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Nesta edição, a Continuum adentra o<br />
universo dos colecionadores.<br />
REVISTA<br />
Em entrevista, Tadeu Chiarelli<br />
conta os planos para a<br />
nova sede do MAC/USP no<br />
Ibirapuera, São Paulo.<br />
ITAÚ CULTURAL 29<br />
A <strong>memória</strong><br />
<strong>ao</strong> <strong>alcance</strong><br />
<strong>das</strong> <strong>mãos</strong><br />
E mais:<br />
Conheça o colecionador de histórias Liêdo Maranhão,<br />
o Joe Gould brasileiro.<br />
Na fotorreportagem, objetos que perderam sua utilidade<br />
formam coleção relegada <strong>ao</strong> sótão <strong>das</strong> casas.<br />
O trabalho de museus para guardar e exibir coleções.<br />
itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias
A arte de unir os iguais<br />
A primeira Continuum de 2011 traz <strong>ao</strong> leitor o universo dos colecionadores, pessoas que, por hobby, paixão,<br />
obsessão, interesse pessoal ou coletivo, se dedicam a acumular objetos, sejam eles artísticos ou não. As histórias<br />
que envolvem a conquista de cada item – sim, porque em muitos casos a aquisição de uma peça se parece<br />
com uma batalha a ser vencida –, as diferentes modalidades de coleção – de ciências, palavras, obras de arte,<br />
brinquedos e moda, entre tantas possibilidades – e as questões que tratam da manutenção desse ato, que<br />
remonta à pré-história, permeiam as páginas para mostrar<br />
que colecionar é dar vida longa às coisas. Em outras palavras,<br />
é preservar a <strong>memória</strong>.<br />
No ensaio fotográfico que abre a edição, objetos que um<br />
dia estiveram no centro <strong>das</strong> atenções nas residências formam<br />
uma estranha coleção <strong>ao</strong> ser relegados <strong>ao</strong> sótão <strong>das</strong><br />
casas. Ser enterrado com dois dos quadros mais caros do<br />
mundo: esse foi o desejo de um colecionador, o que deixou<br />
a comunidade artística em polvorosa. Conheça na reportagem<br />
“Colecionar é contar histórias” esses e outros causos, não tão excêntricos, mas que mostram que uma<br />
coleção pode ter vários destinos, a depender de seus donos. Que o diga Liêdo Maranhão, cuja história você vai<br />
conhecer em Perfil. Além dos mais variados objetos, ele é colecionador de narrativas orais, coleta<strong>das</strong> nas ruas<br />
do Recife e registra<strong>das</strong> em diários que renderam 13 livros.<br />
Os museus, instituições que por tradição se ocupam de cuidar de coleções e exibi-las, ganham destaque<br />
tanto na matéria sobre os bastidores de grandes instituições internacionais, como MoMA, Malba e<br />
Reina Sofía, quanto na entrevista especial com Tadeu Chiarelli, diretor do paulistano MAC/USP, que,<br />
no limiar dos 50 anos, está prestes a se tornar o maior museu do país em espaço.<br />
E, se você coleciona a Continuum, prepare-se! A edição de março-abril virá<br />
diferente, com mais seções e um projeto gráfico renovado. Saiba qual<br />
será o tema do próximo número e como você pode participar da<br />
revista, enviando trabalhos artísticos e textos, no site<br />
itaucultural.org.br/continuum.<br />
2 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 3<br />
Ilustração Leandro Lima<br />
Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Thiago Lacaz Edição Marco Aurélio Fiochi Redação André Seiti, Carlos<br />
Costa, Roberta Dezan Produção editorial Maria Clara Matos Revisão Denise Costa, Polyana Lima Colaboraram nesta edição Augusto Paim,<br />
Cynthia Gyuru, Fernanda Castello Branco, Guilherme Kramer, Leandro Lima, Luana Fischer, Marcelo Rampazzo, Mariana Lacerda, Mariana Sgarioni,<br />
Maurício Arruda Mendonça, Micheliny Verunschk, Renan Magalhães, Renata Penzani, Ricardo Labastier, Rodrigo Garcia Lopes, Sergio Crusco,<br />
Silvia Bessa, Tatiana Diniz Agradecimento Ana Farinha (MAC/USP), Empório Carol Martini (São Paulo), IEB/USP<br />
capa foto: Luana Fischer<br />
ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)<br />
Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminha<strong>das</strong> <strong>ao</strong> Núcleo de Comunicação e Relacionamento<br />
continuum@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554<br />
Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.
