes e uma vida aparentemente regular com um mari<strong>do</strong> que<br />

parece apenas destina<strong>do</strong> a satisfazer-lhe os desejos <strong>do</strong>s adereços, das roupas, da<br />

maquiagem, <strong>do</strong> poder.<br />

Vocês conhecem a história das chilenas, três lindas criaturas da<br />

fronteira que se diziam chilenas por picante e a que os riograndenses<br />

chamavam chilenas como lembrança de certos<br />

estribos em que os pés ficam à vontade e toda a gente pode usar.<br />

Elas tinham topete, beleza, audácia. Para ser o vício arrasa<strong>do</strong>r<br />

não precisava muito outrora no Rio. Chegaram e logo a fama<br />

irradiou. De um dia para outro, os fazendeiros ricos sentiram a<br />

necessidade de dar-lhes palácios, os banqueiros ofereceram-lhes<br />

as carteiras, os amorosos sem vintém prometeram vigor e<br />

paixão. As gaúchas ardentes, ardentes mesmo demais, faziam<br />

grandes loucuras sensuais, mas prestavam atenção ao futuro. Há<br />

mulheres que podem se entregar com frenesi a vida inteira sem<br />

conseguirem ser prostitutas Elas tinham o frenesi (João <strong>do</strong> Rio,<br />

s/d, p. 21).


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Em seguida, contu<strong>do</strong>, o narra<strong>do</strong>r encarrega-se de traçar os destinos das três<br />

irmãs e atenta para os casamentos realiza<strong>do</strong>s por Luiza e Natália. Maria, a Chilena,<br />

porém, envolveu-se com um fazendeiro <strong>do</strong> norte – grande produtor e comerciante de<br />

borracha. Diferente de Elsa, cuja “nevrose” levou-a à morte, Maria parece manobrar,<br />

comprazer-se na arte da sedução e da humilhação. Mais <strong>do</strong> que se prostituir, seu desejo<br />

parece ser a posse <strong>do</strong>s homens, a resignação deles diante <strong>do</strong> seu corpo.<br />

Elsa parece sucumbir também pela pouca idade, pela falta de experiência no<br />

manejo da profissão a que se dedicara, Maria, por seu turno, demonstra gozar de força e<br />

atributos que lhe permitem administrar uma vida de prostituição e, em seguida, de<br />

adultério. Sua sagacidade, sua capacidade de sedução conseguem trair as evidências,<br />

fazen<strong>do</strong> com que o mari<strong>do</strong>, mesmo diante das provas concretas <strong>do</strong>s casos extra-<br />

conjugais da esposa, ainda se perfile diante dela e implore o seu amor. Azeve<strong>do</strong>, o<br />

mari<strong>do</strong> ama sua mulher; Maria ama os bens, as oportunidades que ele lhe confere. Desta<br />

forma, para Maria muito mais <strong>do</strong> que para Elsa, a negociação que envolve o próprio<br />

corpo para propiciar prazer ao outro é precedida de reflexão, de um elaborar <strong>do</strong>s<br />

propósitos que o fato lhe concederá. E é assim que ela adentra o hotel, em que encontra<br />

o barão: uma senhora respeitável, ou melhor, uma senhora que exige respeito por sua<br />

condição econômica, mas que guarda um passa<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong>, em que a prostituição foi<br />

o caminho escolhi<strong>do</strong>: “Maria é a alma envenenada, agrilhoada a um corpo que detesta,<br />

desejan<strong>do</strong>, no desequilíbrio de carne a tropa <strong>do</strong>s homens, desejan<strong>do</strong>, no desequilíbrio de<br />

moral, a posição e o respeito” (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p. 23).<br />

Neste conto, o adultério da mulher é nega<strong>do</strong> pelo amor <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>; as<br />

excentricidades da mulher são vencidas pelo poder econômico <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e, neste caso,<br />

a sociedade constituída passa a aceitá-la em seu convívio. É inegável que a<br />

dissimulação, o poder de barganha que é feita através <strong>do</strong> próprio corpo são trunfos de<br />

Maria e que ela usa, racionalmente: “Cale-se, Azeve<strong>do</strong>! O senhor é um ingrato! Nunca<br />

mais serei sua! Desconfiar de mim. Só se me der uma grande prova de confiança, o seu<br />

nome, a sua mão...” (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p. 22), subverten<strong>do</strong> a situação em que fora<br />

flagrada em delito de traição.<br />

O que se observa, contu<strong>do</strong>, é que esta mulher sedenta de prazer, em que a<br />

necessidade sexual encontra equivalência no desejo de humilhar, não parece ter filhos e


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 23<br />

opta por um cão: “um cachorrinho branco de neve, de um focinho impertinente” (João<br />

<strong>do</strong> Rio, s/d, p. 20), em que o branco remete à pureza e o focinho ao lugar indeseja<strong>do</strong> que<br />

ela ocupa no meio social a que se vincula- impertinência. Casada, rica, Maria não faz<br />

parte daquele grupo, sua condição – prostituta e, posteriormente, adúltera – segrega-a,<br />

separa-a <strong>do</strong> rol das famílias, fundadas nos costumes, no respeito às tradições e é, desta<br />

forma, que ela também incorpora a vingança: a vingança da mulher, outrora prostituta e,<br />

agora, adúltera, que deve ser aceita no meio daquela sociedade, cujos valores morais<br />

parecem decair.<br />

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

João <strong>do</strong> Rio, cronista conheci<strong>do</strong> na sociedade carioca <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX,<br />

apaixona<strong>do</strong> pelas ruas, pelo jornalismo investigativo, cria, em Dentro da noite, um<br />

conjunto de narrativas que seduzem o leitor: seus contos destoam daquela literatura que<br />

se costumou denominar Pré-modernista e que desejava salientar o desenvolvimento<br />

urbano <strong>do</strong> país contrapon<strong>do</strong>-o ao atraso rural. As personagens de João <strong>do</strong> Rio destoam –<br />

e, neste caso, parecem seguir uma linha semelhante àquela a<strong>do</strong>tada nas narrativas de<br />

Lima Barreto, em que aparecem mulatos e que, portanto, a representação de uma<br />

sociedade branca, moralista perde espaço – traz à cena o mun<strong>do</strong> de um extrato superior<br />

da sociedade: prostitutas de luxo, mulheres que acompanham homens prósperos em<br />

cafés, saraus, apresentações teatrais. Suas narrativas, no entanto, denotam o universo<br />

que se esconde nestas mulheres e, a partir delas, demarcam a decadência <strong>do</strong>s costumes<br />

burgueses. Representar a jovem Elsa, ao natural – sem maquiagem, rosto limpo - que<br />

sucumbe ao meio deprava<strong>do</strong> em que vive, é ilustrar a distância que se faz entre o meio<br />

natural e a sociedade das aparências e, de outro mo<strong>do</strong>, atentar para a desagregação<br />

familiar (que motivos levam Elsa à prostituição? Que valores nortearam a sua vida?<br />

Qual o conteú<strong>do</strong> da correspondência familiar que recebera?).<br />

Ademais, o caso de Maria de Azeve<strong>do</strong>, a Chilena, parece paradigmático: a<br />

sociedade patriarcal, moralista, fundada nos ideais cristãos acaba por aceitar, em razão<br />

<strong>do</strong> poder econômico, uma ex-prostituta, uma adúltera. Será que, em nome <strong>do</strong><br />

casamento, o passa<strong>do</strong> dela se perdeu? Quais são os assuntos, quais os meios que ela se


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 24<br />

valeria para “conviver” com as damas da capital federal? Decadência e hipocrisia se<br />

mesclam em sua entrada no hall <strong>do</strong> hotel; desfaçatez, dissimulação e ironia incorporam-<br />

na ao sentar-se à mesa:<br />

Ela, sob a luz opalisada das cortinas brancas, sorria, um sorriso<br />

misto de inexprimível ironia e de vaga satisfação, enquanto os<br />

seus olhos pousavam, como uma perturba<strong>do</strong>ra carícia, na mesa<br />

em que Alberto Guerra continuava a almoçar (João <strong>do</strong> Rio, s/d,<br />

p.24).<br />

No caso <strong>do</strong> conto “Duas criaturas”, uma nota merece registro: a decadência de<br />

valores não se operava apenas no Rio de Janeiro, a capital da recente República, posto<br />

que as irmãs Chilenas eram oriundas <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul e Azeve<strong>do</strong> mantinha<br />

negócios em Belém <strong>do</strong> Pará. O que parece possível afirmar é que a capital <strong>do</strong> país<br />

canalizava as transformações que ofuscavam o mun<strong>do</strong> burguês porque seu contato com<br />

o universo europeu era mais íntimo, mais próximo <strong>do</strong> que nos esta<strong>do</strong>s mais distantes.<br />

Por fim, parece lícito ponderar que a diferença, comportamento diverso daquele<br />

espera<strong>do</strong> pelo meio social é que impinge a morte a Elsa e a Elisa. Em outras palavras<br />

significa dizer que, em uma sociedade em que a moral e os costumes determinavam o<br />

casamento, os vínculos familiares, a conservação das tradições, das crenças que movem<br />

cada família, o seu lega<strong>do</strong> só poderia ser a morte ou a loucura. Elas não poderiam viver<br />

em paz no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo diverso, pelo oposto daquilo que lhes foi permiti<strong>do</strong>.<br />

A sociedade em que se assenta a narrativa, que envolve as duas mulheres que<br />

viveram em uma pensão <strong>do</strong> Catete, está presa aos valores que fundaram a vivência<br />

feminina no Brasil: se elas não casam, se elas não procriam, se elas não se configuram<br />

como a base sólida da família, seus corpos merecem o sacrifício, aquele mesmo<br />

sacrifício que a Inquisição impusera às bruxas. Seu espaço na sociedade patriarcal<br />

brasileira não é garanti<strong>do</strong>, a <strong>do</strong>ença, a pele que envelhece, os excessos determinariam o<br />

apagamento de Elsa e ela seria apenas uma velha, sem passa<strong>do</strong>, sem parentescos,<br />

vencida pelo vício. Elisa, por sua vez, não encontra resposta aos seus desejos, afinal,<br />

eles traem a proposição bíblica, segun<strong>do</strong> a qual o ser humano deve crescer e multiplicar-<br />

se sobre a terra, um “corpo seco, uma árvore que não gera frutos” não merece criar<br />

galhos, abrir espaços. Entretanto, Elsas e Elisas habitavam, habitaram, viveram enfim


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 25<br />

no Rio de Janeiro em que João <strong>do</strong> Rio produziu as suas obras. Ainda que firmemente<br />

arraigada na tradição cristã e positivista, a sociedade carioca (e/ou brasileira) viu<br />

crescer, difundir-se o mo<strong>do</strong> de vida de outras mulheres – que negaram a maternidade,<br />

que negaram o casamento – que se fez ao la<strong>do</strong> daquelas afeitas ao cumprimento <strong>do</strong>s<br />

costumes <strong>do</strong>gmáticos. E, nesta dualidade, faz-se a representação da decadência daquela<br />

sociedade: rejeitar o que brota no seu seio, dentro de si, renegar as verdades, a realidade<br />

que se faz presente e cultuar uma aparência, em que a liberdade de escolha em relação<br />

ao próprio corpo é subtraída, porque a escolha é negada; em que os valores sociais não<br />

são aqueles prega<strong>do</strong>s, mas aqueles vivi<strong>do</strong>s nos espaços públicos por homens que, em<br />

casa, pareciam não encontrar a satisfação carnal, parecen<strong>do</strong>, pois, corporificar um<br />

ambiente que sucumbe para que outro possa nascer.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, o conto “Duas criaturas” é exemplar. Ainda que as duas criaturas<br />

sejam Azeve<strong>do</strong> e Maria, a própria Maria traz em si duas criaturas: a criatura que deseja,<br />

que busca prazer e a criatura que se quer aceita socialmente: eis a dualidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

representa<strong>do</strong> no conto – uma sociedade que oscila entre o velho e o novo, entre a moral<br />

<strong>do</strong>gmática e a liberdade, enfim um mun<strong>do</strong> em que um modelo decadente parece ceder<br />

espaço.<br />

De outra forma, em qualquer <strong>do</strong>s contos, é preciso afrontar a sociedade<br />

burguesa, evidenciar-lhe a degradação, a incapacidade de lidar com a diferença. Neste<br />

aspecto, através das histórias que recupera, o dandy Belfort mostra o fastio diante <strong>do</strong>s<br />

quadros <strong>do</strong>minantes. Para ele, parece não haver saída conforme demonstra na<br />

observação que dirige a Elsa: “Ou então, minha cara, um grande excesso: champanhe,<br />

éter ou morfina...” (João <strong>do</strong> Rio, s/d, p. 12), que, de certa forma, legitima as ações<br />

representadas nos contos: a normalidade, a vida padrão – cuja tradição se consolida no<br />

casamento – está corroída, esvaziada, o excesso conforma-se como a alternativa.<br />

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CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 26<br />

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MENEZES, Juliana de Oliveira. A importância <strong>do</strong> corpo feminino nos contos de João<br />

<strong>do</strong> Rio. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. Dissertação (Mestra<strong>do</strong> em Letras), Curso de<br />

Pós-graduação em Letras, Universidade Federal <strong>do</strong> Rio de Janeiro 2007.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 27<br />

ARIANO SUASSUNA E O DIÁLOGO INTERTEXTUAL<br />

COM SEUS PARADIGMAS<br />

Márcia Maria de Melo Araújo ∗<br />

RESUMO: Este trabalho objetiva investigar a composição da comédia O santo e a porca, de Ariano<br />

Suassuna, e a maneira como ele utiliza o processo de recriação poética denomina<strong>do</strong> imitatio, para<br />

promover o diálogo intertextual com seus paradigmas. Uma das principais características da literatura<br />

clássica é ter como princípio de criação poética a apropriação intencional de textos precedentes, sejam<br />

eles muito anteriores ou da mesma época <strong>do</strong>s que os toma como matéria exemplar. Ao compor sob esse<br />

princípio, Ariano Suassuna faz reconhecer seus predecessores e a tradição à qual se filia, empregan<strong>do</strong><br />

fórmulas e técnicas que caracterizam o gênero da obra e toman<strong>do</strong> por empréstimo textos ou partes deles,<br />

temas e conteú<strong>do</strong>s conheci<strong>do</strong>s de um determina<strong>do</strong> público, reproduzi<strong>do</strong>s em um novo arranjo e em um<br />

novo contexto. Pensan<strong>do</strong> no jogo intertextual, o processo de criação poética e toda uma literatura<br />

começam a ser construí<strong>do</strong>s com base na apropriação intencional de textos e o jogo se transforma numa<br />

arte que regula e estabelece critérios para a composição literária. Como resulta<strong>do</strong>, essa apropriação<br />

permite ao escritor imprimir sutilezas em seu fazer artístico-literário, ao passo que o texto literário tornase<br />

crítico de si mesmo, evidencian<strong>do</strong> com mais clareza a consciência cria<strong>do</strong>ra, propon<strong>do</strong>-se aprofundar no<br />

universo de significações de suas peças teatrais.<br />

Palavras-chave: diálogo intertextual, Ariano Suassuna, literatura, intertextualidade.<br />

Ariano Suassuna and intertextual dialogue with their paradigms<br />

ABSTRACT: This study aims to investigate the composition of the comedy O santo e a porca by Ariano<br />

Suassuna, and the way he uses the rebuilding process called poetic imitatio, to promote the intertextual<br />

dialogue with their paradigms. One of the main features of classical literature is to have as a principle of<br />

poetic creation intentional appropriation of the earlier versions, they are much earlier or the same time<br />

that it takes as raw copy. When composing under this principle, Ariano Suassuna <strong>do</strong>es acknowledge his<br />

predecessors and the tradition to which he belongs, using formulas and techniques that characterize the<br />

genre of the work and borrowing from texts or parts thereof, known issues and content of a given<br />

audience, played in a new arrangement and a new context. Thinking about the intertextual game, the<br />

process of poetic creation and an entire literature began to be built based on the intentional appropriation<br />

of texts and the game becomes an art that regulates and sets out criteria for literary composition. As a<br />

result, this settlement allows the writer to print to subtleties in his artistic and literary, while the literary<br />

text is critical of himself, showing more clearly the creative consciousness, proposing to deepen the<br />

universe of meanings of its parts theater.<br />

Keywords: intertextual dialogue, Ariano Suassuna, literature, intertextuality.<br />

INTRODUÇÃO<br />

∗ Aluna <strong>do</strong> Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás,<br />

professora de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Goiás e mestra em Literatura<br />

Brasileira pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. marcimelo@gmail.com.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 28<br />

O objeto deste trabalho é a intertextualidade ou o diálogo intertextual<br />

promovi<strong>do</strong> entre autor, leitor e obra literária. Face a essa concepção, somamos a este<br />

trabalho a tentativa de compreensão da linguagem literária, como texto que dialoga com<br />

outros textos e, ao mesmo tempo, ecoa as vozes de seu tempo e as que o antecedem.<br />

Evidenciamos, por meio das relações transtextuais, que o texto literário<br />

projeta-se em outros textos, eternizan<strong>do</strong> e dan<strong>do</strong> novas feições aos mitos e às<br />

experiências humanas. Desse mo<strong>do</strong>, um texto pode repetir-se em alusões, epígrafes,<br />

citações, paráfrases, plágios, paródias e traduções (GENETTE, 1982, p. 8). Assim<br />

delimitamos o escopo desta pesquisa na superposição de um texto sobre outro e como<br />

ele pode provocar certa atualização ou modernização <strong>do</strong> primeiro texto. Notamos isso<br />

no livro O santo e a porca, de Ariano Suassuna, que retoma, por exemplo, a Comédia<br />

<strong>do</strong> pote, de Plauto, promoven<strong>do</strong> um diálogo entre os <strong>do</strong>is textos e sobre discorremos no<br />

tópico a seguir em que analisamos a citada obra <strong>do</strong> comediógrafo brasileiro.<br />

INTERTEXTOS E PARADIGMAS LITERÁRIOS<br />

Nasci<strong>do</strong> na Paraíba, mas radica<strong>do</strong> em Pernambuco, onde vive atualmente,<br />

Ariano Suassuna transfere para sua obra marcas da regionalidade nordestina, explicitada<br />

na fala e no perfil das suas personagens. Geralmente, cada personagem traz atributos<br />

pessoais indica<strong>do</strong>res de sua classe social ou da função que exerce na comunidade que<br />

representa. Em O santo e a porca, temos Euricão Árabe, Eu<strong>do</strong>ro Vicente, Caroba,<br />

Margarida, Dodó, Pinhão e Benona, nomes cujos significa<strong>do</strong>s, na maioria das vezes,<br />

estão amalgama<strong>do</strong>s com as qualidades ou defeitos de seus respectivos <strong>do</strong>nos. O autor<br />

pertence a uma vertente da literatura moderna que constrói suas histórias e personagens<br />

ancora<strong>do</strong>s na tradição clássica e na cultura popular, haja vista o méto<strong>do</strong> de composição<br />

das comédias de Ariano Suassuna e a maneira como ele utiliza o processo de recriação<br />

poética, denomina<strong>do</strong> imitatio, para promover o diálogo intertextual com seus<br />

paradigmas.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 29<br />

Ao compor esse tipo de obra, o autor insere-se numa tradição poética que<br />

aceita e pressupõe a alusão a textos precedentes em que as relações entre obras se dão<br />

de maneira consciente e técnica. Desta maneira, a obra de imitação resulta da<br />

reelaboração criativa de modelos.<br />

Saben<strong>do</strong> que esse tipo de literatura implica textos precedentes de alguma<br />

forma evoca<strong>do</strong>s, isto é, que da literatura imitativa resultam intertextos que pressupõem<br />

paradigmas literários e que o valor dessas obras reside no reconhecimento pelo leitor<br />

<strong>do</strong>s textos que lhe serviram de base, entra aqui a originalidade de Ariano Suassuna:<br />

levar ao público a oportunidade de contato com uma obra que se inspira na tradição<br />

popular e também em raízes da cultura erudita que remontam à Antiguidade clássica.<br />

Ao subintitular sua peça como uma imitação de Plauto, sem indicar quais<br />

das obras <strong>do</strong> autor latino, portan<strong>do</strong> de forma implícita, Ariano Suassuna abre para a<br />

possibilidade de outras leituras e para a apreensão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s que o jogo intertextual,<br />

por ele pratica<strong>do</strong>, possa promover. Esse esta<strong>do</strong> implícito <strong>do</strong> intertexto é estuda<strong>do</strong> por<br />

Michael Rifaterre, que define a intertextualidade como mecanismo próprio à leitura<br />

literária. Segun<strong>do</strong> esse autor, o intertexto é a percepção, pelo leitor, de relações entre<br />

uma obra e outras que a precederam ou a sucederam. Este processo de leitura, durante o<br />

qual a interpretação, a descoberta <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> de fato <strong>do</strong> texto literário ou <strong>do</strong> seu foco<br />

real de interesse, a descoberta <strong>do</strong> que sua forma, imagens ou história disfarçam – a<br />

descoberta, enfim, de seu simbolismo, <strong>do</strong> fato que aquilo que é dito na superfície <strong>do</strong><br />

texto, é apenas uma cifra para uma significância escondida no intertexto.<br />

Nosso interesse, para este trabalho, reside principalmente na caracterização<br />

da comédia clássica recriada por Ariano Suassuna, que nos aponta seus paradigmas<br />

literários, seus méto<strong>do</strong>s de composição e os processos de imitação leva<strong>do</strong>s a efeito em<br />

seus textos, ten<strong>do</strong> em mente que a criação “em segun<strong>do</strong> grau” é sempre uma<br />

reelaboração criativa de seus modelos.<br />

A principal característica da literatura clássica – tanto a da Antiguidade<br />

Clássica quanto a <strong>do</strong> Classicismo – é ter como princípio de criação poética a<br />

apropriação intencional de textos precedentes, sejam eles muito anteriores ou da mesma<br />

época <strong>do</strong>s que os toma como matéria exemplar.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 30<br />

A imitação ou o jogo alusivo pressupõe que o leitor ou ouvinte seja capaz de<br />

reconhecer as alusões e de estabelecer relação entre os textos evoca<strong>do</strong>s e o texto<br />

recria<strong>do</strong>, ou esse jogo não cria nenhum senti<strong>do</strong> para além <strong>do</strong> da própria fábula. O prazer<br />

<strong>do</strong> reconhecimento, ao qual Aristóteles (1997) se refere na Poética, é algo para poucos<br />

no caso de textos repletos de intertextos, de alusões que não produziriam senti<strong>do</strong> e<br />

prazer algum se não pudessem ser reconheci<strong>do</strong>s. Logo, o teatro clássico é dirigi<strong>do</strong> a um<br />

público <strong>do</strong>uto, restrito a poucos. No entanto, lembramos aqui que o autor que compõe<br />

sob esse princípio faz reconhecer seus predecessores e a tradição à qual se filia,<br />

empregan<strong>do</strong> fórmulas e técnicas que caracteriza o gênero da obra e toman<strong>do</strong> por<br />

empréstimo textos ou partes deles, temas e conteú<strong>do</strong>s conheci<strong>do</strong>s de um determina<strong>do</strong><br />

público, que serão reproduzi<strong>do</strong>s em um novo arranjo e em um novo contexto, num<br />

processo de recriação literária a que os antigos romanos denominaram imitatio e ao qual<br />

nos referimos na obra de Ariano Suassuna.<br />

A nosso ver, a imitatio é um processo de criação de uma literatura “em<br />

segun<strong>do</strong> grau”, diferente de mímeses, termo correspondente a imitatio em grego, que<br />

designa, a princípio, a relação entre as artes e o mun<strong>do</strong>. A rigor, estamos falan<strong>do</strong> da<br />

relação mimética que se estabelece entre uma obra literária e outra(s) obra(s). Assim,<br />

pensan<strong>do</strong> no jogo intertextual que a imitatio promove, o processo de criação poética e<br />

toda uma literatura começam a ser construí<strong>do</strong>s com base na apropriação intencional de<br />

textos e o jogo se transforma numa arte que regula e estabelece critérios para a<br />

composição literária. Além disso, essa apropriação permite ao escritor imprimir<br />

sutilezas em seu fazer literário.<br />

E é deste mo<strong>do</strong> que Ariano Suassuna propõe ao leitor ou público especta<strong>do</strong>r<br />

aprofundar-se no universo de significações de suas peças teatrais. A estrutura <strong>do</strong>s autos<br />

de Ariano Suassuna está associada à semelhança com escritores e comediógrafos<br />

clássicos entre os quais destacamos Plauto (254-184 a.C.). Este comediógrafo de<br />

influência grega e estilo romano também recorre à apropriação e atualização de textos<br />

precedentes, remeten<strong>do</strong>-os para a realidade de sua época e inserin<strong>do</strong>-lhes elementos<br />

novos da farsa popular romana.<br />

Suassuna serve-se de semelhante procedimento para atualizar os textos de<br />

Plauto e o faz de forma irreverente, pauta<strong>do</strong> em elementos cômicos. O próprio autor


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 31<br />

subintitula sua peça de uma “Imitação nordestina de Plauto”, ao se referir a esse<br />

comediógrafo e nos levar a relacionar O santo e a porca à Comédia <strong>do</strong> pote, <strong>do</strong> autor<br />

latino. Esta comédia também inspirou Molière a escrever O avarento, no século XVII.<br />

Essas são algumas pistas textuais e formas de intertextualidade, de que<br />

Ariano Suassuna recorre em sua releitura da tradição. Aspecto que contribui para a<br />

leitura de O santo e a porca é o diálogo que esta peça mantém com temas e episódios<br />

aborda<strong>do</strong>s em outras obras <strong>do</strong> próprio escritor e também de outros autores como<br />

Molière e Shakespeare.<br />

A respeito disso, Julia Kristeva (1978) indica o processo de leitura como um<br />

ato de colher, de tomar, de reconhecer traços e que o leitor passa a ter uma participação<br />

agressiva, ativa, de apropriação. A autora retoma a ideia de diálogo linguístico, onde um<br />

texto remete a outros textos, permitin<strong>do</strong> uma nova forma de ser, ao elaborar sua própria<br />

significação: “to<strong>do</strong> texto se constrói como mosaico de citações, to<strong>do</strong> texto é absorção e<br />

transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a<br />

de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (KRISTEVA,<br />

1978, p. 64).<br />

Em outras palavras, a linguagem literária se estabelece como diálogo e se<br />

orienta em duas vertentes: para o ato de reminiscência, ao evocar uma outra escritura, e<br />

para o ato de intimação, ao transformar essa escritura, como podemos analisar nos<br />

textos de Ariano Suassuna.<br />

Em O auto da Compadecida temos o episódio em que João Grilo apresenta<br />

Chicó ao pai de Rosinha como <strong>do</strong>utor e homem rico merece<strong>do</strong>r da mão de sua filha. O<br />

coronel o faz assinar uma promissória e caso não fosse resgatada, Chicó perderia o<br />

couro, ou seja, a pele dele seria dada como pagamento, tal como acontece em O<br />

merca<strong>do</strong>r de Veneza, de Shakespeare.<br />

Vera Maria Tietzmann Silva (2007, p. 3) sugere que O santo e a porca<br />

pertence à segunda fase de produção literária de Ariano Suassuna, escrita <strong>do</strong>is anos<br />

depois <strong>do</strong> Auto da Compadecida. Segun<strong>do</strong> a autora, “o parentesco perceptível entre<br />

essas duas peças motivou roteirista e diretor da produção cinematográfica recentemente<br />

realizada (a partir de minissérie produzida pela TV Globo) a reunir elementos das duas<br />

tramas”. De acor<strong>do</strong> com Silva (2007), esse recurso, conheci<strong>do</strong> como processo de


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 32<br />

“contaminação”, já era utiliza<strong>do</strong> na Antiguidade, nas peças teatrais <strong>do</strong> poeta romano<br />

Terêncio.<br />

Quis Ariano Suassuna, transcorrer a ação da peça O santo e a porca em um<br />

espaço de raízes fincadas na realidade brasileira, característico da região nordestina,<br />

mas que poderia ser qualquer outro espaço situa<strong>do</strong> no Brasil. Corroboran<strong>do</strong> a idéia de<br />

levar o teatro ao povo, mesmo ten<strong>do</strong> de economizar cenários, é na casa de Euricão<br />

Engole-Cobra, um estrangeiro, que ocorrem as cenas. Segun<strong>do</strong> Silva (2007, p. 2),<br />

[e]m primeiro lugar, vemos tratar-se de um espaço interior, e isso é<br />

significativo. A ação não transcorre numa praça ou em outro espaço<br />

externo qualquer, mas o cenário é a sala da casa <strong>do</strong> protagonista, o<br />

avarento Euricão. É uma peça <strong>do</strong>tada de diversas portas e janelas e<br />

que dispõe, ainda, de um acesso a uma espécie de porão, um<br />

“socavão sob a escada”, como informa a notação cênica da página<br />

74. É nesse lugar secreto que Euricão esconde a porca de madeira,<br />

seu cofre cheio de dinheiro, em algumas passagens da peça.<br />

Diversas portas e janelas parecem facilitar o movimento das personagens e<br />

os conflitos e confusões que vão sen<strong>do</strong> gera<strong>do</strong>s. Tal recurso era muito usa<strong>do</strong> nas<br />

comédias clássicas, onde o cenário é de grande relevância para se obter agilidade na<br />

movimentação das personagens. Segun<strong>do</strong> Margot Berthold (2001), em sua História<br />

mundial <strong>do</strong> teatro, nas comédias antigas, tanto gregas quanto latinas, as casas –<br />

representadas por portas – dão frente para uma praça onde toda a ação se desenrola.<br />

Havia várias portas para facilitar a entrada e saída das personagens e também serviam<br />

como subterfúgio para explicar essas entradas ou saídas. Tais aparições seriam<br />

inverossímeis sem esse artifício, além de prejudicar o desenvolvimento mais rápi<strong>do</strong> da<br />

ação.<br />

Quanto a O santo e a porca, a ação é rápida, com muitos conflitos e<br />

enganos, seguin<strong>do</strong> o paradigma plautino. Ariano Suassuna parte de um tema comum em<br />

comédias (a avareza), recria um ambiente onde to<strong>do</strong>s circulam com facilidade, e podem<br />

ser vistos pelo público mesmo entre correrias e confusões.<br />

Em simetria aos elementos da comédia clássica, em O santo e a porca<br />

temos o motivo da jovem oferecida a um homem mais velho e bem estabeleci<strong>do</strong> na<br />

vida, mas está apaixonada por um jovem que lhe corresponde a paixão. Porém, há um


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 33<br />

impedimento que torna a relação entre os <strong>do</strong>is jovens impossível; temos também o<br />

motivo <strong>do</strong> rapaz que precisa conseguir dinheiro para comprar a escrava por quem está<br />

apaixona<strong>do</strong>. No primeiro motivo, Margarida é cortejada por Eu<strong>do</strong>ro Vicente, mas está<br />

apaixonada por Dodó, filho de Eu<strong>do</strong>ro. No segun<strong>do</strong>, Pinhão precisa de dinheiro para se<br />

casar com Caroba, empregada de Euricão.<br />

Nas comédias antigas, em meio a essas situações, entram em cena os<br />

escravos, os parasitas ou os alcoviteiros. São eles que movem o enre<strong>do</strong>, criam situações<br />

cômicas e tomam a iniciativa, inventan<strong>do</strong> mentiras para ludibriar os velhos patrões em<br />

favor de seus jovens senhores. Os escravos, por exemplo, em geral, estão a serviço <strong>do</strong><br />

filho da casa, são mentirosos, maledicentes, inconvenientes, fingi<strong>do</strong>s e fofoqueiros. A<br />

versão feminina deste tipo costumava ter um papel secundário, quan<strong>do</strong> não somente de<br />

figuração na comédia. Inferimos que Ariano Suassuna atualiza o papel <strong>do</strong>s escravos,<br />

colocan<strong>do</strong> Caroba e Pinhão, ambos emprega<strong>do</strong>s, no mesmo nível de outras personagens.<br />

Para armar situações inusitadas e estapafúrdias, o autor dá importância à personagem<br />

Caroba, que movimenta o enre<strong>do</strong>. Além disso, a fala de Euricão, no final da peça,<br />

reforça esse tipo: “Adeus, escravos. Saiam, saiam to<strong>do</strong>s, escravos!” (SUASSUNA,<br />

2002, p. 152). E ao apontar os homens como escravos, Ariano Suassuna os leva a<br />

refletir sobre a cegueira, as distrações e divertimentos, a covardia e tu<strong>do</strong> que os ajuda a<br />

tornar suportável o seu cotidiano.<br />

Quanto aos nomes da<strong>do</strong>s às personagens, Ariano Suassuna mantém um<br />

artifício <strong>do</strong>s antigos, que é toma<strong>do</strong> de Plauto: o nome das personagens como chave para<br />

o seu caráter. Assim, recorremos a Silva (2007) que afirma:<br />

O próprio Ariano informa ser o seu protagonista inspira<strong>do</strong> no de<br />

Plauto, cujo nome é semelhante (Euclião/Euricão).<br />

O rico pretendente à mão de sua filha chama-se Eu<strong>do</strong>ro Vicente. Os<br />

nomes de ambos iniciam com o prefixo grego “eu”, que significa<br />

bom, ou feliz. O que é bom para eles, o que lhes dá felicidade? É ser<br />

rico (eu + ricão), é ter ouro (eu + d´oro). Além disso, o rico Eu<strong>do</strong>ro é<br />

também Vicente, ou seja, o que está vencen<strong>do</strong>, e isso sugere<br />

obliquamente sua superioridade sobre Euricão. A par dessa ligação<br />

morfo-semântica entre os seus nomes, outro vínculo se estabelece<br />

entre esse segun<strong>do</strong> personagem e seu equivalente em Plauto: o nome<br />

Eu<strong>do</strong>ro faz eco ao de Mega<strong>do</strong>ro.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 34<br />

Na nota introdutória à peça, Ariano Suassuna declara que detesta os<br />

símbolos (v. Suassuna, 1005, p. 24), mas, mesmo sem querer, acabou<br />

se valen<strong>do</strong> de algumas alusões de natureza simbólica. É, por exemplo,<br />

o caso da escolha <strong>do</strong> nome de Margarida para a filha de Euricão.<br />

No processo de regionalização <strong>do</strong> texto, seria mais natural que ela se<br />

chamasse Severina, Sebastiana ou Raimunda, nomes tipicamente<br />

nordestinos. Margarida remete à heroína <strong>do</strong> Fausto, de Goethe 6 . Em<br />

latim, margarita significava pérola e, coincidência ou não, uma<br />

conhecida fábula latina falava de como era um desperdício lançar<br />

“pérolas aos porcos” (Grifo meu).<br />

Da comédia de Plauto, temos também o motivo <strong>do</strong>s homens apaixona<strong>do</strong>s e<br />

em disputa pelo amor de uma mesma mulher. Claro que em O santo e a porca esse<br />

motivo descamba para a superficialidade e para o riso, pois as personagens agem não<br />

como se estivessem apaixonadas, como é o caso de Pinhão que sugere a Benona<br />

(Caroba disfarçada) “fazer um amorzinho, para passar o tempo!” (SUASSUNA, 2002,<br />

p. 131). Assim, Ariano Suassuna vai amalgaman<strong>do</strong> elementos de toda uma cultura que o<br />

precedeu e que admira ao seu teatro, como ele mesmo afirma:<br />

Meu teatro procura se aproximar da parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que me foi dada;<br />

um mun<strong>do</strong> de sol e de poeira, como o que conheci em minha infância,<br />

com atores ambulantes ou bonecos de mamulengo representan<strong>do</strong><br />

gente comum e às vezes representan<strong>do</strong> atores, com cangaceiros,<br />

santos, poderosos, assassinos, ladrões, palhaços, prostitutas, juízes,<br />

avarentos, luxuriosos, medíocres, homens e mulheres de bem – enfim,<br />

um mun<strong>do</strong> de que não estejam ausente – se não no teatro, que não é<br />

disso, mas na poesia ou na novela – nem mesmo os seres da vida mais<br />

humilde, as pastagens, o ga<strong>do</strong>, as pedras, to<strong>do</strong> este conjunto de que o<br />

sertão está povoa<strong>do</strong> (SUASSUNA, 2002, p. 27).<br />

Para tornar próprio um texto que retoma e fazer da sua uma imitação bem-<br />

sucedida, o escritor precisa aprofundar-se no universo de significações <strong>do</strong> texto imita<strong>do</strong>,<br />

trazen<strong>do</strong>-o para o texto novo e a ele somar os senti<strong>do</strong>s que a mudança de contexto e as<br />

alterações aplicadas ao modelo geram. O escritor pode brincar, recrian<strong>do</strong> o modelo de<br />

diversos mo<strong>do</strong>s, mas a imitação bem-sucedida supõe o aval <strong>do</strong> leitor. Este tem que<br />

tomar parte no jogo intertextual, relacionan<strong>do</strong> a obra com outra que ela evoca e<br />

perceben<strong>do</strong> os senti<strong>do</strong>s gera<strong>do</strong>s pelo diálogo entre elas, porque é com a sua participação<br />

que o processo alusivo se completa. Para usufruir <strong>do</strong> texto, na instauração de uma<br />

linguagem que controla o seu próprio <strong>do</strong>mínio no momento de encontro com o leitor,


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 35<br />

este deverá ter o que Umberto Eco (1986) denomina de competência intertextual. O<br />

texto literário, então, se torna crítico de si mesmo, evidencian<strong>do</strong> com mais clareza a<br />

consciência cria<strong>do</strong>ra.<br />

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES CONTEXTUAIS<br />

O santo e a porca combina o conhecimento da literatura clássica com a<br />

cultura popular. Em relação ao aproveitamento literário da matéria regional, podemos<br />

dizer que nessa comédia as referências a um mo<strong>do</strong> de vida rural, a estrutura social de<br />

modelo arcaico e a linguagem são os mais fortes indícios regionalistas, que o autor se<br />

apropria para estabelecer uma importância e uma significação novas ao seu lavor<br />

poético.<br />

Com referência ao aproveitamento de textos preexistentes, de autores<br />

conheci<strong>do</strong>s, por escritores que vieram depois deles, podemos afirmar que constitui uma<br />

intertextualização, que pode ser trabalhada de diversas formas e tons. A noção de<br />

intertexto empregada por Michael Rifaterre, Julia Kristeva e Gerard Genette é<br />

apresentada neste ensaio para análise <strong>do</strong>s procedimentos de (re)criação poética de<br />

Ariano Suassuna. Na investigação, seguimos duas linhas: a primeira diz respeito à<br />

coerência entre as partes que compõem o texto analisa<strong>do</strong> e permitem ao leitor<br />

estabelecer contato com o mun<strong>do</strong> ali apresenta<strong>do</strong>; a segunda está diretamente ligada à<br />

época em que foram escritos e revela ao leitor muito <strong>do</strong>s valores <strong>do</strong> autor e <strong>do</strong>s valores<br />

de seu tempo, destacan<strong>do</strong>-se para o leitor pelo universo que revelam.<br />

Quanto à sua estrutura, podemos afirmar que este texto é uma comédia<br />

porque usa da comicidade e da leveza para exercitar a crítica. Com relação ao autor de<br />

O santo e a porca, pode-se dizer que teve seu interesse desperta<strong>do</strong> para a literatura e o<br />

teatro ao fazer parte <strong>do</strong> TEP (Teatro <strong>do</strong>s Estudantes de Pernambuco) na juventude.<br />

Além das peças mencionadas neste ensaio, o autor escreve Uma mulher<br />

vestida de sol (1947), Cantam as harpas de Sião (1948), Os homens de barro (1949),<br />

Auto de João da Cruz (1950), O arco desola<strong>do</strong> (1954), O casamento suspeitoso (1957),<br />

A pena e a lei (1959), Farsa da boa preguiça (1960), A pedra <strong>do</strong> reino e O príncipe <strong>do</strong>


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 36<br />

sangue <strong>do</strong> vai-e-volta (ambos de 1971), O rei degola<strong>do</strong> (1977), Iniciação à estética<br />

(1972), As conchambranças de Quaderna (1987), A história de amor de Fernan<strong>do</strong> e<br />

Isaura (1994), A história de amor de Romeu e Julieta (1997) e Poemas (1999).<br />

A nosso ver, o valor literário da comédia de Ariano Suassuna é o de refletir<br />

no texto as imagens <strong>do</strong> seu mun<strong>do</strong>, cujo valor histórico e <strong>do</strong>cumental nos cabe reiterar.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ARISTÓTELES. Poética. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética<br />

clássica. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.<br />

BERTHOLD, Margot. História mundial <strong>do</strong> teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001.<br />

ECO, Umberto. O leitor-modelo. In: ______. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva,<br />

1986.<br />

GENETTE, Gerard. Palimpsestes. Paris: Seuil, 1982. p. 8-12.<br />

KRISTEVA, Julia. A palavra, o diálogo e o romance. In: ______. Introdução à<br />

semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 61-90.<br />

RIFATERRE, Michael. A produção <strong>do</strong> texto. Trad. Eliane Fitipaldi Pereira Lima de<br />

Paiva. São Paulo: Martins Fontes, 1989<br />

SILVA, Vera Maria Tietzmann. O santo e a porca de Ariano Suassuna. O popular,<br />

Goiânia, 25 jun. 2007. Vestiletras.<br />

SUASSUNA, Ariano. O santo e a porca. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.


CARANDÁ<br />

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O PODER DA PALAVRA NA POÉTICA<br />

DE GUIMARÃES ROSA<br />

Maria da Luz Alves Pereira 1<br />

RESUMO: Este artigo pretende apresentar analiticamente “São Marcos”, enfocan<strong>do</strong> o<br />

poder da palavra, na poética de Guimarães Rosa. Dentre as várias possibilidades de<br />

análise, será da<strong>do</strong> realce ao efeito <strong>do</strong> ‘estranho’, verifica<strong>do</strong> no texto sob uma impressão<br />

freudiana. O conto revela uma ambigüidade completa em relação aos personagens, que<br />

sustentam a narrativa e amarram a simbologia <strong>do</strong> conceito de crer ou não em feitiçarias.<br />

O mito e a fantasia aparecem sob formas de superstições, misticismo, temor religioso,<br />

como o temor ao diabo – representa<strong>do</strong> pela “Reza brava de São Marcos” –, e certa<br />

admiração pelo mistério e o desconheci<strong>do</strong>.<br />

PALAVRAS-CHAVE: ‘Estranho’, eficácia, palavra.<br />

ABSTRACT: This paper intends to present analytically "São Marcos", focusing on the<br />

power of the word, in the poetics of Guimarães Rosa. Among the various possibilities of<br />

analysis, emphasis will be given to the effect of the 'strange', found in the text under a<br />

freudian impression. Thus, the narrative reveals a complete ambiguity in relation to the<br />

characters who support the narrative and tie the concept symbology of believing in<br />

witchcraft or not. The myth and the fantasy appear in forms of superstition, mysticism,<br />

religious fear, as fear the devil – represented by the "São Marcos mad prayer" –, and<br />

some admiration for the mystery and the unknown.<br />

KEYWORDS: Efficiency, ‘strange’, word.<br />

Guimarães Rosa é uma das principais expressões da literatura brasileira por ter<br />

si<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s primeiros entre os autores nacionais que logrou captar o mun<strong>do</strong> regional<br />

através de um prisma universal. A sua obra veio concretizar a nova dimensão que o<br />

regionalismo estava esperan<strong>do</strong>: a dimensão <strong>do</strong> espírito e <strong>do</strong> mistério das coisas,<br />

apontan<strong>do</strong> situações inova<strong>do</strong>ras na literatura brasileira. Diante <strong>do</strong> exposto, numa<br />

abordagem atualizada, este texto vem colaborar com a análise <strong>do</strong> poder da palavra, em<br />

“São Marcos”, um <strong>do</strong>s nove contos de Sagarana (1946), livro de estréia <strong>do</strong> autor.<br />

1 Mestre em Estu<strong>do</strong>s de Linguagens pela UFMS, professora no Colégio Militar de Campo Grande.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 38<br />

Em uma carta de Rosa a João Condé, o autor revela ao amigo os segre<strong>do</strong>s de<br />

Sagarana. Ele confessa que em 1937, quan<strong>do</strong> chegou a hora de escrever o livro, pensou<br />

muito. Então, teve a imagem de um barquinho que viria descen<strong>do</strong> o rio e passaria ao<br />

alcance de suas mãos, no qual ele poderia colocar o que quisesse. Principalmente, nele<br />

poderia embarcar inteira, a sua “concepção-<strong>do</strong>-mun<strong>do</strong>”. Sobre “São Marcos” comenta<br />

que foi “a peça mais trabalhada <strong>do</strong> livro”, 1 sen<strong>do</strong> a mais demorada para escrever, pois<br />

exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de paisagens já há muito<br />

afundadas.<br />

Refletir sobre a vacilação <strong>do</strong> começo de um conto e a certeza de seu fim nos<br />

remete a Piglia, ao fazer referência à definição de Kafka publicada numa nota de seu<br />

Diário, em 19 de dezembro de 1914. Diz ele que “no primeiro momento, o começo de<br />

to<strong>do</strong> conto é ridículo”, 2 diríamos banal, trivial, como é o acaso de “São Marcos”. O<br />

narra<strong>do</strong>r- protagonista diz que “naquele tempo [...] morava no Calango-Frito e não<br />

acreditava em feiticeiros”. 3 Nesse tom ingênuo, segue a narrativa a qual nos apresenta,<br />

de início, a hesitação da personagem narra<strong>do</strong>ra.<br />

Os habitantes <strong>do</strong> vilarejo eram pessoas crédulas em feiticarias, praticantes de<br />

poderes sobrenaturais, conta<strong>do</strong>res de casos de mandigas e histórias, que se encaixam e<br />

mostram a força da palavra capaz de desfazer feitiços e alterar situações. Por exemplo, o<br />

caso da lavadeira que, por ter insulta<strong>do</strong> Cesária, tem como recompensa uma terrível <strong>do</strong>r<br />

no pé; o caso de Sá Nhá Rita Preta que profere palavras para fechar o corpo <strong>do</strong> seu<br />

patrão; o caso de Aurísio Manquitola que adverte o seu amigo de que não devia<br />

pronunciar a reza brava de São Marcos; o caso de Tião Tranjão que se livra <strong>do</strong> cárcere e<br />

recupera a honra de homem traí<strong>do</strong>, utilizan<strong>do</strong> a mesma reza sesga e proibida.<br />

Descrente das forças mágicas, o narra<strong>do</strong>r-protagonista caçoa de to<strong>do</strong>s<br />

principalmente de João Mangolô que tinha fama de feiticeiro. Ao mesmo tempo em que<br />

não acredita em feiticeiros, ele confessa que usa um escapulário, não como os outros,<br />

“porque isso seria humilhante; usava-o <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> na carteira. Sem ele, porém, não me<br />

1 ROSA, Guimarães. Sagarana. p. 27.<br />

2 KAFKA apud PIGLIA. Formas breves. p. 97.<br />

3 ROSA, Guimarães. Sagarana. p. 261.


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 39<br />

aventurarei jamais sob os cipós ou entre as moitas”. 1 Quanto às proteções, traz “uma<br />

fórmula gráfica: treze consoantes alternadas com treze pontos, trasla<strong>do</strong> feito em meia-<br />

noite de sexta-feira da paixão, que garantia invulnerabilidade a picadas de ofídio”. 2<br />

Então, fica uma pergunta: em que o narra<strong>do</strong>r acredita?<br />

A essa altura percebe-se que não é uma história tão simples assim. Ainda,<br />

segun<strong>do</strong> Kafka, “[c]ada vez que se começa, esquece-se de que o conto, se sua existência<br />

é justificada, já traz em si sua forma perfeita, e que só cabe esperar vislumbrar nesse<br />

começo indeciso o seu visível, mas talvez, inevitável final” (grifo nosso). 3 Pela<br />

insistência com que o narra<strong>do</strong>r afirma não acreditar em feiticeiros, instaura-se uma<br />

situação no mínimo intrigante. Por esse movimento proléptico, pode-se vislumbrar que<br />

algo inevitável vai acontecer.<br />

Numa tentativa anacrônica, pode-se associar esse “começo indeciso” e esse<br />

“invisível, mas inevitável final” de Kafka à “unidade de efeito”, conceito desenvolvi<strong>do</strong><br />

por Poe, em “A Filosofia da Composição” (1849), na qual defende que um conto (ou<br />

um poema) deve estruturar-se em torno de um efeito (de uma impressão), que será<br />

desperta<strong>do</strong> no leitor aquan<strong>do</strong> da leitura <strong>do</strong> texto. Segun<strong>do</strong> o contista americano, o autor<br />

deve escolher um “propósito” inicial, an effect, e planejar a sua composição a partir<br />

dele. Em seguida, terá de determinar o tom e a atmosfera <strong>do</strong> conto ou <strong>do</strong> poema,<br />

conceber e articular os incidentes e encontrar “aquelas combinações de tom e<br />

acontecimento que melhor me auxiliam na construção <strong>do</strong> efeito”. 4<br />

O efeito, portanto, é o que deve ser considera<strong>do</strong> e a primeira questão a ser<br />

lançada, segun<strong>do</strong> Poe, é “dentre os inúmeros efeitos, ou impressões a que são<br />

suscetíveis o coração, a inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, na<br />

ocasião atual, escolher”? 5 Como elaborar tal efeito é a segunda preocupação de Poe.<br />

Argumenta que o autor pode escolher entre os incidentes e o tom, ou melhor, faz<br />

considerações se é melhor trabalhar “com os incidentes ou o com o tom – com os<br />

1 Ibidem, p. 262.<br />

2 Ibidem, p. 262.<br />

3 KAFKA apud PIGLIA. Formas breves. p. 98.<br />

4 POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & Ensaios. p. 38.<br />

5 Ibidem, p. 38.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 40<br />

incidentes habituais e o tom especial, ou com o contrário, ou com a especialidade tanto<br />

<strong>do</strong>s incidentes, quanto <strong>do</strong> tom”. 1 Das reflexões de Poe, pode-se concluir que as<br />

combinações de incidente e tom visam à construção <strong>do</strong> efeito.<br />

Na esteira <strong>do</strong> pensamento de Poe, Rosa traça os passos para a sua composição.<br />

Ao escolher as combinações <strong>do</strong> culto religioso cristão e <strong>do</strong> sincretismo e <strong>do</strong> místico,<br />

associa<strong>do</strong> ao tom bucólico <strong>do</strong> texto e à narrativa em primeira pessoa, o autor nos força a<br />

perguntarmos a nós mesmos se ele, autor, acredita na magia ou não. Para tanto, o texto<br />

revela uma ambiguidade completa em relação à sua personagem narra<strong>do</strong>ra e às<br />

personagens secundárias que sustentam a narrativa e amarram a simbologia <strong>do</strong> conceito<br />

de crer ou não em feitiçarias, ou seja, no desconheci<strong>do</strong>, na lenda, no mito, enfim, no<br />

poético.<br />

O mito, a fantasia e o sobrenatural aparecem sob formas de superstições e de<br />

premonições, crença em aparições, devoção a curandeiros e videntes, misticismo e<br />

temor religioso, como o temor ao diabo – representa<strong>do</strong> pela reza-brava de “São Marcos”<br />

–, e certa admiração pelo mistério e pelo desconheci<strong>do</strong>. Ao escolher essas combinações,<br />

o autor almeja chegar a um efeito: o poder, a eficácia da palavra entre os homens,<br />

presente no conto, de mo<strong>do</strong> amplo, pelo processo de criação <strong>do</strong> texto e, de mo<strong>do</strong><br />

restrito, como tema da narrativa. No entender de Gracia-Rodrigues, o texto roseano<br />

“enfatiza a palavra como força capaz de alterar o destino humano”. 2<br />

É exatamente na apresentação da noção <strong>do</strong> algo oculto, o que está fora da vista,<br />

que consiste o elemento ‘estranho’ no texto. No entendimento de Freud o ‘estranho’<br />

“relaciona-se indubitavelmente com o que é assusta<strong>do</strong>r – com o que provoca me<strong>do</strong> e<br />

horror; mas certamente, também, a palavra sempre é usada num senti<strong>do</strong> claramente<br />

definível, de mo<strong>do</strong> que tende a coincidir com aquilo que desperta o me<strong>do</strong> em geral”. 3<br />

Freud argumenta, ainda, que se abrem <strong>do</strong>is rumos para se entender o ‘estranho’:<br />

1 Ibidem, p. 38.<br />

2 GRACIA-RODRIGUES, Kelcilene, 2006, p. 71.<br />

[p]odemos descobrir que significa<strong>do</strong> veio a ligar-se à palavra ‘estranho’ no<br />

decorrer da sua história; ou podemos reunir todas aquelas propriedades de<br />

pessoas, coisas, impressões sensórias, experiências e situações que<br />

3 FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. p. 237.


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despertam em nós o sentimento de estranheza, e inferir, então a natureza<br />

desconhecida <strong>do</strong> estranho a partir de tu<strong>do</strong> o que esses exemplos têm em<br />

comum. Direi, de imediato, que ambos os rumos conduzem ao mesmo<br />

resulta<strong>do</strong>: o estranho é aquela categoria <strong>do</strong> assusta<strong>do</strong>r que remete ao que é<br />

conheci<strong>do</strong>, de velho, e há muito familiar. 1<br />

Seguin<strong>do</strong> esse raciocínio, é possível demonstrar, por meio das experiências<br />

prévias dessa gente, em que circunstâncias o familiar pode tornar-se estranho e<br />

assusta<strong>do</strong>r. Nesse lugar <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela feitiçaria o narra<strong>do</strong>r-protagonista se diferencia<br />

de seus companheiros por não acreditar em poderes sobrenaturais e chega a fazer troça<br />

das orações que rezam como proteção para o mal. No encontro com Aurísio<br />

Manquitola, mais um ato imprudente. Ele começa a recitar com arrogância e descaso a<br />

oração de “São Marcos”, o que faz o seu amigo pular para a beira da estrada e gritar:<br />

– Para, creio-em-deus-padre! Isso é reza brava, e o senhor não sabe com o<br />

que é que está bulin<strong>do</strong>!... É melhor esquecer as palavras... Não benze<br />

pólvora com tição de fogo! Não brinca de fazer cócega debaixo de saia de<br />

mulher séria!...<br />

– Bem, Aurísio... Não sabia que era assim tão grave. Me ensinaram e eu<br />

guardei, porque achei engraça<strong>do</strong>...<br />

– Engraça<strong>do</strong>? É um perigo!... para fazer bom efeito, tem que ser rezada à<br />

meia-noite, com um prato-fun<strong>do</strong> cheio de cachaça e uma faca nova em<br />

folha, que a gente espeta em tábua de mesa...<br />

– Na passagem em que se invoca o nome <strong>do</strong> caboclo Gomzazabim Índico:<br />

– Não fala, seu moço!... Só por a gente saber de cor, ela já dá muita<br />

desordem. 2<br />

Nota-se que a história da personagem narra<strong>do</strong>ra dá-se como o início da narração.<br />

Percebemos uma dissociação entre narra<strong>do</strong>r e personagem, afinal, seu próprio nome é<br />

ambíguo: “[...] meu xará joão-de-barro” 3 ou, se quiser, “[...] nesta história eu também<br />

me chamarei José”. 4 Instala-se a primeira ambigüidade: qual é o nome <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r e<br />

qual o da personagem de fato?<br />

1 Ibidem, p. 238.<br />

2 ROSA, Guimarães. Sagarana. p. 268.<br />

3 Ibidem, p. 264.<br />

4 Ibidem, p. 265.


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Essa dicotomia sem solução garante a universalidade <strong>do</strong> personagem, pois é<br />

como to<strong>do</strong> e qualquer João, José, Maria ou Joaquim (ou o nome que se quiser).<br />

Brasileiro, americano, europeu, asiático, latino-americano, enfim, como to<strong>do</strong> e qualquer<br />

ser humano. Lembremo-nos também <strong>do</strong> primeiro nome de Guimarães Rosa: João. Será<br />

mera coincidência? Será uma aparição de Rosa pela via <strong>do</strong> personagem narra<strong>do</strong>r? Será o<br />

autor se inscreven<strong>do</strong> na obra? Ou podemos ler esse João como o autor e narra<strong>do</strong>r<br />

confundin<strong>do</strong>-se no ato <strong>do</strong> testemunho? São posições que exigiriam mesmo um estu<strong>do</strong><br />

meticuloso <strong>do</strong>s nomes de João.<br />

De qualquer forma, não nos deteremos nessa questão, porque ela merece ser<br />

objeto de estu<strong>do</strong> de um outro trabalho, em virtude de sua abrangência e especificidade.<br />

Neste ponto, imitan<strong>do</strong> nosso autor, e se nos é permiti<strong>do</strong>, passemos a chamar o narra<strong>do</strong>r<br />

pela alcunha de “Zé-Jão”. Nem José, nem João. Zé-Jão, simplesmente. Há uma boa<br />

razão para isto. Nosso protagonista representa to<strong>do</strong>s os sertanejos e Zé-Jão to<strong>do</strong>s os<br />

nomes. Afora esse argumento, quem acompanha estas linhas esteja à vontade para<br />

nominá-lo com o nome que lhe vier à mente.<br />

Len<strong>do</strong> o conto mais detidamente, percebe-se que duas estórias se sobressaem.<br />

Uma delas, mais curta, é inserida no meio da outra, que conta a desavença entre o<br />

narra<strong>do</strong>r e um feiticeiro. A primeira é uma “uma sub-estória, ainda incompleta”, 1 diz o<br />

narra<strong>do</strong>r. Consiste em um pequeno episódio no qual Zé-Jão fala de um bambual, onde<br />

ele e um poeta desconheci<strong>do</strong>, “Quem-Será”, travam um duelo poético, e tornam-se<br />

amigos invisíveis. Trata-se, portanto, também de um discurso metalinguístico, uma vez<br />

que o narra<strong>do</strong>r responde às quadrinhas escritas com canivete no bambual. Zé-Jão e seu<br />

amigo “Quem-Será”, nos seus versos, discutem os princípios da criação poética.<br />

Segun<strong>do</strong> Roncari, a<br />

1 Ibidem, p. 272.<br />

sub estória ou o desafio nada mais é <strong>do</strong> que a discussão <strong>do</strong> tema que mais<br />

interessa ao autor [Rosa], o da perspectiva a ser assumida pela literatura.<br />

Entretanto, ele aparece encoberto por outros mais superficiais, como o <strong>do</strong>s<br />

poderes <strong>do</strong> feitiço e da reza ou da possessão e conversão. 2<br />

2 RONCARI apud GRACIA-RODRIGUES, 2004, p. 122, grifo <strong>do</strong> autor.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 43<br />

A segunda estória conta sobre João Mangolô, um preto velho, que mora também<br />

no Calango-Frito e “tinha fama de feiticeiro”. No <strong>do</strong>mingo, Zé-Jão, in<strong>do</strong> embrenhar-se<br />

no mato das Três Águas, para apreciar a beleza <strong>do</strong>s bichos e das plantas, passan<strong>do</strong> em<br />

frente da tapera <strong>do</strong> feiticeiro, recita os mandamentos <strong>do</strong> negro: “– Você deve conhecer<br />

os mandamentos <strong>do</strong> negro... Não sabe? ‘Primeiro: to<strong>do</strong> negro é cachaceiro...’ [...] –<br />

‘Segun<strong>do</strong>: to<strong>do</strong> negro é vagabun<strong>do</strong>.’ [...] – ‘Terceiro: to<strong>do</strong> negro é feiticeiro...’”. 1<br />

Mangolô não gosta da brincadeira.<br />

Mas será que tu<strong>do</strong> é tão simples assim? Só nos resta esperar o “inevitável final”,<br />

para usar a expressão de Kafka. E tu<strong>do</strong> acontece. Por ter ridiculariza<strong>do</strong> o preto velho,<br />

Zé-Jão torna-se alvo de uma bruxaria, sen<strong>do</strong> vítima de seu próprio atrevimento. Ao<br />

embrenhar-se na mata, de repente, sem <strong>do</strong>r e sem explicação, ele fica cego. Aos poucos,<br />

conclui que está distante afasta<strong>do</strong> de qualquer ser humano, impossibilita<strong>do</strong> de voltar<br />

para casa. A percepção visual que tinha da mata é substituída por uma percepção<br />

olfativa, tática e, sobretu<strong>do</strong>, auditiva, e ele começa a escutar ruí<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s os tipos.<br />

Ele grita repetidas vezes e só tem o eco por resposta. Tenta, então, voltar,<br />

tatean<strong>do</strong> as árvores. Logo percebe que está perdi<strong>do</strong> numa escuridão desespera<strong>do</strong>ra. O<br />

corpo sofre. Já feri<strong>do</strong> por espinhos, machuca<strong>do</strong> de quedas, chega a chorar alto. Lembra-<br />

se <strong>do</strong> seu amigo invisível “Quem-Será”, chama por Deus e Santa Luzia, grita pelo<br />

diabo, e nada, ninguém vem em seu socorro. A solidão e o desespero são seus únicos<br />

companheiros. Sabemos,<br />

[...] pela experiência psicanalítica, que o me<strong>do</strong> de ferir ou perder os olhos é<br />

um <strong>do</strong>s mais terríveis temores das crianças. Muitos adultos conservam uma<br />

apreensão nesse aspecto, e nenhum outro dano físico é mais temi<strong>do</strong> por<br />

esses adultos <strong>do</strong> que um ferimento nos olhos. Estamos acostuma<strong>do</strong>s,<br />

também, a dizer que estimamos uma coisa como a menina <strong>do</strong>s olhos. 2<br />

Misteriosamente cego, não conseguin<strong>do</strong> encontrar uma explicação racional para<br />

o ocorri<strong>do</strong> e, imbuí<strong>do</strong> desse “terrível temor” e de um último fôlego, sem pensar, num<br />

gesto involuntário, Zé-Jão começa a bramir a reza-brava de “São Marcos”, a oração<br />

1 ROSA, Guimarães. Sagarana. p. 266.<br />

2 FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. p. 248.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 44<br />

sesga, milagrosa e proibida: “– ‘Em nome de São Marcos e de São Manços, e <strong>do</strong> Anjo-<br />

Mau, seu e meu companheiro...’”. 1 Como ele era incrédulo, a reza não funciona. Então,<br />

decide refletir sobre o aconteci<strong>do</strong> e é capaz de enxergar além <strong>do</strong> aparente,<br />

experimentan<strong>do</strong> o poder da palavra sobre o corpo e o espírito.<br />

Segun<strong>do</strong> Coutinho, para a personagem reaver a visão foi preciso que<br />

apreendesse o significa<strong>do</strong> da reza de São Marcos, já que não acreditava em poderes<br />

sobrenaturais. 2 As palavras revelam-lhe a causa de sua cegueira e a maneira de<br />

encontrar a cura: “Minha voz mu<strong>do</strong>u de som, lembro-me, ao proferir as palavras, as<br />

blasfêmias, que eu sabia de cor. Subiu-me uma vontade louca de derrubar, de esmagar,<br />

destruir... E então foi só <strong>do</strong>ideira e a zoeira, unidas a um pavor crescente. Corri” (grifo<br />

nosso). 3 Gracia-Rodrigues enfatiza que<br />

[a] palavra para ter poder sobre quem a pronuncia ou adquirir o estatuto <strong>do</strong><br />

poético precisa ser colocada no lugar certo e deve ser trabalhada em diversas<br />

nuances. Por exemplo, a oração de São Marcos, que proporciona uma força<br />

sobrenatural, precisa ser proferida segun<strong>do</strong> uma fórmula verbal, em que não<br />

se permite trocar a disposição das palavras, senão a força mágica se perde. 4<br />

Perfeitamente verbalizada, a oração faz efeito. Zé-Jão corre dentro da mata,<br />

tangi<strong>do</strong> por essa fúria incontrolável, porque a ameaça vem da casa <strong>do</strong> preto velho. É<br />

para lá que sua fúria o empurra. O seu arquejar parece de uma grande fera. Neste ponto,<br />

ressaltam-se <strong>do</strong>is tempos da mata: a escuridão da saída contrapon<strong>do</strong>-se à clareza da<br />

entrada. Chega à casa de Mangolô, que lhe pede pelo amor de Deus que não o mate. Os<br />

<strong>do</strong>is rolam para os fun<strong>do</strong>s da choupana e, de repente, luz, muita luz.<br />

Luz, como um resplen<strong>do</strong>r de luz que vinha <strong>do</strong> céu, foi como Saulo se viu<br />

cerca<strong>do</strong> durante a viagem quan<strong>do</strong> já estava perto de Damasco. Diz a narrativa bíblica<br />

(At 9, 1-25) que Saulo só respirava contra os discípulos de Senhor quan<strong>do</strong>, cain<strong>do</strong> o<br />

corpo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” 5 .<br />

1 ROSA, Guimarães. Sagarana. p. 268.<br />

2 COUTINHO apud GRACIA-RODRIGUES, 2006, p. 80.<br />

3 ROSA, Guimarães. Sagarana. p. 290.<br />

4 GRACIA-RODRIGUES, Kelcilene, 2006, p. 81.<br />

5 At 9, 4.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 45<br />

Ele perguntou: “Quem és tu, Senhor?” 1 . Respondeu o Senhor: “Eu sou Jesus, a quem tu<br />

persegues; mas levanta-te e entra na cidade, e lá te será dito o que te cumpre fazer. 2 Os<br />

homens que viajavam com ele ficaram emudeci<strong>do</strong>s, ouvin<strong>do</strong>, na verdade, a voz, mas<br />

não ven<strong>do</strong> ninguém. Saulo levantou-se da terra e, abrin<strong>do</strong> os olhos, não via coisa<br />

alguma; e, guian<strong>do</strong>-o pela mão, conduziram-no a Damasco. Saulo esteve três dias sem<br />

ver e não comeu, nem bebeu.<br />

Feita esta pequena digressão, nota-se que há muitas similaridades e algumas<br />

diferenças entre as duas narrativas. Iniciemos, analisan<strong>do</strong> algumas semelhanças. Ambos<br />

os personagens ficaram cegos porque provocaram a ira <strong>do</strong> Outro. Tanto em “São<br />

Marcos” quanto no texto bíblico não havia um antagonista, até este ser ativa<strong>do</strong> pela<br />

ação <strong>do</strong> protagonista. Nem Mangolô, nem Deus nutriam qualquer tipo de aversão ou<br />

sentimento de ódio declara<strong>do</strong> em relação a Zé-Jão e Saulo, respectivamente. Havia, sim,<br />

uma aparente relação de boa convivência: insultos, ofensas e perseguições de um la<strong>do</strong>;<br />

paciência e tolerância <strong>do</strong> outro. Esta pseu<strong>do</strong>-harmonia perdurou até a ira vir à tona<br />

como resposta aos insultos e às ofensas.<br />

Entendemos que Zé-Jão e Saulo enfrentaram e ofenderam as forças divinas,<br />

apesar de terem si<strong>do</strong> adverti<strong>do</strong>s, exatamente por não acreditarem nessa divindade, ou<br />

melhor, por subestimarem as entidades superiores. Confiaram demais em si, em suas<br />

próprias capacidades. Acharam que, mesmo como seres humanos, eles podiam igualar-<br />

se a essas forças e ficar ilesos ao poder delas. Entretanto, por vontade de um sujeito, a<br />

palavra da entidade superior foi mais forte e teve mais eficácia. Maria Clara Queiroz<br />

Corrêa, no seu estu<strong>do</strong> sobre a eficácia da palavra em Guimarães Rosa, entende que<br />

“eficaz é a palavra que deixa a esfera da idéia, que extravasa, geran<strong>do</strong> ato modifica<strong>do</strong>r,<br />

cria<strong>do</strong>r de realidade”. 3<br />

No momento de escuridão, de cegueira, em que estavam sozinhos consigo<br />

mesmos, caíram em si, e a fraqueza os abateu. A partir desse momento, Zé-Jão e Saulo<br />

têm <strong>do</strong>is caminhos a escolher: deixam-se estar na escuridão, que significa a morte, ou<br />

escolhem a luz, um esta<strong>do</strong> de vida. A segunda opção é a melhor. Eles desejam <strong>do</strong> fun<strong>do</strong><br />

1 Ibidem, v. 5.<br />

2 Ibidem, v. 5.<br />

3 CORRÊA, Maria Clara Queiroz. Verbo de Minas. p. 45.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 46<br />

de seus corações, <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> de suas almas, com todas as suas forças voltar a enxergar,<br />

enfrentan<strong>do</strong> aquele “terrível temor” infantil. Saulo arrepende-se de seus peca<strong>do</strong>s, e,<br />

segun<strong>do</strong> a narrativa bíblica, reconhecer-se peca<strong>do</strong>r é o primeiro passo para experimentar<br />

a misericórdia de Deus. Então, Deus coloca-se em seu lugar, ouve, sente e age para tirar<br />

a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> filho, restituin<strong>do</strong>-lhe a visão.<br />

Zé-Jão, que fazia pouco caso <strong>do</strong>s feiticeiros e das crendices populares, precisa<br />

de ambos para voltar a enxergar, valen<strong>do</strong>-se da reza-brava de “São Marcos”. Ele é salvo<br />

da cegueira súbita e inexplicável ao tomar consciência das palavras da reza e de sua<br />

eficácia. Mas é o poder da palavra que muda o seu destino e a visão volta esplêndida.<br />

Gracia-Rodrigues atesta que neste caso, “[e]ntrar de posse da palavra significa,<br />

portanto, estar livre da cegueira, ao mesmo tempo que ver significa entrar de passe da<br />

palavra.” 1 O feiticeiro diz que não quis matar, não quis ofender. Ele explica que<br />

amarrou uma tirinha de pano preto nas vistas <strong>do</strong> retrato, para Zé-Jão passar uns tempos<br />

sem poder enxergar. Mangolô desfaz o feitiço e ele estende a bandeira branca: uma nota<br />

de dez mil-réis.<br />

Na tentativa de correlacionar essas duas narrativas, há, pelo menos, uma<br />

diferença significativa a ser considerada. Saulo, no momento de cegueira, não se revolta<br />

contra Deus, ao contrário, admite sua pequenez e volta-se para as coisas <strong>do</strong> Senhor,<br />

experimentan<strong>do</strong> a misericórdia <strong>do</strong> Pai. De persegui<strong>do</strong>r, passa a segui<strong>do</strong>r. Então, já não é<br />

Saulo, mas Paulo que vive. O homem que estava morto nasce para uma nova vida.<br />

Paulo experimenta a conversão. O Apóstolo passa a levar a mensagem cristã a todas as<br />

multidões, atenden<strong>do</strong> a um chama<strong>do</strong> de Deus. Essa mudança de nome, no Antigo e no<br />

Novo Testamento, significa mudança de vida. No Antigo Testamento (Gn 17, 1-27), por<br />

exemplo, Abrão e sua esposa, Sarai, converti<strong>do</strong>s, passam a se chamar Abraão e Sara.<br />

O mesmo não podemos concluir em relação a Zé-Jão. Não sabemos se é caso de<br />

conversão, porque o texto roseano não nos dá pistas disso, nem ao menos sugere essa<br />

mudança de comportamento, apesar de o protagonista ter recita<strong>do</strong> a reza-brava de “São<br />

Marcos”. Contrariamente, ele se “enfeza”, ameaça Mangolô, queren<strong>do</strong> exterminá-lo,<br />

revolta-se, enfim. Ele só consegue reverter a situação mediante essa ameaça. Também o<br />

texto não deixa claro que Zé-Jão tenha, daquele dia fatídico em diante, muda<strong>do</strong> de<br />

1 GRACIA-RODRIGUES, Kelcilene, 2006, p. 86.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 47<br />

atitude, ou passa<strong>do</strong> a seguir algum tipo de crendice popular, ou segui<strong>do</strong> uma vida de<br />

feitiçarias. Apenas sugere que fizeram as pazes. Mas, uma coisa é certa: Zé, ou João, ou<br />

Zé-Jão aprendeu a lição.<br />

Parafrasean<strong>do</strong> Cortázar (2004), atestamos que to<strong>do</strong> conto perdurável inscreverá<br />

seu nome em nossa memória. Com base nesse pensamento, podemos inferir que João<br />

Guimarães Rosa é um desses homens, que da simplicidade tece a riqueza da linguagem,<br />

revelan<strong>do</strong> o olhar vanguardista <strong>do</strong> autor, e que iria inscrever seus contos na memória<br />

universal.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BÍBLIA SAGRADA. Tradução <strong>do</strong>s originais mediante a versão <strong>do</strong>s Monges de<br />

Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico. São Paulo: Editora “AVE<br />

MARIA”, 1982.<br />

CORRÊA, Maria Clara Queiroz. “São Marcos” – um estu<strong>do</strong> sobre a eficácia da palavra<br />

em Guimarães Rosa. In: VERBO DE MINAS: letras / Centro de Ensino Superior<br />

de juiz de Fora – Programa de Pós-graduação. v. 5: n. 9 – CES/JF: Juiz de Fora,<br />

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CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos <strong>do</strong> conto. In: ________. Valise de Cronópio. Trad.<br />

Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. Org. Harol<strong>do</strong> de Campos e Davi<br />

Arriguci Jr. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 147-163.<br />

FREUD, Sigmund. O ‘Estranho’. In: ________. Obras psicológicas completas de<br />

Sigmund Freud: edição standard brasileira. Trad. e Org. Jayme Salomão. Rio de<br />

Janeiro: Imago, 1996, p. 235-273.<br />

GRACIA-RODRIGUES, Kelcilene. De corixos e de veredas: a alegada similitude entre<br />

as poéticas de Manoel de Barros e de Guimarães Rosa. Orienta<strong>do</strong>r: Luiz<br />

Gonzaga Marchezan. 2006. 318 f. Tese (Doutora<strong>do</strong> em Estu<strong>do</strong>s Literários) –<br />

Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara,<br />

2006.<br />

PIGLIA, Ricar<strong>do</strong>. Novas teses sobre o conto. In: ________. Formas Breves. Trad. José<br />

Marcos Mariani de Mace<strong>do</strong>. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 95-114.<br />

POE, Edgar Allan. A Filosofia da Composição. In: ________. Ficção completa, poesia<br />

& Ensaios. Org., trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 2001. p.<br />

911-923.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 48<br />

ROSA, João Guimarães. Carta de João Guimarães Rosa a João Condé, revelan<strong>do</strong><br />

segre<strong>do</strong>s de Sagarana. In: ________. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,<br />

2001. p. 23-28.<br />

________ . Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 49<br />

DOS RESQUÍCIOS DE UMA UTOPIA ÀS INTROJEÇÕES DE UM<br />

SENTIMENTO DE DERROTA: BAR DON JUAN E SEMPREVIVA<br />

Giselia Rodrigues Dias da Silva 1<br />

RESUMO: A conturba<strong>do</strong> contexto sócio-histórico brasileiro que se estendeu de mea<strong>do</strong>s<br />

da década de 60 e perdurou até mea<strong>do</strong>s da década de 80, deixou marcas indeléveis na<br />

produção artístico-cultural desse perío<strong>do</strong>. Tais marcas são profundamente refletidas e<br />

reelaboradas pela literatura, sob os mais varia<strong>do</strong>s aspectos. Dentre os quais, a<br />

abordagem estética da temática utopia/revolução que, no decorrer desse decurso, pode<br />

ser apreendida com maior ou menor intensidade nas obras ficcionais. Nesse senti<strong>do</strong>,<br />

esse estu<strong>do</strong> se propõe a analisar o mo<strong>do</strong> pelo qual os romances Bar <strong>do</strong>n Juan (2001) e<br />

Sempreviva (1981), de Antonio Calla<strong>do</strong>, reelaboram esteticamente em suas economias<br />

narrativas a questão <strong>do</strong> esfacelamento <strong>do</strong>s projetos utópicos.<br />

Palavras-chave: Projeto utópico; Esfacelamento; Introjeção.<br />

ABSTRACT: The turbulent Brazilian socio-historical context which lasted from the<br />

mid-60’s and until the mid 80’s, left indelible marks on the artistic and cultural<br />

production of tht period. Such marks are deeply reflected and further elaborated in the<br />

literature, under various aspects. Among which, the aesthetic approach to thematic<br />

utopia/revolution that, during this course, can be perceived with greater or lesser<br />

intensity in fictional works. Accordingly, we intend to analyze the way the novels Bar<br />

<strong>do</strong>n Juan (2001) and Sempreviva (1981), by Antonio Calla<strong>do</strong>, aesthetically rethink their<br />

savings accounts on the question of disintegration of utopian projects.<br />

Keywords: Utopian project; Disintegration; Introjection.<br />

INTRODUÇÃO<br />

“Um traço que deve caracterizar o ser humano ainda não<br />

embruteci<strong>do</strong> pela própria fraqueza ou pela realidade tremenda, é a liberdade<br />

de opor ao evento defeituoso, à situação decepcionante, uma força<br />

contraditória.” (T. COELHO)<br />

Imaginação utópica é o que podemos chamar à força de contradição inerente<br />

ao comportamento humano, capaz de conduzi-lo à transposição de quaisquer<br />

barreiras <strong>do</strong> presente, a fim de projetar no mun<strong>do</strong> das possibilidades aquilo que, na<br />

1 Mestranda <strong>do</strong> programa <strong>do</strong> Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da Universidade<br />

Federal de Goiás, e-mail: giselia_07@hotmail.com.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 50<br />

realidade inexiste ou necessita ser modifica<strong>do</strong>. Imaginação essa essencial à<br />

concretização de um poder vir a ser fundamentalmente melhor <strong>do</strong> que aquilo que<br />

realmente é, já que, ao direcionar o olhar <strong>do</strong> homem para o futuro, para aquilo que se<br />

precisa transformar e/ou tornar realidade, propicia reflexões sobre as incongruências<br />

<strong>do</strong> presente e esclarece, assim, atitudes a serem tomadas e ações necessárias a serem<br />

empreendidas.<br />

É consenso entre a crítica especializada afirmar que a produção literária<br />

brasileira <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> ditatorial, tematizou, questionou e/ou problematizou, a partir de<br />

diferentes prismas, inúmeros aspectos desse conturba<strong>do</strong> contexto sócio-histórico,<br />

político e cultural. Dentre os quais, a insatisfação <strong>do</strong>s sujeitos diante das opressões da<br />

realidade aliada às esperanças e credibilidades na possibilidade de superá-las: o que<br />

designamos projetos utópicos.<br />

Não obstante o delineamento de projetos utópicos serem uma constante em<br />

princípios da década de 60 no Brasil, a crítica também observa que, em compasso<br />

com o recrudescimento das agruras <strong>do</strong> regime ditatorial, esta esperança,<br />

paulatinamente, vai se esmaecen<strong>do</strong> até que em seu lugar sejam depositadas<br />

incertezas a respeito da própria viabilidade de tais projetos para a nação. De mo<strong>do</strong><br />

que, os questionamentos advin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> quadro político se des<strong>do</strong>bram em<br />

questionamentos estéticos, como discute Rocha (2007) 1 :<br />

Do engajamento que se pautou na confiança na possibilidade de uma<br />

Revolução a introjeção de um sentimento de frustração e derrota, pela sua<br />

não realização, o romance produzi<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong> reflete sobre a<br />

contingência histórica, questiona-a e questiona a si próprio e ao escritor a<br />

partir de diferentes estratégias ficcionais.<br />

Inserida nas contradições desse convulso e complexo contexto sócio-histórico<br />

encontra-se uma significativa parte da produção literária de Antonio Calla<strong>do</strong> (1907-<br />

1997), cuja ficção é <strong>do</strong>tada de extrema sensibilidade para lidar com as questões sócio-<br />

históricas, políticas e culturais inerentes a tal contexto. Como afirma Pellegrini (1996, p.<br />

21): “[...] toda realidade gera a sua própria linguagem, determina suas estruturas e<br />

delineia procedimentos de escrita que lhe são próprios.” Nesse senti<strong>do</strong>, a partir de um<br />

olhar comparativo, buscaremos averiguar o mo<strong>do</strong> como os romances calladianos Bar<br />

1 O texto, cedi<strong>do</strong> pela autora, foi originalmente apresenta<strong>do</strong> como comunicação oral no XI Encontro<br />

Regional da ABRALIC, em 2007, e não possui número de páginas.


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 51<br />

<strong>do</strong>n Juan 1 - publica<strong>do</strong> primeiramente em 1971 - e Sempreviva 2 - cuja primeira<br />

publicação foi em 1981 - ao dialogar com a referida contingência histórico-social,<br />

reelaboram artisticamente, a partir de procedimentos estéticos distintos, a problemática<br />

da (des)construção <strong>do</strong>s projetos utópicos.<br />

1 DOS RESQUÍCIOS DE UMA UTOPIA...<br />

1.1 BAR DON JUAN<br />

O enre<strong>do</strong> de Bar <strong>do</strong>n Juan, diferentemente <strong>do</strong> que acontece com o romance<br />

calladiano que o antecede – Quarup (1984) – aponta para uma desilusão em relação à<br />

viabilidade <strong>do</strong> empreendimento de transformações profundas no quadro político-social<br />

<strong>do</strong> Brasil. Quadro esse, assinala<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong>, pelas incongruências advindas <strong>do</strong><br />

autoritarismo <strong>do</strong> regime ditatorial. Bar Don Juan é, nesse senti<strong>do</strong>, como afirma Bastos<br />

(2000, p. 27) , “[...] um relato em tom menor, mas nem por isso menos eficaz, de uma<br />

experiência revolucionária.”<br />

O insucesso de uma tentativa de oposição ao regime ditatorial pós-64, bem como<br />

o fracasso <strong>do</strong>s próprios sujeitos que se mobilizaram em torno de tal oposição, ao serem<br />

lingüisticamente reconstruí<strong>do</strong>s, fazem emanar da narrativa um tom pessimista, um<br />

entrelaçamento de sentimentos negativos liga<strong>do</strong>s à sensação de derrota. Assim, como<br />

afirma Bastos (2000, p. 26), “[...] em Bar Don Juan a tônica é o desencanto”. Nele,<br />

[...] Calla<strong>do</strong> não se propõe a dar continuidade às questões envolvidas<br />

pela trama de Quarup: ele pretende traçar um vasto painel daquele<br />

processo histórico marca<strong>do</strong> pela aventura guerrilheira no país. [...] a<br />

ambição <strong>do</strong> romance é mostrar a origem, o desenvolvimento e o fracasso<br />

da guerrilha, não só entre nós, mas em toda a América Latina, então<br />

iluminada pelas chamas <strong>do</strong> heroísmo emanadas da experiência política de<br />

Che Guevara. (FRANCO, 1999, p. 159)<br />

1 As referências a esta obra seguem a 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.<br />

2 As referências a esta obra seguem a 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 52<br />

Desse mo<strong>do</strong>, o que salta aos nossos olhos nesse romance são problematizações e<br />

interrogações a respeito da própria utopia revolucionária, bem como das atitudes<br />

comportamentais assumidas pelos sujeitos que se empenharam por tornar-se um<br />

“protótipo heróico” de brasileiro.<br />

Talvez por tal motivo, ou ainda, no que diz respeito à elaboração formal, pela<br />

proximidade <strong>do</strong> romance com “com o universo jornalístico”, que, segun<strong>do</strong> Franco<br />

(1999, p. 159), “se manifesta, sobretu<strong>do</strong> na escolha <strong>do</strong> material histórico,” Bar Don<br />

Juan, quan<strong>do</strong> de sua publicação, não teve grande repercussão junto à crítica literária<br />

e ao público leitor :<br />

Em 1971, Antonio Calla<strong>do</strong>, que poucos anos antes havia escrito um<br />

<strong>do</strong>s livros mais significativos após o golpe militar de 64, publicou Bar Don<br />

Juan que, contu<strong>do</strong>, não, alcançou, junto ao público leitor ou à crítica<br />

especializada, aceitação positiva. Ao contrário, foi bastante critica<strong>do</strong>: afinal,<br />

a maioria de seus leitores ou esperava encontrar nele uma espécie qualquer<br />

de continuidade da matéria narrada em Quarup ou relato valioso acerca <strong>do</strong>s<br />

problemas relativos ao material que constituía seu núcleo – os conflitos<br />

políticos oriun<strong>do</strong>s da resistência armada à ditadura, que eram, então, quase<br />

completamente desconheci<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong>s, graças à rígida e truculenta<br />

ditadura. (FRANCO, 1999, p. 158)<br />

No entanto, em relação a essa ficção “produzida por uma sociedade<br />

amordaçada” que, por conseguinte, não deixa de “integrar os múltiplos níveis de um<br />

conflito que impregna a totalidade de sua estrutura e dinâmica” (PELLEGRINI, 1996, p.<br />

24), a crítica Tânia Pellegrini (1996), pondera que:<br />

Não é possível [...] julgá-la ten<strong>do</strong> por critério de valor exclusivo a presença/ ausência maior ou menor<br />

de elaboração formal, que é apenas um <strong>do</strong>s elementos de um contexto muito mais amplo.<br />

Uma crítica que não considere esses elementos e que não perceba a<br />

existência da necessidade de articular coerentemente as questões<br />

propriamente científicas da crítica, já inquietantes por si, com uma<br />

realidade social que não admite neutralidade de nenhuma atividade<br />

humana, não pode dar conta <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> real da produção literária<br />

brasileira <strong>do</strong>s anos 70.<br />

Daí o indiscutível valor literário de Bar Don Juan. Daí nos debruçarmos sobre o<br />

mesmo, a fim de averiguarmos, dentre infindas possibilidades de análise, o mo<strong>do</strong> como<br />

o esmaecimento de um projeto utópico se delineia em sua economia narrativa.<br />

Estruturalmente organiza<strong>do</strong> em 12 capítulos, e estes, distribuí<strong>do</strong>s em três partes


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temporalmente seqüenciadas, o enre<strong>do</strong> de Bar Don Juan expõe, a partir da voz de um<br />

narra<strong>do</strong>r heterodiegético 1 com focalização pre<strong>do</strong>minantemente onisciente 2 , desde as<br />

discussões informais em torno da organização de uma resistência armada ao regime<br />

militar, a ser empreendida por um grupo de “guerrilheiros” inexperientes, até a derrota<br />

da implementação de tais ideais.<br />

Em consonância com o título <strong>do</strong> romance, a epígrafe que precede sua parte<br />

inicial, já aponta para uma construção espacial muito específica – um bar: lugar que<br />

servirá de palco às discussões relativas à Revolução, desenvolvidas pelos personagens -<br />

temática que perpassará to<strong>do</strong> o desenrolar da narrativa:<br />

“when the historical process breaks <strong>do</strong>wn… when<br />

necessity is associated with horror and free<strong>do</strong>m with<br />

bore<strong>do</strong>m, then it looks to the bar business.” 3<br />

(W. H. Auden, The Age if Anxiety)<br />

Movi<strong>do</strong>s pela insatisfação com a realidade nacional, marcada pelas coerções e<br />

contradições advindas <strong>do</strong> regime ditatorial, tais “revolucionários” que protagonizam os<br />

fatos narra<strong>do</strong>s - um grupo de intelectuais esquerdistas, dentre os quais, Mansinho,<br />

jornalista; Murta, cineasta <strong>do</strong> cinema novo; Gil, escritor; Geraldino, ex-padre (também<br />

designa<strong>do</strong>s “esquerda festiva” 4 naquele contexto sócio-histórico ficcionaliza<strong>do</strong> – início<br />

<strong>do</strong>s anos 70) – reuniam-se com freqüência nos bares da Zona Sul carioca, mais<br />

1 Esse tipo de narra<strong>do</strong>r pode ser defini<strong>do</strong> como aquele que “relata uma história à qual é estranho, uma vez<br />

que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão.” (REIS; LOPES,<br />

1988, p.121).<br />

2 Por focalização onisciente podemos compreender “toda a representação narrativa em que o narra<strong>do</strong>r faz<br />

uso de uma capacidade de conhecimento praticamente ilimitada, poden<strong>do</strong>, por isso, facultar as<br />

informações que entender pertinentes para o conhecimento minudente da história;” além disso,<br />

“coloca<strong>do</strong> numa posição de transcendência em relação ao universo diegético [...], o narra<strong>do</strong>r comportase<br />

como uma entidade demiúrgica, controlan<strong>do</strong> e manipulan<strong>do</strong> soberanamente os eventos relata<strong>do</strong>s, as<br />

personagens que os interpretam, o tempo em que se movem, os cenários em se situam etc” (REIS;<br />

LOPES, 1988, p.121).<br />

3 “Quan<strong>do</strong> o processo histórico se interrompe... quan<strong>do</strong> a necessidade se associa ao horror e a liberdade<br />

ao tédio,<br />

a hora é boa para se abrir um bar.”<br />

4 Termo “descrito por Zuenir Ventura em 1968: o ano que não terminou, como uma expressão inventada<br />

pelo colunista Carlos Leonan em 1963, após o ministro San Thiago Dantas dizer que havia duas<br />

esquerdas no Brasil: “a esquerda positiva e a esquerda negativa” (CRUZ, 2005, p. 8).


