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uma “apreensão” do mundo na obra de Brígida Baltar - embap

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ANAIS<br />

IV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE<br />

Escola <strong>de</strong> Música e Belas Artes <strong>do</strong> Paraná. Curitiba, 2006<br />

ISSN 1809-2616<br />

COLECIONANDO O INTANGÍVEL:<br />

UMA “APREENSÃO” DO MUNDO NA OBRA DE BRÍGIDA BALTAR<br />

Sylvia Werneck Quartim Barbosa 1<br />

sylvia.quartim@uol.com.br<br />

Resumo: O homem é o único animal que colecio<strong>na</strong>. De on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> concluir que toda<br />

coleção tem <strong>uma</strong> intencio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>, um propósito, um discurso. Os motivos que movem o<br />

colecio<strong>na</strong><strong>do</strong>r vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o registro <strong>de</strong> <strong>uma</strong> dada cultura ou época até razões mais munda<strong>na</strong>s,<br />

como o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> posse ou <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. O colecio<strong>na</strong><strong>do</strong>r é impulsio<strong>na</strong><strong>do</strong> pela<br />

simbologia imbricada em certos objetos, que trazem em si <strong>uma</strong> carga significante. Há muitos<br />

artistas cuja <strong>obra</strong> pressupõe a coleta <strong>de</strong> itens; curioso é que existam artistas que se disponham<br />

a coletar o invisível, como o faz <strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong>. Na série Umida<strong>de</strong>s, a artista empreen<strong>de</strong><br />

diversas coletas <strong>de</strong> três elementos básicos: nebli<strong>na</strong>, orvalho e maresia. Estas coletas<br />

simbólicas suscitam diversos questio<strong>na</strong>mentos, entre os quais a velocida<strong>de</strong> e a virtualida<strong>de</strong><br />

crescentes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que vivemos.<br />

Palavras-chave: Colecionismo; Registro; Simbologia<br />

O ACÚMULO QUE PRODUZ SENTIDO<br />

O homem é o único animal que colecio<strong>na</strong>. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se que, até on<strong>de</strong><br />

sabemos, a espécie h<strong>uma</strong><strong>na</strong> é a única <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> raciocínio, po<strong>de</strong>-se concluir que esta<br />

operação <strong>de</strong> coleta e guarda serve a um ou mais propósitos, a <strong>uma</strong> ou mais<br />

intencio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s; em s<strong>uma</strong>, carrega um discurso. A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> colecio<strong>na</strong>r data<br />

da Pré-História, quan<strong>do</strong> o homem primitivo nôma<strong>de</strong>, a cada <strong>de</strong>slocamento, levava<br />

consigo seus objetos utilitários. Da mesma época, há registros da reunião <strong>de</strong> ‘tesouros’<br />

<strong>de</strong> conchas. A h<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> cre<strong>do</strong>s ou raças, tem <strong>uma</strong><br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> marcar a sua passagem pelo mun<strong>do</strong> e, para tanto, lança mão <strong>do</strong><br />

recurso das coleções. Não há registro <strong>de</strong> qualquer civilização ou cultura que não tenha<br />

se <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> a acumular objetos ou <strong>do</strong>cumentos.<br />

Os propósitos e motivações das coleções foram se modifican<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong>s<br />

1 Mestranda <strong>do</strong> Programa Interunida<strong>de</strong>s em Estética e História da Arte – USP, <strong>na</strong> linha <strong>de</strong> pesquisa Teoria e Crítica<br />

<strong>de</strong> Arte, orientada pela Profa. Dra. Katia Canton. Especialista em Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Museus <strong>de</strong> Arte pelo MAC-USP.<br />

227


tempos, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os interesses suscita<strong>do</strong>s pelos acontecimentos <strong>de</strong> cada época.<br />

De qualquer mo<strong>do</strong>, <strong>uma</strong> coleção tem sempre a intenção <strong>de</strong> comunicar algo, sempre<br />

traz em consi<strong>de</strong>ração a existência <strong>de</strong> um especta<strong>do</strong>r, que receberá, <strong>na</strong> mesma época<br />

ou posteriormente, <strong>uma</strong> mensagem. Quanto à <strong>na</strong>tureza das coleções, existe <strong>uma</strong><br />

relação estreita entre a mensagem a ser comunicada e o tipo <strong>de</strong> objeto colecio<strong>na</strong><strong>do</strong>.<br />