Entrevista<br />
20. Um museu de grandes novidades<br />
O diretor do MAC/USP, crítico e historiador da arte Tadeu Chiarelli fala sobre<br />
as novas instalações do museu e dos aspectos simbólicos dessa mudança.<br />
Reportagem<br />
12. Colecionar é contar histórias<br />
Entre o egoísmo e o prazer de compartilhar.<br />
16. Debaixo da ponta do iceberg<br />
Há muito mais trabalho em exposições do que os<br />
olhos do público conseguem ver.<br />
36. Um tesouro natural<br />
Fragmentos do mundo prontos para responder perguntas<br />
sobre o funcionamento da vida.<br />
40. De coletores a colecionadores<br />
Descubra por que o ato de colecionar ultrapassa o<br />
mero acúmulo de objetos.<br />
44. Várias pessoas, a mesma mania<br />
Algumas coleções, de tão comuns, reúnem em grupos<br />
e associações pessoas com os mesmos gostos,<br />
manias e interesses.<br />
48. Sequências e (in)consequências<br />
A execução seriada de obras marca a arte de todos<br />
os tempos.<br />
52. Ordem no c<strong>ao</strong>s<br />
Regras básicas de conservação e catalogação dão outro<br />
status a acervos e coleções.<br />
56. Vestir o presente com a <strong>memória</strong> do passado<br />
A moda como um dos mais confiáveis e importantes<br />
documentos para desvendar o espírito de cada tempo.<br />
60. Quem dá mais?<br />
As listas de favoritos ganham força com as mídias sociais.<br />
4 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 5<br />
2010|29<br />
44<br />
Perfil<br />
64. O memorialista do povão<br />
Liêdo Maranhão, ouvinte e devoto dos costumes e<br />
expressões populares.<br />
Fotorreportagem<br />
6. O não lugar<br />
Objetos que antes faziam parte da vida cotidiana agora<br />
habitam um espaço onde nem o tempo passa.<br />
56<br />
Balaio<br />
26. Coletânea de dicas<br />
Ideias para você se tornar um colecionador.<br />
Ficção<br />
64<br />
32. A paixão pelos livros<br />
Em texto inédito de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício<br />
Arruda Mendonça, a história de um homem que pretendia<br />
formar a maior coleção de livros da América Latina.<br />
Espaço do Leitor<br />
Deadline<br />
28. Acervo feito de gente<br />
O paulistano Museu da Pessoa ajuda a bordar a emaranhada<br />
teia da <strong>memória</strong> social.
