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O “dentista e desdentado” Liêdo Maranhão<br />
O memorialista do povão<br />
Liêdo Maranhão: um dentista desdentado que, <strong>ao</strong> longo de 40 anos, reuniu<br />
uma coleção de mais de 30 mil peças e histórias do povo.<br />
Por Silvia Bessa | Fotos Ricardo Labastier<br />
perfil<br />
Tem dezenas de missais em brochura austeros; réplicas de livros de catequese com sacanagens. Recordatórios<br />
de mais de mil pessoas mortas, centenas de cartões-postais, um sem-número de cordéis, assim como uma<br />
máquina enorme de madeira rústica e pesada para fabricar os tais folhetos. Edições do almanaque publicitário<br />
Biotônico Fontoura, da década de 1940, com a deliciosa narrativa do caboclo Jeca Tatuzinho, inspirado em<br />
personagem criado por Monteiro Lobato, para prevenir a doença do amarelão. Tem. “Se você reunir todos os<br />
best-sellers do Brasil, para mim, não dá um exemplar desse”, diz o proprietário do relicário, Liêdo Maranhão<br />
– dentista por formação; colecionador de objetos, expressões e costumes populares por devoção. “É uma<br />
beleza...”, admira o senhor de 85 anos. Parece saborear o patrimônio enquanto repete a frase preferida, seguida<br />
por uma sonora risada que mostra a boca banguela.<br />
“Sou dentista e desdentado. É meu marketing”, explica Liêdo, o memorialista do povão. A imagem do doutor<br />
banguela ficou mais próxima daqueles que, <strong>ao</strong> longo de 40 anos, lhe ensinaram e estimularam a preservar<br />
nas estantes e nas paredes as lembranças do tempo e de quem nele esteve. Sua coleção acumula 30 mil<br />
itens, com personalidade e passado notáveis.<br />
Amostras da Revista do Rádio<br />
dos anos 1950, com Emilinha Borba<br />
e Nelson Gonçalves formosos como nunca,<br />
ele também tem. Calendários da folhinha<br />
dos idos de 1967, panfletos com a programação<br />
do extinto cinema Art Palácio, no Recife (PE), fotografias<br />
do galã Tyrone Power tem. “Esse rapaz era o<br />
‘ai, Jesus’ <strong>das</strong> mulheres. Eu levava a namorada para<br />
o cinema e tinha de ir uma acompanhante. Chegava<br />
lá, a moça ficava com ‘ai, Jesus’ por Tyrone. Não levei<br />
mais.” E livros de receitas afrodisíacas para melhorar a<br />
potência masculina e fórmulas de remédios fitoterápicos<br />
para dezenas de enfermidades tem também.<br />
De tudo, a mais original: a coleção da história oral do<br />
povo nordestino. Registrada pelo ainda pesquisador,<br />
fotógrafo, escultor e antropólogo formado pela rotina<br />
da persistência, Liêdo Maranhão, em 31 diários. Foram<br />
escritos a próprio punho, com relatos garimpados depois<br />
de praticar a ouvidoria nas ruas durante dez anos.<br />
A história oral do Nordeste só Liêdo tem.<br />
Joe Gould brasileiro<br />
Com essa coletânea de diários, ele concretizou o sonho<br />
que o americano Joe Gould não conseguiu realizar.<br />
Conhecido boêmio de Nova York dos anos 1930 e<br />
1940, foi personagem do livro O Segredo de Joe Gould,<br />
de Joseph Mitchell (Cia. <strong>das</strong> Letras, 2003). Joe passou<br />
a vida tentando colher fragmentos do cotidiano – “a<br />
maior e mais importante história oral da humanidade”,<br />
prometia, orgulhoso.<br />
Liêdo perambulou diariamente pelo bairro de São José,<br />
no Recife, entre os anos 1960 e 1970. Tornou-se amigo<br />
de camelôs, prostitutas, cantadores, ambulantes vendedores<br />
de remédios, de ervas. Prestava atenção nas<br />
frases, decorava-as, corria para um lugar reservado, a<br />
Igreja da Penha, ali pertinho, e as colocava no papel.<br />
Amostras da coleção que conta com mais de 30 mil itens<br />
“Gosto de andar como merda na cheia, sem fazer planos”,<br />
revela. “Fico observando uma coisa, outra, ouvindo<br />
pedaços de conversas e, às vezes, faço entrevistas.<br />
Quando iniciei esse negócio, começou um boato do<br />
povo de que estava ca<strong>das</strong>trando o pessoal para mandar<br />
para as obras da Transamazônica”, lembra o homem de<br />
ouvidos e olhos indiscretos. Liêdo permanece na ativa:<br />
“Há pouco, ouvi alguém dizendo, de gozação, que o<br />
pastor estava comendo a aleluia da irmã. São expressões<br />
que marcam uma época. Não é uma beleza?!”<br />
Como Gould, Liêdo andava (e ainda anda) para cima<br />
e para baixo ouvindo o povo da cidade dele. O pernambucano<br />
escreveu à mão, com caneta, quase 4 mil<br />
linhas. A partir dos “diários de campo” – como ele os<br />
rotula – publicou 13 livros. Tudo o que colheu nas ruas,<br />
de palavras àquilo que seria quinquilharia no parecer<br />
do desinteressado, está no seu acervo. Ele guarda os<br />
diários com outras dezenas de coleções num espaço<br />
bem cuidado nos fundos da sua residência em Bairro<br />
Novo, Olinda, onde mora há 50 anos. O ambiente se<br />
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