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Objeto não sacralizado<br />
O poeta paulistano Haroldo de Campos colecionava<br />
livros, bengalas e gibis do personagem Asterix.<br />
Quem conta é a pesquisadora Gênese Andrade,<br />
responsável pelo Centro de Referência Haroldo<br />
de Campos, situado na Casa <strong>das</strong> Rosas – Espaço<br />
Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em São<br />
Paulo: “Haroldo era acima de tudo um leitor. Então<br />
eu diria que era um leitor-colecionador. Ocorre que<br />
não reuniu livros para mantê-los como objetos intocáveis.<br />
Ele adquiria aqueles que lhe interessavam<br />
para suas pesquisas e reflexões. Mesmo livros raros,<br />
primeiras edições e obras artesanais eram<br />
tratados como material de trabalho, e carregavam<br />
suas anotações, demonstrando<br />
ter sido manuseados como os livros<br />
mais corriqueiros”.<br />
A biblioteca e o acervo de Campos residem na mesma<br />
instituição e são coordenados por Rahile Escaleira.<br />
A biblioteca caracteriza-se pela variedade e pelas marcas<br />
de leitura que os documentos trazem. São cerca<br />
de 20 mil volumes – a maioria deles lidos –, compostos<br />
de livros, periódicos, separatas, catálogos e guias,<br />
entre outros, além de coleções completas, caso de<br />
Signos, Debates e Estudos, to<strong>das</strong> da Editora Perspectiva,<br />
da qual o poeta foi colaborador.<br />
Gênese demonstra que o valor de uma coleção extrapola<br />
o simples objeto físico que a constitui: “Há um<br />
sabor especial em consultar os exemplares que pertenceram<br />
a Haroldo, ver o que destacou, como reagiu<br />
perante algumas obras. Suas marcas em papéis encontrados<br />
dentro dessas obras constituem marcas do<br />
tempo e do espaço em que ocorreu a leitura ou em<br />
que a obra foi adquirida”.<br />
Colecionando o abstrato<br />
Quem pensa que colecionar é matéria apenas para<br />
quem lida com o concreto deve se lembrar de que<br />
escritores colecionam palavras, imagens, histórias. É<br />
certo que para guardá-las, muitas vezes, colecionam<br />
cadernos, cadernetas, agen<strong>das</strong>. Mas nem sempre.<br />
Escritores colecionam outros escritores e escrever um<br />
poema ou um romance significa mergulhar de cabeça<br />
numa coleção abstrata feita de referências e escolhas<br />
adquiri<strong>das</strong> <strong>ao</strong> longo de uma vida.<br />
O poeta, ensaísta e editor gaúcho, radicado em São<br />
Paulo, André Dick nunca colecionou objetos no sentido<br />
estrito do termo. Autor dos livros Grafias (Instituto<br />
Estadual do Livro e Corag, 2002) e Papéis de Parede<br />
(7Letras/Funalfa Edições, 2004), ele pondera: “Nunca<br />
cheguei a exatamente colecionar ou fazer listas de<br />
imagens – no entanto, de algum modo, é uma coleção<br />
delas que acaba sustentando qualquer poesia.<br />
Creio que, de algum modo, todos os poemas sejam<br />
fragmentos de um grande poema”.<br />
O método de escrita do poeta, no entanto, revela organização,<br />
seleção e, por que não, persistência de um<br />
franco colecionador: “Costumo escrever em cadernos.<br />
Por meio de diversos fragmentos e rascunhos<br />
acabo concentrando material para selecionar<br />
o que seria interessante para algum escrito.<br />
Desse modo, os poemas ficam um tanto<br />
híbridos: não se sabe onde cada um<br />
começa ou termina”.<br />
Dick aproxima ainda o olhar colecionista do escritor<br />
<strong>ao</strong> do editor: “O escritor procura selecionar uma tradição,<br />
ou seja busca autores que possam lhe transmitir<br />
conhecimento. Com o editor, o caminho é parecido:<br />
escolher um texto consiste justamente em abrir caminhos<br />
de percepção não apenas para si mas para<br />
o leitor, que está interessado em descobrir autores<br />
e escolhas. Assim, o editor pode ser considerado um<br />
colecionador de histórias. E, nesse sentido, ele acaba<br />
sendo um criador”, conclui.<br />
Nossos antepassados certamente nunca imaginariam<br />
que ponto de refinamento a coleta de objetos alcançaria.<br />
No entanto, creio que aquilo que os movia e<br />
aquilo que nos move seja talvez a mesmíssima coisa:<br />
um sentimento de preservação, seja da <strong>memória</strong> <strong>das</strong><br />
coisas e dos lugares, seja de nós mesmos, da nossa<br />
vida, de quem somos e do que apreciamos.<br />
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