O não lugar<br />
Fotos Luana Fischer [luanafischer.com]<br />
Um toca-discos do começo do século passado, guardado com<br />
cuidado, <strong>ao</strong> lado de discos de 72 rotações sem nenhum risco.<br />
Um retrato de família, protegido da ameaça da luz, mostra às<br />
paredes escuras rostos maquiados à moda antiga. Um rolo<br />
musical – que antes se acoplava a um órgão – deitado no<br />
chão, cuidadosamente, não faz nenhum ruído. Bonecas vesti<strong>das</strong>,<br />
com seus óculos e chapéus, sorriem eternamente.<br />
Debaixo da mesma camada de poeira, descansam coleções<br />
de objetos de diferentes tempos, origens e utilidades. Um<br />
dia, fizeram parte da vida cotidiana. Hoje, vivem no não lugar<br />
<strong>das</strong> casas: sótãos e porões onde o tempo não passa.<br />
Por que tanto esmero em guardá-los? Por que ainda são<br />
importantes ou por que foram? Ao não encontrar seu papel<br />
nas salas de estar ilumina<strong>das</strong> da atualidade, eles devem subir<br />
<strong>ao</strong> não lugar, limbo da história privada no qual o que foi colecionável<br />
deixa de sê-lo, ainda que sem deixar de existir.<br />
fotorreportagem<br />
6 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 7
8 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 9
10 Continuum Itaú Cultural<br />
Participe com suas ideias 11
Colecionar é contar histórias<br />
reportagem<br />
Colecionadores constroem possibilidades de convivência com a arte e narrativas<br />
sobre a história do mundo.<br />
Por Sergio Crusco | Ilustração Marcelo Rampazzo<br />
No começo dos anos 1980, o então fotógrafo Eduardo Brandão ouviu de uma marchande estrangeira que o<br />
principal problema da arte contemporânea brasileira era a carência de registro e de catalogação. Munido de<br />
câmera, rolos de filme e equipamento de iluminação, Brandão decidiu desbravar esse território pouco explorado.<br />
Propôs a artistas plásticos amigos fotografar sua produção recente e, por falta de verba (antes da fotografia<br />
digital, os processos de revelação e ampliação tornavam tudo mais custoso), receber em troca obras de arte. “A<br />
preocupação dos artistas, na época, era vender uma obra e pagar o aluguel. Portanto, minha coleção começou<br />
na base do escambo”, lembra ele, hoje curador e galerista, proprietário da Galeria Vermelho, em São Paulo.<br />
Nascia, descompromissadamente, uma <strong>das</strong> mais importantes coletâneas particulares de arte abrangendo a produção<br />
nacional dos anos 1980 e 1990 – trabalhos de Leonilson, Beatriz Milhazes, Leda Catunda, Geraldo de<br />
Barros, Tunga, Sandra Cinto, Lenora de Barros, Luiz Zerbini, Edgard de Souza e tantos outros. Brandão se deu conta<br />
de que o que cobria as paredes de sua casa havia tomado um vulto mais expressivo do que imaginaria nos idos<br />
em que trocava telas e esculturas por cliques, e se viu diante da necessidade de catalogar as peças e conservá-las.<br />
Mais do que uma coleção, as cerca de 300 obras que arrebanhara <strong>ao</strong> longo dos anos formavam um acervo.<br />
Provido de um saudável desprendimento, Brandão possibilitou o acesso do público a esse acervo cedendo,<br />
em regime de comodato, boa parte <strong>das</strong> aquisições <strong>ao</strong> MAM/SP. As novas peças ajudaram o museu a<br />
enriquecer a coleção à medida que dialogavam com obras dos mesmos artistas existentes no acervo. O<br />
galerista, que nos seus tempos de professor de fotografia na Faap, São Paulo, já possibilitava o acesso dos<br />
alunos à sua coleção, diz ter tomado uma decisão coerente com a maneira pela qual entende e vive a arte.<br />
“Colecionar não é apenas acumular objetos, mas construir um lugar onde a convivência com a arte seja<br />
importante e poderosa, e é essa relação que prezo.”<br />
Há outros exemplos fundamentais<br />