Coleções que intencio<strong>na</strong>m comunicar po<strong>de</strong>r serão geralmente compostas por rarida<strong>de</strong>s<br />

ou por objetos com alto valor <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>, como os <strong>de</strong>spojos <strong>de</strong> guerras e objetos<br />

retira<strong>do</strong>s <strong>de</strong> colônias pelos países ocupantes. As coleções exibidas nos antigos<br />

gabinetes <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>s eram compostas por <strong>uma</strong> miscelânea <strong>de</strong> objetos <strong>na</strong>turais,<br />

orgânicos e artefatos manufatura<strong>do</strong>s, com o objetivo <strong>de</strong> maravilhar a socieda<strong>de</strong><br />

européia quanto ao exotismo <strong>do</strong> “mun<strong>do</strong> novo”. Já em um museu, <strong>uma</strong> coleção <strong>de</strong><br />

objetos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, <strong>de</strong> <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong> contexto ou produção artística tem um<br />

direcio<strong>na</strong>mento didático e mnemônico, <strong>de</strong> apresentar às gerações futuras <strong>uma</strong> amostra<br />

<strong>de</strong> como vivia <strong>uma</strong> <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da comunida<strong>de</strong> ou época. Naturalmente, o caráter<br />

educativo é mais característico das coleções públicas, especialmente as <strong>do</strong>s museus,<br />

sejam eles <strong>de</strong> história, ciência ou <strong>de</strong> arte.<br />

As coleções privadas, <strong>de</strong> outro la<strong>do</strong>, mantêm <strong>uma</strong> relação mais direta com<br />

algum tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> diversas or<strong>de</strong>ns – econômico,<br />

social, cultural etc. Nenh<strong>uma</strong> coleção é formada sem intenção <strong>de</strong> ser exposta a outros.<br />

Ainda que seja particular, busca comunicar algum tipo <strong>de</strong> discurso a quem a admira.<br />

Há também, inerentemente, aspectos <strong>de</strong> fetiche, <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> possuir um<br />

referencial simbólico, <strong>uma</strong> vez que qualquer objeto, quan<strong>do</strong> retira<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu contexto e<br />

função usuais, per<strong>de</strong> suas configurações origi<strong>na</strong>is e transforma-se em símbolo. Uma<br />

outra característica importante é a classificação, a taxonomia e o controle sobre a<br />

coleção. A filósofa recentemente falecida Susan Sontag, em seu romance O amante <strong>do</strong><br />

vulcão, <strong>de</strong>staca características interessantes <strong>do</strong> impulso <strong>do</strong> colecio<strong>na</strong><strong>do</strong>r:<br />

228<br />

Colecio<strong>na</strong>r é <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo insaciável, um <strong>do</strong>njuanismo <strong>do</strong>s objetos em que<br />

cada novo acha<strong>do</strong> <strong>de</strong>sperta <strong>uma</strong> nova intumescência mental e gera o prazer adicio<strong>na</strong>l da<br />

contagem, da enumeração. O volume e o caráter incansável da conquista per<strong>de</strong>riam algo <strong>de</strong> seu<br />

objetivo e sabor se não existisse em algum lugar um livro-caixa com as nossas variadas mille e<br />

tre (e, <strong>de</strong> preferência, um factótum para atualizá-lo), a feliz contemplação <strong>do</strong> qual em da<strong>do</strong>s<br />

momentos evita a exaustão <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo a que o atleta erótico é con<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong> e contra a qual ele<br />

luta. Mas as listas são um empreendimento muito mais espiritual para o atleta <strong>do</strong> consumismo<br />

material e mental.<br />

A lista é em si <strong>uma</strong> coleção, <strong>uma</strong> coleção sublimada. Não é preciso possuir <strong>de</strong> fato as<br />

coisas. Conhecer já é ter (felizmente, para aqueles sem gran<strong>de</strong>s meios). Já é <strong>uma</strong> reivindicação


