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transformou em algo entre museu e galeria de arte<br />
(sim, ele possui ainda muitos quadros de pintores famosos<br />
de Pernambuco, a exemplo de João Câmara,<br />
Bajado e José Cláudio). Lá, funciona o Memorial da<br />
Cultura Popular. Dos 30 mil itens, há 15 mil cópias de<br />
fotografias. A maioria clicada por Liêdo: “Fui fazendo<br />
<strong>ao</strong>s poucos quando via alguém ou alguma coisa interessante.<br />
Só ando a pé ou de ônibus. Encostei o carro<br />
porque ele individualiza muito as pessoas”.<br />
“A coleção dele é única”, afirma Marcos Galindo Lima,<br />
doutor em história, professor da UFPE, biblioteconomista<br />
e responsável pelo projeto de digitalização do<br />
acervo de Liêdo. Ele lança uma previsão: “Ainda servirá<br />
para muitos estudos sociológicos e antropológicos”.<br />
Oitenta por cento do trabalho de digitalização já foi<br />
concluído, com recursos obtidos na Petrobras. “O que<br />
caracteriza e diferencia a coleção de Liêdo é que ele<br />
faz um registro <strong>das</strong> pessoas. Por isso, o título de ‘escriba<br />
do povo’ é a melhor definição que deram a ele”,<br />
considera Marcos Galindo.<br />
Para Liêdo não faltam adjetivos. “É a maior autoridade <strong>das</strong><br />
ruas do Recife”, já disse o diretor do Centro de Pesquisa<br />
Luso-Brasileira da Universidade de Sorbonne, em Paris,<br />
Raymond Catel. “Liêdo Maranhão é um dos maiores conhecedores<br />
da literatura de cordel do Nordeste”, avaliza<br />
o romancista Ariano Suassuna: “Com uma particularidade:<br />
enquanto todos nós, estudiosos como Diéges<br />
Júnior ou simples curiosos como eu, conhecemos ou<br />
vemos os folhetos como um bando de eruditos de gabinete,<br />
Liêdo vive e convive com todo o seu estranho,<br />
pobre, vaticinante, mágico e duro mundo”.<br />
Assim foi o princípio<br />
A paixão e a coletânea dos folhetos literários populares<br />
tiveram início em 1967, quando ele se embrenhou<br />
pelas estra<strong>das</strong> do Nordeste para conhecer mais o cangaço.<br />
O dentista quis fazer o que considerava ainda<br />
por ser feito no Brasil, no Nordeste, em Pernambuco,<br />
no Recife. A ideia de se misturar com o povo e colecionar<br />
tudo o que era pouco valorizado ou excluído<br />
surgiu numa viagem à Espanha. Na década de 1960,<br />
graduado em odontologia e comunista ligado <strong>ao</strong><br />
Movimento de Cultura Popular, resolveu viajar pela<br />
Europa. Percorreu 11 países em<br />
três anos – de carona. Passou pelo<br />
Palácio de Alhambra, em Granada, e soube<br />
do impulso que o americano Washington<br />
Irving (1783-1859), visionário que escreveu a novela<br />
Cuentos de la Alhambra, em 1829, após uma<br />
imersão na região, havia dado para ajudar a transformar<br />
o palácio numa atração turística. “Quando você<br />
volta, fica mais brasileiro. Vi que estava tudo por fazer”,<br />
conta. Mãos à obra. “Quando cheguei à praça do<br />
Mercado São José, vi meu Palácio de Alhambra”.<br />
A partir daí, vieram as visitas rotineiras à região do mercado,<br />
os diários, o garimpo de relatos, a observação<br />
dos hábitos e a coleta de objetos: da caixa de fósforos<br />
coberta por crochê cor-de-rosa <strong>ao</strong> pedaço de ferro<br />
contorcido. Porque até ferro-velho, colhido no centro<br />
do Recife, ele resolveu colecionar. “Para preservar a<br />
<strong>memória</strong> arquitetônica”, argumenta. “Visitava tudo que<br />
era ferro-velho. Gostava muito do de seu João, na Rua<br />
<strong>das</strong> Águas Verdes. Depois ele inflacionou porque um<br />
dia levei um catálogo de um prêmio que ganhei. Seu<br />
João, sabido que só, soltou esta”, conta Liêdo com sorriso<br />