de coleções particulares que ganharam<br />
vida pública na América do Sul.<br />
Uma delas é a de Gilberto Chateaubriand, proprietário<br />
de cerca de 7 mil obras representativas<br />
da arte brasileira do início do século XX até o novo<br />
milênio – e que igualmente foi cedida em comodato<br />
<strong>ao</strong> MAM/RJ, onde ganhou espaço exclusivo. Na<br />
Argentina, a coleção de Eduardo Costantini originou<br />
o Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires<br />
(Malba) – onde residem Autorretrato com Macaco<br />
e Papagaio, de Frida Kahlo, e Abaporu, de Tarsila do<br />
Amaral, duas <strong>das</strong> obras latino-americanas mais valiosas,<br />
arremata<strong>das</strong> pelo empresário em leilões.<br />
sejo de ser cremado com o Van Gogh e o Renoir tão<br />
estimados. A declaração, que colocou o mundo da<br />
arte de cabelos em pé, foi explicada mais tarde pelo<br />
próprio magnata nipônico como piada, brincadeirinha<br />
– e, obviamente, as telas não viraram cinza. Até<br />
hoje, porém, é desconhecido o paradeiro <strong>das</strong> duas<br />
obras. Há apenas especulações sobre quem as teria<br />
arrematado após sua morte.<br />
A notícia, que soaria anedótica não fosse assustadora,<br />
ilustra a atitude egoísta de certos colecionadores:<br />
amealhar, reter, ocultar – traço de personalidade<br />
envelopado pela psicologia na categoria dos transtornos<br />
compulsivos. Ora, uma coleção deve con-<br />
O empresário japonês Ryoei Saito, comprador, na década<br />
de 1990, de duas telas que ainda hoje figuram na lista <strong>das</strong><br />
dez mais caras do mundo, chocou a sociedade <strong>ao</strong> expressar<br />
o fúnebre desejo de ser cremado com as obras.<br />
Nem todo colecionador, no entanto, tem o prazer,<br />
exercitado por Brandão, Chateaubriand e Costantini,<br />
de compartilhar. É notório o caso do empresário japonês<br />
Ryoei Saito, comprador de duas telas que ainda<br />
hoje figuram na lista <strong>das</strong> dez mais caras do mundo:<br />
Retrato do Dr. Gachet, de Van Gogh, e Bal du Moulin<br />
de la Galette, de Renoir – arrematados em 1990 por<br />
82,5 milhões de dólares e 78,1 milhões de dólares,<br />
respectivamente. Saito, que morreria seis anos mais<br />
tarde, chocou a sociedade <strong>ao</strong> expressar o fúnebre de-<br />
tar uma, ou melhor, diversas histórias – como a de<br />
Chateaubriand, que narra a evolução da arte brasileira<br />
nos últimos cem anos, e a do Museu do Vaticano,<br />
que relata a da própria igreja católica. No Museu do<br />
Louvre, um dos fios que podemos perseguir é o da<br />
expansão do império napoleônico por meio <strong>das</strong><br />
apropriações feitas pelo conquistador sobre o espólio<br />
dos povos subjugados. Estão lá a Vênus de Milo e a<br />
Vitória de Samotrácia como testamento desse poder.<br />
A sete chaves, essa história nunca seria lida.<br />
12 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 13
O caráter narrativo da coleção – e suas inúmeras possibilidades<br />
de “roteiro” – atiça colecionadores e curadores.<br />
A razão se faz como discurso<br />
No ensaio “Epistemologias Históricas do Colecionismo”<br />
(publicado na revista Episteme, em 2005), o historiador<br />
gaúcho Francisco Marshall, da UFRGS, analisa<br />
a semântica da palavra coleção: “Colecionar, do latim<br />
collectio, possui em seu núcleo semântico a raiz leg, de<br />
alta relevância em todos os falares indo-europeus [...].<br />
No grego clássico, em seu grau ‘o’, produz o morfema<br />
log, avizinhado, em seu grau ‘e’, de leg, ambos repletos<br />
de derivados. Nesta família linguística, aparece o núcleo<br />
semântico e significativo do colecionismo: uma<br />
relação entre pôr em ordem – raciocinar – (logeín) e<br />
discursar (legeín), onde o sentido de falar é derivado<br />
