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A memória ao alcance das mãos

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elatou ser o de uma sereia era,<br />

na verdade, o rugir de um peixe-boi.<br />

Unicórnios nunca existiram, mas sabe-se<br />

que o dente esquerdo de um macho de baleia<br />

narval cresce em formato de espiral.<br />

A partir do século XVII, nossos olhos começaram a<br />

ver o que corações e mentes resistiram por séculos a<br />

crer. O mundo, quando posto em pequenos pedaços<br />

lado a lado, não é feito de magia. Nosso olhar em relação<br />

<strong>ao</strong> universo não mudou de um dia para o outro,<br />

claro. Tampouco resultou, necessariamente, de um<br />

acréscimo de conhecimentos.<br />

Aprendemos a perceber o mundo por causa de<br />

uma ruptura (que não se deu de repente) entre o<br />

que se vê, o que os outros viam ou contavam (como<br />

Colombo que acreditou ter visto uma sereia <strong>ao</strong> cruzar<br />

o Atlântico) e aquilo que se podia imaginar. Cada vez<br />

mais, os relatos sobre as coisas da natureza passaram<br />

a se aproximar do sentido da visão. As coleções de ciência,<br />

com seus milhares de seres postos lado a lado,<br />

contribuíram enormemente para isso.<br />

Notícias de além-mar<br />

Esse percurso esteve vinculado <strong>ao</strong>s debates que aconteciam<br />

dentro da própria história natural, mas contava<br />

ainda com um fato importante: o mundo já não era o<br />

mesmo, ganhara novos contornos e dimensões.<br />

E era do outro lado do mar que chegava uma quantidade<br />

razoável de coisas e de notícias. Elas vinham<br />

<strong>das</strong> terras recém-alcança<strong>das</strong> pelos navegadores europeus.<br />

Terras que, <strong>ao</strong>s olhos dos forasteiros, se derramavam<br />

em flora exuberante, povo gentil e fauna diversa.<br />

Entender o mundo novo e o que de bom ele podia<br />

trazer em medicamentos, alimentos, ouro e prata se<br />

tornou tarefa imprescindível.<br />

Bichos e plantas passaram a fazer parte do acervo de<br />

colecionadores ricos, fascinados pelas novidades. Nos<br />

textos dos primeiros cronistas que escreveram sobre<br />

o Brasil, por exemplo, é comum a menção do envio de<br />

um ou outro exemplar de bichinho, pena ou planta <strong>ao</strong><br />

Velho Mundo. Jean de Léry, missionário francês que<br />

aqui permaneceu entre 1556 e 1558, menciona um<br />

sagui, em seu escrito intitulado Viagem à Terra do Brasil<br />

(Edusp, 1972), como “algum desses animaizinhos” que<br />

já se veem na Europa.<br />

Por outro lado, naturalistas tentaram pôr ordem no<br />

que viam e pegavam nas <strong>mãos</strong>. Caixas e mais caixas<br />

desembarcavam na Europa para que seu conteúdo se<br />

tornasse objeto de estudo. Nesse período surgiu, por<br />

assim dizer, o “viajante de gabinete”, aquele que conheceu<br />

terras e mares apenas colecionando os relatos<br />

e os objetos que chegavam <strong>das</strong> expedições e, a partir<br />

deles, formulou teorias de ciência.<br />

É nessa confusão de<br />

quereres, entre moda e ciência, que se<br />

vê surgir, no século XVII, o verbete “Cabinet<br />

d´Histoire Naturelle”, escrito por Diderot em sua<br />

Enciclopédie – um dos documentos mais representativos<br />

do pensamento no período. “O que significa<br />

uma coleção de seres naturais sem o mérito da<br />

ordem? A esses naturalistas que não têm gosto nem<br />

gênio, eu vos direi, devolveis to<strong>das</strong> as suas conchas <strong>ao</strong><br />

mar, restituais à terra suas plantas e sementes [...]. Um<br />

gabinete de história natural foi feito para instruir; [...] devemos<br />

encontrar detalhadamente e em ordem aquilo<br />

que o universo apresenta em bloco”, defendeu Diderot.<br />

Agora, sim, a natureza podia ser confinada pelo homem,<br />

e então se tornava possível observá-la sistematicamente.<br />

“E, na riqueza um pouco confusa da<br />

representação, [o mundo] pode ser analisado, reconhecido<br />

por todos e receber, assim, um nome que<br />

cada qual poderá entender”, escreveu Michel Foucault<br />

em seu livro As Palavras e as Coisas (Martins Fontes,<br />

2000) sobre a criação de Lineu, a taxonomia, ciência<br />

que descreve, identifica e classifica os organismos.<br />

Testemunho sobre o passado<br />

Hoje, uma coleção de ciência é mais do que uma<br />

tentativa de pôr em ordem e entender aquilo que<br />

pertence <strong>ao</strong> c<strong>ao</strong>s. Ela pode representar também um<br />

testemunho sobre o passado <strong>ao</strong> guardar espécies de<br />

animais e plantas que não existem mais e <strong>ao</strong> preservar<br />

artefatos de etnias e civilizações que estão desaparecendo<br />

ou já se extinguiram.<br />

Os índios caiapós, por exemplo, recorreram <strong>ao</strong> Museu<br />

Emílio Goeldi em busca de seus antigos artefatos que<br />

não são mais produzidos. O objetivo era recuperar as<br />

feições daquilo que, <strong>ao</strong> longo dos anos, ficou perdido.<br />

Becker viajou boa parte do Brasil em busca de borboletas<br />

e mariposas. Ao fazê-lo, pôde testemunhar a<br />

redução, de mais a mais, de nossas matas. “De pouco<br />

adianta guardar amostras de animais e plantas, empalhados<br />

ou secos, se nada for feito para preservá-los, vivos,<br />

na natureza”, observa. Foi assim que, em 1998, ele<br />

e sua esposa, Clemira, resolveram iniciar sua mais nova<br />

coleção: um trecho de Mata Atlântica, com mais de mil<br />

hectares de área, localizado <strong>ao</strong> sul da Bahia. Comprado<br />

com to<strong>das</strong> as economias do casal, o local constitui<br />

uma Reserva Particular do Patrimônio Natural.<br />

É lá que vivem hoje: um lugar que recebeu o nome de<br />

Instituto Uiraçu. As portas estão abertas para receber<br />

pesquisadores, que podem contar com o apoio de seis<br />

laboratórios de estudos, uma biblioteca e uma incrível<br />

coleção de mariposas e borboletas. Ela está disponível<br />

para quem desejar entender o mundo – organizado<br />

em gavetas e caixinhas nada secretas, mas também<br />

livres na mata <strong>ao</strong> redor.<br />

38 Participe com suas ideias 39

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