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especificamente, no bar cujo nome intitula a narrativa, “Don Juan”, a fim de desafogar-<br />

se <strong>do</strong>s problemas individuais e, ao mesmo tempo, discutirem a situação nacional e<br />

arquitetar um projeto utópico/revolucionário que acarretasse na reversão da mesma:<br />

uma guerrilha rural.<br />

De acor<strong>do</strong> com Bastos (2000, p. 28), “se o intuito fosse de sátira, os<br />

“combates” em que se envolvem os “revolucionários” não ultrapassariam as portas<br />

<strong>do</strong> bar” e os mesmos não levariam a cabo a tentativa de empreendimento de tal<br />

revolução. No entanto, a (des)organização das ações de um grupo guerrilheiro<br />

isola<strong>do</strong> e sem preparação já de início aponta para a sua derrota no final:<br />

A idéia básica não é tocar para o Mato Grosso e nos hospedássemos<br />

com Gil? – perguntou Mansinho.<br />

Sim, mas antes disso precisamos nos entender – disse João.<br />

Para quê? Disse Mansinho. – Gil não procurou Mariana?<br />

[...]<br />

Procurou – disse Mariana. – me escreveu várias cartas.<br />

Pois então – disse Mansinho – é só pedir a Mariana, que pedirá a<br />

Gil, que emprestará o sítio à revolução. Temos a isca infalível.<br />

(CALLADO, 2001, p. 41)<br />

Ao passo que são expostos os procedimentos de (des)organização das operações<br />

guerrilheiras pela “pequena coletividade” (BASTOS, 2000, p.27), o olhar narrativo<br />

volta-se, paralelamente, a uma investigação <strong>do</strong> universo <strong>do</strong>s tortura<strong>do</strong>s. E, nessa<br />

tentativa de captar e reconstituir os estilhaços da consciência <strong>do</strong>s sujeitos, transfigurada<br />

na dimensão interna <strong>do</strong>s personagens João e Laurinha, evidenciam-se as marcas<br />

profundas da violência imprimida pelas abusivas formas de repressão e censura,<br />

sobretu<strong>do</strong>, pela tortura, constantemente exercida durante o regime ditatorial:<br />

João e Laurinha só tinham fala<strong>do</strong> uma vez no assunto. E nunca mais.<br />

Mas tinham fala<strong>do</strong> durante longo tempo. Já muito bati<strong>do</strong> e meio aboba<strong>do</strong><br />

ele não retivera as feições <strong>do</strong> policial que ao soltar Laurinha <strong>do</strong> pau-dearara<br />

a possuíra no chão. Não retivera as feições de nenhum deles mas<br />

precisava da cara daquele. Embora não gostasse de relembrar, João tinha<br />

um me<strong>do</strong> pânico de esquecer. Os próprios tortura<strong>do</strong>s, ao cabo de certo<br />

tempo tendem a achar que estão exageran<strong>do</strong>. Ou colocam-se num plano<br />

superior, silencioso e desdenhoso pois o que não é possível é ter vivi<strong>do</strong><br />

tamanho horror e esbarrar, ao contá-lo, na polida incredulidade de<br />

alguém. [...]<br />

A ligação entre tortura<strong>do</strong>r e tortura<strong>do</strong> é ao mesmo tempo totalmente<br />

violenta e totalmente impessoal, pensou João, mas no caso de Laurinha,


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não, não foi. O sujeito tinha i<strong>do</strong> além das suas ordens. Passa<strong>do</strong> para o<br />

pessoal. (CALLADO, 2001, p. 9-10)<br />

Num âmbito individual, o desejo de “superação” dessa caótica situação liga-se<br />

às tentativas de vingança aos abusos de que tais personagens se tornaram vítimas, que,<br />

por sua vez, os impulsionam à busca <strong>do</strong> extermínio <strong>do</strong> outro (o tortura<strong>do</strong>r), como meio<br />

de afirmação de um da<strong>do</strong> equilíbrio, ainda que situa<strong>do</strong> na esfera <strong>do</strong> emocional. A essa<br />

mesma postura crítica correlaciona-se, num âmbito coletivo, o impulso de resistência<br />

aos desmedi<strong>do</strong>s cerceamentos das liberdades individuais e constitucionais. Logo, o ideal<br />

revolucionário concebi<strong>do</strong> por uma reduzida parte dessas vítimas, de se aliarem ao<br />

“Comandante” Che Guevara, então estabeleci<strong>do</strong> na Bolívia, para difundirem focos de<br />

resistência e empreenderem, de fato, uma revolução político-social tanto no Brasil,<br />

quanto na América Latina, é levada a cabo na ficção:<br />

“Vamos nos organizar assim” disse Mena. “Como sua jogada, meio<br />

na sorte e muito na paixão de acertar. Continue jogan<strong>do</strong>, e guarde o<br />

seguinte, para a sua memória e seu uso. A partir de Corumbá, vocês,<br />

brasileiros, podem estabelecer contato com a gente <strong>do</strong> Che <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong><br />

da fronteira, em Puerto Suarez. No café de los Bueyes. Procure Ponce. Se<br />

lhe informarem algum dia que Blanco está <strong>do</strong>ente, você saberá que as<br />

coisas estão malparadas com o Che, que é preciso auxílio urgente”.<br />

(CALLADO, 2001, p. 64)<br />

Todavia, como afirma Franco (1999, 161), o desenrolar <strong>do</strong>s fatos narra<strong>do</strong>s<br />

[...] parece mostrar que tal projeto revolucionário não passaria de<br />

uma tresloucada aventura uns poucos jovens rebeldes, românticos e<br />

idealistas, incapazes de avaliar, concretamente, a situação política da<br />

conjuntura em que viviam.<br />

Podemos ressaltar, por exemplo, além da ausência de uma mobilização popular,<br />

o fato de os mesmos sequer possuírem recursos financeiros necessários à execução das<br />

operações guerrilheiras e, para tanto, recorrerem aos assaltos a bancos:<br />

Mariana descobriu uma maleta que não conhecia, preta, compacta, e<br />

abriu o fecho. A mala continha pacotes, pacotes e mais pacotes de cédulas<br />

de dez cruzeiros, solidariamente comprimidas. Jacinto, como se de repente<br />

se lembrasse de algo que Mariana não devia descobrir no canto em se<br />

achava. Chegou ao pé lá. Mariana olhava para ele, espantada.<br />

Chiu! – exclamou Jacinto. – Fecha isto de novo e esconde, Mariana.<br />

De onde é que vem essa dinheirama toda?


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Essa – disse Jacinto com ar triunfal – vem de Andrade Arnaud.<br />

Ainda não foi encaminhada.<br />

Mariana sentiu uma fraqueza nas pernas. Então, quan<strong>do</strong> falava em<br />

assaltos Mansinho estava realmente assaltan<strong>do</strong>!<br />

Jacinto, você não está meti<strong>do</strong> nisto, está?<br />

Ainda não, mas para o ano Mansinho promete que me leva. A gente<br />

tem de preparar a revolução, não tem. Papo só não resolve. (CALLADO,<br />

2001, p. 96)<br />

Numa semelhante tentativa de aquisição de “fun<strong>do</strong>s” para darem início à<br />

revolução, já se faz sentir o fracasso da mesma, quan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s personagens –<br />

Mansinho – é morto pelo caixa e os demais que o acompanhavam, persegui<strong>do</strong>s pela<br />

polícia:<br />

- Atenção! Atenção! Chama-se Amâncio Pereira – cognomina<strong>do</strong><br />

Mansinho na sua quadrilha terrorista – o assaltante embuça<strong>do</strong> <strong>do</strong> Banco<br />

Mercantil e Industrial que foi morto a tiro pelo valoroso caixa Altamiro<br />

Varzim. Lamentamos informar que o outro assaltante, que confessa estar<br />

liga<strong>do</strong> a terroristas <strong>do</strong> Rio, é filho <strong>do</strong> conceitua<strong>do</strong> comerciante desta praça,<br />

Marcolino de Andrade. E atenção novamente. Amâncio Pereira encerrou<br />

diante de um bravo corumbaense sua carreira criminosa, mas agora<br />

procura-se Juvenal Murta, que estavionava um carro diante <strong>do</strong> banco e<br />

que desapareceu da cidade, depois de aban<strong>do</strong>nar o automóvel na via<br />

pública. (CALLADO, 2001, 176)<br />

Assim, antes mesmo que a guerrilha fosse empreendida, aos poucos vai sen<strong>do</strong><br />

desmantelada, até chegar ao esfacelamento total pela ação <strong>do</strong>s militares: Joelmir, sem<br />

estabelecer contato com os “guerrilheiros” e cansa<strong>do</strong> de esperar, desiste da revolução:<br />

Durante quatorze meses estive sem notícia de lugar, nem de<br />

Montividéu, nem de São Paulo, nem de vocês no Rio. Nada, nada.<br />

[...]<br />

Caíram os guerrilheiros na serra <strong>do</strong> Caparão, João, caíram de armas<br />

na mão, caíram apodreci<strong>do</strong>s de esperar, como eu esperava. (CALLADO,<br />

2001, p. 118-119)<br />

A partir daí, sucedem-se os malogros que desencadearão o fracasso efetivo <strong>do</strong><br />

processo revolucionário: Che, o grande “Comandante”, é captura<strong>do</strong> e fuzila<strong>do</strong>. João e<br />

Geraldino são mortos pela polícia. Murta, que consegue escapar da perseguição,<br />

enlouquece. Resta aos egressos <strong>do</strong> grupo, já totalmente desintegra<strong>do</strong>, reavivar, pela<br />

memória, o fracasso e a derrota, ou como fazem Mariana, Laurinha e Aniceto, resolvem


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se engajar novamente contra o regime militar, desta vez, seqüestran<strong>do</strong> um avião e<br />

fugin<strong>do</strong> para Cuba.<br />

Como os fatos narra<strong>do</strong>s são suspensos no início desse trajeto, o leitor não sabe,<br />

pela voz/olhar narrativos, qual o desfecho dessa nova atitude engajada. Sabe-se que tais<br />

personagens ainda aguardam alguma libertação, ainda que “aquela liberdade que<br />

ninguém escolhe, que ninguém prefere, que chega para alguns como chega para to<strong>do</strong>s, a<br />

noite (CALLADO, 2001, p. 254).<br />

A despeito da tonalidade pessimista que emana <strong>do</strong> final da narrativa, fruto <strong>do</strong><br />

quase total esmaecimento <strong>do</strong>s projetos utópicos/revolucionários, ainda resvala - a partir<br />

da crítica construída em torno da ausência de organização <strong>do</strong>s personagens ao se<br />

mobilizarem contra o regime militar - algum resquício de esperança e credibilidade<br />

numa possível superação dessa conturbada realidade. Isso caso haja, numa nova<br />

tentativa de superá-la, organização e plena conciliação <strong>do</strong>s ideais revolucionários, em<br />

parte concebi<strong>do</strong>s pela própria “esquerda festiva”, a uma prática essencialmente eficaz.<br />

O que já não ocorrerá, por exemplo, em Sempreviva, como veremos a seguir.<br />

2 ... ÀS INTROJEÇÕES DE UM SENTIMENTO DE DERROTA<br />

2.1 SEMPREVIVA<br />

Diferentemente Bar Don Juan, Sempreviva já não incorpora em sua economia<br />

narrativa o ideal utópico/revolucionário de empreendimento de vastas e profundas<br />

transformações no quadro sócio-político brasileiro, no contexto pós-64. Nem mesmo<br />

para submeter tal ideal a um julgamento crítico e/ou a um olhar avalia<strong>do</strong>r, como por<br />

exemplo, acontece em Bar Don Juan. Mesmo porque a temporalidade histórica<br />

ficcionalizada – fins da década de 70 – coincide com as aragens de abertura política no<br />

Brasil; momento em que as esperanças depositadas na possibilidade de superação das<br />

contradições da realidade, via revoloução, já estão praticamente esmaecidas.


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Nesse senti<strong>do</strong>, como afirma Bastos (2000, p. 34), “não há dúvida de que Sempreviva<br />

corresponde a um esvaziamento da representação da realidade política brasileira<br />

baseada na matéria de extração histórica”, uma vez que “o protagonista tem já a<br />

amarga experiência de saber no que deram tanto o impulso heróico de Nan<strong>do</strong> quanto<br />

o visionarismo <strong>do</strong>s guerrilheiros de Bar Don Juan [...].”<br />

Estruturalmente organizada em 52 capítulos, distribuí<strong>do</strong>s em três partes – “Regresso<br />

à chácara materna”, “O dia da caça” e “A deusa arrumadeira” – a narrativa<br />

[...] trabalha a conversão <strong>do</strong> histórico em íntimo por meio da<br />

inserção de um olhar múltiplo que, focalizan<strong>do</strong> de diferentes perspectivas<br />

as ações e os personagens, relativiza a objetividade <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r<br />

heterodiegético. Além disso, as freqüentes ocasiões em que a voz <strong>do</strong><br />

narra<strong>do</strong>r fragiliza-se diante da exposição íntima da personagem – por<br />

meio <strong>do</strong> discurso indireto-livre, na maior arte das vezes, e <strong>do</strong> fluxo de<br />

consciência, em momentos mais tensos <strong>do</strong> romance – faz com que se<br />

tenha acesso aos des<strong>do</strong>bramentos afetivos <strong>do</strong> que, um dia, foi apenas<br />

político. (ROCHA, 2007)<br />

Desse mo<strong>do</strong>, ao passo que em em Bar Don Juan evidencia-se a mobilização <strong>do</strong>s<br />

protagonistas em torno de um projetos coletivo/revolucionário, em Sempreviva, o que<br />

temos é o empreendimento de um “projeto individual” (BASTOS, 2000, p. 33): Quinho<br />

– personagem protagonista – após dez anos de exílio em Londres, retorna<br />

clandestinamente ao Brasil pela fronteira boliviana, com o intuito de localizar e expor<br />

“ao mun<strong>do</strong>, em toda sua feiúra” (CALLADO, 1981, p. 25), os tortura<strong>do</strong>res e assassinos<br />

de sua amante Lucinda – a “sempreviva” em sua memória.<br />

No entanto, como explicita Rocha (2007):<br />

O protagonista persegue os assassinos de Lucinda não mais porque<br />

tenha qualquer firmeza ideológica que motive ações políticas, mas porque<br />

precisa remover, de seu íntimo, a lembrança da companheira. Sequer<br />

pode-se identificar a atitude de Quinho com a tentativa de vingá-la. O que<br />

ele deseja, outrossim, é um novo começo, é o exorcismo da lembrança<br />

onipresente de Lucinda por meio da execração pública de seus carrascos.<br />

A morte deles - física ou moral – significaria o desaparecimento da<br />

sempreviva e a possibilidade de reencontrar o fio de sua vida, que a morte<br />

de Lucinda suspendera.


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Assim, enquanto os personagens de Bar Don Juan, agem contra as contradições<br />

de uma realidade marcada pela opressão, repressão e censura, de que os mesmos estão<br />

sen<strong>do</strong> vítimas no presente <strong>do</strong>s fatos narra<strong>do</strong>s, em Sempreviva tais contradições já foram<br />

incorporadas subjetivamente pelos sujeitos que as vivenciaram. É à medida que Quinho<br />

age, sobretu<strong>do</strong>, consigo mesmo, numa tentativa de reconstituir os fragmentos <strong>do</strong> seu eu,<br />

estilhaça<strong>do</strong> pelas violências de que se tornou vítima no passa<strong>do</strong>, que os próprios<br />

fragmentos de uma realidade essencialmente degenerada vão sen<strong>do</strong> delinea<strong>do</strong>s.<br />

Quan<strong>do</strong> Quinho retorna ao Brasil, “os homens que mataram Lucinda já não são<br />

os mesmos” (BASTOS, 2000, p. 34): Ari Knut, o principal mentor, encontra-se<br />

disfarça<strong>do</strong> sob a falsa identidade de Juvenal Palhano, sujeito erudito, ocupa<strong>do</strong> em<br />

investigar o canto <strong>do</strong>s pássaros e cultivar plantas carnívoras; Claudemiro Antero, vulgo<br />

Antero Varjão, também já não exerce a mesma atividade de torturar e exterminar<br />

humanos, e agora caça animais: situa<strong>do</strong> numa fazenda em Corumbá (Onça sem Roupa –<br />

no Brasil e La Pantanera – na Bolívia), o personagem, em companhia de outros<br />

onceiros, dedica-se à perseguição e ao aprisionamento de animais, principalmente<br />

onças, à venda de peles e ainda ao tráfico de cocaína. Para investigá-los, o próprio<br />

Quinho assume a máscara de um escritor envia<strong>do</strong> pela Wildlife Fundation, a fim de<br />

escrever sobre o <strong>Pantanal</strong>:<br />

da autora):<br />

Bom disse Antero, como quem já investigou as possibilidades de<br />

interesse <strong>do</strong> interlocutor e não se entusiasmou demais. Quer dizer que<br />

você está escreven<strong>do</strong> um livro... sobre o que mesmo?<br />

Fazendas <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong>. O futuro desta zona é fantástico, bastan<strong>do</strong><br />

uma checada no que já entrava nestas terás de dólares <strong>do</strong> Texas e em<br />

moedas da moda, como o iene, o marco alemão, em busca de proteína<br />

animal e de cavalos pantaneiros, cães de fila, para nem falar no ferro de<br />

Urucum, nos diamantes...<br />

[...]<br />

- Pode fazer o que quiser, disse o Onceiro, se levantan<strong>do</strong> de repente,<br />

a casa é sua. Deve ter umas onças na jaula aí e jaguatiricas, uns gatos<br />

maracajá da última caçada. E olha, volta quan<strong>do</strong> quiser, não precisa falar<br />

com ninguém não, vai entran<strong>do</strong>. (CALLADO, 1981, p. 36-37)<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, os personagens de Sempreviva, como afirma Rocha (2007, grifo<br />

[...] compõem-se de traços <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>: o ex-delega<strong>do</strong>, o extortura<strong>do</strong>r,<br />

o ex-militante de esquerda, a ex-guerrilheira. Tais personagens,<br />

lança<strong>do</strong>s num hoje em que aqueles traços já não podem mais, sozinhos, os


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explicar, os preencher, surgem vagan<strong>do</strong> num entre ambíguo representa<strong>do</strong><br />

pela fronteira, mas também pelo momento histórico de uma abertura<br />

política que ainda não é, efetivamente. O ex-delega<strong>do</strong> é, agora, onceiro; o<br />

ex-tortura<strong>do</strong>r, admira<strong>do</strong>r de plantas raras e de música clássica; o exmilitante<br />

político agora é ativista ambiental. To<strong>do</strong>s, porém, na medida em<br />

que agregam traços de <strong>do</strong>is momentos distintos, o passa<strong>do</strong> e o presente,<br />

não se reconhecem como totalidade nem no que eram antes, nem no que<br />

são agora. O único personagem não fragmenta<strong>do</strong> é Lucinda que, capturada<br />

pela morte, suspensa no tempo pela memória de Quinho, cristalizou-se em<br />

sua integridade de militante de esquerda e de amante.<br />

Assim, na medida em que Quinho busca reconstituir os próprios estilhaços numa<br />

tentativa de compreender a si mesmo, o outro e a própria realidade que o circunda, sem<br />

que haja, no entanto, o impulso utópico de querer modificá-la, paralelamente, os<br />

fragmentos <strong>do</strong> universo <strong>do</strong> ex-tortura<strong>do</strong>r, também responsável pela morte de duas<br />

agentinas – Corina Hernándes e Violeta Linares – vai sen<strong>do</strong> desvenda<strong>do</strong> com toda a sua<br />

crueza e violência, o que se faz sentir na própria caoticidade da linguagem:<br />

[..] a porra <strong>do</strong> caralho de ter gente no mun<strong>do</strong> é que se ele tivesse um<br />

puto dum filho de pele mosqueada e já pari<strong>do</strong> com bigode de gato – ai que<br />

aí mesmo é que não parava mais de aparecer na fazenda via<strong>do</strong>s <strong>do</strong> jornal e<br />

da tevê, e iam querer saber de novo, eternamente, se o frei tinha si<strong>do</strong><br />

enforca<strong>do</strong> de tanto que enrabavam ele ou se ele Claudemiro, tinha mesmo<br />

testa<strong>do</strong> com o cabo da vassoura a virgindade da babaca, um tanto<br />

engelhada, diga-se passagem, da madre. [...] o caralho, a porra da situação,<br />

é que se a corja descobrisse ia ter sempre e sempre aqueles via<strong>do</strong>s<br />

queren<strong>do</strong> entrevista pra saber <strong>do</strong> cabaço da madre – tinha, porra – e <strong>do</strong> cu<br />

<strong>do</strong> frei, ou mesmo porra mais recente e mais fodida sobre a tal da Corina<br />

[...] de tanto não querer abrir a boca nem a cona teve que abrir a cova lá<br />

dela, o que afinal é feito fazer a própria cama, porra, o que é que tem, qual<br />

é o pó, só que fazer a cama pra <strong>do</strong>rmir um sono da pesada – ai, até que rir<br />

demais é uma porra de viadagem mas só a gente se desbucetean<strong>do</strong> de<br />

novo de pensar na Corina cavan<strong>do</strong> lá a cama dela e choran<strong>do</strong>, nua em<br />

pêlo, bem ainda apesar da gente ter tosquia<strong>do</strong> o cabelo dela nem sei mais<br />

por que, sacanagem [...]. (CALLADO, 1981, p. 104-105)<br />

Quinho consegue ter êxito em seu projeto particular: causa a morte de<br />

Palhano/Knut e de Claudemiro/Antero, tortura<strong>do</strong>res e assassinos de Lucinda. No<br />

entanto, a realidade brasileira ainda não se encontrava preparada para ver expostas suas<br />

facetas obscuras e absurdas. Logo, o que resta ao sujeito que intenta não mais modificá-<br />

la, mas expô-la e tentar compreendê-la, é ser reduzi<strong>do</strong> à desintegração total, tal como<br />

Lucinda foi:<br />

Isto – a bulha que dele próprio vinham – o impediu de ouvir o tema,<br />

o motivo musical, o rangi<strong>do</strong> de couros de Dianuel que se aproximava, que


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 61<br />

levantava pelo cano a coronha <strong>do</strong> 45, e, exageran<strong>do</strong> muito na força <strong>do</strong><br />

braço, lhe fendia a cabeça [...] Quinho ainda teve tempo de ver o copo que<br />

afinal se estilhaçava no chão. E desta vez ele guar<strong>do</strong>u para sempre, na sua,<br />

sem soltá-la, a mão de Lucinda, e guar<strong>do</strong>u ela própria, toda ela, Lucinda<br />

perene, perpétua, imortal, sempreviva. (CALLADO, 1981, p. 289)<br />

É nesse momento, portanto, que ocorre com Quinho “a conquista de uma<br />

integridade impossível de alcançar em vida. A mesma integridade de Lucinda, suspensa<br />

no tempo e cristalizada pela memória” (ROCHA, 2007). Resta, assim, ao leitor, além da<br />

certeza de um efetivo esmaecimento <strong>do</strong>s projetos utópicos delinea<strong>do</strong>s para a nação, a<br />

estupefação diante da persistente brutalidade transfigurada na ausência de receptividade<br />

aos próprios filhos expeli<strong>do</strong>s da pátria.<br />

Considerações Finais<br />

A partir das discussões acima arroladas, podemos afirmar que há, nos romances<br />

analisa<strong>do</strong>s, um gradativo esfacelamento de projetos utópicos delinea<strong>do</strong>s para a nação.<br />

Em Bar Don Juan, a partir da exposição <strong>do</strong> fracasso de uma resistência ao regime<br />

militar, o que emerge da narrativa é uma tonalidade pessimista e desiludida. Tal<br />

tonalidade, ao se projetar para além da ficção, desestabiliza as credibilidades<br />

depositadas na reversão da realidade essencialmente degenerada. Assim, a derrota <strong>do</strong>s<br />

“guerrilheiros” que se mobilizaram em prol de uma revolução político-social é, por<br />

extensão, a transfiguração de uma derrota da própria nação.<br />

Marca<strong>do</strong>s pela exacerbação desse sentimento de derrota é que, por exemplo, em<br />

Sempreviva, os sujeitos sequer terão impulsos para buscar o empreendimento de algo<br />

grandioso no Brasil. O que podemos notar são as próprias marcas da opressão e da<br />

repressão incorporadas subjetivamente pelos indivíduos que as vivenciaram. Daí a<br />

consciência <strong>do</strong>s mesmos se nos apresentarem de forma desconexa, estilhaçada e toldada<br />

por um significativo tom de ceticismo. Definham-se, de fato, os já esmaeci<strong>do</strong>s projetos<br />

utópicos, e, paralelamente, surge uma multiplicidade de aspectos, se fazem sentir até os<br />

dias atuais.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 62<br />

No entanto, seja ao transfigurarem uma projeção utópica para além da ficção,<br />

seja ainda ao reelaborarem, questionarem e/ou problematizarem o esmaecimento de<br />

uma utopia, ambos os romances transcendem às questões atadas a uma época e a uma<br />

temporalidade específicas: a própria contingência sócio-histórica com a qual dialogam.<br />

E, assim, ao fazê-lo, atingem a essência de qualquer realidade socialmente degradada e<br />

tocam, de forma profunda, na própria sensibilidade humana.<br />

REFERÊNCIAS<br />

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Janeiro: Caetés, 2000.<br />

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CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

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CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 64<br />

QUINTAL E GALINHA: ESPAÇOS POÉTICOS EM A VIDA<br />

ÍNTIMA DE LAURA, DE CLARICE LISPECTOR.<br />

Mariângela Alonso 1<br />

RESUMO: Publica<strong>do</strong> em 1974, A vida íntima de Laura, terceiro livro infantil de<br />

Clarice Lispector, apresenta diversos personagens de mo<strong>do</strong> a revelar o cotidiano <strong>do</strong>s<br />

galos e galinhas presentes ao quintal de D. Luisa. A exemplo da obra para adultos, os<br />

livros infantis da escritora tocam em temas ontológicos, recorren<strong>do</strong> a questões<br />

filosóficas. Assim, o quintal surge como um grande espaço que abriga a imaginação —<br />

os devaneios <strong>do</strong> ser. Uma leitura nessa direção tem como embasamento ensaios críticos<br />

que examinam a produção infantil de Clarice Lispector, bem como instrumentais<br />

teóricos que iluminam o tema; tais como as teorizações acerca <strong>do</strong> espaço apresentadas<br />

por Gaston Bachelard.<br />

PALAVRAS-CHAVE: espaço; quintal; Clarice Lispector; A vida íntima de Laura.<br />

BACKYARD AND CHICKEN: POETICS SPACES IN LAURA’S<br />

INTIMATE LIFE, BY CLARICE LISPECTOR.<br />

ABSTRACT: Published in 1974, Laura’s intimate life, the third children's book by<br />

Clarice Lispector, has several characters in order to reveal the daily life of these<br />

chickens and roosters in the Mrs. Luisa’s backyard. The example of the work for adults,<br />

the children's books by Clarice Lispector touch on ontological issues, drawing on<br />

philosophical questions. Thus, the backyard is a large space that houses the imagination<br />

- the daydreams of being. This direction has a reading light as critical tests that examine<br />

the production of child Clarice Lispector, and theoretical tools that illuminate the theme,<br />

such as theories about the space made by Gaston Bachelard.<br />

KEY-WORDS: space; backyard; Clarice Lispector; Laura’s intimate life.<br />

INTRODUÇÃO: COÁGULOS LÍRICOS<br />

Ao longo de um processo de escrita ficcional, Clarice Lispector criou uma<br />

espécie de encontro particular com o público, buscan<strong>do</strong> a cumplicidade <strong>do</strong> leitor não<br />

1 Professora das Faculdades Integradas Fafibe. Mestre em Estu<strong>do</strong>s Literários pela UNESP – Araraquara<br />

maryalons@ig.com.br


CARANDÁ<br />

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apenas identifica<strong>do</strong> com a sua obra, mas também com os procedimentos literários que a<br />

singularizaram em nossa Literatura.<br />

Suas narrativas obrigam a uma reflexão em torno da linguagem literária e <strong>do</strong>s<br />

mecanismos de representação da realidade, sobretu<strong>do</strong>, em torno da polissemia existente<br />

em seu discurso poético. A inovação, operada por Clarice, organizou-se numa narrativa<br />

fragmentada, desinteressada <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> factual, alicerçada no fluxo de consciência.<br />

Desde sua primeira obra, Perto <strong>do</strong> Coração Selvagem (1944), a escritora<br />

despertou um horizonte novo de expectativas para o público brasileiro e em relação à<br />

escrita ficcional, provocan<strong>do</strong> impacto na crítica que, àquela altura, não se mostrava<br />

pronta para adentrar no complexo universo romanesco construí<strong>do</strong> por seus romances. A<br />

publicação <strong>do</strong> primeiro livro revela uma personalidade literária delineada por sua escrita<br />

transgressora.<br />

Antonio Candi<strong>do</strong>, em julho de 1944 no artigo intitula<strong>do</strong>, com acerto, “No raiar<br />

de Clarice Lispector”, destaca a “performance da melhor qualidade” da escritora. Na<br />

visão <strong>do</strong> crítico, a autora:<br />

[...] colocou seriamente o problema <strong>do</strong> estilo e da<br />

expressão. Sobretu<strong>do</strong> desta. Sentiu que existe uma certa<br />

densidade afetiva e intelectual que não é possível exprimir se<br />

não procurarmos quebrar os quadros da rotina e criar imagens<br />

novas, novos torneios, associações diferentes das comuns e<br />

mais fundamente sentidas. A descoberta <strong>do</strong> cotidiano é uma<br />

aventura sempre possível, e o seu milagre, uma<br />

transfiguração que abre caminho para mun<strong>do</strong>s novos.<br />

(Candi<strong>do</strong>, 1970, p.128).<br />

Assim o texto de Clarice Lispector abre novas perspectivas para o mun<strong>do</strong><br />

literário. Em suas narrativas, o enre<strong>do</strong>, bem como as personagens, as referências de<br />

tempo e espaço ganham novos significa<strong>do</strong>s.<br />

Com essa visão renova<strong>do</strong>ra o enre<strong>do</strong> se rarefaz, os personagens são poucos e<br />

muitas vezes apresentam-se sem as características exteriores próprias das extensas<br />

descrições da ficção tradicional. Por sua vez, o discurso lógico não tem mais senti<strong>do</strong><br />

com a desrealização <strong>do</strong> real.


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 66<br />

Segun<strong>do</strong> José Américo Motta Pessanha, “crianças povoam a obra de Clarice<br />

Lispector, em convite à desintelectualização: caminho de retorno à realidade viva e<br />

autêntica <strong>do</strong> homem” (1989, p. 187). A exemplo da obra para adultos, os livros infantis<br />

de Clarice Lispector tocam em temas ontológicos, recorren<strong>do</strong> a questões filosóficas. O<br />

aspecto “infantil” prevalece por sua singularidade, de mo<strong>do</strong> que não há em momento<br />

algum a perda de qualidade estética ou literária em relação à obra para adultos.<br />

Conforme já observa<strong>do</strong> pela crítica, a autora mantém, na categoria infantil, as<br />

discussões a respeito <strong>do</strong>s mesmos temas, tais como a morte, a procura, o senti<strong>do</strong> da<br />

existência.<br />

O texto infantil clariceano apresenta-se como um espaço repleto de<br />

criatividade, propício ao imaginário <strong>do</strong> leitor mirim. Neste senti<strong>do</strong> o presente artigo tem<br />

como objetivo discutir alguns aspectos da produção infantil de Clarice Lispector,<br />

principalmente no que tange ao espaço imaginário, toman<strong>do</strong> como ponto de partida a<br />

narrativa de A vida íntima de Laura.<br />

QUINTAL E GALINHA: ESPAÇOS POÉTICOS<br />

Com uma pequena obra direcionada ao leitor mirim, Clarice Lispector enriquece<br />

a literatura infantil brasileira com mais um espaço de criação, imaginação, reflexão e<br />

deleite, além <strong>do</strong> trabalho estético da palavra.<br />

Escreven<strong>do</strong> inicialmente a pedi<strong>do</strong> de um de seus filhos, Clarice consegue<br />

adentrar o espaço imaginário infantil, na medida em que recria a própria realidade.<br />

Publica<strong>do</strong> em 1974, A vida íntima de Laura, terceiro livro infantil da escritora,<br />

reúne um espaço repleto de criatividade, que contribui para a formação leitora, crítica e<br />

imaginativa das crianças.<br />

Essa narrativa apresenta-se como uma composição lúdica, ao brincar com a<br />

identificação da personagem Laura, numa espécie de jogo de adivinhação com o leitor:<br />

“Agora adivinhe quem é Laura. Dou-lhe um beijo na testa se você adivinhar. E duvi<strong>do</strong>


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que você acerte! Dê três palpites. Viu como é difícil? Pois Laura é uma galinha”<br />

(Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>). As palavras de Lícia Manzo esclarecem-nos esta<br />

questão ao tratar da figura <strong>do</strong> leitor nas narrativas infantis da autora:<br />

Em suas histórias infantis, Clarice frequentemente<br />

solicita seus leitores-mirins a adivinhar coisas, inventar<br />

histórias, responder perguntas. E embora a trama de seus<br />

livros feitos para crianças seja, invariavelmente, bastante<br />

escassa, esse despojamento é compensa<strong>do</strong> pela vivacidade de<br />

uma voz que se faz tão íntima, que se torna impossível para o<br />

leitor ficar indiferente a seus apelos. (Manzo, 1997, p. 175)<br />

A obra destaca-se por apresentar um enre<strong>do</strong> descompromissa<strong>do</strong> com uma<br />

sequência rígida, de mo<strong>do</strong> que a história de Laura, “[...] uma galinha muito da simples”<br />

(LISPECTOR, 1999, não pagina<strong>do</strong>) parece acabar de repente.<br />

O comportamento ataranta<strong>do</strong> e inocente da galinha, bem como sua descrição são<br />

apresenta<strong>do</strong>s de maneira brincalhona pela autora: “[...] Laura tem o pescoço mais feio<br />

que já vi no mun<strong>do</strong> [...] Laura é bastante burra. [...] Ela pensa que pensa. Mas em geral<br />

não pensa em coisíssima alguma” (Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>). Desta forma, “sua<br />

não-idealização é absoluta”, conforme observa<strong>do</strong> por Vilma Áreas (2005, p. 127).<br />

Logo no início <strong>do</strong> texto, observamos a aproximação <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r com o leitor,<br />

que se apresenta no seguinte diálogo: “Vou logo explican<strong>do</strong> o que quer dizer vida<br />

íntima. É assim: vida íntima quer dizer que a gente não deve contar a to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> o que<br />

se passa na casa da gente. São coisas que não se dizem a qualquer pessoa” (Lispector,<br />

1999, não pagina<strong>do</strong>).<br />

A autora estabelece, portanto, uma cumplicidade com seus interlocutores,<br />

deixan<strong>do</strong> transparecer a subjetividade que constitui um <strong>do</strong>s traços marcantes presentes<br />

em sua obra. Na visão de Nádia Battella Gotlib, a narrativa “[...] centra sua atenção<br />

inicial justamente naquilo que não é socializável, comunicável, narrável: a intimidade”<br />

(1995, p. 413).<br />

Nessa história de intimidade e de família, desfilam diversos personagens de<br />

mo<strong>do</strong> a revelar o cotidiano <strong>do</strong>s galos e galinhas presentes ao quintal de D. Luisa. Assim,


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o quintal surge como um grande espaço que abriga a imaginação — os devaneios <strong>do</strong><br />

ser.<br />

Segun<strong>do</strong> Gaston Bachelard em A poética <strong>do</strong> espaço, a topoanálise é o<br />

estu<strong>do</strong> psicológico e sistemático <strong>do</strong>s locais da vida íntima.<br />

A noção de casa é apresentada por Bachelard como sen<strong>do</strong> vivida não apenas no<br />

momento presente, mas também por meio de pensamentos e sonhos, inserida em<br />

qualquer espaço essencialmente habita<strong>do</strong>. Oniricamente visitada, a casa constitui uma<br />

das maiores integrações para os pensamentos e sonhos <strong>do</strong> ser. Nela prevalecerão os<br />

valores de intimidade <strong>do</strong> espaço interior de seus narra<strong>do</strong>res.<br />

Estenden<strong>do</strong> a noção de casa apresentada por Bachelard ao quintal de <strong>do</strong>na Luísa,<br />

local onde vive a galinha Laura, notamos que habitar o espaço, na perspectiva <strong>do</strong><br />

imaginário é semelhante ao fato de viver novas experiências, pois “o espaço<br />

compreendi<strong>do</strong> pela imaginação não pode ficar sen<strong>do</strong> o espaço indiferente aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> à<br />

reflexão <strong>do</strong> geômetra. É vivi<strong>do</strong>. E é vivi<strong>do</strong> não em sua positividade, mas com todas as<br />

parcialidades da imaginação”. (Bachelard, 1976, p. 18).<br />

Isso faz senti<strong>do</strong> se observarmos a presença de diversas aventuras ocorridas no<br />

quintal de Dona Luísa. Cabe destacar a presença repentina e malograda <strong>do</strong> “ladrão de<br />

galinhas” que chega para roubar Laura:<br />

Uma bela noite... bela coisa nenhuma! Porque foi terrível. Um<br />

ladrão de galinhas tentou roubar Laura no escuro <strong>do</strong> quintal. Mas<br />

Laura fez uma barulheira tão tremenda que agitou todas as galinhas<br />

e elas começaram a cacarejar. [...] Dona Luísa acendeu as luzes da<br />

casa toda, acendeu as luzes <strong>do</strong> quintal e o ladrão teve tanto me<strong>do</strong><br />

que fugiu. Dizem que até hoje ele anda corren<strong>do</strong>. (Lispector, 1999,<br />

não pagina<strong>do</strong>)<br />

A linguagem, bastante próxima da oralidade somada a rapidez <strong>do</strong>s eventos<br />

resulta num efeito de senti<strong>do</strong> que transcende a narrativa, deixan<strong>do</strong> o pensamento <strong>do</strong><br />

leitor livre para criar. Assim, o quintal, ou seja, a parte mais livre da casa de Dona Luísa<br />

revela-se como o lugar em que o leitor poderá intensificar sua vida pelo imaginário: “a<br />

imaginação, em suas ações vivas, nos desliga ao mesmo tempo <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e da<br />

realidade. Aponta para o futuro” (Bachelard, 1976, p. 17).


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Ao abordar a presença das paisagens nas obras literárias, Jacqueline Held<br />

destaca os lugares afetivos da infância, tais como certas casas, árvores-esconderijo e<br />

jardins. Segun<strong>do</strong> a estudiosa, há nestes espaços aspectos que “[...] alimentam o<br />

imaginário <strong>do</strong> homem, que desempenham papel decisivo em seu crescimento,<br />

elementos que envolvem a criança e que jamais cessam de envolver” (Held, 1980, p.<br />

78). Para Held “a paisagem imaginária reúne também os desejos e as nostalgias <strong>do</strong><br />

leitor, criança ou adulto, em alguns casos” (1980, p. 79). É desta forma que pensamos o<br />

quintal presente na narrativa de Clarice Lispector, como espaço interativo ao leitor,<br />

estimulante <strong>do</strong> imaginário. Abrigan<strong>do</strong> a galinha Laura e as aventuras, o quintal propicia<br />

ao leitor mirim a capacidade de experimentar sensações, ter experiências que exigem<br />

imaginação para que este se encontre e se reconheça .<br />

Como Laura era conhecida pela qualidade de botar muitos ovos “em to<strong>do</strong> o<br />

galinheiro e mesmo no das vizinhanças” (Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>), Dona Luísa a<br />

empresta a um quintal vizinho, em que ela se vê entre “galinhas desconhecidas” e sem o<br />

galo Luís, com quem era “casada”. Numa seqüência rápida e contínua, a narrativa logo<br />

traz a personagem no espaço <strong>do</strong> antigo quintal: “Depois tu<strong>do</strong> foi melhoran<strong>do</strong> porque ela<br />

começou a arranjar amigas entre as galinhas e botou grande quantidade de ovos. Então<br />

voltou para o seu verdadeiro quintal”. (Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>).<br />

Neste senti<strong>do</strong>, as palavras de Bachelard são esclarece<strong>do</strong>ras no que tange à<br />

função de habitar:<br />

Aloja<strong>do</strong> por toda parte, mas sem estar preso a lugar algum, tal<br />

a divisa <strong>do</strong> sonha<strong>do</strong>r de moradas. Na casa final como em minha<br />

casa real, o devaneio de habitar é engana<strong>do</strong>. É preciso sempre<br />

deixar aberto um devaneio de outro lugar. (Bachelard, 1976, p. 59)<br />

Além de explorar a imaginação <strong>do</strong> leitor mirim por meio <strong>do</strong> espaço físico <strong>do</strong> quintal<br />

e da magia presente na personagem Laura, a autora mergulha o texto numa espécie<br />

de jogo pueril, numa profunda relação de cumplicidade: “Quan<strong>do</strong> eu era <strong>do</strong> tamanho<br />

de você, ficava horas e horas olhan<strong>do</strong> para as galinhas. Não sei por quê. Conheço<br />

tanto as galinhas que podia nunca mais parar de contar” (Lispector, 1999, não<br />

pagina<strong>do</strong>).<br />

Por meio de uma linguagem aparentemente ingênua, porém repleta de<br />

criatividade, o narra<strong>do</strong>r clariceano aproveita-se também para descortinar as armadilhas


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<strong>do</strong> pensamento lógico-racional <strong>do</strong> adulto, lançan<strong>do</strong> ao leitor mirim um universo de<br />

incertezas:<br />

Você sabe que Deus gosta de galinha? E sabe como é que eu sei que<br />

Ele gosta? É o seguinte: se Ele não gostasse de galinha, Ele<br />

simplesmente não fazia galinha no mun<strong>do</strong>. Deus gosta de você<br />

também senão Ele não fazia você. Mas por que faz ratos? Não sei.<br />

(Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>)<br />

As perguntas <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r em torno <strong>do</strong>s animais revelam-se de forma intrigante<br />

na medida em que requerem a participação <strong>do</strong> leitor. Ao fazer parte da vida das<br />

crianças, os animais acabam por pertencer ao seu imaginário, manten<strong>do</strong> uma boa<br />

identificação:<br />

[...] frente ao mun<strong>do</strong> adulto que normaliza, onde to<strong>do</strong>s se<br />

erigem em juiz, a criança encontra, no conto de animais, refúgio,<br />

desforra, pausa recreativa e compensa<strong>do</strong>ra que permitirá melhor<br />

enfrentar esse universo de regras que ela deverá assumir à medida<br />

de suas forças e à sua própria maneira. (Held, 1980, p. 108)<br />

Ao mencionar os ratos, A vida íntima de Laura aborda questões existenciais à<br />

criança, na medida em que levanta reflexões. Ao observar os temas que rondam os<br />

textos de Clarice Lispector encontramos os mesmos traços questiona<strong>do</strong>res presentes na<br />

obra para adultos, mais especificamente na escrita de A paixão segun<strong>do</strong> G.H., em torno<br />

das espécies de animais. A personagem G.H. discorre sobre a criação e a existência de<br />

seres imun<strong>do</strong>s de forma a mencionar a lista de animais imun<strong>do</strong>s inventariada pela Bíblia<br />

em Levítico 11:13:<br />

Eu me sentia imunda como a Bíblia fala <strong>do</strong>s imun<strong>do</strong>s. Por que<br />

foi que a Bíblia se ocupou tanto <strong>do</strong>s imun<strong>do</strong>s, e fez uma lista <strong>do</strong>s<br />

animais imun<strong>do</strong>s e proibi<strong>do</strong>s? Por que se, como os outros, também<br />

eles haviam si<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>s? E por que o imun<strong>do</strong> era proibi<strong>do</strong>? Eu<br />

fizera o ato proibi<strong>do</strong> de tocar no que é imun<strong>do</strong>. (Lispector, 1998, p.<br />

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A produção adulta ecoa, portanto, na obra infantil. Ao mergulharmos na<br />

narrativa de A vida íntima de Laura é impossível não recordarmos ainda o conto<br />

Uma galinha, de Laços de família e O ovo e a galinha, de Felicidade Clandestina.<br />

Como uma espécie de simulacro de ingenuidade, a linguagem de Clarice Lispector<br />

desperta na obra infantil o gosto pela imaginação e pelo questionamento, de mo<strong>do</strong><br />

que “[...] a densidade filosófica notada na obra adulta é matizada, na infantil, por<br />

uma escrita que se diverte com o ato de narrar” (OLIVEIRA, 1998, p. 127).<br />

A leitura da obra clariceana infantil apresenta-se, portanto, propícia para<br />

ampliar o universo de significa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> leitor. Neste senti<strong>do</strong>, recorremos às considerações<br />

de Marisa Lajolo a respeito da leitura literária:<br />

É à literatura, como linguagem e como instituição, que se<br />

confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades,<br />

valores e comportamentos através <strong>do</strong>s quais uma sociedade<br />

expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos,<br />

suas utopias. (Lajolo, 2008, p. 106)<br />

“UMA GENTE MEIO ESQUISITONA”: ESPAÇOS LÚDICOS<br />

Além <strong>do</strong> quintal, um outro espaço é aborda<strong>do</strong> rapidamente na narrativa, trata-se<br />

da sala de jantar. Sem ser inteiramente descrito ou caracteriza<strong>do</strong>, este espaço abriga o<br />

sentimento da descoberta da morte.<br />

A galinha Laura, que “gostava muito de viver”, não hesita em colocar o bico na<br />

lama, lambuzar-se toda no quintal para que não terminasse em “molho par<strong>do</strong>” e assim<br />

fosse salva da morte, quan<strong>do</strong> então a confundem com Zeferina, a “prima de quarto<br />

grau”:<br />

Laura ouviu tu<strong>do</strong> e sentiu me<strong>do</strong>. Se ela pensasse, pensaria assim: é muito melhor<br />

morrer sen<strong>do</strong> útil e gostosa para uma gente que sempre me tratou bem, essa gente por<br />

exemplo não me matou nenhuma vez. (A galinha é tão burra que não sabe que só se<br />

morre uma vez, ela pensa que to<strong>do</strong>s os dias a gente morre uma vez). (Lispector,<br />

1999, não pagina<strong>do</strong>)


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E na hora <strong>do</strong> jantar, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s estavam senta<strong>do</strong>s ao<br />

re<strong>do</strong>r da mesa, Zeferina, prima de quarto de grau de Laura,<br />

apareceu numa travessa grande de prata, já toda em pedaços,<br />

alguns bem <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s. O filho e a filha de Dona Luísa,<br />

Lucinha e Carlinhos, comeram, embora com pena, Zeferina<br />

com arroz branco e solto e regaram tu<strong>do</strong> com molho par<strong>do</strong>.<br />

(Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>)<br />

O narra<strong>do</strong>r não oferece detalhes sobre os espaços desta sala de jantar. Bachelard<br />

atenta para o fato de que os desenhos vivi<strong>do</strong>s não necessitam ser exatos, basta que<br />

“sejam tonaliza<strong>do</strong>s pelo mo<strong>do</strong> de ser <strong>do</strong> nosso espaço interno” (1976, p.27). A situação<br />

<strong>do</strong> “pitoresco excessivo” pode muitas vezes esconder a intimidade da casa. Esta repousa<br />

mais em uma evocação onírica <strong>do</strong> que na descrição conclusa e minuciosa: “a casa<br />

vivida não é uma caixa inerte. O espaço habita<strong>do</strong> transcende o espaço geométrico”<br />

(Bachelard, 1976, p. 49).<br />

A sala de jantar, mesmo sem a riqueza de detalhes, delineia-se como o local que<br />

traz ao leitor o questionamento da morte. Na visão de Nádia Battella Gotlib (1995, p.<br />

414), “vale observar o tom de leveza infantil para representar tais motivos de adultos”.<br />

É importante destacar o seguinte comentário <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, tecen<strong>do</strong> um questionamento<br />

existencial ao leitor mirim: “É engraça<strong>do</strong> gostar de galinha viva mas ao mesmo tempo<br />

também gostar de comer galinha ao molho par<strong>do</strong>. É que pessoas são uma gente meio<br />

esquisitona” (Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>).<br />

O quintal de Dona Luísa ganha a visita de um ser de outra galáxia. Trata-se de<br />

Xext, o “habitante de Júpiter”, que escolhe Laura por esta não ser “quadrada”:<br />

__ Por que você me escolheu para se apresentar?<br />

__ Porque você não é quadrada.<br />

Xest pronuncia-se Equzequte. É difícil, eu sei. Era mais fácil se se<br />

chamasse José ou Zequinha. (Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>)<br />

Para Bachelard, “o espaço chama a ação, e antes da ação a imaginação trabalha.<br />

Ela ceifa e lavra” (1976, p. 27). Neste senti<strong>do</strong>, ativan<strong>do</strong> a imaginação <strong>do</strong> leitor mirim a<br />

respeito desse ser espacial que surge no quintal de Dona Luísa, a autora possibilita,


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numa espécie de descoberta pueril, a renovação da linguagem, na medida em que joga<br />

com palavras diferentes: “Xext”, “Equzequte”. A leitura, assim destinada ao leitor<br />

mirim, insere-se no espaço lúdico da criação, uma vez que “a linguagem simbólica está<br />

muito próxima da criança, de sua capacidade de compreensão, pois corresponde a uma<br />

fase <strong>do</strong> desenvolvimento <strong>do</strong> seu raciocínio” (Sandroni, 1987, p. 81).<br />

Ao perguntar para Laura “como eram os humanos por dentro” o personagem<br />

Xext aponta para a questão existencial tão presente nos textos clariceanos, já que tem<br />

como resposta: “__Ah, cacarejou Laura, os humanos são muito complica<strong>do</strong>s por dentro.<br />

Eles até se sentem obriga<strong>do</strong>s a mentir, imagine só” (Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>).<br />

Por meio de uma situação inusitada e imaginária, a obra inova por provocar no<br />

leitor mirim uma reflexão a respeito <strong>do</strong>s seres, exigin<strong>do</strong> o raciocínio imagético.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS:<br />

Diferentemente <strong>do</strong>s finais clássicos da literatura infantil, a narrativa de A vida<br />

íntima de Laura apresenta o final em aberto através <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r para que o<br />

leitor invente uma “história de galinha”: “Se você conhece alguma história de galinha,<br />

quero saber. Ou invente uma bem boazinha e me conte. Laura é bem vivinha”<br />

(Lispector, 1999, não pagina<strong>do</strong>).<br />

Com um narra<strong>do</strong>r consciente de sua relação com a linguagem e a construção de<br />

sua narrativa, esse final conduz o leitor a uma interpelação, de mo<strong>do</strong> que continue a<br />

procurar um senti<strong>do</strong> no texto. Desta forma, o leitor adentra o espaço imaginário da<br />

narrativa, tornan<strong>do</strong>-se peça chave para a construção da obra:<br />

[...] o pequeno leitor é coloca<strong>do</strong> diante de textos que<br />

deliberadamente escapam ao <strong>do</strong>mínio de um saber sobre o mun<strong>do</strong> e<br />

o sujeito, daí os finais abertos de todas as narrativas, crian<strong>do</strong> um<br />

espaço de comunicação com a linguagem que demonstra a mútua<br />

implicação entre a obra para crianças e a endereçada aos adultos da<br />

autora. (Oliveira, 1998, p. 126)


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Esse é o papel da narrativa clariceana, despertar no leitor a capacidade de<br />

criar, redirecionan<strong>do</strong> a vida e os sonhos, pois “a imaginação, mais que a razão, é a força<br />

de unidade da alma humana”(BACHELARD, 2001, p. 153). Por meio <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong><br />

quintal, a narrativa de A vida íntima de Laura desperta na criança o imaginário, na<br />

medida em que traz aspectos simbólicos: “é no plano de devaneio e não no plano <strong>do</strong>s<br />

fatos que a infância permanece viva em nós e poeticamente útil” (Bachelard, 1976, p.<br />

29).<br />

Voz que se faz ouvir em toda a obra clariceana, a criança experimenta em cada<br />

obra uma nova maneira de ver e pensar o mun<strong>do</strong>. Nesse senti<strong>do</strong>, Clarice Lispector<br />

ocupa um lugar proeminente na literatura infantil na medida em que engendra diferentes<br />

formas de imaginário.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ARÊAS, Vilma. Children’s Corner. In: ______. Clarice Lispector: com a ponta <strong>do</strong>s<br />

de<strong>do</strong>s. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 109-129.<br />

BACHELARD, G. A poética <strong>do</strong> espaço. Tradução de Antônio da Costa Leal e Lídia <strong>do</strong><br />

Valle Santos Leal. Rio de Janeiro: Livraria El<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> Tijuca, 1976. (Coleção<br />

Quid).<br />

______. O ar e os sonhos. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins<br />

Fontes, 2001.<br />

CANDIDO, Antonio. No raiar de Clarice Lispector. In: ______. Vários escritos. São<br />

Paulo: Duas Cidades, 1970. p. 123-131.<br />

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 4. ed. São Paulo: Ática, 1995.<br />

HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. 2 ed.<br />

Tradução de Carlos Rizzi. São Paulo: Summus, 1980. (Novas buscas em<br />

educação, v. 7).<br />

PESSANHA, José Américo Motta. Clarice Lispector: O Itinerário da Paixão. Remate de<br />

Males, Campinas, n.9, p. 181-198, 1989.<br />

LAJOLO, Marisa. Tecen<strong>do</strong> a leitura. In:______. Do mun<strong>do</strong> da leitura para a leitura <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>. 6.ed. São Paulo: Ática, 2008. p. 104-109.


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 75<br />

LISPECTOR, Clarice. A vida íntima de Laura. Ilustrações de Flor Opazo. Rio de<br />

Janeiro: Rocco, 1999.<br />

______. A paixão segun<strong>do</strong> G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.<br />

MANZO, Lícia. Clarice, crianças e animais. In: ______. Era uma vez: eu - a não-ficção<br />

na obra de Clarice Lispector. Curitiba: Secretaria de Esta<strong>do</strong> da Cultura, 1997. p.<br />

167-187.<br />

SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga: as reinações renovadas. Rio de Janeiro:<br />

Agir, 1987.<br />

OLIVEIRA, Rejane Pivetta de. Brincadeira de narrar. In: ______. Clarice Lispector: a<br />

narração <strong>do</strong> indizível/ Regina Zilberman et al. Porto Alegre: Artes e Ofícios,<br />

EDIPUC, Instituto Cultural Judaico Marc Chagal, 1998. p. 105-128.


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A IDENTIDADE FEMININA REVISITADA: UM ESTUDO DA<br />

MULHER EM VIRGINIA WOOLF E CLARICE LISPECTOR<br />

Priscila Berti Domingos 1<br />

RESUMO: O contexto deste artigo é o estu<strong>do</strong> das obras das escritoras modernistas<br />

Virginia Woolf e Clarice Lispector. O objetivo é realizar uma análise comparativa de<br />

duas obras The Voyage Out (1915), de Virginia Woolf e A Paixão Segun<strong>do</strong> GH, (1965),<br />

de Clarice Lispector, buscan<strong>do</strong> apontar, a partir de uma leitura feminista, a<br />

representação <strong>do</strong> feminino por ele mesmo na obra das duas autoras, ou seja, analisar<br />

como elas representam o feminino e a si mesmas em seus textos. Finalmente, busca-se<br />

analisar a leitura <strong>do</strong> universo feminino, isto é, como as mulheres são representadas e<br />

como elas se vêem na literatura. Através <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> de textos críticos sobre Virginia<br />

Woolf e sua obra, é possível identificar sua estreita ligação com as idéias feministas e<br />

seu ativismo neste movimento (suas idéias foram apresentadas em palestras dadas por<br />

ela mesma, e compiladas em A Room of one’s own). Em Voyage out, Virginia nos<br />

apresenta à personagem , mulher à beira de um processo de auto-conhecimento e<br />

reconhecimento como ser feminimo pulsante em uma sociedade castra<strong>do</strong>ra. O mesmo<br />

ocorre em A paixão segun<strong>do</strong> GH, de Clarice Lispector: a personagem GH passa por um<br />

momento de revelação epifânica que a leva a questionar sua condição de existência<br />

enquanto mulher. GH é escultora, independente. Apesar disso, castra-se da liberdade de<br />

ser o que é pelo me<strong>do</strong> <strong>do</strong> ridículo e <strong>do</strong> desprezo social. É possível exprimir das duas<br />

obras um grito de liberdade, que inicialmente é reprimi<strong>do</strong> pelas personagens e<br />

posteriormente, enxerga<strong>do</strong>, analisa<strong>do</strong> e transposto por elas, a partir <strong>do</strong> momento em que<br />

se permitem questionar valores e “verdades” sociais. O estu<strong>do</strong> se baseará<br />

principalmente nas idéias <strong>do</strong> feminismo francês, usan<strong>do</strong> como base os estu<strong>do</strong>s de<br />

Hélène Cixous, bem como Foucault, entre outros. Dessa forma, este trabalho tem<br />

contribuí<strong>do</strong> para entendermos melhor o universo feminino e sua reação ao mun<strong>do</strong>, além<br />

de chamar a atenção da comunidade acadêmica para a literatura feita por mulheres e a<br />

sua representação na literatura mundial.<br />

Palavras chave: Clarice Lispector, Virginia Woolf, feminino, epifania, feminismo<br />

ABSTRACT: The context of this article is the study of the works of two modernist<br />

writers, Virginia Woolf and Clarice Lispector. The main goal of this study is to analyse<br />

comparatively two of these writer’s novel, The voyage out (1920), by Virginia Woolf<br />

and A paixão segun<strong>do</strong> GH (1965), by Clarice Lispector, trying to point out, through a<br />

feminist reading, the representation of the feminine by itself on the writer’s books, that<br />

is to say, it is supposed to analyse how these authors represent the feminine universe<br />

and themselves in their texts. By studying some critical texts about Virginia Woolf and<br />

her work, it’s possible to identify her close link with the feminists and her ativism in<br />

1 Graduada em Letras pela Universidade Estadual Paulista – UNESP (Faculdade de Ciências e Letras de<br />

Araraquara); Email: prikaberti@yahoo.com.br.


CARANDÁ<br />

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this movement (her ideas were presented on speeches that she gave to university female<br />

students, and were put together in A room of one’s own. In The voyage out, Virginia<br />

presents us to a woman character, Who is in a process f self-discovery as a feminine<br />

being that pulses, that is alive, in a castrating society. The same problem occurs in A<br />

paixão segun<strong>do</strong> GH, by Clarice Lispector: the character, GH faces a epiphanic moment<br />

that makes her questioning her condition of living as a woman GH is a sculpture, an<br />

independent and single woman. Despite of this, she castrate herself of being free, of<br />

being what she is, because she is used to live without thinking of it, and she is afraid of<br />

seeming ridiculous and being rejected by the society. It’s possible to see in these two<br />

novels a scream of liberty, that initially is hidden by the characters and after, is seen,<br />

analysed and overcame by them., since the moment they allow themselves to question<br />

social values and truths. This way, this work has contributed for us to understand better<br />

the feminine universe and its reaction into the world, and tries to make the academic<br />

university pay attention to the feminine literature.<br />

Key words: Clarice Lispector, Virginia Woolf, feminine, epiphany, feminism<br />

Durante séculos, as mulheres foram submetidas às imposições e regras da<br />

sociedade patriarcal em que viviam. Desde novas, elas eram ensinadas a serem boas<br />

esposas e mães. A Igreja exercia forte pressão sobre a sexualidade feminina,<br />

justifican<strong>do</strong> seu poder castra<strong>do</strong>r através da Bíblia. Era ela quem ditava as regras <strong>do</strong> bem<br />

vestir, portar-se e pregava a necessidade de obediência aos homens. As mulheres eram<br />

conscientes de sua inferioridade, fato que remontaria à criação <strong>do</strong> homem e da mulher<br />

por Deus, uma vez que a mulher teria si<strong>do</strong> criada da costela recurva <strong>do</strong> homem e seria<br />

porta<strong>do</strong>ra natural <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> original. Devi<strong>do</strong> a sua inferioridade, as mulheres não<br />

tinham direito de frequentar escolas superiores, e, nas escolas normais, havia<br />

distribuição da matéria de acor<strong>do</strong> com o sexo. De mo<strong>do</strong> geral, ao homem era comum se<br />

ensinar a ler, escrever, contar, e, à mulher, coser, lavar, cozinhar, fazer rendas.<br />

A partir de 1789, com a Revolução Francesa e seus princípios universais de<br />

"Liberdade, Igualdade e Fraternidade" associada às ideias iluministas que pregavam<br />

que to<strong>do</strong>s os homens eram iguais, e que as desigualdades seriam provocadas pelos<br />

próprios homens, isto é, pela sociedade, começou-se a falar da mulher e de sua<br />

condição, pois se a mulher era parte da humanidade, também deveria ter o direito à<br />

igualdade como os homens. Nascia o movimento feminista, que teve como textos<br />

funda<strong>do</strong>res a Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne (1791), de Olympia<br />

de Gouges, e A vindication of the rights of woman (1792), de Mary Wollstonecraft,


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obras dedicadas à integração da mulher na sociedade e ao seu acesso à educação. Nessa<br />

época, submetidas às autoridades <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> - e <strong>do</strong> pai, enquanto solteiras - , os<br />

representantes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no seio da família, as mulheres casadas eram subjugadas a um<br />

estatuto semelhante ao <strong>do</strong>s escravos, como afirmava John Stuart Mill em On the<br />

subjection of women, publica<strong>do</strong> em 1869. De acor<strong>do</strong> com SCOTT, 1998, “a critica <strong>do</strong><br />

movimento feminista era em relação à contradição que se estabelecia entre o<br />

universalismo <strong>do</strong>s direitos políticos individuais e o universalismo da diferença sexual,<br />

uma vez que a exclusão das mulheres e a ideologia de inferioridade de sexo baseavam-<br />

se apenas na sua condição de nascimento”.<br />

Ao longo <strong>do</strong> século XIX, com o advento das ideias liberais (e seus conceitos de<br />

propriedade privada, esta<strong>do</strong> de direito e individualismo), a defesa <strong>do</strong>s direitos femininos<br />

assumiu uma representação organizada. Através de publicações de textos em jornais,<br />

como o La Citoyenne, na França, e da criação de associações pelo direito da mulher,<br />

começou-se a falar em participação feminina na política, acesso à educação igualitária,<br />

direitos trabalhistas e de expressão literária.<br />

Se na sociedade a condição da mulher era de obediência ao patriarca<strong>do</strong>,<br />

no mun<strong>do</strong> literário isso não era diferente. Inicialmente, nos textos literários, a mulher<br />

nunca aparecia como agente, mas como uma representação <strong>do</strong> olhar masculino. Havia<br />

neste perío<strong>do</strong>, um discurso idealiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> feminino: a mulher era frágil, perfeita em<br />

beleza, fraca, ingênua, submissa e feliz com sua condição de obediência. Como toda<br />

idealização, essas obras desconsideravam o real, valorizavam falsamente o sexo<br />

feminino, aprisionan<strong>do</strong>-o. Entre 1880 e 1920, surgiu a escrita feminista, que buscava<br />

padrões femininos de escrita, tentan<strong>do</strong> opor-se à literatura masculina. Essa fase foi<br />

marcada angústia da autoria feminina. Ao contrário <strong>do</strong>s homens, as mulheres não<br />

tinham mães literárias em quem se apoiar e, portanto, precisavam começar a escrever<br />

sua História sem referenciais. A questão era lidar com o desafio de escreverem em um<br />

universo patriarcal, até então só descrito através <strong>do</strong> olhar masculino.<br />

No bojo <strong>do</strong>s movimentos sociais e feministas, segun<strong>do</strong> Foucault (1982, p.<br />

211), pode-se observar o desenvolvimento de uma série de oposições que<br />

problematizaram diferentes formas de poder:


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the power of men over women, of parents over children, of<br />

psychiatry over the mentally ill, of medicine over the population, of<br />

administration over the ways people live. (Foucault, 1982, p. 208-<br />

26).<br />

Acima de tu<strong>do</strong>, estas lutas questionavam o status <strong>do</strong> indivíduo e o direito<br />

à diferença, opon<strong>do</strong>-se aos efeitos <strong>do</strong> poder relaciona<strong>do</strong>s ao conhecimento, à<br />

competência e à qualificação. Em resumo, elas se moviam em torno da questão “Quem<br />

somos nós?”. Nas palavras de Foucault,<br />

The main objective of these struggles is to attack not so much<br />

“such or such” an institution of power, or group, or elite, or class,<br />

but rather a technique, a form of power. This form of power<br />

applies itself to immediate everyday life which categorizes the<br />

individual, marks him by his own individuality, attaches him to his<br />

own identity, imposes a law of truth on him which he must<br />

recognize and which others have to recognize in him. It is a form<br />

of power which makes individuals subjects. (FOUCAULT, 1982, p.<br />

212)<br />

Em Um teto to<strong>do</strong> seu (1928), a escritora e crítica literária Virginia Woolf<br />

responsabiliza a pobreza a que estiveram relegadas suas antepassadas pela debilidade da<br />

tradição literária feminina na Inglaterra, apontan<strong>do</strong> a ausência de um sujeito feminino<br />

volta<strong>do</strong> para a escrita de sua história. Diante das vidas e obras de mulheres <strong>do</strong> passa<strong>do</strong><br />

relatadas por homens, afirma: “a mulher jamais escreve sua própria vida e raramente<br />

mantém um diário – existe apenas um punha<strong>do</strong> de cartas. Não deixou peças ou poemas<br />

pelos quais possamos julgá-la.” (2005, p. 59)<br />

É durante essa fase de repressão e luta pelos direitos de autoria femininos<br />

que Virginia Woolf (1882-1941) estréia na vida literária. Integrante <strong>do</strong> grupo de<br />

Bloomsbury - círculo de intelectuais sofistica<strong>do</strong>s que, passada a I Guerra Mundial,<br />

investiria contra as tradições literárias, políticas e sociais da era vitoriana - Virgínia<br />

publicou seu primeiro romance: The voyage out em 1920. Consciente de seu papel na<br />

sociedade e da importância de uma mudança na visão <strong>do</strong> papel feminino, Virginia<br />

publicou, em 1929, A Room of one’s own, obra na qual estabelece os princípios de suas<br />

ideias liberais: a consciência da exclusão feminina das possibilidades culturais, a<br />

<strong>do</strong>minação masculina na determinação <strong>do</strong> que ler, dizer ou fazer, a história da ascensão<br />

da mulher na tradição literária. O significa<strong>do</strong> de ser mulher para Virgínia não era algo


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limita<strong>do</strong> a uma visão unívoca. Virginia acreditava que o conhecimento da natureza da<br />

mulher passava pela experiência da expressão <strong>do</strong> feminino em to<strong>do</strong>s os campos de<br />

atuação na sociedade:<br />

I mean, what is a woman? I assure you, I <strong>do</strong> not know. I <strong>do</strong><br />

not believe that you know. I <strong>do</strong> not believe that anybody can know<br />

until she has expressed herself in all the arts and professions open<br />

to human skill. (WOOLF, 2005, p.12)<br />

Virginia era consciente das proibições que impediam o crescimento<br />

intelectual da mulher. Em seus textos, aponta as diferenças na educação de homens e<br />

mulheres, as diferenças de oportunidades e experiências de vida. Mais <strong>do</strong> que remediar<br />

o problema, a autora sentia ser necessário expor o sofrimento e a revolta <strong>do</strong> sexo<br />

feminino:<br />

Women have served all these centuries as looking-glasses<br />

possessing the magic and delicious power of reflecting the figure<br />

of man at twice his natural size. (WOOLF, 2005, p.25).<br />

Nessa passagem, nota-se que a metáfora <strong>do</strong> espelho remete à passividade<br />

destinada historicamente à mulher-esposa que, segun<strong>do</strong> a concepção de Rousseau, devia<br />

aguardar junto aos filhos a chegada triunfal <strong>do</strong> pater familias, para então dar-lhe<br />

carinhos e entretenimento após um dia de trabalho. Dessa forma, a atividade masculina<br />

surge em contraposição direta com a atividade feminina e <strong>do</strong>méstica. Quanto menor e<br />

menos rentável esta última, maior e mais produtiva a primeira. A mulher entendida<br />

como espelho amplia<strong>do</strong> <strong>do</strong> homem remete também ao próprio caráter relacional,<br />

portanto construí<strong>do</strong>, das identidades de gênero. Pode-se dizer que assim, a metáfora<br />

ganha contornos de conceito filosófico: ser é relacionar-se, projetar-se no outro.<br />

Virginia Woolf é um <strong>do</strong>s maiores nomes literários femininos de to<strong>do</strong>s os<br />

tempos. Sua importância pode ser sintetizada em <strong>do</strong>is aspectos fundamentais: de um<br />

la<strong>do</strong>, é uma das grandes expressões de uma sensibilidade específica, duramente<br />

desenvolvida, que muitos denominaram "escrita feminina", ou seja, uma literatura que,


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mais que ser feita por uma mulher, é propriamente a expressão de uma alma feminina<br />

radicalmente diferente da masculina; de outro, Virginia Woolf insere-se de maneira<br />

decisiva entre os pioneiros <strong>do</strong> romance moderno, experimental, formalmente inova<strong>do</strong>r,<br />

ao la<strong>do</strong> de nomes como Proust, Joyce e Kafka.<br />

Sua obra atravessou as fronteiras geográficas, sen<strong>do</strong>, atualmente,<br />

conhecida em quase to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. No Brasil, uma de suas leitoras foi Clarice<br />

Lispector. Se Virginia Woolf foi a primeira mulher a colocar personagens femininas<br />

como protagonistas de sua própria história, revelan<strong>do</strong> seus desejos e ambições,<br />

desvendan<strong>do</strong> sua intimidade, Clarice foi a primeira autora a trilhar esse caminho na<br />

literatura brasileira.<br />

Além da temática, ambas as autoras aproximam-se pela construção literária, pela<br />

exploração <strong>do</strong> romance lírico moderno, marca<strong>do</strong> pela descrição minuciosa de múltiplas<br />

experiências psíquicas, pela ruptura da linearidade de todas as instâncias narrativas, pela<br />

valorização da consciência individual como centro de apreensão <strong>do</strong> real, pelo fluxo<br />

mental e pelas associações livres das personagens.<br />

Dotada de especial sensibilidade, a preocupação de Clarice Lispector nunca<br />

esteve no enre<strong>do</strong>, no linear das coisas. Questões filosóficas profundas, como a verdade e<br />

a condição humana, estão colocadas em seus romances, contos e crônicas, mas sempre a<br />

partir <strong>do</strong> universo feminino de suas personagens. Essa reflexão é sempre despertada a<br />

partir de um fato aparentemente banal, e jorra como produto incontrolável de um fluxo<br />

de consciência. A tomada de consciência pelas personagens de Clarice obedece muitas<br />

vezes a um ritual reflexivo, tortuoso e, até mesmo, <strong>do</strong>loroso. E é precisamente nesses<br />

momentos que a obra da autora se revela em toda a sua beleza e profundidade, embora<br />

isso incomode a visão estereotipada e pacata corrente na classe média urbana, onde ela<br />

preferia localizar suas personagens. Na ficção de Clarice Lispector, destaca-se a<br />

introspecção: partin<strong>do</strong> da vida interior de suas personagens, preocupa-se "menos em<br />

desvendar-lhes o mecanismo psicológico <strong>do</strong>s atos que a própria razão metafísica <strong>do</strong><br />

seu estar no mun<strong>do</strong>".<br />

Partin<strong>do</strong> sempre de experiências <strong>do</strong>mésticas, a escritora desvenda o mun<strong>do</strong><br />

interior de suas protagonistas femininas, dissecan<strong>do</strong>-as, fazen<strong>do</strong>-as divagar sobre o


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senti<strong>do</strong> de sua existência e sobre o eu estar no mun<strong>do</strong>. Em A paixão segun<strong>do</strong> GH, a<br />

personagem narra<strong>do</strong>ra põe-se à procura de si mesma, busca entender sua existência,<br />

enfrentar seus me<strong>do</strong>s e reconhecer-se enquanto mulher no mun<strong>do</strong>.<br />

Existem algumas linhas-mestras da narrativa clariciana: o aban<strong>do</strong>no, a solidão e<br />

a felicidade em oposição à vida <strong>do</strong>mesticada. Em suas obras, como em muitas das obras<br />

de Virginia Woolf, a identidade feminina luta para apropriar-se de si mesma, longe <strong>do</strong><br />

espelho masculino. Rompem-se as definições preconcebidas sobre as adequações de<br />

gênero, e o que prevalece é a desmontagem de estereótipos e máscaras de ambos os<br />

sexos. Ocorre um desmascaramento da chamada “naturalidade” <strong>do</strong>s papéis sexuais e<br />

sociais, construí<strong>do</strong>s histórica e culturalmente.<br />

Um <strong>do</strong>s temas centrais na obra de Clarice é a mulher e sua condição. Sua<br />

narrativa freqüentemente se move em torno da questão “Quem sou eu?”, ponto central<br />

da maioria das discussões feministas que têm como foco a mulher, seu papel e posição<br />

na sociedade.<br />

Este artigo tratará <strong>do</strong> diálogo que se estabelece entre Virgínia Woolf e Clarice<br />

Lispector, através <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>, em desenvolvimento, da obra The voyage out (1920), de<br />

Virginia Woolf, e <strong>do</strong> romance A paixão segun<strong>do</strong> GH, de Clarice Lispector na tentativa<br />

de entender a forma como essas autoras representam a mulher e a si mesmas em seus<br />

textos.<br />

The voyage out é a narrativa de uma viagem realizada por um grupo de ingleses<br />

que parte de Londres, a bor<strong>do</strong> de um navio Euphrosyne, em direção à Santa Marina,<br />

cidade fictícia, localizada na América <strong>do</strong> Sul, na foz <strong>do</strong> rio Amazonas. Rachel Vinrace,<br />

a protagonista <strong>do</strong> romance, é uma jovem de 24 anos, órfã de mãe as 11 anos, criada por<br />

duas tias, senhoras defensoras <strong>do</strong>s padrões tradicionais da sociedade inglesa vitoriana -<br />

muito mais preocupadas com respeitar as convenções e manter as aparências <strong>do</strong> que<br />

com a criação de sua sobrinha. O romance se estrutura em <strong>do</strong>is planos distintos: o relato<br />

<strong>do</strong> deslocamento físico, paralelo ao da transformação interior da personagem. Aos 24<br />

anos, Rachel não sabe nada sobre sexo, tem uma educação limitada e sente dificuldades<br />

em manter uma conversação por mais banal que seja. Apesar disso, ela é uma amante da


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música, <strong>do</strong>mina o piano, sua única paixão. Ao seu mo<strong>do</strong>, ela é a artista idealizada com<br />

letra maiúscula – incompetente a qualquer outra coisa que não sua música.<br />

Her face was weak rather than decided, saved from the<br />

insipidity by the large inquiring eyes, denied beauty, now that she<br />

was sheltered in<strong>do</strong>ors, by the lack of colour and definite outline.<br />

Moreover, a hesitation in speaking, or rather a tendency to use the<br />

wrong words, made her seem more than normally incompetent for<br />

her years (…) Yes, how clear it was that she would be vacillating,<br />

emotional and when you said something to her, it would make no<br />

more lasting impression than the stroke of a stick upon water.<br />

(WOOLF, 1992, p.13)<br />

A personalidade de Rachel é conseqüência <strong>do</strong> tipo de educação que<br />

recebera e revelam o caráter simplista e interiorano da personagem. Rachel passou a<br />

infância e parte da juventude no campo, em Richmond, onde contava apenas com a<br />

companhia das tias, e de uma única amiga, que, aparentemente, tinha como único<br />

assunto Deus e a devoção que deveriam ter a Ele. Essa reclusão à qual a personagem<br />

está submetida é quebrada quan<strong>do</strong> ela recebe de seu pai um convite para acompanhá-lo<br />

em uma expedição. As motivações interiores pelas quais Rachel passará a partir de<br />

então, são movidas pelas relações interpessoais. No navio embarcam sua tia, Helen<br />

Ambrose, uma mulher enérgica, pouco sentimental, de 40 anos, e a quem Rachel mal<br />

conhecia, o casal Mr. e Mrs. Dalloway, entre outros. Estes três personagens terão forte<br />

influência no despertar de Rachel. Desde o primeiro momento em que se conhecem, a<br />

protagonista fica fascinada com Mrs. Dalloway, mulher casada, aparentemente feliz e<br />

realizada em seu casamento, por julgá-la inteligente, perspicaz, independente,<br />

extrovertida e num primeiro momento, deseja ser como ela. O problema maior da<br />

mulher dessa época, era a busca incessante pela tão esperada felicidade, o happy end<br />

<strong>do</strong>s filmes e contos infantis. O esta<strong>do</strong> de falso equilíbrio instala<strong>do</strong> pelo dever, pelo<br />

hábito, pela vivência <strong>do</strong> cotidiano, não conseguiam dissipar este certo mal-estar<br />

indefini<strong>do</strong>, esse desejo confuso de não sei o quê, que as acometia e com o qual elas não<br />

conseguiam lidar.<br />

A apresentação de Rachel à sua sexualidade começa com um beijo rouba<strong>do</strong> que<br />

recebe de Richard Dalloway, ao final de um de seus discursos sobre o imperialismo. No


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 84<br />

entanto, o prazer e excitamento que esse beijo traz é contamina<strong>do</strong> pelo senso de culpa,<br />

pois Mr. Dalloway deixa claro que, enquanto os homens apreciam o trabalho, o<br />

conhecimento, as mulheres são as únicas responsáveis pela má conduta sexual<br />

masculina. Posteriormente, ela entenderá que a sexualidade feminina leva à degradação.<br />

Não apenas seu despertar à sexualidade confirma que as mulheres enquanto uma classe<br />

social são oprimidas por uma sociedade patriarcal, mas também demonstra que a<br />

opressão de gênero e raça também são integrantes <strong>do</strong> imperialismo inglês daquela<br />

época:<br />

Woman is always associated with passivity in phisosophy (…)<br />

there is no place place whatsoever for woman in the calculations.<br />

Ultimately the world of “being” can function while precluding the<br />

mother. No need for a mother, as long as there is some<br />

motherliness; and it is the father, then, who acts the part, who is<br />

the mother. Either woman is passive or she <strong>do</strong>es not exist. What is<br />

left of her is unthinkable, unthought. Which certainly means that<br />

she is not thought, that she <strong>do</strong>es not enter into the oppositions, that<br />

she <strong>do</strong>es not make a couple with the father (who makes a couple<br />

with the son). (CIXOUS, 1986, p. 64)<br />

Ao desembarcar em Santa Marina, Rachel parece ser agora uma nova mulher.<br />

Mudanças significativas em seu caráter são apresentadas como resulta<strong>do</strong> da viagem a<br />

qual lhe permitiu adentrar no mun<strong>do</strong> da literatura e da filosofia. Durante a viagem ela<br />

encontra em seu tio Ridley Ambrose, um instrutor inteligente, que a leva a conhecer<br />

grandes nomes <strong>do</strong>s campos filosófico e literário, como Platão, Balzac, Pope entre<br />

outros. Dessa forma, pode-se dizer que a viagem alegoriza a tentativa da personagem de<br />

adentrar o mun<strong>do</strong> masculino, já que o conhecimento e acesso a tais obras não era<br />

comum para mulheres daquela época.<br />

Enquanto os demais personagens se entregam ao conhecimento <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res da<br />

cidade, a viagem de Rachel é interior, ou seja, agora seria “the voyage in” , isto é,<br />

dentro <strong>do</strong> país tropical recém conheci<strong>do</strong> por ela, e acima de tu<strong>do</strong>, dentro de si mesma. É<br />

nessa viagem que ela passa a refletir sobre tu<strong>do</strong> que se passou no navio. Nesse perío<strong>do</strong><br />

conhece o escritor Terence Hewet, que a princípio se apresenta como um homem<br />

moderno no que se refere à diferença de gêneros. Rachel se apaixona por ele e os <strong>do</strong>is


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 85<br />

ficam noivos. Conforme o tempo passa, ela percebe que Terence é favorável à igualdade<br />

entre os sexos apenas na ficção que produz. Como aponta Hélène Cixous,<br />

There is no place for the other, for an equal other, for a<br />

whole living woman. She must recognize and recutnize the male<br />

partner, and in the time it takes to <strong>do</strong> this, she must disappear,<br />

leaving him to gain imaginary profit, to win imaginary victory.<br />

(CIXOUS, 2001, p. 79)<br />

Ou seja, Cixous nos mostra aqui a submissão que deveria haver, segun<strong>do</strong> as<br />

ideias patriarcais, da mulher em relação ao seu companheiro (homem). Diante dele, ela<br />

deve se subordinar, desaparecer, a fim de que ele possa então mostrar seu grande poder<br />

e <strong>do</strong>minação.<br />

She <strong>do</strong>es not exist, she can not-be; but there hás to be<br />

something of her. He keeps then, of the woman on whom he is no<br />

longer dependent, only this space, always virginal, as matter to be<br />

subjected to the desire he wishes to impart. (CIXOUS, 1986, p. 65)<br />

Talvez ciente de tal situação, durante os preparativos para seu casamento, Rachel<br />

a<strong>do</strong>ece e morre, depois de um longo perío<strong>do</strong> de sofrimento, durante o qual vira-se de<br />

costas todas as vezes em que seu noivo entra no quarto para visitá-la. Pode-se ler isso<br />

como uma negação a tu<strong>do</strong> o que ele agora representava para ela.<br />

A morte de Rachel pode ser lida como um artifício de Virginia a fim de livrá-la<br />

de uma vida fadada ao casamento e possivelmente infeliz. No tratamento da morte da<br />

protagonista, a autora consegue transmitir, com bastante sutileza, um <strong>do</strong>s maiores<br />

dilemas feministas daquele tempo. O casamento, mesmo com uma pessoa<br />

aparentemente perfeita, como Terence, é muito limita<strong>do</strong> pela tradição para acomodar o<br />

tipo de transformação que a visão de Rachel requer. Porta<strong>do</strong>ra de ideias liberais, de<br />

igualdade, Rachel agora era feminista demais para ser feliz casada e por isso, talvez sua<br />

única escapatória fosse a morte, visto aqui como libertação de to<strong>do</strong>s os paradigmas aos<br />

quais as mulheres de sua época estavam impostas.<br />

Considera<strong>do</strong> por muitos o grande livro de Clarice Lispector, A paixão segun<strong>do</strong><br />