no rosto: “Perguntei a ele quanto custava tal peça.<br />
Ele olhou para mim e disse: ‘Na mão do senhor, sei não.<br />
Não quero nem dar preço’ ”. Liêdo conta e, logo em<br />
seguida, ri de si mesmo. Ou dos outros. Ou dos dois.<br />
Cada peça de ferro-velho, quadro afixado na parede,<br />
fotografia, postal, xilogravura, revista ou folheto de<br />
Liêdo Maranhão tem uma história para contar. E ele é<br />
bom quando as conta porque parece se divertir antes<br />
mesmo de terminar. Há um monte de relatos dos amigos<br />
da Praça do Sebo, onde se vendem livros usados,<br />
que ajudou a fundar no centro do Recife, em 1981. Os<br />
amigos selecionavam as preciosidades. “Uma vez fui à<br />
praça e um vendedor chamado Jaime disse pra mim:<br />
‘Doutor, hoje não tem nada do gênero’. Olhei para ele,<br />
ri porque falar ‘nada do gênero’ é muito bom, mas insisti<br />
em procurar. Aí achei um livro que me interessei.<br />
Ele, então, percebeu e se adiantou: ‘Esse daí guardei<br />
para o senhor’ ”, relata Liêdo. “Não é uma beleza?”<br />
Conversar com Liêdo é se perder nas histórias, viajar<br />
nas expressões e conhecer um mundo que correu e<br />
corre fora <strong>das</strong> janelas dos automóveis e mal se ouve.<br />
Cordéis que integram a coleção<br />
História digitalizada<br />
Cerca de 25 mil itens da coleção de Maranhão<br />
já podem ser consultados na internet.<br />
As expressões e o pensamento de João Antônio<br />
de Barros – o J. Barros, poeta popular e primeiro<br />
entrevistado da coleção dos diários memorialistas<br />
de Liêdo Maranhão, em 10 de julho de 1971 –, da<br />
prostituta Maria Branquinha e do ambulante apelidado<br />
de Fazendeiro, e tudo o que foi guardado<br />
pelo pernambucano durante 40 anos farão parte<br />
do futuro. Internautas já podem consultar parte<br />
do acervo e terão oportunidade de vê-lo quase<br />
por completo em alguns cliques, ainda neste ano.<br />
Os 30 mil itens do acervo de Liêdo Maranhão, para<br />
o qual não é necessário direito autoral, têm sido<br />
digitalizados pelo projeto Memorial da Cultura<br />
Popular, coordenado pelo biblioteconomista e<br />
doutor em história Marcos Galindo Lima.<br />
Galindo e equipe passaram dois anos, 2008 e 2009,<br />
debruçados sobre a recuperação, o tratamento e a<br />
organização da coleção. Estima-se que uma média<br />
de 80% do material já foi digitalizado – algo em<br />
torno de 25 mil itens. Parte do acervo já está disponível<br />
no site do projeto (memorialpopular.org).<br />
Galindo adotou um padrão internacional de catalogação,<br />
moderno e refinado, para tornar as consultas<br />
ágeis. Responsável pelo Laboratório de Tecnologia<br />
do Conhecimento do Departamento de Ciência<br />
da Informação da UFPE, o Liber, revela que foi o<br />
próprio Liêdo quem se movimentou para tornar<br />
público e preservar o que guardou por quatro déca<strong>das</strong>.<br />
O professor espera para os próximos meses<br />
o anúncio de um novo patrocínio da Petrobras para<br />
a conclusão do projeto de digitalização.<br />
Galindo viu relíquias no acervo de Liêdo que lhe<br />
impressionaram. “As fotografias, em particular,<br />
merecem um estudo específico.” Outra menção<br />
foi para o material relativo às prostitutas dos anos<br />
1920. Um dos livros de Liêdo, no prelo, foi baseado<br />
em material reunido e trata da prostituição na<br />
área portuária do Recife. Se um dia você encontrar<br />
o colecionador, pode dar o mote da conversa.<br />
Ele adora falar de sexo e de tudo o que diga<br />
respeito <strong>ao</strong> assunto. Qualquer semelhança com o<br />
gosto popular não é mera coincidência.<br />
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