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A memória ao alcance das mãos

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Dona Neuza conta suas histórias <strong>ao</strong> museu há 13 anos<br />

O que lembro tenho<br />

“Mais lembranças tenho eu do que todos os homens<br />

tiveram desde que o mundo é mundo.” Assim se define<br />

Irineo Funes, personagem do conto “Funes, o<br />

Memorioso”, de Jorge Luis Borges, que narra a agonia<br />

de um homem que se lembra de absolutamente tudo.<br />

Se o esquecimento é uma defesa para que não enlouqueçamos<br />

com nossas próprias <strong>memória</strong>s, não é por<br />

esse receio que dona Neuza, depoente do museu há<br />

mais de dez anos, deixa de relembrar suas histórias.<br />

Neuza Guerreiro de Carvalho – “Neuza-com-zê-guerreiro-de-carvalho.<br />

Gosto que escrevam completinho.<br />

Meu nome é minha identidade” – tem 80 anos e conta<br />

coisas de sua vida <strong>ao</strong> museu desde 1997. Ela começou<br />

por causa de um presente de família: um diário do avô<br />

de seu marido, datado de 1872, fez surgir a vontade<br />

de escrever a história da família. “Fui escrevendo, escrevendo,<br />

mas nunca me preocupei com o que aquilo<br />

iria virar. Para mim, era só um registro que queria deixar<br />

para os meus filhos.”<br />

De 1997 pra cá, dona Neuza acumulou mais de 15 pastas<br />

– “dessas grossonas, sabe?”, ela faz questão de frisar<br />

– só sobre sua vida, sem contar a dos parentes todos,<br />

entre avós, ir<strong>mãos</strong>, primos e agregados: registros de<br />

uma vida inteira passada a limpo. No Museu da Pessoa,<br />

ela tem dezenas de textos transcritos, fotos, documentos<br />

e um vídeo unitário sobre sua vida com duração de<br />

quatro horas. Além de banco de dados da família, esse<br />

material se transformou em documento de pesquisa<br />

histórica: “Acabei me tornando um repositório de registros.<br />

Por eles, dá para perceber quanto evoluiu ou involuiu<br />

a sociedade”. Ela conta com os olhos brilhando<br />

de satisfação que os netos, quando arrumam nova<br />

namorada, vão fuçar as pastas para impressionar<br />

a garota. “Sinto que eles têm orgulho.” O sentimento<br />

é perfeitamente justificável, afinal,<br />

quantas coisas durarão para além do<br />

nosso esquecimento?<br />

Dona Neuza afirma que não é saudosista – “As pessoas<br />

dizem que antes era melhor. Era nada!” – e quando<br />

questionada sobre o porquê de todo esse resgate ela<br />

responde: “A identidade da gente fica reparada. É uma<br />

maneira de eu me sentir enraizada”. E quando sugiro<br />

que utilize as plataformas digitais para armazenar suas<br />

histórias e livrar as tais 15 pastas do peso de uma vida<br />

inteira ela é incisiva: “Prefiro manusear”.<br />

Pode ser por necessidade, vontade, orgulho e – por<br />

que não? – um pouquinho de medo que o homem<br />

tenha criado diferentes maneiras de guardar suas<br />

lembranças. Não importa se representa<strong>das</strong> por tampinhas<br />

de garrafa amontoa<strong>das</strong> numa caixa de sapatos<br />

ou por uma imensa indumentária de guerra preservada<br />

em um museu, o homem é feito de tudo aquilo<br />

que tem para lembrar.<br />

Seja como for, o desejo de reter partes significativas<br />

de um período histórico ou contexto social, <strong>ao</strong> menos<br />

entre as paredes do Museu da Pessoa, continuará<br />

resguardado nas sagas dos Josés, <strong>das</strong> Marias e dos<br />

Raimundos de um Brasil que acontece todos os dias.<br />

Não é por acaso que Riobaldo Tartarana, personagem<br />

de Guimarães Rosa, atordoado com a urgência<br />

de possuir sua própria história, diz, em um trecho de<br />

Grande Sertão: Vere<strong>das</strong>: “O que lembro, tenho”. Essa frase<br />

deixa escapar a ideia de que lembrança guardada<br />

é posse e, além disso, não é melancolia de um passado<br />

encerrado, mas uma <strong>memória</strong> contínua, uma<br />

vida que se recobra na lembrança e, por isso mesmo,<br />

é viva. Cada fato que compõe a história é um mundo<br />

que revela outros mundos. Esse é o movimento que<br />

faz o universo girar. Como diria dona Neuza, “a história<br />

é uma coisa progressiva; enquanto eu não morrer, ela<br />

vai continuar a ser escrita”.<br />

Renata Penzani, 22 anos, é estudante do 3º ano do<br />

curso de jornalismo da Universidade Estadual Paulista<br />

(Unesp), em Bauru. Mantém o blog Furtacores em<br />

furtacores.tumblr.com.<br />

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