G.H. tem um enre<strong>do</strong> aparentemente banal. A narrativa é a-linear, G.H. está realizan<strong>do</strong><br />

um exercício de reflexão. Já no início <strong>do</strong> texto a personagem nos avisa isso. O


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 86<br />

destinatário da narrativa, assim como o tempo, é confuso e ora a narra<strong>do</strong>ra parece<br />

dialogar com o leitor, ora consigo mesma. As imagens relatadas possuem um aspecto<br />

onírico e os para<strong>do</strong>xos perpassam to<strong>do</strong> o texto. No início da obra somos apresenta<strong>do</strong>s à<br />

protagonista, uma mulher de elevada estatura social identificada apenas por suas<br />

iniciais, G.H. É através de um universo de questionamentos e reflexões que o leitor<br />

toma contato com a atmosfera de instabilidade emocional em que G. H. se encontra,<br />

nela mergulhan<strong>do</strong> conforme apresenta a narra<strong>do</strong>ra no início da narrativa:<br />

[...] estou procuran<strong>do</strong>, estou procuran<strong>do</strong>. Estou tentan<strong>do</strong><br />

entender. Não sei o que fazer <strong>do</strong> que vivi, tenho me<strong>do</strong> dessa<br />

desorganização profunda. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo<br />

fato de não a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria<br />

chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar,<br />

porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior.<br />

A isso prefiro chamar desorganização pois não quero não me<br />

confirmar no que vivi — na confirmação de mim eu perderia o<br />

mun<strong>do</strong> como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.<br />

(LISPECTOR, 1998, p.3)<br />

G.H. busca, em si mesma, pela introspecção radical, sua identidade e as razões<br />

de viver, sentir e amar. A obra nem começa, nem termina. Ela continua.<br />

Na proposta crítica de Clarice, o cumprimento <strong>do</strong> dever burguês feminino<br />

dá-se por completo na relação da mulher com a casa, os filhos e a família, no bom<br />

desempenho de suas funções femininas. Já neste momento, entramos em contato com<br />

um problema: GH é solteira, independente, burguesa. Como ser feliz então se a<br />

personagem não cumpre a nenhum <strong>do</strong>s requisitos considera<strong>do</strong>s necessários à mulher?<br />

De acor<strong>do</strong> com o pensamento da época, o que Clarice nos deixa claro em sua obra, a<br />

paz da mulher resultaria a partir da aceitação e conformidade a este papel social<br />

previamente estabeleci<strong>do</strong>. A individualidade da mulher nesta ordem social é, assim,<br />

apenas aparente. Dessa forma, todas as mulheres parecem seguir inconscientemente um<br />

modelo, um padrão de comportamento imposto pela sociedade. A cegueira aparente<br />

com que as personagens clariceanas vivem a pequenez de seu cotidiano não esconde,<br />

contu<strong>do</strong>, um mal-estar indefini<strong>do</strong>, um incômo<strong>do</strong> encoberto, que elas não conseguem<br />

identificar e rotular. Tal incômo<strong>do</strong> é semelhante ao que Betty Friedam (1963)<br />

denominou unnamed problem, porque não se ajustava à imagem feliz da <strong>do</strong>na de casa<br />

americana da época, uma mulher completamente realizada em seu gratificante papel de


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 87<br />

lesposa e mãe, servin<strong>do</strong> às necessidades da família. Segun<strong>do</strong> Hélène Cixous, as<br />

mulheres estão nas sombras nas quais os homens as jogam, a sombra que elas são na<br />

sociedade em que vivem. (CIXOUS, 1986, p. 67)<br />

Em A paixão segun<strong>do</strong> GH, tu<strong>do</strong> começa quan<strong>do</strong>, um dia, ao se ver sem<br />

empregada, a protagonista decide arrumar sua casa. Entretanto, ao adentrar o quarto da<br />

empregada, o cômo<strong>do</strong> escolhi<strong>do</strong> para se iniciar a faxina, G.H. se depara com o insólito<br />

que a leva à uma experiência radical <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> humano e <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Ao procurar restabelecer a ordem no quarto, a sua ordem, G.H se depara com uma<br />

barata e esse encontro a levará a uma experiência surreal <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e de seus limites,<br />

<strong>do</strong>s poderes <strong>do</strong> humanos e <strong>do</strong> não-humano. Um encontro com a barata, inseto<br />

quotidiano e, para a narra<strong>do</strong>ra, asqueroso, desperta em G.H. um processo de inquirição<br />

pelos fundamentos da realidade. Esse encontro desencadeia um processo interno de<br />

reflexão e de busca de identidade.<br />

I, revolt, rages, where am I to stand? What is my place if I am a<br />

woman? (…) Who to be? Who, in the long continuing episodes of their<br />

misfortune – women always repaid by aban<strong>do</strong>nment? (CIXOUS,<br />

2001, p.92)<br />

Ela experimenta, diante da barata viva, aquilo que considera a sua pior<br />

descoberta: "a de que o mun<strong>do</strong> não é humano. E de que não somos humanos”. A<br />

mulher e a barata se opõem no início <strong>do</strong> encontro pelo me<strong>do</strong> da narra<strong>do</strong>ra; entretanto,<br />

tal oposição diminui e, ao final, G.H. se vê identificada com o animal, pois assim como<br />

a barata, ela, GH também está subjugada a uma vida sem realização, condenada a viver<br />

às frestras, esconden<strong>do</strong>-se.“Preserved, safe from themselves and intact, on ice.<br />

Frigified” ( CIXOUS, 1986, p. 70). O feminino e o asqueroso que, à primeira vista, se<br />

opõem, encontram na experiência de G.H. uma ancestralidade comum, ambas fazen<strong>do</strong><br />

parte da mesma matéria primordial <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A vida de G.H. transcorre dentro <strong>do</strong>s<br />

limites quotidianos da existência, o que ela denomina de formação feminina.<br />

The dark continent (as Freud used to classify women), is<br />

neither dark nor unexplorable: It is still unexplored only because<br />

we have been made to believe that is was too dark to be explored.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 88<br />

Because they want to make us believe that what interests us is the<br />

white continent, with its monuments to Lack. And we believed. We<br />

have been frozen in our place between two terrifying myths:<br />

between the Medusa and the abyss. (CIXOUS, 1986, p. 68)<br />

Assim, como Cixous descreve, GH tem me<strong>do</strong> <strong>do</strong> que não conhece, <strong>do</strong> escuro no<br />

qual foi enclausurada pela sociedade na qual foi criada. Entretanto, a experiência<br />

naquele quarto a faz perder essa formação, e a faz vagar em direção ao mais profun<strong>do</strong><br />

de si, o que ora ela denomina de Nada, ora de Deus. A experiência é uma<br />

desorganização que a leva ao desespero da incompreensão absoluta.<br />

(...) the other that I am and am not, that I <strong>do</strong>n’t know how to<br />

be, but that I feel passing, that makes me live – that tears me apart,<br />

that disturbs me, changes me, who? (CIXOUS, 2001, p. 86)<br />

A razão, ponto de ancoragem da existência de G.H. se revela inútil, um<br />

acréscimo inútil, visto que não consegue dar conta <strong>do</strong> aconteci<strong>do</strong>. Mas a tentativa de<br />

compreensão é uma tarefa necessária, uma vez que G.H. não pode prescindir de si<br />

mesma:<br />

Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter<br />

uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, então que<br />

pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme<br />

sozinha como uma crosta que por si mesma endurece a nebulosa de<br />

fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a coragem de resistir à<br />

tentação de inventar uma forma. (LISPECTOR, 1998, p.54)<br />

Como pode-se notar, GH sente-se totalmente desorganizada, em pedaços.<br />

Não se reconhece mais enquanto indivíduo, porque agora ela se vê enquanto mulher,<br />

enquanto ser pulsante,capaz de mudar tu<strong>do</strong> à sua frente, e teme isso. Como assinala<br />

Oliveira (1980, p. 43), “Não temos identidade, somos uma imagem refletida no espelho<br />

<strong>do</strong>s homens. Como encontrar a identidade, se no espelho, uma imagem já está impressa<br />

para sempre, a imagem que os homens têm de nós?”<br />

Mas para GH não há volta, o “mal” está feito. O momento epifânico pelo<br />

qual a personagem passa, ao descortinar silenciosamente seu falso mun<strong>do</strong> e sua falsa<br />

identidade, levam a protagonista a empreender uma viagem interior de auto-descoberta,<br />

de auto-conhecimento e de conhecimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Isto é, um incidente, neste caso, o


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encontro com uma barata, leva GH ao encontro de uma parte escondida <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e de<br />

si mesma. Este processo de mudança, de transformação interior pelo qual ela passa,<br />

independentemente de sua vontade e consciência, é irreversível. Ainda que,<br />

aparentemente, não sofra uma mudança radical, ao enxergar-se a si mesma, equilíbrio<br />

inicial da personagem é rompi<strong>do</strong> e a protagonista nunca mais será a mesma. A<br />

metamorfose interior que resulta deste incidente externo transforma de mo<strong>do</strong> definitivo<br />

a existência de GH. Clarice assim, expressa importantes dilemas das mulheres<br />

brasileiras de classe média da época, antecipan<strong>do</strong> uma das principais questões<br />

levantadas pelos movimentos de emancipação da mulher, a busca de uma resposta para<br />

a pergunta “Quem sou eu?”.<br />

E ao final <strong>do</strong> romance, GH constata:<br />

Where to stand? Who to be? Who, in the long continuing<br />

episodes of their misfortune – woman’s abundance always repaid<br />

by aban<strong>do</strong>nment? Beginning Medea’s story all over again, less<br />

and less violently, repeating more and more tenderly, sadly, the<br />

gift, the fervor, the passion, the alienation, the stunning discovery<br />

of the worst (which isn’t death): that total love has been used by<br />

the loved one for his base ambitions. (CIXOUS, 1986, p. 75)<br />

Enfim, quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite<br />

eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era.<br />

O que não sou eu, eu sou. Tu<strong>do</strong> estará em mim, se eu não for; pois<br />

"eu" é apenas um <strong>do</strong>s espasmos instantâneos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Minha<br />

vida não tem senti<strong>do</strong> apenas humano, é muito maior - é tão maior<br />

que, em relação ao humano, não tem senti<strong>do</strong>. (LISPECTOR, 1998,<br />

p. 98)<br />

Comparan<strong>do</strong> as duas obras em estu<strong>do</strong>, pode-se dizer que em The voyage out<br />

temos uma mulher à beira de um processo de auto-conhecimento e reconhecimento<br />

como ser feminimo pulsante em uma sociedade castra<strong>do</strong>ra. O mesmo ocorre em A<br />

paixão segun<strong>do</strong> GH, de Clarice Lispector: a personagem GH passa por um momento de<br />

revelação epifânica que a leva a questionar sua condição de existência enquanto mulher.<br />

Apesar de ser independente, GH, castra-se da liberdade de ser o que é pelo me<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

ridículo e <strong>do</strong> desprezo social. É possível exprimir das duas obras um grito de liberdade,<br />

que inicialmente é reprimi<strong>do</strong> pelas personagens e posteriormente, enxerga<strong>do</strong>, analisa<strong>do</strong><br />

e transposto por elas - no caso de Rachel através da morte, e de GH pela epifania e a


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 90<br />

morte também <strong>do</strong> que ela era, para o nascimento de um novo indivíduo, liberto de<br />

invólucros - , a partir <strong>do</strong> momento em que se permitem questionar valores e “verdades”<br />

sociais.<br />

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WOOLSTONECRAFT, M. A Vindication of the Rights of Women. Disponível em:<br />

http://www.gutenberg.org/etext/3420. Acesso em: 10/09/2009.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 93<br />

NÃO SEI LIDAR COM A INCLUSÃO DE ALUNOS SURDOS:<br />

FALTA DE PREPARO E FORMAÇÃO DOS<br />

PROFESSORES DE INGLÊS.<br />

Tânitha Gléria de Medeiros 1<br />

Drª Maria Cristina Faria Dalacorte Ferreira 2<br />

RESUMO: A falta de formação e informação de professores de inglês no âmbito da inclusão de<br />

alunos sur<strong>do</strong>s é uma realidade evidente. A Política Nacional de Educação Especial (1994) bem<br />

como a Declaração de Salamanca (1994) e também os Parâmetros Curriculares Nacionais<br />

(1998) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), prescrevem um discurso em<br />

defesa da inclusão. E onde entra o aluno sur<strong>do</strong> neste contexto? Será que os professores de língua<br />

estrangeira (LE) estão, de fato, prepara<strong>do</strong>s para lidar com estes alunos? A lei sugere que os<br />

professores sejam capacita<strong>do</strong>s, mas quan<strong>do</strong>? Em sua formação inicial ou continuada? Este<br />

artigo objetiva compreender as leis e os princípios da educação inclusiva para, a partir disso,<br />

verificar como está a prática de sala de aula de língua inglesa com alunos sur<strong>do</strong>s. Segun<strong>do</strong> Silva<br />

(2005) e Oliveira (2007), esta prática é ainda pouco explorada e necessita que haja uma<br />

reformulação deste ensino para que atenda as necessidades <strong>do</strong>s aprendizes sur<strong>do</strong>s e que<br />

possibilite o desenvolvimento de seu potencial de aprendizagem.<br />

Palavras-chave: políticas públicas; ensino de inglês; formação de professores; alunos sur<strong>do</strong>s.<br />

I DO NOT KNOW DEALING WITH INCLUSION OF DEAF STUDENTS:<br />

LACK OF PREPARATION AND TRAINING<br />

OF ENGLISH TEACHERS<br />

ABSTRACT: The lack of training and information for English teachers in the inclusion of deaf<br />

students is a fact. The National Policy on Education (1994) and the Salamanca Declaration<br />

(1994) and also the National Curricular Parameters (1998) and the Law of Directives and Bases<br />

of National Education (1996), prescribe a speech in support of inclusion. And what about the<br />

deaf student in this context? Do the foreign language teachers are actually prepared to deal with<br />

these students? The law suggests that teachers must be prepared, but when? In their initial<br />

training or continuing education? This article aims to understand the laws and principles of<br />

inclusive education to determine how the practice in the English classroom of a regular school<br />

with deaf students is. According to Silva (2005) and Oliveira (2007), this practice is a relatively<br />

unexploited and it is necessary to restructure this education to meet the needs of deaf learners<br />

and enabling the development of their learning potential.<br />

Key words: public policy,, teaching English, teacher training; deaf students.<br />

1 Mestranda em Estu<strong>do</strong>s Lingüísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. E-mail:<br />

tanithagm@yahoo.com.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/2473967591485240<br />

2 Orienta<strong>do</strong>ra. Docente na Universidade Federal de Goiás. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9262323548559269


INTRODUÇÃO<br />

CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 94<br />

Preten<strong>do</strong> discutir neste artigo sobre o ensino e aprendizagem de Língua<br />

Estrangeira (LE) para alunos sur<strong>do</strong>s inseri<strong>do</strong>s numa escola regular. Ressalto que<br />

a LE é a língua aprendida ou adquirida fora <strong>do</strong> ambiente onde ela é<br />

falada como nativa. Neste estu<strong>do</strong> a língua inglesa será nossa LE. No<br />

caso da comunidade surda, a Língua Materna (LM) é a língua de<br />

sinais, a Libras. E a segunda língua (L2) é o português.<br />

O trabalho <strong>do</strong> professor, assim como muitas outras profissões, é constituí<strong>do</strong> por<br />

normas, prescrições, concebidas por outros que, muitas vezes, não fazem parte <strong>do</strong><br />

universo <strong>do</strong> processo de ensino/aprendizagem e que acaba culminan<strong>do</strong> num<br />

distanciamento entre o trabalho prescrito e o realiza<strong>do</strong> (Geraldi, 2004; Érnica, 2004).<br />

Diante dessa colocação surge um questionamento: e quan<strong>do</strong> não há essas prescrições? É<br />

muito escasso o número de pesquisas que abordem o tema ensino-aprendizagem de LE<br />

para alunos sur<strong>do</strong>s (Silva, 2005; Oliveira, 2007).<br />

Nesse artigo, tratarei em específico da inclusão na sala de aula de língua inglesa.<br />

Para analisar essa prática mostro a fala <strong>do</strong>s educa<strong>do</strong>res entrevista<strong>do</strong>s (professora de<br />

inglês e intérprete que trabalham no ensino municipal) para verificar como a prescrição<br />

acerca da inclusão se evidencia na prática (Fidalgo, 2006). Essa exposição será feita por<br />

meio das políticas públicas: Declaraç ão de Salamanca (1994) e Resolução CNE/CEB n.2; e da<br />

Lei 9394/96 (LDB, capítulo V – “Da Educação Especial”) e Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Estrangeira<br />

educação:<br />

(PCN-LE/Brasil, 1998).<br />

A questão que abor<strong>do</strong> nesse artigo começou após a leitura <strong>do</strong> texto de Maurício<br />

Érnica, “O trabalho desterra<strong>do</strong>”, presente no livro “O ensino como trabalho: uma<br />

abordagem discursiva” de Anna Rachel Macha<strong>do</strong> (2004), no qual o autor coloca que<br />

nossas leis, decretos, enfim, políticas públicas, prescrevem as leis da educação brasileira<br />

sem considerar a realidade <strong>do</strong>s professores ou <strong>do</strong>s alunos. Ou, quan<strong>do</strong> o fazem,<br />

consideram uma escola, um professor e um aluno ideal.<br />

A seguir, apresento as principais características da Declaração de Salamanca<br />

(1994) e das Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Inclusiva<br />

(CNE/CEB, 2001). Em seguida, exponho os principais pontos da Lei de Diretrizes e


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 95<br />

Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96 - LDB), bem como <strong>do</strong>s Parâmetros<br />

Curriculares Nacionais – Língua Estrangeira (PCN-LE, 1998). Finalizan<strong>do</strong>, apresento a<br />

fala <strong>do</strong> professor de inglês e da intérprete.<br />

DECLARAÇÃO DE SALAMANCA - 1994<br />

O cenário da educação inclusiva ganha maior visibilidade com essa conferência<br />

realizada em Salamanca (Espanha, 1994) que teve como objetivo definir princípios<br />

políticos e práticos, para o atendimento <strong>do</strong>s alunos com necessidades educacionais<br />

especiais.<br />

A linha de Ação estabelece que todas as escolas devem receber todas as crianças e<br />

que as mesmas deverão prover pedagogias para educá-las com sucesso. No caso <strong>do</strong>s<br />

alunos sur<strong>do</strong>s, o <strong>do</strong>cumento recomenda e reconhece que “as pessoas surdas tenham<br />

acesso a uma educação em sua língua nacional de signos” (Libras). No que diz respeito<br />

à escola, sugere-se mudanças nos seguintes aspectos: “currículos, prédios, organização<br />

escolar, pedagogia, avaliação, pessoal, filosofia da escola e atividades extra-<br />

curriculares” (Declaração de Salamanca, 1994). Essa Declaração oferece orientações<br />

que enfocam pontos a serem considera<strong>do</strong>s na inclusão de crianças com NEEs em<br />

escolas inclusivas:<br />

• Flexibilidade Curricular: a orientação é que o currículo se adapte à<br />

criança e não o contrário, além de receber um apoio instrucional desde que a<br />

criança assim o requeira.<br />

• Avaliação: o <strong>do</strong>cumento afirma que deve ser revisto, mas que a avaliação<br />

formativa deveria ser mantida de forma que tanto o aluno quanto o professor<br />

sejam informa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> controle de aprendizagem adquiri<strong>do</strong> e que auxílios sejam<br />

ofereci<strong>do</strong>s para a superação das dificuldades.<br />

A preparação <strong>do</strong>s professores é outro ponto proeminente. O professor é<br />

caracteriza<strong>do</strong> como um “fator chave” para o estabelecimento de escolas inclusivas. A<br />

Declaração de Salamanca (1994), afirma que:<br />

(...) atenção especial deveria ser dada à preparação de to<strong>do</strong>s os<br />

professores para que exercitem sua autonomia e apliquem suas


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 96<br />

habilidades na adaptação <strong>do</strong> currículo e da instrução no senti<strong>do</strong> de<br />

atender as necessidades especiais <strong>do</strong>s alunos, bem como no senti<strong>do</strong> de<br />

colaborar com os especialistas e cooperar com os pais.<br />

No próximo item, apresento as prescrições da Resolução CNE/CEB n.º 2, que<br />

institui as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica.<br />

RESOLUÇÃO CNE/CEB nº. 2<br />

Esse <strong>do</strong>cumento, elabora<strong>do</strong> em 2002, faz menção explícita à inclusão por<br />

reestruturar os sistemas de ensino para dar respostas às necessidades educacionais de<br />

to<strong>do</strong>s os alunos. As Diretrizes mencionam os instrumentos e os princípios da educação<br />

inclusiva, tais como: recursos humanos qualifica<strong>do</strong>s, o projeto pedagógico da escola, a<br />

característica da população, a descrição <strong>do</strong>s serviços e mo<strong>do</strong>s de atendimentos.<br />

No Art. 8, item I, há uma determinação de que as escolas regulares deverão prever<br />

e prover professores capacita<strong>do</strong>s e especializa<strong>do</strong>s para o atendimento às necessidades<br />

educacionais <strong>do</strong>s alunos além de mencionar a flexibilização e adaptações curriculares.<br />

Uma questão abordada diz respeito à troca de informação, a um trabalho em<br />

equipe na escola: “sustentabilidade <strong>do</strong> processo inclusivo, mediante aprendizagem<br />

cooperativa em sala de aula, trabalho em equipe na escola e constituição de redes de<br />

apoio”. Ao aluno sur<strong>do</strong> “deve ser assegurada (...) a utilização de linguagem e códigos<br />

aplicáveis, como (...) a língua de sinais (...)”. Segun<strong>do</strong> essa Diretriz, o profissional<br />

prepara<strong>do</strong> para atuar em classes regulares com alunos com NEEs são aqueles que<br />

“comprovem que, em sua formação, de nível médio ou superior, foram incluí<strong>do</strong>s<br />

conteú<strong>do</strong>s sobre educação especial”.<br />

De uma maneira breve, expus os que essa Declaração e Resolução prescrevem<br />

sobre a educação inclusiva no que diz respeito à formação <strong>do</strong>s professores, adaptações<br />

curriculares, avaliação, entre outros. Passo para o campo da educação com a da Lei de<br />

Diretrizes e Bases da Educação Nacional assim como os Parâmetros Curriculares<br />

Nacionais – Língua Estrangeira.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 97<br />

LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL – LEI n. 9394/96<br />

A educação brasileira vem sofren<strong>do</strong> readaptações a partir da promulgação da LDB<br />

9394/96, Capítulo V, “Da Educação Especial”. As escolas têm si<strong>do</strong> convidadas a<br />

providenciar mudanças e adequações de forma a atender satisfatoriamente os alunos<br />

com necessidades educacionais especiais (NEEs). Subtende-se que tais mudanças e<br />

adaptações envolvem o currículo, planejamento, avaliações, espaço físico, preparação<br />

<strong>do</strong>s professores, garantias didáticas. Em outras palavras, a escola passa a ter como<br />

desafio promover o sucesso diante da diversidade.<br />

A mesma lei abre uma ressalva quan<strong>do</strong> diz que “Haverá, quan<strong>do</strong> necessário,<br />

serviços de apoio especializa<strong>do</strong>, na escola regular, para atender as peculiaridades da<br />

clientela de educação especial” (LDB, 1998, Art. 58, inciso 1º). Infere-se que o Esta<strong>do</strong><br />

poderá disponibilizar serviço de apoio especializa<strong>do</strong> somente quan<strong>do</strong> a escola oferecer<br />

as “peculiaridades da clientela”, ou seja, primeiro a escola recebe os alunos com NEEs<br />

sem terem si<strong>do</strong> previamente preparadas, para então o Esta<strong>do</strong> prover tais serviços. O que<br />

se observa é que toda responsabilidade é transferida para a escola: o professor é quem<br />

deve fazer a identificação das dificuldades <strong>do</strong> aluno, a escola é quem deve fazer<br />

adaptações no currículo, no planejamento, na avaliação.<br />

De qualquer forma, a presente lei representa um avanço significativo para as<br />

concepções de Educação Especial, visto que é a primeira vez, na história brasileira, que<br />

uma lei dessa natureza dedica particular atenção às questões específicas das pessoas<br />

com necessidades educacionais especiais. Adiante, exponho algumas considerações<br />

acerca de outro <strong>do</strong>cumento importante para a educação nacional, os Parâmetros<br />

Curriculares Nacionais.<br />

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: TERCEIRO E QUARTO<br />

CICLOS DO ENSINO FUNDAMENTAL – LÍNGUA ESTRANGEIRA<br />

Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram cria<strong>do</strong>s com o intuito de se<br />

“construir referências nacionais comuns ao processo educativo em todas as regiões


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 98<br />

brasileiras” (PCN-LE, 1998). Com base nele e diante <strong>do</strong> discurso da educação inclusiva,<br />

surge um questionamento: como trabalhar os conteú<strong>do</strong>s relaciona<strong>do</strong>s às especificidades<br />

das licenciaturas adaptadas às características <strong>do</strong>s alunos com NEEs?<br />

Da mesma maneira que cada aluno apresenta suas particularidades e<br />

especificidades, cada disciplina escolar também. Sen<strong>do</strong> assim, observo que não há uma<br />

prescrição sobre como o professor de inglês deve agir e/ou repensar o ensino dessa<br />

matéria com alunos com NEEs, nesse estu<strong>do</strong>, os sur<strong>do</strong>s. Diante de tantos <strong>do</strong>cumentos<br />

que norteiam (ou até mesmo desnorteiam) a educação brasileira, por que não temos uma<br />

que esclareça e oriente o professor de inglês nesse contexto? Ao constatar essa<br />

realidade, surge a importância de entendermos a fala <strong>do</strong>s participantes para<br />

compreender como está o trabalho realiza<strong>do</strong> na sala de aula de língua inglesa. Até que<br />

ponto esse trabalho está em consonância com o prescrito se não temos um prescrito? E<br />

mais, como exigir <strong>do</strong> professor melhorias se o mesmo não fora prepara<strong>do</strong> para tal<br />

realidade e nem sequer tem uma prescrição sobre sua disciplina no âmbito da educação<br />

inclusiva? Quem será de fato o incluí<strong>do</strong>: o aluno ou o professor?<br />

Os PCN-LE abordam as limitações e condições <strong>do</strong> ensino desse idioma nas<br />

escolas brasileiras ao expor que,<br />

(...) as circunstâncias difíceis em que se dá o ensino e aprendizagem<br />

de Língua Estrangeira: falta de materiais adequa<strong>do</strong>s, classes<br />

excessivamente numerosas, número reduzi<strong>do</strong> de aulas por semana,<br />

tempo insuficiente dedica<strong>do</strong> à matéria no currículo e ausência de<br />

ações formativas contínuas junto ao corpo <strong>do</strong>cente. (PCN-LE, 1998,<br />

p. 24)<br />

Embora tais condições estejam explícitas em um <strong>do</strong>cumento que representa uma<br />

fonte de referência para discussões e tomada de posição sobre ensinar e aprender Língua<br />

Estrangeira nas escolas brasileiras, a mesma situação é mencionada pela professora<br />

desse estu<strong>do</strong> (que veremos na parte de análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s) como um impedimento à<br />

melhoria da inclusão, da inserção de alunos sur<strong>do</strong>s no ensino regular e na aprendizagem<br />

da língua inglesa, bem como outras disciplinas.


METODOLOGIA<br />

CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 99<br />

Ao realizar este artigo, optei por recorrer aos méto<strong>do</strong>s qualitativos de análise por<br />

que parte das perspectivas <strong>do</strong>s participantes para examinar os propósitos, os<br />

significa<strong>do</strong>s e as interpretações <strong>do</strong> ensino. Devi<strong>do</strong> ao número pequeno de participantes,<br />

esta pesquisa configura-se como um estu<strong>do</strong> de caso.<br />

A pesquisa foi feita em uma escola municipal localizada na região su<strong>do</strong>este de<br />

Goiânia, no Setor União, durante os meses de setembro a novembro de 2008. A sala<br />

pesquisada pertence ao EAJA (Educação de A<strong>do</strong>lescentes, Jovens e Adultos). Como<br />

instrumentos foram usa<strong>do</strong>s gravação em áudio, a entrevista oral e por escrito e o diário.<br />

Neste artigo, utilizo a transcrição da aula que ocorreu no dia 14 de outubro de 2008 no<br />

qual os alunos discutiam o texto “Have you been taking care of your planet?”.<br />

Participaram desse estu<strong>do</strong> uma professora de inglês (Drika) e uma intérprete (Alice).<br />

Como nesse estu<strong>do</strong> meu interesse não era pela forma lingüística e sim pelo conteú<strong>do</strong>, as<br />

transcrições não foram feitas verbatim. A seguinte simbologia foi usada: ... para pausas;<br />

(...) para trechos suprimi<strong>do</strong>s; [comentário] para comentários da pesquisa<strong>do</strong>ra.<br />

PROFESSORA DRIKA<br />

Sobre a educação <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s, as referidas políticas buscam enfatizar a importância<br />

“da linguagem de signos como meio de comunicação entre sur<strong>do</strong>s” (Declaração de<br />

Salamanca, 1994) e a “eliminação de barreiras (...) nas comunicações (...) mediante a<br />

utilização de linguagem e códigos aplicáveis como (...) a língua de sinais” (CNE/CEB,<br />

2001, Art. 12, inciso 2). A professora Drika, perceben<strong>do</strong> essa importância afirma que:<br />

“estou fazen<strong>do</strong> esse curso de aperfeiçoamento para a língua de sinais e cada vez que eu<br />

faço curso eu apren<strong>do</strong> mais”.<br />

Quan<strong>do</strong> questionada sobre como ela entendia o termo ‘inclusão’, a mesma disse:<br />

Inclusão é isso: é eles serem aceitos pela sociedade, pela escola, pelos<br />

colegas. Graças a Deus eles são aceitos. Criança não tem essa<br />

separação, essa discriminação. (...) E to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> começa a perceber a<br />

importância <strong>do</strong> intérprete na sala, a importância dele na escola.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 100<br />

Os PCN-LE (1998) apontam as limitações e as condições <strong>do</strong> ensino da língua<br />

estrangeira nas escolas. A mesma situação é mencionada pela professora como um<br />

impedimento à melhoria da inclusão. Dessa forma, a fala de Drika abaixo expõe essa<br />

dificuldade:<br />

Nós fazemos uma explicação enxuta. Mas e aí? Como é que eu faço<br />

numa sala de 30, 40 alunos. Porque tem a função <strong>do</strong> intérprete para<br />

isso, porque como professora eu posso ajudar algumas coisas, mas não<br />

posso ficar o tempo to<strong>do</strong>.<br />

A professora se sente limitada, pois ela tem em média 30 alunos na sala, e em<br />

alguns casos, a intérprete não estava presente. Diante dessa situação ela sentia uma<br />

necessidade de dar uma explicação enxuta da aula de inglês, pois a mesma além de<br />

ensinar inglês para a sala, sentia-se na obrigação de interpretar na língua de sinais<br />

alguns acontecimentos, mas como ela mesma disse, de forma “enxuta”.<br />

Sobre a questão <strong>do</strong> planejamento e adaptações na diversidade a professora expõe<br />

que leva em consideração a presença <strong>do</strong>s alunos sur<strong>do</strong>s durante a preparação das aulas.<br />

Não vou dizer 100% não, mas um pouco. E esse planejamento não é<br />

escrito e nem no diário registra<strong>do</strong> essa questão da particularidade<br />

deles. Então o planejamento pelo menos que eu tento fazer é volta<strong>do</strong><br />

um pouco para eles. Não vou dizer que é 100% não porque tem os<br />

demais, não é? Então esse papel seria o papel da intérprete, ele ia<br />

acrescentar muito no plano de aula.<br />

A fala de Drika, a seguir, mostra um distanciamento entre o trabalho prescrito e o<br />

realiza<strong>do</strong>, pois a mesma teve que procurar preparação por conta própria uma vez que<br />

sua graduação em Letras não ofereceu nenhum aporte à educação inclusiva.<br />

Não. Não tive essa preparação, meu interesse foi mesmo porque minha<br />

amiga me falou “vamos fazer e tal” e eu falei “vamos” e acabei gostan<strong>do</strong>,<br />

fazen<strong>do</strong>, acontecen<strong>do</strong> [ao buscar o curso de Libras].<br />

Ainda sobre essas adaptações que a escola deve prevê e prover, ao ser questionada<br />

sobre seu conhecimento das políticas públicas acerca da inclusão e sua prática de sala<br />

de aula, sua fala é muito perturba<strong>do</strong>ra e deixa transparecer a discrepância entre teoria e<br />

prática. Porém, a mesma enfatiza que a inclusão tem se torna<strong>do</strong> realidade, o que<br />

representa um fator positivo.<br />

No papel deixa claro a importância <strong>do</strong> intérprete. A realidade é que<br />

muitos não têm intérprete nas escolas. Os meninos [sur<strong>do</strong>s] são assim,


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 101<br />

muitas vezes joga<strong>do</strong>s mesmo.É voltar mais o interesse deles, para<br />

eles. Porque o PPP fala dessa inclusão, o PPP, ele defende essa<br />

inclusão e é só no papel, não é verdade? Você pode olhar o PPP daqui,<br />

de todas as escolas municipais tem sobre a inclusão e pouco se faz<br />

sobre a inclusão (...).Tem muita coisa a ser mudada. Só é bonito no<br />

papel. A realidade é totalmente diferente.<br />

Na citação a seguir, a professora de inglês nos alerta para algo que fora pouco<br />

estuda<strong>do</strong> no viés <strong>do</strong> ensino e aprendizagem de LE para alunos sur<strong>do</strong>s: a elaboração <strong>do</strong><br />

material-didático-pedagógico adequa<strong>do</strong> conforme as necessidades específicas <strong>do</strong>s<br />

alunos.<br />

“O material é inclusão e exclusão ao mesmo tempo, porque o material<br />

é para ouvintes (...). Se a gente pensar só neles [sur<strong>do</strong>s], e os outros?<br />

E se pensar só nos outros, e eles? É complica<strong>do</strong>”<br />

É complica<strong>do</strong> mesmo e constitui um desafio para os sistemas de ensino. Quanto<br />

ao ensino de inglês, para os PCN-LE (1998) “o papel educacional da Língua Estrangeira<br />

é importante, para o desenvolvimento integral <strong>do</strong> indivíduo, deven<strong>do</strong> seu ensino<br />

proporcionar ao aluno essa nova experiência de vida (...)” (p. 38). Drika confirma essa<br />

prescrição ao revelar a importância <strong>do</strong> ensino de LE para alunos sur<strong>do</strong>s.<br />

É relevante sim, porque eles vão aprender uma língua, eles interessam<br />

pela língua estrangeira porque isso é um desafio. Eles têm que<br />

entender que a libras é a primeira língua deles. (...) Muitos sur<strong>do</strong>s não<br />

entendem que a primeira língua deles é a língua de Libras e depois<br />

que vem a língua portuguesa e a terceira língua seria a língua<br />

estrangeira. É importante para eles sim porque é um desafio. Eles<br />

querem saber <strong>do</strong> que se trata, eles conseguem ler, entender o que está<br />

escrito ali e se expressam na língua de sinais.<br />

Sabiamente a professora lembra que a língua de sinais é a primeira língua da<br />

comunidade surda, sen<strong>do</strong> a língua portuguesa a sua segunda. Sen<strong>do</strong> assim, a LE<br />

representa a terceira língua.<br />

INTÉRPRETE ALICE.<br />

Alice é intérprete há três anos, mas trabalha com educação há 22. Sua experiência<br />

nos responde muitos questionamentos. Uma de suas contribuições foi-nos explicar<br />

como é a tradução em Libras ao frisar que durante a aula de língua inglesa, não havia a


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 102<br />

tradução de “inglês – português – Libras” e sim que era apenas “inglês – Libras”. Outro<br />

momento interessante da fala de Alice diz respeito ao interesse <strong>do</strong>s sur<strong>do</strong>s em aprender<br />

uma língua estrangeira, no caso, o inglês. E, diante de sua experiência, ela até cria uma<br />

hipótese para justificar tamanho interesse.<br />

Eu já comentei com muita gente, como que eles [sur<strong>do</strong>s] gostavam<br />

mais de inglês. Porque o inglês é mais fácil de escrever e como a<br />

gente já ia de Libras para o inglês, então eles a<strong>do</strong>ravam. E você já<br />

percebeu que inglês tem também algumas palavras que troca de lugar<br />

com o português? E em Libras também. Porque às vezes você vai<br />

falar assim “eu sou sur<strong>do</strong>” aí você fala só “eu sur<strong>do</strong>” e em inglês<br />

também, não é? Inglês não tem “eu sou sur<strong>do</strong>”. Então isso eu fui<br />

len<strong>do</strong> algumas coisas e descobri que o inglês tem mais a ver com a<br />

Libras <strong>do</strong> que o português pelo fato da formação das frases.<br />

Entendeu? Não é igual, mas é bem mais semelhante <strong>do</strong> que o<br />

português. Então esse é o motivo que eles gostam mais. Que eu vi e<br />

descobri.<br />

(...) Não tem nenhum que não goste de inglês<br />

(...) Eu, por exemplo, nunca consegui aprender inglês, eu não consigo<br />

aprender inglês. E eles tem a maior facilidade, ele [um <strong>do</strong>s alunos<br />

sur<strong>do</strong>s] me ensinava inglês (...).<br />

Nesses três momentos de fala, percebemos o quanto os alunos sur<strong>do</strong>s gostam de<br />

aprender inglês. Pelo exposto, fica evidencia<strong>do</strong> que o ensino de LE para alunos sur<strong>do</strong>s<br />

deve ser visto como uma oportunidade de identificação e apropriação de valores<br />

culturais e sociais, ou seja, oferece e permite aos alunos uma abertura a outras culturas.<br />

Esta importância fica evidenciada na fala <strong>do</strong>s alunos sur<strong>do</strong>s que, no questionário,<br />

responderam que gostam muito de estudar inglês e também na fala da intérprete Alice.<br />

As colocações de Alice são muito importantes para acabar com qualquer<br />

preconceito de que a LE seria irrelevante para esse público. Acredito que, com o<br />

advento das políticas públicas, com o crescente número de trabalhos nessa área (Ensino<br />

e aprendizagem de LE na educação inclusiva) e com a conquista da Lei 10.046 que<br />

definiu Libras como a língua oficial da comunidade surda, os profissionais da educação<br />

vão conseguir melhorar, aprender e oferecer um ensino de qualidade para esse público.<br />

Sobre isso, Alice fornece-nos uma dica de como facilitar essa aprendizagem. E mais, ela


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 103<br />

afirma que tal dica não se refere somente ao ensino de uma LE, mas de qualquer outra<br />

disciplina.<br />

As figuras são importantes em todas as disciplinas. Se outro professor<br />

ler, sabe que também é importante não só em inglês, mas que todas as<br />

disciplinas precisam ter as figuras (...) elas ajudam eles a entender o<br />

contexto. Porque, por exemplo, se você falar assim “árvore grande e<br />

árvore pequena” eles podem ter dificuldade de identificar. Agora,<br />

você mostra uma figura, eles mesmo falam.<br />

Como intérprete há três anos, Alice fala sobre a importância <strong>do</strong> intérprete:<br />

Sem sombra de dúvida. Por isso, para garantir essa importância, há<br />

uma lei federal. Imagina a vida deles antes disso [sem a presença da<br />

intérprete na sala de aula]? Até eles chegarem onde eles estão? O<br />

tanto que foi difícil, muito difícil.<br />

Esta colocação está em consonância com a Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002<br />

e com o Decreto n.º 5626 de 22 de dezembro de 2005 que dispõem sobre a Língua<br />

Brasileira de Sinais e da Formação <strong>do</strong> tradutor/intérprete de Libras. A presença <strong>do</strong><br />

intérprete, como bem disse Alice, é garanti<strong>do</strong> por uma lei federal e o mesmo não pode<br />

ser nega<strong>do</strong> ao aluno sur<strong>do</strong> que frequenta o ensino regular.<br />

Quan<strong>do</strong> indagada sobre a questão das diferenças entre teoria X prática, trabalho<br />

prescrito X trabalho realiza<strong>do</strong>, sua fala não é muito diferente da fala de Drika, o que nos<br />

deixa preocupa<strong>do</strong>s ao perceber mais uma vez o distanciamento entre teoria e prática. Ela<br />

realça que “Como toda a lei, acho até que não é diferente muito, ela não é cumprida...<br />

integralmente”. O que pode nos confortar é a palavra “integralmente”. Pelo exposto,<br />

podemos inferir que a inclusão acontece, sim, porém não em sua plenitude. Se pelo<br />

menos está acontecen<strong>do</strong>, isso já representa um fator positivo para que a mesma cresça e<br />

melhore.<br />

A questão da formação <strong>do</strong>s professores também é mencionada por Alice:<br />

Se você tiver o caminho de ensiná-los, eles aprendem de tu<strong>do</strong>. De<br />

tu<strong>do</strong>. Mas na maioria <strong>do</strong>s professores (...) que eu encontrei na rede<br />

municipal (...) eles não acreditam no aprendiza<strong>do</strong> deles. A gente ouve<br />

tanta reclamação <strong>do</strong> professor. Eu acompanho as minhas alunas que<br />

saem da faculdade e vão para a escola, não há essa preparação para o<br />

professor chegar e pegar uma sala inclusiva. Não há. Mas não há


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 104<br />

mesmo. Nem na pedagogia ensinam aos alunos as diferentes reações<br />

das diversas síndromes que ela pode receber na sala dela.<br />

Além de mostrar a falta de prepara<strong>do</strong> <strong>do</strong>s professores que saem da graduação,<br />

Alice destaca também o que acontece quan<strong>do</strong> o professor recebe uma sala de aula com<br />

alunos com NEEs sem terem si<strong>do</strong>s prepara<strong>do</strong>s:<br />

Chega, entra, olá. E aí, o quê que ela tem que fazer? Pesquisar, para<br />

aprender, para ver como ela se comporta, (...) tu<strong>do</strong> isso sozinha. No<br />

caso, se a faculdade tivesse uma disciplina para estudar essas<br />

diferenças, seria mais fácil porque você já daria caminho para esse<br />

professor. Ele poderia até fazer opção: “olha, eu não <strong>do</strong>u conta de<br />

trabalhar numa classe inclusiva” ou “eu <strong>do</strong>u” ou “eu quero”,<br />

entendeu?<br />

Nesse recorte, o professor, no dizer popular “tem que se virar!”. Como saber se<br />

ele consegue lidar com a inclusão se não teve essa prática prevista no currículo da<br />

graduação? Disso, infere-se a importância da vivência, <strong>do</strong> estágio, de uma disciplina<br />

voltada para essa realidade cada vez mais comum. Diante desse despreparo, muitos<br />

professores não sabem como lidar com o aluno sur<strong>do</strong>. E, sobre isso, Alice nos ajuda ao<br />

dizer que:<br />

Você nunca vai falar para mim [intérprete] para falar para ele. Você<br />

vai chegar para ela e falar “olha Eliane [nome fictício para a aluna<br />

surda], você faz isso, isso e aquilo”. Como se ela estivesse te ouvin<strong>do</strong>.<br />

Ela [uma professora] fala “Senta! Senta!” igual a to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Você<br />

entendeu? Isso é uma inclusão. Então a inclusão é to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> junto e<br />

você respeitan<strong>do</strong> a diferença de cada um e não dan<strong>do</strong> mais atenção ou<br />

diminuin<strong>do</strong> a atenção pela diferença. É respeitan<strong>do</strong>. E o respeito<br />

significa, da mesma forma que você ensina para um você ensina para<br />

o outro. Você pode demorar mais com o outro, mas o ensino é o<br />

mesmo.<br />

Diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong> no qual o tema da inclusão está cada vez mais<br />

recorrente, soma<strong>do</strong>s ao aumento significativo de ingressos de alunos com NEEs no<br />

ensino regular, faz-se necessário pesquisas, <strong>artigos</strong>, entrevistas com profissionais da<br />

área, que ilustrem como está e como se dá o processo de ensino-aprendizagem de LE<br />

para alunos sur<strong>do</strong>s.


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 105<br />

Desafio. Essa é a palavra que define a busca por um sistema inclusivo. Será que<br />

sabemos lidar com o inusita<strong>do</strong>, com o novo? Seria isso um desafio para o professor de<br />

língua inglesa? Atrevo-me a dizer que sim. E mais, não só para o professor de LE, como<br />

também para o intérprete e qualquer outro profissional, pois a inclusão envolve, em<br />

qualquer perspectiva, não só a pedagógica, uma mudança de paradigmas.<br />

Isso implica que, nós, professores, devemos mudar, repensar, refletir concepções<br />

que estão “cristalizadas”. Nós fomos ensina<strong>do</strong>s e preparamos a enfrentar um contexto<br />

que vê o aluno como ideal. Não é tarefa fácil mudar algo tão enraiza<strong>do</strong> em nossas<br />

práticas. Isto gera me<strong>do</strong>, insegurança e desconforto. Diante <strong>do</strong> novo somos obriga<strong>do</strong>s a<br />

sair da “zona de conforto”, ou seja, temos (sociedade) que nos adaptar às novas<br />

exigências conforme prescritas nos <strong>do</strong>cumentos que norteiam a educação brasileira. A<br />

escola não pode mais ignorar esta realidade, a educação inclusiva.<br />

Inclusão não é mudança ou transferência <strong>do</strong>s alunos com necessidades<br />

educacionais especiais de uma escola especial para uma escola inclusiva (regular). Não<br />

é só jogá-los neste novo espaço. É um processo complexo.<br />

Ponto de partida ou ponto de chegada? O ponto de partida seria mesmo a<br />

preparação <strong>do</strong> professor, pois é ele quem vai receber e formar o aluno com NEEs. A<br />

Declaração de Salamanca foi muito sábia ao definir, em 1994 (há 15 anos) que a<br />

“preparação apropriada de to<strong>do</strong>s os educa<strong>do</strong>res se constitui um fator chave na promoção<br />

de progresso no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> estabelecimento de escolas inclusivas”. A LDB também<br />

ressalta essa preparação, os PCN-LE expõem as limitações que o professor de inglês<br />

enfrenta no cotidiano escolar, as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na<br />

Educação Básica enfatiza duas palavras para os professores: “capacita<strong>do</strong>s e<br />

especializa<strong>do</strong>s”.<br />

Ao analisar como a prescrição acerca da inclusão se evidencia na prática, analisei,<br />

na voz de Drika e Alice, como isso ocorre. Diante disso, o professor que não teve<br />

preparação para adequar sua matéria e sua prática para atuar na diversidade, segue o que<br />

está prescrito nas leis e políticas públicas, mas não porque acredite que este representa a<br />

resposta certa para seus questionamentos e incertezas. Simplesmente, porque não sabe


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 106<br />

fazer diferente. Quem é de fato o incluí<strong>do</strong>: o professor ou o aluno? Verifica-se, portanto,<br />

que apesar <strong>do</strong> aparato legal que apóia a Educação Inclusiva, ainda precisamos de muita<br />

reflexão teórica e formação prática <strong>do</strong>s educa<strong>do</strong>res.<br />

Almejo que a experiência aqui relatada possa ser associada a outras experiências<br />

de semelhante linha de ação e transforme-se em um convite a outros professores e<br />

pesquisa<strong>do</strong>res que se dedicam ao ensino/aprendizagem de língua estrangeira numa<br />

educação inclusiva e com alunos com necessidades educacionais especiais.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9394, 20 de<br />

dezembro de 1996. Brasília, Ministério da Educação, 1996. Disponível em:<br />

. Acesso em: 06 jul. 2008.<br />

______. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos <strong>do</strong> ensino<br />

fundamental: língua estrangeira. . Brasília: MEC/SEF, 1998.<br />

______. Diretrizes Nacionais para a educação especial na educação básica. Brasília:<br />

MEC; SEESP, 2001<br />

______. Lei Federal n. 10.436 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira<br />

de Sinais – Libras. Brasília/DF, 2002<br />

______. Decreto n.º 5626 de 22 de dezembro de 2005. Brasília/DF, 2005.<br />

ÉRNICA, M. O trabalho desterra<strong>do</strong>. In: O ensino como trabalho: uma abordagem<br />

discursiva. Londrina: Eduel, 2004, p.105-130<br />

FIDALGO, Sueli Salles. A linguagem de Inclusão/Exclusão Social-Escolar, na<br />

História, nas Leis e na Prática Educacional. Tese de Doutora<strong>do</strong> da PUC/SP.<br />

São Paulo: 2006<br />

GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. Portugal: Tipave, Indústrias Gráficas de<br />

Aveiro. 2004.<br />

MACHADO, A. R. (org.). O ensino como trabalho: uma abordagem discursiva.<br />

Londrina: Eduel, 2004<br />

OLIVEIRA, D. F. A. Professor, tem alguém fican<strong>do</strong> para trás! As crenças de<br />

professores influencian<strong>do</strong> a cultura de ensino/aprendizagem de LE de alunos


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 107<br />

sur<strong>do</strong>s. Dissertação de Mestra<strong>do</strong> em Lingüística Aplicada, Universidade de<br />

Brasília, Brasília, DF, junho, 2007.<br />

SILVA, C. M. O. O sur<strong>do</strong> na escola inclusiva aprenden<strong>do</strong> uma língua<br />

estrangeira (inglês): um desafio para professores e alunos. Dissertação de<br />

Mestra<strong>do</strong> Defendida e Aprovada no Programa de Lingüística Aplicada da UnB,<br />

2005.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 108<br />

LAÇOS DE SANGUE: ALGUNS ASPECTOS SOCIOCULTURAIS<br />

DOS ESTADOS UNIDOS NO SÉCULO XX<br />

Patricia Dayse Alves Alvino Moreira 1<br />

Rejane de Souza Ferreira 2<br />

RESUMO: A partir da obra Laços de Sangue, <strong>do</strong> autor estadunidense Michael<br />

Cunningham, analisamos alguns aspectos socioculturais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s no decorrer<br />

<strong>do</strong> século XX e como eles se alteram ao longo desse perío<strong>do</strong>. Para tanto, usamos como<br />

objeto de estu<strong>do</strong> a família Stassos, protagonista da obra em análise. Através de<br />

comportamentos e experiências vivenciadas pelos membros desta mesma família,<br />

identificamos temas diversos dentre os quais se destacam a representação feminina na<br />

sociedade, a sexualidade e a própria estrutura familiar, bem como as respectivas<br />

transformações dessas temáticas no decorrer de um século de intensa mudança e<br />

agitação.<br />

Palavras-chave: Família, Contexto histórico, Transformações socioculturais nos EUA<br />

FLESH AND BLOOD: SOME UNITED STATES SOCIOCULTURAL<br />

ASPECTS THROUGH THE 20 th CENTURY<br />

ABSTRACT: Based on Flesh and Blood, a book by the American author Michael<br />

Cunningham, we have analyzed some of the sociocultural aspects from The United<br />

States throughout the 20 th century, and how they have changed during this period. To<br />

reach our goals, we studied the Stassos family, protagonist of the work in analysis.<br />

Through the behaviors and experiences lived by the members of this family we have<br />

identified several themes, such as women's representation in society, sexuality and the<br />

own family structure, in addition to their respective transformations in the course of a<br />

century of great changes and agitation continued along.<br />

Key-words: family, historical context, sociocultural transformations and United States<br />

No decorrer deste texto pretendemos mostrar através da família Stassos,<br />

protagonista da obra Laços de Sangue <strong>do</strong> escritor estadunidense Michael Cunningham,<br />

as mudanças socioculturais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong> século XX. Essa família,<br />

formada por cinco membros: pai, mãe e três filhos, representa temas diversos como as<br />

próprias mazelas familiares, o imigrante em terras americanas, a infelicidade das<br />

mulheres ao la<strong>do</strong> de seus mari<strong>do</strong>s, o homossexualismo, as drogas e a prostituição.<br />

1 Graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual de Goiás – UEG. Unidade de Iporá.<br />

E-mail: paty-chan@hotmail.com<br />

2 Professora assistente da Universidade Federal <strong>do</strong> Tocantins - UFT. Campus de Porto Nacional. E-mail:<br />

rejanesferreira@gmail.com


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 109<br />

Começaremos, pois, com o pai Constantine. Esse personagem aparece já no<br />

primeiro capítulo, ainda na infância, moran<strong>do</strong> na Grécia, quan<strong>do</strong> já se é possível<br />

perceber sua ganância e desejo de prosperidade econômica:<br />

Então Constantine roubava da única maneira que podia, curvan<strong>do</strong>-se<br />

to<strong>do</strong> anoitecer, ao final <strong>do</strong> dia de trabalho, como se estivesse<br />

amarran<strong>do</strong> um último galho da videira, e enchen<strong>do</strong> a boca com terra.<br />

O solo tinha um gosto nauseante, fecal; uma escuridão em sua língua<br />

que era ao mesmo tempo repulsiva e estranha, perigosamente<br />

agradável. (CUNNINGHAM, 1995, p.12).<br />

Este trecho apresenta Constantine rouban<strong>do</strong> terra e esterco da roça de seu<br />

pai para sua própria. Através dessa citação pode-se perceber que Constantine estava<br />

disposto a tu<strong>do</strong> para atingir seus objetivos, inclusive roubar terra, repleta de<br />

excrementos, da horta de sua própria família com a boca.<br />

Motiva<strong>do</strong> pelo desejo de ascensão econômica, Constantine Stassos deixa<br />

seu país natal e vai para os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s em busca da realização sonho americano 1 .<br />

De acor<strong>do</strong> com os KARNAL et. all (2007), frequentemente os imigrantes não tinham<br />

outra opção senão adaptar sua dieta, roupa, língua e estilo de vida ao padrão americano<br />

para tentar evitar maiores discriminações, inclusive no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho. Segun<strong>do</strong> eles<br />

um desejo de assimilação também partiu <strong>do</strong>s próprios imigrantes. Muitos chegavam<br />

motiva<strong>do</strong>s pela possibilidade de uma vida melhor. É nesse contexto de adaptação a uma<br />

nova cultura que se encontra o jovem Constantine, agora na América, casa<strong>do</strong> e pai de<br />

três filhos como se observa no trecho que se segue:<br />

Era a Páscoa americana. A Páscoa grega seria dali a três semanas, mas<br />

ele sabia que Mary não gostaria que ele mencionasse tal coisa. Sempre<br />

que surgia a oportunidade, ela dizia: “Nós somos americanos, Con.<br />

Ame-ri-ca-nos”. A mãe dela mudara de Palermo para Nova Jersey<br />

afim de que os filhos pudessem nascer cidadãos <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s...<br />

(CUNNINGHAM, 1995, p.24).<br />

Neste trecho observa-se a vontade e a necessidade que a esposa de<br />

Constantine tem de se adaptar à cultura americana. Tal desejo pode ser percebi<strong>do</strong> na<br />

constante reafirmação da nacionalidade da família bem como pelo fato de que ela ignora<br />

as tradições da terra natal <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Na realidade, a família Stassos não constituiu um<br />

1 O sonho americano consiste na esperança que os imigrantes têm de uma vida melhor nos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s que em seu país de origem.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 110<br />

fato isola<strong>do</strong>. Neste perío<strong>do</strong> tantos outros imigrantes seguiram essa mesma tendência de<br />

adequação, seja por vontade própria, como no caso das personagens, ou não.<br />

Nesta busca por integração ao padrão da sociedade americana, os<br />

Stassos fazem de tu<strong>do</strong> para afastar o rótulo de imigrantes de sua família. Eles encontram<br />

no consumo uma maneira de adequar-se a essa sociedade:<br />

Desde que se mudara para esta cidade, aprendera uma coisa de que<br />

ninguém mais na sua família sabia. Sua casa era uma imitação. Os<br />

sofás e cadeiras estofa<strong>do</strong>s de rosa, o brilho castanho <strong>do</strong>s tampos de<br />

mesa e o bronze reluzente <strong>do</strong>s lustres – era tu<strong>do</strong> simula<strong>do</strong>, mobília que<br />

se mantinha firme com grampos e cola. Estalava de nova; cheirava<br />

sutilmente a substâncias químicas. (CUNNINGHAM, 1995, p.63).<br />

A família Stassos acredita que a aquisição de bens materiais proporciona a<br />

eles um direito a cidadania. Segun<strong>do</strong> Carlos Bauer (2001), tal pensamento foi difundi<strong>do</strong><br />

na sociedade americana entres os anos de 1932 e 1940. A essa visão, de consumo como<br />

meio de adquirir cidadania, se convencionou chamar de “mo<strong>do</strong> de vida americano”<br />

(American way of life).<br />

Os Stassos caracterizam este novo modelo de família que tenta encontrar na<br />

obtenção de bens a sua identidade, tentan<strong>do</strong> assim apagar de vez o estigma de<br />

imigrantes. No entanto, quem melhor representa essa nova sociedade de consumo é a<br />

mãe, Mary.<br />

Mary Stassos representa, além da típica <strong>do</strong>na de casa americana, o novo<br />

papel feminino instituí<strong>do</strong> nesta época, o de consumi<strong>do</strong>ra. O mari<strong>do</strong> era responsável pela<br />

renda da casa e a esposa por gastá-la. Isso era um aspecto tão comum para a época que a<br />

mulher também se tornou o principal alvo da indústria de consumo, pois esta era<br />

responsável pela administração <strong>do</strong> lar. Cada vez mais os comerciais e os produtos eram<br />

destina<strong>do</strong>s ao público feminino. As mulheres americanas ganhavam agora um novo<br />

horizonte, além de <strong>do</strong>nas de casa passaram a ser consumi<strong>do</strong>ras em potencial. Consumir<br />

passou a ser o novo sinônimo de felicidade:<br />

Mary mal podia acreditar que o dinheiro estava aumentan<strong>do</strong>. Agora,<br />

finalmente, ela podia dar coisas belas para as crianças. Embora suas<br />

filhas definitivamente preferissem o barato e chamativo... Mary<br />

comprou essas coisas e outras também, esperan<strong>do</strong> que as filhas<br />

aprendessem a ver o brilho que a verdadeira qualidade produzia no<br />

ambiente de um quarto. (CUNNINGHAM, 1995, p.41).


CARANDÁ<br />

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Neste perío<strong>do</strong> relata<strong>do</strong> em Laços de Sangue o ato de consumir se tornou um<br />

hábito que foi rapidamente incorpora<strong>do</strong> pela sociedade americana, principalmente pelas<br />

mulheres que, assim como a personagem Mary, encontraram no consumo uma forma de<br />

preencher o vazio de suas vidas. Ter uma casa grande e com uma linda mobília<br />

significava ter sucesso na vida e no casamento, além de proporcionar as <strong>do</strong>nas de casa<br />

algo com o que se ocupar.<br />

As americanas <strong>do</strong>s mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XX viviam sob grande influência da<br />

mídia da época. Esse processo de alienação, no qual a mulher via-se obrigada a<br />

adequar-se a um estereotipo defini<strong>do</strong> pelos veículos de comunicação, foi chama<strong>do</strong> por<br />

Betty Friedan de “mística feminina”:<br />

Havia uma estranha discrepância entre a realidade de nossa vida de<br />

mulher e a imagem à qual nos procurávamos amoldar, imagem que<br />

apelidei de mística feminina, perguntan<strong>do</strong> a mim mesma se outras<br />

mulheres, num círculo mais amplo, se defrontavam também com esta<br />

cisão esquizofrênica e qual seria o seu significa<strong>do</strong>. (FRIEDAN, 1963,<br />

p. 11).<br />

Friedan argumenta que neste perío<strong>do</strong> a mulher americana abdicou <strong>do</strong>s<br />

direitos e igualdades que suas precursoras haviam conquista<strong>do</strong> para se dedicar ao seu<br />

novo papel, o de <strong>do</strong>na de casa, papel esse que fora a ela imposto e também fora por ela<br />

aceito como mostra a seguinte citação, “a <strong>do</strong>na de casa <strong>do</strong>s subúrbios tornou-se a<br />

concretização <strong>do</strong> sonho da americana”. (FRIEDAN, 1963, p. 19).<br />

Mary Stassos é o exemplo perfeito <strong>do</strong> novo estilo da mulher americana<br />

desta época. Ela se dedica exclusivamente aos filhos e a casa. Suas únicas preocupações<br />

são os afazeres <strong>do</strong>mésticos e a decoração <strong>do</strong> lar:<br />

Na cozinha, sua mãe colocava os pratos no escorre<strong>do</strong>r. Com um pano,<br />

produzia guinchos que eram o próprio som da limpeza. Ela se<br />

movimentava assepticamente pelo mun<strong>do</strong>... Embora a mãe de Billy<br />

esfregasse, aspirasse o pó e quase arrancasse a pele <strong>do</strong>s móveis com<br />

seu pano de limpeza, não podia eliminar a intensa e totalmente difusa<br />

marca de propriedade de seu pai. (CUNNINGHAM, 1995, p.36).<br />

As perspectivas de vida de Mary não vão além <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong> lar. Ela é<br />

totalmente dependente <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e mesmo não viven<strong>do</strong> um casamento feliz não procura<br />

por nenhuma mudança. Mary contenta-se em manter a aparência de uma típica família<br />

americana feliz: um mari<strong>do</strong> cujos negócios têm prospera<strong>do</strong>, três filhos e uma casa


CARANDÁ<br />

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grande. A cozinha era o local de suas grandes realizações, dan<strong>do</strong> valor excessivo a<br />

coisas como um bolo de páscoa como é mostra<strong>do</strong> no trecho a seguir:<br />

Mary estava montan<strong>do</strong> um bolo de Páscoa em forma de coelho de<br />

acor<strong>do</strong> com as instruções de uma revista, recortan<strong>do</strong> as orelhas e a<br />

cauda de uma camada de bolo, re<strong>do</strong>nda, amarela e inocente como uma<br />

lua de quarto de criança. Ela trabalhava num assomo de concentração.<br />

(CUNNINGHAM, 1995, p.18).<br />

A cozinha era o universo da maioria das <strong>do</strong>nas de casa. Era o local onde elas<br />

pertenciam e onde passavam grande parte <strong>do</strong> seu dia. Esta parte da casa ganhou tanta<br />

importância que profissionais se especializaram no planejamento e decoração deste<br />

ambiente: “Os decora<strong>do</strong>res planejavam cozinhas com murais de mosaico e quadros<br />

originais, pois a cozinha transformara-se no centro da vida feminina.” (FRIEDAN,<br />

1963, p.19).<br />

A mídia ciente de seu poder de manipulação sob as <strong>do</strong>nas de casa,<br />

juntamente com as revistas dedicadas ao público feminino, foi responsável por diversas<br />

mudanças na vida das mulheres americanas da época, entre as quais vale ressaltar a<br />

transformação <strong>do</strong> padrão de beleza da americana. Tal afirmação pode ser confirmada no<br />

trecho que se segue:<br />

“Se tenho apenas uma vida quero ser loura”, gritava em anúncios de<br />

jornais, revistas e cartazes uma foto ampliada de mulher bonita e<br />

esguia. E de ponta a ponta <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, três em cada dez<br />

mulheres tingiram o cabelo de louro e substituíram a alimentação por<br />

um pó chama<strong>do</strong> Metrecal, a fim de reduzirem-se às medidas das<br />

jovens modelos. (FRIEDAN, 1963, p.19).<br />

Esta mudança pode ser percebida na trama de Michael Cunningham nos<br />

acontecimentos que se desenvolvem no ano de 1968. Neste capítulo Susan, a<br />

primogênita <strong>do</strong> casal Mary e Constatine Stassos, participa de um concurso escolar para<br />

a eleição da rainha da festa. Quan<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong> é anuncia<strong>do</strong> e Susan se vê em segun<strong>do</strong><br />

lugar, perden<strong>do</strong> para sua amiga Rosemary, ela deixa claro em seu discurso que a razão<br />

pela qual não vencera era o fato de não se encaixar no padrão de beleza da época:<br />

Como desejara terminar o curso com uma vitória completa,<br />

imaculada. Dentro <strong>do</strong> abraço de Rosemary, Susan se sentiu enrijecer.<br />

Rosemary dissera, “é você”, saben<strong>do</strong> – por certo ela já sabia – que<br />

Susan não poderia vencer. Susan tinha nome grego. Ela não era loura.<br />

(CUNNINGHAM, 1995, p.81).


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 113<br />

As mulheres queriam se adequar à nova moda: ser loura e magra. Elas<br />

sentiam uma necessidade tão grande de se encaixar nos diversos padrões que surgiam,<br />

que tingir os cabelos de louro se tornou moda até mesmo entre as jovens. Em Laços de<br />

Sangue esta tendência fica clara na fala <strong>do</strong> pai de Susan: “O pai concor<strong>do</strong>u e deu de<br />

ombros. ‘Louras’, disse ele. ‘O mun<strong>do</strong> inteiro ficou maluco por causa de cabelos louros.<br />

Eu nunca entendi isso.” (CUNNINGHAM, 1995, p. 83). A alienação feminina era<br />

tamanha que, segun<strong>do</strong> relata Betty Friedan, desde 1939 o manequim da mulher<br />

americana diminuíra três ou quatro pontos, partin<strong>do</strong> da idéia de que as mulheres<br />

adaptam-se às roupas e não vice-versa.<br />

Após o concurso que marcou o término de seus estu<strong>do</strong>s no ensino médio,<br />

Susan Stassos não vai para uma faculdade e mesmo sen<strong>do</strong> muito jovem ela decide se<br />

casar. Contu<strong>do</strong>, ela não era um caso isola<strong>do</strong>, tal comportamento tornou-se comum nesta<br />

época. Cada vez mais convencidas de que a realização feminina se encontrava no<br />

casamento e na edificação de uma família, as americanas casavam-se mais ce<strong>do</strong>. O<br />

resulta<strong>do</strong> disso foi que inúmeras jovens esposas renunciavam aos estu<strong>do</strong>s e a busca por<br />

uma carreira profissional para apoiar os seus, também jovens, mari<strong>do</strong>s:<br />

Eram geralmente casadas, secretárias ou vende<strong>do</strong>ras, com empregos<br />

de meio expediente, ajudan<strong>do</strong> a pagar os estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> ou <strong>do</strong>s<br />

filhos, ou colaboran<strong>do</strong> na liquidação de uma hipoteca. Um número<br />

cada vez menor dedicava-se ao trabalho verdadeiramente profissional.<br />

(FRIEDAN, 1963, p.19).<br />

Após seu casamento, Susan passa a trabalhar como secretária na faculdade<br />

que seu mari<strong>do</strong> freqüenta para ajudá-lo em seus estu<strong>do</strong>s. Isto era um fato tão comum<br />

que a sociedade da época oferecia apoio aos casamentos cada vez mais precoces. Em<br />

muitas faculdades e universidades era possível encontrar alojamentos ou <strong>do</strong>rmitórios<br />

para os estudantes casa<strong>do</strong>s e suas jovens esposas que deveriam apoiar os mari<strong>do</strong>s na<br />

realização de suas ambições e ser o suporte para que eles obtivessem sucesso<br />

profissional. Embora elas vivessem e trabalhassem nas mesmas faculdades que os<br />

mari<strong>do</strong>s, nunca tiveram ou quiseram a chance de estudar. As portas das universidades<br />

não se abriam para as mulheres, somente para as esposas. Enquanto nas salas de aula<br />

futuros homens de sucesso eram forma<strong>do</strong>s, nas secretarias e bibliotecas esposas<br />

cumpriam o seu dever e pensavam na grande e nova casa que possuiriam e nos filhos


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que teriam assim que os mari<strong>do</strong>s concluíssem os estu<strong>do</strong>s. Tal fato pode ser nota<strong>do</strong> na<br />

citação a seguir:<br />

Ela datilografava os da<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s alunos em fichas, e datilografava<br />

sempre exatamente na linha. Fazia compras, cozinhava, limpava o<br />

apartamento e tomava café com Ellie, Beth e Linda, as outras moças<br />

<strong>do</strong> trabalho. As outras estavam tentan<strong>do</strong> evitar a gravidez até que os<br />

mari<strong>do</strong>s se formassem... (CUNNINGHAM, 1995, p.136).<br />

Cunningham evidencia ainda outro comportamento típico das jovens desta<br />

época; adequar-se a vida <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Enquanto os mari<strong>do</strong>s concluíam os estu<strong>do</strong>s elas<br />

apenas esperavam e adiavam seus planos. Afinal o destino de suas vidas seria decidi<strong>do</strong><br />

apenas depois que seus mari<strong>do</strong>s se graduassem. Tu<strong>do</strong> que elas possuíam ou faziam<br />

neste perío<strong>do</strong> era provisório. Trabalhar fora era apenas uma ocupação momentânea. As<br />

mulheres tinham um papel delimita<strong>do</strong> na sociedade como argumenta Stuart Hall:“As<br />

mulheres exercem um papel secundário como guardiãs <strong>do</strong> lar e <strong>do</strong> clã, e como<br />

‘mães’<strong>do</strong>s ‘filhos’ (homens) da nação.” (1992, p. 61).<br />

Laços de Sangue apresenta também um olhar sob o outro la<strong>do</strong> da vida das<br />

<strong>do</strong>nas de casa e jovens esposas americanas <strong>do</strong> século XX: a crise de identidade.<br />

Toman<strong>do</strong> como exemplo a personagem Mary Stassos podemos analisar este problema<br />

que afligia outras tantas mulheres após a década de 50. Mary constantemente reclama<br />

de cansaço e tonturas ou era acometida por uma súbita falta de ar, como se pode<br />

observar no trecho a seguir:<br />

Não precisava usar o banheiro; Precisava ficar sozinha, nem que fosse<br />

um ou <strong>do</strong>is minutos. Precisava se concentrar em encher os pulmões de<br />

ar. Quan<strong>do</strong> encontrou o banheiro, trancou a porta e tirou uma pílula da<br />

bolsa. Engoliu a pílula e ficou junto à pia, respiran<strong>do</strong>.<br />

(CUNNINGHAM, 1995, p. 181).<br />

Esses sintomas foram observa<strong>do</strong>s em várias <strong>do</strong>nas de casa que viveram<br />

nesta mesma época. Betty Friedan relata que neste perío<strong>do</strong> tantas mulheres procuraram<br />

o médico queixan<strong>do</strong>-se de tais sintomas que um deles resolveu investigar. Friedan<br />

chamou estes problemas de “fadiga de <strong>do</strong>na de casa”. O médico observou que grande<br />

parte das pacientes que o procuravam <strong>do</strong>rmia mais <strong>do</strong> que um adulto normalmente<br />

necessita e que as tarefas <strong>do</strong>mésticas que elas desempenhavam não exigiam energia<br />

além de sua capacidade:


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Outros receitavam tranqüilizantes. Muitas já os tomavam como quem<br />

chupa pastilhas para tosse. “Você levanta de manhã sentin<strong>do</strong> que não<br />

é possível viver mais um só dia igual aos outros, de mo<strong>do</strong> que toma<br />

tranqüilizante, porque ajuda a não dar muita atenção ao fato de que<br />

tu<strong>do</strong> que você faz é sem importância...” (FRIEDAN, 1963, p.30).<br />

Os sintomas apresenta<strong>do</strong>s pelas mulheres não pareciam ter nenhuma<br />

natureza física e sim psicológica. Assim foi defini<strong>do</strong> que o problema inomina<strong>do</strong> das<br />

americanas era o tédio. As <strong>do</strong>nas de casa sentiam-se insatisfeitas com o rumo de suas<br />

vidas. Não importava o quão bem sucedidas elas parecessem, no interior o seu mun<strong>do</strong><br />

ruía perante o vazio que suas existências representavam. Elas deveriam sentir-se<br />

realizadas em sua rotina <strong>do</strong>méstica, pois isto era tu<strong>do</strong> com o qual sonharam.<br />

Contu<strong>do</strong>, as americanas enfrentavam um problema que elas mesmas<br />

desconheciam. Era uma insatisfação que elas não conseguiam descrever. O que<br />

imaginavam e tinham como ideal de vida de alguma maneira não condizia com sua<br />

realidade. De alguma forma as mulheres sabiam que faltava algo para preencher suas<br />

vidas. Esta crise de identidade provocou muita agitação e foi a causa de diversos<br />

distúrbios femininos. Ten<strong>do</strong> como referência esse perío<strong>do</strong> pode-se identificar na<br />

personagem de Cunningham, Mary Stassos, alguns problemas que talvez sejam<br />

conseqüência deste conturba<strong>do</strong> momento da vida das americanas. Veja o trecho que se<br />

segue:<br />

Deu uma olhada à sua volta, viu que ninguém a estava observan<strong>do</strong> e,<br />

antes mesmo de saber que o faria, enfiou furtivamente a caderneta de<br />

endereços na bolsa. Sua fronte queimava. Calmamente, com seu andar<br />

habitual, de salto e brincos de perola, saiu com a caderneta de<br />

endereços cafona escondida na bolsa, a etiqueta com o preço ainda<br />

presa à capa. (CUNNINGHAM, 1995, p.89).<br />

Após anos de um casamento não muito feliz Mary se vê as voltas com mais<br />

um problema; a cleptomania. O trecho cita<strong>do</strong> relata a primeira vez que a personagem<br />

pratica um roubo. Com o passar <strong>do</strong> tempo os impulsos se tornam mais fortes e<br />

freqüentes. Por mais que ela tentasse não conseguia parar. Os pequenos furtos lhe<br />

proporcionavam um prazer incomum para a sua vida vazia e sem perspectivas, assim,<br />

ela prosseguiu rouban<strong>do</strong> coisas inúteis e sem valor material: “Desde então, ela roubara<br />

um punha<strong>do</strong> de coisinhas, e sempre sentira o mesmo prazer desconfortável, como se


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tivesse se arrisca<strong>do</strong> para criar um pouco mais de limpeza e de ordem.”<br />

(CUNNINGHAM, 1995, p.90).<br />

Mary Stassos sofre ainda com a frigidez sexual, outro problema recorrente<br />

entre as americanas da época. Mesmo sen<strong>do</strong> ainda jovem, Mary, não sente nenhum<br />

interesse sexual pelo mari<strong>do</strong> chegan<strong>do</strong> a estabelecer uma relação quase maternal para<br />

com ele:<br />

Ele beijou o pescoço dela, tomou na mão o queixo da mulher e pôs<br />

seus lábios nos dela. Eles não faziam amor há – quantos? – seis<br />

meses? Mais <strong>do</strong> que isso? Mas esta noite não seria a noite, não se<br />

dependesse dela. Há muito tempo ela começara a vencer a batalha<br />

com os próprios sentimentos. (CUNNINGHAM, 1995, p. 95).<br />

Tal problema afligia tantas outras mulheres contemporâneas da personagem<br />

de Cunningham. Neste perío<strong>do</strong> em que as mulheres casavam-se cada vez mais ce<strong>do</strong> e<br />

tinham um número maior de filhos, Betty Friedan argumenta que a volta da mulher ao<br />

casamento prematuro e às grandes famílias, o movimento em prol <strong>do</strong> parto e da<br />

amamentação naturais, a conformidade suburbana, as novas neuroses, e problemas<br />

sexuais registra<strong>do</strong>s pelos médicos eram coisas freqüentes e comuns na vida das<br />

americanas que viveram em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XX:<br />

E principiei a descobrir novas dimensões em velhos problemas que há<br />

muito vem sen<strong>do</strong> aceitos sem discussão entre as mulheres:<br />

dificuldades menstruais, frigidez sexual, promiscuidade, me<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

parto, depressão pós-puerperal, alta incidência de crises emocionais e<br />

suicídios entre mulheres de vinte e trinta anos, a pseu<strong>do</strong>passividade e<br />

imaturidade <strong>do</strong> homem americano... (FRIEDAN, 1963, p.31).<br />

Friedan argumenta ainda que toda essa problemática enfrentada pela mulher<br />

americana era completamente desprezada pelos profissionais e indivíduos da sociedade<br />

daquela época. E que a própria mulher nem sempre admitia tais sintomas muitas vezes<br />

por me<strong>do</strong> e vergonha de sua condição e na maioria <strong>do</strong>s casos pelo fato de elas mesmas<br />

não conseguirem nomear o problema. E desta forma, muitas mulheres fecharam-se em<br />

seus receios e dilemas pelo puro me<strong>do</strong> de destoar <strong>do</strong> modelo ideal de mulher<br />

dissemina<strong>do</strong> naquele tempo.<br />

Susan também enfrenta problemas em seu casamento. Embora, ela tenha<br />

realiza<strong>do</strong> o sonho, que a maioria das americanas compartilhava, de possuir uma bela<br />

casa colonial e ter um mari<strong>do</strong> com um futuro promissor ela não se sentia completa.


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Susan queria desesperadamente ter um filho, pois neste perío<strong>do</strong> acreditava-se que a<br />

maternidade fosse a solução para os problemas enfrenta<strong>do</strong>s pelas jovens esposas e<br />

<strong>do</strong>nas de casa, como nota-se no trecho seguinte:<br />

Se o segre<strong>do</strong> da realização feminina é ter filhos, nunca tantas<br />

mulheres, com liberdade de escolha, tiveram tantas crianças em tão<br />

poucos anos, de tão boa vontade. Se a resposta é o amor, nunca tantas<br />

o procuraram com tal determinação. Contu<strong>do</strong>, há uma crescente<br />

suspeita de que o problema não seja de ordem sexual, embora<br />

possivelmente se relacione com sexo. (FRIEDAN, 1963, p.29).<br />

Embora Susan tentasse ter um filho e realmente o quisesse ter, a gravidez<br />

simplesmente não acontecia. Como o seu mari<strong>do</strong> trabalhava bastante e estava<br />

constantemente fora de casa Susan se sentia solitária já que as tarefas <strong>do</strong>mésticas não<br />

ocupavam to<strong>do</strong> o seu tempo. Essa junção de solidão com a sensação de fracasso por não<br />

conseguir realizar o sonho de ser mãe conduz a personagem ao adultério, uma prática<br />

que, segun<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>s, não era tão incomum entre as <strong>do</strong>nas de casa frustradas da época:<br />

Caso não era a palavra certa para o que Susan estava ten<strong>do</strong>. Era – o<br />

quê? Um erro que ela se permitira. Uma tentação contínua diante da<br />

qual ela se vira, temporariamente, sem capacidade ou vontade de<br />

resistir. Quan<strong>do</strong> ela pensava sobre uma mulher ten<strong>do</strong> um caso,<br />

pensava em quartos de hotel, tardes lacrimosas, toda uma galáxia de<br />

anseios e arrependimentos. (CUNNINGHAM, 1995, p.218).<br />

O trecho acima relata o caso extraconjugal que a personagem Susan estava<br />

manten<strong>do</strong> com o jardineiro de sua casa. Com o mari<strong>do</strong> estan<strong>do</strong> frequentemente fora de<br />

casa e nada com o que se ocupar ela se vê as voltas com esta relação proibida. Susan<br />

sente uma mistura de prazer e culpa. Muitas mulheres acabavam aderin<strong>do</strong> a esta prática<br />

como forma de preencher o vazio de suas vidas, como nos mostra Friedan (1963,<br />

p.224):<br />

Sexo é a única fronteira aberta à mulher que sempre viveu nos limites<br />

da mística. Nos últimos quinze anos, fora forçada a expandir-se talvez<br />

além <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> possível, a fim de preencher o tempo livre, o<br />

vácuo cria<strong>do</strong> pela negação de objetivos mais amplos.<br />

A necessidade de se sentirem notadas e desejadas fazia com que elas<br />

procurassem por um outro homem. Contu<strong>do</strong>, casos extraconjugais não eram e nunca<br />

foram exclusivos das mulheres. Em Laços de Sangue este outro la<strong>do</strong> pode ser percebi<strong>do</strong><br />

entre o casal Mary e Constatine Stassos. Como Mary não se interessa sexualmente pelo


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mari<strong>do</strong> ele acaba por arranjar uma amante. Essa relação fora <strong>do</strong> casamento é uma forma<br />

de compensar a indiferença de sua esposa:<br />

Mary sabia. Sabia pelos cheiros que ele trazia para casa, pelas músicas<br />

que ele assobiava. Constantine exibia a amante no próprio rosto. O<br />

fato não a surpreendia. Os homens se desgarravam, os apetites os<br />

conduziam. Ela fora educada em menina, e nunca deixaria o<br />

sentimento se transformar em pensamento. (CUNNINGHAM, 1995,<br />

p.196).<br />

Este trecho evidencia como a traição masculina era encarada com<br />

naturalidade pelas mulheres. Tal fato deve-se a educação que fora dada a elas. A mulher<br />

deveria ser indiferente a estes comportamentos, pois eram responsáveis por manter a<br />

harmonia e o bem-estar <strong>do</strong> casamento. Muitas vezes um caso extraconjugal era visto<br />

como um alívio pelas esposas, já que as desobrigava da relação sexual com o mari<strong>do</strong>.<br />

A supervalorização <strong>do</strong> sexo na vida <strong>do</strong>s homens americanos se tornou uma<br />

questão tão séria que se refletiu nas revistas, no cinema e até mesmo na literatura.<br />

Estu<strong>do</strong>s revelam que entre 1950 e 1960 houve um extraordinário aumento de<br />

referências explícitas a desejos e expressões sexuais o que resulta num aumento de 20%<br />

nas alusões feitas ao sexo nos veículos de comunicação e também um crescimento<br />

significativo das referências a relações ditas libertinas.<br />

Em contraposição à Mary e Susan Stassos, apresentam-se os outros filhos<br />

<strong>do</strong> casal Mary e Constantine Stassos: Billy e Zoe. Estes representam a nova geração<br />

americana que romperia com os antigos padrões da sociedade de sua época. Billy, o<br />

segun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s três filhos <strong>do</strong> casal Stassos representa uma nova denominação social que<br />

vivia as margens da sociedade sen<strong>do</strong> propositalmente ignorada: os homossexuais. Desde<br />

a infância percebem-se no comportamento de Billy indícios de homossexualidade, mas<br />

é na a<strong>do</strong>lescência que tais suspeitas se confirmam:<br />

Continuaram corren<strong>do</strong> e gritan<strong>do</strong>, até que num mesmo instante, num<br />

acor<strong>do</strong> singular, eles pararam e ficaram gritan<strong>do</strong> um para o outro. O<br />

rosto de Bix brilhava, selvagem, estria<strong>do</strong> de sangue. Os <strong>do</strong>is gritaram,<br />

e algo invisível aconteceu. Formou-se um enorme arco de amor que<br />

crepitava entre os <strong>do</strong>is. Billy parou de gritar. E ficou ali para<strong>do</strong>, mu<strong>do</strong><br />

e subitamente assusta<strong>do</strong>. (CUNNINGHAM, 1995, p. 103).<br />

O trecho anterior relata o primeiro interesse de Billy por outro garoto.<br />

Percebe-se ainda que até este incidente o próprio personagem ainda não tinha<br />

consciência de sua homossexualidade e por isso se assusta. Com base em Friedan


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(1971), pode-se dizer que Mary tem sua parcela de contribuição para a formação da<br />

sexualidade de Billy, pois segun<strong>do</strong> essa crítica, o excesso de cuida<strong>do</strong>s e a realização das<br />

vontades das mães através <strong>do</strong>s filhos pode ser um <strong>do</strong>s fatores responsáveis pelo o<br />

aumento <strong>do</strong> homossexualismo nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na segunda metade <strong>do</strong> século XX:<br />

Hoje em dia, quan<strong>do</strong> não só a profissão, como qualquer compromisso<br />

fora de casa se tornou inatingível para uma esposa e mãe<br />

verdadeiramente “feminina”, a dedicação mãe-filho, capaz de gerar<br />

homossexualidade franca ou latente, tem inúmeras oportunidades de<br />

se expandir para encher o tempo disponível. O menino sufoca<strong>do</strong> por<br />

esse sentimento parasitário é impedi<strong>do</strong> de crescer não só sexualmente,<br />

como em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s. (FRIEDAN, 1963, p.237).<br />

Embora Mary Stassos ame a to<strong>do</strong>s os seus três filhos ela tem por Billy um<br />

carinho especial. Ela sempre o cercou de mimos e atenção extra e inconscientemente<br />

tentava realizar seus desejos através dele.<br />

Billy, depois de ter uma infância e a<strong>do</strong>lescência marcadas por atritos com o<br />

pai, finalmente aceita sua sexualidade na juventude, quan<strong>do</strong> ele está freqüentan<strong>do</strong> a<br />

universidade. Tal fato se relaciona diretamente com o acontecimento descrito no<br />

fragmento que se segue:<br />

O nome Will tornou-se seu privilégio furtivo, depois seu direito, e por<br />

fim um fato externo. Entre os amigos ninguém mais o chamava de<br />

Billy. Billy pertencia a um passa<strong>do</strong> antigo, à era agonizante <strong>do</strong>s<br />

carros, da tristeza e da cupidez colonial, à desolação prospera das<br />

casas. Will tinha uma beleza nova... (CUNNINGHAM, 1995, p.123).<br />

Nesta passagem da obra Laços de Sangue, observa-se a mudança de nome<br />

<strong>do</strong> personagem, de Billy ele passa a ser chama<strong>do</strong> de Will. Este momento marca a<br />

aceitação da sexualidade por parte <strong>do</strong> personagem. Esta mudança na forma como ele é<br />

chama<strong>do</strong> se reflete diretamente em suas atitudes e personalidade. Será apenas após uma<br />

série de experiências sexuais esporádicas que Will finalmente encontrará um<br />

relacionamento sério:<br />

Eles iam ao cinema, a restaurantes. No primeiro dia ensolara<strong>do</strong> foram<br />

a Provincetown no carro de Harry e, tiritan<strong>do</strong>, caminharam à beira da<br />

água de suéteres e casacos. [...] Eles não fizeram declarações; as<br />

coisas foram apenas se des<strong>do</strong>bran<strong>do</strong>. Outra noite e mais outra, e<br />

<strong>do</strong>mingo, o dia inteiro, café e jornais. (CUNNINGHAM, 1995, p.301).<br />

Este fragmento relata como o relacionamento entre Will e Harry se<br />

desenvolve. A princípio a relação entre os <strong>do</strong>is baseava-se apenas em encontros


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aleatórios e sexo. Contu<strong>do</strong>, com o passar <strong>do</strong> tempo, eles descobrem afinidades e<br />

aumentam o tempo que passam juntos. A relação <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is evolui até o ponto de se<br />

tornarem namora<strong>do</strong>s e depois viverem como um casal.<br />

Pode-se ver que Will deixa para trás as incertezas e problemas que tinha<br />

enquanto Billy e assume uma nova postura em relação à vida e a ele mesmo. Ele passa a<br />

ser mais autoconfiante e determina<strong>do</strong>, assumin<strong>do</strong> uma atitude mais agressiva e<br />

arrogante. Will participa <strong>do</strong>s muitos movimentos que surgiram em sua época:<br />

‘Você quer ir para a formatura vesti<strong>do</strong> de Beatnik? Você quer<br />

simplesmente transitar por lá parecen<strong>do</strong> um beat maluco?’ [...] ‘Olha’<br />

tornou Billy. ‘ Eu tenho amigos que estão rin<strong>do</strong> de mim até por eu<br />

estar fazen<strong>do</strong> isso. Sentar ali e ficar ouvin<strong>do</strong> discursos sobre a<br />

grandiosa e velha instituição, apresenta<strong>do</strong>s a nós pelos caras que<br />

ajudaram a inventar o napalm...’(CUNNINGHAM, 1995, p. 178).<br />

O trecho anterior relata o episódio da formatura de Billy. Neste fragmento<br />

se pode observar que Billy está vesti<strong>do</strong> no estilo beatnik, movimento que antecedeu a<br />

eclosão <strong>do</strong> movimento hippie, e se renega a participar da cerimônia de formatura em<br />

Harvard. Tal fato foi comum neste perío<strong>do</strong> de agitação, principalmente entre os<br />

estudantes.<br />

De acor<strong>do</strong> com Karnal et al. (2007), em 1962 foi funda<strong>do</strong> o maior grupo da<br />

organização nacional de estudantes, o Estudantes para Uma Sociedade Democrática<br />

(SDS em inglês). Eles foram produtos da expansão da educação superior e fortemente<br />

inspira<strong>do</strong>s pelos movimentos negros, começaram a organizar sua solidariedade para<br />

com as lutas por direitos civis, o desenvolvimento econômico em comunidades pobres<br />

e, especialmente, o movimento contra a guerra <strong>do</strong> Vietnã. Nessa mesma época eclodiam<br />

também as vitórias feministas que foram seguidas por outros grupos que questionaram<br />

publicamente valores sexuais <strong>do</strong>minantes na sociedade. Lésbicas e gays organizaram-se<br />

em movimentos para a “liberação gay” e como acontecia com o movimento feminista,<br />

ativistas lésbicas e gays estavam dan<strong>do</strong> continuidade às políticas e práticas de<br />

“formação de comunidade” iniciada por militares durante e logo depois da Segunda<br />

Guerra Mundial.<br />

É nesse contexto, onde novos segmentos e denominações sexuais estavam<br />

emergin<strong>do</strong> das sombras da sociedade americana que também iremos encontrar Zoe e<br />

suas amigas excêntricas. Como foi dito anteriormente, Will não é o único membro da


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família Stassos a romper com os padrões da sociedade e transgredir os limites de<br />

conduta que eram fortemente impostos em seu tempo, sua irmã mais nova também faz<br />

parte dessa nova identidade moderna americana.<br />

Zoe apesar de ter si<strong>do</strong> criada no mesmo ambiente familiar que, Susan, não<br />

reproduz o mesmo comportamento que a irmã. Enquanto Susan casa-se ce<strong>do</strong> e constitui<br />

família, Zoe tem sua a<strong>do</strong>lescência e juventude conturbadas. Segun<strong>do</strong> relata Betty<br />

Friedan muitas crianças provenientes de lares onde as mães tinham problemas de<br />

identidade, resultantes da condição alienada da <strong>do</strong>na de casa da época, apresentaram<br />

comportamentos peculiares além de uma drástica mudança na estruturação da<br />

personalidade como se observa no trecho a seguir:<br />

Tentaram definir essa mudança na jovem geração classifican<strong>do</strong>-a<br />

como uma transformação básica de to<strong>do</strong> o caráter americano.<br />

Vantagem ou desvantagem, saúde ou <strong>do</strong>ença, via-se que a<br />

personalidade humana, caracterizada por seu âmago forte e estável,<br />

estava sen<strong>do</strong> substituída por “uma personalidade vaga, amorfa,<br />

desorientada”. (FRIEDAN, 1963, p. 244).<br />

Esta alteração descrita por Friedan foi observada por um crítico de<br />

sociologia e por alguns psicanalistas na década de 50. Tal perío<strong>do</strong> corresponde com a<br />

infância <strong>do</strong>s filhos mais jovens <strong>do</strong> casal Stassos, e muitas destas mudanças na<br />

personalidade <strong>do</strong>s indivíduos podem ser percebidas nos comportamentos deles.<br />

Zoe Stassos, diferentemente das outras mulheres da família, não se encaixa<br />

no conceito de feminilidade difundi<strong>do</strong> na época. Ela não tem ambições quanto ao<br />

casamento e não possui expectativa alguma de constituir família como se observa no<br />

seguinte trecho: “Zoe sabia que nunca se casaria. Uma noiva tinha de ter planos, tinha<br />

de morar numa casa. Zoe moraria <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora, tomaria sopa feita de casca de árvore<br />

e água de chuva. Ela não servia para casas.” (CUNNINGHAM, 1995, p.71). Zoe não<br />

tem preocupações quanto à aparência ou popularidade, vive num mun<strong>do</strong> quase<br />

particular com seus próprios ideais e forma de enxergar a vida:<br />

‘Selvagem é uma coisa’, disse ela.[Cassandra] ‘Medusa já é outra.<br />

Você esta apavoran<strong>do</strong> os homens com esse matagal. Por que você não<br />

deixa eu passar um creme rinse e dar uma cortadinha, só pra ver se a<br />

gente consegue que esse cabelo se mexa numa ventania?’ Mas Zoe<br />

não queria que seu cabelo mudasse. Havia alguma coisa inerente a<br />

ele... (CUNNINGHAM, 1995, p. 189).


