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A memória ao alcance das mãos

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Colecionar é contar histórias<br />

reportagem<br />

Colecionadores constroem possibilidades de convivência com a arte e narrativas<br />

sobre a história do mundo.<br />

Por Sergio Crusco | Ilustração Marcelo Rampazzo<br />

No começo dos anos 1980, o então fotógrafo Eduardo Brandão ouviu de uma marchande estrangeira que o<br />

principal problema da arte contemporânea brasileira era a carência de registro e de catalogação. Munido de<br />

câmera, rolos de filme e equipamento de iluminação, Brandão decidiu desbravar esse território pouco explorado.<br />

Propôs a artistas plásticos amigos fotografar sua produção recente e, por falta de verba (antes da fotografia<br />

digital, os processos de revelação e ampliação tornavam tudo mais custoso), receber em troca obras de arte. “A<br />

preocupação dos artistas, na época, era vender uma obra e pagar o aluguel. Portanto, minha coleção começou<br />

na base do escambo”, lembra ele, hoje curador e galerista, proprietário da Galeria Vermelho, em São Paulo.<br />

Nascia, descompromissadamente, uma <strong>das</strong> mais importantes coletâneas particulares de arte abrangendo a produção<br />

nacional dos anos 1980 e 1990 – trabalhos de Leonilson, Beatriz Milhazes, Leda Catunda, Geraldo de<br />

Barros, Tunga, Sandra Cinto, Lenora de Barros, Luiz Zerbini, Edgard de Souza e tantos outros. Brandão se deu conta<br />

de que o que cobria as paredes de sua casa havia tomado um vulto mais expressivo do que imaginaria nos idos<br />

em que trocava telas e esculturas por cliques, e se viu diante da necessidade de catalogar as peças e conservá-las.<br />

Mais do que uma coleção, as cerca de 300 obras que arrebanhara <strong>ao</strong> longo dos anos formavam um acervo.<br />

Provido de um saudável desprendimento, Brandão possibilitou o acesso do público a esse acervo cedendo,<br />

em regime de comodato, boa parte <strong>das</strong> aquisições <strong>ao</strong> MAM/SP. As novas peças ajudaram o museu a<br />

enriquecer a coleção à medida que dialogavam com obras dos mesmos artistas existentes no acervo. O<br />

galerista, que nos seus tempos de professor de fotografia na Faap, São Paulo, já possibilitava o acesso dos<br />

alunos à sua coleção, diz ter tomado uma decisão coerente com a maneira pela qual entende e vive a arte.<br />

“Colecionar não é apenas acumular objetos, mas construir um lugar onde a convivência com a arte seja<br />

importante e poderosa, e é essa relação que prezo.”<br />

Há outros exemplos fundamentais<br />

de coleções particulares que ganharam<br />

vida pública na América do Sul.<br />

Uma delas é a de Gilberto Chateaubriand, proprietário<br />

de cerca de 7 mil obras representativas<br />

da arte brasileira do início do século XX até o novo<br />

milênio – e que igualmente foi cedida em comodato<br />

<strong>ao</strong> MAM/RJ, onde ganhou espaço exclusivo. Na<br />

Argentina, a coleção de Eduardo Costantini originou<br />

o Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires<br />

(Malba) – onde residem Autorretrato com Macaco<br />

e Papagaio, de Frida Kahlo, e Abaporu, de Tarsila do<br />

Amaral, duas <strong>das</strong> obras latino-americanas mais valiosas,<br />

arremata<strong>das</strong> pelo empresário em leilões.<br />

sejo de ser cremado com o Van Gogh e o Renoir tão<br />

estimados. A declaração, que colocou o mundo da<br />

arte de cabelos em pé, foi explicada mais tarde pelo<br />

próprio magnata nipônico como piada, brincadeirinha<br />

– e, obviamente, as telas não viraram cinza. Até<br />

hoje, porém, é desconhecido o paradeiro <strong>das</strong> duas<br />

obras. Há apenas especulações sobre quem as teria<br />

arrematado após sua morte.<br />

A notícia, que soaria anedótica não fosse assustadora,<br />

ilustra a atitude egoísta de certos colecionadores:<br />

amealhar, reter, ocultar – traço de personalidade<br />

envelopado pela psicologia na categoria dos transtornos<br />

compulsivos. Ora, uma coleção deve con-<br />

O empresário japonês Ryoei Saito, comprador, na década<br />

de 1990, de duas telas que ainda hoje figuram na lista <strong>das</strong><br />

dez mais caras do mundo, chocou a sociedade <strong>ao</strong> expressar<br />

o fúnebre desejo de ser cremado com as obras.<br />

Nem todo colecionador, no entanto, tem o prazer,<br />

exercitado por Brandão, Chateaubriand e Costantini,<br />

de compartilhar. É notório o caso do empresário japonês<br />

Ryoei Saito, comprador de duas telas que ainda<br />

hoje figuram na lista <strong>das</strong> dez mais caras do mundo:<br />

Retrato do Dr. Gachet, de Van Gogh, e Bal du Moulin<br />

de la Galette, de Renoir – arrematados em 1990 por<br />

82,5 milhões de dólares e 78,1 milhões de dólares,<br />

respectivamente. Saito, que morreria seis anos mais<br />

tarde, chocou a sociedade <strong>ao</strong> expressar o fúnebre de-<br />

tar uma, ou melhor, diversas histórias – como a de<br />

Chateaubriand, que narra a evolução da arte brasileira<br />

nos últimos cem anos, e a do Museu do Vaticano,<br />

que relata a da própria igreja católica. No Museu do<br />

Louvre, um dos fios que podemos perseguir é o da<br />

expansão do império napoleônico por meio <strong>das</strong><br />

apropriações feitas pelo conquistador sobre o espólio<br />

dos povos subjugados. Estão lá a Vênus de Milo e a<br />

Vitória de Samotrácia como testamento desse poder.<br />

A sete chaves, essa história nunca seria lida.<br />

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