à posse, um tipo <strong>de</strong> posse, pensar nelas <strong>de</strong>sta forma, a forma <strong>de</strong> <strong>uma</strong> lista: que é valorizá-las,<br />

classificá-las, dizer que merecem ser lembradas ou <strong>de</strong>sejadas. 2<br />

Em s<strong>uma</strong>, há inúmeros tipos <strong>de</strong> coleções e motivos para que sejam formadas,<br />

mas a esmaga<strong>do</strong>ra maioria tem um ponto comum – são coleções <strong>de</strong> objetos,<br />

palpáveis, tangíveis. Entre os artistas plásticos, há muitos cujo trabalho pressupõe a<br />

acumulação <strong>de</strong> <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong>s itens, pelas mais variadas motivações e com as mais<br />

variadas intencio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, cost<strong>uma</strong>m acumular objetos, coisas<br />

materiais, ainda que lhes interesse muito mais a carga simbólica <strong>do</strong> objeto que o objeto<br />

em si. A título <strong>de</strong> exemplo, po<strong>de</strong>mos citar nomes como Arthur Bispo <strong>do</strong> Rosário e os<br />

botões, linhas e broca<strong>do</strong>s que usava para tecer seus mantos rituais que serviriam para<br />

seu encontro com Deus; José Rufino e as cartas <strong>de</strong> familiares <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapareci<strong>do</strong>s<br />

políticos, sobre as quais imprime monotipias e recria um corpus simbólico coletivo on<strong>de</strong><br />

o corpo físico individual não existe mais; Jac Leirner e as sacolas <strong>de</strong> museus, símbolo<br />

da mercantilização <strong>do</strong> espaço da arte, que, reinventadas como composição artística,<br />

revertem o processo e retor<strong>na</strong>m ao universo da arte; Nelson Leirner e os<br />

industrializa<strong>do</strong>s resignifica<strong>do</strong>s, cuja acumulação provoca novas leituras; Marcone<br />

Moreira e o ato <strong>de</strong> estacio<strong>na</strong>r o movente ao compor planos com partes <strong>de</strong> boléias <strong>de</strong><br />

caminhão e cascos <strong>de</strong> barcos; Divino S<strong>obra</strong>l e a história da <strong>na</strong>tureza e das gentes<br />

enredada <strong>na</strong>s roupas e objetos <strong>de</strong> família.<br />

Ao mesmo tempo, há ‘colecio<strong>na</strong><strong>do</strong>res’ que apreen<strong>de</strong>m a simbologia <strong>de</strong><br />

elementos que não são palpáveis. É o caso da artista carioca <strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong>, que,<br />

paralelamente a trabalhos <strong>de</strong> outros teores, <strong>de</strong>dicou-se, ao longo <strong>de</strong> vários anos, a<br />

coletar elementos que, apesar <strong>de</strong> intangíveis, são igualmente carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

simbologia.<br />

O MUNDO SÓLIDO DE BRÍGIDA BALTAR<br />

<strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong> cost<strong>uma</strong> usar elementos subjetivos <strong>na</strong> composição <strong>de</strong> sua <strong>obra</strong>.<br />

Parte <strong>de</strong> um cenário íntimo, como sua casa, e o expan<strong>de</strong>, compartilhan<strong>do</strong> noções mais<br />

amplas <strong>de</strong> lar, memória, feminilida<strong>de</strong>, família. Usa a subjetivida<strong>de</strong> como mote, seja<br />

coletan<strong>do</strong> o pó <strong>do</strong>s tijolos, cascas <strong>de</strong> tinta das pare<strong>de</strong>s e gotas <strong>de</strong> chuva que escorrem<br />

<strong>do</strong> telha<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua casa-atelier, seja escavan<strong>do</strong> <strong>na</strong> pare<strong>de</strong> o perfil <strong>de</strong> seu corpo.<br />

2 SONTAG, Susan. O amante <strong>do</strong> vulcão. 3. reimpr. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. p. 207.<br />