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Zoe Stassos não vivia para os outros e sim para ela mesma. Ela destoa<br />

completamente <strong>do</strong> modelo de feminilidade segui<strong>do</strong> por sua mãe e irmã. O<br />

relacionamento de Zoe com sua família é normal. Ela tem uma relação sem atritos com<br />

os pais, especialmente com o pai com quem tem um grau maior de proximidade.<br />

Contu<strong>do</strong>, ela leva uma vida libertina e quase marginal fora <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mínios de sua família.<br />

Juntamente com sua amiga Trancas, ela vivencia experiências promíscuas e até mesmo<br />

ilegais, conhecen<strong>do</strong> e revelan<strong>do</strong>, ao mesmo tempo, outra parte marginalizada da<br />

sociedade.<br />

Juntas, Zoe e Trancas, trilharam caminhos semelhantes aos de muitos jovens<br />

que viveram esta mesma era. O uso de drogas, o consumo excessivo de álcool e a<br />

banalização <strong>do</strong> sexo foram a marca de uma geração que buscava intensamente a<br />

liberdade. Uma juventude ávida por novidades e que desconhecia o significa<strong>do</strong> de<br />

limite. Essa geração ignorou a repressão social e se negou a aceitar o mesmo estilo de<br />

vida leva<strong>do</strong> pelos pais. Friedan relata que esta rebeldia da nova geração foi evidenciada<br />

principalmente nas classes mais elevadas da sociedade americana como se pode notar<br />

na seguinte citação:<br />

– rebeldia a<strong>do</strong>lescente sem paixão e sem finalidade. A delinqüência<br />

juvenil, acusan<strong>do</strong> índices tão altos como os <strong>do</strong>s bairros miseráveis da<br />

cidade, começou a surgir nos bonitos subúrbios, entre os filhos da<br />

classe média bem sucedida, educada, respeitada, gozan<strong>do</strong> de todas as<br />

vantagens e oportunidades. (FRIEDAN, 1965, p.254).<br />

Os relatos desta feminista acerca <strong>do</strong> comportamento rebelde dessa nova<br />

geração vão desde apatia no ambiente escolar e uso de drogas até a prostituição.<br />

Segun<strong>do</strong> ela, tais aspectos comportamentais seriam os resulta<strong>do</strong>s de um ambiente de<br />

criação ruim, ou seja, as crianças cujas mães não tinham outras perspectivas se não o<br />

lar, refletiam essa passividade e falta de objetivos em suas ações. Tal teoria vem de<br />

encontro a Zoe, que foi criada em um ambiente semelhante ao descrito por Friedan.<br />

Segun<strong>do</strong> essa mesma autora, a partir de 1960 casos de rebeldia e comportamento<br />

promíscuo entre os jovens estadunidenses aumentaram assusta<strong>do</strong>ramente. Jovens<br />

provenientes de famílias bem conceituadas adentravam cada vez mais na marginalidade<br />

e faziam isso sem ter nenhum motivo aparente como se observa no relato a seguir:<br />

Filhas de treze anos estavam operan<strong>do</strong> um verdadeiro serviço de callgirlls.<br />

Por detrás <strong>do</strong> vandalismo sem senti<strong>do</strong>, da alta de <strong>do</strong>enças


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venéreas entre a<strong>do</strong>lescentes, tumultos nas férias de primavera na<br />

Flórida, promiscuidade, gravidez ilegítima e a alarmante desistência<br />

<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s no ginásio e na universidade encontrava-se esta nova<br />

passividade. (FRIEDAN, 1963, p. 246).<br />

Nesse fragmento são mostra<strong>do</strong>s alguns <strong>do</strong>s sérios problemas que a<br />

juventude da época vivia. O ato sexual, que até então era visto por muitas mulheres<br />

como simples função biológica passa a ser encara<strong>do</strong> como sinônimo de prazer e<br />

diversão. Tal banalização conduziu também a um aumento da prostituição. E como nos<br />

mostra Carlos Bauer (2001), por volta de 1930 a prostituição adquiriu formas mais<br />

diversas e sofisticadas. Facilitada pela difusão <strong>do</strong> automóvel há uma elevação da<br />

prostituição clandestina e não da profissional e segun<strong>do</strong> Bauer esta prática mais<br />

circunspeta prepara o terreno para as call girls e seus apartamentos reserva<strong>do</strong>s.<br />

Nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s a década de 60 foi marcada por uma intensa agitação<br />

social. Segun<strong>do</strong> Karnal et al. (2007), os movimentos sociais desta época moldaram e<br />

foram influencia<strong>do</strong>s pelos novos desenvolvimentos culturais. Críticas aos valores e<br />

convenções da classe média foram expressas em novos estilos de vida. Situan<strong>do</strong> Zoe<br />

Stassos neste delica<strong>do</strong> momento da história americana pode-se observar como ela viveu<br />

intensamente esse perío<strong>do</strong> de agitação:<br />

Por enquanto havia os amigos afáveis e seu trabalho fácil, uma grana<br />

por fora. Havia sexo com homens que podiam resultar não ser<br />

ninguém. Havia áci<strong>do</strong> no Central Park; seringas cheias de cristais de<br />

metedrina que a faziam enfiar-se por entre as horas como linha se<br />

enfian<strong>do</strong> no buraco de uma agulha. (CUNNINGHAM, 1995, p.190).<br />

Com esse trecho percebemos que Zoe além de encarar o sexo de maneira<br />

bem diferente de sua mãe e irmã, também se envolve com drogas. Tais comportamentos<br />

foram característicos <strong>do</strong>s movimentos que aconteceram neste perío<strong>do</strong> como nos mostra<br />

KARNAL et al., 2007, p.252:<br />

O mais famoso exemplo foi o <strong>do</strong>s hippies, que usaram roupas rústicas,<br />

cabelos compri<strong>do</strong>s e drogas, rejeitan<strong>do</strong> a banalidade da sociedade<br />

moderna, expressan<strong>do</strong> desejos sexuais e instintos individuais mais<br />

livremente [...] muitas dessas novas práticas sociais refletiram-se em<br />

correntes culturais na sociedade como um to<strong>do</strong>.<br />

De acor<strong>do</strong> com o fragmento anterior pode-se perceber que a personagem de<br />

Cunningham não retrata um caso isola<strong>do</strong> e sim um movimento que repercutiu<br />

mundialmente. Pode-se dizer ainda que Zoe não aderiu completamente ao estilo hippie


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 124<br />

de vida, contu<strong>do</strong>, ela representa as influências que tal movimento impôs a sua geração.<br />

É possível observar ainda como este movimento eclodia por to<strong>do</strong> o país no seguinte<br />

trecho da obra Laços de Sangue:<br />

A revista Life dizia que estávamos viven<strong>do</strong> na Era de Aquário. A Life<br />

mostrava fotos de homens com cabelos pelos ombros, alegremente<br />

posta<strong>do</strong>s ao la<strong>do</strong> de mulheres que não se preocupavam com os votos.<br />

Esses sujeitos faziam sexo sempre que tinham vontade, nadavam nus,<br />

afirmavam não ter outros planos além das árvores e da água, das<br />

mulheres e crianças... (CUNNINGHAM, 1995, p.169).<br />

Este fragmento nos mostra a dimensão que o movimento Hippie e suas<br />

vertentes alcançaram. Friedan atribuía esses desvios de conduta à monotonia <strong>do</strong> tempo<br />

livre, ou seja, filhos com pouca orientação recebida <strong>do</strong>s pais que tinha tempo em<br />

excesso e nada com o que se ocupar, acabavam fazen<strong>do</strong> toda a sorte de coisas apenas<br />

para serem nota<strong>do</strong>s seja pela família ou pela sociedade.<br />

Em sua vida libertina, Zoe fica grávida e prefere ser “mãe solteira”, por<br />

acreditar que o seu relacionamento com o pai da criança não era estável o suficiente<br />

para possibilitar a criação de um filho e também por não querer que a figura paterna<br />

interferisse na educação de seu bebê, já que desde a sua infância ela tinha certeza de que<br />

nunca se casaria.<br />

Ela achou que ele partiria antes que a criança começasse a se mostrar,<br />

e achou que isso provavelmente estava certo. Não diria a ele. Ela não<br />

tinha as palavras. E, de qualquer maneira, aquele era o filho dela, só<br />

dela. Levon iria querer dar à criança um nome que ela, Zoe, não<br />

conheceria. (CUNNINGHAM, 1995, p.237).<br />

Nessas circunstâncias, percebe-se, então, como o conceito de família se<br />

altera no decorrer da obra Laços de Sangue. A família inicial segue o padrão da<br />

primeira metade <strong>do</strong> século XX e representa a típica família americana desse perío<strong>do</strong>.<br />

Contu<strong>do</strong>, os filhos <strong>do</strong> casal Stassos seguem caminhos distintos e constituem famílias<br />

diferentes. Através da relação homossexual de Will e Harry e da opção de Zoe assumir<br />

sua gravidez sozinha, Cunningham expõe aspectos que revolucionaram o conceito de<br />

família ti<strong>do</strong> até então como padrão.<br />

Estas famílias diferenciadas são produtos da intensa mudança social que<br />

aconteceu nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s ao longo de to<strong>do</strong> o século em estu<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> Heloisa<br />

Szymanski (1995), as pessoas que convivem numa ligação afetiva podem ser um


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 125<br />

homem e uma mulher e filhos biológicos, ou uma mulher, sua afilhada e um filho<br />

a<strong>do</strong>tivo, ou qualquer outro arranjo constituem o que se chama de família vivida. Ela diz<br />

ainda que este modelo de família aparece como algo que não é escolhi<strong>do</strong>, mas sim<br />

imposto pelas vicissitudes da vida, como nós percebemos que eram os casos <strong>do</strong>s filhos<br />

de Constantine e Mary.<br />

Os Stassos conseguem ser completamente diferentes entre si, o que nos leva<br />

a crer que a única coisa que eles têm em comum e que os caracterizam como uma<br />

família são os eternos e imutáveis laços de sangue, ou através de uma tradução mais<br />

literal <strong>do</strong> título original da obra, flesh and blood, carne e sangue.<br />

REFERENCIAL<br />

BAUER, Carlos. Breve historia da mulher no mun<strong>do</strong> ocidental. São Paulo: Xamã:<br />

Edições Pulsar, 2001.<br />

CUNNINGHAM, Michael. Laços de Sangue. Tradução de Anna Olga de Barros<br />

Barreto. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.<br />

FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Tradução de Áurea B. Weissenberg. Petrópolis:<br />

Vozes, 1971.<br />

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Tradução de Tomaz<br />

Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.<br />

KARNAL, Leandro et al. História <strong>do</strong>s EUA: das origens ao século XXI. São Paulo:<br />

Contexto, 2007.<br />

ZSYMANSKI, Heloisa. Teorias e “teorias” de famílias. In: CARVALHO, Maria <strong>do</strong><br />

Carmo Brant. A família contemporânea em debate. São Paulo: Educ/Cortez,<br />

1995.


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Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 126<br />

A VIDA NA CASA DE VIDRO: THE CRUCIBLE E A VIGILÂNCIA<br />

NA SOCIEDADE ESTADUNIDENSE<br />

Vanessa Cianconi Vianna Nogueira 1<br />

Resumo: Arthur Miller ao escrever The Crucible tinha um objetivo muito além de<br />

simplesmente narrar a história das bruxas da vila de Salem no século XVII. Ele<br />

pretendia mostrar, no palco, as relações entre a caça às bruxas da vila de então e a caça<br />

às bruxas <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>r McCarthy nos anos de 1950. Mas, ao fazer isso, como um<br />

dramaturgo social, Miller traçou em cena um paralelo entre os séculos XVII, XX e XXI.<br />

A sociedade de vigilância estadunidense, com base em seu passa<strong>do</strong> histórico, coloca o<br />

povo daquele país em uma casa de vidro onde o controle através <strong>do</strong> me<strong>do</strong> cerceia os<br />

cidadãos da “terra da liberdade”.<br />

Palavras-chave: caça as bruxas; política; vigilância<br />

LIVING IN THE GLASS HOUSE: THE CRUCIBLE AND<br />

SURVEILLANCE IN NORTH AMERICA’S SOCIETY<br />

Abstract: Arthur Miller when wrote The Crucible had an aim beyond narrating the<br />

Salem witches trials in the 17 th century. He intended to show, on stage, the relations<br />

between yesterday’s witch hunt and the 1950s senator McCarthy’s hunt. But, while<br />

<strong>do</strong>ing so, as a social playwright, Miller drew on stage a parallel among the 17 th , 20 th ,<br />

21 st centuries. America’s surveillance society, based on its historical background, puts<br />

its people in a glass house where the control through fear surrounds the citizens of the<br />

“land of the free”.<br />

Keywords: witch-hunt; politics; surveillance<br />

Walter Benjamin no ensaio “O surrealismo – o último instantâneo da<br />

inteligência Européia” relata que, quan<strong>do</strong> esteve em Moscou, ficou hospeda<strong>do</strong> em um<br />

hotel cheio de monges tibetanos que tinham por hábito não trancar as portas de seus<br />

1 Mestre em Literatura Comparada pela UFRJ, <strong>do</strong>utoranda em Literatura Comparada pela UFF,<br />

professora substituta de Literaturas de Língua Inglesa na UFF. E-mail: vcianconi@hotmail.com


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 127<br />

quartos, pois haviam feito um voto de nunca permanecerem em ambientes fecha<strong>do</strong>s.<br />

Após essa intrigante experiência, Benjamin concluiu que “viver numa casa de vidro é<br />

uma atitude revolucionária por excelência” (Benjamin, 1987: 24). Para ele, ver e ser<br />

visto o tempo to<strong>do</strong> faz parte da nossa própria existência (cf. Benjamin, 1987: 25). No<br />

entanto, o que para Benjamin era extremamente necessário e interessante, hoje é o<br />

motivo maior <strong>do</strong> me<strong>do</strong> que permeia o mun<strong>do</strong>. Assim, o que parecia para Benjamin ser<br />

uma atitude revolucionária mostrou-se como um jogo de controle e manipulação onde<br />

os joga<strong>do</strong>res usufruem <strong>do</strong> blefe como forma de defesa que é obviamente, contrária a<br />

qualquer revolução 1 , já que essa atitude revolucionária perde o seu senti<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><br />

usada como um mecanismo de controle, ou seja, como uma atividade castra<strong>do</strong>ra.<br />

Zygmunt Bauman, no seu livro Globalização – as conseqüências humanas, vê esse<br />

controle como uma manipulação das incertezas e acredita que essa manipulação “é a<br />

essência e o desafio primário na luta pelo poder e influência dentro de toda totalidade<br />

estruturada” (Bauman, 1998: 42) Se parássemos para analisar o raciocínio desses <strong>do</strong>is<br />

pensa<strong>do</strong>res, encontraríamos uma coisa em comum: o fato de os <strong>do</strong>is acharem que a<br />

“casa de vidro” ou a “transparência” é um reflexo <strong>do</strong> crescimento das cidades. No<br />

entanto, para Benjamin a transparência era algo positivo, enquanto que para Bauman ela<br />

é algo de destrui<strong>do</strong>r. De fato, quanto menores as fronteiras, maior é o me<strong>do</strong> que<br />

sentimos. Sennet ainda acrescenta, conforme resumiu Bauman, “a constante suspeita em<br />

relação aos outros, a intolerância face à diferença, o ressentimento com estranhos e a<br />

exigência de isolá-los e bani-los, assim como a preocupação histérica e paranóica com a<br />

‘lei e a ordem’” (Bauman, 1998: 54), que descrevem perfeitamente o momento atual da<br />

vida na sociedade estadunidense. Mas, e agora poderíamos indagar: qual é a verdadeira<br />

relação entre a casa de vidro, a idéia de liberdade estadunidense e a necessidade que eles<br />

têm de vigiar o mun<strong>do</strong>? Aonde exatamente querem eles chegar com essa paranóia? E,<br />

acima de tu<strong>do</strong>, quais serão as conseqüências futuras para o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> no momento<br />

em que o império americano decidir controlá-lo com as próprias mãos - ou será que esse<br />

momento já não está ocorren<strong>do</strong>?<br />

1 O termo “revolução”, à primeira vista, refere-se a toda e qualquer transformação radical que atinja<br />

drasticamente os mais varia<strong>do</strong>s aspectos da vida de uma sociedade. Nesse senti<strong>do</strong>, as mudanças<br />

proporcionadas por certo acontecimento deveriam ser julgadas como revolucionárias por to<strong>do</strong> e<br />

qualquer estudioso que pesquisasse um mesmo tema.


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 128<br />

No dia 12 de setembro de 2001 to<strong>do</strong>s os jornais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América<br />

divulgaram, com horror, a mesma notícia: o ataque ao World Trade Center (mais<br />

conheci<strong>do</strong> no Brasil como as Torres Gêmeas). A forma de noticiar era diferente, no<br />

entanto: quase todas as manchetes <strong>do</strong>s vários jornais da nação tinham em comum duas<br />

palavras: evil (mal) e attack (ataque). Nesse dia, o presidente <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,<br />

George W. Bush, em sua declaração à nação afirmou: “Today, our nation saw evil”<br />

(“Hoje a nossa nação viu o mal.”) Cinco anos mais tarde, diretamente da Casa Branca, o<br />

presidente reafirmou que em 11 de setembro de 2001 os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América<br />

presenciaram o Mal. Mas o que levou o presidente norte-americano a afirmar tão<br />

veemente que os EUA viram o mal? Por que a “liberdade americana” estava sen<strong>do</strong><br />

atacada? A resposta para esta e para muitas outras perguntas que preocupam a sociedade<br />

estadunidense está em sua história, o que reafirma a idéia de que, para compreendermos<br />

o presente, precisamos entender o passa<strong>do</strong>. O fato de uma pequena comunidade de base<br />

orto<strong>do</strong>xa religiosa ser atirada no desconheci<strong>do</strong> (a ida para o Novo Mun<strong>do</strong>), no<br />

wilderness, ten<strong>do</strong> como única válvula de escape a leitura da Bíblia, acabou por<br />

estimular a imaginação, crian<strong>do</strong> uma sociedade amedrontada com o risco iminente de<br />

algum tipo de ataque externo, geran<strong>do</strong>, por conseguinte, uma necessidade de constante<br />

vigilância como forma de proteção. Apesar de essa explicação parecer à primeira vista<br />

muito simplista, ela não o é. Manipular a incerteza é, como afirmou Bauman, “a<br />

essência e o desafio primário na luta pelo poder e influência dentro de toda totalidade<br />

estruturada.” (Bauman, 1998: 41) Hoje vivemos confina<strong>do</strong>s em nós mesmos, a<br />

sociedade disciplina<strong>do</strong>ra da atualidade não é mais como Foucault a descrevia, pois não<br />

precisamos estar na prisão, ou em qualquer outro lugar de natureza confina<strong>do</strong>ra, para<br />

nos sentirmos presos. A sociedade de controle, segun<strong>do</strong> Gilles Deleuze, não funciona<br />

mais por confinamento, mas por controle contínuo e por comunicação instantânea. O<br />

problema é que não há como negar que o controle gera confinamento: o indivíduo não<br />

sabe quem o está olhan<strong>do</strong>, muito menos quan<strong>do</strong> o estão olhan<strong>do</strong>. Na verdade, ao<br />

contrário <strong>do</strong> que afirma Deleuze em seu livro de entrevistas Conversações (2007), a<br />

sociedade de controle é tão confina<strong>do</strong>ra quanto a sociedade disciplina<strong>do</strong>ra de Foucault.<br />

Voltamos sempre ao mesmo ponto: quanto maior o controle, maior o confinamento;<br />

logo, mais forte é a disciplina imposta a nós. Dessa forma, vivemos com me<strong>do</strong> desse


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 129<br />

controle, pois não sabemos como agir. Antes, tínhamos me<strong>do</strong> de nos comportarmos mal<br />

e acabarmos na prisão; hoje, como somos vigia<strong>do</strong>s o tempo inteiro e estamos<br />

conscientes disso, continuamos com me<strong>do</strong> pois, independentemente, <strong>do</strong> que possamos<br />

vir a fazer, estamos presos na nossa própria liberdade dissimulada. Podemos agora<br />

pensar que o me<strong>do</strong> que sentíamos <strong>do</strong> que vem de fora é diretamente proporcional ao<br />

me<strong>do</strong> que sentimos <strong>do</strong> que já está dentro.<br />

Hoje, o controle social constituí<strong>do</strong> basicamente pela dataveillance (vigilância de<br />

da<strong>do</strong>s), proveniente de uma nova política de proteção, se reflete em um desenho que se<br />

transformou em modelo de um regime social de poder no século XXI. As consequências<br />

sociais e políticas de uma cultura vigiada, ou a vida na casa de vidro, refletem no<br />

panóptico de Bentham um modelo para controlar, cercear e intimidar a população,<br />

evitan<strong>do</strong>, dessa forma, qualquer possibilidade de ameaças à sua liberdade. Mas, como<br />

afirmou Hobsbawm, em entrevista ao jornal O Globo, em 24 de novembro de 2007, a<br />

restrição <strong>do</strong>s direitos individuais só é justificável quan<strong>do</strong> não há abuso de poder. De<br />

fato, sabemos que isso não é verdade no caso da política norte-americana. Chomsky nos<br />

lembra que “controlar a população sempre foi uma preocupação constante <strong>do</strong> poder e <strong>do</strong><br />

privilégio” (apud Chomsky, 2004: 5) 1 . Da mesma forma, Alexander Hamilton, por<br />

exemplo, achava necessário controlar “a grande besta”, a população, e se certificar de<br />

que ela não saísse <strong>do</strong> seu controle. Benjamin também acreditava que “o culto <strong>do</strong> mal é<br />

um aparelho de desinfecção e isolamento da política”, pois controlan<strong>do</strong> o mal (o povo),<br />

se controlaria a política. (Benjamin, 1987: 30) Finalmente, Walter Lippmann também<br />

concordava que o “público precisava ser coloca<strong>do</strong> em seu lugar” (apud Chomsky, 2004;<br />

5) 2 , para que, através da “indústria <strong>do</strong> consentimento” a democracia fosse alcançada. A<br />

cultura puritana <strong>do</strong>s EUA hoje ecoa essa prática preventiva de vigiar, e dessa forma<br />

controlar, através de meios, muitas vezes obscuros, a vida privada, não só de seus<br />

cidadãos mas de qualquer cidadão de qualquer país, principalmente aqueles que são<br />

considera<strong>do</strong>s “inimigos”. Ou seja, a figura <strong>do</strong> “outro” novamente se encontra sob<br />

escrutínio.<br />

1 Controlling the general population has always been a <strong>do</strong>minant concern of power and privilege.<br />

2 The public should be put in its place.


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 130<br />

Arthur Miller, assim como Chomsky, sabia das consequências dessa prática da<br />

propaganda e <strong>do</strong>s perigos a que a sociedade <strong>do</strong>s séculos seguintes seria exposta. A<br />

propaganda, na verdade, como meio de controle das mentes <strong>do</strong> norte-americano não é<br />

algo <strong>do</strong> governo de George W. Bush; ela é parte <strong>do</strong> mecanismo de controle usa<strong>do</strong> desde<br />

o século XVII através <strong>do</strong>s primeiros colonos, que, basea<strong>do</strong>s em suas práticas religiosas,<br />

lançavam mão da “patrulha da vigilância” - revisitada por Miller em The Crucible –<br />

para, desta forma, controlar to<strong>do</strong> e qualquer movimento de cada aldeão sob a desculpa<br />

de estes estarem, em algum momento, in<strong>do</strong> contra a vontade de Deus.<br />

Na abertura <strong>do</strong> primeiro ato de The Crucible, há um extenso prólogo onde Miller<br />

explica ao leitor como era a vida na vila de Salem, mapean<strong>do</strong> a história que será contada<br />

a partir das suas descobertas durante a viagem. Neste prólogo descobre-se que para<br />

regular a moral <strong>do</strong>s habitantes da vila era necessário vigiar. Para cada habitante de<br />

Salem havia uma testemunha potencial para crimes priva<strong>do</strong>s. Além disso, havia uma<br />

“patrulha da vizinhança” que tinha como obrigação “andar durante a hora de a<strong>do</strong>ração a<br />

Deus para observar quem estava ocioso na casa de reunião e não estava prestan<strong>do</strong><br />

atenção às suas preces e ordenações, ou quem estava em casa ou nos campos sem dar<br />

satisfação e anotar os nomes dessas pessoas para apresentar aos magistra<strong>do</strong>s, através <strong>do</strong><br />

qual os ociosos seriam sanciona<strong>do</strong>s” (Miller, 1985: 4, 5). Naquela época, liberdade de<br />

expressão não era um direito e dizer a coisa errada poderia levar qualquer cidadão para<br />

a cadeia. A maior parte das sanções era pública - como torturas, enforcamentos e<br />

espancamentos -, pois serviam como lição e lembravam ao público que descordar das<br />

decisões <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> era descordar da vontade de Deus. Dessa maneira, torna-se fácil<br />

entender o motivo pelo qual essa preocupação excessiva com a vida alheia foi um <strong>do</strong>s<br />

estopins das acusações e da loucura que viria no rastro das primeiras queixas contra o<br />

grupo de meninas acusadas de “traficarem com o demônio”, soma<strong>do</strong> ao me<strong>do</strong> constante<br />

<strong>do</strong> Diabo que estava, conforme acreditava o povo de Salem, à espreita nas florestas.<br />

Afinal de contas, os puritanos acreditavam que era o povo que carregava a vela que<br />

iluminaria o mun<strong>do</strong> (Miller, 1985: 5), isto é, os escolhi<strong>do</strong>s por Deus para salvar o<br />

mun<strong>do</strong>.<br />

A tragédia de Salem, conta Miller ainda na mesma abertura, se desenvolveu a<br />

partir <strong>do</strong> que ele considera um para<strong>do</strong>xo, que a sociedade norte-americana ainda vive e


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 131<br />

que aparentemente vai viver por muitos anos ainda. As pessoas de Salem<br />

desenvolveram uma teocracia, ou seja, uma combinação entre o poder <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e o<br />

poder da Igreja, cuja função era manter a comunidade em concordância e previnir<br />

qualquer descordância que pudesse acarretar no desmantelamento da sociedade como<br />

era conhecida por eles por possíveis inimigos materiais ou ideológicos. Tal forma de<br />

controle foi forjada com um objetivo específico: qualquer tipo de organização que tem o<br />

controle sobre seus membros como finalidade deve ser calca<strong>do</strong> na idéia de exclusão e<br />

proibição, ou seja, de que o estranho é sempre considera<strong>do</strong> o inimigo.<br />

Os personagens de The Crucible, como já vimos, representam pessoas que<br />

realmente existiram em Salem e que, dessa maneira, refletem o mo<strong>do</strong> de pensar da<br />

comunidade que ecoava a prática puritana de vigiar a to<strong>do</strong>s e a si mesmo, pois estavam<br />

to<strong>do</strong>s sob o escrutínio da “patrulha da vizinhança”. O reveren<strong>do</strong> Parris, por exemplo,<br />

logo no prólogo <strong>do</strong> Ato I, quan<strong>do</strong> nos é apresenta<strong>do</strong>, se via “persegui<strong>do</strong> em qualquer<br />

lugar que fosse, apesar de seus esforços para ganhar as pessoas e a Deus para o seu<br />

la<strong>do</strong>.” (Miller, 1985: 3) 1 Parris sabia que qualquer movimento em falso lhe poderia<br />

custar mais <strong>do</strong> que a vida, a perda <strong>do</strong> poder que detinha sobre as pessoas da comunidade<br />

de Salem. A casa de Parris também ficava localizada no meio da vila, e com certeza,<br />

não foi colocada lá sem querer; era um outro detalhe que o situava no meio <strong>do</strong> “mapa”,<br />

bem no centro da “prisão”, onde sabia que estava sen<strong>do</strong> observa<strong>do</strong> e, ao mesmo tempo,<br />

também observava. Miller ainda nos lembra que Parris morava ao la<strong>do</strong> da Casa de<br />

Oração (Meeting House), que, estratégicamente, estava também plantada no centro da<br />

vila e tinha a mesma função da casa <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong>.<br />

Ainda no mesmo prólogo, vale notar como a população de Salem acreditava que<br />

a morada <strong>do</strong> Diabo era o wilderness, pois lá, segun<strong>do</strong> Miller, “era o último lugar na<br />

terra que não prestava homenagem a Deus”. (Miller, 1985: 5) 2 Logo, se a floresta não<br />

era um local protegi<strong>do</strong>, lá eles seriam facilmente controla<strong>do</strong>s pela figura <strong>do</strong> Mal. A<br />

partir de então, The Crucible é composto por uma sucessão de passagens que reiteram o<br />

binômio de Foucault – vigiar e punir. Pouco a pouco as ações de cada personagem<br />

1 He believed he was being persecuted wherever he went, despite his best efforts to win people and God<br />

to his side.<br />

2 “To the best of their knowledge the American forest was the last place on earth that was not paying<br />

homage to God”


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 132<br />

sofrem um des<strong>do</strong>bramento, isto é, as pessoas vigiam a vila, mas, em contrapartida,<br />

também são vigiadas por ela.<br />

No início <strong>do</strong> Ato I, vários membros da comunidade estão reuni<strong>do</strong>s na sala da<br />

casa <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong> Parris para saberem o que tinha realmente aconteci<strong>do</strong> na floresta. A<br />

vila inteira vigiava o reveren<strong>do</strong>. Como uma das funções de Parris na comunidade era<br />

vigiar as pessoas, ele se sentia obriga<strong>do</strong> a começar a vigilância dentro da própria casa,<br />

pois até mesmo a família poderia manchar a sua reputação na comunidade e, por<br />

conseguinte, era, também, alvo de sua vigilância.<br />

Relembran<strong>do</strong> Bauman, sabemos que o controle através <strong>do</strong> me<strong>do</strong> é uma das<br />

formas mais coercitivas de controle. Abigail, ainda no Ato I, serve como demonstração<br />

da teoria de Bauman, quan<strong>do</strong> ameaça as meninas da vila de espetá-las com um objeto<br />

pontiagu<strong>do</strong>, que, na interpretação puritana, poderia muito bem ser o tridente <strong>do</strong> Diabo:<br />

ABIGAIL: Agora, olha só. Todas vocês. Nós dançamos. E<br />

Tituba chamou as irmãs mortas de Ruth Putman. E foi só isso.<br />

E, tenham certeza. Se alguma de vocês abrir a boca, mesmo<br />

que um pouco, sobre as outras coisas, eu virei até vocês no<br />

mais escuro da noite com um objeto pontu<strong>do</strong> que vai fazer<br />

vocês tremerem. E vocês sabem que eu posso fazer isso; eu vi<br />

os índios esmagarem as cabeças <strong>do</strong>s meus queri<strong>do</strong>s pais bem<br />

pertinho de mim, e eu vi alguns trabalhos ensanguenta<strong>do</strong>s<br />

feitos à noite, e eu posso fazer vocês desejarem nunca querer<br />

ver o pôr–<strong>do</strong>-sol! (Miller, 1985: 19, 20) 1<br />

Assim, mais uma vez, Abigail controla todas as meninas que participaram <strong>do</strong> episódio<br />

na floresta.<br />

Quan<strong>do</strong> Giles Corey entrou na casa de Parris ele já sabia <strong>do</strong> que estava<br />

acontecen<strong>do</strong> na cidade, principalmente sobre o comenta<strong>do</strong> vôo de Betty. (Miller, 1985:<br />

25) 2 Rebecca Nurse, que estava ao la<strong>do</strong> da cama de Betty quan<strong>do</strong> Giles entrou na casa,<br />

intercedeu para saber de Parris se ele “não decidiu sair em busca de espíritos<br />

1 ABIGAIL: Now you look. All of you. We danced. And Tituba conjured Ruth Putnam’s dead sisters.<br />

And that is all. And mark this. Let either of you breathe a word, or the edge of a word, about the other<br />

things, and I will come to you in the black of some terrible night and I will bring a pointy reckoning that<br />

will shudder you. And you know I can <strong>do</strong> it; I saw Indians smash my dear parents’ heads on the pillow<br />

next to mine, and I have seen some reddish work <strong>do</strong>ne at night, and I can make you wish you had never<br />

seen the sun go <strong>do</strong>wn!<br />

2 GILES: (…) Is she going to fly? I hear she flies.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 133<br />

desgarra<strong>do</strong>s”, e se, “havia ouvi<strong>do</strong> falar disso lá fora.” (Miller, 1985: 27) 1 Esta é a<br />

chance de Proctor, que já estava na casa, de falar com Parris sobre os acontecimentos na<br />

vila. Proctor não acreditava em bruxaria, mas acreditava em interesses diversos dentro<br />

da sociedade. E, na metade <strong>do</strong> Ato I fica evidente que os Putnam, o reveren<strong>do</strong> Parris,<br />

Rebecca Nurse e John Proctor tomavam conta de cada detalhe das vidas alheias.<br />

Vejamos a passagem:<br />

PROCTOR, para Putnam: Você não pode mandar, Sr. Parris.<br />

Nós votamos por nome, não pela quantidade de acres que<br />

temos.<br />

PUTNAM: Eu nunca o vi tão preocupa<strong>do</strong> com o que acontece<br />

aqui nessa sociedade. Eu não me lembro de o ter visto nas<br />

reuniões <strong>do</strong> Saba desde a última neve.<br />

PROCTOR: Eu já tenho problema suficiente para vir e ouvi-lo<br />

falar somente sobre inferno e danação. Acredite, Mr. Parris.<br />

Muita gente não vem mais à igreja ultimamente porque você<br />

não fala mais em Deus.<br />

PUTNAM: Que acusação drástica!<br />

REBECCA: É mais ou menos verdade; têm muitas pessoas que<br />

evitam trazer seus filhos – (...) (Miller, 1995: 28, 29) 2<br />

Parris, por sua vez, ao tentar conquistar a confiança <strong>do</strong> povo, afirmou que “um<br />

ministro não era para ser tão facilmente afronta<strong>do</strong> e contradito.” (Miller, 1985: 30) 3 :<br />

“ou existe obediência ou a igreja vai queimar como o inferno está queiman<strong>do</strong>.” (Miller,<br />

1985: 30) 4 Controlar a população e, caso ela saísse um pouco de seu controle, puni-la,<br />

foi o que Parris tentou fazer aqui.<br />

1 I hope you are not decided to go in search of loose spirits, Mr. Parris. I’ve heard promise of that outside.<br />

2 PROCTOR, to Putnam: You cannot command, Mr. Parris. We vote by name in this society, not by<br />

acreage.<br />

PUTNAM: I never heard you worried so on this society, Mr. Proctor. I <strong>do</strong> not think I saw you at Sabbath<br />

meeting since snow flew.<br />

PROCTOR: I have trouble enough without come five mile to hear him preach only hellfire and bloody<br />

damnation. Take it to heart, Mr. Parris. There are many others who stay away from church these days<br />

because you hardly ever mention God anymore.<br />

PARRIS: Why, that’s a drastic charge!<br />

REBECCA: It’s somewhat true; there are many that quail to bring their children –<br />

3 (...) a minister is not to be so lightly crossed and contradicted.<br />

4 There is either obedience or the church will burn like Hell is burning!


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 134<br />

No entanto, ninguém conseguia controlar a vila como Abigail Williams. Para<br />

tanto, ela (como fica claro no início <strong>do</strong> Ato II) usava Marry Warren como peão para<br />

conseguir o que queria. O papel de Marry Warren era duplo: ela vigia os Proctor,<br />

principalmente Elizabeth, e fazia o trabalho sujo que não pode mais ser feito por<br />

Abigail, pelo simples motivo de esta última não ter mais acesso à casa. Ao mesmo<br />

tempo, Abigail vigiava e controlava Mary Warren, ame<strong>do</strong>ntran<strong>do</strong>-a a cada momento.<br />

MARY WARREN, apontan<strong>do</strong> para Elizabeth: Eu salvei a vida<br />

dela hoje!<br />

(…)<br />

ELIZABETH: Eu estou sen<strong>do</strong> acusada?<br />

MARY WARREN: De alguma forma. Mas eu disse que nunca<br />

vi sinais de você mandar o seu espírito para machucar<br />

ninguém, e já que vivo muito próximo de você, eles rejeitaram<br />

a idéia.<br />

ELIZABETH: Quem me acusou?<br />

MARY WARREN: Jurei perante a lei. Eu não posso falar.<br />

(…). (Miller, 1985: 59, 60) 1<br />

Para os puritanos, achar uma agulha espetada em uma boneca podia significar muita<br />

coisa, inclusive que Elizabeth realmente estava lidan<strong>do</strong> com vudu ou bruxaria.<br />

Voltamos, assim, novamente, à manipulação através <strong>do</strong> me<strong>do</strong>:<br />

1 MARY WARREN, to Elizabeth: I saved her life today!<br />

(…)<br />

ELIZABETH: Am I being accused?<br />

CHEEVER: Esta é a prova material! Para Hale: Achei uma<br />

boneca que a Senhora Proctor mantinha. Eu encontrei, senhor.<br />

E na barriga da boneca havia uma agulha. Te falo a verdade,<br />

Proctor. Eu nunca garanti ter tanta prova <strong>do</strong> inferno, e eu peço<br />

que você não tente me obstruir, pois eu - (Miller, 1985: 75) 2<br />

MARY WARREN: Somewhat mentioned. But I said I never saw no sign you ever sent your spirit out to<br />

hurt no one, and seeing I live so closely with you, they dismissed it.<br />

ELIZABETH: Who accused me?<br />

MARY WARREN: I am bound by law, I cannot tell it.<br />

2 CHEEVER: ‘Tis hard proof! To Hale: I find here a poppet Goody Proctor keeps. I have found it, sir.<br />

And in the belly of the poppet a needle’s stuck. I tell you true, Proctor, I never warranted to see such<br />

proof of Hell, and I bid you obstruct me not, for I –


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 135<br />

Elizabeth foi finalmente acusada, por Hale, de ter espeta<strong>do</strong> a agulha na barriga da<br />

boneca, de tentar assassinar Abigail de forma fria e cruel. Hale afirmou, ainda, que<br />

encontraram uma agulha enterrada na barriga de Abigail na mesma noite. Vale aqui<br />

lembrar que a comunidade de Salem estava, a to<strong>do</strong> tempo, consciente da presença de<br />

um Olho, que a vigiava constantemente. A sociedade teocrática acreditava que Deus a<br />

vigiava o tempo inteiro. Nas palavras <strong>do</strong> próprio Proctor, no Ato III: “Um homem pode<br />

pensar que Deus <strong>do</strong>rme, mas Deus vê tu<strong>do</strong>.” (Miller, 1985: 110) 1 Em contrapartida, se<br />

Deus os vigiava o tempo inteiro, o Diabo também.<br />

Proctor, durante o julgamento de Elizabeth, no Ato II, nos lembra de outro<br />

paralelo que podemos traçar entre as bruxas da vila de Salem no século XVII, os<br />

comunistas de Mcarthy nos anos de 1950, e os terroristas mulçumanos de Bush no<br />

século XXI: “é o acusa<strong>do</strong>r sempre inocente?” (Miller, 1995: 77) 2 No Ato III, Danforth,<br />

nos transporta, novamente, para o século XXI:<br />

1 A man may think God sleeps, but God see everything.<br />

Não, velho, você não machucou essas pessoas. Mas você tem<br />

que entender, senhor, que uma pessoa ou está com essa corte<br />

ou ela está contra, não há meio termos. Este é um tempo<br />

difícil, agora, um tempo preciso – nós não vivemos mais na<br />

tarde escura quan<strong>do</strong> o mal se misturava e confundia o mun<strong>do</strong>.<br />

Hoje, pela graça de Deus, o sol arde sobre nós, e nele, não<br />

tenha me<strong>do</strong>, pois a luz certamente brilhará. Espero que você<br />

seja um deles. (Miller, 1985: 94) 3<br />

2 Is she is innocent! Why <strong>do</strong> you never wonder if Parris be innocent, or Abigail? Is the accuser always<br />

holy now? Were they born this morning as clean as God’s fingers? I’ll tell you what’s walking in Salem<br />

– vageance is walking Salem. We are what we always were in Salem. We children are jangling the keys<br />

on the king<strong>do</strong>m, and common vengeance writes the law! This warrant’s vengeance! I’ll not give my<br />

wife to vengeance!<br />

3 No, old man, you have not hurt these people if they are good conscience. But you must understand, sir,<br />

that a person is either with this court or he must be counted against it, there be no road between. This is<br />

a sharp time, now, a precise time – we live no longer in the dusky afternoon when evil mixed itself and<br />

befuddled the world, Now, by God’s grace, the shinning sun is up, and them that fear not light will<br />

surely praise it. I hope you will be one of those.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 136<br />

A fala de Danforth não poderia ser mais atual. George W. Bush, em seu discurso que<br />

justificava a guerra contra o terror, afirmou, no dia 6 de novembro de 2001, que não<br />

haveria neutralidade na guerra contra o terrorismo, para ele: “Através <strong>do</strong> tempo, será<br />

importante para todas as nações saberem que elas serão responsabilizadas pela<br />

inatividade. Ou você está conosco, ou está contra nós.” (www.cnn.com) 1<br />

O ultimo ato de The Crucible se passa dentro da prisão. Lá estão Proctor e<br />

Rebecca Nurse momentos antes de serem enforca<strong>do</strong>s. To<strong>do</strong>s os reveren<strong>do</strong>s (Parris e<br />

Hale) e o magistra<strong>do</strong> Danforth estão com eles tentan<strong>do</strong>-lhes fazer confessar que<br />

estavam mancomuna<strong>do</strong>s com o Diabo. Como já é sabi<strong>do</strong>, nem Proctor, nem Rebecca<br />

confessam e, naturalmente, morrem por não terem queri<strong>do</strong> sustentar uma mentira. Era<br />

uma mentira que poderia ter salvo as suas vidas, mas uma mentira a troco de quê? Uma<br />

mentira que provavelmente sustentaria muitas outras, através <strong>do</strong>s tempos, até os dias<br />

atuais - as bruxas reais. Hoje, sabemos que as acusações a esmo na década de 1950<br />

fizeram parte de uma herança puritana que até os dias atuais se perpetua no ideal de vida<br />

<strong>do</strong>s estadunidenses. A guerra contra o terror de George W. Bush, a paranóia de se<br />

sentirem persegui<strong>do</strong>s por uma ameaça invisível, a mania de vigiar tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> -<br />

isso tu<strong>do</strong> tem uma origem: uma origem nas bruxas, na própria tragédia norte-americana.<br />

O Olho implacável, como a crítica de George W. Shaw, nunca fecha; na verdade ele<br />

está em to<strong>do</strong>s os lugares o tempo inteiro. Agora sabemos que as bruxas se repetem, só<br />

que com roupagens e nomes diferentes.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro,<br />

Jorge Zahar Editores: 1999.<br />

_______. Globalização: As Conseqüências Humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998.<br />

_______. Me<strong>do</strong> Líqui<strong>do</strong>. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar<br />

Editores 2006.<br />

1 "Over time it's going to be important for nations to know they will be held accountable for inactivity,"<br />

he said. "You're either with us or against us in the fight against terror."


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 137<br />

_______. O Mun<strong>do</strong>, e o Me<strong>do</strong>, Segun<strong>do</strong> Bauman. O Globo, 23/02/2008, Prosa e Verso,<br />

p. 1.<br />

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios Sobre Literatura e<br />

História da Cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.<br />

(Obras escolhidas; vol. I).<br />

_______. Charles Baudelaire, um lírico no auge <strong>do</strong> capitalismo. Trad. Sérgio Paulo<br />

Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras escolhidas; vol. III).<br />

CENTOLA, Steven R. and MARTIN, Robert A., eds. The Theater Essays of Arthur<br />

Miller. New York: Da Capo, 1996.<br />

CHOMSKY, Noam. Hegemony and Survival: America’s Quest for Global Dominance.<br />

UK: Penguin Books, 2004.<br />

DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. Editora 34: São Paulo, 2007.<br />

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia.<br />

(Vol. 5) Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. Editora 34: São Paulo, 2007.<br />

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História e Violência nas Prisões. Trad. Raquel<br />

Ramalhete. 34 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.<br />

MILLER, Arthur. The Crucible. New York: Penguin, 1985.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 138<br />

O FANTÁSTICO EM “O JOVEM GOODMAN<br />

BROWN”, DE NATHANIEL HAWTHORNE<br />

A<strong>do</strong>lfo José de Souza Frota 1<br />

Há mais coisas, Horácio, em céus e terras,<br />

Do que sonhou nossa filosofia.<br />

W. Shakespeare – Hamlet<br />

Apenas posso dizer que é sem dúvida melhor<br />

para a imensa maioria das pessoas rejeitar<br />

tu<strong>do</strong> isso como se fosse um sonho.<br />

Arthur Machen – The White people<br />

Homens de intelecto mais amplo sabem que não existe<br />

nenhuma distinção precisa entre o real e o irreal.<br />

H. P. Lovecraft – A tumba<br />

RESUMO: O objetivo desse artigo é analisar como se configura a idéia <strong>do</strong> sobrenatural<br />

no conto de Nathaniel Hawthorne “O jovem Goodman Brown” a partir das teorias de<br />

Howard Phillips Lovecraft, Tzvetan To<strong>do</strong>rov e Filipe Furta<strong>do</strong>. Partin<strong>do</strong> de uma leitura<br />

teórica to<strong>do</strong>roviana que enfatiza e diferencia histórias sobrenaturais, analisaremos a<br />

ambiguidade <strong>do</strong> conto fantástico. Ressaltaremos, também, de forma sucinta, uma outra<br />

possível leitura para a narrativa além da perspectiva fantástica, fazen<strong>do</strong> com que a<br />

crítica desse conto seja enriquecida na confluência de várias possibilidades<br />

interpretativas.<br />

Palavras-chave: Fantástico, hesitação, conto, sobrenatural, ambiguidade.<br />

The fantastic in Nathaniel Hawthorne’s “Young Goodman Brown”<br />

ABSTRACT: The purpose of this paper is to analyze how the idea of the supernatural<br />

is configured in Nathaniel Hawthorne’s short-story “Young Goodman Brown” taking<br />

into consideration Howard Phillips Lovecraft’s, Tzvetan To<strong>do</strong>rov’s and Filipe<br />

Furta<strong>do</strong>’s theories. From Tzevetan To<strong>do</strong>rov’s point of view, we are going to analyze the<br />

ambiguity of the fantastic short narrative. We also intend to point out, in a very brief<br />

1 Professor de Literaturas de Língua Inglesa – UEG: UnU Campos Belos – Goiás. Doutoran<strong>do</strong> em Letras<br />

– UFG. Email: a<strong>do</strong>lfo_thedrifter@yahoo.com.br.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 139<br />

way, another possible critical reading to this narrative beyond the fantastic theoretical<br />

perspective to improve other interpretative possibilities.<br />

Key-words: Fantastic, hesitation, short-story, supernatural, ambiguity.<br />

Narrativas que envolvem o sobrenatural sempre estiveram presentes nas<br />

histórias de to<strong>do</strong>s os povos. Unicórnios, fadas, bruxas, fantasmas, goblins, monstros<br />

assusta<strong>do</strong>res, desde o início da humanidade, fazem parte <strong>do</strong> imaginário coletivo. As<br />

histórias que abordam aquilo que a ciência não aceita, ou seja, o que está além <strong>do</strong> nosso<br />

conhecimento de natureza, são tão comuns que dificilmente existe alguém que nunca<br />

ouviu qualquer conto que envolva fenômenos fantásticos. Temos então duas condições<br />

básicas: existem histórias em que as “leis” da natureza continuam intactas e existem<br />

diversas outras em que as mesmas leis são abolidas ou ampliadas a níveis que ainda não<br />

conseguimos explicar. Assim, o mais apropria<strong>do</strong> é admitir um mun<strong>do</strong> de possibilidades<br />

ainda pouco exploradas, algo já sugeri<strong>do</strong> por Hamlet na peça homônima ao comentar a<br />

existência de coisas que a nossa filosofia não supõe.<br />

Conforme Selma Calasans Rodrigues em O fantástico (1988, p. 11), o texto<br />

fantástico oferece um diálogo entre a razão e a desrazão, pois vai mostrar o homem que<br />

está circunscrito à sua própria racionalidade ten<strong>do</strong> que admitir e se debater com o<br />

mistério, com aquilo que significaria a irracionalidade.<br />

Indubitavelmente, estamos diante de um tipo de literatura tão fascinante e<br />

sedutor exatamente por tratar de temas que sempre povoaram a imaginação <strong>do</strong> ser<br />

humano. Entre esses seres que habitam as histórias fantásticas estão as bruxas. Elas, de<br />

fato, existem e têm a fama de lidarem com conhecimentos que estão proibi<strong>do</strong>s para as<br />

pessoas comuns, acessíveis apenas para os inicia<strong>do</strong>s, o forgotten lore (conhecimento<br />

esqueci<strong>do</strong>) sugeri<strong>do</strong> por E. A. Poe no poema “O corvo”. Elas trabalham a natureza, mas<br />

não da forma como a conhecemos. As bruxas exploram a natureza oculta.<br />

Há outra concepção pejorativa para as bruxas, consagrada principalmente<br />

pela idéia preconceituosa de que são emissárias <strong>do</strong> mal ou amantes <strong>do</strong>s demônios. Em<br />

torno dessa concepção, criaram-se inúmeras histórias que as envolviam com forças<br />

ocultas e maléficas, como aconteceu na cidade de Salem, em Massachusetts.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 140<br />

O conto que vamos analisar ocorre nos arre<strong>do</strong>res dessa cidade conhecida<br />

pela péssima fama de ter persegui<strong>do</strong> e mata<strong>do</strong> centenas de mulheres envolvidas e<br />

suspeitas de feitiçaria (o que é biblicamente proibi<strong>do</strong>). Encontramos nessa narrativa de<br />

Nathaniel Hawthorne a tensão entre a religiosidade puritana e o paganismo celta<br />

representada na figura da personagem Goodman Brown, que empreende uma viagem no<br />

meio de uma floresta, à noite, para participar de uma cerimônia de bruxaria. O avô de<br />

Hawthorne foi um <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res de feiticeiras em Salem. Quan<strong>do</strong> ele nasceu, a cidade<br />

já estava “morta”. Entretanto, a “má fama” dessa cidade fantasma ainda pesava sobre os<br />

seus escombros aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s.<br />

Observaremos, nesse conto, como a noção <strong>do</strong> fantástico é construída e<br />

analisaremos a tensão entre duas forças que se opõem e que, na narrativa, vão se<br />

complementar. Para isso, discorreremos sobre alguns conceitos <strong>do</strong> fantástico fazen<strong>do</strong><br />

um breve panorama <strong>do</strong> desenvolvimento dessa teoria, de H. P. Lovecraft até Filipe<br />

Furta<strong>do</strong>.<br />

Dos conceitos de fantástico<br />

É comum aos autores talentosos se debruçarem crítica e teoricamente, em<br />

algum momento de suas carreiras, sobre o objeto de suas artes. Citamos, para<br />

exemplificar, Émile Zola, que escreveu um livro sobre o Realismo, E. A. Poe, que<br />

publicou vários ensaios sobre poesia e conto e H. P. Lovecraft, que em 1927, a pedi<strong>do</strong><br />

de W. Paul Cook, escreveu O horror sobrenatural na literatura.<br />

Nessa obra basilar sobre o estu<strong>do</strong> da literatura que tem como principal<br />

temática os fenômenos sobrenaturais, encontramos os primeiros esboços para se tentar<br />

apreender a tendência natural de se falar sobre fantasmas e monstros. Para o autor norte-<br />

americano não dá para dissociar o sentimento mais básico <strong>do</strong> homem com uma de suas<br />

formas mais primordiais de expressão cultural. Por isso, Lovecraft (1987, p. 1) inicia o<br />

livro afirman<strong>do</strong>: “A emoção mais forte e mais antiga <strong>do</strong> homem é o me<strong>do</strong>, e a espécie<br />

mais forte e mais antiga <strong>do</strong> homem é o me<strong>do</strong> <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>”.<br />

O ser humano tem a tendência de moldar o mun<strong>do</strong> a partir de seus<br />

sentimentos. As sensações que se baseiam em prazer e <strong>do</strong>r foram criadas em torno <strong>do</strong>s


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 141<br />

fenômenos cujas causas e seus efeitos ele podia entender. Já aqueles fenômenos que não<br />

sabia explicar, e estes eram muito mais abundantes, criou-se uma aura de magia, de<br />

mistério, de assombro e de me<strong>do</strong>, “típicas de uma raça porta<strong>do</strong>ra de idéias poucas e<br />

simples e experiência limitada” (Lovecraft, 1987, p. 2).<br />

Lovecraft (1987, p. 3), então, associa a composição de histórias<br />

sobrenaturais a uma tendência <strong>do</strong> ser humano de expressar seu me<strong>do</strong> <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>.<br />

Sen<strong>do</strong> a <strong>do</strong>r e o perigo da morte as emoções mais lembradas, o folclore expressou, de<br />

forma mais constante, o la<strong>do</strong> negro e malfazejo <strong>do</strong> mistério cósmico.<br />

O autor (1987, p. 1-2) busca compreender algumas características comuns<br />

às histórias sobrenaturais. Uma das primeiras limitações está na comparação à vida real,<br />

pois o leitor precisará ter “uma certa <strong>do</strong>se de imaginação e capacidade de desligamento<br />

da vida <strong>do</strong> dia-a-dia” para poder mergulhar na trama que vai, exatamente, falar sobre<br />

temas que ultrapassam a habilidade de compreensão <strong>do</strong> ser humano. Com isso, outra<br />

condição necessária para o fantástico é apresentada: a derrogação ou a suspensão das<br />

leis da natureza, a única defesa que temos contra as agressões <strong>do</strong> caos e <strong>do</strong>s demônios<br />

<strong>do</strong> espaço desconheci<strong>do</strong> (Lovecraft, 1987, p. 4-5). Vale lembrar que longe da distinção<br />

to<strong>do</strong>roviana, o fantástico para Lovecraft é uma categoria que engloba poesia e narrativas<br />

com argumentos sobrenaturais. Ainda não havia uma diferenciação teórica entre a<br />

literatura que põe em dúvida o sobrenatural ou o aceita.<br />

Outro ponto fundamental para o fantástico é a criação da atmosfera <strong>do</strong><br />

sobrenatural. É váli<strong>do</strong>, nesse caso, o talento de cada autor para suscitar o horror<br />

utilizan<strong>do</strong> elementos narrativos que corroborem a idéia <strong>do</strong> macabro, ao invés <strong>do</strong><br />

emprego delibera<strong>do</strong> de violência, sacrifícios secretos, ossos ensangüenta<strong>do</strong>s e formas<br />

amortalhadas fazen<strong>do</strong> tinir correntes. Antes de qualquer violência e horror físico, é<br />

preciso conceber a criação de um ambiente de terror sufocante e inexplicável. Aliada a<br />

concepção dessa atmosfera está a criação de determinada sensação. Nesse caso, a<br />

sensação que o leitor deve ter é a <strong>do</strong> me<strong>do</strong> <strong>do</strong> contato com as forças desconhecidas,<br />

daquelas que a ciência não pode explicar. Caso a história tenha uma explicação <strong>do</strong>s seus<br />

fenômenos através <strong>do</strong>s meios naturais, ela não se constitui como fantástica (Lovecraft,<br />

1987, p. 5).


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 142<br />

O livro de Lovecraft pouco traz de contribuições decisivas para o gênero, o<br />

que não diminui seu ensaio. O horror sobrenatural na literatura é importante por fazer<br />

um panorama <strong>do</strong>s principais poetas e escritores que escreveram poemas, contos e<br />

romances sobre essa temática, indican<strong>do</strong> que o seu autor tinha um conhecimento<br />

apuradíssimo da literatura ocidental (européia e norte-americana).<br />

Tzvetan To<strong>do</strong>rov é sem dúvida um <strong>do</strong>s maiores teóricos de literatura,<br />

especialmente aquela que envolve fenômenos extranaturais. O teórico ganha<br />

importância basilar pela diferenciação entre gêneros que apóiam, põem em dúvida ou<br />

negam a experiência extranatural. Em seu livro Introdução à literatura fantástica,<br />

To<strong>do</strong>rov (2007, p. 30) defende que a principal característica <strong>do</strong> fantástico e que o<br />

diferencia <strong>do</strong>s demais gêneros que tratam <strong>do</strong> sobrenatural (o maravilhoso e o estranho) é<br />

a hesitação que o leitor (e às vezes a personagem) tem ao questionar se a narrativa que<br />

ele está len<strong>do</strong> ou a história que está vivencian<strong>do</strong> é ou não verdadeira. O fantástico<br />

acontece da seguinte forma: alguns fenômenos aparentemente sobrenaturais acontecem,<br />

mas há suspeitas no texto de que, possivelmente, esses fenômenos possam ser<br />

ordinários:<br />

Num mun<strong>do</strong> que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos,<br />

sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento<br />

que não pode ser explica<strong>do</strong> pelas leis deste mesmo mun<strong>do</strong><br />

familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas<br />

soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, de um<br />

produto da imaginação e nesse caso as leis <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> continuam<br />

a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é<br />

parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é<br />

regida por leis desconhecidas para nós. Ou o diabo é uma ilusão,<br />

um ser imaginário; ou então existe realmente, exatamente como<br />

os outros seres vivos: com a ressalva de que raramente o<br />

encontramos (To<strong>do</strong>rov, 2007, p. 30-31).<br />

To<strong>do</strong>rov (2007, p. 31), definitivamente, resume a noção de fantástico a<br />

partir de apenas um conceito, o que é, sem dúvida, para ele, o principal: “O fantástico é<br />

a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um<br />

acontecimento aparentemente sobrenatural”.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 143<br />

Se ocorrer um fenômeno singular, há duas possibilidades de explicação:<br />

uma por meio de causas de tipo natural e outra, por causas de tipo sobrenatural. Nesse<br />

caso, se há a opção pela primeira, a história será caracterizada por um outro gênero, o<br />

estranho. Se for pela segunda, ou seja, se há a aceitação de que os fenômenos<br />

extranaturais ocorram de forma livre, teremos o maravilhoso. A possibilidade de<br />

hesitação entre essas duas explicações, e o caráter ambíguo da narrativa, criou o efeito<br />

fantástico que só dura enquanto existir a dúvida.<br />

A ambiguidade também é apontada por B. Tomachevski, que em<br />

“Temática” (1971, p. 189) afirma:<br />

É interessante notar que num meio literário evoluí<strong>do</strong>, os relatos<br />

fantásticos oferecem a possibilidade de uma dupla interpretação<br />

da fábula, em virtude das exigências da motivação realista:<br />

podemos compreendê-los de uma só vez como acontecimentos<br />

reais e como acontecimentos fantásticos.<br />

O formalista russo assinala que o sonho, o delírio e a ilusão visual são<br />

motivos habituais que oferecem a possibilidade da dupla interpretação da narrativa<br />

fantástica. Essa mesma concepção é defendida por Selma Calasans Rodrigues (1988, p.<br />

33-34) quan<strong>do</strong> afirma que o sonho é usa<strong>do</strong> freqüentemente como explicação para<br />

experiências inverossímeis. Entretanto, “o que determina a fantasticidade stricto sensu<br />

[a de To<strong>do</strong>rov] é exatamente a brecha deixada pela narrativa ao inserir no enuncia<strong>do</strong> a<br />

pergunta: Será ou não sonho? Ou seja, uma indagação sobre os limites entre o sonho e o<br />

real”.<br />

Outra característica apontada por To<strong>do</strong>rov (2007, p. 37) é a integração <strong>do</strong><br />

leitor no mun<strong>do</strong> das personagens. Há, com isso, a identificação com os seres ficcionais.<br />

Todavia, essa condição é facultativa. Ao se referir ao leitor, To<strong>do</strong>rov se refere não ao<br />

leitor real, mas a uma função de leitor que está implícita no texto (o narratário).<br />

Uma terceira condição é apresentada por To<strong>do</strong>rov (2007, p. 38): a leitura<br />

feita de uma narrativa fantástica não pode ser nem poética e nem alegórica. A poesia,<br />

por não ter um caráter representativo, não pode ser lida da mesma forma que a narrativa.<br />

Além disso, o fantástico é ficção. A linguagem utilizada na poesia também é diferente<br />

daquela usada na ficção. Já a alegoria está relacionada à tomada da história em senti<strong>do</strong>


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 144<br />

não-literal. Com isso, ela daria à intriga outro significa<strong>do</strong> que anula a idéia <strong>do</strong><br />

sobrenatural. O texto deve obrigar “o leitor a considerar o mun<strong>do</strong> das personagens como<br />

um mun<strong>do</strong> de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação<br />

sobrenatural <strong>do</strong>s acontecimentos evoca<strong>do</strong>s” (To<strong>do</strong>rov, 2007, p. 39). A alegoria, então,<br />

invalida a leitura literal. Por isso, o fantástico, para o teórico franco-búlgaro, não pode<br />

ser li<strong>do</strong> a partir da perspectiva alegórica.<br />

To<strong>do</strong>rov (2007, p. 41), critica a posição de Lovecraft quan<strong>do</strong> este diz que a<br />

sensação de me<strong>do</strong> está freqüentemente ligada ao fantástico. Para To<strong>do</strong>rov, esta condição<br />

é importante, porém não é necessária. Antes de qualquer coisa, o efeito de ambiguidade<br />

e de dúvida é mais importante <strong>do</strong> que qualquer outro sentimento.<br />

A dúvida é suscitada pela utilização recorrente de <strong>do</strong>is procedimentos de<br />

escritura. São eles: o imperfeito e a modalização. To<strong>do</strong>rov (2007, p. 43-44) usa <strong>do</strong>is<br />

exemplos para esclarecer esse ponto. Quanto ao imperfeito, uma frase como “amava<br />

Aurélia” não determina se o falante ainda a ama ou não, geran<strong>do</strong>, portanto, a imprecisão<br />

quanto ao sentimento. Já a modalização, ele utiliza <strong>do</strong>is exemplos: “chove lá fora” e<br />

“talvez chova lá fora”. No primeiro caso, há certeza <strong>do</strong> fenômeno, enquanto que no<br />

segun<strong>do</strong>, apresenta-se uma atmosfera da dúvida.<br />

Outra importante contribuição para a reflexão da literatura <strong>do</strong> sobrenatural<br />

pode ser encontrada no livro de Filipe Furta<strong>do</strong> A construção <strong>do</strong> fantástico na narrativa.<br />

Retoman<strong>do</strong> alguns conceitos <strong>do</strong>s autores anteriormente cita<strong>do</strong>s, Furta<strong>do</strong> amplia a<br />

discussão sobre o fantástico e procura mostrar alguns componentes centrais que devem<br />

ser observa<strong>do</strong>s ao se referir ao gênero.<br />

A primeira delas concerne ao tipo de intriga recorrente no fantástico, algo já<br />

dito por Lovecraft (1987, p. 4-5) em O horror sobrenatural na literatura. Conforme<br />

Furta<strong>do</strong> (1980, p. 19) “[...] qualquer narrativa fantástica encena invariavelmente<br />

fenômenos ou seres inexplicáveis e, na aparência, sobrenaturais”. O fantástico só<br />

ocorrerá quan<strong>do</strong> houver um enre<strong>do</strong> em que os acontecimentos ultrapassem a nossa<br />

compreensão da natureza, pois a sua noção implica a abordagem de assuntos que<br />

violarão ou subverterão as leis naturais, aquilo que o teórico português chamou de<br />

experiência meta-empírica.


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 145<br />

A partir <strong>do</strong> pressuposto que o fantástico se nutre da intriga meta-empírica,<br />

Furta<strong>do</strong> (1980, p. 22) divide o sobrenatural em <strong>do</strong>is segmentos: o sobrenatural negativo<br />

(relaciona<strong>do</strong> ao conceito <strong>do</strong> Mal) e o sobrenatural positivo (relaciona<strong>do</strong> ao conceito <strong>do</strong><br />

Bem). O enre<strong>do</strong> estará, então, condiciona<strong>do</strong> a um desses <strong>do</strong>is segmentos e,<br />

principalmente, à luta “quase sempre perdida pelas forças da natureza ou pelos seres<br />

humanos (em regra conota<strong>do</strong>s com os valores positivos), contra as manifestações<br />

extranaturais, exclusiva ou pre<strong>do</strong>minantemente associadas ao Mal”.<br />

Aliada a uma tendência maniqueísta, ou seja, da representação <strong>do</strong> conflito<br />

entre o Bem e o Mal, Furta<strong>do</strong> (1980, p. 28) observa que, em um grande número de<br />

narrativas, a temática sobrenatural está integrada ao conjunto de práticas, de<br />

manifestações e de figuras humanas monstruosas relacionadas às práticas ocultas.<br />

O teórico português (1980, p. 35-36) também assinala para o caráter<br />

ambíguo <strong>do</strong> fantástico ressaltan<strong>do</strong> que um <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s não deve anular o outro. O<br />

gênero, dessa forma, tenta suscitar e manter o debate sobre os <strong>do</strong>is elementos de<br />

oposição (o empírico e o meta-empírico) cuja coexistência parece, a princípio,<br />

impossível:<br />

De fato, a essência <strong>do</strong> fantástico reside na sua capacidade de<br />

expressar o sobrenatural de uma forma convincente e de manter<br />

uma constante e nunca resolvida dialética entre ele e o mun<strong>do</strong><br />

natural em que irrompe, sem que o texto alguma vez explicite se<br />

aceita ou exclui inteiramente a existência de qualquer deles<br />

(Furta<strong>do</strong>, 1980, p. 36).<br />

É importante ressaltar que a ambiguidade <strong>do</strong> fantástico não é uma<br />

característica inerente, mas um tipo de construção que o singulariza e o distingue <strong>do</strong>s<br />

demais (estranho e maravilhoso). A idéia da hesitação no fantástico é construída a partir<br />

de recursos próprios da narrativa que vão expressar essa característica, prolongan<strong>do</strong>-a.<br />

Assim, não é o sentimento das personagens, <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r ou <strong>do</strong> leitor que vai definir o<br />

gênero:<br />

Um texto só se inclui no fantástico quan<strong>do</strong>, para além de fazer<br />

surgir a ambiguidade, a mantém ao longo da intriga,<br />

comunican<strong>do</strong>-a às suas estruturas e levan<strong>do</strong>-a a refletir-se em


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to<strong>do</strong>s os planos <strong>do</strong> discurso [...]. Longe de ser o traço distintivo<br />

<strong>do</strong> fantástico, a hesitação <strong>do</strong> destinatário intratextual da<br />

narrativa não passa de um mero reflexo dele, constituin<strong>do</strong><br />

apenas mais uma das formas de comunicar o leitor a irresolução<br />

face aos acontecimentos e figuras evoca<strong>do</strong>s (Furta<strong>do</strong>, 1980,<br />

p.40-41).<br />

Outro ponto de discordância entre os autores pode ser observa<strong>do</strong> quan<strong>do</strong><br />

Furta<strong>do</strong> (1980, p. 74-75) se refere à hesitação <strong>do</strong> leitor (narratário) diante de uma<br />

narrativa fantástica. Para ele, o papel <strong>do</strong> narratário não pode deixar de constituir uma<br />

característica importante <strong>do</strong> fantástico, portanto, não é possível atribuir-lhe o papel<br />

fundamental de caracterizar o gênero, pois, em muitos casos, a sua existência não se<br />

torna aparente. E, para o leitor real, poderá não ficar claro a função <strong>do</strong> narratário.<br />

Ademais, a diversidade de leitores reais com as suas possíveis variedades de reações<br />

perante o enre<strong>do</strong> torna bastante improvável, como uma regra, que a hesitação ocorra na<br />

maioria das leituras.<br />

Isso significa que a hesitação é ponto importante, mas não deve ser<br />

considera<strong>do</strong> o único critério para a identificação <strong>do</strong> fantástico, pois os<br />

[...] diferentes tipos de leitura não podem ser arvora<strong>do</strong>s em<br />

critérios suscetíveis de contribuir para a caracterização <strong>do</strong><br />

gênero. Com efeito, fazer depender a classificação de qualquer<br />

texto apenas (ou sobretu<strong>do</strong>) da reação <strong>do</strong> leitor perante ele<br />

equivaleria a considerar todas as obras literárias em permanente<br />

flutuação entre vários gêneros, sem alguma vez se lhes permitir<br />

fixarem-se definitivamente num deles (Furta<strong>do</strong>, 1980, p. 77).<br />

Mais importante <strong>do</strong> que a hesitação é observar os traços de ambiguidade que<br />

se mantenham constantes, mesmo que estejam sujeitos a diversos tipos de leitura:<br />

Com efeito, para que a reação destinada ao narratário (a<br />

hesitação) possa ser por ele “cumprida” com um mínimo de<br />

lógica e venha, com grande probabilidade, a ser experimentada<br />

pelo leitor real, é sobretu<strong>do</strong> necessário que a narração tenha<br />

cria<strong>do</strong> na intriga condições para que tal se verifique. Ora, tais<br />

condições deverão primeiramente resultar da ambiguidade<br />

intrínseca da ação e <strong>do</strong> seu alastramento a todas as estruturas <strong>do</strong><br />

discurso (Furta<strong>do</strong>, 1980, p. 78, grifo <strong>do</strong> autor).


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Quanto à relação personagem e intriga, Filipe Furta<strong>do</strong> admite que o gênero<br />

privilegia o acontecimento (as manifestações extranaturais) em desfavor das<br />

personagens. A partir dessa constatação, fica evidente, também, que a personagem só<br />

atinge relevância no fantástico se servir como agente que comunica a ambiguidade ao<br />

receptor real <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>. O acontecimento meta-empírico vem para perturbar a<br />

personagem e causar desordem:<br />

De fato, o que realmente conta na narrativa fantástica não é a<br />

ação voluntária e consciente de indivíduos ou grupos, mas a<br />

manifestação (de aparência sobrenatural e quase sempre sem<br />

causa ou teor discerníveis) que se insinua e desenvolve à revelia<br />

de qualquer controle ou explicação por parte da personagem<br />

humana e que, duma forma ou <strong>do</strong>utra, acaba por se lhe tornar<br />

nefasta (Furta<strong>do</strong>, 1980, p. 86).<br />

Em face dessa breve exposição sobre autores que teorizaram a respeito da<br />

literatura que engloba aspectos sobrenaturais, apresentaremos uma discussão sobre o<br />

fantástico no conto de Nathaniel Hawthorne ressaltan<strong>do</strong> os aspectos textuais que<br />

enfatizam o caráter ambíguo da experiência da personagem.<br />

A construção <strong>do</strong> fantástico em “O jovem<br />

Goodman Brown”, de Nathaniel Hawthorne<br />

Antes de iniciarmos a nossa análise que contempla as características <strong>do</strong><br />

fantástico em “O jovem Goodman Brown”, gostaríamos de esclarecer que a narrativa<br />

em questão, como muitas obras de qualidade artística ímpar, comporta mais de uma<br />

interpretação, mais de uma forma crítica e analítica de abordagem. Com isso, estamos<br />

queren<strong>do</strong> dizer que o conto fantástico pode sim ter mais de uma leitura.<br />

Faremos a leitura sobremaneira literal da história com o intuito de ressaltar<br />

o seu aspecto fantástico à maneira da teoria consagrada por To<strong>do</strong>rov. Entretanto, não<br />

podemos aban<strong>do</strong>nar algumas alusões fortíssimas feitas por Nathaniel Hawthorne quanto<br />

ao caráter alegórico de sua narrativa. Ítalo Calvino, que compilou quase três dezenas de


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narrativas sobrenaturais e reuniu em Contos fantásticos <strong>do</strong> século XIX , aponta para essa<br />

tendência literária de Hawthorne na “Introdução”. São palavras de Calvino:<br />

Entre os autores representa<strong>do</strong>s nesta antologia, Hawthorne é<br />

certamente aquele que consegue ir mais fun<strong>do</strong> no campo moral e<br />

religioso, tanto no drama da consciência individual quanto na<br />

representação sem disfarces de um mun<strong>do</strong> forja<strong>do</strong> por uma<br />

religiosidade extrema como a da sociedade puritana. [...] Mas<br />

nos melhores casos as suas alegorias morais, sempre baseadas<br />

na presença indelével <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> no coração <strong>do</strong> homem, têm<br />

uma força na visualização <strong>do</strong> drama interior que só será<br />

alcançada em nosso século, com Franz Kafka (2004, p. 15, grifo<br />

nosso).<br />

Em “O jovem Goodman Brown” temos o conflito maniqueísta entre a<br />

religiosidade mais conserva<strong>do</strong>ra, pelo qual Hawthorne, como descendente de puritanos,<br />

consagrou sua narrativa, e o paganismo, algo que ficou profundamente marca<strong>do</strong> na<br />

cidade de Salem.<br />

Para a concepção atual, as bruxas tais quais se acreditava existir em Salem,<br />

emissárias e amantes <strong>do</strong> diabo, é uma possibilidade descartada pelo pensamento<br />

moderno, apesar de que ainda existam aqueles que crêem nessa idéia preconceituosa.<br />

Todavia, localizada no século XVII, a narrativa de Hawthorne reflete uma idéia quase<br />

generalizada naquela cidade. Não seria fantástica, na concepção de To<strong>do</strong>rov, caso o<br />

leitor de Salem pudesse ter contato com “O jovem Goodman Brown”, pois a crença no<br />

diabo é uma certeza cristã. Mas, o conto foi escrito em 1835, já distante quase <strong>do</strong>is<br />

séculos daquele perío<strong>do</strong> negro da história religiosa norte-americana.<br />

O início mostra o “Bom Homem” Brown se despedin<strong>do</strong> da esposa Faith<br />

(literalmente, “Fé”), pois tenciona fazer uma viagem misteriosa pouco antes <strong>do</strong> pôr <strong>do</strong><br />

sol. A estrada que ele vai tomar passa por dentro de uma floresta. Temos assim, os<br />

primeiros elementos de uma história de terror: uma viagem misteriosa por uma estrada<br />

que atravessa uma floresta ao anoitecer. O clima de tensão aumenta quan<strong>do</strong> a jovem<br />

esposa demonstra preocupação ao se despedir <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>: “Uma mulher solitária se vê<br />

tão tomada de sonhos e pensamentos que teme às vezes até a si mesma” e é confirmada<br />

logo em seguida por Goodman Brown ao refletir: “Sou um desgraça<strong>do</strong> por deixá-la por<br />

tal coisa! E ela ainda me fala de sonhos. Seu rosto, enquanto falava, pareceu-me


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preocupa<strong>do</strong>, como se um sonho a tivesse adverti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que está para acontecer esta<br />

noite” (Hawthorne, 2004, p. 174).<br />

Nesse momento, ainda não sabemos a real intenção dele ao empreender uma<br />

viagem noturna pelo meio da floresta. Apenas desconfiamos quan<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r nos<br />

informa que se trata de um empreendimento diabólico. Adiante, Brown começa a<br />

jornada. A descrição <strong>do</strong> caminho por onde ele passa corrobora a atmosfera de me<strong>do</strong>:<br />

[...] uma estrada deserta, cuja escuridão era causada por árvores<br />

lúgubres que quase não davam passagem. O caminho era o mais<br />

solitário possível e trazia em si a peculiaridade desses lugares: o<br />

viajante não percebia que talvez pudesse ser observa<strong>do</strong> entre<br />

inúmeros troncos e galhos fun<strong>do</strong>s e altos; assim, havia a chance<br />

de suas solitárias pegadas estarem passan<strong>do</strong> por uma multidão<br />

invisível (Hawthorne, 204, p. 174).<br />

Ainda no início da viagem, ele encontra um homem misterioso cuja<br />

característica física é análoga a de Brown, apesar de ser mais velho. Tal similitude é na<br />

forma gestual. Fisicamente, não se parecem muito. Contu<strong>do</strong>, quem os visse, poderia<br />

dizer que eram pai e filho. Esse homem misterioso será o guia dele durante parte <strong>do</strong><br />

trajeto. O que mais chama atenção é o caja<strong>do</strong> que o estranho carrega, igual a uma<br />

grande cobra negra tão engenhosamente forjada que parece estar viva. Para o leitor,<br />

além da descrição <strong>do</strong> homem e de seu caja<strong>do</strong>, o mais importante é o que o narra<strong>do</strong>r<br />

comenta em seguida: “Com certeza, tratava-se de uma ilusão de óptica causada pela<br />

escassez de luz <strong>do</strong> lugar” (Hawthorne, 2004, p. 175). Essa afirmação nos leva ao âmago<br />

<strong>do</strong> fantástico de To<strong>do</strong>rov: a ambiguidade da história. A dúvida é provocada quan<strong>do</strong><br />

hesitamos entre tomar a personagem como um ser provavelmente demoníaco, devi<strong>do</strong> ao<br />

lugar de aparição, ou um sujeito que está ali apenas para acompanhar Brown. O<br />

narra<strong>do</strong>r dá certeza de que a visão de Brown não passa de uma ilusão de ótica. Ele<br />

procura uma explicação racional alegan<strong>do</strong> se tratar, possivelmente, de uma miragem. O<br />

problema é que o ambiente de aparição suscita o receio de que seja alguma<br />

manifestação diabólica.<br />

Ao dizer sobre a sua intenção de não chegar ao final da viagem por ser de<br />

uma família respeitada de puritanos, Brown ouve <strong>do</strong> estranho que ele, o homem<br />

misterioso, não é desconheci<strong>do</strong> tanto <strong>do</strong> avô quanto <strong>do</strong> pai de Goodman assim como é


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conheci<strong>do</strong> por tantas outras pessoas importantes de Massachussetts, inclusive <strong>do</strong>s<br />

membros da igreja que o jovem frequentava. A informação nos causa estranheza por se<br />

tratar de alguém que teve contato com o avô de Brown quan<strong>do</strong> este ainda era jovem. Em<br />

seguida, Brown alega que tem Faith e que não pode magoá-la.<br />

Um <strong>do</strong>s verbos mais usa<strong>do</strong>s na tradução de “Young Goodman Brown” é<br />

“parecer”. Tal verbo denota dúvida em relação ao que se vai falar. E o narra<strong>do</strong>r, que<br />

antes afirmara certeza quanto à ilusão de ótica, começa a empregar o “parecia”, ao se<br />

referir ao desconheci<strong>do</strong>: “mas no final colocou-se a rir [o homem misterioso] com tal<br />

violência que seu caja<strong>do</strong> em forma de cobra parecia balançar acompanhan<strong>do</strong>-o”<br />

(Hawthorne, 2004, p. 176, grifo nosso) e “[o] viajante estendeu seu caja<strong>do</strong> e tocou-lhe o<br />

pescoço [de Goody Cloyse] nervoso com o que parecia ser o rabo da serpente”<br />

(Hawthorne, 2004, p. 177, grifo nosso).<br />

Os <strong>do</strong>is encontram Goody Cloyse, a professora de catecismo de Brown que<br />

acha estranho uma senhora i<strong>do</strong>sa andan<strong>do</strong> no meio da floresta à noite. Com me<strong>do</strong> de<br />

que ela o visse com aquele estranho, resolve se esconder. O homem misterioso,<br />

possivelmente algum emissário <strong>do</strong> diabo ou o próprio demônio, conversa com a senhora<br />

como se fossem velhos conheci<strong>do</strong>s. Cloyse demonstra que o conhece há muito tempo:<br />

“‘Ah, cavalheiro, é o senhor mesmo?’ [...] ‘Claro, é o senhor, e na antiga aparência <strong>do</strong><br />

velho fofoqueiro, Goodman Brown, o avô <strong>do</strong> garoto bobo’” (Hawthorne, 2004, p. 177).<br />

Os <strong>do</strong>is conversam sobre uma receita de bruxaria e ela diz que vai participar de um<br />

encontro onde será inicia<strong>do</strong> um jovem, alusão direta a Brown.<br />

Ao se despedir de Goody Cloyse, o homem lhe joga o caja<strong>do</strong> que se<br />

transforma em serpente. Nesse momento, o narra<strong>do</strong>r assegura tal fenômeno, inclusive,<br />

informan<strong>do</strong>-nos se tratar de uma vara emprestada por feiticeiros egípcios.<br />

O papel <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> fantástico é ficar jogan<strong>do</strong> com duas possibilidades<br />

interpretativas para os acontecimentos que narra. Em “O jovem Goodman Brown”, ora<br />

ele afirma com certeza que se trata de uma ilusão, ora usa o verbo “parecer” para se<br />

referir ao homem desconheci<strong>do</strong>, ora assegura que seu caja<strong>do</strong> se transforma em serpente<br />

por estar liga<strong>do</strong> à bruxaria egípcia. No primeiro momento, estamos diante de algo<br />

estranho. O sobrenatural foi provoca<strong>do</strong> pela dificuldade da visão, já que Brown<br />

caminhava à noite. Nesse caso, é apenas uma ilusão de ótica e nossas leis naturais estão


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intactas. Por outro la<strong>do</strong>, o narra<strong>do</strong>r, ao recorrer ao verbo “parecer”, demonstra<br />

insegurança quanto ao que está contan<strong>do</strong>. No último momento destaca<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o<br />

caja<strong>do</strong> se transforma em serpente, volta-se a segurança. Só que a certeza é de que algum<br />

fenômeno sobrenatural está acontecen<strong>do</strong>. O conto, antes transitan<strong>do</strong> entre o estranho e o<br />

fantástico, agora está começan<strong>do</strong> a aceitar o maravilhoso. Isso acontece porque ora há<br />

certeza, ora há dúvida. A confluência de posições opostas engendra o fantástico. É<br />

importante essa transição para reforçar seu caráter ambíguo. Nesse momento, o conto<br />

tende para o maravilhoso, entretanto, não podemos descartar o que foi dito antes. A<br />

possibilidade <strong>do</strong> maravilhoso é reforçada quan<strong>do</strong>, na falta de um caja<strong>do</strong>, o homem pega<br />

um galho de árvore e juntamente com Brown, começa a retirar os raminhos e pequenos<br />

caules: “No momento em que encostaram os de<strong>do</strong>s, como se fosse o brilho comum <strong>do</strong><br />

sol, eles se tornaram estranhamente murchos e secos” (Hawthorne, 2004, p. 178).<br />

Tzvetan To<strong>do</strong>rov (2007, p. 31) e Filipe Furta<strong>do</strong> (1980, p. 35-36) defendem<br />

que o fantástico se caracteriza pela ambiguidade da narrativa e pela hesitação entre duas<br />

possibilidades interpretativas. Em “O jovem Goodman Brown”, notamos esse transitar<br />

<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r que busca explicação para algum fenômeno, mas logo é convenci<strong>do</strong> de que<br />

está diante <strong>do</strong> sobrenatural. Se em um instante o narra<strong>do</strong>r chegou a desconfiar, agora a<br />

dúvida também alcança o protagonista. A suspeita começa logo depois <strong>do</strong><br />

desaparecimento misterioso <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>.<br />

Goodman Brown, sozinho, ouve batidas de cavalos na floresta. Resolve se<br />

esconder temen<strong>do</strong> pelo pior:<br />

A confusão de sons parecia estar a pouca distância de onde o<br />

jovem se escondera; mas, por causa sem dúvida da escuridão<br />

profunda naquele ponto em particular, nem os viajantes nem<br />

seus companheiros eram visíveis. Ainda que suas silhuetas<br />

tocassem os galhos mais baixos <strong>do</strong> caminho, eles não cruzariam<br />

nem sequer com o débil brilho de uma listra <strong>do</strong> céu estrela<strong>do</strong>.<br />

[...] Aquilo o incomodava muito, porque ele podia ter jura<strong>do</strong>,<br />

fosse tal coisa possível, que reconhecera as vozes <strong>do</strong> pastor e <strong>do</strong><br />

diácono Gookin, moven<strong>do</strong>-se lenta e pesadamente, como faziam<br />

ao se reunir para alguma ordenação ou concílio eclesial<br />

(Hawthorne, 2004, p. 179, grifo nosso).


