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O caráter narrativo da coleção – e suas inúmeras possibilidades<br />
de “roteiro” – atiça colecionadores e curadores.<br />
A razão se faz como discurso<br />
No ensaio “Epistemologias Históricas do Colecionismo”<br />
(publicado na revista Episteme, em 2005), o historiador<br />
gaúcho Francisco Marshall, da UFRGS, analisa<br />
a semântica da palavra coleção: “Colecionar, do latim<br />
collectio, possui em seu núcleo semântico a raiz leg, de<br />
alta relevância em todos os falares indo-europeus [...].<br />
No grego clássico, em seu grau ‘o’, produz o morfema<br />
log, avizinhado, em seu grau ‘e’, de leg, ambos repletos<br />
de derivados. Nesta família linguística, aparece o núcleo<br />
semântico e significativo do colecionismo: uma<br />
relação entre pôr em ordem – raciocinar – (logeín) e<br />
discursar (legeín), onde o sentido de falar é derivado<br />
do de coletar: a razão se faz como discurso”.<br />
É esse caráter narrativo da coleção – e suas inúmeras<br />
possibilidades de “roteiro” – que atiça colecionadores<br />
e curadores. Segundo Brandão, o dado encantador<br />
de uma coleção é a possibilidade de criar recortes,<br />
ordenar as peças de modo a construir as tais narrativas.<br />
“Quando minha coleção estava em casa, um dos<br />
meus prazeres era fazer curadorias para mim, para os<br />
amigos e para os alunos”, diz.<br />
Livros, selos, brinquedos, caixas<br />
de fósforos, revistas, cartões-postais,<br />
fotografias, mapas, roupas, discos, embalagens<br />
de produtos industrializados, cartazes<br />
– toda coleção, quando representativa e bem organizada,<br />
pode conter essa mesma força prosódica.<br />
Para tomar um exemplo, não foi a partir dos arquivos<br />
<strong>das</strong> gravadoras brasileiras que o músico Charles<br />
Gavin organizou um dos mais belos compêndios sobre<br />
a arte gráfica brasileira dos anos 1960. A fonte para<br />
a feitura do livro Bossa Nova e Outras Bossas – A Arte e<br />
o Design <strong>das</strong> Capas dos LPs (editado em 2008 pela organização<br />
não governamental Viva Rio) foi a coleção<br />
do carioca Caetano Rodrigues (falecido em 2010), que<br />
garimpou to<strong>das</strong> as gravações da bossa desde os tempos<br />
em que frequentava o Beco <strong>das</strong> Garrafas, reduto<br />
dos músicos de samba-jazz, até o advento do CD.<br />
A internet abre novos caminhos e perspectivas para<br />
o público interessado em “ler” as histórias conta<strong>das</strong><br />
pelas coleções – o áudio de diversos álbuns de<br />
Rodrigues, sobretudo os mais raros e alguns jamais<br />
reeditados, foi disponibilizado pelo blogueiro Loronix<br />
em seu site (loronix.blogspot.com). E, embora o ato<br />
de admirar uma obra de arte ou um objeto sempre se<br />
faça de maneira mais satisfatória <strong>ao</strong> vivo, hoje é possível<br />
percorrer o acervo de grandes instituições ou de<br />
particulares que já digitalizaram sua coleção.<br />
O trânsito tem mão dupla: a instituição também se<br />
beneficia da ampla exposição cibernética. É o caso<br />
do Masp, que tem seu acervo digitalizado e de acesso<br />
bem simplificado em seu site oficial. “O museu não<br />
só divulga como recebe muita informação relevante<br />
por meio da internet. Pesquisadores estrangeiros que<br />
consultam nosso acervo eletronicamente nos fornecem<br />
dados sobre peças da coleção, o que amplia o<br />
conhecimento da própria instituição sobre determina<strong>das</strong><br />
obras”, diz Eunice Sophia, coordenadora do<br />
acervo que reúne a mais importante coleção de arte<br />
europeia do Hemisfério Sul, criada pelo empresário<br />
Assis Chateubriand e seu colaborador Pietro Maria<br />
Bardi na década de 1940.<br />
Segundo Eunice, o que diferencia a simples coleção<br />
particular de um acervo é sua catalogação, seu registro.<br />
A coleção é meramente a reunião de objetos que se<br />
assemelham por categoria, formato, período histórico<br />
ou temática. O acervo é a coleção institucionalizada,<br />
por assim dizer, e não raro tombada pelo patrimônio<br />
histórico, caso do acervo do Masp (que contém pintura,<br />
escultura, desenho, gravura, fotografia, vestuário,<br />
mobiliário, tapeçaria, objetos, instrumentos<br />
musicais, design, cerâmicas). “Todo acervo é<br />
uma coleção, mas nem toda coleção é<br />
um acervo”, esclarece.<br />
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