do de coletar: a razão se faz como discurso”.<br />
É esse caráter narrativo da coleção – e suas inúmeras<br />
possibilidades de “roteiro” – que atiça colecionadores<br />
e curadores. Segundo Brandão, o dado encantador<br />
de uma coleção é a possibilidade de criar recortes,<br />
ordenar as peças de modo a construir as tais narrativas.<br />
“Quando minha coleção estava em casa, um dos<br />
meus prazeres era fazer curadorias para mim, para os<br />
amigos e para os alunos”, diz.<br />
Livros, selos, brinquedos, caixas<br />
de fósforos, revistas, cartões-postais,<br />
fotografias, mapas, roupas, discos, embalagens<br />
de produtos industrializados, cartazes<br />
– toda coleção, quando representativa e bem organizada,<br />
pode conter essa mesma força prosódica.<br />
Para tomar um exemplo, não foi a partir dos arquivos<br />
<strong>das</strong> gravadoras brasileiras que o músico Charles<br />
Gavin organizou um dos mais belos compêndios sobre<br />
a arte gráfica brasileira dos anos 1960. A fonte para<br />
a feitura do livro Bossa Nova e Outras Bossas – A Arte e<br />
o Design <strong>das</strong> Capas dos LPs (editado em 2008 pela organização<br />
não governamental Viva Rio) foi a coleção<br />
do carioca Caetano Rodrigues (falecido em 2010), que<br />
garimpou to<strong>das</strong> as gravações da bossa desde os tempos<br />
em que frequentava o Beco <strong>das</strong> Garrafas, reduto<br />
dos músicos de samba-jazz, até o advento do CD.<br />
A internet abre novos caminhos e perspectivas para<br />
o público interessado em “ler” as histórias conta<strong>das</strong><br />
pelas coleções – o áudio de diversos álbuns de<br />
Rodrigues, sobretudo os mais raros e alguns jamais<br />
reeditados, foi disponibilizado pelo blogueiro Loronix<br />
em seu site (loronix.blogspot.com). E, embora o ato<br />
de admirar uma obra de arte ou um objeto sempre se<br />
faça de maneira mais satisfatória <strong>ao</strong> vivo, hoje é possível<br />
percorrer o acervo de grandes instituições ou de<br />
particulares que já digitalizaram sua coleção.<br />
O trânsito tem mão dupla: a instituição também se<br />
beneficia da ampla exposição cibernética. É o caso<br />
do Masp, que tem seu acervo digitalizado e de acesso<br />
bem simplificado em seu site oficial. “O museu não<br />
só divulga como recebe muita informação relevante<br />
por meio da internet. Pesquisadores estrangeiros que<br />
consultam nosso acervo eletronicamente nos fornecem<br />
dados sobre peças da coleção, o que amplia o<br />
conhecimento da própria instituição sobre determina<strong>das</strong><br />
obras”, diz Eunice Sophia, coordenadora do<br />
acervo que reúne a mais importante coleção de arte<br />
europeia do Hemisfério Sul, criada pelo empresário<br />
Assis Chateubriand e seu colaborador Pietro Maria<br />
Bardi na década de 1940.<br />
Segundo Eunice, o que diferencia a simples coleção<br />
particular de um acervo é sua catalogação, seu registro.<br />
A coleção é meramente a reunião de objetos que se<br />
assemelham por categoria, formato, período histórico<br />
ou temática. O acervo é a coleção institucionalizada,<br />
por assim dizer, e não raro tombada pelo patrimônio<br />
histórico, caso do acervo do Masp (que contém pintura,<br />
escultura, desenho, gravura, fotografia, vestuário,<br />
mobiliário, tapeçaria, objetos, instrumentos<br />
musicais, design, cerâmicas). “Todo acervo é<br />
uma coleção, mas nem toda coleção é<br />
um acervo”, esclarece.<br />
14 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 15
Visitantes na abertura da exposição Convivências – Fundação Iberê Camargo | foto: Cristiano Sant’Anna<br />
Debaixo da ponta do iceberg<br />
reportagem<br />
Antes e depois de qualquer exposição, há sempre um imenso trabalho que<br />
não aparece <strong>ao</strong> público. Conheça os bastidores de museus como Reina Sofía,<br />