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A desconfiança de Brown se estende até a natureza: “Ele olhou para o alto,<br />

duvidan<strong>do</strong> se realmente havia um céu sobre ele” (Hawthorne, 2004, p. 179, grifo<br />

nosso). A natureza que ele busca se apoiar para fazer a sua oração e se livrar da<br />

influência demoníaca acaba aterrorizan<strong>do</strong> Brown quan<strong>do</strong> ele presencia, provavelmente,<br />

um fenômeno sobrenatural, o que aumenta mais ainda a confusão em sua mente:<br />

Enquanto ele ainda olhava fixamente o profun<strong>do</strong> arco <strong>do</strong><br />

firmamento e erguia suas mãos para orar, uma nuvem, embora<br />

nenhum vento soprasse, se precipitou no zênite e escondeu as<br />

estrelas brilhantes. O céu azul estava ainda visível, exceto<br />

diretamente sobre ele, onde essa massa preta de nuvem<br />

deslizava rapidamente para o norte. Das profundezas das<br />

nuvens, suspenso no ar, veio um confuso e duvi<strong>do</strong>so som de<br />

vozes. Depois, ele achou que estava identifican<strong>do</strong> a voz de<br />

algumas pessoas da aldeia, homens e mulheres, os pios e os<br />

perversos, muitos <strong>do</strong>s quais ele encontrara na mesa de<br />

comunhão; e outros vira em orgias na taverna. No instante<br />

seguinte, tão confusos eram os sons, ele acabou duvidan<strong>do</strong> se<br />

tinha mesmo ouvi<strong>do</strong> qualquer coisa além <strong>do</strong> murmúrio da velha<br />

floresta, ainda que não houvesse vento nenhum (Hawthorne,<br />

2004, p. 179-180, grifo nosso).<br />

A dúvida se torna desespero quan<strong>do</strong> Brown suspeita que Faith faça parte da<br />

comunhão demoníaca ao encontrar, em um galho, a fita rosa que ela usava antes de ele<br />

sair. Por isso, Brown lamenta: “Minha Faith se entregou! [...] O bem não existe no<br />

mun<strong>do</strong>; e o peca<strong>do</strong> é só uma palavra. Venha, diabo; o mun<strong>do</strong> é seu” (Hawthorne, 2004,<br />

p. 180). É níti<strong>do</strong> aqui que, apesar de ser um texto que pode ser li<strong>do</strong> como fantástico,<br />

apresenta características de alegoria ao refletir a luta entre o Bem e o Mal.<br />

Intencionalmente, Hawthorne coloca o nome de seu protagonista “Bom Homem” e de<br />

sua esposa “Fé” com significa<strong>do</strong>s que remetem à religião. Nesse momento, Brown está<br />

perden<strong>do</strong> Faith não apenas no senti<strong>do</strong> literal, a esposa dele. A perda de Faith também<br />

representa a perda da fé na religião e na bondade <strong>do</strong> ser humano. Sua fé cai em ruínas<br />

quan<strong>do</strong> Brown vê várias pessoas respeitadas em conluio com o demônio e,<br />

principalmente, quan<strong>do</strong> percebe que sua esposa também fora seduzida pelo Mal. Temos<br />

então, nesse conto, um fantástico que também pode ser li<strong>do</strong> de forma alegórica.


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Voltan<strong>do</strong> aos indícios que corroboram a idéia <strong>do</strong> fantástico, quan<strong>do</strong> Brown<br />

constata que Faith participará da reunião demoníaca, o cenário ganha um aspecto mais<br />

selvagem, denotan<strong>do</strong> que o espaço começa a manifestar o desespero <strong>do</strong> protagonista da<br />

história. É mais uma vez que a atmosfera aterrorizante se manifesta, apesar de que nada,<br />

possivelmente sobrenatural, pudesse ocorrer:<br />

A estrada se abria mais selvagem e lúgubre e ainda mais<br />

tenuemente desenhada, e sumia à frente, deixan<strong>do</strong>-o no coração<br />

da selva escura, ainda corren<strong>do</strong> anima<strong>do</strong> pelo instinto que guia o<br />

homem mortal para o mal. A floresta inteira estava povoada de<br />

sons pavorosos – o crepitar das árvores, o uivo das feras<br />

selvagens e o bra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s índios (Hawthorne, 2004, p. 180).<br />

Não obstante o narra<strong>do</strong>r nos informar que nada de sobrenatural naquele<br />

instante está acontecen<strong>do</strong> e que a figura de Brown é mais assusta<strong>do</strong>ra, ele reconhece que<br />

a floresta pode ser assombrada: “[...] não havia nada na floresta mal-assombrada mais<br />

assusta<strong>do</strong>r que a figura de Goodman Brown” (Hawthorne, 2004, p. 181, grifo nosso).<br />

Já era meia-noite, horário propício para possíveis manifestações<br />

sobrenaturais. Brown ouve um ruí<strong>do</strong> que parece ser o mesmo hino canta<strong>do</strong> na<br />

congregação da aldeia. Um <strong>do</strong>s principais motivos da dificuldade que Brown enfrenta<br />

para discernir o que via ocorre por causa da pouca luminosidade da floresta. Quan<strong>do</strong> ele<br />

se aproxima da congregação, o narra<strong>do</strong>r expõe o problema que o personagem tem para<br />

divisar uma “pedra que guardava certa semelhança rude e natural com um altar ou um<br />

púlpito, contornada por quatro pinheiros brilhan<strong>do</strong>, com a copa em chamas e o caule<br />

intoca<strong>do</strong>, como as velas em um culto macabro” (Hawthorne, 2004, p. 181). Brown<br />

chega ao momento decisivo da narrativa, quan<strong>do</strong> as forças <strong>do</strong> Mal estão reunidas para<br />

celebrar a chegada de novos membros.<br />

Ele constata: “Aqui está uma assembléia séria e desgraçadamente infeliz [...]<br />

(Hawthorne, 2004, p. 181). O narra<strong>do</strong>r confirma a visão perturba<strong>do</strong>ra de Brown ao<br />

perceber que, provavelmente, participavam da reunião tanto aqueles considera<strong>do</strong>s<br />

santos na cidade, sinônimos de respeito e de religiosidade quanto os de baixa reputação:<br />

Na verdade era isso mesmo. No meio deles, tremulan<strong>do</strong> para a<br />

frente e para trás entre o lusco-fusco e a luz, estavam alguns


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 154<br />

rostos que seriam vistos no dia seguinte no conselho da<br />

província, e outros que, sabá após sabá, pareciam<br />

devotadamente celestiais, e muitos pios no banco da igreja <strong>do</strong><br />

mais santo púlpito da região. Alguns afirmam que a senhora <strong>do</strong><br />

governa<strong>do</strong>r estava lá. [...] Mas, acompanhan<strong>do</strong> muito<br />

irreverentemente essas graves, reputadas e pias pessoas, esses<br />

anciões da igreja, as damas castas e as virgens orvalhadas, lá<br />

estavam homens de vida dissoluta e mulheres de larga fama,<br />

infelizes lança<strong>do</strong>s a toda vilania e vícios imun<strong>do</strong>s, suspeitos<br />

inclusive de crimes terríveis (HAWTHORNE, 2004, p. 181-<br />

182).<br />

Mais uma vez a falta de luminosidade atrapalha a visão de Brown. Esse é,<br />

evidentemente, um <strong>do</strong>s fatores centrais que autenticam a imprecisão daquilo que o<br />

protagonista está presencian<strong>do</strong>: “o surpreendente bruxuleio da luz brilhan<strong>do</strong> sobre o<br />

obscuro campo deixou Goodman Brown muito confuso, ou talvez ele mesmo tenha<br />

reconheci<strong>do</strong> um grupo de membros da igreja de Salem famosos por sua especial<br />

santidade” (Hawthorne, 2004, p. 182, grifo nosso).<br />

Ao se aproximar da congregação maléfica, determinada visão chama a sua<br />

atenção: “Ele podia jurar que a forma de seu próprio pai pedia-lhe que avançasse [...],<br />

enquanto uma mulher, com as feições embaçadas pelo desespero, ergueu as mãos para<br />

aconselhá-lo a voltar. Seria a sua mãe? (Hawthorne, 2004, p. 183, grifos nossos).<br />

Nesse momento, percebemos que a dúvida de Brown quanto à identidade<br />

daqueles que estavam participan<strong>do</strong> da cerimônia é manifestada pelo narra<strong>do</strong>r, pois aqui<br />

quem se pergunta é a própria personagem. Um ser de forma obscura surge para presidir<br />

o ritual. Ele prega que o peca<strong>do</strong> pode ser fareja<strong>do</strong> tanto na igreja, no quarto, na rua<br />

quanto nos lugares onde crimes são cometi<strong>do</strong>s. Na verdade, ele afirma que o peca<strong>do</strong><br />

está em to<strong>do</strong>s os lugares. E aqui está o senti<strong>do</strong> alegórico <strong>do</strong> conto ao refletir sobre a<br />

idéia <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> que está na origem <strong>do</strong> ser humano, segun<strong>do</strong> a crença cristã. Por isso,<br />

Brown pede para Faith resistir ao Mal.<br />

O lugar <strong>do</strong> rito também é descrito sem detalhes precisos, já que o narra<strong>do</strong>r<br />

continua usan<strong>do</strong> o verbo “parecer” e a conjunção “ou”, que também exprime incerteza.<br />

Sabemos que se trata de um ambiente provavelmente caracteriza<strong>do</strong> para servir como um<br />

altar para um culto de bruxaria. O narra<strong>do</strong>r se esforça para caracterizá-lo utilizan<strong>do</strong><br />

adjetivos que remetem a aspectos sombrios e diabólicos: “[...] pelas chamas das tochas


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parecidas com o inferno [...]. Uma bacia foi escavada na pedra. Aquela luz flamejante<br />

era água vermelha? Ou sangue? Ou, por acaso, um líqui<strong>do</strong> queiman<strong>do</strong>?” (Hawthorne,<br />

2004, p. 184). Temos dúvida em relação aos detalhes <strong>do</strong> culto. Por outro la<strong>do</strong>, temos<br />

certeza de estar presencian<strong>do</strong> algo que envolva o sobrenatural. Estaríamos caminhan<strong>do</strong><br />

realmente para o maravilhoso?<br />

Quan<strong>do</strong> Faith vai participar <strong>do</strong> ritual iniciático, algo acontece. E aqui está o<br />

momento mais importante <strong>do</strong> conto que vai indicar ser ele uma narrativa fantástica.<br />

Subitamente, a história é interrompida e o narra<strong>do</strong>r nos informa:<br />

Se Faith obedeceu, Goodman Brown não sabe. Naquele mesmo<br />

momento ele achou a si mesmo na solidão da calma noite,<br />

ouvin<strong>do</strong> o brami<strong>do</strong> <strong>do</strong> vento que morria floresta adentro. Ele<br />

chocou-se contra a pedra, e a sentiu fria e úmida, enquanto um<br />

graveto, que tinha esta<strong>do</strong> nas chamas, salpicava seu rosto com o<br />

mais frio sereno (Hawthorne, 2004, p. 184).<br />

Novamente a dúvida está instaurada e agora não há mais como apontar outra<br />

alternativa. Ela perdura até o final da história. Além disso, o narra<strong>do</strong>r fica hesitante em<br />

afirmar se Brown realmente teve algum pesadelo ou se de fato ele presenciou um ritual<br />

de bruxaria. Ele deixa para o leitor tomar posição: “Teria Goodman Brown apenas caí<strong>do</strong><br />

na floresta e ti<strong>do</strong> um pesadelo?” / Acredite se você desejar [...]” (Hawthorne, 2004, p.<br />

185). Nesse instante, o narra<strong>do</strong>r fica jogan<strong>do</strong> com as duas alternativas. Enquanto ele<br />

fala sobre a religiosidade das pessoas de Salem, Brown questiona a integridade religiosa<br />

das mesmas pessoas. Ao retornar para a cidade, percebemos a contraposição de opiniões<br />

entre o narra<strong>do</strong>r e Brown que vai fortalecer ainda mais a idéia da dúvida. De qualquer<br />

forma, a dúvida fica para o leitor resolver ou não, pois Brown acredita no que viu ou<br />

sonhou:<br />

O velho diácono Gookin estava no culto <strong>do</strong>méstico, e as<br />

palavras santas de sua prece podiam ser ouvidas pela janela<br />

aberta. “A que deus está rezan<strong>do</strong> o bruxo?”, disse Goodman<br />

Brown. Goody Cloyse, aquela excelente cristã, estava sob o sol<br />

da manhã na sua própria janela, catequizan<strong>do</strong> uma garotinha que<br />

lhe havia trazi<strong>do</strong> um pouco de leite recém ordenha<strong>do</strong>. Goodman<br />

Brown agarrou violentamente a menina, como se estivesse<br />

arrancan<strong>do</strong> das garras <strong>do</strong> demônio. [...] No dia <strong>do</strong> sabá, quan<strong>do</strong>


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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 156<br />

a congregação estava cantan<strong>do</strong> um salmo sagra<strong>do</strong>, uma canção<br />

pecaminosa soprava alto em sua orelha e afogava toda a melodia<br />

sagrada, impedin<strong>do</strong>-o de ouvir. Quan<strong>do</strong> o pastor falava <strong>do</strong><br />

púlpito com poder e férvida eloqüência, e com a mão sobre a<br />

Bíblia aberta, explican<strong>do</strong> as verdades sagradas da nossa religião,<br />

e contan<strong>do</strong> vidas santificadas e mortes triunfantes, pregan<strong>do</strong><br />

felicidades no futuro ou miséria indizível, Goodman Brown<br />

empalidecia, cheio de me<strong>do</strong> de que o telha<strong>do</strong> desabasse sobre o<br />

blasfemo grisalho e sua platéia (Hawthorne, 2004, p. 184-185).<br />

Aliada à idéia da hesitação fantástica, “O jovem Goodman Brown”,<br />

nitidamente, aborda o conflito entre o Bem e o Mal na figura da personagem Goodman<br />

Brown contra as forças demoníacas. Se Filipe Furta<strong>do</strong> (1980, p. 20) defende que a<br />

intriga fantástica está relacionada, principalmente, a uma luta entre o ser humano e o<br />

sobrenatural (a natureza contra a “sobrenatureza”) quase sempre perdida pela primeira,<br />

temos, nessa narrativa, o embate maniqueísta entre as duas forças que se opõem e a<br />

derrota de Brown pela ação funesta <strong>do</strong> sobrenatural: “E depois de viver muito, deixan<strong>do</strong><br />

à cova um corpo encaneci<strong>do</strong> [...] não foi esperançoso o epitáfio que gravaram sobre a<br />

lápide, pois ele morreu cheio de culpa e cerca<strong>do</strong> de trevas” (Hawthorne, 2004, p. 185).<br />

A certeza de Brown sobre os fenômenos que testemunhou, quan<strong>do</strong> vê Faith, se torna o<br />

motivo de seu desespero e da angústia de não poder confiar mais em ninguém.<br />

Com isso, acreditamos que o conto de Nathaniel Hawthorne se desenvolve a<br />

partir de, pelo menos, <strong>do</strong>is eixos temáticos, alertan<strong>do</strong> que as possibilidades<br />

interpretativas são maiores <strong>do</strong> que as aqui apresentadas: é um conto fantástico com<br />

to<strong>do</strong>s os principais elementos que o caracterizam (sobrenatural, lugares sombrios,<br />

hesitação, conflito entre o Bem e o Mal, o sobrenatural ten<strong>do</strong> um efeito devasta<strong>do</strong>r na<br />

personagem, a ambiguidade da narrativa), mas também pode ser li<strong>do</strong> como uma grande<br />

alegoria que vai discutir o embate maniqueísta entre a religiosidade e o paganismo sem<br />

que com isso perca o seu teor fantástico.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

CALVINO, Ítalo. Introdução. In:______. Contos fantásticos <strong>do</strong> século XIX (Org.).<br />

Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 9-18.<br />

FURTADO, Filipe. A construção <strong>do</strong> fantástico na narrativa. Lisboa: Livros<br />

Horizonte, 1980.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 157<br />

HAWTHORNE, Nathaniel. O jovem Goodman Brown. In: CALVINO, Ítalo (Org.).<br />

Contos fantásticos <strong>do</strong> século XIX. Tradução de Ricar<strong>do</strong> Lísias. São Paulo: Cia<br />

das Letras, 2004. p. 173-185.<br />

LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Tradução de<br />

João Guilherme Linke. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.<br />

RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.<br />

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maira Clara<br />

Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2007.<br />

TOMACHEVSKI, B. Temática. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da<br />

literatura: formalistas russos. Tradução de Ana Mariza Ribeiro et al. Porto<br />

Alegre: Globo, 1971. p. 141-153.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 158<br />

MEDO, INVEJA, VERGONHA: AS PAIXÕES NO CONTO LA<br />

FORMA DE LA ESPADA, DE JORGE LUIS BORGES<br />

Neusa Teresinha Bohnen 1<br />

RESUMO: Este trabalho é resulta<strong>do</strong> das leituras e discussões realizadas na disciplina<br />

Discursos orais e escritos: imaginário, mitos e paixões e busca analisar as paixões presentes<br />

no conto La forma de la espada, de Jorge Luis Borges. Para tanto, inicialmente aborda a<br />

teoria semiótica greimasiana, em alguns <strong>do</strong>s aspectos que a fundamentam, uma vez que<br />

embasam certas análises neste texto. Na sequência, reproduz a narrativa de Borges e, na<br />

medida em que surgem no texto, as paixões são analisadas. Porém, trata-se mais de reflexões<br />

gerais que a narrativa suscita e menos de uma análise semiótica nos moldes greimasianos,<br />

com os termos técnicos dela decorrentes. Ainda que às vezes resulte difícil e até polêmico<br />

identificar e demarcar as paixões, defende-se a idéia de que em La forma de la espada estão<br />

presentes de maneira entrelaçada o me<strong>do</strong>, a vergonha e a inveja. Também se analisa o<br />

significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> nome <strong>do</strong> protagonista em suas relações com a narrativa.<br />

Palavras-chave: paixões, narrativa, me<strong>do</strong>, inveja, vergonha.<br />

FEAR, ENVY, SHAME: PASSION IN THE TALE LA FORMA<br />

DE LA ESPADA, BY JORGE LUIS BORGES<br />

ABSTRACT: This paper comes up as a result of studies and argumentation <strong>do</strong>ne during the<br />

classes of the subject Oral and Written Speeches: imaginary, myths and passion, and the<br />

search for analyzing passion in the story La forma de la espada, by Jorge Luis Borges. Aiming<br />

that, we first approach Greimas’ Semiotics Theory, in some of its fundamental aspects, which<br />

are essential in certain analysis of this text. Then, we reproduce Borges’ story and, as passions<br />

arise in the text, we analyze each one of them. However, it is more related to general thoughts<br />

raised by the story than to a semiotics analysis according to Greimas’ standard, and its<br />

technical terms. Though sometimes it is difficult and even controversial to identify passion in<br />

it, we advocate that in the story La forma de la espada, fear, shame, and envy are linked. We<br />

also study the meaning of the name of the main character in its relation to the story.<br />

KEY WORDS: passion, story, fear, envy, shame.<br />

Uma boa razão para estudarmos as paixões seja, talvez, a possibilidade de melhor<br />

entendermos a alma humana em toda sua complexidade. Desde Aristóteles até Greimas as<br />

paixões suscitam discussões e teorias que sugerem ainda um tema inesgotável. Para os<br />

antigos, a paixão era associada à <strong>do</strong>ença, à loucura; uma vez que a opunham à lógica, à razão;<br />

1 Aluna <strong>do</strong> curso de Mestra<strong>do</strong> em Estu<strong>do</strong>s Lingüísticos da Universidade Federal de Goiás, professora <strong>do</strong> curso de<br />

letras da Fundação Universidade <strong>do</strong> Tocantins UNITINS, neusabohnen@hotmail.com .


CARANDÁ<br />

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modernamente é concebida como uma força motriz que leva o homem à ação (FIORIN, 2007,<br />

p. 10).<br />

Já a Semiótica identifica um componente patêmico presente em todas as relações e<br />

atividades humanas, componente esse que move a ação humana. A enunciação, por sua vez,<br />

discursiviza a subjetividade e sinaliza que sempre há paixões nos textos. (Idem). Para a teoria<br />

semiótica greimasiana, as paixões são consideradas “esta<strong>do</strong>s de alma” que influenciam o<br />

sujeito e se relacionam à sua existência modal, que se constitui basicamente nas modalizações<br />

<strong>do</strong> ser (sujeito de esta<strong>do</strong>) e <strong>do</strong> fazer (sujeito <strong>do</strong> fazer), das quais decorrem o querer, o dever, o<br />

saber e o poder. Essas modalizações determinam os papéis exerci<strong>do</strong>s pelo sujeito: papel<br />

temático (relaciona-se ao ser: o invejoso, o avarento, etc.), papel actancial (relaciona-se ao<br />

fazer, à ação que modifica a situação) e papel passional (relaciona-se somente ao fazer: o<br />

actante é <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela paixão). Tal teoria busca definir as condições em que um objeto se<br />

torna significante para o homem e propõe o reconhecimento <strong>do</strong> objeto textual como uma<br />

máscara sob a qual devem ser encontradas as leis que determinam o discurso. Considera a<br />

construção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> como um percurso gerativo, caracteriza<strong>do</strong> pela superposição de<br />

diferentes níveis de profundidade: fundamental, narrativo e discursivo (BARROS, 2001, p. 13<br />

e 15).<br />

Como já afirma<strong>do</strong> anteriormente, as paixões estão presentes nos diferentes tipos de<br />

discursos: publicitário, político, acadêmico, religioso, etc. Entretanto, segun<strong>do</strong> Fontanille<br />

(2008, p. 93) o tipo de discurso no qual a dimensão passional mais se manifesta é o literário,<br />

narrativo ou poético mais explicitamente. Há fartos exemplos disso: em Otelo, de<br />

Shakespeare, o ciúme e a manipulação são os elementos fundamentais; em Memorial de<br />

Aires, de Macha<strong>do</strong> de Assis, é o apego que se estende até após a morte <strong>do</strong> ser ama<strong>do</strong>; Um<br />

amor de Swann, de Marcel Proust, trata da paixão <strong>do</strong> ciúme; em Os desastres de Sofia, de<br />

Clarice Lispector, é a vergonha a paixão retratada.<br />

Outro bom exemplo, e ao qual vamos nos ater, é o surpreendente conto La forma de la<br />

espada, de Jorge Luis Borges, em que a história de Vincent Moon nos leva a refletir sobre a<br />

condição humana, sua instabilidade, suas fraquezas e motivações.<br />

No conto, o próprio Borges assume inicialmente a função de narra<strong>do</strong>r, que nos<br />

apresenta o protagonista da história mencionan<strong>do</strong> já na primeira linha a cicatriz que lhe<br />

cortava o rosto: “Le cruzaba la cara una cicatriz rencorosa: un arco ceniciento y casi perfecto<br />

que de un la<strong>do</strong> ajaba la sien y del otro el pómulo.” (BORGES, 1993, p. 19) De resto, o<br />

protagonista é apresenta<strong>do</strong> como um inglês que se havia instala<strong>do</strong> na Argentina vin<strong>do</strong> da


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fronteira, <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul, <strong>do</strong>no da propriedade “La Colorada”. Tratava-se de um<br />

homem trabalha<strong>do</strong>r, autoritário, severo, mas justo. Não tinha amigos e, às vezes, embebedava-<br />

se por dias.<br />

Borges, por culpa <strong>do</strong> mau tempo, teve certa vez que pedir pousada em “La Colorada”.<br />

Como o <strong>do</strong>no da propriedade não parecia nada hospitaleiro, Borges resolveu elogiar o povo<br />

inglês como forma de angariar sua simpatia. O proprietário, por sua vez, concor<strong>do</strong>u com o<br />

elogio aos ingleses, mas revelou que ele não era inglês, mas irlandês, de Dungarvan.<br />

Após o jantar, Borges bebeu bastante rum com seu anfitrião, tanto que, depois de um<br />

largo silêncio, já afeta<strong>do</strong> pela bebida, resolveu comentar sobre a cicatriz. O Irlandês,<br />

visivelmente altera<strong>do</strong>, respondeu: “Le contaré la historia de mi herida bajo una condición: la<br />

de no mitigar ningún oprobio, ninguna circunstancia de infamia.” (Idem, p. 20)<br />

passa a narrar.<br />

Nesse ponto da narrativa, Borges assume o papel de ouvinte da história que o Irlandês<br />

Por volta de 1922, o Irlandês era um <strong>do</strong>s muitos que conspiravam pela independência<br />

da Irlanda. Conta que ele e seus companheiros eram republicanos, católicos e românticos; de<br />

to<strong>do</strong>s, o mais valoroso havia si<strong>do</strong> fuzila<strong>do</strong> num quartel.<br />

Foi nessa época que chegou ao grupo um novo membro: John Vincent Moon. Deveria<br />

ter, se muito, vinte anos. Era magro e fláci<strong>do</strong> ao mesmo tempo, “daba la incómoda impresión<br />

de ser invertebra<strong>do</strong>.” (Idem, p. 21) Havia estuda<strong>do</strong> um manual comunista que lhe servia para<br />

responder a tu<strong>do</strong> com autoritarismo e desdém.<br />

Logo que se conheceram, caminhavam pelas ruas quan<strong>do</strong> foram surpreendi<strong>do</strong>s por um<br />

tiroteio. Seguiram por uma rua de terra, mas foram barra<strong>do</strong>s por um solda<strong>do</strong>. O Irlandês fugiu<br />

a passos rápi<strong>do</strong>s, mas viu que Vincent Moon não o seguia, estava paralisa<strong>do</strong> pelo terror. Então<br />

o Irlandês voltou e derrubou o solda<strong>do</strong> com um golpe. Em seguida sacudiu e insultou Vincent<br />

Moon, ordenan<strong>do</strong>-lhe que o seguisse. Teve que puxá-lo pelo braço, uma vez que estava<br />

completamente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pela paixão <strong>do</strong> me<strong>do</strong>. Enquanto fugiam, Moon foi atingi<strong>do</strong> de<br />

raspão no braço e começou a chorar.<br />

Diante dessa situação, pode-se perguntar: que sentimento é esse, tão forte que chega a<br />

paralisar? Que sensação é essa que pode desequilibrar, desestruturar e até mesmo<br />

enlouquecer?<br />

Ainda crianças somos orienta<strong>do</strong>s a temer desde coisas concretas, como o fogo, a água,<br />

objetos cortantes, até aquilo que não conhecemos. Disso se depreende que o me<strong>do</strong> é fruto da


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consciência da finitude humana, isto é, tememos basicamente aquilo que ameaça nossa vida e<br />

das pessoas que amamos.<br />

Para Fontanille (cita<strong>do</strong> por NASCIMENTO; LEONEL, 2006, p. 628) o me<strong>do</strong>, o temor<br />

e o terror são paixões que nos igualam aos animais e se distanciam de paixões mais nobres,<br />

que dão senti<strong>do</strong> à existência, como o amor, o ciúme, a ambição entre outras; isso porque<br />

nestas, o sujeito busca o objeto; naquelas, o sujeito atemoriza<strong>do</strong> foge, rejeita o objeto, o que<br />

significaria a decomposição <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>.<br />

Fontanille criou uma tipologia para o me<strong>do</strong> baseada no desenvolvimento das formas<br />

observáveis e na intensidade da expressão dinâmica. Quan<strong>do</strong> esses <strong>do</strong>is elementos são fortes<br />

surgem os “atores <strong>do</strong> me<strong>do</strong>”. Nessa construção, o me<strong>do</strong> se revela por motivos estereotipa<strong>do</strong>s,<br />

imediatamente reconheci<strong>do</strong>s, como a fera, a tempestade, o bandi<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> o<br />

desenvolvimento das formas é fraco e a intensidade forte, surgem as “forças <strong>do</strong> me<strong>do</strong>”, nas<br />

quais o me<strong>do</strong> se revela por formas indefinidas, impalpáveis, em que o sujeito somente vê<br />

formas e cores, por exemplo. Quan<strong>do</strong> a intensidade é fraca e o desenvolvimento forte,<br />

ocorrem as “formas <strong>do</strong> me<strong>do</strong>”, nas que o me<strong>do</strong> se dá por coisas monstruosas, fantásticas, cujo<br />

tipo de ação o sujeito desconhece. O último tipo de me<strong>do</strong> acontece quan<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is elementos<br />

são fracos, é a “aura <strong>do</strong> me<strong>do</strong>”, que se caracteriza por um mal-estar indefini<strong>do</strong>. A partir dessa<br />

tipologia o percurso <strong>do</strong> me<strong>do</strong> é descrito, permitin<strong>do</strong> observar as transformações textuais, que<br />

podem passar da “aura” ao “ator”, à “forma” e à “força”, por exemplo. Também de acor<strong>do</strong><br />

com essa tipologia, pode-se classificar o me<strong>do</strong> de Vincent Moon como o <strong>do</strong> primeiro tipo,<br />

uma vez que, obviamente, um tiroteio é motivo bastante concreto para se sentir me<strong>do</strong>.<br />

Ainda segun<strong>do</strong> Fontanille, no sujeito amedronta<strong>do</strong> pode haver, inicialmente, o<br />

enfraquecimento da competência modal ou perda <strong>do</strong> querer, <strong>do</strong> saber e/ou poder; em seguida<br />

pode haver a declinação de componentes corporais, isto é, o corpo manifesta reações de<br />

defesa que podem variar muito: frêmito, arrepios, palpitações, etc; e, no caso de Moon, a<br />

paralisia. No entanto, por mais humano que seja, muitas vezes o me<strong>do</strong> é um sentimento<br />

associa<strong>do</strong> à fraqueza, à covardia. Existem situações em que não se pode demonstrá-lo. Um<br />

revolucionário não deveria ser um covarde. A paralisia de Moon diante <strong>do</strong> perigo<br />

comprovaria sua covardia sugerida anteriormente, quan<strong>do</strong> foi qualifica<strong>do</strong> de “invertebra<strong>do</strong>”?<br />

Na sequência, o Irlandês conta que, naquele outono de 1922, estava escondi<strong>do</strong> na<br />

quinta <strong>do</strong> general Berkeley, que estava ausente, pois assumira um cargo administrativo no<br />

estrangeiro. Era um grande edifício, cheio de corre<strong>do</strong>res, com um museu e uma biblioteca que<br />

ocupavam toda a planta baixa. Uma vez seguros, o Irlandês pôde comprovar a


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superficialidade <strong>do</strong> ferimento de Moon, que ainda trêmulo, qualificava os acontecimentos da<br />

noite como “interessantes”. Também balbuciou com perplexidade: “Pero usted se ha<br />

arriesga<strong>do</strong> sensiblemente.” (BORGES, 1993, p. 23), ao que o Irlandês respondeu que não se<br />

preocupasse, pois a guerra o acostumara a agir como agiu e, além disso, a prisão de um único<br />

membro colocaria em risco a causa da independência.<br />

No dia seguinte, Moon já se havia recupera<strong>do</strong>. Fez muitas perguntas, às que o Irlandês<br />

respondeu explican<strong>do</strong> a gravidade da situação. Mas os companheiros os esperavam. O<br />

Irlandês saiu para pegar seu sobretu<strong>do</strong> e seu revólver e, ao retornar, encontrou Moon<br />

estendi<strong>do</strong> no sofá, dizen<strong>do</strong> que tinha febre e que sentia muita <strong>do</strong>r no braço. Então,<br />

compreendeu a irremediável covardia de Moon, e sentiu-se incomoda<strong>do</strong> diante disso, assim<br />

como se fosse ele o covarde.<br />

Segun<strong>do</strong> Chauí (1996, p. 56), a origem e os efeitos <strong>do</strong> me<strong>do</strong> fazem com que não seja<br />

uma paixão isolada, mas articulada a outras, determinan<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> de sentir, viver e pensar <strong>do</strong><br />

sujeito amedronta<strong>do</strong>. Ao se analisar o comportamento de Moon, percebe-se que com seu<br />

autoritarismo ele pretendeu passar ao companheiro uma imagem de homem firme,<br />

determina<strong>do</strong>. Que sentiria após ter si<strong>do</strong> flagra<strong>do</strong> paralisa<strong>do</strong> de me<strong>do</strong> e choran<strong>do</strong> por um<br />

ferimento superficial? Que paixão sucederia o me<strong>do</strong>? A vergonha?<br />

Para Harkot-de-La-Taille (1999, p. 18) a paixão da vergonha é intersubjetiva, surge <strong>do</strong><br />

cruzamento de outras configurações em que o destinatário assume a perspectiva de um<br />

destina<strong>do</strong>r julga<strong>do</strong>r. O sujeito se divide em <strong>do</strong>is simulacros existenciais: num ele pensa ter<br />

certa competência modal positiva, constrói para si uma imagem que acredita representá-lo<br />

verdadeiramente; noutro, vê que não possui tal competência, isto é, não é o que pensava ser.<br />

Trata-se de uma paixão definida pela combinação <strong>do</strong> querer ser, não poder não ser e saber<br />

não ser. Isso tu<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> olhar real ou virtual de um especta<strong>do</strong>r cuja opinião importa muito<br />

ao sujeito envergonha<strong>do</strong>. Ora, o fato de ter si<strong>do</strong> sacudi<strong>do</strong> e insulta<strong>do</strong> pelo Irlandês para sair da<br />

paralisia em que se encontrava, deve ter marca<strong>do</strong> Moon profundamente. Querer ser forte e<br />

corajoso e por fim ser visto como um covarde, chorão parece ser um bom motivo para se<br />

envergonhar. Devia pesar muito a opinião <strong>do</strong> companheiro que o salvou, afinal, o sujeito<br />

envergonha<strong>do</strong> esquece-se de si mesmo e passa toda sua atenção para seu julga<strong>do</strong>r e como ele<br />

o vê. É preciso ter consciência de que alguém nos olha e nos julga para sentirmos vergonha.<br />

O Irlandês segue contan<strong>do</strong> a Borges que ele e Moon passaram nove dias na casa <strong>do</strong><br />

general, mas ressalta que não dirá nada da guerra, que seu propósito é contar-lhe a história da<br />

cicatriz que o afronta. Na memória <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r os nove dias se resumiam em apenas um, a


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 163<br />

não ser o penúltimo, quan<strong>do</strong> os revolucionários invadiram um quartel e puderam vingar<br />

dezesseis companheiros que haviam si<strong>do</strong> metralha<strong>do</strong>s em Elphin. A rotina <strong>do</strong> Irlandês era sair<br />

de casa na madrugada e voltar na confusão <strong>do</strong> crepúsculo. Moon se limitava a ficar no<br />

primeiro andar, com a desculpa de que a ferida no braço não lhe permitia descer ao térreo.<br />

Chegou a comentar que a arma que preferia era a artilharia. Buscava inteirar-se <strong>do</strong>s planos da<br />

resistência, gostava de censurá-los e mudá-los. Também gostava de profetizar, <strong>do</strong>gmático e<br />

sombrio, o fim da resistência. Procurava mostrar que era indiferente à própria covardia<br />

exibin<strong>do</strong> sua soberba mental.<br />

No décimo dia a cidade caiu definitivamente nas mãos <strong>do</strong> poder central. O<br />

patrulhamento das ruas se havia intensifica<strong>do</strong>, sinais de destruição se espalhavam; o Irlandês<br />

viu um cadáver numa esquina, menos presente em suas lembranças <strong>do</strong> que aquele em que<br />

numa praça os solda<strong>do</strong>s exercitavam a pontaria interminavelmente. Dessa vez o Irlandês havia<br />

saí<strong>do</strong> ao amanhecer, mas voltara antes <strong>do</strong> meio dia. Ao aproximar-se da biblioteca ouviu<br />

Moon ao telefone. Depois ouviu o próprio nome, e que regressaria às sete, daí a indicação de<br />

que o levassem quan<strong>do</strong> atravessasse o jardim. Percebeu que Moon era um trai<strong>do</strong>r, que o<br />

vendia em troca de garantias de segurança pessoal.<br />

O Irlandês conta que perseguiu o delator por corre<strong>do</strong>res e escadas intermináveis. Moon<br />

conhecia a casa muito bem, uma ou duas vezes o perdera, mas o encurralou antes que os<br />

solda<strong>do</strong>s o detivessem. Com uma das muitas armas <strong>do</strong> general, rubricou uma meia lua de aço<br />

no rosto de Moon, uma meia lua de sangue, para sempre.<br />

Nesse ponto da narrativa, o Irlandês se dirige a Borges dizen<strong>do</strong>: “Borges: a usted que<br />

es un desconoci<strong>do</strong>, le he hecho esta confesión. No me duele tanto su menosprecio”.<br />

(BORGES, 1993, p. 26) Borges retoma a narrativa e comenta que o irlandês se deteve e que<br />

suas mãos tremiam. Então perguntou-lhe sobre Moon, ao que o Irlandês respondeu que havia<br />

cobra<strong>do</strong> “los dineros de Judas” pela delação <strong>do</strong> companheiro e havia fugi<strong>do</strong> ao Brasil. Nessa<br />

mesma tarde havia visto fuzilarem-no.<br />

Borges aguar<strong>do</strong>u em vão que o Irlandês terminasse a história. Por fim, teve que pedir-<br />

lhe que prosseguisse. Este, soltou um gemi<strong>do</strong> e mostrou a cicatriz no rosto dizen<strong>do</strong>: “¿Usted<br />

no me cree? ¿No ve que llevo escrita en la cara la marca de mi infamia? Le he narra<strong>do</strong> la<br />

historia de este mo<strong>do</strong> para que usted la oyera hasta el fin. Yo he denuncia<strong>do</strong> al hombre que<br />

me amparó: yo soy Vincent Moon. Ahora desprécieme.” (Idem, p. 26)<br />

Assim termina a narrativa, surpreenden<strong>do</strong> o leitor com uma imprevista revelação, a<br />

partir da qual se pode analisar mais detidamente o comportamento de Moon. A vergonha <strong>do</strong>


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 164<br />

próprio ato o levou a assumir o papel <strong>do</strong> companheiro traí<strong>do</strong> para ter coragem de contar sua<br />

história até o fim. Mas o que o teria leva<strong>do</strong> a agir como agiu? Teria ele delata<strong>do</strong> o<br />

companheiro só por covardia? Já vimos que o me<strong>do</strong> é uma paixão articulada a outras, como a<br />

vergonha, ou a inveja... Vale lembrar as palavras de Chauí (1986, p. 56), para quem “O me<strong>do</strong><br />

nasce de outras paixões e pode ser minora<strong>do</strong> (nunca suprimi<strong>do</strong>) por outros afetos contrários e<br />

mais fortes <strong>do</strong> que ele, como também pode ser aumenta<strong>do</strong> por paixões mais tristes <strong>do</strong> que<br />

ele.”<br />

A coragem <strong>do</strong> companheiro devia <strong>do</strong>er muito em Moon. Só que, apesar de tão<br />

humana quanto todas as paixões, a inveja é a mais difícil de ser confessada. Como dizer ao<br />

companheiro “eu tenho me<strong>do</strong>, eu sou covarde” depois de ter busca<strong>do</strong> construir uma imagem<br />

de homem decidi<strong>do</strong>, <strong>do</strong>gmático e autoritário?<br />

Costumamos confessar a inveja acompanhada de adjetivos atenuantes, como “boa” ou<br />

“saudável”, sentimento facilmente confundi<strong>do</strong> com admiração ou mesmo cobiça. Para<br />

Ventura (1998, p. 11), ainda que se refira à inveja como um <strong>do</strong>s sete peca<strong>do</strong>s capitais, “a<br />

inveja é um vírus que se caracteriza pela ausência de sintomas aparentes. O ódio espuma. A<br />

preguiça se derrama. A gula engorda. A avareza acumula. A luxúria se oferece. O orgulha<br />

brilha. Só a inveja se esconde.” Ainda segun<strong>do</strong> o autor, a inveja se distingue <strong>do</strong> ciúme, que se<br />

caracteriza por querer preservar o que se tem; e da cobiça, desejar o que não se possui. A<br />

marca da inveja é não querer que o outro tenha.<br />

No caso de Moon, como possuir a coragem <strong>do</strong> companheiro? Impossível. Talvez seja<br />

esse o componente mais <strong>do</strong>loroso da inveja: desejar algo que o outro tem e não pode ser<br />

compartilha<strong>do</strong>.<br />

Para Mezan (1986, p. 119), a inveja está associada aos olhos, afirmação que se<br />

justifica na própria etimologia da palavra, <strong>do</strong> latim invídia, formada a partir <strong>do</strong> radical ved-,<br />

de vedére. Ainda segun<strong>do</strong> o autor, outra associação entre a inveja e os olhos está presente no<br />

Canto XIII <strong>do</strong> Purgatório, na Divina Comédia, de Dante Alighieri, em que os invejosos têm<br />

as pálpebras costuradas por um fio de arame como castigo, impedin<strong>do</strong>-os de ver, inutilizan<strong>do</strong><br />

o órgão através <strong>do</strong> qual pecaram quan<strong>do</strong> vivos. A Moon, em sua paralisia no momento <strong>do</strong><br />

tiroteio, restou ver o companheiro derrubar valentemente o solda<strong>do</strong>, e depois, nos dias que se<br />

seguiram, vê-lo partir para a luta todas as madrugadas, enquanto ele ficava em casa, usan<strong>do</strong><br />

um ferimento superficial como desculpa para esconder a própria covardia.<br />

No entanto, se é impossível para Moon possuir a coragem <strong>do</strong> companheiro, privá-lo<br />

dela é possível. Esse é outro aspecto negativo da inveja, também associada ao roubo, à rapina,


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 165<br />

à agressividade, uma vez que o invejoso busca roubar, apossar-se de alguma forma <strong>do</strong> objeto<br />

de desejo, ainda que não possa usufrui-lo. Assim, em vez de apenas assumir-se covarde e<br />

fugir, Moon delata o companheiro, que, morto, não poderá mais exibir coragem nem será<br />

mais testemunha de sua covardia. O ato de entregar o companheiro em troca de segurança<br />

pessoal e dinheiro revelaria um caráter ignóbil?<br />

Além de covarde, trai<strong>do</strong>r. Adjetivos bastante desabona<strong>do</strong>res esses. Entretanto, o fato<br />

de se confessar, de contar sua história sem esconder sua infâmia o enobreceria? Pode-se<br />

pensar que a paixão da inveja ainda perdura nele, já que, até na hora da confissão assume a<br />

identidade <strong>do</strong> companheiro valente. A revelação final é feita com sofrimento, com um<br />

gemi<strong>do</strong>. O herói poderia ter si<strong>do</strong> ele, mas não foi. Dói ter que abrir mão de uma imagem que<br />

ele poderia ter manti<strong>do</strong>, uma vez que Borges não teria como desmenti-lo. Não obstante, a<br />

vergonha o <strong>do</strong>mina, tanto que pede para ser despreza<strong>do</strong> por seu interlocutor.<br />

Para se analisar mais detidamente o comportamento de Moon é necessário retomar a<br />

paixão da vergonha. Harkot-de-La-Taille (1999) lembra que se pode superar a vergonha<br />

assumida de três maneiras: pelo esquecimento ou negação, pelo humor ou pela confissão.<br />

Moon faz uso da confissão para vencer sua vergonha. Ora, o confessan<strong>do</strong> se auto-rebaixa<br />

objetivan<strong>do</strong> limpar-se da mácula. Assume e condena o próprio erro e espera ser per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>,<br />

quer que o confessor sinta pena dele, que o aceite, por mais vil que se revele.<br />

Daí o caráter polêmico da confissão, que pode não simbolizar necessariamente<br />

arrependimento sincero, culpa ou pesar pela falta cometida. Ela também pode funcionar como<br />

estratégia visan<strong>do</strong> a autovalorização <strong>do</strong> sujeito envergonha<strong>do</strong>. Através dela o confessan<strong>do</strong> se<br />

coloca em situação superior ao <strong>do</strong> confessor. É como se Moon dissesse a Borges: “Sou<br />

covarde e trai<strong>do</strong>r sim, mas sou capaz de reconhecer isso, o que me dignifica.”<br />

Na verdade, Moon parece fazer uso dessa estratégia em mais de um momento de sua<br />

confissão. Por exemplo, ao iniciá-la, avisa seu interlocutor que o fará sob condição de não<br />

minimizar nenhum opróbrio, nenhuma infâmia. Quan<strong>do</strong> se refere ao companheiro morto,<br />

busca valorizá-lo: “[…] el que más valía, murió en el patio de un cuartel, en el alba, fusila<strong>do</strong><br />

[…]” (BORGES, 1993, p. 21); ou sugere pena: “en una esquina vi tira<strong>do</strong> un cadáver, menos<br />

tenaz en mi recuer<strong>do</strong> que un maniquí en el cual los solda<strong>do</strong>s interminablemente ejercitaban la<br />

puntería, en mitad de la plaza…” (Idem, p. 25). Esses comentários fazem com que a delação<br />

pareça mais abjeta. Também vale lembrar o seguinte trecho, que soa como uma justificativa<br />

para a covardia de Moon:


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 166<br />

Lo que hace un hombre es como si lo hicieran to<strong>do</strong>s los hombres. Por<br />

eso no es injusto que una desobediencia en un jardín contamine al<br />

género humano; por eso no es injusto que la crucifixión de un solo<br />

judío baste para salvarlo. Acaso Schopenhauer tiene razón: yo soy los<br />

otros, cualquier hombre es to<strong>do</strong>s los hombres, Shakespeare es de<br />

algún mo<strong>do</strong> el miserable John Vincent Moon. (BORGES, 1993, p. 24)<br />

Embora se qualifique de “miserable”, usa figuras bíblicas, como Adão, Jesus, ou ainda<br />

um gênio da literatura como Shakespeare para comparar-se.<br />

Harkot-de-La-Taille (1999) lembra, ainda, que o fazer-parecer <strong>do</strong> humor e da<br />

confissão resultantes da vergonha são sinceros, pois, como já vimos anteriormente, o sujeito<br />

envergonha<strong>do</strong> acredita na imagem que constrói de si mesmo, e o fato de insistir em parecer,<br />

representa a luta para que seu valor seja reconheci<strong>do</strong>.<br />

Outro aspecto a ser analisa<strong>do</strong> é o tipo de vergonha observável no comportamento de<br />

Moon. Hakot-de-La-Taille apresenta uma categorização composta de cinco situações básicas<br />

de vergonha. A autora lembra que tal categorização é limita<strong>do</strong>ra, ten<strong>do</strong> em vista a<br />

complexidade dessa paixão. De qualquer forma, a quinta situação básica é “de expor uma<br />

falta moral: crime, maldade, omissão de socorro, omissão ou mentira por silêncio, etc.” (1999,<br />

p. 135) Desse tipo de vergonha, uma característica fundamental é a auto-responsabilização <strong>do</strong><br />

sujeito. Mas, inicialmente, o ofensor arrependi<strong>do</strong> age como se as projeções que faz de si<br />

mesmo e os efeitos de seus atos não se comunicassem, como se a imagem positiva que tem si<br />

mesmo não pudesse ser afetada por seus atos. Mas quan<strong>do</strong> percebe que sua imagem foi<br />

atingida por sua atuação, poderá sentir vergonha, mas para que isso aconteça, o sujeito<br />

envergonha<strong>do</strong> deve estar em sincretismo com o destina<strong>do</strong>r julga<strong>do</strong>r.<br />

Não obstante, a vergonha por falta moral não é garantia de comportamento moral.<br />

Serve, sem dúvida, como freio e controle para possíveis transgressões, assim mesmo pode<br />

levar o sujeito a cometer outras transgressões. Talvez tenha si<strong>do</strong> o caso de Moon, que após ter<br />

vendi<strong>do</strong> o companheiro, fugiu e usufruiu <strong>do</strong> lucro obti<strong>do</strong> pela venda instalan<strong>do</strong>-se como<br />

proprietário rural na Argentina.<br />

No início da narrativa, quan<strong>do</strong> Borges apresenta Moon ainda sem conhecer sua<br />

história, menciona que havia quem acreditasse que ele havia si<strong>do</strong> contrabandista no tempo em<br />

que vivera no Brasil. Dele ainda diz que era um homem “[...]severo hasta la crueldad, pero<br />

escrupulosamente justo [...] autoritario [...] no se daba con nadie [...]” (BORGES, 1993, p.<br />

19). Não são informações que o tornem simpático ao leitor, ainda que lhe seja atribuí<strong>do</strong> o<br />

adjetivo “justo”. Outra informação instigante é a relacionada à compra da propriedade La


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 167<br />

Colorada: “El dueño de esos campos, Car<strong>do</strong>so, no queria vender; he oí<strong>do</strong> que el Inglês<br />

recurrió a un imprevisible argumento: le confió la historia secreta de la cicatriz.” (Idem.<br />

Ibidem) Que estratégia teria usa<strong>do</strong> Moon para convencer Car<strong>do</strong>so a vender a propriedade? Se<br />

realmente contou sua história, mostrou-se arrependi<strong>do</strong> como fez com Borges? Ou houve<br />

algum outro tipo de intimidação? São perguntas pertinentes quan<strong>do</strong> se trata de uma<br />

personalidade como a de Moon.<br />

Mais um aspecto a ser observa<strong>do</strong> é o nome <strong>do</strong> protagonista: John Vincent Moon. É<br />

artifício bastante comum <strong>do</strong>s escritores escolherem nomes motiva<strong>do</strong>s para seus personagens.<br />

Como exemplo, temos os tantos personagens de Guimarães Rosa, como Joãoquerque e Mira,<br />

o casal que vence o me<strong>do</strong> na Estória no. 3, de Tutaméia , ou ainda Jó Joaquim (persegui<strong>do</strong>-<br />

restabeleci<strong>do</strong>) e Liviria, Rivília, Irlívia ou Vilíria (a anagramática) <strong>do</strong> conto Desenre<strong>do</strong>,<br />

também <strong>do</strong> livro Tutaméia. Iracema, de José de Alencar, anagrama de América; A confissão<br />

de Lúcio (Luz), de Mário de Sá Carneiro; ou ainda Beatriz (a bem-aventurada) da Divina<br />

Comédia, de Dante Alighieri. Enfim, são inúmeros os exemplos.<br />

Mas voltan<strong>do</strong> ao nome de Moon, vemos que John (ou João) significa o agracia<strong>do</strong> por<br />

Deus, Vincent (ou Vicente), aquele que vence, (AZEVEDO, 1999) e Moon é lua em inglês.<br />

O significa<strong>do</strong> desses nomes leva-nos a refletir. Para uns, o mun<strong>do</strong> não é habita<strong>do</strong> por<br />

bons ou maus, mas pelos sobreviventes, pelos mais fortes; para outros, essa é uma forma torpe<br />

de pensar. O nome que Borges escolheu para seu personagem pode soar irônico, conexo ou<br />

desconexo, depende de como o leitor se posiciona com relação à personagem. A neutralidade<br />

é um conceito altamente discutível e, como leitores, nos envolvemos com os personagens que<br />

povoam as obras literárias e acabamos julgan<strong>do</strong>-os. Definitivamente o preceito bíblico “não<br />

julgueis para não serdes julga<strong>do</strong>s” (Mateus, VII: 1-2) é difícil de ser segui<strong>do</strong> pela maioria <strong>do</strong>s<br />

seres humanos.<br />

O crente fervoroso pode considerar uma heresia chamar um covarde trai<strong>do</strong>r de John, o<br />

agracia<strong>do</strong> por Deus; o cético, pode ver a covardia com mais complacência, como própria <strong>do</strong>s<br />

sensatos e precavi<strong>do</strong>s e ser indiferente ao nome; já o cínico pode considerar a covardia uma<br />

virtude e crer que Borges escolheu o nome apropriadamente.<br />

Quanto ao nome Vincent, aquele que vence, vale lembrar o companheiro traí<strong>do</strong> e<br />

morto de Moon. Ele não tem um nome, dele sabe-se que era irlandês, republicano e membro<br />

destemi<strong>do</strong> da resistência e que acabou como “un maniquí en el cual los solda<strong>do</strong>s<br />

interminablemente ejercitaban la puntería [...]” (BORGES, 1993, p. 25) Cabe também<br />

mencionar uma passagem em que Moon se refere aos demais companheiros da causa


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 168<br />

republicana irlandesa: “De mis compañeros, algunos sobreviven dedica<strong>do</strong>s a tareas pacíficas;<br />

otros, paradójicamente, se baten en los mares o en el desierto, bajo los colores ingleses [...]”<br />

(Idem, p. 21) Depois da leitura desses trechos pode-se perguntar: quem é o vence<strong>do</strong>r? Quem<br />

se transformou em respeita<strong>do</strong> (ou temi<strong>do</strong>) proprietário rural? Não foram os valorosos<br />

membros da resistência, mas o covarde trai<strong>do</strong>r que traz a marca de sua infâmia no rosto.<br />

Decerto a opinião de que Vincent Moon é um vitorioso não é uma unanimidade. Pode-<br />

se objetar que não é um vence<strong>do</strong>r um homem que constrói sua vida à custa da vida de outro,<br />

que a culpa há de corroê-lo, uma vez que, tantos anos depois, ainda confessa os atos que<br />

marcaram seu passa<strong>do</strong> a um estranho. Mais uma questão de ponto de vista?<br />

Comenta<strong>do</strong>s os prenomes John e Vincent, resta o sobrenome Moon, lua. Como já<br />

vimos, Moon traz no rosto uma cicatriz em forma de meia lua, trata-se de “La forma de la<br />

espada”, marca de sua traição. No entanto, entre outras tantas simbologias, a lua é comumente<br />

associada à renovação, à transformação, isso pelas quatro fases que atravessa e que tanto<br />

influenciam a vida na terra. Mas é possível ver renovação ou transformação na trajetória de<br />

Moon? Pode ser. É de novo uma questão de ponto de vista. Já vimos que ele comprou La<br />

Colorada, mas a propriedade apresentava sérios problemas: “Los campos estaban<br />

empasta<strong>do</strong>s, las aguadas amargas; el Inglês, para corregir esas deficiências, trabajó a la par de<br />

sus peones.” (Idem, p. 19) Nessa situação, parece que há outro Moon. Não mais o covarde,<br />

passivo, que precisa ser insulta<strong>do</strong> para sair da paralisia em que a paixão <strong>do</strong> me<strong>do</strong> o coloca,<br />

não mais aquele que, enquanto seu companheiro enfrenta o perigo das batalhas, fica<br />

escondi<strong>do</strong>, fingin<strong>do</strong> ter febre e sentir <strong>do</strong>r por um ferimento sem qualquer gravidade. Com<br />

relação a sua aparência quan<strong>do</strong> o conheceu, Borges diz: “Recuer<strong>do</strong> los ojos glaciales, la<br />

enérgica flacura, el bigote gris.” (Idem, p. 20) A “magreza enérgica” de sua maturidade<br />

substituiu a “magreza flácida” ou a “aparência invertebrada” de sua juventude. Até as pedras<br />

se transformam. É inevitável, não se passa imune pelo tempo e pelos acontecimentos da vida.<br />

Decerto podem ser feitas outras leituras sobre o comportamento de John Vincent<br />

Moon, já que as obras literárias permitem a liberdade de interpretação. Além de ensinarem<br />

sobre a ambiguidade da linguagem, os diferentes planos de leitura chamam a atenção para a<br />

multiplicidade de eventos da vida, que ao fim se constituem na matéria prima de que se<br />

alimenta a literatura.<br />

Por fim, é interessante observar como um conto tão breve pode ser fonte tão rica de<br />

reflexões sobre a condição humana. Aliás, com relação às muitas funções atribuídas à<br />

literatura, Umberto Eco, em sua conferência “A utilidade da literatura para a vida e para a


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 169<br />

morte” 1 , diz que uma delas é ajudar-nos a entender qual é a chave da vida. Podemos também<br />

buscar essa função no estu<strong>do</strong> das paixões, que, na verdade, está intimamente liga<strong>do</strong> à<br />

literatura, já que são as paixões que movem as narrativas.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

AZEVEDO, A. C. A. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1999.<br />

BARROS, D. L. P. de. Teoria <strong>do</strong> discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 2001.<br />

BORGES, J. L. Artificios. Madrid: Alianza, 1993.<br />

CHAUÍ, M. Sobre o me<strong>do</strong>. In: CARDOSO, S. (et al). Os senti<strong>do</strong>s da paixão. São Paulo:<br />

Companhia das letras, 1986.<br />

FIORIN, J. L. Semiótica das paixões: o ressentimento. In Alfa: revista de lingüística. Vol. 51,<br />

no. 1. São Paulo, 2007.<br />

FONTANILLE, J. A conversão mítico-passional. In LARA, G. M. P.; MACHADO, I. L,<br />

EMEDIATO, W. (org.). Análises <strong>do</strong> discurso hoje. Vol 1. Rio de Janeiro: Nova<br />

Fronteira, 2008.<br />

HARKOT-DE-LA-TAILLE, E. Ensaio semiótico sobre a vergonha. São Paulo: Humanitas<br />

FFLCH/USP, 1999.<br />

MEZAN, R. A inveja. In: CARDOSO, S. (et al). Os senti<strong>do</strong>s da paixão. São Paulo:<br />

Companhia das letras, 1986.<br />

NASCIMENTO, E. M. F. S., LEONEL, M. C. O me<strong>do</strong> como paixão. In Estu<strong>do</strong>s Linguísticos<br />

XXXV, pp. 627-636, 2006.<br />

VENTURA, Z. Mal secreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.<br />

1 A conferência a que nos referimos foi feita no Pen World Voices, festival de literatura organiza<strong>do</strong> em Nova<br />

York,em 2008.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 170<br />

A POESIA INVADE O PALCO: ASPECTOS<br />

POÉTICOS NO TEATRO DE JOSÉ RÉGIO<br />

Isabelle Regina de Amorim-Mesquita 1<br />

RESUMO: José Régio (1901-1969) pertence ao Segun<strong>do</strong> Modernismo em Portugal. Sua obra<br />

está vinculada ao projeto estético da revista “Presença” – a qual fun<strong>do</strong>u e foi um <strong>do</strong>s<br />

principais colabora<strong>do</strong>res – e compreende romances, poemas, ensaios e peças de teatro. A<br />

produção dramática <strong>do</strong> autor é a menos conhecida e estudada pela crítica acadêmica<br />

brasileira. Sua obra-prima dramática, “Jacob e o Anjo” (1940), tem uma característica<br />

particular: é elaborada com os recursos da poesia, os quais serão analisa<strong>do</strong>s com este estu<strong>do</strong>.<br />

Dentre eles, destacamos: a linguagem metafórica; a ação limitada; o monólogo; a repetição; a<br />

presença <strong>do</strong>s mitos bíblico e histórico; os temas <strong>do</strong> indivíduo duplo e da morte.<br />

PALAVRAS-CHAVE: José Régio; Teatro; Modernismo.<br />

POEM INVADES THE STAGE: POETIC<br />

ASPECTS IN JOSÉ RÉGIO’S DRAMA<br />

ABSTRACT: José Régio (1901-1969) belongs to the Second Modernism in Portugal. His<br />

work is tied to the esthetic project of "Presença" journal - which he founded and was one of<br />

the main collaborators - and includes novels, poems, essays and plays. The dramatic<br />

production of the author is the least known and studied by the Brazilian academic criticism.<br />

His dramatic masterpiece, "Jacob e o Anjo" (1940), has a particular characteristic: it is<br />

prepared with resources of poem, that will be analyzed in this study. Among them, we<br />

emphasize: the metaphoric language; the limited action; the monologue; the repetition; the<br />

presence of biblical and historic myths; the <strong>do</strong>uble individual and death themes.<br />

KEYWORDS: José Régio; Drama; Modernism.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Este estu<strong>do</strong> procura levantar alguns aspectos <strong>do</strong> texto dramático Jacob e o Anjo<br />

(1940), <strong>do</strong> português José Régio, de mo<strong>do</strong> a aproximá-lo da escrita poética.<br />

A peça em questão possui o subtítulo de “mistério” e é composta por prólogo, três atos<br />

e epílogo. Ela surgiu a público pela primeira vez em 1937, nas páginas da Revista de Portugal<br />

e foi publicada em livro em 1940 juntamente com Três Máscaras, <strong>do</strong> mesmo autor.<br />

1 Doutoranda em Estu<strong>do</strong>s Literários pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista.<br />

Email: isabelleamorim@yahoo.com.br


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 171<br />

José Régio (1901-1969) é bastante conheci<strong>do</strong> no ambiente acadêmico como poeta,<br />

romancista e ensaísta. Entretanto, o autor, que foi o funda<strong>do</strong>r e principal redator da revista<br />

Presença (1927-1940), possui uma produção dramática relevante (com oito peças), porém<br />

muito pouco conhecida e estudada, principalmente no Brasil.<br />

Jacob e o Anjo, no rol de suas produções dramáticas, é considerada uma obra-prima.<br />

Procuraremos mostrar, com este estu<strong>do</strong>, que o trabalho com a linguagem nesta peça faz com<br />

que o leitor/especta<strong>do</strong>r seja leva<strong>do</strong> a uma esfera mítica e, envolvi<strong>do</strong> pelo enre<strong>do</strong> e pelas<br />

construções poéticas, acabe por refletir sobre a sua identidade e seus me<strong>do</strong>s, juntamente com<br />

os personagens.<br />

O TRABALHO COM A LINGUAGEM NO TEXTO POÉTICO<br />

A elaboração da linguagem é uma das características marcantes <strong>do</strong> poema e também<br />

<strong>do</strong>s gêneros híbri<strong>do</strong>s, nos quais a poesia está atrelada como, por exemplo, a narrativa poética<br />

e o teatro poético.<br />

A linguagem poética não é um mero instrumento de comunicação, mas um organismo<br />

vivo, mutável a ambíguo, às vezes obscuro e hermético, capaz de produzir inumeráveis<br />

emoções, efeitos e reações em quem com ela se defronta. O poeta trabalha com as palavras de<br />

forma a fazer com que elas suscitem imagens, que ganham amplidão no contexto literário em<br />

que estão inseridas. Depara<strong>do</strong> com as imagens de um texto poético, o leitor se transforma e<br />

reflete sobre si próprio, sua linguagem e sobre o mun<strong>do</strong> que o rodeia.<br />

A palavra é o grande alicerce da obra literária. Utilizan<strong>do</strong>-se da linguagem, o poeta<br />

desconstrói o mun<strong>do</strong> e constrói um outro, colocan<strong>do</strong> o seu ponto de vista e sua maneira de<br />

interpretar as coisas. O artista da palavra funde significante e significa<strong>do</strong> e, por isso, alarga os<br />

senti<strong>do</strong>s das palavras, dan<strong>do</strong> à linguagem uma pluralidade de senti<strong>do</strong>s. Nesse aspecto,<br />

podemos dizer que a palavra, no texto poético, consegue exprimir o indizível – como<br />

considera Octávio Paz (1982) – e, por conseguinte, é intraduzível.<br />

Nosso interesse em estudar a linguagem <strong>do</strong> teatro poético reside no fato de que neste<br />

tipo de produção artística a palavra é o centro, ao contrário <strong>do</strong> teatro dito tradicional, basea<strong>do</strong><br />

na ação. No teatro poético há poucos acontecimentos, visto que a ação não é exterior, mas<br />

interior. Neste tipo de texto, o enre<strong>do</strong> é enxuto, mas a elaboração da linguagem é rica, na<br />

medida em que é através dela que se expressa a interioridade <strong>do</strong>s personagens.<br />

No texto dramático Jacob e o Anjo, de José Régio, existem muitas passagens em que a<br />

poesia irrompe e toma conta da cena; um bom exemplo da pre<strong>do</strong>minância da linguagem


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 172<br />

poética na peça encontra-se no prólogo, no qual não há uma única fala expressiva <strong>do</strong>s<br />

personagens. To<strong>do</strong> o ambiente, os movimentos e os sons que embalam a cena são<br />

minuciosamente descritos pelas rubricas de maneira leve e adjetivada, a qual dá o tom poético<br />

ao texto.<br />

Vejamos um exemplo deste prólogo, o qual apresenta a luta <strong>do</strong> Rei como Anjo: “Ora a<br />

luta <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is é um baila<strong>do</strong> [...] baila<strong>do</strong> simultaneamente hierárquico, feroz e grotesco,<br />

simbólico da luta de Jacob e o Anjo” (Régio, 1978, p.14-15). Podemos notar neste trecho que<br />

o confronto entre os <strong>do</strong>is personagens é exibi<strong>do</strong> como uma dança. Um baila<strong>do</strong>, que<br />

geralmente é leve e alegre, contrasta com o embate, rude e grosseiro. O poeta-dramaturgo<br />

José Régio, com esta elaboração textual, consegue fundir os opostos luta e dança num mesmo<br />

complexo, que já não é mais briga ou baila<strong>do</strong>, mas possui um terceiro significa<strong>do</strong> que vai de<br />

encontro com a esfera mítica.<br />

O baila<strong>do</strong> <strong>do</strong>s personagens é caracteriza<strong>do</strong> por adjetivos que não são próprios de uma<br />

dança, mas de uma luta. Por outro la<strong>do</strong>, a briga ganha uma simbologia bíblica. Esta inversão<br />

semântica é própria da poesia, que procura levar o leitor/especta<strong>do</strong>r a um universo imaginário<br />

diferente de uma luta ou de um baila<strong>do</strong> qualquer, visto que a poesia não pretende valorizar o<br />

óbvio, mas mostrá-lo sob outra perspectiva.<br />

Nesse senti<strong>do</strong>, estas primeiras rubricas nos levam ao mun<strong>do</strong> da poesia, materializada<br />

numa forma dramática, como observamos também no seguinte excerto:<br />

Os movimentos e atitudes <strong>do</strong> Rei são simples, pesa<strong>do</strong>s, espessos, gauches,<br />

poden<strong>do</strong>, certamente, ser executa<strong>do</strong>s pelo próprio actor que no decorrer <strong>do</strong><br />

poema desempenhe o papel de Rei; ao passo que os <strong>do</strong> Anjo se multiplicam<br />

executa<strong>do</strong>s com toda a naturalidade, convin<strong>do</strong>, pois, sejam executa<strong>do</strong>s por<br />

um verdadeiro bailarino. (Régio, 1978, p. 15).<br />

A descrição <strong>do</strong>s movimentos <strong>do</strong>s personagens, como a consideramos, não serve<br />

apenas para oferecer a um possível encena<strong>do</strong>r as indicações cênicas e caracterização <strong>do</strong>s<br />

atores (isto não quer dizer que esta não seja também uma de suas finalidades); todavia, o<br />

excerto supracita<strong>do</strong> nos mostra, mesmo que sutilmente, que dentro deste texto teatral que<br />

estamos len<strong>do</strong> existe, em sua essência, algo de poético.<br />

Há outros trechos, agora das falas <strong>do</strong>s personagens, em que a linguagem poética<br />

prevalece. Citemos <strong>do</strong>is exemplos pertencentes ao terceiro ato: o primeiro é uma fala <strong>do</strong><br />

Bobo, que pretende mostrar ao Rei que existe uma força maior capaz de salvá-lo; o segun<strong>do</strong>


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trecho é uma indagação <strong>do</strong> Rei sobre a existência de Deus e seu poder sobre a vida e morte<br />

<strong>do</strong>s homens.<br />

Bobo<br />

⎯ No extremo da miséria, da humilhação, <strong>do</strong> desespero..., ⎯ como no<br />

cúmulo da alegria! Lá onde o homem sente que já não pode mais, como uma<br />

corda tensa ao máximo, e se não sente ainda satisfeito, como se a corda não<br />

dera ainda o som requeri<strong>do</strong>... lá dá o salto! É nesse extremo que tantas vezes<br />

ELE se revela...<br />

Rei<br />

⎯ Mas quem?!<br />

Bobo<br />

⎯ Não me obrigues a pronunciar agora o seu nome sagra<strong>do</strong>. (Régio, 1978,<br />

p. 130).<br />

*<br />

Rei<br />

⎯ Meu Deus!, peço-te uma prova da tua existência! Ouves-me?, podes<br />

ouvir-me lá onde estás? Quem quer que sejas, meu Deus! Deus seja de quem<br />

for! Podes ouvir-me lá onde estás? onde quer que estejas?... Peço-te uma<br />

prova da tua existência! um sinal da tua misericórdia!: mata-me! mata-me<br />

aqui neste instante! fulmina-me! Tenho sede de desaparecer... vontade de me<br />

sumir... Que vida é esta que me dás? (o pano começa a descer muito<br />

devagar) Perdi tu<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>... ! deitei fora a minha alma... Que vida me<br />

darás? Eu nasci uma criatura viva! não sou uma pedra! Foste tu que me<br />

quiseste vivo... Estás a ouvir-me, meu Deus?! Mata-me! Eu não posso<br />

suportar o tempo! Mata-me aqui neste instante! mata-me! mata-me! matame!<br />

mata-me...! (Régio, 1978, p. 170-1).<br />

Na primeira citação, podemos ler o discurso <strong>do</strong> Bobo como um mini-poema, visto que<br />

a linguagem é densa, condensada, mas diz muito. Em poucas palavras o Bobo apresenta toda<br />

uma tradição cristã segun<strong>do</strong> a qual o homem, para ter a sua salvação e ganhar o reino <strong>do</strong>s<br />

céus, tem que enfrentar muitos desafios e chegar a uma situação de total rebaixamento e<br />

aflição; só assim ele conhecerá a misericórdia divina.<br />

Além disso, neste excerto não existe nenhum acontecimento que está sen<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>,<br />

muito pelo contrário, já que há poucos verbos e eles são “fracos”, ou seja, desprovi<strong>do</strong>s de uma<br />

significação atrelada a uma dada ação. Neste fragmento da obra, os substantivos tomam conta<br />

da fala <strong>do</strong> personagem, fazen<strong>do</strong> com que o enre<strong>do</strong> da peça fique em suspensão por alguns<br />

instantes enquanto o Bobo poetiza.<br />

Outro ponto a ser destaca<strong>do</strong> refere-se ao grande número de pausas que esta fala nos<br />

apresenta. As reticências e o travessão podem ser aproxima<strong>do</strong>s aos chama<strong>do</strong>s “silêncios” da<br />

poesia, em que a linguagem poética é interrompida por alguns instantes para a reflexão <strong>do</strong>


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leitor. Este tipo de construção não é muito recorrente no teatro convencional, entretanto, é um<br />

<strong>do</strong>s aspectos <strong>do</strong> teatro poético. Anna Balakian (2000) lembra que:<br />

As omissões <strong>do</strong> símbolo, que eram representadas na escrita poética por uma<br />

folha de papel branca e vazia, apareciam <strong>do</strong> ponto de vista teatral de mo<strong>do</strong><br />

muito eficaz nos silêncios vocais e interrupções verbais; e <strong>do</strong> ponto de vista<br />

da arte dramática, seriam muito mais poderosos <strong>do</strong> que eloquentes<br />

monólogos (Balakian, 2000, p. 99).<br />

Além desses aspectos, não podemos deixar de la<strong>do</strong> uma construção própria da poesia<br />

que também se encontra nessa peça: a comparação. No fragmento cita<strong>do</strong>, o homem, em<br />

situação ímpar de agonia e <strong>do</strong>r, é compara<strong>do</strong> a uma corda esticada ao máximo, capaz de<br />

arrebentar a qualquer instante. Esta metáfora nos mostra a fragilidade que o ser humano<br />

encontra-se em certos momentos de sua vida quan<strong>do</strong> está prestes a explodir de tanto<br />

sofrimento.<br />

Quanto ao outro trecho cita<strong>do</strong>, existe um recurso bastante recorrente da linguagem<br />

poética: a repetição. O Rei, inquirin<strong>do</strong> uma prova da existência divina e desejan<strong>do</strong> a própria<br />

morte, repete palavras e expressões por várias vezes, dentre elas, destacamos: “meu Deus”;<br />

“podes ouvir-me lá onde estás?”; “quem quer que sejas, seja quem for, onde quer que estejas”;<br />

“peço-te uma prova de tua existência”; “mata-me”; “mata-me aqui neste instante” etc.<br />

Todas estas expressões referem-se a um campo semântico da poesia: o desejo de<br />

morte e o desafio a Deus. Por isto, tais reflexões <strong>do</strong> Rei são feitas em forma de monólogo (o<br />

Rei está sozinho no palco quan<strong>do</strong> profere estas palavras), ambiente propício para a ascensão<br />

da linguagem poética dentro da forma dramática. O monólogo nada mais é <strong>do</strong> que a expressão<br />

da interioridade <strong>do</strong> sujeito, <strong>do</strong> extravase da mais profunda subjetividade <strong>do</strong> ser e embebida,<br />

portanto, de muita poesia.<br />

O paralelismo também é um mecanismo bastante frequente ao longo da peça regiana.<br />

Para destacar um exemplo, lembremos que a luta entre o Rei e o Anjo pode ser aproximada ao<br />

evento bíblico no qual Jacó luta com um envia<strong>do</strong> divino. Este episódio (explicitamente<br />

aponta<strong>do</strong> pelo título) é recorrente em outros momentos <strong>do</strong> texto de José Régio. No primeiro<br />

ato, o Bobo remete-se ao conflito bíblico, porém transpon<strong>do</strong>-o para o contexto da peça:<br />

Bobo<br />

— Não quero estrangular-te, rei; rei de baralho de cartas! Quero lutar<br />

contigo a luta de Jacob e o Anjo. Mas o maior triunfo de Jacob não está em<br />

vencer os Anjos <strong>do</strong> Senhor, para ser poderoso na Terra. Está em ser venci<strong>do</strong><br />

por eles! Não quero estrangular-te... quero vencer-te. Vim cegar os teus


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 175<br />

olhos terrenos com os raios de Deus... (avança três passos para o Rei).<br />

(Régio, 1978, p. 30-1).<br />

Num outro momento da peça (segun<strong>do</strong> ato) a passagem bíblica é evocada de maneira<br />

explícita novamente, quan<strong>do</strong> o Bobo conta o episódio à Rainha:<br />

Bobo<br />

devagar, com muita brandura:<br />

— Queres que te conte uma história? uma breve história? Sempre os<br />

humanos embalaram a <strong>do</strong>r ou taparam o tédio com histórias... Ora ouve: Era<br />

uma vez um homem astuto que já enganara o pai e o irmão para obter<br />

privilégios sagra<strong>do</strong>s. Claro que se chamava Jacob. Ora um dia, o Senhor<br />

Deus viu este homem e pensou: “Manha não te falta para enganar os teus<br />

parentes. Se além disso é capaz de vencer qualquer <strong>do</strong>s meus Anjos, estás<br />

apto a ser um <strong>do</strong>s reis da Terra, o chefe dum grande povo...” Não vou jurar<br />

que o senhor Deus se exprimisse tal qual eu. Mas o que é certo é que<br />

man<strong>do</strong>u descer à Terra um <strong>do</strong>s seus Anjos mais robustos... (Régio, 1978, p.<br />

99-100).<br />

No final da peça, exatamente no último diálogo entre o Rei e o Bobo, este último<br />

pergunta se a majestade deseja conhecer a história bíblica: “Tenho as tuas mãos nas minhas,<br />

meu ama<strong>do</strong>. Não te aban<strong>do</strong>no. Queres que te conte a verdadeira história de Jacob e o Anjo?”<br />

(Régio, 1978, p.136).<br />

To<strong>do</strong>s estes momentos da peça estão em correspondência e liga<strong>do</strong>s a um mesmo<br />

mote glosa<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o texto dramático. O paralelismo, mecanismo basea<strong>do</strong> na repetição, é<br />

bastante comum na poesia, mas quan<strong>do</strong> ocorre num outro tipo de texto, como a repetição de<br />

falas, relatos, lugares e pessoas, surpreende o leitor/especta<strong>do</strong>r.<br />

Outro paralelismo pode ser encontra<strong>do</strong> entre os próprios personagens: o Anjo que<br />

viera atormentar os sonhos <strong>do</strong> Rei e lutar com ele no prólogo é também o Bobo que surge a<br />

partir <strong>do</strong> primeiro ato para desafiar o Rei e propô-lo uma luta: “ — Por que gritais? Se eu te<br />

quisesse matar, não te haveria poupa<strong>do</strong> há pouco: Tive o teu real pescoço nas minhas mãos,<br />

não é verdade?” (Régio, 1978, p. 20).<br />

Essa identificação <strong>do</strong>s personagens entre si é bastante trabalhada por to<strong>do</strong> o texto<br />

regiano, todavia iremos explorar mais este aspecto adiante, quan<strong>do</strong> trataremos da identidade<br />

<strong>do</strong>s personagens.<br />

Como entendemos, a linguagem que compõe a peça Jacob e o Anjo possui um grande<br />

peso, visto que este texto apoia-se na elaboração linguística, no jogo de metáforas e imagens.<br />

O enre<strong>do</strong> em si, como dissemos, é fraco; poucas coisas acontecem. Até o ambiente quase não


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muda, na medida em que o espaço não é tão importante quanto a palavra nesta peça. Os<br />

personagens também são em número reduzi<strong>do</strong>, pois não importa quantos falam, mas o que<br />

falam e de que forma.<br />

A linguagem de Jacob e o Anjo é um <strong>do</strong>s importantes aspectos que fazem com que<br />

este texto, além de dramático, seja também considera<strong>do</strong> poético. Contu<strong>do</strong>, existem outros<br />

elementos poéticos presentes na peça, os quais iremos propor reflexões a seguir.<br />

A PRESENÇA DO MITO<br />

Tanto na narrativa poética quanto no teatro poético a presença <strong>do</strong> mito é<br />

imprescindível, pois ele faz parte da essência da poesia. O papel primordial <strong>do</strong> mito nestes<br />

tipos de texto é a busca; o herói mítico tem sempre um objetivo a cumprir e está sempre a<br />

procura de algo – no caso da peça em questão, a busca <strong>do</strong> herói será em favor de sua<br />

identidade, como veremos.<br />

Além disso, o mito representa sempre alguns questionamentos e reflexões próprios da<br />

natureza humana, tais como o me<strong>do</strong> da morte e quem somos; por isso, em contato com o mito,<br />

facilmente com ele nos identificamos. André Dabezies (1998) considera que “o mito não é um<br />

assunto pessoal de alguém, mas de um grupo, de uma coletividade” (Dabezies, 1998, p.731).<br />

A peça em análise Jacob e o Anjo, como já adiantamos, explora bastante o mito <strong>do</strong><br />

homem que lutou com um envia<strong>do</strong> divino. Este intertexto mítico nos é apresenta<strong>do</strong><br />

primeiramente com o título da obra e com sua epígrafe extraída <strong>do</strong> Gênesis: “Ficou só: e eis<br />

que um varão lutava com ele até pela manhã” (Gênesis, cap.32, v.24).<br />

No contexto bíblico, um Anjo apareceu a Jacó em uma noite. Eles lutaram e Jacó<br />

conseguiu vencer a figura celeste, fortalecen<strong>do</strong> os seus poderes na Terra. Já no texto de Régio,<br />

um Anjo também visita o Rei pela madrugada; todavia, a majestade é frágil, tem me<strong>do</strong> e não<br />

consegue ter sucesso em sua luta com o Anjo; ele acaba sen<strong>do</strong> derrota<strong>do</strong>. Contrariamente à<br />

cena bíblica, “Para o fim <strong>do</strong> baila<strong>do</strong>, o Anjo <strong>do</strong>minou completamente o Rei: ajoelhou-o a seus<br />

pés, e tem-lhe a garganta apertada nas mãos ambas” (Régio, 1978, p.15).<br />

Como nos apresenta Robert Couffignal (1998), “Jacó simboliza o homem em luta<br />

contra o que transcende, a Natureza ou o Ideal” (Couffignal, 1998, p. 514). Contu<strong>do</strong>, não é<br />

esta imagem que nos proporciona o texto regiano. Em Jacob e o Anjo, a linguagem poética<br />

transforma o mito bíblico e dá a ele um outro significa<strong>do</strong>: lutan<strong>do</strong> com o Anjo e perden<strong>do</strong><br />

para ele, o Rei estará limpan<strong>do</strong> a sua alma para a morte.