229


Na maior parte <strong>de</strong> seus trabalhos há um elemento feminino, sensível e forte<br />

como ponto <strong>de</strong> partida (um <strong>de</strong>talhe é que a artista quase sempre aparece em suas<br />

performances usan<strong>do</strong> vesti<strong>do</strong>s) – como no filme Em <strong>uma</strong> árvore, em <strong>uma</strong> tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

2000. Em cima <strong>de</strong> <strong>uma</strong> árvore, ela lê um livro, alheia ao intenso movimento da rua que,<br />

em contrapartida, parece também ignorar sua presença. O tráfego <strong>de</strong> carros, ônibus e<br />

caminhões assume a função <strong>de</strong> panorama em segun<strong>do</strong> plano; a ce<strong>na</strong>, insólita para<br />

<strong>uma</strong> cida<strong>de</strong> como o Rio <strong>de</strong> Janeiro, é filmada sem som. O contraste entre estas duas<br />

‘realida<strong>de</strong>s’ é integra<strong>do</strong> pelas relações cromáticas <strong>do</strong> ví<strong>de</strong>o. As flores da árvore, <strong>de</strong> um<br />

cor-<strong>de</strong>-rosa vívi<strong>do</strong>, estabelecem um diálogo com o vermelho <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>Brígida</strong>,<br />

replica<strong>do</strong> <strong>na</strong> bolsa vermelha pendurada <strong>na</strong> árvore, <strong>na</strong> colu<strong>na</strong> vermelha <strong>do</strong> prédio ao<br />

fun<strong>do</strong> e em um caminhão vermelho fortuitamente estacio<strong>na</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da rua. A<br />

placi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> seus gestos, oposta à velocida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s veículos, oferece-lhe resistência,<br />

intrigan<strong>do</strong> o especta<strong>do</strong>r, que foca a atenção em sua figura e fica esperan<strong>do</strong> suas<br />

reações.<br />

Casa <strong>de</strong> Abelha, mais intimista, faz um paralelo entre o inseto abelha e a artista-<br />

abelha. Nas fotos, <strong>Brígida</strong> aparece usan<strong>do</strong> um vesti<strong>do</strong> borda<strong>do</strong> em ponto “casa-<strong>de</strong>-<br />

abelha”, sentada sobre os <strong>de</strong>graus da escadaria <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> sua casa, por on<strong>de</strong><br />

escorre <strong>uma</strong> enorme quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mel. Ao filme são intercaladas animações, on<strong>de</strong> o<br />

<strong>de</strong>senho <strong>de</strong> <strong>uma</strong> figura femini<strong>na</strong> com <strong>uma</strong> roupa <strong>de</strong> favos gira ao som <strong>de</strong> ruí<strong>do</strong>s<br />

suaves <strong>de</strong> água e <strong>de</strong> mato à noite, que fazem <strong>uma</strong> melodia sutil. O mel, símbolo <strong>de</strong><br />

afetivida<strong>de</strong>, escorre pela casa-lar da artista-mãe-abelha. Nas palavras <strong>de</strong> Luisa Duarte<br />

“<strong>Brígida</strong> crea u<strong>na</strong> especie <strong>de</strong> ficción expresada en fotos, vi<strong>de</strong>os, dibujos, animaciones y<br />

pequeños escritos que se proponen mostrar la casa como el centro productor <strong>de</strong><br />

afectos”. 3<br />

O MUNDO INTANGÍVEL DE BRÍGIDA BALTAR<br />

Um romantismo e lirismo mais próprios das mulheres também permeiam o<br />

projeto Umida<strong>de</strong>s, realiza<strong>do</strong> entre 1994 e 2001. Trata-se <strong>de</strong> <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> ações<br />

(fotografadas e filmadas em ví<strong>de</strong>o), <strong>na</strong>s quais <strong>Brígida</strong> coleta nebli<strong>na</strong>, orvalho e<br />

maresia. As performances foram realizadas várias vezes, alg<strong>uma</strong>s somente por<br />

<strong>Brígida</strong>, outras por um grupo <strong>de</strong> pessoas.<br />

3 DUARTE, Luisa. <strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong> – Casa <strong>de</strong> Abeja. Bogotá: Galería <strong>de</strong>l Instituto <strong>de</strong> Cultura Brasil Colombia, 2003.<br />