Malba e MoMA e da Fundação Iberê Camargo.<br />
Por Augusto Paim<br />
Diz-se que o jornalismo é a arte de sujar os sapatos. O repórter que enfrentou a chuvosa Porto Alegre de 9 de<br />
novembro de 2010 há, no entanto, de contradizer: o jornalismo é a arte de molhar os sapatos.<br />
Na galeria da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, do Instituto de Artes da UFRGS, o repórter encontrou<br />
abrigo contra a chuva. Enquanto a entrevistada Ana Maria Albani de Carvalho, pesquisadora e professora do<br />
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, resolvia algumas pendências, ele observava o ambiente <strong>ao</strong><br />
redor. Uma exposição de gravuras seria inaugurada em dois dias; em razão disso, alunos equilibravam-se em<br />
esca<strong>das</strong> pendurando quadros, martelos martelavam – tap-tap-tap – e pregos afundavam na madeira – tumtum-tum.<br />
Junto a uma mesa, uma estudante montava cada moldura numa colagem com espuma branca.<br />
O repórter não sabia, mas sua reportagem começava ali.<br />
A informatização dos museus – processo buscado e recomendado<br />
pelo Ministério da Cultura através do Sistema Nacional de<br />
Museus –, quando aplicada no caso específico do acervo, não<br />
resolve a questão da falta de espaço. Pois quem jogaria fora<br />
um original de Picasso depois de ele ter sido digitalizado?<br />
Nas catacumbas dos museus<br />
Todo jornalista, quando se debruça sobre um tema novo,<br />
precisa estudá-lo até estar em condições de contar uma<br />
história. Para esta reportagem, o repórter aprendeu, entre<br />
outras coisas, quais são as partes que compõem um museu.<br />
Isso não aparece no texto final da reportagem, mas,<br />
para escrevê-lo, o repórter precisou desses conceitos.<br />
Assim como nos bastidores do jornalismo, nos museus<br />
há um imenso trabalho de sustentação e infraestrutura<br />
que permite o funcionamento <strong>das</strong> instituições. No<br />
Reina Sofía, de Madri, trabalham mais de 600 profissionais.<br />
Arianne Vellosillo, restauradora do museu, explica<br />
que o departamento de conservação e restauro<br />
ocupa sozinho aproximadamente 600 m². “Somos 21<br />
pessoas nesse setor, quase todos restauradores, mas<br />
há também o assistente do chefe do departamento,<br />
um fotógrafo, um especialista em imagens, um gestor<br />
cultural e uma química.” A dimensão dos bastidores é<br />
tão grande que ultrapassa em muito a área de exposição.<br />
Só a reserva técnica (espaço onde fica armazenado<br />
o acervo), com suas 18 mil obras, ocupa vários<br />
andares no sótão do Reina Sofía.<br />
O Malba (Museu de Arte Latino-<br />
Americano de Buenos Aires) tem um<br />
acervo de apenas 500 peças, mas já enfrenta<br />
problemas de espaço por não ter uma reserva<br />
técnica. Serviços como conservação e restauro<br />
são terceirizados. Jim Coddington, chefe do departamento<br />
de conservação do Museu de Arte Moderna<br />
de Nova York (MoMA), relata outro problema: “Um dos<br />
maiores desafios na conservação de arte contemporânea<br />
é o grande leque de materiais que os artistas estão<br />
usando para construir seus trabalhos”. Cintia Mezza,<br />
administradora da coleção permanente do Malba, comenta:<br />
“O que mais nos dá trabalho são as obras cinéticas<br />
ou as que têm mecanismos para os quais o perfil<br />
do restaurador convencional não é suficiente”. Afinal,<br />
o que fazer com uma obra de 20 anos que usava um<br />
aparelho de vídeo com fita VHS? Apenas passar o material<br />
para DVD não resolve, pois nessa transposição se<br />
perdem características importantes, como a cor. Por<br />
isso, museus que trabalham com novas mídias têm<br />
optado por conservar o suporte original, <strong>ao</strong> mesmo<br />
tempo que o convertem em outro formato. A obra,<br />