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 177<br />

O Anjo, que a partir <strong>do</strong> primeiro ato se materializa na figura <strong>do</strong> Bobo, insiste que não<br />

veio para prejudicá-lo, mas para libertar o Rei de toda a ambição e materialidade terrena que o<br />

corrompe.<br />

O Bobo é ti<strong>do</strong> também como uma outra face <strong>do</strong> Rei, como se fosse o seu alter ego,<br />

que veio para derrotá-lo, deixá-lo próximo à loucura e fazer com que ele se arrependa de todas<br />

as suas maldades. Só depois de to<strong>do</strong> este processo e de o Rei aceitá-lo como uma face íntima<br />

de sua existência é que a majestade se encontra “pura” e completa para alcançar a morte.<br />

A última fala <strong>do</strong> Rei é comovente e nos apresenta uma interpretação diferente da<br />

passagem bíblica: “– Perdão...! É a madrugada que chega... Perdão...! Mas talvez Jacob não<br />

tivesse a culpa... quan<strong>do</strong> venceu a primeira vez... antes de vir o Anjo da Morte... o Anjo <strong>do</strong><br />

Amor...” (Régio, 1978, p.187).<br />

O Rei, diferentemente <strong>do</strong> Jacó bíblico, está frágil e não reluta mais em enfrentar o<br />

Bobo/Anjo. Ele pede perdão pelas suas falhas e aceita a morte como uma libertação da vida<br />

terrena que estava lhe degradan<strong>do</strong> a alma.<br />

Outra novidade que Régio nos apresenta quanto ao mito bíblico reside no fato dele<br />

atrelá-lo à história de um rei português, D. Afonso VI.<br />

Na história de Portugal, D. Afonso VI – filho de D. João IV, da dinastia brigantina –<br />

sofrera, desde menino, de uma <strong>do</strong>ença que o deixara hemiplégico e intelectualmente incapaz.<br />

Com a morte prematura <strong>do</strong> primogênito real, D. Teodósio, em 1653, e a posterior<br />

morte <strong>do</strong> rei, em 1656, D. Afonso sobe ao trono aos treze anos, ten<strong>do</strong> como regente a rainha,<br />

D. Luísa de Gusmão, sua mãe.<br />

O rei, D. Afonso VI, crescia revolta<strong>do</strong> e admitia no paço rapazes de baixa estirpe, que<br />

eram trata<strong>do</strong>s como fidalgos legítimos. Um desses rapazes era Antônio Conti, um italiano que<br />

acabou ganhan<strong>do</strong> a confiança <strong>do</strong> rei e que lhe influenciava, inclusive em decisões políticas.<br />

Observan<strong>do</strong> a debilidade em governar <strong>do</strong> rei, a rainha promete o trono ao seu outro<br />

herdeiro, D. Pedro. Por outro la<strong>do</strong>, o Conselho <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> censura a vida desregrada <strong>do</strong> rei e<br />

seu convívio com Conti, agora Conde de Castelo Melhor, o qual ganhara o cargo de confiança<br />

de “escrivão da puridade”.<br />

Castelo Melhor, após a vitória de Portugal sobre a Espanha, em uma luta que<br />

atravessavou anos, apeli<strong>do</strong>u D. Afonso VI de O Vitorioso, e tratou de arranjá-lo um<br />

casamento, mesmo saben<strong>do</strong> de sua impotencialidade em procriar.<br />

D. Afonso VI casou-se por procuração, em 1666, com Maria Francisca Isabel, que se<br />

tornou uma rainha autoritária e ambiciosa. Poucos meses depois de subir ao trono, a rainha


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 178<br />

pede a anulação de seu casamento; ela também consegue afastar to<strong>do</strong>s os amigos <strong>do</strong> rei,<br />

inclusive Castelo Melhor (que é demiti<strong>do</strong>) e alia-se ao Conselho de Esta<strong>do</strong> para conseguir a<br />

abdicação <strong>do</strong> rei.<br />

O rei Vitorioso, considera<strong>do</strong> debilita<strong>do</strong> mentalmente, fica deti<strong>do</strong> no paço enquanto seu<br />

irmão, D. Pedro, assume o trono e, depois de anula<strong>do</strong> o casamento <strong>do</strong> rei, casa-se com a<br />

cunhada.<br />

D. Afonso faleceu em 1683.<br />

Existem diversas semelhanças entre a peça e este momento da história de Portugal.<br />

Mesmo no texto dramático não sen<strong>do</strong> aludi<strong>do</strong> os nomes das personalidades históricas,<br />

conseguimos aproximar a figura <strong>do</strong> Rei com a de D. Afonso VI, a Rainha com D. Maria<br />

Francisca Isabel, o Bobo com Castelo Melhor, o Duque com D. Pedro e o Conselho de Esta<strong>do</strong><br />

com os conselheiros <strong>do</strong> Rei. Todavia, da mesma forma como ocorre com o episódio bíblico,<br />

na peça, a história de Portugal ganha outros significa<strong>do</strong>s. O Bobo, por exemplo, ao contrário<br />

de Castelo Melhor – o qual tirava proveito e obtinha privilégios em sua amizade com D.<br />

Afonso –, aparece no texto regiano como um salva<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Rei.<br />

Outra novidade reside na aproximação entre os fatos bíblicos e históricos a partir da<br />

seguinte fala <strong>do</strong> Bobo ao Rei:<br />

Não te lembras, rei? Naquela noite em que lutávamos, há séculos, e que vem<br />

lá no livro, toquei o nervo da tua coxa. Os meus de<strong>do</strong>s são de espírito. O<br />

espírito queima tu<strong>do</strong> que não seja espírito: o nervo da tua coxa mirrou no<br />

sítio onde os meus de<strong>do</strong>s tocaram... Vem lá no livro, lembras-te?, no tal livro<br />

que achaste idiota! E depois, venceste-me. Venceste o Anjo <strong>do</strong> Senhor. Só<br />

são chefes no mun<strong>do</strong> os que vencem os Anjos <strong>do</strong> Senhor... Há que séculos és<br />

tu chefe? Mas continua mirra<strong>do</strong> no teu corpo o nervo que o Anjo <strong>do</strong> Senhor<br />

tocou... Nenhum físico te curará, por mais concursos públicos que<br />

<strong>do</strong>cumentem a tua sabe<strong>do</strong>ria. E por essa parte morta da tua carne humana<br />

estás tu aberto às potências divinas: vives para a vida eterna! Rei, bem sabes<br />

que não entrei pela janela deste quarto. Entrei vivo por essa nesga morta da<br />

tua carne humana; entrei à tua alma para a roubar ao teu corpo. Em bem<br />

podes fechar todas as janelas, todas as portas, to<strong>do</strong>s os quartos... (Régio,<br />

1978, p. 45-6).<br />

Com tal discurso <strong>do</strong> Bobo, este acaba atrelan<strong>do</strong> num mesmo elemento – o problema na<br />

perna <strong>do</strong> Rei – os mitos bíblico e histórico, visto que tanto Jacó como D. Afonso VI eram<br />

coxos.<br />

Jacó tornou-se manco após a luta com o Anjo; na peça, o Rei conseguiu sobreviver<br />

depois <strong>do</strong> combate, mas não saiu dele completamente ileso. Já D. Afonso ficou coxo ainda


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 179<br />

criança e esse foi um <strong>do</strong>s motivos pelos quais o Conselho o considerou incapaz. Na peça, esta<br />

imperfeição física o deixa fragiliza<strong>do</strong> e envergonha<strong>do</strong> perante a corte.<br />

Pela perna <strong>do</strong> Rei, “essa parte morta da tua carne humana”, o Bobo/Anjo entra em<br />

contato com a alma <strong>do</strong> Rei, a qual ele considera ser também tua, já que se considera parte da<br />

existência real.<br />

O Rei, durante to<strong>do</strong> o texto dramático, procura rejeitar o seu Bobo e não acreditar em<br />

suas verdades. Todavia, trabalhan<strong>do</strong> com a linguagem e inserin<strong>do</strong> estes <strong>do</strong>is mitos, os quais<br />

fazem parte, na peça, da vida <strong>do</strong> Rei, acaba-se instauran<strong>do</strong> no texto uma outra questão: a da<br />

identidade <strong>do</strong> Rei. Como a atmosfera mítica toma conta da peça, há uma ausência de intrigas<br />

e o conflito maior acaba se desenvolven<strong>do</strong> nas profundezas da alma <strong>do</strong> personagem real.<br />

A aproximação com o mito serve para explicar o conflito interior que o Rei sofre, o<br />

qual será por nós estuda<strong>do</strong> a seguir.<br />

A IDENTIDADE HUMANA E O MEDO DA MORTE<br />

A questão da crise de identidade perpassa to<strong>do</strong> o texto regiano, o qual, no seu decorrer,<br />

nos mostra o abatimento <strong>do</strong> Rei quan<strong>do</strong> encontra o seu duplo, ou seja, a face íntima de sua<br />

existência que lhe trará o desfalecimento.<br />

O mito <strong>do</strong> sujeito duplo é um <strong>do</strong>s principais da literatura desde a Antiguidade;<br />

contu<strong>do</strong>, “terá sua apoteose no século XIX, na esteira <strong>do</strong> movimento romântico, embora o<br />

mito ainda seja bastante produtivo no século XX” (Bravo, 1998, p. 261).<br />

Em Jacob e o Anjo, ao aparecer em seus aposentos um Anjo, o Rei apavora-se e grita<br />

por socorro. Eles lutam sobre o leito real e o Anjo acaba <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> o Rei. Ao abrir o<br />

primeiro ato, um Bobo aparece na janela <strong>do</strong> Rei – mesmo lugar que o Anjo surgira – e<br />

também apavora a majestade. As semelhanças físicas entre o Anjo e o Bobo são claras:<br />

[O Bobo] Veste qualquer trajo inspira<strong>do</strong> no <strong>do</strong>s bobos medievais; mas tem,<br />

<strong>do</strong>s pulsos aos flancos, as mesmas asas-barbatanas <strong>do</strong> Anjo, que abrem e<br />

fecham conforme ele ergue ou deixa cair os braços. As <strong>do</strong> Anjo eram<br />

brancas; estas são da cor <strong>do</strong> fato. (Régio, 1978, p. 20).<br />

A partir destas descrições, podemos considerar que o Anjo e o Bobo são a mesma<br />

figura. Como se com o amanhecer <strong>do</strong> dia o Anjo tenha se transforma<strong>do</strong> em bobo da corte,<br />

continuan<strong>do</strong>, assim, a aterrorizar o Rei.<br />

O pavor que o Anjo inspirou ao Rei é o mesmo que o inspira o Bobo; frente a isso, a<br />

única reação da realeza é gritar e pedir para que o truão se afaste dele.


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Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 180<br />

As identidades <strong>do</strong> Anjo e <strong>do</strong> Bobo se confundem. Isso pode ser percebi<strong>do</strong> ao longo de<br />

toda a peça, pois por meio da figura <strong>do</strong> Bobo, parece que quem fala é o Anjo.<br />

Essa dualidade de identidades Bobo/Anjo também se estenderá ao personagem <strong>do</strong> Rei,<br />

que não consegue livrar-se, de maneira alguma, da personalidade estranha que o persegue, o<br />

atormenta e o satiriza, chaman<strong>do</strong>-o de “rei de baralho-de-cartas” e “rei <strong>do</strong>s cegos”.<br />

O Bobo acabará se revelan<strong>do</strong> como o duplo <strong>do</strong> Rei, como uma parte de sua<br />

interioridade que o Rei não consegue aceitar. A figura real acredita que a salvação para a sua<br />

crise de identidade está em matar o Bobo. Todavia, segun<strong>do</strong> o truão, este ato acarretaria o<br />

suicídio <strong>do</strong> próprio Rei:<br />

Bobo<br />

— Não me podes matar!<br />

Rei<br />

— Também tu tens me<strong>do</strong> da morte, como os outros? Um Anjo com me<strong>do</strong> da<br />

morte!<br />

Bobo<br />

— Não é por mim. É por ti.<br />

Rei<br />

— Por mim?! Não te preocupes.<br />

Bobo<br />

— Por ti. Seria um suicídio. O único suicídio que há.<br />

Rei<br />

— Continuas com as tuas histórias obscuras? Mas tens razão! Sim, não te<br />

matarei...<br />

Bobo<br />

— Bem sei. Matarias a tua própria alma, que é imortal. (Régio, 1978, p. 56-<br />

7).<br />

Ao matar o Bobo, o Rei estaria matan<strong>do</strong> a si próprio. Esta constatação não deixa<br />

dúvida que o Rei e o Bobo são fragmentos de uma mesma personalidade, que um completa o<br />

outro e ambos não podem manter-se separa<strong>do</strong>s.<br />

Esta dialética <strong>do</strong> “eu” e <strong>do</strong> “outro” em que convivem os personagens acabará por<br />

mostrar que o Rei não conseguirá jamais se livrar de seu duplo, mesmo que sua presença o<br />

incomode. Entretanto, apenas quan<strong>do</strong> o Rei aceitá-lo, não como um rival, mas como um<br />

redentor é que ele alcançará o seu autoconhecimento e sua crise de identidade findará.<br />

Contu<strong>do</strong>, até isto acontecer o Rei renegará com todas as suas forças o Bobo.<br />

A figura <strong>do</strong> truão traz ao Rei ao mesmo tempo atração e repulsa. Ele não suporta a<br />

presença de seu “outro”, mas também não consegue se distanciar dele. O convívio entre os<br />

<strong>do</strong>is é tão intenso que o Rei é considera<strong>do</strong> louco pela Rainha e pelos seus Conselheiros, visto


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 181<br />

que, segun<strong>do</strong> os membros da corte, o Rei não goza de seu melhor esta<strong>do</strong> mental por dar<br />

tréguas a um mero Bobo.<br />

No entanto, este Bobo não é como os outros truões, ele possui poderes sobrenaturais,<br />

consegue ver por entre as paredes e ler pensamentos. Em certo momento da peça, o Rei pede<br />

para que os Guardas levem o Bobo, mas este argumenta que a separação física não será capaz<br />

de distanciá-los. Ele diz à majestade: “ – Sei os teus segre<strong>do</strong>s melhor <strong>do</strong> que tu. Leio no teu<br />

pensamento. Posso ouvir seja o que for. Por que não hei-de ficar?” (Régio, 1978, p.148).<br />

O Rei é deposto <strong>do</strong> trono e manda<strong>do</strong> para um <strong>do</strong>s calabouços <strong>do</strong> palácio. To<strong>do</strong>s o<br />

viraram as costas: seus conselheiros o traíram; sua esposa, a Rainha, conspirou contra ele; seu<br />

irmão, o Duque, tomou-lhe o trono e casou-se com a Rainha e o povo se revoltou contra ele.<br />

Em meio desse abismo que encontra o seu ser, o Rei só tem o apoio <strong>do</strong> Bobo, que não o<br />

aban<strong>do</strong>nou. Entretanto, a majestade insiste em desejar a morte <strong>do</strong> Bobo, e este argumenta:<br />

Bobo<br />

⎯ Virei; esteja onde estiver; suceda o que suceder. Nada te pode separar de<br />

mim! Suceda o que suceder; esteja onde estiver; virei contar-te a história de<br />

Jacob e o Anjo. A noite é longa. Num instante se pode transpor infinitas<br />

distâncias! Virei lutar até de manhã.... (Régio, 1978, p. 169).<br />

As palavras <strong>do</strong> Bobo são em vão, ele é leva<strong>do</strong> e morto (fora de cena). Momentos<br />

depois, o Rei recebe novamente a visita <strong>do</strong> Bobo, que surge como um espírito e ninguém mais<br />

consegue vê-lo nem ouvi-lo, exceto o Rei.<br />

A partir desse momento, o Rei entrega-se de corpo e alma ao Bobo; ele desiste de sua<br />

luta contra o seu duplo, pois sabe que ela é inútil: “– Que alívio poder deixar de lutar” (Régio,<br />

1978, p.183).<br />

Emociona<strong>do</strong>, o Rei pede perdão ao Bobo e assume-o como uma parte de si próprio:<br />

Eu é que sou perverso, meu senhor; profundamente perverso! Eu é que<br />

nunca pude ver a tua resplandecente nudez sem te vestir com a minha<br />

perversidade... Ainda agora sou eu que te imponho máscaras! Tu é que sabes<br />

como apesar de tu<strong>do</strong> posso ver-te, e como sempre te vi; amar-te, e como<br />

sempre te amei! Ah, que alívio poder falar a verdade uma vez na vida! Mas<br />

toda a minha verdade não é senão tua! Desde que me conheço que te sinto a<br />

meu la<strong>do</strong>. Nada nem ninguém no mun<strong>do</strong> amei que não fosse amar-te! Nunca<br />

deixei de entender senão por não entender-te. Nunca me afastei de ninguém<br />

senão por me afastar de ti. Nunca odiei os meus irmãos senão porque te<br />

ofendiam tanto como eu. Nunca pratiquei o mal senão porque me opunha à<br />

tua vontade. Nunca estive triste, realmente triste!, senão porque te não<br />

alcançava! Estas ainda são palavras humanas, meu senhor: palavras da<br />

minha fraqueza e da minha ignorância, da minha ruindade e <strong>do</strong> meu<br />

desatino... Tu próprio a quem falo ainda não és tu! Mas toda a essência das


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 182<br />

minhas palavras me vem de ti. Tu és a minha única luz na noite que me<br />

cerca! Só tu foste a minha verdadeira consolação em todas as angústias. Não<br />

há amor, nem amizade, nem alegria, nem riqueza, nem glória, nem vida, nem<br />

ser, ⎯ que me não sejam <strong>do</strong>ns teus! Perdão, meu senhor! Estas ainda são<br />

palavras humanas. Nem no perdão que te peço podes ainda crer. A minha<br />

carne está podre e ainda tem me<strong>do</strong>! me<strong>do</strong> <strong>do</strong> frio da terra, <strong>do</strong> escuro e <strong>do</strong>s<br />

bichos... Dentro dum momento sou capaz de voltar a renegar-te. Mas eu<br />

estou pronto, meu senhor! Cumpre em mim a tua vontade. Leva-me<br />

enquanto me alumia este raio da tua graça! Leva-me contigo e depressa...<br />

tenho pressa... (Régio, 1978, p. 184-5)<br />

O Rei sabe que a morte lhe está perto, pois chegou o momento de reconciliar-se com o<br />

seu duplo. Durante toda a sua vida o pavor à morte fez com que o Rei não abrisse o seu<br />

coração para a sua mais profunda interioridade, mas agora percebe que não há mais como<br />

fugir <strong>do</strong> enfraquecimento de seu corpo.<br />

A morte, segun<strong>do</strong> o que a peça nos quer mostrar, anda ao nosso la<strong>do</strong> em toda a nossa<br />

vida, pois morte e vida são esferas de um mesmo complexo que é o ser humano. Somente<br />

quan<strong>do</strong> o sujeito faz as pazes consigo próprio – com o “outro” que o habita o íntimo – é que<br />

ele se torna capaz de se autoconhecer. E esse autoconhecimento, de acor<strong>do</strong> com a peça, só<br />

acontecerá quan<strong>do</strong> a morte estiver bem próxima.<br />

Após pedir perdão ao Bobo, o Rei desfalece aos seus braços e a peça termina quan<strong>do</strong> o<br />

Físico e o Enfermeiro carregam o cadáver da realeza.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Como temos procura<strong>do</strong> observar, existe muito de poético no texto teatral Jacob e o<br />

Anjo, de José Régio: a elaboração da linguagem tanto nas falas <strong>do</strong>s personagens quanto nas<br />

rubricas; a presença de elementos próprios da poesia como a metáfora e o paralelismo; a<br />

temática da identidade e da morte; o envolvimento com a esfera mítica; a ausência de grandes<br />

conflitos e intrigas; o tempo pouco defini<strong>do</strong>; um reduzi<strong>do</strong> número de personagens. Tu<strong>do</strong> isso<br />

nos levam a acreditar que esta peça regiana, além de ter seus inegáveis particulares teatrais,<br />

como a precisa marcação cênica, ela também possui traços poéticos bem defini<strong>do</strong>s.<br />

Este texto dramático consegue envolver o leitor de tal maneira que às vezes<br />

esquecemos que ele foi escrito para ser representa<strong>do</strong>. Durante muitos momentos da peça nos<br />

identificamos com o personagem <strong>do</strong> Rei, pois sofremos <strong>do</strong>s mesmos me<strong>do</strong>s e conflitos que ele<br />

sofre. Isto porque este texto reflete o homem universal, que está sempre em busca de seu<br />

autoconhecimento, de apreciar a sua verdadeira essência, que em certos momentos da vida<br />

fala mais alto <strong>do</strong> que a razão e, além disso, enfrentamos a cada segun<strong>do</strong> dentro de nós um


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 183<br />

grande me<strong>do</strong>: o me<strong>do</strong> de o desconheci<strong>do</strong> nos abraçar, de nos levar para um mun<strong>do</strong> que não<br />

conhecemos, que é o da morte.<br />

Por meio de um trabalho minucioso com a linguagem, o poeta-dramaturgo José Régio<br />

consegue nos transportar para uma esfera mítica, na qual a subjetividade é o grande centro, o<br />

que faz com que reflitamos sobre nós mesmos e nos despertemos para uma busca sobre<br />

nossos questionamentos mais íntimos que nos atormentam.<br />

A poeticidade em Jacob e o Anjo é muito presente e proporciona ao leitor profundas<br />

reflexões. Esta particularidade <strong>do</strong> teatro regiano, como a consideramos, faz com que tal texto<br />

pertença ao mais alto nível das produções literárias mundiais; contu<strong>do</strong>, ele ainda sofre com a<br />

relativa inobservância da crítica.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BALAKIAN, A. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000. Título original: The Symbolist<br />

Moviment – A critical appraisal (1967).<br />

BRAVO, N. F. Duplo. In: BRUNEL, P. (dir). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro:<br />

José Olympio, 1998, p. 261-87.<br />

COUFFIGNAL, R. Jacó. In: BRUNEL, P. (dir). Dicionário de mitos literários. Rio de<br />

Janeiro: José Olympio, 1998, p. 512-6.<br />

DABEZIES, A. Mitos primitivos a mitos literários. In: BRUNEL, P. (dir). Dicionário de<br />

mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998, p. 730-35.<br />

PAZ, O. O arco e a lira. 2 ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.<br />

RÉGIO, J. Jacob e o Anjo – mistério em três actos, um prólogo e um epílogo. Porto: Brasília<br />

Editora, 1978. (Obras Completas)


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 184<br />

A LEITURA COGNITIVA ATRAVÉS DA HERMENÊUTICA<br />

DE PAUL RICOUER: COMPREENDER A REALIDADE<br />

POR MEIO DA LINGUAGEM<br />

Sirlene Cristófano 1<br />

RESUMO: Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> pressuposto de que um <strong>do</strong>s objetivos da leitura é a compreensão,<br />

podemos questionar como se dá a relação leitura-compreensão. O artigo pretende conceituar<br />

Hermenêutica e mostrar como alguns filósofos nos orientam sobre o senti<strong>do</strong>, a interpretação e<br />

compreensão de qualquer texto literário; tem por objetivo apresentar a literatura infantojuvenil<br />

e sua importância para a construção de novas idéias, nova visão de mun<strong>do</strong> e abordar a<br />

Hermenêutica de Paul Ricoeur como base meto<strong>do</strong>lógica para a leitura cognitiva e análise e<br />

compreensão deste tipo de literatura na escola.<br />

Palavras-chave: Hermenêutica; Leitura Cognitiva; Literatura.<br />

SUMMARY: Assuming that one goal of reading understands, we can ask how the relationship<br />

reading-comprehension is. The article aims to conceptualize Hermeneutics and show how<br />

some philosophers guide us about the meaning, interpretation and understanding of any<br />

literary text, intends to present the children's literature and its importance to the construction<br />

of new ideas, new vision the world and address the Hermeneutics of Paul Ricoeur as a<br />

metho<strong>do</strong>logical basis for reading and cognitive analysis and understanding of this type of<br />

literature in school.<br />

Keywords: Hermeneutics, Reading Cognitive; Literature.<br />

INTRODUÇÃO<br />

Ao considerarmos Hermenêutica como teoria ou méto<strong>do</strong> de interpretação, ten<strong>do</strong> em<br />

vista a compreensão de textos e que como tradução é a compatibilização entre códigos, de<br />

maneira a revelar seus senti<strong>do</strong>s, levantaremos duas questões fundamentais para o ensino no<br />

que diz respeito à leitura de textos literários na escola: Como se dá a relação leitura-<br />

compreensão? Haveria um méto<strong>do</strong> apropria<strong>do</strong> no que tange a despertar o gosto e interesse<br />

1 Mestre em Literatura, pela Faculdade de letras Universidade <strong>do</strong> Porto – FLUP. Possui Pós-Graduação em<br />

Literatura pelo Centro Universitário UNIFIEO, em Osasco (2002) e também formada em Letras pela mesma<br />

instituição (2001). Tem experiência na área da Educação desde 1988. Atua principalmente nos seguintes<br />

temas: Educação, Psicanálise, Literatura, Antropologia <strong>do</strong> Imaginário e Simbologia.<br />

Email: sirlene.cristofano@gmail.com


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 185<br />

pela leitura e a formar pequenos leitores, proporcionan<strong>do</strong>-lhes o enobrecimento <strong>do</strong> seu<br />

universo interior e consequentemente, o alargamento de suas vivências e de seus<br />

conhecimentos? Haveria uma forma <strong>do</strong> pequeno leitor aproximar-se <strong>do</strong> livro infantil não<br />

apenas por obrigatoriedade e dever destina<strong>do</strong>s ao aprendiza<strong>do</strong> da Língua Portuguesa entre<br />

outras disciplinas, mas sim para extrair momentos de prazer e descobertas sobre si mesma e<br />

sobre o mun<strong>do</strong> que a cerca?<br />

Ao refletirmos sobre a prática de leitura, observa-se que muitos <strong>do</strong>centes ao dar aos<br />

alunos a oportunidades de leituras uma obra possível de identificação, pecam ao relacioná-la a<br />

ações de releitura limitantes, fechadas no senti<strong>do</strong> latente <strong>do</strong> texto.<br />

Este fator acarreta alguns problemas, por demonstrar a falta de interesse pela<br />

atividade de leitura e diante disto, as alternativas propostas para solucionar esses problemas<br />

não produzem resulta<strong>do</strong>s.<br />

To<strong>do</strong> pacto de leitura literária, depende <strong>do</strong> despertar da curiosidade, <strong>do</strong> encantamento<br />

e <strong>do</strong> prazer. A contemplação da literatura resulta da satisfação em desvendá-la que só é<br />

ativada pelo sujeito que lê a partir da sua identificação com o texto. Ao tratarmos da leitura da<br />

literatura infantil, tal identificação <strong>do</strong> leitor mirim, decorre <strong>do</strong> respeito, por parte <strong>do</strong> escritor, à<br />

natureza ímpar <strong>do</strong> pequeno leitor. Para que este se identifique, se evolva e interaja com a<br />

história, essa tem que estar adequada aos seus interesses.<br />

No que tange ao oferecimento e ao trabalho com o livro infantil em sala de aula, a<br />

simetria entre o escritor e o leitor é quase sempre esquecida pelas escolas. Mesmo que o<br />

professor proporcione ao leitor o acesso a obra de possível identificação, prazeiroza e<br />

amancipatória, comete o engano ao relacioná-la ao processo de releituras fechadas no senti<strong>do</strong><br />

latente <strong>do</strong> texto e, assim, afastan<strong>do</strong> a obra <strong>do</strong> contentamento, aproximan<strong>do</strong>-a da<br />

obrigatoriedade e dever, privan<strong>do</strong> o leitor da oportunidade de descobrir o verdadeiro prazer da<br />

leitura.<br />

Frente as estas constatações e ao compreedermos que a Hermenêutica é a teoria das<br />

operações em sua relação com a interpretação de textos, apresentaremos brevemente alguns<br />

princípios de Hermenêutica, segun<strong>do</strong> alguns filósofos e também um méto<strong>do</strong> de ensino de<br />

leitura da literatura infantil, o qual baseia-se na hermenêutica de Paul Ricoeur, relacionanda à<br />

cognição infantil e exploração <strong>do</strong> imaginário. De acor<strong>do</strong> com Paul Ricoeur, o leitor, para<br />

obter o prazer da leitura, necessita ter a capacidade para interpretá-la. Nesse senti<strong>do</strong>, a<br />

hermenêutica defendida por Paul Ricouer é a melhor maneira de despertar a leitura e neste<br />

caso trata<strong>do</strong>, a leitura infantil. Para o referi<strong>do</strong> autor, a leitura deve ser condicionada não


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 186<br />

somente pelo leitor mirim, mas também pela literalidade da obra, de mo<strong>do</strong> a garantir a<br />

participação <strong>do</strong> pequeno leitor no momento da leitura.<br />

Abordaremos aqui a questão da leitura na escola, consideran<strong>do</strong>-a como uma prática<br />

<strong>do</strong> texto literário condizente com a concepção que se tem de literatura infantil, por meio da<br />

exploração e imaginário <strong>do</strong> ludismo, como instaura<strong>do</strong>r de uma relação saudável entre o leitor<br />

e a obra, despertan<strong>do</strong>-se assim, o gosto pela leitura.<br />

A RELAÇÃO LEITURA COGNITIVA E COMPREENSÃO<br />

Antes de entrarmos na questão sobre a “hermenêutica” é importante elucidar o que<br />

compreendemos por “ler”. Num senti<strong>do</strong> específico, dentro de um sistema alfabético, ler é<br />

conceder uma relação entre sinais gráficos (alfabeto) e os sons distintivos de um sistema<br />

liguístico e com isso produzir um significa<strong>do</strong>. Podemos ainda entender o ato da leitura, como<br />

a instauração de uma relação entre sons, cores ícones, gestos, letras e os mais varia<strong>do</strong>s tipos<br />

de símbolos à uma idéia, ou seja, à um significa<strong>do</strong>. Esse senti<strong>do</strong> amplia<strong>do</strong> de leitura<br />

proporciona a “leitura de mun<strong>do</strong>” ou a “minha prórpria leitura”, portanto,“ler” não é apenas<br />

obter um senti<strong>do</strong> das palavras, mas também, alcançar novos símbolos por meio <strong>do</strong>s quais se<br />

poder ter um mun<strong>do</strong> novo daquele em que a leitura se instala e se organiza.<br />

A este respeito recordemos as palavras de Bamberger (2000) ao ressaltar que, o ato de<br />

ler é um componente da vida em sociedade, ao preencher a função de comunicação na medida<br />

em que o indivíduo consegue utilizar tal função. O autor destaca ainda, que a leitura funciona<br />

como uma passagem de acesso ao mun<strong>do</strong> letra<strong>do</strong> e aos bens culturais.<br />

A leitura além de trazer conhecimento, associações de idéias, também ajuda a<br />

despertar a sensibilidade e um indivíduo acostuma<strong>do</strong> a ler busca respostas para suas dúvidas<br />

sempre que necessário. Além <strong>do</strong> mais, vivemos em uma época que se valoriza o<br />

conhecimento, e a leitura pode formar indivíduos pensantes e mais prepara<strong>do</strong>s para a vida.<br />

A psicologia cognitiva estuda os processos de aprendizagem e de aquisição de<br />

conhecimentos, ou seja, estuda a leitura cognitiva. Podemos dizer que coginição – palavra de<br />

origem nos escritos de Platão e Aristóteles - é o ato ou processo de conhecer, que envolve<br />

atenção, percepação, memória, raciocíonio, imaginação, pensamento e também linguagem.<br />

Após estes esclarecimentos, é necessário ressaltar que a cognição é mais <strong>do</strong> que<br />

simplesmente a aquisição de conhecimento e consequentemente, a nossa melhor adaptação ao


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 187<br />

meio - mas é também um mecanismo de conversão <strong>do</strong> que é capta<strong>do</strong> para o nosso mo<strong>do</strong> de<br />

ser interno. Ela é um processo pelo qual o ser humano interage com os seus semelhantes e<br />

com o meio em que vive, sem perder a sua identidade existencial. Ela começa com a captação<br />

<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e logo em seguida ocorre a percepção. É portanto, um processo de conhecimento,<br />

que tem como material a informação <strong>do</strong> meio em que vivemos e o que já está registra<strong>do</strong> na<br />

nossa memória, o que denominamos leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

Leitura cognitiva, portanto transcorre em meio à busca pelo senti<strong>do</strong>, ou seja, ler é é<br />

entrar no texto, percorrê-lo em seu amaranha<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> como guia, um méto<strong>do</strong> composto por<br />

significa<strong>do</strong>s já estabeleci<strong>do</strong>s, suas vivências, historicidade, leituras já realizadas, gostos e<br />

convenções, função esta, denominada por Paul Ricouer como “hermenêutica”.<br />

De acor<strong>do</strong> com Richard Palmer, a etimologia da palavra “hermenêutica” remete ao<br />

grego hermeneuein, “interpretar”, ou hermeneia, “interpretação”. A palavra também é<br />

associada a Hermes, o deus grego mensageiro, cuja função é “transformar tu<strong>do</strong> aquilo que<br />

ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender” e a<br />

quem “os gregos atribuíram a descoberta da linguagem e da escrita” (PALMER, 1969: 23).<br />

O texto pode ser analisa<strong>do</strong> a partir de qualquer ângulo, mas dificilmente por to<strong>do</strong>s os<br />

ângulos, ao mesmo tempo. Isto define a diferença entre as interpretações: cada leitor<br />

interpreta com base em um <strong>do</strong>s ângulos, definin<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>s que dependem deste ponto de<br />

vista e da “leitura”.<br />

COMPREENDENDO E INTERPRETANDO AS FASES DA HERMENÊUTICA<br />

Em seu significa<strong>do</strong> técnico, hermenêutica se explica como a ciência e a arte de<br />

interpretação bíblica que, a partir da Idade Média, se fundamenta na distinção de quatro níveis<br />

de significação, cuja exegese deve possiblitar aos fiéis aceder a uma verdadeira compreensão<br />

da mensagem divina: os senti<strong>do</strong>s lateral, alegórico, tropológico e anagógicos. Esta<br />

interpretação foi entendida diversamente através <strong>do</strong>s tempos. Por isso, temos três tipos de<br />

exegese: rabínica, protestante e católica.<br />

Considera-se a hermenêutica como ciência porque ela tem normas, ou regras, e essas<br />

podem ser identificadas num sistema ordena<strong>do</strong>. É considerada como arte porque a


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 188<br />

comunicação é flexível, e, portanto, uma aplicação mecânica e rígida das regras poderá alterar<br />

o verdadeiro senti<strong>do</strong> de uma comunicação.<br />

Portanto, de uma teoria da exegese bíblica, uma possibilidade de o leitor encontrar<br />

um senti<strong>do</strong> oculto no texto, passou a ser uma meto<strong>do</strong>logia filológica, isto é, uma técnica de<br />

leitura, orientada para a compreensão das obras de Homero, da Antiguidade clássica e <strong>do</strong>s<br />

textos bíblicos e buscan<strong>do</strong> compreender o texto a partir de um contexto histórico. Assim,<br />

podemos dizer que a Hermenêutica passou a ser vista como uma ciência da compreensão<br />

linguística.<br />

Segun<strong>do</strong> Ricoeur, são basicamente duas as teorias hermenêuticas antecedentes: a<br />

filológica e a exegese bíblica. Ambas, delimitam-se no essencial a um aglomera<strong>do</strong> de regras<br />

que facultam realizar a interpretação em conformidade com o conteú<strong>do</strong> e a forma de proceder<br />

dentro da circunscrição de cada área. A teoria filológica diz respeito à interpretação <strong>do</strong>s textos<br />

clássicos da antiguidade. A exegese, por sua vez, está concentrada especificamente aos textos<br />

sagra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> antigo e <strong>do</strong> novo testamento. Até então, não se assimilava, pela restrição que os<br />

textos bíblicos recebiam da inspiração divina, a perspectiva da construção de um aparato<br />

teórico capaz de interpretar qualquer texto como um texto qualquer, seja sagra<strong>do</strong> ou profano.<br />

O teólogo protestante Friedrich Schleiermacher (1768-1834) trouxe, no início <strong>do</strong><br />

século XIX, como questão central da Hermenêutica, a compreensão. A hermenêutica passa a<br />

apontar to<strong>do</strong> o campo da expressão humana. A atenção está não apenas para o texto, mas para<br />

o seu autor. Ou seja, ler um texto, é entender-se com um autor e esforçar-se por reencontrar a<br />

sua intenção, é procurar compreender um espírito por intermédio da descodificação das obras<br />

nas quais ele se exprimiu. A Hermenêutica passou, então, a ser a arte de compreender, sen<strong>do</strong><br />

assim, abrange duas etapas: compreensão <strong>do</strong> discurso em sua relação com a língua e<br />

compreensão <strong>do</strong> sujeito o qual produziu este discurso.<br />

Antes de Schleiermacher, a Hermenêutica era uma filologia de textos clássicos,<br />

basicamente méto<strong>do</strong>:<br />

O verdadeiro movimento de desregionalização começa com o esforço para<br />

se extrair um problema geral da atividade de interpretação, cada vez<br />

engajadas em textos diferentes o discernimento dessa problemática central e<br />

unitária deve-se à obra de F. Schleiermacher (RICOEUR, 1988: 20).<br />

Segun<strong>do</strong> Ricoeur, é Schleiermacher quem inicia e realiza o projeto de uma<br />

hermenêutica geral (universal). Schleiermacher busca alicerçar a hermenêutica, de mo<strong>do</strong> que


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possa localizar-se ou ser aplicada em qualquer obra. Conforme alguns pesquisa<strong>do</strong>res de<br />

Schleiermacher, neste projeto, situa-se o caráter original de uma hermenêutica filosófica,<br />

contrarian<strong>do</strong>-se aos que reduzem a uma hermenêutica exclusivamente técnica. Ainda que, ela<br />

também tenha uma preocupação essencialmente técnica, de resolver o problema da<br />

interpretação e da compreensão, Ricoeur afirma que não o é exclusivamente, pois<br />

Schleiermacher fundamenta a hermenêutica num aspecto propriamente filosófico. Ele,<br />

Schleiermacher (1999), fundamenta seu projeto, perguntan<strong>do</strong> não apenas como se interpreta<br />

tal ou tal texto, mas, o que significa de mo<strong>do</strong> geral interpretar e compreender, isto é, pergunta<br />

pelas circunstâncias de possibilidade e/ou pelo “como” das eficácias da interpretação.<br />

Esta forma de fundamentar, com o desejo de fundar uma hermenêutica geral, é o<br />

grande feito <strong>do</strong> hermeneuta alemão, efetivan<strong>do</strong> a deslocalização da hermenêutica da área de<br />

saberes distintos e restritos, e tornada equivalente a uma ciência que contenha os princípio<br />

fundamentais para toda e qualquer interpretação:<br />

O verdadeiro movimento de desregionalização começa com o esforço para<br />

se extrair um problema geral da atividade de interpretação, cada vez<br />

engajadas em textos diferentes o discernimento dessa problemática central e<br />

unitária deve-se à obra de F. Schleiermacher. (RICOEUR, 1988: 20)<br />

O desenvolvimento da hermenêutica que antecede Schleiermacher constitui um<br />

campo de teorias diferentes, em concordância com a diversidade textual indaga<strong>do</strong>ra de<br />

interpretação. Foram expoentes e precursores de Schleiermacher, entre outros, Friedrich Ast e<br />

August Wolf. Estes compreendem a hermenêutica como teorias especiais (específicas), uma<br />

teoria para a poesia, para textos bíblicos, etc. Para estas, de fato, cabe a individualização de<br />

uma hermenêutica essencialmente técnica, ou seja, fundamentada pela elaboração de regras<br />

para o exercício da interpretação em sua respectiva área de saber.<br />

É, entretanto, com a obra <strong>do</strong> filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911) que a<br />

hermenêutica alcança o regulamento de um méto<strong>do</strong> de conhecimento especialmente apto para<br />

dar conta <strong>do</strong> facto humano, inflexível em si mesmo aos fenómenos naturais. Dilthey buscou a<br />

ampliação da Hermenêutica, associan<strong>do</strong>-a à visão histórica e toman<strong>do</strong>-a como auxiliar na<br />

compreensão da vida, ou seja, o texto a interpretar é a própria realidade humana no seu<br />

desenvolvimento histórico. Este pensa<strong>do</strong>r insere com efeito uma evidência: Se nos é possível<br />

compreender o outro, é porque temos a oportunidade de imaginar a sua vida interior a partir<br />

da nossa, por uma transferência analógica.


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 190<br />

Dilthey passou a encarar a compreensão como referência às objetivações da vida, à<br />

medida que o sujeito vive em sua dimensão histórica. Seguia-se a Hermenêutica como base<br />

para as disciplinas cujo objeto era a compreensão da arte, <strong>do</strong> comportamento e da escrita<br />

humana e seu pressuposto não era a compreensão <strong>do</strong> discurso em sua reação com a língua,<br />

mas em sua relação com a vida.<br />

Portanto, toda manifestação da vida possui um significa<strong>do</strong> que é expresso em forma<br />

de signo, ou seja, a própria vida só existe em si mesma. A compreensão é um tipo particular<br />

de explicação relativa à ação humana e que não se encontra acima nem independe <strong>do</strong> nível<br />

causal:<br />

[...] a noção de compreensão aplica-se exclusivamente [...] à operação de<br />

projecção através da qual o actor analisa o comportamento, a atitude ou os<br />

atos de um outro indivíduo. Neste senti<strong>do</strong>, a compreensão é sempre<br />

compreensão <strong>do</strong> ator individual. Uma ação individual pode ser<br />

compreendida; um comportamento coletivo deve ser explica<strong>do</strong> (BOUDON,<br />

1989: 243).<br />

Mais tarde, Martin Heidegger (1889-1976) propôs uma Hermenêutica como<br />

fenomenologia que constituiu-se em explicação fenomenológica da própria existência<br />

humana, afirman<strong>do</strong> que “a Compreensão e a Hermenêutica são formas sábias da consciência<br />

filosófica para acesso ao mun<strong>do</strong>” (apud Stein, 1996: 240). Indicou que a compreensão e a<br />

interpretação são mo<strong>do</strong>s fundantes da existência humana. Compreender é ser. Heidegger<br />

escreve uma obra, Ser e Tempo (1964), onde a compreensão hermenêutica aparece ligada à<br />

exigência urgente de uma reposição da questão <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> ser.<br />

A palavra eksistência, não obstante, provém <strong>do</strong> verbo latino exsistere, cuja acepção<br />

literal é “dar um passo à frente, para fora”.<br />

Heidegger readiquire o seu senti<strong>do</strong> primordial expresso no prefixo grego ek,<br />

equivalente ao ex latino para acentuar o caráter dinâmico <strong>do</strong> ser da presença, bem como para<br />

comprovar a abertura deste ente privilegia<strong>do</strong> cuja natureza é a de persistir, estenden<strong>do</strong>-se para<br />

fora de si. Assim, eksistência significa transcendência na acepção de um ultrapassamento em<br />

direção ao mun<strong>do</strong> e às oportunidades de ser da presença em um movimento espaço-temporal<br />

que lhe é próprio, o qual não se dá como um mo<strong>do</strong> de atuação entre outros, mas “como<br />

constituição fundamental deste ente, que acontece antes de qualquer comportamento”.<br />

(HEIDEGGER, 1966: 104). Da mesma forma, ao homem ser, o homem se compreende. O


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pensamento de Martin Heidegger, na sua obra Ser e Tempo (1964), possibilitou-nos um<br />

esclarecimento a respeito dessa questão, orientan<strong>do</strong> o nosso olhar nesta empreitada.<br />

Surgiu assim, a Hermêutica da existência, que propôs o círculo hermenêutico: o<br />

homem, como ser <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, vislumbra, metacompreensivamente este mun<strong>do</strong>, ao perguntar<br />

sobre o senti<strong>do</strong> e as possibilidades <strong>do</strong> ser como elementos que o situam no contexto, no<br />

mun<strong>do</strong>.<br />

O filósofo alemão Hans Georg Gadamer (nasci<strong>do</strong> em 1900) associou-se a Heidegger<br />

e propôs uma relação entre a Hermenêutica, a estética e a filosofia. Centra-se na discussão de<br />

que o méto<strong>do</strong> não é a única forma de se chegar a uma descoberta.<br />

Gadamer mostra, em Verdade e Méto<strong>do</strong> (1960), que a interpretação, antes de ser um<br />

méto<strong>do</strong>, é a expressão de uma condição <strong>do</strong> homem: o intérprete que aborda uma obra está já<br />

determina<strong>do</strong> no horizonte aberto pela obra é o “círculo hermenêutico”. A interpretação é antes<br />

de mais a explicação da relação que o intérprete estabelece com a tradição de que provém.<br />

Portanto Verdade e Méto<strong>do</strong> fala sobre de um acontecer da verdade no qual já sempre<br />

estamos toma<strong>do</strong>s pela tradição. Gadamer vê a possibilidade de explicitar fatologicamente esse<br />

acontecer em três esferas da tradição: o acontecer na obra de arte, o acontecer na história e o<br />

acontecer na linguagem. A hermenêutica que cuida dessa verdade não se sujeita a regras<br />

metódicas das ciências humanas, por isso ela é chamada de hermenêutica filosófica. É desse<br />

mo<strong>do</strong> que Gadamer estrea um lugar para a atividade da razão, fora das disciplinas da filosofia<br />

clássica e num contexto em que a metafísica foi solucionada.<br />

Para Gadamer, a Hermenêutica deve dar conta da possibilidade de compreensão das<br />

ciências <strong>do</strong> espírito e, para isto, a tarefa da filosofia deve fundamentá-la a partir da própria<br />

finitude humana em seu contexto existencial de comunicação. Para Gadamer, a compreensão<br />

tem um carácter produtivo e não meramente reprodutivo:<br />

O senti<strong>do</strong> de um texto ultrapassa o seu autor não apenas ocasionalmente,<br />

mas sempre. Por isso, a compreensão não é apenas um comportamento<br />

reprodutivo, mas sempre, também um comportamento produtivo.<br />

Compreende-se de mo<strong>do</strong> diferente, quan<strong>do</strong> se compreende efectivamente<br />

(GADAMER, 1999: 301-302).<br />

Stein (1996) apresentou um contraponto afirman<strong>do</strong> que na arte, na história, na<br />

linguagem as experiências produzidas não são de caráter lógico-semântico, porque “além de<br />

seres biológicos, somos no mun<strong>do</strong> compreenssão […] e as ciências adquirem sua ciências no<br />

mun<strong>do</strong>, em relações aos limites das ciências naturais […]” (STEIN, 1996: 241). Stein afirma


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que Gadamer estabeleceu bases sólidas para uma Hermenêutica filosófica. Gadamer defende<br />

que a Hermenêutica também aponta para sua limitação existencial, mostran<strong>do</strong> que to<strong>do</strong><br />

conhecimento é uma (re)interpretação da tradição.<br />

Chega-se à contribuição de Paul Ricoeur (1988), filósofo liga<strong>do</strong> à fenomenologia de<br />

Husserl e Merleau-Ponty, à filosofia existencial de Jaspers e G. Marcel e também ao<br />

personalismo de Mounier. Sua Hermenêutica baseia-se na descoberta <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da obra,<br />

modelos literários não só como uma reprodução, mas como um questionamento ao “mun<strong>do</strong><br />

real”, sen<strong>do</strong> assim a arte surge como desvelação da própria realidade.<br />

Paul Ricouer, defende que esta idéia deve ser assumida somente após a crítica<br />

ideológica. A arte e a literatura não revelam o real de forma imediata, mas mediatizadas pela<br />

crítica. Para Ricouer, a Hermenêutica tem a tarefa de interpretar e explicar senti<strong>do</strong>s que foram<br />

produzi<strong>do</strong>s através da linguagem. É preciso pressupor que qualquer discurso é uma forma de<br />

texto, por isto pode ser interpreta<strong>do</strong>. Portanto, este pensa<strong>do</strong>r apresentou a Hermenêutica como<br />

um sistema de “interpretação”.<br />

Para Ricoeur, to<strong>do</strong> e qualquer texto deixa se interpretar, assim também como<br />

compreender através da interpretação um mun<strong>do</strong> possível. A interpretação recebe um novo<br />

senti<strong>do</strong>: “interpretar é explicitar o tipo de ser-no-mun<strong>do</strong> manifesta<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> texto”<br />

(RICOUER, 1988: 121).<br />

Logo, a Hermenêutica que se pensa é uma busca pela interpretação, pelo dizer o que<br />

ainda não foi dito e que existe em um evento, no texto ou no próprio existir. É uma forma de<br />

trazer às claras senti<strong>do</strong>s possíveis e torná-los conscientes, porque houve uma reflexão sobre<br />

eles.<br />

Em outra obra, Ricoeur (1988), define interpretação, como o trabalho de pensamento<br />

que consiste em decifrar o senti<strong>do</strong> oculto no senti<strong>do</strong> presente. Para ele, o <strong>do</strong>mínio<br />

hermenêutico é o da interpretação simbólica. O símbolo se refere à dupla intencionalidade da<br />

linguagem e, assim, o texto pode ser analisa<strong>do</strong> a partir de qualquer ângulo, mas dificilmente<br />

por to<strong>do</strong>s os ângulos ao mesmo tempo. Isto define a diferença entre as interpretações: cada<br />

leitor interpreta com base em um <strong>do</strong>s ângulos, definin<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>s que dependem deste ponto<br />

de vista e da leitura.<br />

O termo “compreensão” por muitos autores é utiliza<strong>do</strong> como sinônimo de<br />

interpretação. Para Ricoeur, explicação e compreensão não constituem os pólos de uma<br />

relação de exclusão, mas os momentos relativos de um processo complexo: a interpretação,<br />

para ele,


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A questão entre explicar e compreender é, inicialmente, a de saber se as<br />

ciências , quer se trate de ciências da natureza ou de ciências <strong>do</strong> homem,<br />

constituem um conjunto contínuo, homogêneo e, finalmente, unitário, ou se<br />

entre as ciências da natureza e as ciências <strong>do</strong> homem, é preciso restabelecer<br />

uma ruptura epistemológica (RICOUER, 1988: 163).<br />

No entanto, são encontradas algumas diferenciações. Há autores defensores da idéia<br />

de que a interpretação é precedida pela compreensão. A compreensão é o estabelecimento de<br />

senti<strong>do</strong>s em acor<strong>do</strong> com as referências que o leitor já possui e a interpretação é o trabalho de<br />

caráter analítico e reflexivo que o leitor realiza com estes senti<strong>do</strong>s. Portanto, compreensãose<br />

define como um processo de relação entre o que se lê e o que se ouve e como é li<strong>do</strong> e ouvi<strong>do</strong>:<br />

uma relação entre o discurso e o contexto, entre a propriedade <strong>do</strong> discurso e o fundamento que<br />

os leitores atribuem ao discurso.<br />

Para Schleiermacher, a compreensão é voltar a experimentar o processo de<br />

construção <strong>do</strong> texto na perspectiva <strong>do</strong> autor e tem como pilar o que ele chama de círculo<br />

hermenêutico. O autor é o protagonista de uma atitude linguística em acor<strong>do</strong> com um tempo,<br />

uma percepção que é alheia, podemos significá-la, mas nunca reconstituí-la. “A tarefa da<br />

Hermenêutica é essencialmente a de compreender o texto, não o autor”<br />

(SCHLEIERMACHER, 1999: 220). Não importa o que o autor queria afirmar, mas o que se<br />

pode afirmar sobre o dito <strong>do</strong> autor.<br />

A postura de Dilthey é mais aproximada a Shleiermacker: A compreensão não é um<br />

mero ato <strong>do</strong> pensamento, mas uma transposição e uma nova experiência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tal como o<br />

captamos na experiência vivida, ou seja, “chamamos compreensão ao processo pelo qual<br />

manifestações sensíveis dadas revelam-nos a vida psíquica mesma” (DILTHEY, 1947: 333).<br />

Para ele, o homem é um ser histórico. Por sua historicidade e pela convivência consegue<br />

atribuir senti<strong>do</strong>.<br />

Nesta perspectiva, é preciso ver o senti<strong>do</strong> como parte de um contexto histórico. Faz-<br />

se necessário que o leitor associe seu conhecimento prévio aos senti<strong>do</strong>s que atribuiu, ao que<br />

lê, às metáforas que interpreta. Len<strong>do</strong>, refletin<strong>do</strong> e dialogan<strong>do</strong> sobre e com o texto, é possível<br />

reescrevê-lo, tornan<strong>do</strong>-o significativo, em acor<strong>do</strong> com a historicidade e a vida de quem lê.<br />

Heidegger apresenta uma visão diferente de compreensão: só existiria compreensão<br />

em acor<strong>do</strong> com o colocar-se no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> intérprete pois “A compreensão é a base de toda a<br />

interpretação e está presente em to<strong>do</strong> o ato de interpretação” (HEIDEGGER, 1988: 314).


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Para Gadamer, o ideal de compreensão seria não interrogar o texto, apontan<strong>do</strong>-lhe<br />

questões que possam ser respondidas por seu conteú<strong>do</strong>, mas interrogar o próprio leitor,<br />

levan<strong>do</strong> a compreendê-lo e a compreender o que lê, em um processo interdependente. A<br />

compreensão da arte, por exemplo, não advém de a dividirmos metodicamente como se fosse<br />

um objeto, mas sim por meio de de uma abertura ao ser.<br />

Toda interpretação deve, então, ter uma aplicação no presente, ser referida por ele,<br />

trazen<strong>do</strong> algo de nossa tradição histórica para, assim, contribuir na construção <strong>do</strong> nosso<br />

presente.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, é preciso considerar o valor da metáfora no processo de compreensão.<br />

A metáfora é um elemento fundante <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto literário. Uma metáfora diz algo<br />

de novo acerca da realidade e é um elemento a ser analisa<strong>do</strong> na busca de um senti<strong>do</strong>, que só<br />

existe em acor<strong>do</strong> com a leitura que se faz. Uma das questões que se impõe é a relação<br />

imediata entre o ler e o buscar senti<strong>do</strong>s, surgin<strong>do</strong> assim, indagações sobre o que seria<br />

estabelecer senti<strong>do</strong>s.<br />

Deleuze (1998) que trabalha a idéia de senti<strong>do</strong> a partir da obra de Lewis Carol, Alice<br />

no País das Maravilhas, tece considerações sobre uma possível teoria <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Senti<strong>do</strong><br />

seria o expresso da proposição, a linguagem em ação ao representar o real. Para Deleuze, o<br />

senti<strong>do</strong> é um elemento que só ocorre na linguagem e pela linguagem. O senti<strong>do</strong> é um<br />

elemento que integra a linguagem, enquanto representação e referência a um objeto. Ressalta-<br />

se que o senti<strong>do</strong> pode ser estabeleci<strong>do</strong> só a partir <strong>do</strong> relacionamento <strong>do</strong> objeto com um<br />

elemento que já está dentro de nós e " para falar o senti<strong>do</strong> de uma palavra (a), não temos saída<br />

senão usar outra palavra (b). Porém, para explicar o senti<strong>do</strong> da palavra (b), precisamos dispor<br />

de uma outra palavra (c), e assim numa regressão indefinida uma idéia adquirida a partir de<br />

experiência” (Deleuze,1998: 31). Ao ler, o leitor elabora um senti<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> como processo<br />

relacionar significações já elaboradas, suas vivências em grupo, sua história de leituras, que<br />

acontecem de maneira diferente para pessoas diferentes. Faz-se ressaltar o papel <strong>do</strong><br />

conhecimento prévio na antecipação <strong>do</strong> que a leitura pode oferecer.<br />

LITERATURA: SUPORTE LINGUÍSTICO E ARTE REVELADORA<br />

Ao refletirmos sobre a compreensão e interpretação de textos literários – a questão<br />

hermenêutica – é importante também levantarmos algumas questões sobre a importância da


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Literatura Infantil e <strong>do</strong> trabalho desenvolvi<strong>do</strong> com este tipo de literaura na escola. O professor<br />

precisa se tornar um poliglota, ou seja, conhece<strong>do</strong>r das várias modalidades de linguagem,<br />

pois, segun<strong>do</strong> Proença Filho, “ a literatura é uma forma de linguagem que tem uma lingua<br />

como suporte. O texto literário veicula uma forma específica de comunicação que evidencia<br />

um uso especial <strong>do</strong> discurso, coloca<strong>do</strong> a serviço da criação artística revela<strong>do</strong>ra” (PROENÇA<br />

FILHO, 2000: 28).<br />

Ao falarmos em Literatura Infantil temos que levar em conta que Literatura, sen<strong>do</strong><br />

qualquer forma de expressão – Mitos, Estórias, Contos, Poesias – é uma das mais nobres<br />

conquistas da humanidade e, segun<strong>do</strong> Bárbara Vasconselos de Carvalho, “a Literatura é<br />

conhecer, transmitir e comunicar a aventura de ser” (CARVALHO,1982: 9). Para a autora, é a<br />

Literatura Infantil que vai criar esta disponibilidade, porque ela é que é a básica e desta vêm<br />

todas, ou seja, todas as Literaturas nascem da poesia e <strong>do</strong>s seus muitos senti<strong>do</strong>s e símbolos.<br />

A Literatura Infantil encontra problemas em relação à definição exata de seu público<br />

alvo e em relação a sua comercialização. Marisa Lajolo (1999) ressalta o aumento da<br />

aquisição <strong>do</strong> livro didático - neles conti<strong>do</strong>s os textos literários - e isso é resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> fato<br />

desse material possuir as aulas preparadas, com exercícios a serem aplica<strong>do</strong>s e suas<br />

respectivas respostas para o professor. Tiran<strong>do</strong> assim, o trabalho e a responsabilidade da mão<br />

<strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r. Ao falarmos da importância da Literatura Infantil, temos como modelo as obras<br />

de Monteiro Lobato. A partir da produção deste autor, o Brasil começa a aprender a “ler e<br />

escrever”; os livros começam a ser espalha<strong>do</strong>s “a mão cheia”. Para um homem que amava a<br />

liberdade, essa tinha que ser a primeira providência para tornar livre um povo. Ele semeou<br />

uma semente que não morre e descobriu a sua responsabilidade (influência <strong>do</strong> que escrevia).<br />

Lobato foi o primeiro autor brasileiro a tratar as crianças como seres pensantes,<br />

capazes de ponderar sobre “sérios assuntos”. Quebrou certos valores tradicionais bitola<strong>do</strong>res,<br />

e da encenação de que sempre se utilizaram outros autores à que escreviam para crianças,<br />

assim, as modelan<strong>do</strong> para uma sociedade artificial, num relacionamento falso e superficial.<br />

Depois dele, vieram muitos outros, mas Lobato foi um marco na Literatura Infantil, que pode<br />

ser classificada em Literatura Infanto-juvenil antes e depois de Lobato, pois ele criou uma<br />

literatura infanto-juvenil. Ele criou uma literatura nacional; enquanto dava ao mun<strong>do</strong> uma<br />

nova Literatura. Este tipo de literatura, voltada para o leitor mirim, é rico material para o<br />

educa<strong>do</strong>r que, proporciona às crianças a possibilidade de dele rever esta redação extrair<br />

momentos de prazer, autoconhecimento e descoberta <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O lugar da literatura na


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educação é o de proporcionar o enriquecimento <strong>do</strong> universo interior <strong>do</strong> educan<strong>do</strong> e também o<br />

alargamento de suas vivências e de seus conhecimentos.<br />

Porém, toda leitura, em especial a leitura de literatura infantil, depende <strong>do</strong> despertar<br />

da curiosidade, das descobertas, <strong>do</strong> prazer, da imaginação e <strong>do</strong> encantamento obti<strong>do</strong> através<br />

deste “brincar com a obra”. Logo, a contemplação da leitura resulta da satisfação em<br />

desvendá-la, interpretá-la, transportá-la para a vivência <strong>do</strong> leitor. O leitor necessita se<br />

identificar, envolver-se e interajir com a obra.<br />

De acor<strong>do</strong> com Paul Ricoeur, o leitor, para obter a descoberta e prazer da leitura,<br />

necessita interpretá-la. Assim, é através da hermenêutica estudada e defendida pelo filósofo<br />

Paul Ricoeur, que a leitura da Literatura Infantil deve ser submetida pela criança leitora e<br />

também pela literalidade da obra, proporcionan<strong>do</strong> portanto, a sua participação no momento da<br />

leitura. E, por meio das noções <strong>do</strong> existencialismo, da fenomenologia, <strong>do</strong> estruturalismo e da<br />

psicanálise, Ricouer defende o texto literário como o percurso ideal para a busca pela<br />

interiorização humana e verdades individuais através da interpretação. Para tal, há a<br />

necessidade no primeiro momento da leitura, da compreensão da obra pelo leitor, pois como<br />

nos afirma Ricouer (1976), compreender não passa de uma conjectura. Segun<strong>do</strong> o filósofo, no<br />

ato de ler, será desvenda<strong>do</strong> um tipo de uniteralidade, o qual fundamenta o carácter conjectural<br />

inicial da interpretação.<br />

Compreender o texto depende da condição de distanciamento entre literatura e leitor<br />

para começar o processo hermenêutico. Especificamente no caso da literatura infantil, esta<br />

condição é agravada pela distância natural existente entre o autor e o leitor, por se tratar de<br />

<strong>do</strong>is universos diferentes: adulto e criança. É necessário que o autor (adulto) ofereça ao seu<br />

leitor (criança) um texto adequa<strong>do</strong> ao universo infantil, adaptada ao seu processamento<br />

cognitivo, despertan<strong>do</strong> o interesse pela leitura. Assim, o autor vai proporcionar ao leitor o<br />

avanço da leitura, permitin<strong>do</strong> a compreensão, como indica Paul Ricour. No segun<strong>do</strong><br />

momento, o leitor atinge a interpretação da obra enquanto discurso aplica<strong>do</strong> na escrita, pois se<br />

depara com situações novas, construídas a partir de várias autonomias que motivam-no à<br />

reflexão que extrapola a literalidade e os fatos, proporciona<strong>do</strong> a resolução de seus conflitos<br />

interiores.<br />

Após essa possiblidade de autoconhecimento e conhecimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

proporciona<strong>do</strong> pela literatura, o leitor se encontra no último momento <strong>do</strong> ato da leitura, que<br />

segun<strong>do</strong> Paul Ricoeur acontece por meio da interpretação enquanto pós-compreensão, que é a<br />

tarefa de “recontextualizar a obra literária” e finalmente apropriar-se dela.


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O papel <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r, diante da grande tarefa de formar pequenos leitores, recai,<br />

então, sobre o dever de motivar e envolver o leitor mirim com obras infantis literárias, que<br />

sejam emancipatórias, proporcionan<strong>do</strong>-lhe o contato com vários mun<strong>do</strong>s possíveis. Por meio<br />

da compreensão da história, fatos inéditos, mas que correspondam ao interesse da criança, são<br />

por esta interpreta<strong>do</strong>s e absorvi<strong>do</strong>s pelo seu universo infantil. Por meio <strong>do</strong> lúdico e <strong>do</strong><br />

imaginário, estimula<strong>do</strong>s pelo professor através da leitura realizada em sala de aula, acontece<br />

tal interesse por parte <strong>do</strong> educan<strong>do</strong>. Logo, o incentivo à leitura acompanhada de descoberta,<br />

prazer, de interação e envolvimento, passa a deixar de ser visto como um dever, uma<br />

obrigação.<br />

A hermenêutica de Paul Ricouer ligada ao ludismo e ao imaginário infantil mescla<br />

fantasia e realidade, de maneira que o leitor possa descobrir sua própria identidade,<br />

desenvolven<strong>do</strong> seu intelecto, a sua criatividade e a sua capacidade de expressão <strong>do</strong>s<br />

sentimentos.<br />

CONCLUSÃO<br />

Consideran<strong>do</strong> alguns estudiosos na área da hermenêutica, pode-se chegar a algumas<br />

concepções sobre senti<strong>do</strong>, que é defini<strong>do</strong> por Ricoeur como “sinônimo de significação”, o<br />

processo constante de atualização <strong>do</strong> discurso. O senti<strong>do</strong> esconde-se sob as palavras e a partir<br />

<strong>do</strong> desvelamento percebe-se a realidade. Esta é a função da Hermenêutica para Ricoeur:<br />

interpretar, atribuir significância a um senti<strong>do</strong> proposto e através da linguagem. O senti<strong>do</strong> se<br />

produz em acor<strong>do</strong> com o trabalho <strong>do</strong> leitor através da leitura de textos literários.<br />

A leitura transcorre em meio à busca pelo senti<strong>do</strong>, ou seja, ler é a busca <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, é<br />

“entrar” no texto, percorrê-lo em seu amaranha<strong>do</strong> ten<strong>do</strong> como guia, um méto<strong>do</strong> composto por<br />

significa<strong>do</strong>s já estabeleci<strong>do</strong>s, suas vivências, historicidade, leituras já realizadas, gostos e<br />

convenções. O texto pode ser analisa<strong>do</strong> a partir de qualquer ângulo, mas dificilmente por<br />

to<strong>do</strong>s os ângulos, ao mesmo tempo. Isto define a diferença entre as interpretações: cada leitor<br />

interpreta com base em um <strong>do</strong>s ângulos, definin<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>s que dependem deste ponto de<br />

vista e da leitura.<br />

A compreensão vem através de uma abertura ao ser, vem no ouvir da questão que a<br />

obra nos coloca. Toda interpretação deve ter uma aplicação no presente, ser referida por ele,<br />

trazen<strong>do</strong> algo de nossa tradição histórica para contribuir na construção <strong>do</strong> nosso presente.


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Neste senti<strong>do</strong>, a metáfora é um elemento fundante <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto literário. Uma<br />

metáfora diz algo de novo acerca da realidade e é um elemento a ser analisa<strong>do</strong> na busca de um<br />

senti<strong>do</strong>, o qual se produz em acor<strong>do</strong> com o trabalho <strong>do</strong> leitor, no caso de leitura de textos<br />

literários.<br />

Na Literatura Infantil, portanto como em qualquer outra Literatura, o que importa é<br />

aquilo que o leitor sente e imagina. Tu<strong>do</strong> pode acontecer dentro de nós, de nosso mun<strong>do</strong>, sem<br />

limites de tempo nem de espaço. Assim é a criança e por isso está no momento de sintonizar<br />

com a arte literária, com a fantasia da imaginação no realismo <strong>do</strong>s símbolos e das alegorias. É<br />

no seu encontro com os textos literários, que ela adquire a consciência de que a Literatura é<br />

síntese de seus conhecimentos, a descoberta <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>…<br />

Ler e interpretar uma obra literária dá a oportunidade, a abertura de um mun<strong>do</strong> único,<br />

singular pronto para interagir com o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> leitor. Para Paul Ricouer, o confronto <strong>do</strong>s<br />

vários mun<strong>do</strong>s com o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> leitor, a obra literária ganha a verdadeira significação da<br />

realidade da vida <strong>do</strong> leitor. Através <strong>do</strong> real e da ficção, o leitor projeta-se na narrativa que,<br />

segun<strong>do</strong> Ricouer é a resposta de uma transcendência imanente ao texto, que só se concretiza<br />

mediante a o ato da leitura. Dessa forma, o leitor se lê no texto e não apenas o lê.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BOUDON, Raymond. “Explication, Interpretation, Idéologie”. In: Encyclopédie<br />

Philosophique Universelle. Vol I: L’Univers Philosophique. Paris: Presses Universitaires de<br />

France, 1989.<br />

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DILTHEY, Wilhelm Guillermo. “Origines et développement de l'herméneutique”. In: Le<br />

monde de l'espirit. Tome Premier. Paris: Aubier Editions Montaigne, 1947.<br />

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C.B. Mohr, 1999.<br />

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Tradução: Ernil<strong>do</strong> Stein. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1966.<br />

LAJOLO, M. Do mun<strong>do</strong> da leitura para a leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. 4 ed., São Paulo: Ática, 1999.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 199<br />

PALMER, Richard. Hermenêutica. Edições 70. Lisboa – Portugal. 1969.<br />

PROENÇA FILHO, Domício. A Linguagem literária. Série princípios. 7ª ed. São Paulo:<br />

Editora Ática S.A., 2000.<br />

RICOUER, Paul. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Forense, 1988.<br />

___________. “Le Discours de l'Action”, In: TIFFENEAU, Dorian (org.). La Sémantique de<br />

l'Actioin. Paris: CNRS, 1977.<br />

___________.Teoria da Interpretação. Lisboa: 70, 1976.<br />

SCHLEIERMACHER, F. D. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Petrópolis:<br />

Vozes, 1999.<br />

STEIN, E. Aproximação sobre Hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 200<br />

ESTRUTURALISMO E PÓS-ESTRUTURALISMO NA LINGUAGEM:<br />

LEITURAS CENTRÍFUGAS DO MESMO E DO DIFERENTE<br />

Nelson de Jesus Teixeira Júnior 1<br />

Cassia <strong>do</strong>s Santos Teixeira 2<br />

RESUMO: Este artigo, de cunho bibliográfico, busca discutir o Estruturalismo e o Pós –<br />

estruturalismo no campo da linguagem enquanto correntes que ocupam o mesmo espaço<br />

contemporâneo e, em certos momentos, convergem entre si possibilitan<strong>do</strong> leituras diversas<br />

sobre a linguagem e suas representações. Além disso, faremos uma breve apresentação e<br />

discussão <strong>do</strong>s pensamentos saussurianos e derridianos enquanto axiomas convergentes e<br />

divergentes que possibilitam reler o Estruturalismo e o Pós – estruturalismo diferente da<br />

forma tradicional, a qual concebe essas correntes como caminhos totalmente contrários.<br />

PALAVRAS-CHAVES: Estruturalismo; Pós – estruturalismo; Linguagem.<br />

ESTRUTURALISMO Y PÓS-ESTRUTURALISMO EN EL LENGUAJE:<br />

LECTURAS CENTRÍFUGAS ENTRE LO MISMO Y LO DISTINTO<br />

RESUMEN: Este artículo de cuño bibliográfico, busca discutir el Estruturalismo y el Pósestruturalismo<br />

en el campo del lenguaje mientras corrientes que ocupan el mismo espacio<br />

contemporáneo y, en ciertos momentos, convergen entre sí posibilitan<strong>do</strong> lecturas distintas<br />

sobre el lenguaje y sus representaciones. Además, haremos una breve presentación y<br />

discusión de los pensamientos saussurianos y derridianos mientras pensamientos convergentes<br />

y divergentes que posibilitan hacer una relectura al Estruturalismo y el Pós-estruturalismo<br />

distinta de la manera tradicional, la cual concibe esas corrientes como caminos totalmente<br />

distintos.<br />

PALABRAS LLAVE: Estruturalismo; Pós-estruturalismo; Lenguaje.<br />

CONSIDERAÇÕES INICIAIS<br />

No início <strong>do</strong>s anos 60 <strong>do</strong> século XX intensificou-se uma virada nos estu<strong>do</strong>s da<br />

linguagem e <strong>do</strong> sujeito – para muitos era a época <strong>do</strong> fim das metanarrativas, mas ao que se<br />

parece produziu-se (e continua produzin<strong>do</strong>, ainda que por meio de estu<strong>do</strong>s iniciais) diversos<br />

des<strong>do</strong>bramentos além desse último. Nesse momento, muitos <strong>do</strong>s pensamentos de Nietzsche<br />

1 Gradua<strong>do</strong> em Letras (2008) pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus-BA) e Mestran<strong>do</strong>, também em<br />

Letras, pela mesma universidade. Bolsista Capes. Atualmente participa <strong>do</strong> Grupo de Pesquisa: História da<br />

Literatura e História da Leitura. E-mail: j-nelson2004@ig.com.br.<br />

2 Graduada em Letras (2008) pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus-BA) e Mestranda, também em<br />

Letras, pela mesma universidade. Bolsista da CAPES. Atualmente participa <strong>do</strong> Grupo de Pesquisa: Linguagem<br />

e Perspectiva multicultural no Ensino <strong>do</strong>s Conectores e Marca<strong>do</strong>res no Discurso Escrito de Hispanofalantes<br />

Aprendizes de Português Língua Estrangeira. E-mail: cassiadteixeira@ig.com.br.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 201<br />

(crítica às idéias de metafísica, ser e verdade) e Heidegger (a noção de tecnologias <strong>do</strong> eu,<br />

diferença...), Estruturalismo e Pós-estruturalismo foram reli<strong>do</strong>s e, por conseguinte, desloca<strong>do</strong>s<br />

para várias áreas, das quais podemos citar a da linguagem, a qual realizaremos algumas<br />

reflexões no decorrer desse texto, isso, refletin<strong>do</strong> sobre o pensamento de críticos e teóricos<br />

(principalmente Derrida) que nos possibilita discutir parte desse assunto.<br />

BREVES REFLEXÕES SOBRE ESTRUTURALISMO<br />

E PÓS - ESTRUTURALISMO<br />

Como um <strong>do</strong>s des<strong>do</strong>bramentos <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s acerca da linguagem comentou-se sobre o<br />

suposto “fim” de correntes como o Estruturalismo. Entretanto, é preciso entender que a<br />

relação entre Pós-estruturalismo e Estruturalismo é tão divergente quanto convergente, pois,<br />

ainda que o termo “pós” sugira a idéia de superação e ou “destruição” <strong>do</strong> antigo, para chegar a<br />

esse outro espaço (o <strong>do</strong> Pós) precisou-se (e ainda precisa) <strong>do</strong> Estruturalismo, o que resulta<br />

afirmar que “O pós-estruturalismo toma como seu objeto teórico o ‘estruturalismo’”. (Peters,<br />

2000, p. 09). Essa citação de Michael Peters possibilita pensar uma relação não de superação<br />

ou de destruição, mas de dialogismo e ressignificação em que o Pós-estruturalismo se<br />

apropria <strong>do</strong> Estruturalismo incorporan<strong>do</strong> algumas especificidades e substituin<strong>do</strong> outras.<br />

Por mais para<strong>do</strong>xal que pareça essa relação entre duas correntes teóricas “distintas”, na<br />

prática poderíamos citar até mesmo escritores que se portam de forma Estruturalista e Pós –<br />

estruturalista em determinadas obras, como é o caso de Humberto Eco em Os limites da<br />

Interpretação, obra em que o autor de forma estruturalista parece apontar para a imponência<br />

<strong>do</strong> texto sobre o leitor a partir das pistas textuais que conduzem o interlocutor ao encontro <strong>do</strong><br />

significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto e, por outro la<strong>do</strong>, o mesmo autor se porta de forma pós – estruturalista<br />

em seu livro Obra aberta, em cujo livro nos é apresenta<strong>do</strong> uma abertura textual ampla que<br />

será construída por meio <strong>do</strong> leitor, o qual não estará preso às imposições textuais.<br />

A exemplo <strong>do</strong> que foi comenta<strong>do</strong> acerca da relação entre Estruturalismo e <strong>do</strong> Pós -<br />

estruturalismo poderíamos citar, ainda, a linguagem, a qual é enfatizada em ambas as<br />

correntes de pensamentos, todavia, essa última corrente amplia a centralidade que a<br />

linguagem tem no Estruturalismo, isso, efetuan<strong>do</strong> certa “liquidez” em alguns paradigmas<br />

propostos anteriormente, como por exemplo, na relação significante e significa<strong>do</strong> e, ainda, na<br />

visão acerca <strong>do</strong> sujeito.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 202<br />

Quanto à idéia de autoria <strong>do</strong> sujeito, Derrida questiona a relação entre a consciência<br />

<strong>do</strong> sujeito (concebida pelo Estruturalismo) e a linguagem e, ainda, a imponência <strong>do</strong> som à<br />

escrita, isso tu<strong>do</strong> a partir da escritura, termo que abrange tanto o som quanto a escrita<br />

enquanto formas de inscrições. Com a idéia de escritura, Jacques Derrida põe em “xeque” a<br />

noção <strong>do</strong> sujeito humanista que se impõe por meio de sua consciência a partir da phonè, o que<br />

não significa pensar na “liquidação” desse sujeito, mas sim, de um descentramento <strong>do</strong> mesmo<br />

numa época em que o centro era a marca <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s científicos, principalmente os<br />

linguísticos. O pensamento derridiano torna-se suficiente para repensarmos toda uma prática<br />

investigativa que foi colocada ao re<strong>do</strong>r da língua e desse suposto sujeito estruturalista que<br />

tinha o poder consciente e gera<strong>do</strong>r da linguagem.<br />

Aproprian<strong>do</strong>-se da idéia metafísica de estrutura enquanto centro regula<strong>do</strong>r da<br />

linguagem, Jacques Derrida busca refletir, também, acerca da “estruturalidade da estrutura”,<br />

ação que procura descentrar o centro, o qual era ti<strong>do</strong> como imóvel e bem distante da<br />

interação. O próprio Derrida afirma o seguinte:<br />

[...] o que parece mais fascinante nesta busca crítica de um novo status <strong>do</strong><br />

discurso é o declara<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no de qualquer referência a um centro, a um<br />

sujeito, a uma referência privilegiada, a uma origem [...]. (Derrida, 1976, p.<br />

269).<br />

Logo, essa citação permite-nos compreender que a idéia de estrutura enquanto um centro<br />

regula<strong>do</strong>r cede lugar a um descentramento da linguagem em que o signo perde sua<br />

referencialidade à idéia de “princípio”, o que abre precedentes para a existência de inúmeros<br />

“centros” enquanto funções sem pontos de referências teleológicas.<br />

Assim, a noção de centro, apregoada pelo Estruturalismo é (re) significa<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong><br />

concebi<strong>do</strong> como mutável, flexível, caracteriza<strong>do</strong> como uma rede de substituições, como<br />

salienta Derrida. A língua, nessa perspectiva, é vista como flexível, dinâmica, heterogênea,<br />

não existin<strong>do</strong>, portanto, uma verdade cristalizada, um ser como presença, um senti<strong>do</strong><br />

transcendental.<br />

Esse pensamento “desconstrutivista” problematiza conceitos que eram da<strong>do</strong>s como<br />

estáveis, como por exemplo, os de signo (união de significante e significa<strong>do</strong>), entretanto,<br />

ainda que Jacques Derrida não entenda seu pensamento enquanto um “modelo”, podemos nos<br />

apropriar <strong>do</strong> mesmo entenden<strong>do</strong> como um fio condutor (ou problematiza<strong>do</strong>r), aplican<strong>do</strong>-o em<br />

novos estu<strong>do</strong>s acerca da linguagem, haja vista que Derrida consegue mostrar como os


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 203<br />

conceitos que erigem a linguagem são os mesmos que as fazem “ruir”. Essa reflexão<br />

derridiana não nos conduz a respostas acabadas e definitivas, mas nos leva a construir outros<br />

caminhos de reflexão acerca da linguagem.<br />

Retornan<strong>do</strong> à reflexão acerca da relação entre “estruturalistas” e “pós-estruturalistas”,<br />

é preciso afirmar que não acontece apenas de forma divergente. Há muitos momentos em que<br />

o diálogo entre essas duas correntes convergem entre si, como por exemplo, a idéia de<br />

diferença (embora para Saussure essa diferença resulte a partir de uma relação “imperiosa”<br />

entre significa<strong>do</strong> e significante), importância da linguagem (que será bem mais alargada na<br />

idéia de descontrução e différançe proposta por Derrida), enfim, trata-se na verdade, citan<strong>do</strong><br />

Santiago acerca da ação de Derrida: “[...] re-leitura de leituras.” (Santiago, 1973, p. 78).<br />

Silviano Santiago refere-se, nessa citação, à ação derridiana nas leituras sobre o<br />

Estruturalismo e alguns pensa<strong>do</strong>res dessa corrente, principalmente, Saussure.<br />

LENDO SAUSSURE E DERRIDA<br />

Conforme visto anteriormente, as correntes de pensamento Estruturalista e Pós –<br />

estruturalista em certos momentos convergem entre si, entretanto, cada uma dessas correntes<br />

têm suas especificidades e, agora, tentaremos apresentar um pouco mais sobre essas<br />

peculiaridades, isso, refletin<strong>do</strong> sobre Saussure e Derrida.<br />

Para Saussure (2000) a linguagem não pode ser definida pelo seu conteú<strong>do</strong><br />

substancial, pois ela compõe um sistema de diferenças no qual cada signo recebe seu valor<br />

por uma negatividade ou oposição aos outros signos. Esse teórico entende que:<br />

[...] língua e escrita são <strong>do</strong>is sistemas de signos distintos; a única razão de ser <strong>do</strong><br />

segun<strong>do</strong> é representar o primeiro; o objeto lingüístico não se define pela combinação<br />

da palavra escrita e da palavra falada; esta última constitui, por si só, tal objeto [...].<br />

(Saussure, 2000, p. 45).<br />

Assim, percebemos que a proposta saussuriana divide a linguagem em língua e fala, a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong><br />

a língua falada como seu objeto de estu<strong>do</strong>, desprezan<strong>do</strong> assim, a escrita. O lingüista<br />

estabelece, também, relações dicotômicas como langue / parole, significante / significa<strong>do</strong>,<br />

sincronia / diacronia, que serão problematiza<strong>do</strong>s por pensa<strong>do</strong>res posteriores, a exemplo de<br />

Jacques Derrida – conforme temos visto anteriormente e continuaremos ven<strong>do</strong> a seguir.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 204<br />

Entendemos que idéias saussurianas como a de significante e significa<strong>do</strong>, em que o<br />

significa<strong>do</strong> recupera o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> significante; a pre<strong>do</strong>minância da fala à escrita, em que a fala<br />

é quem faz evoluir a língua, insinuan<strong>do</strong> uma relação de autoria ao sujeito, enfim, seus<br />

pensamentos compõem um modelo que compreende a língua enquanto: “[...] um sistema <strong>do</strong><br />

qual todas as partes devem ser consideradas sincrônica.”. (Saussure, 2000, p. 103).<br />

A crítica empreendida por Derrida (1975), no tocante à lingüística estruturalista, parte<br />

também de um termo que recebe o nome de “desconstrução”. O termo usa<strong>do</strong> pelo filósofo não<br />

principia de uma idéia negativa, como destruição ou mesmo negação, e sim, propõe uma nova<br />

significação. Como diz Carvalho (1992)<br />

A desconstrução é uma promessa e, como tal, um ato performativo naquilo<br />

que tem excedente. É promessa não como meta de atingir um conhecimento<br />

totatizante sobre um objeto em estu<strong>do</strong> ou sobre o futuro <strong>do</strong> conhecimento<br />

sobre o objeto. Ela promete na medida em que é efeito de disjunção e não de<br />

reunificação <strong>do</strong>s traços de identidade. Ela promete a lucidez na aporia<br />

(Carvalho, 1992, p. 108).<br />

Como vimos, a desconstrução excede seu significa<strong>do</strong> original, uma postura que desmonta os<br />

pressupostos fundamentais da metafísica européia, busca acima de tu<strong>do</strong> encorajar a<br />

pluralidade de discursos, legitiman<strong>do</strong> que não existe apenas uma verdade e única<br />

interpretação, e sim, a existência de interpretações possíveis.<br />

Para Derrida a teoria da desconstrução consiste em desfazer o texto, ou seja, a partir <strong>do</strong><br />

momento que o texto está organiza<strong>do</strong> existem inúmeras probabilidades de se revelar<br />

significa<strong>do</strong>s ocultos. A desconstrução rompe com a tradição, hierarquia, como cita Derrida:<br />

[...] é porque esta desconstrução não é tecnicista ou tecnologista no momento<br />

mesmo em que ela põe em questão esta separação hierarquizante entre<br />

pensamento e técnica. (1988, apud Carvalho, 1992, p. 106).<br />

Logo, conforme percebi<strong>do</strong> no parágrafo anterior, a desconstrução envolve, também,<br />

identidade, diferença, língua e linguagem.<br />

Fica níti<strong>do</strong>, então, que o filósofo entende a lingüística estrutural como prisioneira <strong>do</strong>s<br />

postula<strong>do</strong>s da metafísica ocidental e para combater esta visão, Derrida sustenta que o signo<br />

não remete a qualquer ponto fixo e sim a vários contextos, operan<strong>do</strong> uma desintegração de<br />

sua própria unidade de permanência ou mesmo estabilidade. Para o filósofo, o processo de


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 205<br />

significação sempre está em infinito processo de adiamento e vê uma nova concepção de<br />

leitura de um texto.<br />

No tocante a escritura, Derrida (1975) vê além da visão de Saussure, que define a<br />

escritura como o fora, a representação exterior da linguagem. Para o filósofo, se pensa na<br />

escritura como:<br />

[...] é preciso agora pensar a escritura como ao mesmo tempo mais exterior à<br />

fala, não sen<strong>do</strong> sua ‘imagem’, ou seu símbolo e mais interior à fala que já é<br />

em si mesma uma escritura[...] (Derrida, 1975, p. 56).<br />

Derrida (1975) informa, ainda, que “a escritura nunca fez outra coisa senão confirmar<br />

a lingüística da palavra” (p. 38) e Nascimento (1999) confirma que “a escrita e a fala se<br />

insinuam como sobre determinadas por uma mesma possibilidade geral <strong>do</strong> discurso”<br />

(Nascimento, 2000, p. 133). Ou seja, a escrita está em toda parte, e uma explicação completa<br />

exigiria dar conta de sua totalidade. Para o filósofo, escritura não é apenas o grafismo, é<br />

muito mais, pois inclui a escrita e fala ao mesmo tempo, assim como também, excede a visão<br />

acerca da linguagem.<br />

Portanto, diante <strong>do</strong> que foi discuti<strong>do</strong> acima, podemos perceber que as correntes de<br />

pensamento Estruturalista e Pós – estruturalista trazem consigo diversas peculiaridades, o que<br />

comprovamos ao refletir um pouco sobre o pensamento saussuriano e derridiano.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Logo, entendemos que a linguagem tomou novos caminhos com a virada <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s<br />

intensifica<strong>do</strong>s nas décadas de 1960 e, certamente, esses caminhos não anularam outros<br />

percursos, como o Estruturalismo, por outro la<strong>do</strong>, muitos paradigmas como imanentismo,<br />

sujeito, centro, linguagem e outros modelos das “grandes narrativas”, não serão vistos com<br />

tanta tranqüilidade como era antes, o que nos permite pensar em um entre – lugar conforme<br />

Homi Bhabha discute em O Local da Cultura, como algo que “renova o passa<strong>do</strong>,<br />

refiguran<strong>do</strong> – o como um “entre – lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação <strong>do</strong><br />

presente.” (Bhabha, 2003, p. 27).


