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A memória ao alcance das mãos

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consumista do que para colecionadora”, enfatiza. O autor<br />

e professor de história da moda João Braga dá outro<br />

direcionamento à questão <strong>ao</strong> dizer que “com certeza<br />

existe uma diferença entre alguém que compra diversos<br />

pares de sapatos para consumir numa estação e um<br />

colecionador convencional. Mas se essa pessoa guarda<br />

esses sapatos com o intuito de criar uma <strong>memória</strong> já<br />

podemos falar em colecionismo, e caso ela nem os use<br />

temos o colecionismo propriamente dito”, acredita.<br />

Para Adolpho Leirner, que soma <strong>ao</strong> seu acervo diversas<br />

obras de arte de alto valor cultural e agregado, “todo<br />

colecionador reúne, em doses iguais, amor, paixão, descobertas,<br />

procura incessante, critério e racionalidade”.<br />

Colecionar é um prazer individual, uma relação de afetividade<br />

com determinados objetos. Prazer que se amplia<br />

e se renova enormemente cada vez que a coleção<br />

é exposta. “O ato de colecionar está ligado a uma conduta,<br />

a uma postura do universo do luxo, independentemente<br />

da natureza da coleção, pois está relacionado<br />

sempre <strong>ao</strong> desejo e não à necessidade. Ele envolve<br />

também um aspecto de raridade, de escassez, pois o<br />

colecionador sai à caça e costuma gastar um dinheiro<br />

considerável por aquilo que deseja”, completa Braga.<br />

Imagem da exposição Flávio de Carvalho Desveste a Moda<br />

Brasileira da Cabeça <strong>ao</strong>s Pés – MuBE | foto: Thelma Vilas Boas<br />

Para além da coleção<br />

Apesar de sua coleção não se enquadrar como algo<br />

que será fruto de estudos e análises complexas daqui a<br />

alguns anos, a mestra em ecologia e voraz consumidora<br />

de esmaltes Camila Zatz encontrou uma maneira de<br />

expor e tornar seu hobby relevante para outras pessoas:<br />

começou a escrever no blog Loucas por Esmalte.<br />

Com aproximadamente 12 mil acessos únicos por dia,<br />

o blog é escrito por Camila e mais duas colaboradoras,<br />

que testam produtos, mostram novas técnicas, discutem<br />

tendências e, claro, mostram suas coleções. As<br />

novas tecnologias possibilitaram às práticas individuais<br />

uma mudança de caráter e dimensão, tornando-as<br />

muito mais abrangentes. O veículo permitiu às colecionadoras,<br />

que juntas somam mais de 2 mil vidrinhos<br />

coloridos, dividir com o leitor algo, até o momento,<br />

estritamente particular.<br />

Compartilhar suas descobertas lhes possibilitou conhecer<br />

diversas pessoas com os mesmos interesses e<br />

até lhes rendeu consultorias para marcas de cosméticos.<br />

“As empresas percebem que temos credibilidade<br />

como consumidoras e que nossas opiniões são leva<strong>das</strong><br />

em consideração por um grande público. Sendo<br />

assim, elas acabaram criando uma maneira de entrar<br />

em contato direto com seus clientes. Algumas<br />

mandam produtos para avaliarmos, outras nos<br />

convocam para participar de pesquisas internas<br />

ou até mesmo para bate-papos informais<br />

sobre o que gostaríamos de ver<br />

no mercado”, diz Camila.<br />

Capas da publicação francesa L’Officiel – exposição L’Officiel: 90 Anos de História da Moda – Espaço Iguatemi<br />

A blogueira acredita que, apesar<br />

de a moda mudar a cada estação, algumas<br />

pessoas têm essa vontade de colecionar<br />

(ou consumir em larga escala) peças<br />

voláteis e efêmeras, sem valor documental expressivo,<br />

pois “os modismos passam mais rápido<br />

que alguns gostos pessoais”. De fato, a moda é um<br />

poderoso instrumento de inserção humana no contexto<br />

cultural e amplia as possibilidades corpóreas para<br />

além dessas peças, pelo uso de roupas e adornos que<br />

o vento não leva e o tempo não consegue apagar.<br />

Moda de museu<br />

Os museus são o desdobramento lógico <strong>das</strong> coleções<br />

de arte. À medida que crescem, elas passam a exigir<br />

espaços cada vez maiores e tecnicamente adequados<br />

e pessoal especializado, além de recursos humanos<br />

e financeiros que já não podem ser suportados e/ou<br />

administrados por seus proprietários.<br />

As roupas podem exigir mais empenho para a conservação<br />

do que muitas obras de arte – com exceção de algumas<br />

contemporâneas cria<strong>das</strong> com materiais diversos<br />

–, pois tecidos são perecíveis e não costumam resistir<br />

tão bem à ação do tempo. “O segredo do colecionismo<br />

é ter e manter, e ainda não há técnicas adequa<strong>das</strong> para<br />

conservar algumas peças de vestuário. As feitas de elastano,<br />

por exemplo, muito usa<strong>das</strong> nos anos 1980, possuem<br />

borracha na composição. Com o tempo o tecido<br />

endurece e vira pó. Ainda não se sabe <strong>ao</strong> certo como<br />

preservar essas roupas”, observa o professor Braga.<br />

Mesmo inspirando muitos cuidados e dividindo a opinião<br />

de especialistas, que divergem quanto <strong>ao</strong> fato de<br />

a moda poder ou não ser encarada como arte – devido<br />

à sua relação indissociável com o mercado –, esse<br />

tipo de coleção está gradualmente figurando no centro<br />

de alguns museus e galerias, mesmo não havendo<br />

políticas públicas adequa<strong>das</strong> com o compromisso de<br />

preservação da <strong>memória</strong> dos vestíveis.<br />

No mês de novembro de 2010, em São Paulo, três<br />

exposições com focos diferentes, porém complementares,<br />

foram a prova de que a moda está finalmente<br />

sendo entendida como cultura. A intenção comum<br />

era demonstrar por meio de capas de revista (L’Officiel:<br />

90 Anos de História da Moda), vídeos, croquis e figurinos<br />

(individual do estilista Conrado Segreto), fotografias<br />

de Bob Wolfenson, Gui Paganini e Klaus Mitteldorf,<br />

e de estudos pioneiros de Flávio de Carvalho (Flávio de<br />

Carvalho Desveste a Moda Brasileira da Cabeça <strong>ao</strong>s Pés)<br />

o transitório, o efêmero, o contingente capaz de gerar<br />

grandes inovações, impor novas exigências, mudar a<br />

direção do olhar coletivo.<br />

É sempre possível reabrir algumas portas da arte de<br />

um passado recente ou remoto e, feito isso, estabelecer<br />

a continuidade entre o que aparentemente deixou<br />

de ser e o que ainda não é. A moda tem o poder<br />

de desempenhar papel semelhante, mas, “para se legitimar<br />

como cultura, ela precisa quebrar paradigmas,<br />

assumir uma importância, um campo cultural próprio<br />

e estabelecer suas relações com o todo, não apenas<br />

com o mercado”, conclui Priscila Rezende.<br />

58 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 59

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