230


Em todas estas experiências, há um certo ritual. A artista sai <strong>de</strong> casa ce<strong>do</strong>, ao<br />

romper <strong>do</strong> dia, com <strong>uma</strong> missão pré-<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da: coletar o intangível. Este gesto<br />

evoca inúmeras consi<strong>de</strong>rações. A que interessa particularmente a este artigo é a da<br />

coleção. Como se colecio<strong>na</strong> ar úmi<strong>do</strong>? O que está conti<strong>do</strong> neste ar úmi<strong>do</strong> que aparece<br />

em <strong>uma</strong> <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da hora, em um <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong> local e em <strong>uma</strong> <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da época <strong>do</strong><br />

ano? Vem à mente a idéia <strong>de</strong> <strong>de</strong>ter um instante, <strong>uma</strong> recordação daquele momento em<br />

que o ar passou por aquela montanha, encontrou-se com <strong>uma</strong> nuvem, carregou-se <strong>de</strong><br />

umida<strong>de</strong> e foi passear por estradas, bosques, bocas, roupas, casas e carros. Continua<br />

intangível, mas rechea<strong>do</strong> <strong>de</strong> histórias.<br />

Para as Coletas da Nebli<strong>na</strong>, <strong>Brígida</strong> confeccionou um traje especial, <strong>uma</strong><br />

espécie <strong>de</strong> colete feito <strong>de</strong> plástico-bolha com vários bolsos para os frascos, vidros,<br />

aquários e potes on<strong>de</strong> a nebli<strong>na</strong> será armaze<strong>na</strong>da. Esta roupa, branca e transparente,<br />

faz com que a artista se mimetize com o ambiente em que caminha, ora oculta e ora<br />

revelada pela névoa esbranquiçada que caracteriza a manhã serra<strong>na</strong>. O que se vê no<br />

filme é <strong>uma</strong> ce<strong>na</strong> quase fantástica, <strong>uma</strong> atmosfera <strong>de</strong> sonho, quase sem cor, quase<br />

irreal. Dela restam o registro <strong>de</strong> que houve <strong>uma</strong> coleta e que há nos frascos um<br />

resquício <strong>do</strong>s passeios <strong>do</strong> ar da manhã. A própria artista, respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> à pergunta <strong>de</strong><br />

Raul Mourão “O que é nebli<strong>na</strong>?”, respon<strong>de</strong> que, para ela, nebli<strong>na</strong> é “<strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> ar<br />

branco que revela ou não, e a paisagem nunca é a mesma, ela <strong>de</strong>sfaz montanhas e<br />

<strong>de</strong>sfoca horizontes”. 4<br />

De outro colori<strong>do</strong>, ainda que também algo páli<strong>do</strong>, são as Coletas da Maresia.<br />

Nas praias <strong>do</strong> Rio, também ao raiar <strong>do</strong> dia, sob um céu páli<strong>do</strong>, duas mulheres correm<br />

pela areia munidas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s potes <strong>de</strong> vidro, coletan<strong>do</strong> o ar marinho. O bege da areia<br />

e o azul páli<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar e <strong>do</strong> céu só são contrasta<strong>do</strong>s pelo negro das roupas das<br />

coletoras, que andam, correm, param, improvisam coreografias, esperam o momento<br />

exato <strong>de</strong> erguer os potes e reter um pouco da maresia.<br />

Os recipientes <strong>de</strong>sta coleta, diferentemente <strong>do</strong>s frascos <strong>de</strong>lga<strong>do</strong>s usa<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s<br />

outras ações, parecem aquários. São gran<strong>de</strong>s, re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>s e com boca larga, como se o<br />

material a ser armaze<strong>na</strong><strong>do</strong> fosse mais espesso, ocupasse mais espaço que os também<br />

intangíveis nebli<strong>na</strong> e orvalho. A ação é inclusive mais enérgica: ao passo que <strong>Brígida</strong>,<br />

<strong>na</strong> montanha ou nos jardins, se move <strong>de</strong>vagar e suavemente, as coletoras à beira-mar<br />

movimentam-se rápi<strong>do</strong>, como se o instante pu<strong>de</strong>sse escapar à menor vacilação. Nos<br />

três casos, acontece <strong>uma</strong> interação das pessoas com a paisagem, mas enquanto <strong>na</strong>s<br />