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 206<br />

Assim, esse espaço de intersecção em vias de construções entre o novo e o antigo,<br />

tradicional e o moderno, Estruturalismo e o Pós-estruturalismo é o que ainda nos provoca<br />

novas buscas por outras problematizações acerca <strong>do</strong>s sujeitos e das linguagens.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

BHABHA, H. O local da cultura. Editora da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo<br />

Horizonte, 2007. Tradução de Myrian Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia<br />

Renate Gonçalves.<br />

CARVALHO, L. F. M. Desconstrução. In.: Palavras da Crítica. Jobim, J. L. (org). Rio de<br />

Janeiro: Imago, 1992.<br />

DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo:<br />

Perspectiva, 1975.<br />

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e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.<br />

NASCIMENTO, E. Derrida e a Literatura. EDUFF. Rio de Janeiro, 1999.<br />

PETERS, M. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença [uma introdução]. Tradução de<br />

Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.<br />

SANTIAGO, S. Desconstrução e Descentramento. Revista Tempo Brasileiro, nº 32. Rio de<br />

Janeiro: Edições Tempo Brasileiro.<br />

SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. Tradução de Antônio Chelini et al. 22. ed.<br />

São Paulo: Cultrix, 2000.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 207<br />

A TÓPICA CRÍTICA E A INTENSIVIDADE DOS<br />

SÍMBOLOS EM CECÍLIA MEIRELES<br />

Soraya Borges Costa 1<br />

RESUMO: Este artigo discute o panorama <strong>do</strong> projeto poético de Cecília Meireles no contexto<br />

da moderna poesia brasileira destacan<strong>do</strong> a ressonância das estéticas literárias, o lugar da<br />

crítica, alguns arroubos e veredictos, e, de permeio, a intensividade <strong>do</strong>s símbolos que<br />

moldaram o estilo plural da autora fundan<strong>do</strong> os alicerces de uma poética <strong>do</strong> imperecível. A<br />

lírica ceciliana transita numa paisagem cara ao simbolismo enveredan<strong>do</strong> pela inquirição<br />

metafísica, questões da alma e <strong>do</strong> espírito, ou, o que mais se diga, para falar como Gilbert<br />

Durand (1988), das “coisas ausentes ou impossíveis de se perceber”. Nessa ampla fronteira, a<br />

análise de alguns poemas da obra Metal rosicler corrobora a reflexão desenvolvida acerca das<br />

peculiaridades <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> lírico ceciliano.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Poesia brasileira; Poesia moderna; Cecília Meireles; Pluralidade;<br />

Imperecibilidade.<br />

THE TOPICAL CRITICS AND THE INTENSITY<br />

SYMBOLS IN CECÍLIA MEIRELES<br />

ABSTRACT: In this article it is discussed in a panoramic way Cecília Meireles's poetic<br />

project in the context of Brazilian Modern Poetry. It is pointed out that literary aesthetic's<br />

resonance is the critics site where some raptures and verdicts among the intensity symbols<br />

shaped Meireles's plural style which led to the foundation of an imperishable poetry. The<br />

ceciliana lyrical transits in an important panorama to symbolism going towards the<br />

metaphysics questioning, which can be from the soul and the spirit, or, more say, to speak as<br />

Gilbert Durand (1988), “things absent or impossible to perceive”. In this broad border, the<br />

analysis of some poems from Metal rosicler corroborates to the reflection developed about<br />

peculiarities of Cecília Meireles's lyrical style.<br />

KEYWORDS: Brazilian poetry; Modern poetry; Cecília Meireles; Plurality;<br />

Imperishableness.<br />

Mas creio que to<strong>do</strong>s padecem, se são poetas.<br />

Porque afinal, se sente que o grito é o grito; e a<br />

poesia já é o grito (com toda a sua força) mas<br />

transfigura<strong>do</strong>. (MEIRELES apud MELLO,<br />

2006, p. 140).<br />

A poética de Cecília Meireles foi desvelan<strong>do</strong>-se gradualmente para a crítica brasileira,<br />

enquanto que, para os leitores portugueses, o estatuto invulgar <strong>do</strong> seu verso revelou-se quase<br />

1 Mestranda em Teoria Literária pela Universidade Federal de Uberlândia, Bolsista pela Capes. Pesquisa: “A<br />

poesia em busca <strong>do</strong> rosicler”. Contato: sorayabcb@yahoo.com.br


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 208<br />

prontamente. O crítico português Vitorino Nemésio (1970, p. 252), por exemplo, não hesitou<br />

em incluí-la entre os “maiores líricos da língua portuguesa”. Provavelmente, muito contribuiu<br />

para esse reconhecimento generaliza<strong>do</strong> entre os portugueses, o diálogo perene da poeta com<br />

as fontes da tradição 1 . Contemporânea à eclosão <strong>do</strong> movimento modernista brasileiro, em<br />

tempos de ruptura total, Cecília dirige sua inspiração não para o locus vanguardista que<br />

apregoava a abolição <strong>do</strong> passadismo estético nas artes. Ela volta-se para esse passa<strong>do</strong>, faz<br />

dele matéria para seu devaneio poético e ainda realiza incursões sobre o tempo presente numa<br />

gradativa “reabertura recíproca às novas formas provocadas por esse presente” (JOSEF, 2006,<br />

p. 306). Assim sen<strong>do</strong>, os típicos pressupostos <strong>do</strong> modernismo como “a notação de<br />

circunstância, a preocupação com o nacional, a linguagem coloquial” (COUTO, 1996, p. 4)<br />

estão ausentes ou escasseiam na produção poética da autora. A tradição, porém, fulge e<br />

refulge nos motivos e formas <strong>do</strong> seu verso que, ao cantar vivências e experiências <strong>do</strong> sujeito<br />

poético, canta a universalidade humana.<br />

De acor<strong>do</strong> com Bella Josef (2006, p. 307), a certeza da efemeridade marca o<br />

desenvolvimento da lírica ceciliana numa “técnica inteiramente pessoal” onde quase sempre<br />

“a palavra está a serviço da substância”. Além disso, seu exotismo temático, o caráter<br />

meditativo, a solidão abissal resvalam quase sempre para o tema da despedida ou da<br />

separação transitórias com vistas sempre a algum mo<strong>do</strong> de permanência. Tal procedimento é a<br />

chave <strong>do</strong> lirismo ceciliano onde a tradição cantada não é a da ruptura gestada pelo caos da<br />

mudança segun<strong>do</strong> o ideário <strong>do</strong> modernismo. A tradição em Cecília rompe com o que<br />

considera precário nos caminhos da arte revelan<strong>do</strong> profunda consciência da fugacidade de<br />

todas as coisas, o que sinaliza seu entendimento acerca <strong>do</strong> sentimento basilar da modernidade<br />

em seus múltiplos momentos: a “sensação avassala<strong>do</strong>ra de fragmentação, efemeridade e<br />

mudança” (HARVEY, 1993, p. 21).<br />

Nas palavras de Damasceno (1967, p. 41), especialista na poética de Cecília, “a<br />

constatação da transitoriedade emerge como o verme antecipa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> podre que um dia há de<br />

ser o apetecível fruto da vida. Daí que às descargas <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s se sobreponha a indagação, a<br />

1 Eliot (1999, 61-63), em 1917, no ensaio “A tradição e o talento individual”, afirma que a tradição tem senti<strong>do</strong><br />

amplo, não é herdada, mas alcançada com esforço, porque envolve um senso <strong>do</strong> histórico. Este consiste na<br />

percepção não só <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, mas da atualidade desse passa<strong>do</strong> no tempo presente. Assim, cada obra lê a<br />

tradição literária e decide pelo prolongamento ou ruptura com essa tradição. O texto inova<strong>do</strong>r é aquele que<br />

possibilita uma leitura diferente em relação aos seus predecessores sen<strong>do</strong>, desse mo<strong>do</strong>, capaz de revitalizar a<br />

tradição instaurada. De conformidade com essas ponderações, pode-se dizer que a obra ceciliana opta pelo<br />

prolongamento e pela revitalização da tradição.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 209<br />

análise, a atitude inteligente”. Diante dessa sensação vertiginosa, o fazer poético ceciliano<br />

destoa <strong>do</strong>s artistas modernistas, pois a poeta intelectualiza o perturba<strong>do</strong>r sentimento <strong>do</strong><br />

efêmero abstrain<strong>do</strong>-o <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sensível para torná-lo uma percepção ou uma experiência <strong>do</strong><br />

eterno. A poeta parte <strong>do</strong> contingente, <strong>do</strong> material, <strong>do</strong> ilusório, e tenta sublimar a angústia<br />

dessas impermanências tornan<strong>do</strong>-as de alguma maneira imutáveis ou imperecíveis, ao menos,<br />

na esfera da arte.<br />

No intuito de aclarar o debate sobre modernidade e modernismo, termos imbrica<strong>do</strong>s à<br />

poética ceciliana, são pontuais algumas considerações da Profa. Maria Ivonete Santos Silva.<br />

Aqui, todavia, não se pretende explorar o vasto território <strong>do</strong> modernismo e da modernidade<br />

nas suas profundas implicações e transformações advindas, mas apontar alguns elementos<br />

desse complexo que repercutiram no mo<strong>do</strong> de representação da lírica de Cecília. Segun<strong>do</strong><br />

Silva, enquanto a modernidade é uma forma de sentir a fragilidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> no que há de<br />

estranho, transitório e inusita<strong>do</strong>; o modernismo foi um movimento de intelectuais brasileiros<br />

que trabalharam os conceitos da modernidade de mo<strong>do</strong> exagera<strong>do</strong>.<br />

Estudiosa de Octavio Paz, ao referir-se à universalidade da sua obra, a pesquisa<strong>do</strong>ra<br />

assinala que o conjunto da produção <strong>do</strong> mexicano “aponta para uma visão integra<strong>do</strong>ra da<br />

modernidade, ou seja, uma visão que encerra em si mesma, uma compreensão e uma<br />

assimilação da sua Arte de Convergência” (SILVA, [2005?], p.11). Acuradamente, Silva<br />

discute as questões emaranhadas à modernidade e ao moderno, ao longo da produção paziana,<br />

salientan<strong>do</strong> a lucidez e a erudição <strong>do</strong> ensaísta que o levaram ao construto de uma poética de<br />

conciliação <strong>do</strong>s contrários, a mencionada “Arte de Convergência”, como resposta aos dilemas<br />

e para<strong>do</strong>xos que afligem o homem contemporâneo. Nas pegadas da “Arte de Convergência”,<br />

Silva ([2005?], p. 20) refere-se ao “caráter impermanente” de tu<strong>do</strong> o que se relaciona a<br />

modernidade e elucida as intenções de Paz:<br />

Essa determinação de habitar ativamente o seu tempo levou Octavio Paz a<br />

uma incondicional abertura à investigação de suas vivências familiares, <strong>do</strong><br />

seu país, <strong>do</strong>s impasses políticos e sociais pelos quais o mun<strong>do</strong> perplexo entre<br />

as promessas de conquistas tecnológicas, até então só concebidas como<br />

ficção, e as guerras mundiais que transformaram as certezas em um futuro<br />

sem limites de realizações, em desencanto e horror (SILVA, [2005?], p. 47).


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Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 210<br />

Nesse esta<strong>do</strong> dilemático, Paz erige e oferta sua proposta ao mun<strong>do</strong> para uma “Arte de<br />

Convergência”, que, em termos sumários, consiste no “cruzamento de tempos, espaços e<br />

formas” (PAZ apud SILVA, [2005?], p. 2). O próprio ensaísta usou a expressão para definir a<br />

poesia que começou no fim <strong>do</strong> século XX. No seu dizer, essa poesia<br />

[...] é um perpétuo recomeço e um contínuo regresso. A poesia que começa<br />

agora, sem começar, busca a interseção <strong>do</strong>s tempos, o ponto de<br />

convergência. Diz que entre o passa<strong>do</strong> esmaeci<strong>do</strong> e o futuro desabita<strong>do</strong>, a<br />

poesia é o presente. [...] Poesia da reconciliação: a imaginação encarnada<br />

num agora sem datas (PAZ, 1993, p. 56-57).<br />

Numa tentativa de aproximação, a leitura de <strong>do</strong>is poemas cecilianos, em Metal<br />

rosicler, pode dar pistas da “Arte de Convergência” paziana. Neles, o canto da universalidade<br />

alia-se a busca da reconciliação, ao tempo de convergência, uma vez que ambos se<br />

contrapõem à hora contingente <strong>do</strong> modernismo. Se de um la<strong>do</strong>, esse momento circunstancial<br />

celebrava a voragem devora<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> progresso com o advento das máquinas, o texto da poeta<br />

irá celebrar o avesso da hora buscan<strong>do</strong> reconciliar o passa<strong>do</strong> relega<strong>do</strong> ao futuro incerto no<br />

“agora sem datas” da poesia. O primeiro desses poemas é o de número 7 que irá revelar um<br />

“coche só de fantasmas”, uma vez que os cavalos foram substituí<strong>do</strong>s pela locomotiva a vapor:<br />

Ai, senhor, os cavalos são outros,<br />

e o coche não pode rodar.<br />

Nem já se encontra quem o conduza,<br />

quem se assente neste lugar.<br />

Mas também os caminhos agora<br />

não se sabe aonde é que vão dar.<br />

Não há jardins de belos passeios,<br />

e acabou-se o tempo <strong>do</strong> luar.<br />

Nem chegarão novos passageiros<br />

para este coche secular:<br />

nem solitários nem sonha<strong>do</strong>res<br />

nem qualquer encanta<strong>do</strong> par...<br />

[...] (MEIRELES, 2001, p. 1214-1215).<br />

Segun<strong>do</strong> a voz lírica, a locomotiva pôs de la<strong>do</strong> o coche <strong>do</strong>s cavalos o que tornou a<br />

vida menos airosa e acabou por minar a poesia na imagem contundente <strong>do</strong> “tempo <strong>do</strong> luar”<br />

que, para a poeta, não existe mais. Tempo que, na era da máquina, deixa de convergir, de<br />

reconciliar o passa<strong>do</strong> ao futuro no agora encarna<strong>do</strong>, como diria Octavio Paz. Perde-se, assim,


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 211<br />

na fala <strong>do</strong> sujeito lírico, o concurso <strong>do</strong>s enamora<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s solitários e sonha<strong>do</strong>res, pois o<br />

“coche secular”, que serviu a tantas jornadas e trajetos, não mais seguirá soçobra<strong>do</strong> na sua<br />

própria razão de ser pelo desinteresse das pessoas agora seduzidas pelos novos inventos. As<br />

perdas sucedem-se e só o olhar da poesia consegue compreender sua extensão avassala<strong>do</strong>ra na<br />

vida <strong>do</strong>s homens.<br />

Como se sabe, as raízes históricas da explosão tecnológica <strong>do</strong> século XX remontam à<br />

era moderna que fincou o progresso no ir e vir <strong>do</strong> homem. Conforme Harvey (1993, p. 23),<br />

desde o esteio <strong>do</strong> pensamento iluminista, o progresso vem atrela<strong>do</strong> às movimentações<br />

humanas. Diz o teórico que “os pensa<strong>do</strong>res iluministas acolheram o turbilhão da mudança e<br />

viram a transitoriedade, o fugidio e o fragmentário como condição necessária por meio da<br />

qual o projeto moderniza<strong>do</strong>r poderia ser realiza<strong>do</strong>”. Diante disso, a expectativa acerca <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> e da vida era incrivelmente otimista, onde o progresso seria o corolário da excelência<br />

humana que traria, por sua vez, justiça, felicidade e compreensão. Nesse horizonte utópico,<br />

Silva lembra que o campo semântico <strong>do</strong> termo “progresso” sofreu uma amplificação<br />

exatamente a partir da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. No dizer da<br />

pesquisa<strong>do</strong>ra:<br />

A palavra progresso passou a refletir uma nova postura <strong>do</strong> homem diante <strong>do</strong><br />

outro e diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; uma postura alicerçada no desejo de realização de<br />

uma suposta liberdade, adquirida graças ao acúmulo de bens materiais e,<br />

consequentemente, a uma equivocada noção de igualdade (SILVA, [2005?],<br />

p. 13).<br />

Na contramão da excessiva confiança trazida por essa “nova postura”, a capacidade de<br />

realização e de conquista <strong>do</strong> homem logo mergulharia a sociedade tecnológica <strong>do</strong> século XX<br />

numa crise aguda que assolaria todas as instâncias da vida pública. A este respeito, Octavio<br />

Paz observa, em A outra voz, que, na primeira metade <strong>do</strong> século, “apesar das imensas<br />

conquistas da técnica, começou-se a se duvidar <strong>do</strong> progresso, a grande idéia condutora <strong>do</strong><br />

Ocidente e seu mito intelectual” (PAZ, 1993, p. 41). Mais adiante, na mesma obra, o crítico<br />

enuncia a enfermidade da idéia da modernidade, “o fim da estética fundada no culto à<br />

mudança e à ruptura”, e, com isso, anuncia também o decesso <strong>do</strong> mito <strong>do</strong> progresso:


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 212<br />

A modernidade se identificou com a mudança, concebeu a crítica como o<br />

instrumento desta mudança e identificou ambas com o progresso. [...] A<br />

modernidade está ferida de morte: o sol <strong>do</strong> progresso desaparece no<br />

horizonte e ainda não vislumbramos a nova estrela intelectual que há de<br />

guiar os homens. Não sabemos sequer se vivemos um crepúsculo ou um<br />

despertar (PAZ, 1993, p. 53).<br />

Entrementes às violentas convulsões <strong>do</strong> século XX, de volta ao poema, assiste-se ao<br />

progresso descartan<strong>do</strong> o coche <strong>do</strong>s cavalos pela novidade da locomotiva e o quanto essas<br />

inovações tecnológicas ressentiram a poeta, na medida em que levaram à rejeição <strong>do</strong>s hábitos<br />

ama<strong>do</strong>s para impor o prima<strong>do</strong> da máquina. Paz (1993, p. 44) também se referiu “a terrível<br />

novidade das máquinas” e a profunda solidão decorrente desta nova companhia. Segun<strong>do</strong> ele,<br />

foi uma<br />

[...] mudança de realidade: mudança de mitologias. Antes, o homem falava<br />

com o universo; ou acreditava que falava: se não era o interlocutor, era seu<br />

espelho. No século XX, o interlocutor mítico e suas vozes misteriosas se<br />

evaporam [...] Descobrimos que estamos sozinhos no universo. Sozinhos<br />

com nossas máquinas (PAZ, 1993, p. 44-45).<br />

E no poema, a voz lírica parece antever essa solidão arquetípica na era <strong>do</strong> descarte<br />

massivo onde tu<strong>do</strong> seria suplanta<strong>do</strong> pelas máquinas: “ai, senhor, os cavalos são outros”. Para<br />

onde o homem se dirigisse a provisoriedade de antemão instalada na ordem das coisas, por si<br />

só, já era prenuncia<strong>do</strong>ra de iminentes substituições ou alterações. Com efeito, a palavra em<br />

voga na regência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> era mesmo _ ou ainda é _ a impermanência. Dela se esquivan<strong>do</strong>,<br />

Cecília, na arte e na vida, buscou pares emblemáticos que nutrissem sua poiesis de valores<br />

contrários a essa inconstância, mesmo saben<strong>do</strong> quão balda<strong>do</strong> podia ser o tentame.<br />

Dentre esses pares, Mahatma Gandhi foi uma das suas maiores afeições. Alguns<br />

aspectos da <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> indiano, naturalmente relaciona<strong>do</strong>s à sua mundividência lírica, são<br />

também alvo das reflexões de Paz. Conforme o ensaísta mexicano, Gandhi<br />

[...] era nacionalista e acreditava na democracia, mas, ao mesmo tempo,<br />

odiava a técnica, a indústria e a civilização ocidental, a qual considerava<br />

uma ‘<strong>do</strong>ença’. Suas invenções, em si mesmas, perniciosas. [...] Via na<br />

estrada de ferro e no telégrafo inventos funestos... mas os usava. [...] Sua<br />

pregação tinha um duplo e contraditório objetivo: libertar o povo indiano da


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 213<br />

<strong>do</strong>minação britânica e regressar a uma sociedade, fora <strong>do</strong> tempo, dedicada à<br />

agricultura, inimiga <strong>do</strong> lucro, pacífica e crente em sua religião tradicional<br />

(PAZ, 1996, p. 110-111).<br />

Sobre esse ideário contraditório, o crítico declara que não comunga de muitas das<br />

idéias políticas e filosóficas <strong>do</strong> líder indiano, porém faz importante ressalva: “compreen<strong>do</strong> e<br />

compartilho seu horror diante de muitos aspectos da civilização tecnológica contemporânea,<br />

mas os remédios que nos propõe são uns quiméricos e outros, nocivos” (PAZ, 1996, p. 111).<br />

Em sintonia com essas cogitações, os versos acima referi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> poema ceciliano não deixam<br />

de, a seu mo<strong>do</strong>, alimentar o impasse sobre o que fazer diante das novidades trazidas pelo<br />

avanço tecnológico.<br />

De mo<strong>do</strong> mais peremptório, o poema de número 21 da mesma obra prossegue na<br />

crítica à feição voraz <strong>do</strong> modernismo:<br />

Vão-se acabar os cavalos!<br />

bradai no campo.<br />

Possantes máquinas de aço<br />

Já estão chegan<strong>do</strong><br />

Adeus crinas, adeus, fogo<br />

das ferraduras!<br />

Adeus, galope das noites,<br />

curvas garupas...<br />

Já não falo de romances<br />

nem de batalhas:<br />

falo <strong>do</strong> campo flori<strong>do</strong>,<br />

das águas claras,<br />

da vida que andava ao la<strong>do</strong><br />

da nossa vida,<br />

dessa misteriosa forma<br />

que nos seguia<br />

de tão longe, de tão longe,<br />

de que tempos!<br />

Desse nosso irmão antigo<br />

De sofrimentos.<br />

Vão-se acabar os cavalos!<br />

bradai no mun<strong>do</strong>.<br />

Rodas, molas, mecanismos<br />

nos levam tu<strong>do</strong>.<br />

Falo <strong>do</strong> olhar que se erguia<br />

para a nossa alma.<br />

Do amor daquilo que vive<br />

e serve e passa.<br />

Vão-se acabar os cavalos!<br />

Bradai aos ecos,


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ao sol, ao vento, a Deus triste,<br />

aos homens cegos.<br />

(MEIRELES, 2001, p. 1228-1229)<br />

A ênfase exclamativa <strong>do</strong> primeiro verso que se repete ao longo <strong>do</strong> poema _ “vão-se<br />

acabar os cavalos!” _, denota o anseio <strong>do</strong> sujeito-lírico para que se entenda o alcance de uma<br />

alteração radical trazida pela modernidade no modernismo: a suplantação da tradição <strong>do</strong>s<br />

“cavalos” pela velocidade das “máquinas de aço” propugnada, em especial, pela vanguarda<br />

futurista. A sintaxe imperativa <strong>do</strong> verso subsequente ordena o bra<strong>do</strong>, ou seja, o grito “no<br />

campo”, “no mun<strong>do</strong>” e “aos ecos”. Se para Cecília a poesia é um “grito transfigura<strong>do</strong>”, ela<br />

instila o grito por toda a parte e de mo<strong>do</strong> ressoante para que o maior número de pessoas saiba<br />

das “rodas, molas, mecanismos” que “nos levam tu<strong>do</strong>”. Este “tu<strong>do</strong>” é sintomático <strong>do</strong> que a<br />

poeta percebe como uma irmanação da sua natureza à <strong>do</strong> cavalo chama<strong>do</strong> “irmão antigo”. O<br />

tom é, na verdade, uma imprecação contra as “possantes máquinas de aço” e uma aclamação<br />

poética <strong>do</strong>s cavalos enaltece<strong>do</strong>ra de tu<strong>do</strong> o que esses animais ajudaram o homem a escrever e<br />

a construir. Nesse ponto, Paz lembra a a<strong>do</strong>ração ao cavalo, no passa<strong>do</strong>, e, por outro la<strong>do</strong>, os<br />

novos ícones <strong>do</strong>s tempos modernos sauda<strong>do</strong>s também por outros poetas:<br />

Os antigos veneravam o cavalo e o barco a vela; a nova idade, a locomotiva<br />

e o navio. Provavelmente, o poema de Whitman que mais impressionou seus<br />

segui<strong>do</strong>res foi o dedica<strong>do</strong> a uma locomotiva. [...] Os futuristas cantaram o<br />

automóvel e mais tarde se multiplicam os poemas ao avião, ao submarino e a<br />

outros veículos modernos (PAZ, 1993, p. 45).<br />

A voz da poesia ceciliana diz, porém, <strong>do</strong> seu sofrimento sem o “galope das noites”,<br />

sem as “curvas garupas”, num adeus pesaroso, ao mesmo tempo em que, nos rastos <strong>do</strong><br />

panteísmo, reconhece o olhar cúmplice desses serviçais seculares de todas as épocas como<br />

uma forma “<strong>do</strong> amor daquilo que vive / e serve e passa”. A poeta celebra a fidelidade e o<br />

espírito de serviço <strong>do</strong>s cavalos no altar da natureza, em meio “ao sol, ao vento”, mas “a Deus<br />

triste”, sabe<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mérito desses amigos, e “aos homens cegos”, numa crítica a incapacidade<br />

humana de ir além da própria pequenez reconhecen<strong>do</strong> a valoração <strong>do</strong> outro nesse “nosso<br />

irmão antigo / de sofrimentos.”<br />

O pen<strong>do</strong>r universalista da poesia ceciliana mostra<strong>do</strong> nesses <strong>do</strong>is poemas é também<br />

destaca<strong>do</strong> por David Mourão-Ferreira (1981, p. 151) em seus estu<strong>do</strong>s. No dizer <strong>do</strong> estudioso,


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 215<br />

“o que sobremo<strong>do</strong> se verifica [...] é a simples a<strong>do</strong>ção de meros pretextos para<br />

simultaneamente exprimir a sua cosmovisão individual e a sua exigente apetência de<br />

universalidade”. E, para além <strong>do</strong>s “temas comuns, motivos afins, ressonâncias formais”, o<br />

que se impõe é tu<strong>do</strong> aquilo que comunga <strong>do</strong> “caráter abstrato e interiorizante” (GOUVEIA,<br />

2002, p. 10) da sua poesia, autêntica escritura <strong>do</strong> imperecível, conforme se vem sublinhan<strong>do</strong><br />

acerca <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> lírico da poeta. Este particular revela também a interlocução de Cecília com o<br />

orientalismo 1 no cultivo da constância e da permanência, o que se opõe aos ocidentais<br />

reverencia<strong>do</strong>res da mudança. Nesse senti<strong>do</strong>, as palavras de Paz são esclarece<strong>do</strong>ras:<br />

Na Índia tradicional, como nas antigas sociedades européias, valorizou-se a<br />

imutabilidade. Para a tradição filosófica indiana, seja a budista ou a hindu, a<br />

impermanência é uma das marcas da imperfeição <strong>do</strong>s seres humanos e, em<br />

geral, de to<strong>do</strong>s os seres. Os próprios deuses estão sujeitos à lei fatal da<br />

mudança. Um <strong>do</strong>s valores da casta, para a mentalidade tradicional hindu, é<br />

precisamente sua resistência à mudança (PAZ, 1996, p. 64).<br />

To<strong>do</strong>s esses aspectos confluem testifican<strong>do</strong> a independência e a pessoalidade <strong>do</strong>s<br />

caminhos da autora no contexto da moderna poesia brasileira. Segun<strong>do</strong> inclusive salientou<br />

Alcides Villaça, Cecília não apenas se rendeu à tradição esmeran<strong>do</strong>-se no tecla<strong>do</strong> <strong>do</strong>s metros<br />

breves próprios da lírica portuguesa no cancioneiro e no romanceiro, como também<br />

experimentou a liberalidade <strong>do</strong> verso livre. Os versos seguintes da obra Doze noturnos da<br />

Holanda atestam esse aspecto: “Homem, objeto, fato, sonho, / tu<strong>do</strong> é o mesmo, em substância<br />

de areia, / tu<strong>do</strong> são paredes de areia, como neste solo inventa<strong>do</strong>: / mar venci<strong>do</strong>, fauna<br />

extenuada, flora dispersa, / tu<strong>do</strong> se corresponde:” (MEIRELES apud BOSI, 1970, p. 515). Se<br />

a forma <strong>do</strong> verso é livre, o tom segue a constante ceciliana da reflexão desalentada <strong>do</strong> sujeito<br />

que tenta reiteradamente fixar o precário no reino intemporal da poesia.<br />

Muitas outras peças da poeta seguem essa tendência como demonstra este fragmento<br />

<strong>do</strong> poema 6 de Metal rosicler: “Tu<strong>do</strong> nesta vida / lhe era tão deserto / que só viu de perto /<br />

morte e despedida” (MEIRELES, 2001, p. 1214). Imagem extrema da desolação, “deserto”<br />

1 Em Orientalismo: o oriente como invenção <strong>do</strong> ocidente, Edward W. Said (1990) discute a problemática <strong>do</strong><br />

termo “orientalismo” nas suas implicações políticas e ideológicas. Neste trabalho, porém, o termo é toma<strong>do</strong> em<br />

senti<strong>do</strong> mais geral despi<strong>do</strong> das conotações de poder <strong>do</strong> imperialismo político. Aqui se considera orientalismo<br />

“um estilo de pensamento basea<strong>do</strong> em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre o ‘Oriente’ e [...]<br />

o ‘Ocidente’”. O Oriente “é uma idéia que tem uma história e uma tradição de pensamento, imagística e<br />

vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, desse<br />

mo<strong>do</strong>, apóiam e, em certa medida, refletem uma à outra” (SAID, 1990, p. 13-39).


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aduz ao paroxismo de uma vida vasta em aridez que proximamente só pôde conhecer as<br />

instâncias derradeiras: “morte” e “despedida”. A propósito, em ensaio intitula<strong>do</strong> “Los<br />

beneficios de la muerte”, Paz (1999, p. 393) afirma que o me<strong>do</strong> da morte<br />

[...] es uno de los más poderosos estímulos crea<strong>do</strong>res de la historia.<br />

Gracias a la muerte y al mie<strong>do</strong> que nos inspira, la Vida se modifica siempre<br />

con una constancia y una energía terribles, exasperadamente vivas, tanto<br />

más vivas cuanto más convenci<strong>do</strong>s estamos de que sólo la muerte nos<br />

espera.<br />

Esta consciência <strong>do</strong> inarredável da morte anima sensivelmente as criações da poeta,<br />

porém ela não demonstra receio por sua chegada, mas sim intimidade e mesmo naturalidade<br />

diante da <strong>do</strong>r da separação vista como transitória também pelo influxo orientalista onipresente<br />

em sua obra. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, tanto para Paz como para Cecília, o homem intenta sobreviver à<br />

morte e, de alguma forma, permanecer. Felizmente, ambos permaneceram na arte das suas<br />

produções. É Paz (1999, p. 392-393) ainda quem arremata: “Unos fundan naciones, estirpes,<br />

famílias; otros depositan su esperanza de inmortalidad en cosas menos variables y vivas: un<br />

libro, un pensamiento, un cuadro; to<strong>do</strong>s, adheri<strong>do</strong>s a su nombre y a su ser, intentan<br />

sobrevivirse, vencer al polvo y permanecer”.<br />

O viés da permanência tenazmente persegui<strong>do</strong> talvez tenha gera<strong>do</strong> algumas<br />

incongruências na leitura de alguns críticos que consideraram a poesia ceciliana<br />

insuficientemente brasileira em pleno modernismo. A este respeito, Otto Maria Carpeaux<br />

(1999, p. 874) posicionou-se contrariamente afirman<strong>do</strong> que a poeta é inconfundivelmente<br />

brasileira e que o problema é de interpretação, uma vez que, na forja <strong>do</strong> seu verso, as fontes<br />

nacionais e folclóricas são invariavelmente transmudadas ou sublimadas em elementos de<br />

permanência. Para muitos estudiosos, o maior testemunho dessa brasilidade adveio de uma<br />

das suas melhores obras, o Romanceiro da Inconfidência (1953), produção poética centrada<br />

no importante episódio da história nacional, ou seja, na a<strong>do</strong>ção de uma temática<br />

essencialmente nacionalista. Carpeaux inclusive, ao classificar a arte de Cecília, opta por<br />

enquadrá-la, inicialmente, como pós-simbolista. Segun<strong>do</strong> ele,<br />

Sua arte não é parnasiana nem pertence ao ciclo da revolução modernista<br />

nem se enquadra em qualquer conceito possível de pós-modernismo. [...] É


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 217<br />

poesia que ocupa lugar certo dentro da poesia brasileira sem ter participa<strong>do</strong><br />

da evolução dela. [...] Embora pertencen<strong>do</strong> a nós e ao nosso mun<strong>do</strong>, é uma<br />

poesia de perfeição intemporal. [...] É arte pós-simbolista, menos “atual” que<br />

a <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is outros grandes poetas (Bandeira e Drummond), sem, por isso,<br />

perder em “atualidade”. [...] O reflexo, para fora, dessa intemporalidade tem<br />

nome certo: é a perfeição (CARPEAUX, 1999, p. 874, 876).<br />

Discorren<strong>do</strong> sobre essa dicção inaugural, o estudioso italiano menciona ainda Paul<br />

Valéry, Rainer Maria Rilke e William Butler Yeats, dentre outros poetas universais<br />

contemporâneos a Cecília, que recriaram o simbolismo enveredan<strong>do</strong> por esta estética em<br />

tempos de vanguarda e ruptura. No entender de Carpeaux (1999, p. 875), o que garantiu a<br />

universalidade desses pós-simbolistas foi seu não alheamento estético <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> como<br />

fizeram os primeiros simbolistas, nem sua entrega febril às realidades vanguardistas como<br />

fizeram os modernistas, ou seja, to<strong>do</strong>s eles, assim como Cecília, encontraram um equilíbrio<br />

entre o atual e o inatual erigin<strong>do</strong>, deste mo<strong>do</strong>, uma poesia intemporal para a qual importava a<br />

perenização <strong>do</strong> instante.<br />

Dentre os opostos que se combinam na poesia de Cecília, observa-se, portanto, a<br />

presença de pares <strong>do</strong> pós-simbolismo como espiritualismo e materialidade, abstração artística<br />

e humana, lucidez intelectual e emoção, além da natural irmanação com a música. Nela, “a<br />

harmonia serve para organizar a emoção” (CARPEAUX, 1999, p. 875) propician<strong>do</strong> o<br />

adensamento <strong>do</strong> verso na reflexão rigorosa travada pelo sujeito. Esses e outros traços<br />

compõem o estilo poético da autora que é inventaria<strong>do</strong> por José Paulo Paes (1997, p. 36) na<br />

síntese abaixo:<br />

Os ritmos breves, de um cantabile reforça<strong>do</strong> pela freqüência da rima; o<br />

vocabulário declaradamente poético, mais próximo da seriedade e da<br />

nobreza simbolistas que <strong>do</strong> plebeísmo paródico de 22; uma metáfora<br />

generalizante em que o real perde o que tenha de grosseiro e de chocante<br />

para sutilizar-se em arabescos; o flui<strong>do</strong>, o fugaz, o inefável e o ausente<br />

promovi<strong>do</strong>s a Leitmotiv _ eis alguns <strong>do</strong>s marcos de delimitação <strong>do</strong> território<br />

poético de Cecília Meireles.<br />

Os versos <strong>do</strong> poema 8 (MEIRELES, 2001, p. 1215-1216) dão mostras desse inventário<br />

numa primorosa musicalidade eivada de reflexão: “À beira d’água moro, / à beira d’água, / da<br />

água que choro. // Em verdes mares olho, / em verdes mares, / flor que desfolho. // Tu<strong>do</strong> o que<br />

sonho posso, / tu<strong>do</strong> o que sonho, / e me alvoroço. // Que a flor nas águas solto, / e em flor me


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 218<br />

perco / mas em saudade volto”. O efeito musical é intenso desde o primeiro verso, numa<br />

espécie de paralelismo, que repete metade <strong>do</strong> primeiro verso na posição <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> e modula<br />

o terceiro, repetin<strong>do</strong> a outra metade <strong>do</strong> primeiro verso modifican<strong>do</strong> apenas seu complemento.<br />

Tal procedimento se repete nas outras estrofes de três versos, perfazen<strong>do</strong> um total de quatro<br />

terças erigidas paralelisticamente. Também a rima marca a musicalidade da peça nos versos<br />

ímpares das terças. Embora heterométricos, estes versos exprimem isometria na mesma<br />

posição. Os primeiros versos de todas as terças são hexassílabos, ao passo que o segun<strong>do</strong> e o<br />

terceiro são menores, de quatro sílabas poéticas.<br />

No plano temático, o sofrimento diante das águas há de evocar sempre o mito de<br />

Narciso 1 , que também chorou “à beira d’água”, refém da paixão por si mesmo cultuada na<br />

própria imagem refletida no espelho líqui<strong>do</strong> de um lago qualquer. Em Narciso o desfecho <strong>do</strong><br />

mito é trágico com sua morte, mas fica a lembrança candente da sua desdita na flor branca de<br />

miolo amarelo _ o narciso _ em que se metamorfoseia. No poema, assim como no mito, as<br />

águas são verdes e o ato de mirar o reflexo é declara<strong>do</strong>: “em verdes mares olho”. Ainda na<br />

segunda terça, a flor, emblema <strong>do</strong> mito exposto, é despetalada, ao passo que, na terceira<br />

estrofe, o sonho se inflama <strong>do</strong> desejo de realizar uma suposta plenitude. Todavia, <strong>do</strong> mesmo<br />

mo<strong>do</strong> que em Narciso, o desejo aceso não se cumpre, ele se desfolha no eu-poético, que se<br />

perde em flor, mas nela sempre volta para reviver o dilema <strong>do</strong> moço: “em flor me perco / mas<br />

em saudade volto”.<br />

De encontro a essas ponderações, Vitorino Nemésio aponta alguns elementos comuns<br />

entre a poética ceciliana e a poesia de Rilke e Federico García Lorca. Em consonância com o<br />

primeiro, o estudioso português menciona o suave gongorismo exibi<strong>do</strong> na fundura da<br />

especulação e na finura da ideação lírica. Com o segun<strong>do</strong>, Nemésio (1970, p. 253) observa<br />

certo ar de família e o casticismo andaluz peculiares ao verso <strong>do</strong> espanhol. Tais elementos _ a<br />

1 Narciso nasce <strong>do</strong>s amores <strong>do</strong> rio Cefiso e da ninfa Liríope (rio da Beócia). Para saber se o filho viveria muito<br />

tempo, sua mãe decide interrogar o adivinho Tirésias que responde: “sim, se ele jamais se conhecer”. Belo e<br />

orgulhoso, Narciso permanece insensível ao amor. Durante uma caçada, a ninfa Eco toma-se de amores por ele,<br />

porém Narciso recusa seu afeto e já havia despreza<strong>do</strong> outras ninfas e rapazes. Um deles suplica à deusa<br />

Nêmesis que castigue essa frieza: “Que também possa ele amar e jamais possuir o objeto <strong>do</strong> seu amor”. Certa<br />

feita, no campo, Narciso aproxima-se de uma fonte límpida e, sentin<strong>do</strong> vontade de beber, debruça-se sobre a<br />

água para matar a sede. Percebe, então, sua imagem e imediatamente apaixona-se por ela. Sem saber, deseja a<br />

si mesmo. Consumi<strong>do</strong> por este fogo interior, esquece de comer e <strong>do</strong>rmir, e logo começa a definhar. Quan<strong>do</strong> se<br />

dá conta de que ama a própria imagem e está apaixona<strong>do</strong> por si mesmo, deseja morrer. Uma vez morto,<br />

Náiades e Dríades choram-no, quan<strong>do</strong>, subitamente, percebem que seu corpo desapareceu. No lugar dele,<br />

achava-se uma flor cujo centro da cor <strong>do</strong> açafrão é rodea<strong>do</strong> por pétalas brancas: o narciso. (FAVRE, 1998, p.<br />

747).


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 219<br />

finura <strong>do</strong> traço, a profundidade especulativa, a pureza reinante e a exigente contensão _ são<br />

reconhecidamente traços de estilo que se solidarizam no mosaico revela<strong>do</strong>r <strong>do</strong> “tom<br />

arquimoderno” da poética de Cecília, conforme expressão <strong>do</strong> próprio analista (NEMÉSIO,<br />

1970, p. 256).<br />

Certamente, a identificação da poeta com uma modernidade não demoli<strong>do</strong>ra justifica<br />

esse tom arquimoderno atribuí<strong>do</strong> por Nemésio. Ademais, a afinidade de Cecília com uma<br />

modernidade voltada para a atemporalidade foi decisiva para sua aproximação <strong>do</strong> pessoal de<br />

Festa, grupo espiritualista lidera<strong>do</strong> por Tasso da Silveira e Andrade Muricy que se inspiraram<br />

na rechaçada estética simbolista. A visão mística <strong>do</strong> grupo não apregoava uma religião<br />

específica, porém posicionava-se adversamente aos valores industriais e mecânicos cultua<strong>do</strong>s<br />

pelos modernistas.<br />

A propósito <strong>do</strong>s exageros e das muitas querelas estéticas da época, um ensaio <strong>do</strong> poeta<br />

Raul de Leoni sobre Marinetti chama atenção sobre o que realmente importa ao espírito<br />

contemporâneo da arte em qualquer tempo. Nas suas lúcidas palavras, “haverá sempre um<br />

homem novo, mas nunca um outro homem”. E isto porque “em essência o homem não é<br />

passadista, nem futurista, é um triste eternista, sempre adapta<strong>do</strong> ao presente, no seu destino de<br />

grande trágico da <strong>do</strong>r universal, a passar pela ironia das eternas esfinges” (LEONI, 1961, p.<br />

87). Justamente este posicionamento de “eternista” galgada no presente alçou Cecília ao<br />

patamar de moderna sem ter si<strong>do</strong> exteriormente modernista, uma vez que ela partiu <strong>do</strong><br />

simbolismo “e <strong>do</strong> que havia nele de conexões com o parnasianismo, rumo a uma arte moderna<br />

escoimada de seu materialismo limita<strong>do</strong>r, fazen<strong>do</strong> preponderar um desejo de unificação e não<br />

de cisão, de universalização e não de particularização” (SANCHES NETO, 2001, p. 24).<br />

Exprimin<strong>do</strong> ainda o culto <strong>do</strong> atemporal, esteira <strong>do</strong> universal imorre<strong>do</strong>uro, o poema 35<br />

é uma crítica <strong>do</strong> sujeito-poético a certa obstinação <strong>do</strong> poeta moderno em relação à rosa,<br />

motivo amplamente canta<strong>do</strong> pelas fileiras da tradição poética:<br />

Embora chames burguesa,<br />

ó poeta moderno, à rosa,<br />

não lhe tiras a beleza.<br />

A tua sanha imprevista<br />

contra a vítima formosa,<br />

é um mero ponto de vista.


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 220<br />

Pode a sanha ser moderna,<br />

pode ser louvada, a glosa:<br />

mas, sen<strong>do</strong> a Beleza eterna,<br />

que vos julgue o Tempo sábio:<br />

entre os espinhos, a rosa,<br />

entre as palavras, teu lábio.<br />

(MEIRELES, 2001, p. 1242)<br />

Endereçada ao poeta moderno, já na apóstrofe <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> verso, a poeta irá replicar a<br />

má vontade <strong>do</strong>s modernos para com a rosa. À alcunha de burguesa, a poeta argumenta que<br />

eles não podem tirar-lhe a beleza, terminan<strong>do</strong> por reduzir a “sanha imprevista” desses poetas a<br />

“um mero ponto de vista”. O eu lírico ainda pondera que o rancor deles pode estar sintoniza<strong>do</strong><br />

com os pressupostos modernistas, sen<strong>do</strong> alvo até de reconhecimento, mas sentencia a partir <strong>do</strong><br />

último verso da terceira estrofe que, “sen<strong>do</strong> a Beleza eterna”, a sabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> tempo deverá<br />

julgar o ressentimento dele contra a bela vítima que ora defende. No dístico final, a poeta<br />

interpõe curioso jogo imagético que, de certo mo<strong>do</strong>, desqualifica essa postura <strong>do</strong>s modernos e<br />

acaba por selar quase uma apologia a rosa, um <strong>do</strong>s seus mais ama<strong>do</strong>s motivos poéticos: se a<br />

beleza da rosa existe entremeada aos espinhos, palavras espinhosas podem também surgir no<br />

lábio de quem não entende a beleza nem sabe onde encontrar a eternidade.<br />

E, finalmente, também Jorge de Sena (apud GOUVÊIA, 2001, p. 86) advogou que<br />

Cecília era “filha moderna <strong>do</strong> simbolismo antigo”. Vale lembrar inclusive uma das<br />

composições cecilianas marcadas pelo substrato simbolista como, por exemplo, os versos a<br />

seguir <strong>do</strong> poema 19 de Metal rosicler: “Noite e dia sobem, / noite e dia descem / asas tênues<br />

<strong>do</strong> éter. / Silenciosas voam, / frias, frias, frias, / entre o vidro e o níquel, / entre o céu e a terra,<br />

/ lírio cristalino / com pólen de menta, / de menta, de cânfora / e de outras essências”<br />

(MEIRELES, 2001, p. 1225). Aqui, o repositório de elementos da estética simbolista é<br />

abundante nas escolhas lexicais abstratas, no culto <strong>do</strong> silêncio, na frialdade da ambiência, na<br />

transparência <strong>do</strong> vidro, na nobreza <strong>do</strong> níquel, na aposição de planos opostos _ céu e terra,<br />

noite e dia _, no uso das flores que aglutinam atributos de pureza, como o lírio, e no apreço às<br />

essências olfativas como menta e cânfora, além <strong>do</strong> próprio éter, matéria quintessencial das<br />

asas. O cultivo da espiritualidade, outra especificidade simbolista, é adensa<strong>do</strong> verso a verso,<br />

desde o informe sobre o vôo silencioso e frio das “asas tênues <strong>do</strong> éter” até atingir o ápice no<br />

“lírio cristalino”, símbolo maior da elevação dessas asas, acresci<strong>do</strong> de menta, cânfora e outros<br />

incensos conforme os mais genuínos pressupostos da arte simbolista.


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 221<br />

A pluralidade lírica de Cecília Meireles patenteia, assim, uma peculiar variedade<br />

estilística. Partin<strong>do</strong> da parentela inicial com o imaginário simbolista, a poeta vai assimilan<strong>do</strong>,<br />

progressivamente, peculiaridades de outras estéticas compon<strong>do</strong> um estilo diverso e<br />

independente no âmbito da moderna poesia brasileira conforme também enfatizam as<br />

indicações de Mário da Silva Brito (1968, p.169): “Figura solitária, buscou em todas as fontes<br />

os recursos que melhor servissem ao seu ideal poético. Aproveitou-se das lições <strong>do</strong><br />

Classicismo e <strong>do</strong> Gongorismo, <strong>do</strong> Romantismo e <strong>do</strong> Parnasianismo, e <strong>do</strong> Surrealismo”.<br />

Em larga medida, a feição gongorista costuma ser lembrada pelos estudiosos da lírica<br />

ceciliana. Certo barroquismo _ o que Brito e Nemésio preferem chamar de gongorismo _ é<br />

assinala<strong>do</strong> pela crítica no uso sistemático das oposições, perpetua<strong>do</strong>ras da incerteza, que<br />

parecem não se cansar de alimentar a contradição. Para Azeve<strong>do</strong>-Filho (1970, p. 48), o traço<br />

de natureza barroca decorre <strong>do</strong> conflito entre o real e o espiritual, na dualidade entre o<br />

concreto e o metafísico, uma vez que na base da cosmovisão poética ceciliana reside, como se<br />

disse, a consciência da fugacidade temporal. Darcy Damasceno aprofunda a discussão<br />

distinguin<strong>do</strong> a linhagem barroca quevedesca, e não a gongórica, como o motor de<br />

enfrentamento da transitoriedade <strong>do</strong> real na lírica ceciliana. Segun<strong>do</strong> o devota<strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r,<br />

Pela poesia de Cecília Meireles intromete-se o veio barroco de conteú<strong>do</strong><br />

mais melancólico, ou seja, o quevedesco. Isso antecipa a afirmação de que<br />

ao cintilamento da sensibilidade vai substituir o crepúsculo conceitual,<br />

descreven<strong>do</strong> o espírito a trajetória que vai das coisas físicas à sua figuração<br />

mental, das aparências aos conceitos, da realidade à transcendência<br />

(DAMASCENO, 1967, p. 42).<br />

De encontro a essa pluralidade de registros, a própria Cecília (apud NEVES, 2006, p.<br />

64), numa de suas correspondências, revela seu pensar sobre “a verdade <strong>do</strong> mistério humano”<br />

como sen<strong>do</strong> muito varia<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> a poeta, buscar-se, perder-se, contradizer-se,<br />

incansavelmente, detestan<strong>do</strong> e aman<strong>do</strong> a própria indefinição é naturalmente ser ela mesma.<br />

Depura<strong>do</strong> no filtro da sensibilidade poética, este sentimento dual <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong> ser é<br />

transposto aos poemas que tentam compensar o conflito mediante imagens reconcilia<strong>do</strong>ras das<br />

antíteses e para<strong>do</strong>xos senti<strong>do</strong>s, conforme inclusive afiança Octavio Paz (1982, p. 135), já no<br />

encalço da sua “Arte de Convergência”: “Nasci<strong>do</strong> da palavra, o poema desemboca em algo<br />

que a ultrapassa. [...] A imagem reconcilia os contrários, mas essa reconciliação não pode ser<br />

explicada pelas palavras _ exceto pelas da imagem, que já deixaram de sê-lo”.


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 222<br />

Esse anseio de harmonização das oposições revela-se, em Cecília, como um princípio<br />

de instrumentação poética. No discurso paziano, também, a conjunção <strong>do</strong>s contrários acorre<br />

quan<strong>do</strong> o crítico reflexiona sobre a imagem poética e seus des<strong>do</strong>bramentos. A tentativa é<br />

promover o amálgama ou a síntese das estranhezas na convergência de contradições quase<br />

nunca conciliáveis, pois, conforme Gilbert Durand (2001, p. 83), na dualidade <strong>do</strong>s contrários<br />

“cada termo antagonista precisa <strong>do</strong> outro para existir e para se definir”. Daí não ser demais<br />

observar que existir pelo outro é uma cumplicidade ilimitada da qual a lírica profunda de<br />

Cecília Meireles jamais se eximiu.<br />

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CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 224<br />

A POLÍTICA DE ARISTÓTELES NA OBRA HIPÉRION OU O<br />

EREMITA NA GRÉCIA, DE FRIEDRICH HÖLDERLIN<br />

Fábio Luís Chiqueto Barbosa 1<br />

Apareci<strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r Júnior 2<br />

RESUMO: O objetivo <strong>do</strong> presente texto é avaliar a presença das idéias da obra A Política, de Aristóteles, no<br />

romance Hipérion ou O Eremita na Grécia, de Friedrich Hölderlin. Para tanto, será realizada uma leitura<br />

aproximativa das duas obras, traçan<strong>do</strong>-se um paralelo entre elas e ressaltan<strong>do</strong>-se as congruências. Desta<br />

comparação surgem avaliações de algumas representações de caráter histórico, político e social presentes no<br />

romance.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Fronteiras Literárias, Literatura e História, Literatura <strong>do</strong> século XVIII<br />

ABSTRACT: This text aims to evaluate the insertion of some ideas of the Aristotle’s Politics in the Friedrich<br />

Hölderlin’s novel Hyperion. In order to accomplish this task, there will be put into practice an approximative<br />

reading of the works, in which a parallel vision of them will emerge and when the congruencies of both are<br />

emphasized. During this process there will be carried out evaluations of some representations of social, historical<br />

and political features of the novel.<br />

KEY WORDS: Literary Boundaries, Literature and History, Literature of the 18 th century.<br />

INTRODUÇÃO<br />

A obra Hipérion ou O Eremita na Grécia, de Friedrich Hölderlin, é publicada pela<br />

primeira vez em duas etapas. O primeiro volume sai em 1797 e o segun<strong>do</strong> em 1799, em uma<br />

tiragem de aproximadamente trezentos e sessenta exemplares. De caráter extremamente<br />

existencialista e de teor político, a obra pode ser entendida como um incentivo à reflexão <strong>do</strong><br />

povo alemão em relação ao contexto histórico da época, consideran<strong>do</strong>-se que por ocasião da<br />

sua publicação, não existia um esta<strong>do</strong> unifica<strong>do</strong> alemão, mas um império que se encontrava<br />

em vias de dissolução, o que acaba acontecen<strong>do</strong> formalmente em 06 de agosto de 1806, com a<br />

renúncia <strong>do</strong> último Sacro Impera<strong>do</strong>r, Francisco II, que passa a ser Francisco I da Áustria.<br />

Este pretenso caráter reflexivo configura-se na obra através <strong>do</strong> personagem Hipérion,<br />

que busca, na exaltação patriótica de sua terra-mãe, a sua formação como homem no senti<strong>do</strong><br />

mais eleva<strong>do</strong> possível, um homem como os <strong>do</strong>s tempos clássicos. Por isso, Hipérion lança-se<br />

na guerra, e para libertar sua pátria das mãos estrangeiras <strong>do</strong>s turcos otomanos, ele luta como<br />

1 Doutor em Língua e Literatura Alemã com especialização em Germanística Intercultural e Literatura<br />

Comparada. Professor <strong>do</strong> Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Ciências e Letras de Assis da<br />

Univers. Estadual Paulista – UNESP. e-mail: fabiochiqueto@assis.unesp.br<br />

2 Gradua<strong>do</strong> em Letras Português/Alemão pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Univers. Estadual<br />

Paulista – UNESP.


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 225<br />

lutavam os alemães que resistiam às investidas francesas em seu território.<br />

Ten<strong>do</strong> como fun<strong>do</strong> a guerra de libertação grega <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio otomano, o romance<br />

foca-se na exposição <strong>do</strong> processo de desenvolvimento moral, psicológico, social e político <strong>do</strong><br />

personagem Hipérion. Por este motivo, vale a pena avaliar de que maneira estes processos se<br />

delineiam, quais seus significa<strong>do</strong>s e implicações, assim como os efeitos busca<strong>do</strong>s pelo autor<br />

na representação de personagens que aparecem com o pano de fun<strong>do</strong> de um tempo-espaço<br />

historicamente importante, ou seja, quan<strong>do</strong> o Sacro Império Romano-Germânico caminhava<br />

para seu fim e, sob a liderança da Prússia, aguardava uma invasão francesa comandada por<br />

Napoleão I.<br />

Ao escrever uma obra, que gira em torno da peregrinação de Hipérion no caminho de<br />

volta a sua pátria, Friedrich Hölderlin promove a exploração da reflexão humana e da<br />

necessidade de auto-afirmação <strong>do</strong> homem ante o Esta<strong>do</strong>, chegan<strong>do</strong> a afirmar, através de<br />

Hipérion, que a reflexão torna o homem um mendigo, exterminan<strong>do</strong> seu entusiasmo, e<br />

obrigan<strong>do</strong>-o a observar o caminho miserável que a compaixão jogou em seu caminho. Cético<br />

da razão, o herói de Hölderlin, seguin<strong>do</strong> um irracionalismo abstrato, prefere confiar-se seu<br />

futuro ao entusiasmo.<br />

A idéia de aproximar os acontecimentos narra<strong>do</strong>s na obra e os acontecimentos<br />

históricos ocorri<strong>do</strong>s na época de sua concepção parte da peculiar forma como o autor adiciona<br />

elementos da sua percepção de mun<strong>do</strong> em seu discurso, utilizan<strong>do</strong>-se inclusive de pessoas<br />

presentes em sua vida para a construção de personagens. A fim de estudar o elo que liga o<br />

romance Hipérion aos acontecimentos históricos <strong>do</strong> Sacro Império Romano-Germânico, serão<br />

usadas as concepções presentes na obra A Política, de Aristóteles, obra que trata <strong>do</strong>s temas<br />

como a composição da cidade, das riquezas, da escravidão e da família.<br />

ESTES ESTADOS NADA ESTÁVEIS<br />

Aristóteles assevera em sua obra A Política, que o Esta<strong>do</strong> é uma sociedade e a<br />

esperança de um bem – o que acontece em toda associação que busca alcançar alguma<br />

vantagem –, mas, in<strong>do</strong> além, é aquela sociedade que no conjunto de associações surge como a<br />

mais importante e que contém em si todas as outras e que se propõe a maior vantagem<br />

possível. O Esta<strong>do</strong>, neste nível, poderia ser chama<strong>do</strong> de sociedade política.<br />

O pensa<strong>do</strong>r afirma ainda que “não só há mais beleza no governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> que no<br />

governo de si mesmo, mas, ten<strong>do</strong> o homem si<strong>do</strong> feito para a vida social, a política é,<br />

relativamente à ética, uma ciência mestra, ciência arquitetônica." (ARISTÓTELES, 1965,


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 226<br />

pg.6). Como se vê, para Aristóteles o destino teleológico <strong>do</strong> homem é social, pois ele<br />

reconhece no ser humano uma natureza essencialmente ligada à vida em sociedade.<br />

A grande dificuldade Hipérion enfrenta está em não se desvencilhar das concepções<br />

da Antigüidade sobre as conexões <strong>do</strong> homem e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Deste mo<strong>do</strong>, cada pensamento que<br />

dedica aos atos humanos transforma-se para ele em uma grande tortura uma vez que seus<br />

contemporâneos não compartilham de suas idéias, o que o leva a um esta<strong>do</strong> de melancolia.<br />

Hipérion considera que os homens da Grécia de seu tempo não são homens em um senti<strong>do</strong><br />

pleno, pois não se encaixam nas definições <strong>do</strong> homem livre aristotélico, que pode ser fixa<strong>do</strong><br />

da seguinte maneira:<br />

O homem é, por natureza, um animal político. E aquele que, por natureza e<br />

não por mero acidente, não faz parte de uma cidade é ou um ser degrada<strong>do</strong><br />

ou um ser superior ao homem; ele é como aquele a quem Homero censura<br />

por ser sem clã, sem lei e sem lar; tal homem é, por natureza, ávi<strong>do</strong> de<br />

combates, e é como uma peça isolada no jogo de damas. E evidente, assim, a<br />

razão pela qual o homem é um animal político em grau maior que as abelhas<br />

ou to<strong>do</strong>s os outros animais que vivem reuni<strong>do</strong>s. Dizemos, de fato, que a<br />

natureza nada faz em vão, e o homem é o único entre to<strong>do</strong>s os animais a<br />

possuir o <strong>do</strong>m da fala. O discurso, ele serve para exprimir o útil e o nocivo e,<br />

em conseqüência, o justo e o injusto. De fato, essa é a característica que<br />

distingue o homem de to<strong>do</strong>s os outros animais: só ele sabe discernir o bem e<br />

o mal, o justo e o injusto, e os outros sentimentos da mesma ordem; ora, é<br />

precisamente a posse comum desses sentimentos que engendra a família e a<br />

cidade. (ARISTÓTELES, 1965, p. 11).<br />

Hölderlin, por sua vez, expõe as idéias de seu personagem sobre a humanidade,<br />

acreditan<strong>do</strong> que o homem é capaz de colaborar para com o progresso <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, mas também<br />

capaz de destruir e provocar sua desgraça. Para Hipérion, aquele que quer fazer <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

uma escola moral, no intento de transformá-lo em seu céu, acaba por criar um inferno. Para<br />

Hipérion, “O Esta<strong>do</strong> não passa de uma casca grossa envolven<strong>do</strong> o número da vida, nada mais.<br />

E o muro ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Jardim das flores e <strong>do</strong>s frutos Humanos.” (HÖLDERLIN, 1994, p. 36).<br />

Para ele, a importância <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> está limitada ao acolhimento da humanidade, mas com<br />

conseqüências nefastas, uma vez que, como um muro, que impede o livre crescimento de<br />

flores e frutos, também a frutificação humana, seus atos ficam impedi<strong>do</strong>s de se desenvolver<br />

livremente, suprimi<strong>do</strong>s pela força <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Uma força que pressionaria a humanidade a não<br />

evoluir, a não ultrapassar o muro, como, como diria Hipérion.<br />

O princípio aristotélico ajusta-se bem ao enre<strong>do</strong> de Hipérion, uma vez que sua<br />

narrativa se desenrola em uma Grécia que se encontra sob o <strong>do</strong>mínio otomano, mais


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 227<br />

precisamente no perío<strong>do</strong> em que as revoltas gregas intensificam-se mais e mais. O fim da<br />

soberania grega e a conseqüente ascensão otomana iniciam-se com a queda de<br />

Constantinopla, em 1453 e perdurou por praticamente quatro séculos. Apesar da preservação<br />

de sua cultura e tradições, principalmente por meio da Igreja Orto<strong>do</strong>xa, os gregos tornam-se<br />

apáticos em relação ao <strong>do</strong>mínio estrangeiro e, da<strong>do</strong> o fato de não possuírem direitos políticos,<br />

não se encontravam na posição de conseguir modificar os destinos de sua nação por meio de<br />

mecanismos legitimamente democráticos.<br />

Diante <strong>do</strong>s séculos de <strong>do</strong>minação estrangeira e da passividade grega em relação a<br />

isso, Hipérion sofre, pois as atitudes concretas <strong>do</strong>s gregos de seu tempo não correspondem a<br />

seu ideal <strong>do</strong> grego clássico, que, em tese, lutaria pela sua liberdade. Em uma triste conversa<br />

com Alabanda, ele se refere aos gregos como “um povo cujo espírito e grandeza não geram<br />

mais espírito e grandeza, nada mais ten<strong>do</strong> em comum com outros que continuam sen<strong>do</strong><br />

humanos, não ten<strong>do</strong> mais direitos” (HÖLDERLIN, 1994, p. 32).<br />

Essa decepção com os gregos pode ser relaciona<strong>do</strong> ao contexto mais amplo <strong>do</strong>s<br />

esta<strong>do</strong>s alemães daquele perío<strong>do</strong>, cuja pulverização em vários e pequenos duca<strong>do</strong>s,<br />

principa<strong>do</strong>s, etc. impedia uma união germânica forte e a construção de um Esta<strong>do</strong> de poder<br />

verdadeiro. Enquanto em territórios vizinhos, como a França, uma força centraliza<strong>do</strong>ra<br />

construíra uma nação poderosa, os alemães experimentavam uma força desagrega<strong>do</strong>ra. A<br />

existência de uma fragmentação tão grande tornou a região um alvo para os grandes Esta<strong>do</strong>s<br />

organiza<strong>do</strong>s, como a França e mesmo a própria Prússia, que avançavam sobre os territórios<br />

alemães, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> com relativa facilidade as tentativas de proteção ao território ora<br />

invadi<strong>do</strong>.<br />

Hipérion acusa Belarmino, receptor de suas cartas, de conceder demasia<strong>do</strong> poder ao<br />

Esta<strong>do</strong>. Afirma com veemência que o Esta<strong>do</strong> não pode exigir aquilo que não pode impor<br />

(HÖLDERLIN, 1994, p. 35). Esta frase não só se refere aos acontecimentos da narrativa,<br />

como podem ser igualmente entendidas como uma crítica à passividade das comunidades<br />

germânicas da época em relação à sua situação esdruxuleante da existência de vários poderes<br />

sem efetivamente haver nenhum Esta<strong>do</strong>. Dessa forma, Hölderlin demonstra sua insatisfação<br />

com a in<strong>do</strong>lência <strong>do</strong>s alemães perante sua situação de <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s por vários senhores,<br />

respeitan<strong>do</strong> sempre as opções <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e não toman<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> na defesa de seus territórios<br />

ante as investidas estrangeiras.<br />

Hipérion é um homem que, aplican<strong>do</strong>-lhe a visão de Aristóteles, representa o ser sem<br />

lar, sem família e sem leis. Para o filósofo da antigüidade, o homem que por sua própria


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 228<br />

natureza não faz parte de uma cidade, de um Esta<strong>do</strong>, transformar-se-ia em um instrumento da<br />

guerra sem freios que, à semelhança de uma ave de rapina, estaria sempre pronto para cair<br />

sobre os outros.<br />

A primeira grande insurreição grega contra a <strong>do</strong>minação otomana foi a Revolta de<br />

Orlov, que, apesar apoio russo aos gregos, foi esmagada pelos otomanos. Valen<strong>do</strong>-se deste<br />

episódio histórico, Hölderlin inicia Hipérion no caminho da guerra. Convoca<strong>do</strong> por seu antigo<br />

amigo Alabanda para lutar nos frontes, Hipérion sente-se parte de algo maior e condena sua<br />

própria passividade e in<strong>do</strong>lência. Chama<strong>do</strong> para a guerra, não hesita em aban<strong>do</strong>nar aquela a<br />

qual considera o amor de sua vida, e parte, esperan<strong>do</strong> que seu sono seja como o óleo ao ser<br />

toca<strong>do</strong> pela chama.<br />

Hipérion é um personagem extremamente suscetível à melancolia. Sonha<strong>do</strong>r e<br />

idealista busca encontrar na Grécia moderna as mesmas bases ideológicas que moviam a<br />

Antigüidade clássica e acaba por decepcionar-se. Hipérion é o ser sem pátria, quan<strong>do</strong> alguém<br />

o chama de grego sente como se a coleira de um cão o estrangulasse (HÖLDERLIN, 1994, p.<br />

12). Os alemães, por sua vez, são bárbaros corrompi<strong>do</strong>s até a medula, ofensivos no maior grau<br />

de exagero para qualquer alma de boa ín<strong>do</strong>le (HÖLDERLIN, 1994, p. 159). Ele é também um<br />

ser sem família, pois seu pai o deserda assim que sabe de sua incursão no exército grego e sua<br />

mãe é ausente. Afetivamente, ele é uma pessoa que não deita raízes, pois se envolve com<br />

rápi<strong>do</strong> ar<strong>do</strong>r, mas que se entendia com ele com a mesma celeridade. Hipérion é aquele ser que<br />

não aceita leis, que contesta o esta<strong>do</strong> e sua força, que busca incessantemente o retorno a um<br />

Esta<strong>do</strong> que já não existe mais.<br />

Sem uma ideologia de sua própria época para perseguir, Hipérion busca a esperança<br />

de um futuro melhor nos clássicos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, e dessa forma, busca a possibilidade de<br />

participar de um confronto em que possa autoafirmar-se moral e ideologicamente, como<br />

forma de alcançar seu autoconhecimento e equilíbrio.<br />

Esta busca de Hipérion é semelhante à busca pelo equilíbrio <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s de poder.<br />

Em A Política, Aristóteles já dizia que para a formação de um Esta<strong>do</strong> de poder há a<br />

necessidade <strong>do</strong> equilíbrio entre os vários tipos de poder, e já naquela época pregava a<br />

necessidade de se promover o equilíbrio entre os Esta<strong>do</strong>s oligárquicos e democráticos, de<br />

forma a utilizar-se somente as melhores teorias de cada um. Para tanto, o pensa<strong>do</strong>r acreditava<br />

que um Esta<strong>do</strong> deveria emprestar, da oligarquia, as eleições, e da democracia a elegibilidade<br />

sem consideração pela renda.<br />

Apesar de não empreender uma busca pela democracia nos moldes que encontramos


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 229<br />

nos dias de hoje, Hipérion, após raciocinar sobre a possibilidade da existência de alguma<br />

guerra que ainda pudesse derramar seu sangue junto com seu amigo Alabanda, conclui que<br />

"Sem dúvida, melhor ainda seria se eu pudesse viver, viver nos novos templos, na Agora, a<br />

nova assembléia de nosso povo, e com grande prazer apaziguar a grande aflição"<br />

(HÖLDERLIN, 1994, p.157). Como se pode perceber, o personagem conclui que melhor<br />

solução que poderia encontrar para seus infortúnios seria a volta simbólica à Agora, nome da<br />

praça pública das cidades da Grécia Antiga onde ocorriam as assembléias públicas e onde os<br />

gregos podiam opinar sobre o futuro da nação e <strong>do</strong> povo de forma democrática.<br />

É PRECISO TRAIR TUDO E SUSCITAR A SOLIDÃO<br />

Hipérion sente a degradação e a degeneração. Ele configura no outro a maneira como<br />

acredita que os homens devem agir. Quan<strong>do</strong>, porém, percebe que a imagem que construiu<br />

deste outro não condiz com a realidade, ele sofre. Em tristeza e desorienta<strong>do</strong>, após ser<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> por Adamas, Hipérion busca na solidão o conforto para as decepções que sofre,<br />

pois, para ele, a natureza humana dissipava-se na multiplicidade <strong>do</strong> reino animal, isto é,<br />

degradava-se:<br />

Por fim, sentia-me cansa<strong>do</strong> demais para me lançar à procura de uvas no deserto e de<br />

flores num campo gela<strong>do</strong>. Decidi viver então sozinho e o espírito suave de minha<br />

juventude quase desapareceu por completo de minha alma. O caráter irremediável<br />

<strong>do</strong> século ficou evidente pra mim em tu<strong>do</strong> o que contei e não contei, e também senti<br />

falta <strong>do</strong> belo consolo de achar meu mun<strong>do</strong> em alguma alma, de abraçar a minha<br />

espécie em alguma imagem amiga. (HÖLDERLIN, 1994, p. 27).<br />

Aristóteles considerava que o homem deve preferir a vida virtuosa, sem<br />

desconsiderar, porém, que muitos homens livres acreditariam que os cargos políticos não<br />

teriam importância, sen<strong>do</strong> a vida de um homem livre muito mais importante que as confusões<br />

criadas num âmbito político. Em contrapartida, outros preferem a vida política, não<br />

acreditan<strong>do</strong> na possibilidade de se permanecer impassível ante aos acontecimentos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

e mesmo assim alcançar a felicidade.<br />

Para Aristóteles o homem, assim como Hipérion, busca a felicidade, e a plenitude<br />

deste sentimento reside no pensamento puro. Entretanto, para deixar-se classificar plenamente<br />

como homem, é condição natural <strong>do</strong> homem ser um animal cívico. Hipérion renega esta<br />

prerrogativa ao afastar-se de to<strong>do</strong>s de tal forma que, quan<strong>do</strong> não é aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>, busca uma<br />

maneira de evadir-se <strong>do</strong> seio onde se encontra incluí<strong>do</strong>. O sentimento de solidão e aban<strong>do</strong>no


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Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 230<br />

que é tão latente nele está liga<strong>do</strong> intimamente ao seu mo<strong>do</strong> de sentir os acontecimentos <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>, como é possível observar após sua primeira separação de Alabanda. Este autoflagelo<br />

o autoriza a considerar-se o mais pobre <strong>do</strong>s homens, o mais desgraça<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s. Este<br />

isolamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, essa exclusão de si mesmo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> das coisas seria apresentada por<br />

Aristóteles como um problema tanto <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s quanto <strong>do</strong>s homens, como se pode conferir:<br />

Os Esta<strong>do</strong>s mais isola<strong>do</strong>s não podem permanecer na ociosidade, mesmo que<br />

queiram, a não ser por frações de tempo e por intervalos. Se não têm comunicação<br />

com o exterior, há ao menos comunicação necessária de uma parte a outra. O mesmo<br />

ocorre com as cidades e com os indivíduos entre si. Nem mesmo o próprio Deus e o<br />

mun<strong>do</strong> inteiro seriam felizes se, além de seus atos internos, eles não se<br />

manifestassem exteriormente pelos seus benefícios. É, portanto, claro que a fonte da<br />

felicidade é a mesma para os Esta<strong>do</strong>s epara os particulares. (ARISTÓTELES, 1965,<br />

p. 46).<br />

Para Aristóteles, o isolamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> seria tão prejudicial quanto o isolamento<br />

humano, de forma tal que dessa maneira a felicidade seria inatingível. Esta afirmação é muito<br />

interessante na consideração <strong>do</strong> momento histórico vivi<strong>do</strong> pelos alemães na época da<br />

publicação da obra.<br />

Hipérion emerge como um modelo exemplar para a construção de um Esta<strong>do</strong><br />

germânico a partir da realidade de territórios separa<strong>do</strong>s e invadi<strong>do</strong>s. Enquanto lê os relatos de<br />

Alabanda sobre os acontecimentos da guerra de libertação grega, e sua eclosão em Salamina,<br />

Hipérion envergonha-se de sua própria história de guerra, o que faz recordar a afirmação de<br />

Aristóteles de que nem mesmo o próprio Deus poderia ser feliz preocupan<strong>do</strong>-se apenas com<br />

seus atos internos. Mesmo isolan<strong>do</strong>-se, Hipérion necessita se manifestar, precisa suplantar sua<br />

passividade, assim como os alemães deveriam aban<strong>do</strong>nar a zona de conforto de sua condição<br />

pobre coitada e de vítima de outros povos para assumir sua estatura e configuração de direito.<br />

O para<strong>do</strong>xo total da ligação da narrativa com a História está no fato de Hipérion ter<br />

dificuldade em aceitar o destino de sua época, ao contrário <strong>do</strong>s alemães, que permanecem,<br />

assim como os gregos sob o <strong>do</strong>mínio otomano, impassíveis diante de acontecimentos que<br />

alteram de forma significativa to<strong>do</strong> o futuro de uma época. Tal para<strong>do</strong>xo revela-se no trecho<br />

que se segue:<br />

O povo ateniense cresceu, de maneira menos incomodada possível, e mais livre de<br />

influência violenta que qualquer povo da terra. Nenhum conquista<strong>do</strong>r o enfraqueceu,<br />

nenhuma sorte na guerra o inebriou, nenhum culto estranho o entorpeceu, nenhuma<br />

sabe<strong>do</strong>ria afoita impeliu-o a um amadurecimento prematuro. Os filhos de uma mãe<br />

assim são grandes e colossais, mas jamais serão seres belos ou seres humanos, o que<br />

dá no mesmo, ou só muito depois, quan<strong>do</strong> os contrastes combaterem entre si em<br />

toda dureza para, no fim, não fazerem as pazes (HÖLDERLIN, 1994, p. 82).


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 231<br />

Hipérion valoriza uma antigüidade clássica em que se deve considerar as influências<br />

exteriores como algo extremamente prejudicial. Enquanto o império germânico era<br />

fragmenta<strong>do</strong> por invasões e pela presença de novos conquista<strong>do</strong>res, Hölderlin levanta<br />

Hipérion como defensor de uma sociedade civil de honra e virtude, não tanto uma sociedade<br />

de vida comum.<br />

O isolamento de Hipérion está relaciona<strong>do</strong> com sua idealização demasiada <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> está só, sente-se inútil, porém, nada pode ser mais terrível que ter to<strong>do</strong>s os<br />

seus sonhos e ideais destruí<strong>do</strong>s. Por isso, quan<strong>do</strong> encontra alguém que o entende e valoriza<br />

seus sentimentos alegra-se, pois ali encontra um reflexo de seus pensamentos e nisso pode<br />

fixar-se. Mas se o reflexo que espera não vem, ele parte, ou revolta-se, pois se sente como<br />

alvo de traição.<br />

Ao mesmo tempo em que Hipérion surge como um espelho para que o povo alemão<br />

possa se mirar, ele transforma-se em porta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> importante alerta <strong>do</strong> mal que pode originar-<br />

se de um ideal de liberdade deturpa<strong>do</strong>, o que, segun<strong>do</strong> Aristóteles, originar-se-iam em Esta<strong>do</strong>s<br />

que subsistem na violência e não pelo interesse comum:<br />

E ainda:<br />

Acabou, Diotima! Nossa gente saqueou, assassinou indiscriminadamente, mesmo<br />

nossos irmãos foram abati<strong>do</strong>s, os gregos em Misistra, os inocentes, ou vagueiam<br />

desampara<strong>do</strong>s, e suas lastimosas feições mortas clamam vingança, ao céu e à terra,<br />

contra os bárbaros à frente <strong>do</strong>s quais eu estava. (HÖLDERLIN, 1994, p. 121).<br />

Acabo de ouvir que nosso exército desonra<strong>do</strong> foi dispensa<strong>do</strong>. Os covardes toparam<br />

perto de Trípodi com um ban<strong>do</strong> de albaneses, inferior em número à metade deles.<br />

Mas como não havia nada para pilhar, os miseráveis foram embora. Os russos, que<br />

ousaram empreender conosco a campanha, quarenta homens valentes, resistiram<br />

sozinhos e to<strong>do</strong>s encontraram a morte. (HÖLDERLIN, 1994, p. 122).<br />

O isolamento de Hipérion ocorre devi<strong>do</strong> a seu receio de tornar-se algo que abomina.<br />

Segun<strong>do</strong> Aristóteles, isso seria resulta<strong>do</strong> da consideração humana da <strong>do</strong>minação como objeto<br />

da política, sen<strong>do</strong> que aquilo que não se considera justo nem útil para si poderia ser utiliza<strong>do</strong><br />

contra outros sem nenhum pu<strong>do</strong>r. Hipérion alerta os alemães da necessidade de não se desejar<br />

uma justiça no Esta<strong>do</strong> que beneficie apenas a si, o que seria, como diria Aristóteles, revoltante<br />

e absur<strong>do</strong>, a menos que a natureza houvesse destina<strong>do</strong> uns a <strong>do</strong>minar e tenha recusa<strong>do</strong> a<br />

outros esta aptidão.<br />

Sua melancolia com a derrocada de seus ideais é plenamente perceptível quan<strong>do</strong>,


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Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> –UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 232<br />

mais uma vez, Hipérion clama por solidão, desvian<strong>do</strong>-se de sua ligação com Diotima, com a<br />

afirmação: “Ah! Eu lhe prometi uma Grécia e você recebe agora apenas um canto fúnebre.<br />

Que seja você mesmo o Seu consolo.” (HÖLDERLIN, 1994, p. 122). Hipérion representa<br />

simbolicamente um alento e um alerta e converte-se, ao mesmo tempo, em um símbolo de luta<br />

e a representação de um fracasso.<br />

PASSAGEIROS CLANDESTINOS DOS DESTINOS DA NAÇÃO<br />

As duas últimas cartas trazem uma crítica que, se não são das mais vorazes, com<br />

certeza são das mais impactantes feitas a um povo através da literatura. Depois de toda a<br />

crítica que Hipérion faz a seus contemporâneos gregos, em oposição aos clássicos da<br />

antigüidade, é na crítica aos alemães que fica mais clara a sua concepção de como as pessoas<br />

deveriam se portar em seu tempo, e como consideraria aqueles que se distanciam da maneira<br />

de viver <strong>do</strong>s clássicos.<br />

A narrativa <strong>do</strong> Hipérion acontece em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ano de 1770, perío<strong>do</strong> em que, na<br />

obra, o personagem recebe a carta de seu amigo Alabanda, informan<strong>do</strong>-o da participação <strong>do</strong>s<br />

Russos como alia<strong>do</strong>s na guerra de libertação grega. Nessa época, os esta<strong>do</strong>s germânicos<br />

estavam se recuperan<strong>do</strong> da Guerra <strong>do</strong>s Sete Anos, conflito trava<strong>do</strong> entre Inglaterra e Prússia<br />

contra a Áustria e França, que durou de 1756 a 1763 e que foi motiva<strong>do</strong> por rivalidades<br />

coloniais e econômicas franco-inglesas na América <strong>do</strong> Norte e na Índia. Além disto, havia<br />

ainda o desejo <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> austríaco de recuperar a Silésia, que fora cedida à Prússia.<br />

No trecho de A Política abaixo cita<strong>do</strong>, encontramos um mo<strong>do</strong> de entender como<br />

Hipérion encarava os alemães de sua época. Não se pode desconsiderar aqui, obviamente, as<br />

informações acima sobre o contexto histórico da época, uma vez que o romance tem suas<br />

bases principais na história <strong>do</strong>s povos europeus, sejam eles gregos, alemães ou russos:<br />

Da mesma forma, a natureza proveu as suas necessidades depois <strong>do</strong> nascimento; foi<br />

para os animais em geral que ela fez nascerem as plantas; é aos homens que ela<br />

destina os próprios animais, os <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>s para o serviço e para a alimentação, os<br />

selvagens, pelo menos a maior parte, para a alimentação e para diversas utilidades,<br />

tais como o vestuário e os outros objetos que se tiram deles. A natureza nada fez de<br />

imperfeito, nem de inútil; ela fez tu<strong>do</strong> para nós.<br />

A própria guerra é um meio natural de adquirir; a caça faz parte dela; usa-se desse<br />

meio não apenas contra os animais, mas também contra os homens que, ten<strong>do</strong><br />

nasci<strong>do</strong> para obedecer, se recusam a fazê-lo. Este tipo de guerra nada tem de injusto,<br />

sen<strong>do</strong>, por assim dizer, declarada pela própria natureza. (ARISTÓTELES, 1965,<br />

p.20).<br />

Segun<strong>do</strong> Aristóteles, os povos nasci<strong>do</strong>s para obedecer, que a isso se recusam, são


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 233<br />

alvos <strong>do</strong> ataque de outros povos. Para ele, ainda, quan<strong>do</strong> se refere às monarquias, alguns<br />

povos bárbaros dão grandes exemplos de como funcionaria este poder, quase despótico, mas<br />

legítimo e hereditário. Segun<strong>do</strong> sua concepção, os bárbaros teriam naturalmente a alma mais<br />

servil que os gregos e os asiáticos, suportan<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que os europeus, sem murmúrios,<br />

serem governa<strong>do</strong>s pelos senhores.<br />

O cenário alemão <strong>do</strong> século XVIII pode ser visto da ótica aqui proposta por<br />

Aristóteles. Enquanto na Grécia de Hipérion havia um levante <strong>do</strong> povo pela independência, na<br />

Alemanha havia passividade e in<strong>do</strong>lência <strong>do</strong> povo, enquanto os detentores <strong>do</strong> poder <strong>do</strong>s<br />

Esta<strong>do</strong>s trabalhavam com o interesse quase exclusivo de expandir territorialmente e de tornar<br />

os seus próprios redutos de poder potências econômicas. Isso talvez dê uma chave para<br />

entender o porquê, no texto, Hipérion referir-se aos alemães como “bárbaros desde os tempos<br />

remotos, torna<strong>do</strong>s ainda mais bárbaros pelo labor, pela ciência e pela religião, profundamente<br />

incapazes de qualquer sentimento divino.” (HÖLDERLIN, 1994, p. 159).<br />

Um certo alinhamento das opiniões de Hipérion e de Aristóteles pode ser,<br />

finalmente, claramente identificada:<br />

São palavras duras, mas vou dizê-las porque é verdade: não consigo imaginar um<br />

povo tão dilacera<strong>do</strong> como os alemães. Você vê artesãos, mas não homens;<br />

pensa<strong>do</strong>res, mas não homens; sacer<strong>do</strong>tes, mas não homens; senhores e servos,<br />

jovens e pessoas sérias, mas não homens... Não parece um campo de batalha no qual<br />

mãos, braços e to<strong>do</strong>s os membros esquarteja<strong>do</strong>s jazem mistura<strong>do</strong>s, enquanto o<br />

sangue derrama<strong>do</strong> da vida se desvanece na areia? (HÖLDERLIN, 1994, p. 160).<br />

Para Hipérion, um ser humano adestra<strong>do</strong> serve apenas a seus próprios objetivos e<br />

busca apenas seu próprio proveito. Essa afirmação vem de encontro da afirmação de<br />

Aristóteles de que o homem só seria ele mesmo no seio da cidade, e nisso estaria sua condição<br />

de animal cívico. Para Aristóteles seria esta uma situação bela, boa e desejável, apesar de sua<br />

seqüela de confusões e de deveres incessantes e varia<strong>do</strong>s. Hipérion critica a passividade <strong>do</strong>s<br />

homens, porém, está análise é superficial e preconceituosa, pois seus argumentos baseiam-se,<br />

apenas, em suas opiniões sobre como a vida deveria ser vivida.<br />

Apesar de o pensamento de Hipérion buscar um alinhamento com o de Aristóteles no<br />

que diz respeito à <strong>do</strong>minação de um povo por um Esta<strong>do</strong> despótico, é justamente este<br />

posicionamento contrário às formações de poder que os separam. Apesar de os alemães não<br />

demonstrarem força ante as ameaças estrangeiras, a definição aristotélica prevê as razões que<br />

autorizam o homem ao conformismo: o lar, a família e o cumprimento das leis. Hipérion


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Corumbá, MS, maio 2008, n. 1, p. 234<br />

pensa livremente, pois não tem lar nem família e, por isso, também não sente nenhum respeito<br />

para com o Esta<strong>do</strong>. Nesta linha de raciocínio, nem mesmo a luta de Hipérion pela libertação<br />

de sua pátria pode ser considerada verdadeira, uma vez que o ideal de nação que busca não<br />

existe mais. Ele aventura-se na guerra com o intuito de conseguir a liberdade de seu povo,<br />

todavia exalta a Grécia clássica e condena veementemente a Grécia contemporânea. Tal<br />

mecanismo, diria Aristóteles, põe-se a funcionar quan<strong>do</strong> um homem que não tenha lar, família<br />

ou leis respiraria somente a guerra, estan<strong>do</strong> sempre disposto a cair sobre outro.<br />

Hipérion define os territórios germânicos como terras onde forasteiros sentem-se a<br />

vontade para instalar-se e demorar-se. Isso se daria, segun<strong>do</strong> suas concepções, pelo fato de os<br />

alemães permanecerem impassíveis diante da presença estraneira, o que deformaria os<br />

cidadãos, impedin<strong>do</strong>-os de se tornarem plenamente homens conforme a definição aristotélica.<br />

Não só isso, esse convívio pacífico e apático tornaria o alemão degrada<strong>do</strong> e servil, de mo<strong>do</strong><br />

que o povo estaria exposto permanentemente à humilhação e, <strong>do</strong> crescente senso de servidão,<br />

nasceria apenas uma deplorável coragem grosseira.<br />

Dessa forma, os alemães seriam para Hipérion, apenas, passageiros clandestinos <strong>do</strong><br />

destino de sua própria nação, não influencian<strong>do</strong> no futuro da mesma, numa impensável e para<br />

ele insuportável conivência com os fatos que afligem seu território. Mais que isso, a<br />

clandestinidade também atingiria os alemães que leriam a obra na data de sua publicação,<br />

assim, sen<strong>do</strong> o romance verdadeiramente escrito, como diz Hölderlin, para receber o amor <strong>do</strong>s<br />

alemães.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ARISTÓTELES. A Política. Rio de Janeiro: Edições de Ouro. 1965.<br />

CARPEAUX, Otto Maria. A literatura alemã. 2. ed. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.<br />

HÖLDERLIN, Friedrich. Hipérion ou o Eremita na Grécia. Petrópolis: Editora Vozes, 1994.<br />

HÖLDERLIN, Friedrich. Poemas. trad. José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

1991.<br />

MARTINI, Fritz. História da literatura alemã. Lisboa: Editorial Estúdios, 1971.


RESENHA


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 236<br />

LÍNGUA E LITERATURA: OPRESSÃO E LIBERDADE<br />

Ana Karla Pereira de Miranda 1<br />

Isaias Leonidio Farias 2<br />

Esta resenha tem por objetivo discutir as concepções barthesianas de Língua e<br />

Literatura, presentes em seu texto Aula, resulta<strong>do</strong> de sua aula inaugural no Collège de France<br />

para a disciplina de Semiologia. Neste texto o autor discute o que é a língua em relação aos<br />

falantes e como a literatura, forma privilegiada desta última, contribui para tentarmos fugir<br />

das “amarras” da comunicação humana. Para tanto, neste artigo faz-se referências a outros<br />

textos, <strong>do</strong> próprio Barthes e de outros autores, assim como exemplos que atestam as palavras<br />

<strong>do</strong> semiólogo francês.<br />

Roland Barthes foi professor, escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e<br />

filósofo. Em 7 de janeiro de 1977 pronunciou a aula inaugural da cadeira de Semiologia <strong>do</strong><br />

Colégio de França, que mais tarde deu origem ao texto Aula, edita<strong>do</strong> no Brasil pela Editora<br />

Cultrix e traduzi<strong>do</strong> por Leyla Perrone-Moisés.<br />

Neste ensaio trataremos somente da visão que Barthes tem de língua e de Literatura,<br />

visto o alcance teórico que compreende a referida produção. Procuramos utilizar textos que<br />

ratificam essa visão, como Ensino da Gramática. Opressão? Liberdade?, de Evanil<strong>do</strong><br />

Bechara, A Literatura contra o efêmero, de Umberto Eco, O prazer <strong>do</strong> texto, <strong>do</strong> próprio<br />

Barthes, entre outros. Os textos foram escolhi<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong> critério de que to<strong>do</strong>s eles<br />

contribuem para uma melhor compreensão daquilo que Barthes ensinou em sua Aula:<br />

Mas a Língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária,<br />

nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois fascismo não é impedir<br />

de dizer, é obrigar a dizer. (Barthes, 1996, p. 14).<br />

Nas palavras tomadas em epígrafe, Barthes deixa claro seu ponto de vista sobre a<br />

língua: “[…] ela é simplesmente: fascista […]” (op. cit). Na concepção barthesiana<br />

apresentada em seu Aula, a língua é fascista, pois ela nos obriga a dizer, ou seja, para nos<br />

expressar temos que usar as palavras existentes na língua, não podemos criar palavras novas,<br />

nem modificar as já existentes. Também temos que nos submeter às suas exigências, normas e<br />

regras gramaticais. Ela é antidemocrática e autoritária, como o sistema político lidera<strong>do</strong> por<br />

1 Aluna especial <strong>do</strong> Mestra<strong>do</strong> em Estu<strong>do</strong>s de Linguagens da UFMS.<br />

2 Mestran<strong>do</strong> em Estu<strong>do</strong>s de Linguagens da UFMS.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 237<br />

Benito Mussolini na Itália, que obrigava os cidadãos a servir o Esta<strong>do</strong> e a seguir a autoridade<br />

que os representava.<br />

Segun<strong>do</strong> Ferdinand de Saussure, a língua “é a parte social da linguagem, exterior ao<br />

indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la […]” (2001, p. 22). O homem<br />

está sujeito a essa língua na qual ele não pode interferir. Não podemos utilizar, por exemplo, a<br />

palavra pássaro para nos referirmos aos cachorros, pois estas não possuem o mesmo<br />

significa<strong>do</strong>. A língua só nos permite utilizar uma palavra para substituir outra quan<strong>do</strong><br />

apresentam alguma relação sinonímica. Está socialmente estabeleci<strong>do</strong> que pássaro é um<br />

“nome comum às aves passeriformes” (Ferreira, 2000, p. 518) e cachorro é “qualquer cão”<br />

(idem, p. 117). Portanto, não pertence ao indivíduo o poder de exercer qualquer influência<br />

sobre “sua” linguagem, pois ela já foi estabelecida por um contrato que o falante foi obriga<strong>do</strong><br />

a assinar, sem ter a chance de ao menos lê-lo (cf. Saussure, 2001, p. 22), e que já estava posto<br />

quan<strong>do</strong> viemos ao mun<strong>do</strong>. “Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, […] é<br />

sujeitar […]” (Barthes, 1996, p. 13. Grifo nosso). As palavras de Barthes comprovam esta<br />

sujeição da qual o indivíduo é refém.<br />

Barthes também vê a língua como instância opressiva, uma vez que “toda língua é uma<br />

classificação, e […] toda classificação é opressiva” (idem, p. 12). Nesse senti<strong>do</strong>, a língua<br />

exerce um poder tirânico sobre o falante, obrigan<strong>do</strong>-o a usar uma palavra ao invés de outra.<br />

Em português, por exemplo, o indivíduo é obriga<strong>do</strong> a usar a forma senhor para indicar uma<br />

relação de submissão ao poder de seu interlocutor, sen<strong>do</strong> proibida, ou ao menos questionável,<br />

a forma você nesse contexto. Isso também ocorre em espanhol com as formas tú e usted. Não<br />

podemos usar o tú em uma conversa se nosso interlocutor for uma pessoa que não<br />

conhecemos. Nesse caso só podemos usar o usted. Toda língua obriga-nos a determina<strong>do</strong>s<br />

usos e nos proíbe outros, exercen<strong>do</strong> assim seu poder fascista.<br />

Ao afirmar que “é bom que os homens, no interior de um mesmo idioma [...] tenham<br />

várias línguas” (1996, p. 24), Barthes lembra-nos de outra maneira como a língua pode<br />

mostrar-se opressiva. Maneira essa também explicitada por Evanil<strong>do</strong> Bechara em seu livro<br />

Ensino da Gramática. Opressão? Liberdade?, no qual o estudioso afirma que “[...] há<br />

realmente opressão, na medida em que não se dá ao falante a liberdade de escolher, para cada<br />

ocasião <strong>do</strong> intercâmbio social, a modalidade que melhor lhe sirva à mensagem, ao seu<br />

discurso” (1989, p. 14. Grifo <strong>do</strong> autor). Sen<strong>do</strong> assim, a língua também oprime o sujeito na


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 238<br />

medida em que ele não dispõe das variedades lingüísticas 1 que lhe são necessárias para se<br />

comunicar em determina<strong>do</strong>s contextos sociais.<br />

Muitas vezes o falante também se vê obriga<strong>do</strong> a utilizar a variedade mais aceita pela<br />

sociedade (a variedade dita “culta” ou “padrão”), mesmo que essa não seja a mais usual. Vale<br />

ressaltar que “somente uma parte <strong>do</strong>s integrantes das sociedades complexas, por exemplo, tem<br />

acesso a uma variedade ‘culta’ ou ‘padrão’, considerada geralmente ‘a língua’, e associada<br />

tipicamente a conteú<strong>do</strong>s de prestígio” (Gnerre, 1991, p. 6), sen<strong>do</strong> essa, portanto, outra forma<br />

de opressão lingüística.<br />

Além disso, a língua impõe regras de uso ao indivíduo, ou seja, ele deve saber: “a)<br />

quan<strong>do</strong> pode falar e quan<strong>do</strong> não pode, b) que tipo de conteú<strong>do</strong>s referenciais lhe são<br />

consenti<strong>do</strong>s, c) que tipo de variedade lingüística é oportuno que seja usada” (op. cit).<br />

Conhecimentos indispensáveis à comunicação humana e que mostram a opressividade<br />

lingüística ao condicionar o falante a falar em certas ocasiões e calar em outras; e ao falar,<br />

restringir-se a determina<strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s e utilizar a variedade correta. Corren<strong>do</strong> o risco das<br />

sanções de que compõem o contrato a priori.<br />

Por ser a linguagem humana sem exterior, um lugar fecha<strong>do</strong> (cf. Barthes, 1996, p. 16),<br />

só é possível libertar-se de seu poder através da própria língua:<br />

[...] só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa<br />

trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua<br />

fora <strong>do</strong> poder, no esplen<strong>do</strong>r de uma revolução permanente da linguagem, eu<br />

a chamo, quanto a mim: literatura (Barthes, 1996, p. 16. Grifo nosso).<br />

“Estamos entulha<strong>do</strong>s pela linguagem”, diz Barthes n’ O prazer <strong>do</strong> texto. Estamos tão<br />

inseri<strong>do</strong>s nela que se torna impossível conceber uma existência para além de suas amarras de<br />

poder. A língua como instrumento máximo da linguagem apresenta toda uma estrutura que<br />

nos prende, nos aprisiona. Como já explicita<strong>do</strong>, ela detém um poder que a torna uma<br />

instituição “fascista”.<br />

Embora não possamos conceber uma existência externa à linguagem e,<br />

conseqüentemente, não poderíamos nos livrar de sua ação de poder, é dentro dessa mesma<br />

linguagem que encontramos uma luz, um meio, não de fugir, mas de enganar, trapacear o<br />

1 Variedade lingüística são os diferentes mo<strong>do</strong>s de falar emprega<strong>do</strong>s por uma comunidade (cf. Alkmim, 2001,<br />

p. 32).


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 239<br />

poder. Esse meio utiliza-se <strong>do</strong> mesmo instrumento utiliza<strong>do</strong> pelo poder. É a literatura que, no<br />

interior da linguagem, fazen<strong>do</strong> uso da língua, combate a língua, a sabota.<br />

Barthes afirma n’ O prazer <strong>do</strong> texto que estamos presos na verdade das linguagens.<br />

Saben<strong>do</strong> que um texto (literário) é linguagem, portanto também estaríamos presos à literatura?<br />

Ou a literatura estaria fora das linguagens? É no mesmo texto que o estudioso nos apresenta<br />

uma resposta; ele diz que é por meio de um trabalho progressivo de extenuação que o texto<br />

pode exteriorizar os falares <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sem se refugiar noutro falar:<br />

Primeiro o texto liquida toda metalinguagem [...]. Em seguida, o texto<br />

destrói até o fim, até a contradição, sua própria categoria discursiva, sua<br />

referência sociolingüística (seu ‘gênero’): é ‘o cômico que não faz rir’ [...].<br />

Por fim, o texto pode, se tiver gana, investir contra as estruturas canônicas da<br />

própria língua (Barthes, 1987, p. 42. Grifo <strong>do</strong> autor).<br />

Mas qual seria a verdade da literatura? O que ela sabe? Barthes responde que a<br />

literatura mobiliza um saber que nunca é inteiro, muito menos derradeiro. Ela não sabe<br />

alguma coisa; ela sabe de alguma coisa; ela sabe algo das coisas.<br />

Por exemplo, o texto de Italo Calvino, no qual Marco Pólo descreve várias cidades <strong>do</strong><br />

império ao impera<strong>do</strong>r Kublai Khan, nos apresenta uma verdade sobre o universo, sobre a<br />

humanidade e suas obras. Tu<strong>do</strong> isso num pequeno capítulo sobre Eudóxia: nessa cidade<br />

haveria um tapete que seria sua verdadeira representação. Ao se estabelecer esta relação entre<br />

os <strong>do</strong>is objetos, um oráculo foi interroga<strong>do</strong>: “Um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is objetos – foi a resposta – tem a<br />

forma que os deuses deram ao céu estrela<strong>do</strong> e às órbitas nas quais os mun<strong>do</strong>s giram; o outro é<br />

um reflexo aproximativo <strong>do</strong> primeiro, como todas as obras humanas” (Calvino, 1990, p. 92).<br />

É fácil perceber que não se indica qual <strong>do</strong>s objetos é o reflexo e qual é a criação<br />

divina. O texto de Calvino apresenta um pouco à frente que o tapete é de feitura divina,<br />

porém, logo após, tenta-se controverter essa verdade supostamente absoluta:<br />

Mas da mesma maneira pode-se chegar à conclusão oposta: que o verdadeiro<br />

mapa <strong>do</strong> universo seja a cidade de Eudóxia assim como é, uma mancha que<br />

se estende sem forma, com ruas em ziguezague, casas que na grande poeira<br />

desabam umas sobre as outras, incêndios, gritos na escuridão (p. 92).<br />

Este é o saber <strong>do</strong> texto literário, um saber fragmentário, não absoluto. As cidades<br />

invisíveis representam vários saberes sobre alguma coisa, porém não representam um saber<br />

hermético e absoluto de toda a verdade, é apenas uma insinuação da verdade.


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 240<br />

A literatura encena a linguagem, não apenas a utiliza. É, portanto, por meio de sua<br />

encenação que o saber é engrena<strong>do</strong> numa reflexividade infinita, num discurso que se torna<br />

dramático (no senti<strong>do</strong> de ação, de movimento).<br />

Ao retomar a idéia de revolução permanente da linguagem, podemos dizer que a<br />

língua vai para onde quiser, mas, conforme Umberto Eco, ela é sensível às sugestões da<br />

literatura. Ainda o semiólogo italiano: “as obras literárias convidam à liberdade de<br />

interpretação porque propõem um discurso com muitos planos de leitura, defrontan<strong>do</strong>-nos<br />

com a ambigüidade da linguagem e da vida” (2001, p. 13). Estes diversos planos de<br />

significação acabam por ludibriar as normas de comunicação que expusemos alhures. Lá a<br />

comunicação fica restrita ao momento certo, ao conteú<strong>do</strong> certo e à variante certa; aqui, no<br />

terreno da literatura, não há o certo, há o incerto.<br />

Essa capacidade da literatura de nos pôr frente a frente com a linguagem está entre as<br />

três forças da literatura expostas por Barthes na sua Aula. São elas:<br />

• a mathesis – podemos encontrar nos textos literários a utilização de diversos<br />

saberes, de forma enciclopédica, fazen<strong>do</strong> girar os saberes, sem fixá-los ou<br />

fetichizá-los;<br />

• a mimesis – que é a sua capacidade de representação. Embora o real não possa<br />

ser representa<strong>do</strong>, é exatamente esta busca em representá-lo que faz surgir uma<br />

história da literatura. É o inconformismo em aceitar o não paralelismo entre o<br />

real e a linguagem que produz a arte literária. Para Barthes, o real não é<br />

representável, mas somente demonstrável;<br />

• e por fim, a semiosis – força semiótica por meio da qual o texto joga com os<br />

signos em vez de destruí-los (cf. Barthes, 1987, p. 28).<br />

É através dessas três forças que a literatura torna-se uma revolução permanente dentro<br />

da linguagem, dentro <strong>do</strong> poder instituí<strong>do</strong> da língua.<br />

Segun<strong>do</strong> Barthes n’ O prazer <strong>do</strong> texto, “o escritor é alguém que brinca com o corpo da<br />

mãe: para o glorificar, para o embelezar, ou para o despedaçar, para o levar ao limite daquilo<br />

que, <strong>do</strong> corpo, pode ser reconheci<strong>do</strong>” (op. cit., p. 50).<br />

Ou seja, o escritor é quem põe a linguagem em evidência no texto literário, é ele quem<br />

mexe com os signos da língua, quem rompe com a “armadura sagrada da sintaxe” (idem, p.<br />

13).<br />

Se não podemos interferir na estrutura de nossa língua, podemos ao menos insinuar<br />

mudanças, sugerir novas morfologia e sintaxe; podemos também possuir diversos falares,


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 241<br />

várias línguas dentro da mesma estrutura geral. Concordamos com Barthes quan<strong>do</strong> este diz<br />

que a literatura é um instrumento disponível dentro da instituição língua que pode ser<br />

utiliza<strong>do</strong> para “confrontar” as estruturas canônicas, apresentar novos usos, explorar ao<br />

máximo a plasticidade desse aglomera<strong>do</strong> sonoro que é a língua. Para tanto é necessário que os<br />

falantes participem <strong>do</strong> universo literário, integran<strong>do</strong> assim a revolução da linguagem.<br />

Atualmente a literatura se torna mais acessível, está desguardada de sua antiga proteção que a<br />

tornava algo sagra<strong>do</strong>. Isso não significa que ela esteja destruída: “... é que ela não está mais<br />

guardada: é, pois o momento de ir a ela” (Barthes, 1996, p. 42).<br />

A literatura está livre. Resta-nos acompanhá-la nesta sua liberdade para fazer frente<br />

aos fascismos da língua.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ALKMIM, Tânia Maria. Sociolingüística, parte 1. In: MUSSALIM, Fernanda & BENTES,<br />

Anna Christina (orgs). Introdução à lingüística: <strong>do</strong>mínios e fronteiras. São Paulo:<br />

Cortez, 2001. (Vol. 1).<br />

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1996.<br />

_______________. O prazer <strong>do</strong> texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1987.<br />

(Coleção Elos).<br />

BECHARA, Evanil<strong>do</strong>. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? 4. ed. São Paulo: Ática,<br />

1989.<br />

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das<br />

Letras, 1990.<br />

ECO, Umberto. A literatura contra o efêmero. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 18 fev. 2001.<br />

pp. 12-14.<br />

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio século XXI escolar: o dicionário da<br />

língua portuguesa. 4. ed. rev. ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.<br />

GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.<br />

(Coleção Texto e Linguagem).<br />

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Albert Sechehaye & Charles Bally<br />

(orgs). Trad. Antônio Cheline, José Paulo Paes & Izi<strong>do</strong>ro Blikstein. 23. ed. São Paulo:<br />

Cultrix, 2001.


LITER’ARTES<br />

Poesia<br />

Conto<br />

Fotografia


CARANDÁ<br />

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Limites<br />

Repousa o cavalo à sombra da figueira<br />

Roberto Santos<br />

Sonha Campos Grandes, Pastos Verdes e outras moradas<br />

Correu pelo lamaçal e pântanos<br />

Era sua lida<br />

Ver agora o sol róseo se mocozan<strong>do</strong> por trás das Morrarias<br />

É livre no limite da porteira.<br />

Este poema integra o livro Poesia Qualquer


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A VELA<br />

Glacy Magda de Souza Macha<strong>do</strong> *<br />

À cabeceira da cama, na penumbra <strong>do</strong> quarto, a vela ardia e lentamente se<br />

consumia. Algumas vezes, as rajadas <strong>do</strong> vento frio da noite entravam pelas frestas da<br />

janela fazen<strong>do</strong> com que a frágil chama se encolhesse até quase se apagar, para depois<br />

novamente erguer-se, reavivar-se, numa luta desesperada para não extinguir seu<br />

mirra<strong>do</strong> brilho. O movimento da pequenina luz projetava tênues clarões no quarto,<br />

envolto em sombras e solidão.<br />

Uma mulher ainda jovem jazia ali no leito, porém era impossível precisar por<br />

quanto tempo encontrava-se estendida na cama, imóvel, sem forças para se levantar.<br />

Marta tinha vagas lembranças... o copo, o líqui<strong>do</strong>, a escuridão e mais nada...<br />

Se o sol alguma vez brilhou em seu caminho, a memória não conseguia<br />

alcançar. Tu<strong>do</strong> que sabia era que herdara uma maldita disposição para o recolhimento,<br />

para a contemplação <strong>do</strong> mar interior que em si habitava. Mar esse que a chamava,<br />

sussurran<strong>do</strong> segre<strong>do</strong>s e mistérios... mar que se estendia perigosamente à sua frente,<br />

esconden<strong>do</strong> suas profundezas em águas aparentemente tranqüilas e azuis... mar que se<br />

ondulava em espumas na praia e a seduzia para caminhos desconheci<strong>do</strong>s...<br />

Enquanto tentou equilibrar-se na corda bamba da realidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, no fio<br />

fino que cruzava seus abismos, contou com a ajuda da mãe. Era sempre ela, a sua boa<br />

mãe, que a resgatava <strong>do</strong> mar revolto, quan<strong>do</strong> ali mergulhava, e trazia seu delica<strong>do</strong><br />

* Glacy Magda de Souza Macha<strong>do</strong> possui habilitação em Arquitetura e Urbanismo e também em Letras.<br />

Atualmente faz mestra<strong>do</strong> na área de Estu<strong>do</strong>s Literários, na Universidade Federal de Goiás (UFG).<br />

E-mail: glacymacha<strong>do</strong>@yahoo.com.br


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 245<br />

barco avaria<strong>do</strong> de volta à praia... e novamente a amparava na corda bamba de seu<br />

caminhar pelos becos exteriores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Outras vezes, acorrentava sua pequena<br />

alma alada para que esta não se elevasse nas alturas, a procura de outros sonhos e<br />

nuvens... dizia-lhe que era preciso pisar o chão, saciar a fome, vestir o corpo, e tantas<br />

outras ações concretas... e, para isso, eram igualmente ruins a contemplação interior<br />

rumo a esse mar traiçoeiro, como também os devaneios e a fuga para um céu que não<br />

era real...<br />

Para Marta, porém, o equilíbrio nesse estreito fio era difícil... Bem mais fácil se<br />

perder em seus mistérios _ afinal, qual o senti<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> isso? Por que estamos aqui e<br />

caminhamos condena<strong>do</strong>s, inexoravelmente, rumo à morte? _ ou buscar refúgio no<br />

copo, na bebida que lhe entorpecia os senti<strong>do</strong>s, ou em qualquer outra coisa que<br />

apaziguasse to<strong>do</strong>s os conflitos que a oprimiam... Realidade? O que é a realidade?... É<br />

tu<strong>do</strong> tão subjetivo... não há explicação..., não, não saberia dizer... o dia e a noite, o belo<br />

e o feio... O mun<strong>do</strong> é para<strong>do</strong>xal, é feito de contrários. Mas para sua <strong>do</strong>r não havia a<br />

contrapartida da alegria. A felicidade vinha-lhe a conta-gotas, e por breves instantes<br />

quan<strong>do</strong> viajava em outro mun<strong>do</strong> inteiramente seu, bem diverso <strong>do</strong> chão que a mãe<br />

inutilmente lhe mostrava...<br />

Estranho, parece que agora mãos invisíveis lhe desapertavam as roupas,<br />

tiravam-lhe as algemas da alma sofrida e mal compreendida. Parecia que a figura da<br />

mãe, que há muito se fora lhe deixan<strong>do</strong> tantas saudades e desconsolo, tomava forma na<br />

penumbra <strong>do</strong> quarto e se ajoelhava ao la<strong>do</strong> de sua cama. Estaria rezan<strong>do</strong>?...<br />

Marta sabia que seus demônios, os habitantes das profundezas <strong>do</strong> mar, foram<br />

crescen<strong>do</strong> e crescen<strong>do</strong> em contato com o álcool e, por fim, fizeram-na afundar em<br />

fossas escuras, galgar cavernas gélidas e negras, onde a luz <strong>do</strong> sol já não conseguia<br />

penetrar. Nenhuma religião fora capaz de apaziguar esses seres, enfureci<strong>do</strong>s pela<br />

bebida, que por vezes emergiam de seu ser, sem qualquer controle.<br />

Agora, finalmente compreendia o que sua mãe por tanto tempo quis lhe dizer.<br />

Se a <strong>do</strong>r de existir era imanente ao seu ser, por que sucumbir-se a ela em mun<strong>do</strong>s<br />

torpes, que a iludiriam, mas não seriam capazes de amenizá-la? Talvez conseguisse<br />

expressar sua aflição pela arte, depositan<strong>do</strong> suas angústias no que por si só já era belo.


CARANDÁ<br />

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Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 246<br />

Ou talvez, quem sabe, cultivasse jardins, com muitas roseiras brancas, amarelas, ou<br />

vermelhas... Os espinhos das rosas não lhes embotam o perfume, nem interferem em<br />

sua beleza, antes procuram uma harmônica convivência de contrários. Mas ela não as<br />

observara. Deixara-se seduzir pelo mar desconheci<strong>do</strong> e agora estava só em seu silêncio<br />

e seu barco por demais avaria<strong>do</strong> para encontrar um porto seguro. A praia, imaginava-a<br />

além <strong>do</strong> horizonte, pois tu<strong>do</strong> o que a envolvia era o oceano, com suas águas profundas<br />

ameaçan<strong>do</strong> afundar sua embarcação a qualquer instante... Ademais, a noite já ia alta e<br />

a chama da vela por certo se extinguiria antes <strong>do</strong> amanhecer, deixan<strong>do</strong>-a na mais<br />

completa escuridão...<br />

Mas naquele momento, por alguma mágica ou prece, ou pela figura amorosa da<br />

mãe, tu<strong>do</strong> se aplacava e esses habitantes de suas entranhas se retorciam agonizantes,<br />

traga<strong>do</strong>s por alguma poderosa força, e dissolviam-se na penumbra <strong>do</strong> quarto. Não<br />

havia mais <strong>do</strong>r. Seu peito era um mar sereno e calmo... A alma, não mais cativa,<br />

poderia buscar outros sonhos... Um leve torpor a envolvia e prometia-lhe um sono<br />

reconfortante, que restauraria todas as suas forças, exauridas na longa tribulação de sua<br />

vida...<br />

O vento frio continuava a soprar lá fora, mas ali dentro, no quarto, havia paz,<br />

aconchego... A luz da pequena chama bruxuleava pelo aposento, iluminan<strong>do</strong>-o<br />

vagamente. Mas era o suficiente para atingir os recônditos da alma de Marta,<br />

dispersan<strong>do</strong> aquela escuridão em que estivera mergulhada por tantos e tantos anos...<br />

não havia mais solidão ou me<strong>do</strong>, só o torpor a envolver-lhe, inebriar-lhe os senti<strong>do</strong>s...<br />

o sono... a paz que invadia seu coração... o mar azul, as águas tranqüilas... o barco, o<br />

horizonte... as imagens a confundir-se, diluin<strong>do</strong>-se em névoas...<br />

Um pássaro se preparou para o vôo. Bateu suas grandes asas para secá-las das<br />

águas <strong>do</strong> mar que sobrevoara em agonia buscan<strong>do</strong> a terra firme. Bateu-as novamente e<br />

ao movimento misturaram-se as rajadas <strong>do</strong> vento que, cada vez mais forte, entrava<br />

pelas frestas da janela, invadia o aposento para, finalmente, apagar a frágil luz à<br />

cabeceira da cama... E o pássaro, a princípio trôpego em seu vôo, aplainou as asas em<br />

equilíbrio e lentamente foi subin<strong>do</strong>...


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 247<br />

CARANDÁS : Mosaico. Fotos de Marcelo Dias de Moura.


BORIS & DÓRIS – o filme<br />

Dossiê


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 249<br />

A LIBERDADE, O DESAFIO<br />

E O PARADOXO DA ARTE<br />

Em entrevista, Rauer fala da adaptação fílmica<br />

da novela Bóris e Dóris, de Luiz Vilela<br />

Lavínia Resende Passos 1<br />

Quadro final <strong>do</strong> filme realiza<strong>do</strong> em 2007 por alunos <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> CPAN/<br />

UFMS, sob a direção de Rauer, na disciplina Prática de Ensino de Literatura<br />

1 Mestre em Teoria de Literatura, ten<strong>do</strong> defendi<strong>do</strong> — em 25 de março de 2010, na Faculdade de Letras<br />

da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, MG — a dissertação A imagem pelas<br />

palavras: o processo narrativo de Luiz Vilela e seu des<strong>do</strong>bramento hipertextual no cinema e na<br />

televisão, sobre as dezoito traduções fílmicas da obra de Luiz Vilela.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 250<br />

A literatura e o cinema foram sempre objetos de comparação. As teorias<br />

sobre adaptação, durante muito tempo, basearam-se num estu<strong>do</strong> unidirecional,<br />

privilegian<strong>do</strong> o literário em detrimento <strong>do</strong> cinematográfico. O critério para<br />

análise da qualidade da obra audiovisual era sua fidelidade à literatura na qual se<br />

inspirava.<br />

Na sociedade atual, essa questão tem si<strong>do</strong> problematizada por vários<br />

autores, e vista de forma diferente. Por serem meios semióticos distintos,<br />

literatura e cinema não podem ser compara<strong>do</strong>s no mesmo plano. A análise passa<br />

a ser feita, então, por um viés hipertextual, de forma que a tradução seja vista<br />

como uma releitura, como o olhar <strong>do</strong> cineasta sobre a obra literária. O<br />

importante não é mais a fidelidade, mas a utilização de recursos<br />

cinematográficos que consigam, por meio de imagem e som, passar aquilo que o<br />

autor criou com palavras.<br />

No panorama <strong>do</strong>s filmes que foram inspira<strong>do</strong>s na literatura, Luiz Vilela<br />

se destaca pela quantidade de textos de sua autoria que foram traduzi<strong>do</strong>s. São<br />

dezesseis contos e a novela Bóris e Dóris, que foi adaptada pelos alunos <strong>do</strong><br />

curso de Letras da Universidade de Corumbá, e teve Rauer Rodrigues como<br />

diretor. Nesta entrevista, o professor nos relata um pouco <strong>do</strong> processo de<br />

produção, desde a escolha <strong>do</strong> texto até as dificuldades encontradas para se<br />

realizar uma tradução.<br />

Lavínia – Como Luiz Vilela entrou na vida de Rauer?<br />

Rauer – Primeiro como um escritor de narrativas ficcionais que falavam<br />

diretamente à minha sensibilidade, tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s meus problemas íntimos,<br />

familiares, escolares, sociais, culturais e políticos. Depois, como uma<br />

referência de literatura que é literatura, que não é diletantismo<br />

umbigocêntrico analfabético, pois não conheço nada mais obsceno <strong>do</strong> que<br />

ver a literatura sen<strong>do</strong> relegada tão só a hobbies e divertissement. Por fim,<br />

como um amigo – um amigo exigente, cioso, perfeccionista tanto na vida<br />

como na obra. E, por isso, é um homem que acredita no humano, sen<strong>do</strong>, no<br />

entanto, um cético; é cético, porém sofri<strong>do</strong>; é sofri<strong>do</strong>, mas esperançoso.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 251<br />

Lavínia – Você acha que um filme adapta<strong>do</strong> limita o filme, uma vez que ele<br />

“traz pronta” a imagem (no livro o leitor cria as imagens), ou essa releitura é<br />

positiva, pois acrescenta mais uma imagem ao leitor?<br />

Rauer – Um livro possibilita ao leitor criar imagens que produzem “leitura”,<br />

ou seja, que estabelecem os significa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> texto discursivo. O filme expõe<br />

imagens que possibilitam que o especta<strong>do</strong>r produza “leitura”, ou seja,<br />

estabeleça os significa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> “texto” fílmico. O filme é uma leitura <strong>do</strong> texto<br />

ficcional, que por sua vez gera leituras específicas <strong>do</strong> seu especta<strong>do</strong>r. Leitor<br />

e especta<strong>do</strong>r, o sujeito que frui livro e filme, dispõe de leituras e estabelece o<br />

diálogo das possibilidades que entrevê em uma, em outra e entre as duas<br />

obras.<br />

“Somente com total liberdade é<br />

possível alguma fidelidade, esse é<br />

o para<strong>do</strong>xo e o desafio da arte. E<br />

também das adaptações de uma<br />

mídia para outra.”<br />

Lavínia – Gostaria que você falasse um pouco sobre o processo de produção<br />

de Bóris e Dóris - o filme, desde o contato com o texto até a produção.<br />

Como foram alunos <strong>do</strong> Curso de Letras, como foi esse processo?<br />

Rauer – A novela de Luiz Vilela estava na lista de obras <strong>do</strong> vestibular da<br />

UFMS. Na disciplina Prática de Ensino <strong>do</strong> penúltimo ano <strong>do</strong> Curso de<br />

Letras, a obra foi lida com a proposta de os alunos a apresentarem com<br />

alguma meto<strong>do</strong>logia diversa da aula expositiva tradicional. Os acadêmicos<br />

montaram um teatro. Ocorreu-me propor, depois da encenação, que o grupo<br />

montasse um curta-metragem. Fizemos alguns debates sobre o texto,<br />

escolhemos outras passagens da novela para compor o roteiro final,<br />

estudamos possibilidades cênicas para diversificarmos cenários e<br />

evidenciarmos as linhas que consideramos centrais na proposta literária <strong>do</strong><br />

Vilela. A produção enfrentou as dificuldades naturais de qualquer produção,<br />

mas fechamos a edição para exibi-la na última atividade <strong>do</strong>s alunos naquele<br />

ano de 2007. Cabe aqui agradecer ao Vilela, que nos autorizou a adaptação


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 252<br />

sem ônus, consideran<strong>do</strong>-a – como de fato é – um trabalho acadêmico sem<br />

intenções comerciais.<br />

Lavínia – Como foi o contato com o texto de Vilela? Como se deu a escolha<br />

<strong>do</strong> texto? Para você, que já tinha um aprofundamento da obra <strong>do</strong> autor,<br />

devi<strong>do</strong> aos seus estu<strong>do</strong>s, isso influenciou?<br />

Rauer – Conheço a obra desde o seu lançamento, ten<strong>do</strong> acompanha<strong>do</strong> a<br />

repercussão nos jornais que a novela gerou, quase todas, senão todas,<br />

encomiásticas. Partilho <strong>do</strong> entusiasmo que o texto despertou. A escolha para<br />

adaptação foi circunstancial, pelo trabalho proposto pelos alunos, cuja leitura<br />

também decorria de um fator aleatório, a presença <strong>do</strong> livro entre as obras <strong>do</strong><br />

vestibular. Independente desses aspectos, Bóris e Dóris é livro cuja leitura<br />

indicia o aspecto dramatúrgico e dialógico característico da ficção <strong>do</strong> Vilela,<br />

e seria sempre uma das primeiras opções da obra <strong>do</strong> escritor que indicaria<br />

para uma adaptação cinematográfica.<br />

======================================================<br />

"Quan<strong>do</strong> entramos em uma faculdade, uma gama de possibilidades nos<br />

é apresentada. Se iremos aproveitá-las só depende das nossas<br />

escolhas.<br />

Quan<strong>do</strong> o professor de Literatura nos propôs que fizessemos um filme<br />

sobre Bóris e Dóris, achei a ideia original e desafia<strong>do</strong>ra. Havíamos feito<br />

apenas uma pequena encenação, em sala de aula, sobre o livro de Luiz<br />

Vilela. E dali surgiu a ideia <strong>do</strong> filme.<br />

Aceito o desafio, começamos a definir atores, cenários, figurinos, falas.<br />

Era tu<strong>do</strong> novo, não tinhamos experiência com filmagens, então, a cada<br />

dia, ao surgir imprevistos, tinhamos que resolvê-los de qualquer jeito.<br />

Insistin<strong>do</strong> constantemente, rompemos vários obstáculos.<br />

Eu, como diretora <strong>do</strong> filme, digo que fizemos uma grande escolha.<br />

Escolhemos a vitória de nossos próprios limites e, sem recursos nem<br />

experiências, criamos algo que nos lembrará sempre que, apesar das<br />

dificuldades, podemos sempre crescer e contribuir para a divulgação da<br />

cultura. To<strong>do</strong>s podem."<br />

Gelsimara Cunha <strong>do</strong>s Santos.<br />

======================================================


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 253<br />

=================================<br />

A participação nesse trabalho serviu de<br />

base para ser reconheci<strong>do</strong> (embora no final<br />

<strong>do</strong> curso) no meio acadêmico e também por<br />

onde tenho passa<strong>do</strong>.<br />

Carrego junto a convicção de que em algum<br />

lugar deve ter alguém me espian<strong>do</strong>,<br />

avalian<strong>do</strong> o tipo de atuação e aprenden<strong>do</strong><br />

um pouco mais da literatura contemporânea.<br />

"Boris e Doris - o filme" chama à<br />

atenção pelo tema atualiza<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> o seu<br />

roteiro foca<strong>do</strong> para as tendências <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

moderno, cujos interesses financeiros<br />

muitas vezes subestimam a beleza <strong>do</strong><br />

amor.<br />

Por conclusão penso que, se o nosso<br />

trabalho valeu como experiência didática<br />

aqui,pode muito bem ser apresenta<strong>do</strong><br />

noutros lugares e assim ser mais conheci<strong>do</strong><br />

lá fora.<br />

Henrique Cezaretti,<br />

intérprete de Bóris<br />

================================<br />

Lavínia – Você acredita que há características <strong>do</strong> texto de Vilela que o<br />

aproxima <strong>do</strong> cinema? Como você acha que isso é construí<strong>do</strong> no texto dele?<br />

Essas características contribuem de que forma na hora de adaptar?<br />

Rauer – Escritor da literatura brasileira cuja ficção tem a maior naturalidade<br />

<strong>do</strong> diálogo no texto escrito, Luiz Vilela tem em sua obra uma incorporação<br />

de técnicas normalmente associadas ao cinema. É o diálogo verossímil, a<br />

economia de gestos, os cortes precisos, a não superfluidade narrativa, a<br />

opção por indicar sentimentos e pensamentos pelas expressões e ações —<br />

enfim, é um conjunto de estratégias narrativas que faz com que os leitores<br />

imaginem a cena no teatro ou no cinema. Para a adaptação, trata-se de uma


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 254<br />

dificuldade a mais, pois o texto construí<strong>do</strong> para ser li<strong>do</strong> não é<br />

necessariamente um roteiro que se adéqüe à linguagem cinematográfica. Ser<br />

preguiçoso no processo de adaptação pode fazer das muitas obras-primas<br />

literárias <strong>do</strong> Vilela cinema ou teatro sem maior qualidade.<br />

Rauer dirige as gravações em Hotel de Corumbá, MS<br />

Lavínia – Qual o maior desafio ao adaptar um texto de Luiz Vilela? Teve um desafio<br />

específico?<br />

Rauer – O maior desafio ao adaptar Bóris e Dóris foi selecionar as<br />

passagens que fossem representativas <strong>do</strong> to<strong>do</strong> <strong>do</strong> universo <strong>do</strong> casal.<br />

Consegui<strong>do</strong> isso, grande dificuldade nos foi — a mim, aos atores e a toda a<br />

equipe — optar entre as características de cada personagem por aquela que<br />

pre<strong>do</strong>minaria na encenação. E isso porque tanto o Bóris quanto a Dóris são<br />

personalidades riquíssimas, com suas ambiguidades, que oscilam de<br />

grandezas heróicas a pequenas mesquinharias, de mergulhos abissais em<br />

almas complexas à altivez de cada um deles diante da vida. Espero que<br />

tenhamos da<strong>do</strong> conta, na adaptação, de mostrar ao menos uma pequenina<br />

porção desse universo.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 255<br />

Equipe festeja a conclusão das gravações<br />

Lavínia – O diálogo, marca de Vilela, ajuda no ritmo da narrativa. No<br />

entanto, o silêncio “implícito” também está muito presente na sua narrativa.<br />

Esse silêncio é uma dificuldade para a adaptação? Queria que você<br />

comentasse um pouco sobre isso: os diálogos, o silêncio, o ritmo da<br />

narrativa. Como o cineasta dá o ritmo pra esse diálogo que já está pronto ou<br />

está ausente?<br />

Rauer – Fizemos algumas opções de linguagem cinematográfica para<br />

indiciar o jogo <strong>do</strong> silêncio ao mesmo tempo em que o diálogo não parece dar<br />

trégua. Uma dessas escolhas se cingiu ao close naquele que ouvia, sem<br />

priorizar o falante. Ou seja, a reação, em sutis tremores de rosto, de<br />

pálpebras, diante da fala <strong>do</strong> outro. A câmera sen<strong>do</strong> utilizada em ângulos não<br />

usuais, quebran<strong>do</strong> a opção de centrar-se no falante e captan<strong>do</strong> as expressões<br />

faciais, às vezes de mo<strong>do</strong> simultâneo, das duas personagens, foi nossa opção<br />

para traduzir em imagem a riqueza <strong>do</strong> diálogo quase que sem narra<strong>do</strong>r da<br />

obra <strong>do</strong> Vilela.<br />

Lavínia – Até que ponto o texto de Vilela permite liberdades de criação, e<br />

até que ponto ele não permite, precisan<strong>do</strong> que os diálogos se mantenham<br />

intactos?


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 256<br />

Rauer – Esse foi um ponto de honra na encenação que nos propomos:<br />

manter a integridade <strong>do</strong> diálogo original da obra literária. Admitimos poucos<br />

cacos, mesmo transpon<strong>do</strong> a encenação para cenários inexistentes na novela.<br />

Com isso, tínhamos a intenção da maior fidelidade, tentan<strong>do</strong> obter um ritmo<br />

ágil, sem monotonia fílmica, pois a obra escrita é dinâmica, ágil. Somente<br />

com total liberdade é possível alguma fidelidade, esse é o para<strong>do</strong>xo e o<br />

desafio da arte. E também das adaptações de uma mídia para outra.<br />

Lavínia – Durante o processo de adaptação houve contato com o Luiz<br />

Vilela? Ele deu alguma opinião sobre escolha de personagens, por exemplo?<br />

Houve alguma interferência <strong>do</strong> autor de alguma forma? No próprio roteiro,<br />

ele teve acesso antes das filmagens?<br />

Rauer – O Vilela não interferiu de nenhuma forma no processo, não ten<strong>do</strong><br />

nenhuma responsabilidade pelas eventuais deficiências de nosso “produto”<br />

final, embora o seu texto seja responsável, estou convicto disso, pela quase<br />

totalidade <strong>do</strong> que a adaptação tenha de positivo. Nosso único contato foi para<br />

pedir a ele que nos autorizasse a fazer o que nos propúnhamos. Além disso,<br />

pelo que sei, o Vilela, por princípio, não assume nenhuma função nas<br />

adaptações das obras dele.<br />

Lembro-me de to<strong>do</strong>s os comentários que minha turma e eu, então<br />

calouros <strong>do</strong>s “artistas”, ouvíamos e fazíamos acerca <strong>do</strong> filme “Boris e Dóris”.<br />

Havia uma empolgação geral na universidade, por parte <strong>do</strong>s professores, <strong>do</strong>s<br />

alunos (atores) e especta<strong>do</strong>res (nós). É incrível perceber como voltamos a ser<br />

crianças diante de certas tarefas acadêmicas. Cogitamos, entre nós, se também<br />

faríamos no ano seguinte a mesma tarefa. Enfim, de minha parte, pus-me a ler<br />

o livro antes da tal sessão esperada. Li e, claro, criei minha própria Dóris e meu<br />

próprio Bóris. Posso dizer que no dia da apresentação <strong>do</strong> filme, só faltou a<br />

pipoca. Os meus personagens (cria<strong>do</strong>s na minha mente) estavam lá: um Bóris,<br />

meio frio e distraí<strong>do</strong> e uma Dóris lânguida e sonha<strong>do</strong>ra. Lembro-me da imagem<br />

de um relógio que aparecia e reaparecia, da preocupação com a escolha <strong>do</strong>s<br />

cenários e, principalmente, <strong>do</strong> êxito <strong>do</strong>s alunos e <strong>do</strong> professor Rauer em manter<br />

a singularidade de duas artes: a integridade da novela de Luiz Vilela e a<br />

dinâmica que exige o cinema.<br />

Juliana Gomes, então no 2º ano.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 257<br />

O filme Boris & Doris, basea<strong>do</strong> na obra homônima de Luís Vilela, envolveu a turma de<br />

forma muito positiva. Os alunos, excita<strong>do</strong>s com a experiência, aceitaram o desafio e nós,<br />

então no segun<strong>do</strong> ano, presenciamos um trabalho árduo e muita dedicação, por alguns<br />

meses, <strong>do</strong>s alunos e <strong>do</strong> orienta<strong>do</strong>r/produtor.<br />

A produção <strong>do</strong> filme teve vários fatores importantes. Além de provar que é possível<br />

grandes realizações com o mínimo de recursos, o projeto elevou a autoestima <strong>do</strong>s<br />

alunos e ainda revelou alguns talentos, como o Henrique (Bóris), por exemplo, que se<br />

mostrou um excelente ator.<br />

O resulta<strong>do</strong> obti<strong>do</strong> foi maravilhoso e superou todas as expectativas. O livro é ótimo; por<br />

isso o filme também deveria sê-lo; no entanto, eu não imaginava que a adaptação de um<br />

livro cujas cenas se passavam entre um casal durante o café da manhã pudesse<br />

prender a atenção <strong>do</strong> público.<br />

O recurso de manter o texto original e mudar apenas o ambiente foi muito inteligente e<br />

causou surpresa a to<strong>do</strong>s que assistiram ao filme. Aliás, foi o mesmo usa<strong>do</strong> na produção<br />

global da mini série Capitu, baseada em Dom Casmurro, de Macha<strong>do</strong> de Assis, que foi<br />

ao ar no final de 2008. Isso nos orgulha muito. Parabéns a to<strong>do</strong>s que se dedicaram de<br />

corpo e alma a esse belíssimo trabalho!<br />

Ione Eler E Herler, então no 2º ano<br />

==================================================================<br />

Lavínia – Qual é sua opinião a respeito da difusão<br />

da Literatura Brasileira por outros meios que não o<br />

livro, como lâminas nos ônibus, charges, livros<br />

ilustra<strong>do</strong>s, histórias em quadrinho, cinema e<br />

televisão?<br />

Rauer – Tu<strong>do</strong> que divulgue a literatura é positivo.<br />

Lavínia – Você considera que a versão<br />

audiovisual de uma obra literária pode contribuir<br />

para a formação de leitores de textos? De que<br />

forma?<br />

Rauer – Para a formação de leitores... não sei...<br />

Com certeza pode atrair alguns leitores para a obra<br />

adaptada. Daí para formar leitores, ou para que o<br />

leitor eventual se torne um leitor habitual, temos<br />

uma distância grande. Ainda assim, tu<strong>do</strong> o que<br />

pudermos fazer para que a literatura tenha maior<br />

presença social é importante, pois a literatura é,<br />

das atividades humanas, a mais humaniza<strong>do</strong>ra.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 258<br />

19/11/2007 13h56 - Atualiza<strong>do</strong> em 19/11/2007 13h56<br />

SESSÃO MEMÓRIA<br />

Filme abre seminário sobre<br />

literatura no Vestibular da UFMS<br />

In: http://www.perfilnews.com.br/tres-lagoas/filme-abre-seminario-sobre-literatura-novestibular-da-ufms<br />

Será nesta terça-feira (20), com início às 19h30, a pré-estréia de ‘Bóris e Dóris – o<br />

filme’, basea<strong>do</strong> na novela de Luiz Vilela que integra o rol de leituras obrigatórias para o<br />

Vestibular 2008 da UFMS. A produção <strong>do</strong>s acadêmicos <strong>do</strong> terceiro ano <strong>do</strong> curso de<br />

Letras teve a direção-geral <strong>do</strong> prof. Rauer. O evento dá início ao 2º Seminário Literatura<br />

no Vestibular da UFMS, no CPAN/UFMS, em Corumbá. Na quarta e na quinta-feira (21<br />

e 22), das 18h30 às 22h, serão apresentadas palestras sobre as dez obras da prova de<br />

literatura <strong>do</strong> Vestibular 2008 da universidade, assim como de outras instituições de<br />

ensino superior <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. A apresentação <strong>do</strong> filme é aberta a to<strong>do</strong>s os interessa<strong>do</strong>s,<br />

com entrada franca.<br />

O FILME<br />

‘Bóris e Dóris – o filme’ nasceu de um trabalho acadêmico na disciplina Prática <strong>do</strong> Ensino de<br />

Literatura, ministrada pelo prof. Rauer. Desde o início <strong>do</strong> ano o professor desenvolveu com<br />

os alunos estu<strong>do</strong>s no senti<strong>do</strong> de inovar as meto<strong>do</strong>logias de abordagem de obras literárias e<br />

no ensino de literatura, ten<strong>do</strong> por objetivo desenvolver o gosto pela leitura e mostrar como a<br />

literatura é importante e vital na formação de uma pessoa. Com os acadêmicos, tal objetivo<br />

foi alcança<strong>do</strong>: "Fazer o filme mu<strong>do</strong>u a minha vida, me estimulou a aprofundar os estu<strong>do</strong>s<br />

literários, mostrou-me a literatura como parte primordial <strong>do</strong> meu ser, igual a comer e <strong>do</strong>rmir",<br />

declara Enrique Cezaretti, que interpreta Bóris. A adaptação da novela passou por ao<br />

menos três etapas: no início, foi um texto para dramatização em sala de aula; em seguida,<br />

um roteiro com muitas cenas e diálogos que mantinham o espírito <strong>do</strong> original, mas que não<br />

estavam no livro; por fim, um script com cenas e diversidade de cenários quanto à obra, mas<br />

absolutamente fiel às falas de cada personagem. Esse último roteiro sintetiza, em<br />

passagens visuais, o que se depreende da conversação entre Bóris e Dóris, deixan<strong>do</strong> as<br />

cenas filmadas fiéis ao diálogo original de Luiz Vilela. O filme, de 45 minutos, por ser<br />

produto acadêmico não será comercializa<strong>do</strong>. APRESENTANDO ‘Bóris e Dóris – o filme’,<br />

adapta<strong>do</strong> da novela de Luiz Vilela Bóris – Enrique Cezaretti; Dóris – Taíssa Boaventura<br />

Trilha Sonora – Décio BJ; Câmera e Edição – Sandro Moura Santos Continuista – Glauciana<br />

Assis; Fotografia – Gabriel Omar Iluminação – Marcilene Silva; Cenário – Andréia Pimentel<br />

Figurino – Silvia Helena Barros; Maquiagem – Jussara Silva <strong>do</strong>s Santos Adaptação – alunos<br />

<strong>do</strong> 3° ano de Letras de 2007, <strong>do</strong> CPAN/UFMS Direção – Gelsimara Cunha; Direção Geral –<br />

Professor Rauer


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 259<br />

O PERMEAR DA INCOMUNICABILIDADE EM<br />

Bóris e Dóris – O Filme<br />

ADAPTAÇÃO LIVRE DA OBRA DE LUIZ VILELA<br />

Sessão crítica<br />

Cristiane Passafaro Guzzi<br />

Ao direcionarmos nossas reflexões para um atento olhar nos recursos<br />

visuais e imagéticos mobiliza<strong>do</strong>s para criar um efeito de senti<strong>do</strong> de manutenção<br />

da incomunicabilidade, <strong>do</strong> silêncio, da incompreensão e que pre<strong>do</strong>minam, em<br />

to<strong>do</strong> o percurso, na narrativa sincrética em questão, inferimos, em tal realização<br />

artística, a perfeita conjunção e manutenção, recursos sustenta<strong>do</strong>s pela<br />

repetição <strong>do</strong>s diálogos, pelos ecos vazios da (des)armonia <strong>do</strong> casal e pelo<br />

movimento silencioso, angustiante e espraia<strong>do</strong>r de senti<strong>do</strong> da câmera. A trama<br />

nos suscita a presença de uma denúncia nada sutil de uma vida ancorada na<br />

falta de esperança, vivacidade e cor. A incomunibilidade entre os protagonistas,<br />

entre a vida sentida dessas personagens, entre os desejos das personagens faz<br />

com que o tempo, o espaço, a ambientação, os ângulos de câmera, as<br />

focalizações, as composições e caracterizações das personagens assumam um<br />

tom de silêncio de forma explícita e escancarada pela seleção realizada das<br />

imagens e <strong>do</strong>s diálogos que foram transpostos para a trama fílmica, alteran<strong>do</strong>se,<br />

quan<strong>do</strong> necessário, pelo suporte em que foi veicula<strong>do</strong>. Uma proposição de<br />

um exercício de análise que não leve em consideração, ao menos em parte, o<br />

paradigma da obra literária transposta possibilita uma maior atenção para esses<br />

elementos extra-textuais convoca<strong>do</strong>s para uma transposição e que enriquecem a<br />

significação intra-textual. Sem conhecer a obra, mas presos às imagens<br />

construídas de mo<strong>do</strong> icônico e revela<strong>do</strong>r, comprendemos o silêncio e angústia<br />

que perpassam e reforçam toda a significação. Ao ler Vilela, por meio da lente<br />

que o recriou, caseiramente, nessa realização fílmica, compreendemos a<br />

grandiosidade de sua obra silenciosa, mas tão rui<strong>do</strong>sa ao escancarar as mazelas<br />

de um casamento e de uma sociedade em decadência.<br />

Pós-Graduanda Lato Sensu <strong>do</strong> Curso de Especialização “Teorias Linguísticas e<br />

Ensino” na Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Campus Araraquara; contatos:<br />

crisguzzi@gmail.com.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 260<br />

Turma <strong>do</strong> 3º ano de Letras 2007, que realizou a<br />

adaptação de BÓRIS E DÓRIS, de Luiz Vilela<br />

Sessão: Ponto de vista — Cinema<br />

SUTILEZAS, FIDELIDADE, NOVOS SENTIDOS<br />

Luciene Lemos de Campos 1<br />

A vida vazia de um casal sem filhos é revelada pelos gestos e atitudes das<br />

personagens Bóris e Dóris, cujos nomes dão título ao filme adapta<strong>do</strong> da novela<br />

homônima, de Luiz Vilela. As câmeras trazem à tona cenas corriqueiras de um homem<br />

que sonha conquistar um novo cargo no conglomera<strong>do</strong> onde trabalha e de uma mulher<br />

que aban<strong>do</strong>nou o emprego para se tornar uma esposa solitária, submissa a um<br />

casamento carcomi<strong>do</strong> pela falta de atenção <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Enquanto a roda <strong>do</strong> tempo gira<br />

1 Mestre em Estu<strong>do</strong>s Fronteiriços pela CPAN/UFMS; professora da Rede Estadual de Educação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de<br />

Mato Grosso <strong>do</strong> Sul, leciona Língua Portuguesa, Redação, Literatura e Artes; lucienelemos10@yahoo.com.br.


CARANDÁ<br />

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e a vida capitalista não cessa, surge, no filme, a postura falocêntrica nas falas ácidas de<br />

um homem casa<strong>do</strong> com uma mulher bem mais jovem.<br />

Se ele e ela mantêm diálogo em que duelam por meio de espirituosas farpas<br />

chistosas, e nisso se equivalem, ele tem autonomia e volta-se para seus sonhos e planos<br />

como alto executivo, ela permanece heterônoma, sem iniciativa e sem vida própria.<br />

Então, enquanto ele vai para a convenção de sua empresa, Dóris, no hotel, de<br />

camisola, aguarda o mari<strong>do</strong>. Ela parece sonhar com novas núpcias, ao menos com um<br />

momento de lua-de-mel, o que não se concretiza, pois enquanto ela o deseja, tem<br />

devaneios eróticos, ele está sempre fazen<strong>do</strong> planos pelo trabalho, empreenden<strong>do</strong> sem<br />

se abater com os reveses.<br />

Há uma cena sutilmente criada a partir de um cenário campestre: Bóris,<br />

enquanto mal ouve o que Dóris fala, destaca a pequenez de uma flor, limpan<strong>do</strong> o<br />

espaço à volta a fim de que a flor apareça, mas não a tira <strong>do</strong> lugar nem a oferece à<br />

esposa. Assim é o relacionamento <strong>do</strong> casal: ele, distraí<strong>do</strong>, concentra<strong>do</strong> na vida<br />

profissional, não atende às expectativas dela.<br />

A mediocridade de Bóris Paternostro desvela o homem comum, fácil de ser<br />

encontra<strong>do</strong> em qualquer grande restaurante ou botequim de esquina. A personagem de<br />

Vilela, no entanto, guarda na perseverança e na persistência uma grandeza singular,<br />

pouco encontrada — se é que seja encontrada, em nossos dias. Quanto à mediocridade,<br />

Bóris é o espelho da humanidade deste século. Talvez por isso, a interpretação de<br />

Enrique Cezaretti, quem ainda não fizera nenhum papel no teatro ou cinema foi, nesse<br />

filme, louvável e surpreendente. Para um ator consagra<strong>do</strong>, compor a personagem Bóris<br />

— na sutileza <strong>do</strong> medíocre que é grande, <strong>do</strong> desajeita<strong>do</strong> mal vesti<strong>do</strong> cujas iniciativas<br />

contêm sonhos quixotescos — provavelmente tivesse si<strong>do</strong> muito mais difícil.<br />

No filme, como no livro, há humor; na adaptação, surge como comentário<br />

irônico em detalhes como a descartável lâmina de barbear usada pelo homem de<br />

negócios que almeja um cargo importante na empresa em que trabalha, e surge<br />

definin<strong>do</strong> a personalidade <strong>do</strong> protagonista no terno em número maior, talvez por custar<br />

mais barato. A religião, assunto <strong>do</strong> casal, da cena noturna com nuanças eróticas ao<br />

café da manhã, foi abordada sem desmerecer a novela <strong>do</strong> escritor mineiro. A equipe de<br />

produção seguiu com fidelidade a sutileza vileleana. Em uma das cenas, Dóris usa uma<br />

camisola azul com penhoar branco, o que remete ao refrão religioso “azul é seu manto,


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branco é seu véu”. Trata-se, em Vilela, de uma Nossa Senhora Erótica, representada<br />

no filme por imagens que realçam o corpo seminu da atriz. Entre o explícito e o<br />

subentendi<strong>do</strong>, sobressai no diálogo das personagens uma reflexão crítica à exploração<br />

que tenha a crença, a fé, o cre<strong>do</strong> ou qualquer outro sinônimo como matriz. Há, no<br />

decorrer <strong>do</strong> diálogo, um desmascaramento da seriedade pseu<strong>do</strong>-religiosa, da postura de<br />

certos devotos e certos religiosos.<br />

A opção por projetar os atores na penumbra, em algumas cenas, reforça a<br />

ambiguidade e conflitos interiores <strong>do</strong>s protagonistas, em especial da personagem<br />

feminina. Apesar de lembrar certas produções românticas, pois delas retoma a lua, a<br />

paisagem da janela e a mulher submissa, à espera de amor — no senti<strong>do</strong> mais amplo<br />

que esse substantivo possa ter —, a atmosfera noturna, embora mantenha certo tom de<br />

"Portanto, nessa questão tão discutida, tão, às vezes,<br />

polêmica, candente que é a da fidelidade da<br />

adaptação ao texto, depois de todas as minhas<br />

experiências, cheguei à conclusão de que a melhor<br />

maneira de um diretor ser fiel ao texto adapta<strong>do</strong> é<br />

train<strong>do</strong> o texto, porque, se tiver muita preocupação<br />

de fidelidade, acaba fazen<strong>do</strong> uma coisa que nem<br />

honra o filme, nem o texto adapta<strong>do</strong>."<br />

Luiz Vilela in "Literatura, música, teatro e cinema:<br />

transposições". (Palco de debates, com Aderbal<br />

Freire Filho, Lobão, Luiz Alberto de Abreu, Luiz<br />

Vilela, Walmor Chagas e Werner Schünemann).<br />

Jornada de Passo Fun<strong>do</strong>. Tania M. K. Rösing e<br />

Miguel Rettenmaier (org.). Diversidade cultural: o<br />

diálogo das diferenças. Passo Fun<strong>do</strong>: Universidade<br />

de Passo Fun<strong>do</strong> - Editora Universitária, 2007. p. 178<br />

compaixão característico de toda a obra de Luiz Vilela, é acidamente crítica aos<br />

devaneios. Dóris, interpretada por Taíssa Boaventura, desde a primeira cena <strong>do</strong> filme é<br />

o retrato da solidão sombria, embora em alguns momentos haja luz ao seu re<strong>do</strong>r. É por<br />

trás das cortinas de sua casa que “espia” a felicidade, o açúcar-fel para o seu dia. Após<br />

a viagem com Bóris, e já no café da manhã <strong>do</strong> hotel fazenda, Dóris passa por um<br />

processo de decadência física, chegan<strong>do</strong>, na cena final, à fragmentação completa, em


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cena excepcionalmente elaborada. Os olhos da atriz não denotam perspectiva alguma,<br />

a voz está quase inaudível. Talvez o caráter funcional da<strong>do</strong> aos nomes das personagens<br />

da novela de Luiz Vilela, na última sequência <strong>do</strong> filme, condense melhor a explicação:<br />

Bóris é o áci<strong>do</strong> que carcome e consome paulatinamente Dóris, em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s<br />

que a semântica define esses verbos. Ambos parecem infelizes, cada um no seu<br />

mun<strong>do</strong>, ainda que residam juntos.<br />

No que diz respeito ao espaço cênico <strong>do</strong> filme, quatro deles nos chamam a<br />

atenção: 1) a residência <strong>do</strong> casal, cenário amplo onde Dóris passa longas horas na<br />

solidão; 2) o hotel fazenda no qual há uma conversa descontraída entre o casal e<br />

momento em que se percebe o quanto Bóris é possessivo e egocêntrico; 3) o<br />

restaurante onde a reunião <strong>do</strong> conglomera<strong>do</strong> acontece, ambiente em que tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s<br />

parecem produtos prontos para serem servi<strong>do</strong>s em pequenas porções nas mãos que se<br />

tocam e retraem enquanto o relógio não cessa de fazer girar a roda <strong>do</strong> tempo, e garfos,<br />

facas e taças tilintam vigorosos; e 4) o quarto onde Dóris aguarda o retorno de Bóris a<br />

fim de revelar-lhe um segre<strong>do</strong> e saber o resulta<strong>do</strong> da reunião — trata-se de cenário<br />

quase vazio, como vazia é a relação <strong>do</strong> casal, com pouca luz, com destaque para o<br />

quadro da queda de uma gravata de seda sobre um chinelo feminino barato. Cena<br />

metafórica, de singela beleza, realçada pelo excelente arranjo musical que serpenteia<br />

ao longo <strong>do</strong> filme, envolven<strong>do</strong> o especta<strong>do</strong>r.<br />

Adapta<strong>do</strong> e lança<strong>do</strong> em 2007, como projeto de Prática de Ensino em Literatura<br />

pelos alunos <strong>do</strong> curso de Letras CPAN/UFMS, sob orientação e direção geral <strong>do</strong><br />

professor Rauer, o filme teve equipe de produção e elenco de ama<strong>do</strong>res. A produção,<br />

no entanto, não obscureceu os méritos que a obra Bóris e Dóris, de Luiz Vilela,<br />

conquistou, por meio de uma recepção crítica quase que totalmente laudatória.<br />

É com sutileza que os efeitos construí<strong>do</strong>s cenicamente fazem adaptação fiel no<br />

essencial da novela de Luiz Vilela, produzin<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>s renova<strong>do</strong>s ao texto original na<br />

transposição semiótica para outra mídia. O curta apresenta efeitos que empreendem<br />

feroz crítica à urgência <strong>do</strong> tempo, ao caos <strong>do</strong>s relacionamentos, à incomunicabilidade,<br />

ao distanciamento entre homens desgasta<strong>do</strong>s devi<strong>do</strong> ao corre-corre imposto pelas<br />

engrenagens <strong>do</strong> capitalismo, o que é marca<strong>do</strong>, no filme, pelo insistente martelar de um<br />

relógio e pela fragmentação <strong>do</strong>s corpos enquadra<strong>do</strong>s pela câmera, com destaque para o<br />

diálogo final.


[...]<br />

— O rapaz... O rapaz aí disse: “A senhora<br />

não gostaria de ir até lá?” “Para nadar?”, eu<br />

perguntei. “É”, ele disse.<br />

— Mas não tem a piscina aqui, <strong>do</strong> hotel?<br />

— Tem.<br />

— Então para que ir a esse lago?<br />

— Tem, mas eu não trouxe maiô.<br />

— Então pronto, está resolvi<strong>do</strong>.<br />

— Não, não está; acontece que... Eu<br />

disse isso para o rapaz: que eu não tinha<br />

trazi<strong>do</strong> maiô. Mas aí ele sorriu, e, na maior<br />

simplici-dade, disse: “A gente nada lá é sem<br />

roupa...”<br />

— Sem roupa.<br />

— É. Isso é o que ele me disse. Agora...<br />

— É nudismo?<br />

— Não.<br />

— Naturismo, essas coisas?<br />

— Não, não tem nada a ver com isso.<br />

— Então é sem-vergonhice mesmo.<br />

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Bóris e Dóris<br />

Novela<br />

Luiz Vilela<br />

Record<br />

Sessão Fragmento<br />

— Não, Bóris, não é sem-vergonhice.<br />

Você não pode dizer assim. É... Simplicidade.<br />

— Simplicidade.<br />

— Espontaneidade.<br />

— Espontaneidade.<br />

— “Lá”, o rapaz disse, “lá não tem<br />

ninguém; lá é só a gente e Deus.”<br />

— A gente e Deus.<br />

— É.<br />

— E Deus também nada.<br />

— Nada.<br />

— Pela<strong>do</strong> também.<br />

— Também.<br />

— Então está bom— ele disse, apagan<strong>do</strong><br />

o cigarro no cinzeiro. — Mas, e aí, o que você<br />

respondeu?<br />

[...]<br />

Luiz Vilela, Bóris e Dóris, Rio de<br />

Janeiro: Record, 2006. p. 77-78.<br />

LUIZ VILELA nasceu em Ituiutaba (MG), em 31 de dezembro de1942.<br />

Forma<strong>do</strong> em Filosofia, foi jornalista em São Paulo. Aos 24 anos,<br />

estreou na literatura com o livro de contos Tremor de terra, ganha<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> Prêmio Nacional de Ficção. Em 1974, ganhou o Prêmio Jabuti, na<br />

categoria contos, com O fim de tu<strong>do</strong>. É autor, entre outros, <strong>do</strong>s<br />

romances Os novos, O inferno é aqui mesmo e Entre amigos, da<br />

novela O choro no travesseiro e <strong>do</strong> volume de contos A cabeça.<br />

Luiz Vilela foi ntrevista<strong>do</strong>, no final de 2009, por mestran<strong>do</strong>s da UFMS<br />

e por professores de literatura da UFMS: o diálogo, de mais de cinco<br />

horas, será publica<strong>do</strong> em breve.


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Ilustração Luciana Diniz<br />

Jairo Rodrigues<br />

Bóris e Dóris:<br />

um flagrante cotidiano<br />

Sessão Crítica Literária<br />

Jairo Rodrigues é Mestre em Estu<strong>do</strong>s Literários pela Faculdade<br />

de Letras da UFMG e coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Setor de Bibliotecas<br />

Comunitárias <strong>do</strong> Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão A tela<br />

e o texto.<br />

Originalmente publica<strong>do</strong> em:<br />

http://www.letras.ufmg.br/atelaeotexto/revistatxt5/jairoresenha.html<br />

VILELA, Luiz. Bóris e Dóris. Rio de Janeiro: Record, 2006.<br />

Natural de Ituiutaba (MG), onde vive atualmente, o escritor<br />

Luiz Vilela iniciou sua carreira em 1967, aos 24 anos de<br />

idade, com o volume de contos Tremor de terra. O livro de<br />

estréia conferiu ao autor o primeiro <strong>do</strong>s muitos prêmios que<br />

receberia por sua obra, pois Tremor de terra ganhou, naquele<br />

mesmo ano, o Prêmio Nacional de Ficção, em Brasília.<br />

Excetuan<strong>do</strong>-se as antologias, Luiz Vilela escreveu, entre<br />

contos, novelas e romances, treze títulos. O mais recente,


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lança<strong>do</strong> em 2006, é Bóris e Dóris, sua terceira novela. Nela, o<br />

autor reafirma uma das habilidades mais marcantes em sua<br />

escrita, "sua capacidade", como afirma Laís Corrêa Araújo, "de<br />

apreender a consciência das relações humanas - e de integrá-la<br />

numa organização estética". Ao lançar seu olhar perquiri<strong>do</strong>r<br />

sobre as relações humanas, Vilela parece não buscar os grandes<br />

acontecimentos, os temas comoventes e apaixonantes. Em vez de<br />

mirar uma luneta para o espaço na tentativa de descobrir novas<br />

constelações, o autor direciona sua lupa para as situações<br />

corriqueiras que passam despercebidas justamente porque são<br />

tão cotidianas.<br />

A aparente simplicidade temática, no entanto, mais parece uma<br />

estratégia para esconder a extrema maestria com que o escritor<br />

elabora sua narrativa. A linguagem, quase sempre informal é,<br />

em muitos casos, disposta em diálogos, reproduzin<strong>do</strong> a fala.<br />

Contu<strong>do</strong>, engana-se quem pensa que seus personagens falam<br />

demais. Em Vilela, o que sobra não são as palavras. Há sempre<br />

algo que ele não contou, já que muitos de seus textos são<br />

recortes no tempo. Vilela é sucinto e deixa para o leitor as<br />

conjecturas sobre o que teria aconteci<strong>do</strong> antes ou depois <strong>do</strong><br />

texto.<br />

Em Bóris e Dóris, esse recorte temporal é claro. A história se<br />

passa durante um dia na vida <strong>do</strong>s protagonistas. Como eles<br />

chegaram àquela situação e o que acontecerá depois, fica a<br />

cargo de cada leitor. Os nomes <strong>do</strong>s personagens, entretanto,<br />

são informações bastante reiteradas pelo autor, já que compõem<br />

o título <strong>do</strong> livro, Sobre eles, é interessante destacar que se<br />

diferenciam apenas pela alteração da primeira consoante, o que<br />

sugeriria, até mesmo, certo espelhamento. Porém, se pensarmos<br />

na imagem especular como o duplo idêntico, veremos que essa<br />

não é uma definição que se aplique ao casal da narrativa. A<br />

eles caberia mais a imagem especular obtida pelo negativo,<br />

como na fotografia, em que as cores da foto revelada são<br />

inversas às inscritas na película fílmica.<br />

Bóris tem 60 anos, é um empresário pragmático, de<br />

personalidade forte. É alguém que estabelece metas e as<br />

persegue, apresenta traços narcisistas e, constantemente,<br />

mostra-se impaciente. Dóris parece ser o oposto <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Ela<br />

tem 37 anos e é uma mulher sensível que abdicou da profissão<br />

para servir a ele. Mesmo discordan<strong>do</strong> <strong>do</strong> que ele diz, Dóris<br />

parece não ter forças ou ânimo para se impor.<br />

Grande parte da narrativa acontece durante um café da manhã em<br />

um hotel-fazenda onde o casal está hospeda<strong>do</strong>. Desde o início<br />

da história, quan<strong>do</strong> Bóris rejeita comer o bolo de chocolate<br />

sugeri<strong>do</strong> por Dóris, pode-se perceber o tom divergente, às


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vezes irônico, outras vezes sarcástico, que irá perpassar toda<br />

a obra.<br />

Enquanto Bóris espera pelo motorista que o levará a uma<br />

importante convenção, o casal conversa sobre assuntos varia<strong>do</strong>s<br />

que vão se interligan<strong>do</strong> quase aleatoriamente, como num diálogo<br />

informal. O interessante é que um deles discorda de quase tu<strong>do</strong><br />

o que é dito pelo outro e vice-versa. Entre os temas por eles<br />

aborda<strong>do</strong>s, encontramos alguns polêmicos, como a pe<strong>do</strong>filia na<br />

Igreja Católica, e outros banais, como o motivo para o apeli<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> único irmão que Bóris tivera.<br />

Com Boris e Dóris, Vilela convida-nos a refletir sobre a<br />

maneira como nossas subjetividades vêm à tona mesmo nas<br />

conversas mais banais. Seus personagens são construí<strong>do</strong>s por<br />

meio de suas próprias falas. Bóris, imponente, tem falas<br />

longas, considera-se sempre com a razão e, quan<strong>do</strong> a perde,<br />

ironiza. Dóris, muitas vezes, em respostas monossilábicas,<br />

começa discordan<strong>do</strong> de Bóris, porém, vencida pelo cansaço ou<br />

sem disposição para defender seu ponto de vista, acaba<br />

concordan<strong>do</strong> com o mari<strong>do</strong>.<br />

A estruturação <strong>do</strong> texto em diálogos, característica marcante<br />

<strong>do</strong> autor, garante a Bóris e Dóris uma leitura extremamente<br />

ágil. Essa rapidez de leitura, entretanto, não impede que o<br />

texto, em determina<strong>do</strong>s momentos, adquira um ritmo cansativo.<br />

Várias falas são repetidas insistentemente como se o<br />

entendimento entre os personagens fosse algo difícil de se<br />

estabelecer. Esse caráter "enfa<strong>do</strong>nho" (essa é, segun<strong>do</strong> as<br />

considerações de Dóris, uma das significações <strong>do</strong> nome de<br />

Bóris) torna-se parte integrante e necessária à construção <strong>do</strong><br />

texto, pois, assim como a relação entre os <strong>do</strong>is parece<br />

estagnada, paralisada, de andamento dificulta<strong>do</strong>, o texto que<br />

eles emitem também não pode fluir livremente.<br />

Entre Bóris e Dóris já não há o que falar. O hiato da espera<br />

pelo motorista também serve como pretexto para o autor nos<br />

mostrar a banalidade que uma relação conjugal pode alcançar. A<br />

espera não é preenchida por uma conversa amigável, mas por uma<br />

série de farpas que mari<strong>do</strong> e mulher lançam um contra o outro.<br />

Bóris e Dóris são <strong>do</strong>is estranhos que convivem; entretanto, já<br />

não coincidem.


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REVOLUÇÕES PESSOAIS<br />

Além de diálogos intensos, Bóris e Dóris, de Luiz Vilela, traz também uma forte reflexão social<br />

Maurício Melo Júnior • Brasília – DF<br />

Publica<strong>do</strong> em: http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=25&lista=<br />

0&subsecao=0&ordem=1227&semlimite=to<strong>do</strong>s<br />

Divulgação<br />

Luiz Vilela aprendeu a conversar<br />

com Graciliano Ramos, um homem<br />

de pouca conversa.<br />

A história é antiga. Desde os i<strong>do</strong>s de 1969 quan<strong>do</strong> o<br />

crítico Antonio Candi<strong>do</strong>, membro da comissão julga<strong>do</strong>ra<br />

<strong>do</strong> II Concurso Nacional de Contos <strong>do</strong> Paraná, escreveu<br />

que "a sua força está no diálogo e, também, na absoluta<br />

pureza de sua linguagem", a cada novo livro de Luiz<br />

Vilela se busca o encanto <strong>do</strong> diálogo. Na novela que<br />

acaba de lançar, Bóris e Dóris, a recorrência não poderia<br />

ficar de fora, até porque trata-se, basicamente, de <strong>do</strong>is<br />

longos diálogos de um casal em um hotel.<br />

Mas Vilela não é um escritor de facilidades, com apenas o<br />

predica<strong>do</strong> de construir excelentes diálogos. Suas buscas e<br />

ânsias têm raízes mais profundas. Teve até seu momento<br />

revolucionário. Entre os mea<strong>do</strong>s das décadas de 1960 e<br />

1970, viveu de intensidades. Belo Horizonte, São Paulo,<br />

Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Europa e a volta para Belo Horizonte.<br />

Foi também protagonista de polêmicas.<br />

"Em 1967, aos 24 anos, depois de ser recusa<strong>do</strong> por vários<br />

editores, Luiz Vilela publicou, à própria custa, em edição<br />

graficamente modesta e de apenas mil exemplares, seu<br />

primeiro livro, de contos, Tremor de terra. Man<strong>do</strong>u-o<br />

então para um concurso literário em Brasília, e o livro<br />

ganhou o Prêmio Nacional de Ficção, disputan<strong>do</strong> com 250<br />

escritores, entre os quais diversos monstros sagra<strong>do</strong>s da<br />

literatura brasileira, como Mário Palmério e Osman Lins.<br />

José Condé, que também concorria e estava presente ao<br />

anúncio <strong>do</strong> prêmio, feito no encerramento da Semana <strong>do</strong><br />

Escritor, que se realizava to<strong>do</strong> ano na capital federal,<br />

levantou-se, acusou a comissão julga<strong>do</strong>ra de fazer<br />

‘molecagem' e se retirou da sala.<br />

Outro escritor, José Geral<strong>do</strong> Vieira, também<br />

inconforma<strong>do</strong> com o resulta<strong>do</strong> e que estava tão certo de<br />

ganhar o prêmio que já levara o discurso de<br />

agradecimento, perguntou à comissão julga<strong>do</strong>ra se aquele<br />

concurso era destina<strong>do</strong> a ‘aposentar autores de obra feita e<br />

premiar meninos saí<strong>do</strong>s da creche'. Comentan<strong>do</strong> mais<br />

tarde o fato em seu livro Situações da ficção brasileira,<br />

Fausto Cunha, que fizera parte da comissão julga<strong>do</strong>ra,<br />

disse: ‘os mais novos empurram implacavelmente os mais velhos para a história ou para o lixo'." É o<br />

que se conta na biografia <strong>do</strong> autor publicada no final deBóris e Dóris.<br />

Passadas as revoluções pessoais, Vilela sentiu que seu mun<strong>do</strong> era tomar o retorno a Ituiutaba, Minas<br />

Gerais, onde nasceu e até hoje vive crian<strong>do</strong> vaca leiteira e literatura. Tu<strong>do</strong> fez em favor dessa obra capaz


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de despertar ódios e paixões. Um poder nasci<strong>do</strong> <strong>do</strong> fato de ser o texto um imenso reflexo das mutações<br />

acontecidas nesta urgente mudança de séculos que vivemos.<br />

Se não, vejamos.<br />

Voltan<strong>do</strong> à questão <strong>do</strong> diálogo, ele surge na ficção de Vilela como forma de deixá-la mais direta,<br />

simples e rápida. Não para atender ao que se poderia chamar de antecipação da forma que encanta os<br />

jovens autores. Eles, os autores de agora, buscam a rapidez, o parcelamento da prosa, o discurso quase<br />

gago - tantos são os pontos e vírgulas - como uma representação <strong>do</strong> caos urbano e destes tempos de<br />

múltiplas velocidades. Vilela está preocupa<strong>do</strong> com questões mais profundas.<br />

Quan<strong>do</strong>, ainda aos treze anos, descobriu Graciliano Ramos ficou fascina<strong>do</strong> pela prosa seca, dura e<br />

plenamente descarnada <strong>do</strong> sertanejo. E aprendeu que era possível escrever de maneira radicalmente<br />

contrária aos cânones estipula<strong>do</strong>s pelo classicismo realista de José de Alencar e Raul Pompéia, por<br />

exemplo. Daí optou pela mágica coloquial <strong>do</strong> diálogo. Ou seja, Vilela aprendeu a conversar com<br />

Graciliano Ramos, um homem de pouca conversa.<br />

No entanto, como mostram os contos de Tremor de terra, o diálogo nasceu como monólogo. No<br />

princípio apenas o narra<strong>do</strong>r falava num debulhar de desesperos ritma<strong>do</strong> e coloquial. Seu texto vinha<br />

carrega<strong>do</strong> <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> de Paulo Honório de São Bernar<strong>do</strong> e Luís da Silva de Angústia. Mas aqui<br />

estamos no trampolim, no ponto de apoio para um salto maior, onde a linguagem - essa agora de Luiz<br />

Vilela - ganha cores e vidas próprias. Ela fica cada vez mais sintética e coloquial não como concessão<br />

ao leitor, mas como necessidade de se aproximar de uma realidade cada vez menos receptiva aos<br />

diálogos, uma realidade quase monossilábica e fortemente angustiante.<br />

Foi também possivelmente na leitura desse realismo agrário e social de Graciliano Ramos que aprendeu<br />

a refletir sobre a alma humana - uma expressão que guarda lá suas redundâncias. Mas, enfim, to<strong>do</strong> este<br />

cal<strong>do</strong> - diálogo intenso, reflexão social, atualidade, marcas de vivências - impregna Bóris e Dóris. Eles,<br />

os protagonistas, parecem vin<strong>do</strong>s de outras esferas. São um encontro de contradições. Há diferenças de<br />

idade e de senti<strong>do</strong>s. Há o trabalho e o ócio, o pragmatismo e o sonho, a ambição e o vazio. E tu<strong>do</strong> no<br />

princípio parece tão óbvio, pois o enre<strong>do</strong> aponta para o bem-sucedi<strong>do</strong> homem de negócio que casa com<br />

uma mulher mais jovem e bela e a trata como uma propriedade qualquer.<br />

Só que novamente nasce a falta de facilidades da prosa de Luiz Vilela. Primeiro há o tempo e ele é<br />

múltiplo. A novela se passa num pedaço de manhã e num resto de noite. Bóris se mostra sempre<br />

preocupa<strong>do</strong> com o seu tempo pessoal, com a angústia de não se atrasar para a convenção <strong>do</strong> grupo<br />

empresarial a que pertence. Dóris com o excesso de tempo de sua vida ociosa. Os <strong>do</strong>is se conciliam no<br />

me<strong>do</strong> <strong>do</strong> envelhecimento implacável e no que fizeram de suas vidas. E aí Bóris, tão senhor de seu<br />

momento, sente o dissabor de quem não tem o <strong>do</strong>mínio sobre tu<strong>do</strong>.<br />

Depois vem o espaço. No concreto da narrativa to<strong>do</strong> espaço está restrito ao hotel-fazenda, ou melhor, ao<br />

salão <strong>do</strong> café-da-manhã e ao quarto onde está hospeda<strong>do</strong> o casal. Nas lembranças <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is os espaços se<br />

ampliam, mas sempre na necessidade de analisar momentos e definições de suas vidas. E no final este<br />

espaço está limita<strong>do</strong> a um mun<strong>do</strong> pequeno e mesquinho, pois em torno dele transitam pessoas que<br />

independem das decisões e necessidades <strong>do</strong> casal. O rapaz da recepção, a senhora misteriosa, as duas<br />

moças vizinhas de mesa, os amigos <strong>do</strong> grupo empresarial, o irmão de Bóris.<br />

Num diálogo direto e sem malabarismos retóricos, Luiz Vilela traça vidas e reflete sobre as contradições<br />

entre sonhos e ambições. Bóris ambiciona enquanto Dóris sonha. E juntos, aos poucos, perdem as<br />

esperanças. São a síntese de um mun<strong>do</strong> sem perdões. Enfim, Vilela prossegue na marcha de suas<br />

revoluções pessoais.


CARANDÁ<br />

Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong> <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS,<br />

Corumbá, MS, maio 2010, n. 2, p. 270<br />

CHAMADA PARA A CARANDÁ nº 3,<br />

A SAIR EM MAIO DE 2011<br />

1 1 - Os trabalhos para o terceiro número da CARANDÁ - Revista <strong>do</strong> Curso de Letras <strong>do</strong><br />

<strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong> – UFMS devem ser envia<strong>do</strong>s até 22 de abril de 2011, para os<br />

emails angelavbr@brturbo.com.br e rauer.rauer@uol.com.br, estritamente em<br />

conformidade com as normas abaixo.<br />

2 2 – Após o(s) nome(s) <strong>do</strong>(s) autor(es), em corpo 12, alinha<strong>do</strong>(s) à direita,<br />

chamada para nota de rodapé, na qual – em corpo 10 – deve(m) constar a(s)<br />

instituição(ões) a que se vincula(m), informações biobibliográficas complementares<br />

e o e-mail.<br />

3 3 – Os trabalhos devem vir com resumo, de 8 a 15 linhas, em português, com<br />

de três a cinco palavras-chave, e versão <strong>do</strong> título, <strong>do</strong> resumo e das palavraschave<br />

em inglês ou espanhol.<br />

4 – Os <strong>artigos</strong> devem ter de oito a vinte laudas, digitadas em Word, times new<br />

roman corpo 12 para o texto e subtítulos (estes, em caixa alta, à esquerda);<br />

14 negrito caixa alta para o título, centraliza<strong>do</strong>, na segunda linha da primeira<br />

página; margens de 3 cm e espaço 1,5 entre as linhas; parágrafo padrão.<br />

5 - As citações com mais de três linhas devem estar em corpo 11 e ser<br />

diferenciadas por um recuo de mais 4 cm à esquerda; as citações de partes de<br />

uma frase, no interior <strong>do</strong> texto, devem ser abertas e fechadas por aspas.<br />

6 - As citações devem seguir o padrão autor, data, página; o sobrenome <strong>do</strong>(s)<br />

autor(es) deve(m) ter somente a inicial maiúscula.<br />

7 - Colocam-se as Referências ao final, tão só das obras citadas, e de acor<strong>do</strong><br />

com as normas em vigor da ABNT.<br />

8 – Além de <strong>artigos</strong> teóricos, de estu<strong>do</strong>s linguísticos e de análises de obras<br />

literárias, a CARANDÁ publica poemas e narrativas curtas e criações no<br />

âmbito das artes plásticas.<br />

9 9 9 – Contatos: Professora Angela Varela Brasil, editora da Revista, pelo<br />

telefone 67-3234-6830 / 6836. A partir de 2011 a CARANDÁ será semestral.<br />

10 10 – Correspondência: Curso de Letras da UFMS, <strong>Câmpus</strong> <strong>do</strong> <strong>Pantanal</strong>, UFMS<br />

– Avenida Rio Branco, 1270 – <strong>Câmpus</strong> Universitário – 79.304-020 – Corumbá,<br />

MS.

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