4 BALTAR, <strong>Brígida</strong>. Nebli<strong>na</strong> orvalho e maresia coletas – <strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: O Autor, 2001. p. 63.<br />

231


outras ocasiões a coletora se coloca quase sorrateiramente no ambiente, como se<br />

quisesse passar <strong>de</strong>sapercebida, <strong>na</strong> praia a integração parece ser mais escancarada.<br />

Voltan<strong>do</strong> ao tema da cor, esta é completamente diferente <strong>na</strong> Coleta <strong>do</strong> Orvalho.<br />

Des<strong>de</strong> os cabelos <strong>de</strong> <strong>Brígida</strong>, que estão vermelhos, até o ver<strong>de</strong> exuberante da<br />

vegetação e o branco luminoso <strong>de</strong> seu vesti<strong>do</strong> e botas, aqui as cores estão vívidas e<br />

contrastantes, mesmo que as ce<strong>na</strong>s se passem, como sempre, <strong>na</strong>s primeiras horas da<br />

manhã. A espacialida<strong>de</strong> é toda outra, remete a <strong>uma</strong> outra temperatura, diferente <strong>do</strong> frio<br />

úmi<strong>do</strong> da nebli<strong>na</strong> esbranquiçada e da brisa mor<strong>na</strong> <strong>do</strong> sol <strong>na</strong>scen<strong>do</strong> <strong>na</strong> praia. Na coleta<br />

<strong>do</strong> orvalho a ce<strong>na</strong> parece tão palpável que parece ter si<strong>do</strong> manipulada por computa<strong>do</strong>r.<br />

E aqui o gesto é mais próximo, <strong>Brígida</strong> <strong>de</strong>ita-se sobre a grama, acaricia as plantas e<br />

parece beber o orvalho com auxílio <strong>de</strong> um estranho instrumento <strong>de</strong> vidro transparente.<br />

De fato, a artista confeccionou vários coletores especiais para as ações <strong>do</strong><br />

orvalho. Alguns são máscaras <strong>de</strong> vidro, outros são receptores, to<strong>do</strong>s para serem<br />

usa<strong>do</strong>s no rosto, sobre boca e/ou <strong>na</strong>riz. Enquanto <strong>na</strong>s outras ações o material <strong>de</strong>veria<br />

ser colhi<strong>do</strong> em recipientes, aqui o receptor fi<strong>na</strong>l é o próprio corpo, que entra em<br />

comunhão com o mun<strong>do</strong> vegetal através da ingestão das gotas <strong>de</strong> água <strong>de</strong>positadas<br />

sobre as plantas. Nos materiais relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s à Coleta <strong>do</strong> Orvalho, há varia<strong>do</strong>s objetos<br />

coletores e fotos <strong>de</strong> pessoas usan<strong>do</strong>-os. Assim como em Casa <strong>de</strong> Abelha, os insetos-<br />

gente são evoca<strong>do</strong>s, vêem-se palavras como insetos, microseres, plantas, além <strong>do</strong> ato<br />

<strong>de</strong> <strong>Brígida</strong> <strong>de</strong>itar-se no chão, o que a coloca <strong>na</strong> perspectiva visual das formigas.<br />

A questão <strong>do</strong> colecionismo, em todas estas ações, refere-se a <strong>uma</strong> dimensão<br />

temporal, trata-se da retenção <strong>de</strong> um momento da<strong>do</strong>, em um espaço da<strong>do</strong>, que ficarão<br />

simbolicamente armaze<strong>na</strong><strong>do</strong>s não só <strong>na</strong> memória <strong>do</strong>s participantes, como <strong>de</strong>ixarão<br />

resquícios simbólicos nos recipientes emprega<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s coletas, ainda que estes sejam<br />

utiliza<strong>do</strong>s novamente em ações posteriores.<br />

que escreve:<br />

Uma outra interpretação temporal vem <strong>de</strong> Moacir <strong>do</strong>s Anjos, diretor <strong>do</strong> MAMAN, 5<br />

As coletas <strong>de</strong> umida<strong>de</strong> se inscrevem, a<strong>de</strong>mais, em temporalida<strong>de</strong>s poéticas distintas.<br />

A coleta da nebli<strong>na</strong> – feita em meio à névoa cerrada – parece ocorrer num tempo suspenso e<br />

imóvel. A coleta <strong>do</strong> orvalho, por sua vez, sugere – pelas roupas que veste a artista e pelos<br />

estranhos objetos coletores que usa – ter si<strong>do</strong> realizada num instante por vir ainda. A coleta da<br />

maresia, por fim, evoca sutilmente o passa<strong>do</strong>: não somente as roupas das coletoras lembram<br />

trajes <strong>de</strong> banho que estiveram em voga faz várias décadas, mas também a tênue luz azulada<br />

<strong>de</strong> fotografias e filme – reflexos <strong>do</strong> oceano e <strong>do</strong> céu aberto que o encobre – funcio<strong>na</strong> quase<br />

como um filtro nostálgico. 6<br />

5 Museu <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong> Aloísio Magalhães, Recife.<br />

6 ANJOS, Moacir <strong>do</strong>s. <strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong> – A coleta da Maresia. Recife: MAMAN, 2003.<br />

232


Um <strong>de</strong> seus trabalhos mais recentes é Maria Farinha, <strong>de</strong> 2004, filma<strong>do</strong> <strong>na</strong> Ilha<br />

Gran<strong>de</strong>, em 16 mm. É a primeira vez que <strong>Brígida</strong> usa <strong>uma</strong> atriz profissio<strong>na</strong>l. Como a<br />

artista gosta <strong>de</strong> ressaltar, trata-se <strong>de</strong> <strong>uma</strong> fábula a respeito <strong>de</strong>ste caranguejo arisco,<br />

conheci<strong>do</strong> em inglês como ghost-crab (caranguejo-fantasma). Lore<strong>na</strong> da Silva, a atriz<br />

que interpreta a perso<strong>na</strong>gem-título, tem fones <strong>de</strong> ouvi<strong>do</strong> em forma <strong>de</strong> conchas, e, ao<br />

mesmo tempo que representa os gestos <strong>do</strong> bicho maria-farinha, que cava, foge e volta<br />

a cavar, mostra diferentes reações a cada som novo que escuta, fazen<strong>do</strong> também sua<br />

coleta <strong>do</strong> intangível. Cada ruí<strong>do</strong> que lhe chega parece causar-lhe <strong>uma</strong> mudança <strong>de</strong><br />

tarefa, <strong>de</strong> direção, <strong>de</strong> preocupação. O filme é feito em loop, mas cada ce<strong>na</strong> fi<strong>na</strong>l é<br />

diferente. Como se o processo fosse sempre o mesmo, mas cada nova experiência<br />

gerasse resulta<strong>do</strong>s diferentes.<br />

O colecionismo emprega<strong>do</strong> por <strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong> não se insere em <strong>uma</strong><br />

comunicação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, nem <strong>de</strong> posse e muito menos <strong>de</strong> fetiche. O que a artista<br />

suscita, em tempos progressivamente acelera<strong>do</strong>s e virtuais, é um olhar atento e <strong>de</strong>ti<strong>do</strong><br />

sobre as coisas que nos circundam. Olhar este que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>spi<strong>do</strong> <strong>de</strong> expectativas,<br />

prestan<strong>do</strong>-se, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, à pura e simples experimentação da vida.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ANJOS, Moacir <strong>do</strong>s. <strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong> – A coleta da Maresia. Recife: MAMAN, 2003.<br />

BALTAR, <strong>Brígida</strong>. Nebli<strong>na</strong> orvalho e maresia coletas – <strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: O Autor,<br />

2001.<br />

DUARTE, Luisa. <strong>Brígida</strong> <strong>Baltar</strong> – Casa <strong>de</strong> Abeja. Bogotá: Galería <strong>de</strong>l Instituto <strong>de</strong> Cultura Brasil<br />

Colombia, 2003.<br />

SONTAG, Susan. O amante <strong>do</strong> vulcão. 3. reimpr. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.<br />

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