portanto, duplica-se, duplicando também o problema<br />
do espaço: onde guardar isso tudo?<br />
16 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 17
Vista do pátio do Reina Sofía | foto: Joaquín Cortés Visitantes observam obra exposta no Malba | foto: divulgação<br />
Antes de tudo isso, no entanto,<br />
há a aquisição da obra. Em 2004, a<br />
política de aquisições do Malba focou-se<br />
em fotografia contemporânea. Nos museus,<br />
porém, assim como na vida de qualquer um de<br />
nós, o orçamento disponível é critério fundamental.<br />
“Comprar obras de contemporâneos do Brasil ou<br />
da Colômbia está muito complicado no momento,<br />
pois esses artistas estão muito valorizados”, comenta<br />
Cintia. Já a Fundação Iberê Camargo dificilmente adquire<br />
obras. Há o setor de documentação e pesquisa,<br />
que faz a catalogação de trabalhos que não se encontram<br />
no acervo, mas o objetivo é apenas registrar seus<br />
atuais endereços e proprietários, não comprá-los.<br />
Vista interna da Fundação Iberê Camargo | foto: Mathias Cramer<br />
A informatização dos museus – processo buscado e<br />
recomendado pelo Ministério da Cultura através do<br />
Sistema Nacional de Museus –, quando aplicada no<br />
caso específico do acervo, não resolve a questão da<br />
falta de espaço. Pois quem jogaria fora um original de<br />
Picasso depois de ele ter sido digitalizado? Outro problema<br />
vem <strong>das</strong> novas instalações da arte contemporânea,<br />
que excedem os espaços tradicionais para guardar<br />
obras. “Recentemente chegou <strong>ao</strong> Malba uma obra<br />
de 2 metros de altura por 2 metros de largura”, relata<br />
Cintia. É um problema que não existe, por exemplo, na<br />
Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. “O artista<br />
plástico Iberê Camargo pintou, gravou e desenhou<br />
num formato convencional”, comenta Fábio Coutinho,<br />
superintendente cultural da instituição. Em razão disso,<br />
apesar de o acervo contar com mais de 5 mil obras,<br />
uma pequena reserva técnica dá conta do recado.<br />
Como uma obra vai parar dentro do museu?<br />
O perfil de cada instituição revela-se no trabalho da<br />
curadoria – que tanto pode ser para uma exposição<br />
específica quanto para decidir que obras devem ser<br />
adquiri<strong>das</strong>. Um museu pode trabalhar apenas com<br />
gravuras e pinturas, ou esculturas (que já exigem um<br />
cuidado diferenciado para conservação e armazenamento),<br />
ou com a imprevisível arte contemporânea,<br />
ou, ainda, com arte eletrônica. Se uma instituição<br />
concentra-se na obra de determinado artista ou estilo,<br />
diminui o problema da superlotação da reserva<br />
técnica, e a instituição tende a centrar suas atividades<br />
em esforços de pesquisa e catalogação, além de<br />
formas de exposição e interação com o público. Esse<br />
último caso é o que acontece na Fundação Iberê<br />
Camargo, que não é exatamente um museu, mas<br />
uma instituição que pesquisa, cataloga, armazena e<br />
expõe a obra do artista.<br />
O trabalho da mediação com os visitantes também<br />
é fundamental. Os museus contemporâneos têm<br />
um cuidado com a pluralidade do público, propondo<br />
mediações que satisfaçam tanto leigos quanto<br />
especialistas. Algumas exposições prezam mais o<br />
lúdico e a interatividade, como é o caso <strong>das</strong> realiza<strong>das</strong><br />
nos museus científicos. Outras instituições<br />
se preocupam mais com o trabalho<br />
formativo, desenvolvendo programas<br />
de arte-educação.<br />
Quem escreve o texto <strong>das</strong> etiquetas?<br />
Antes e depois de cada exposição, acontece muito<br />
mais coisa do que se imagina. A jornalista Luísa<br />
Fedrizzi diz que, às vezes, se um dos três andares de<br />
exposição da Fundação Iberê Camargo estiver fechado,<br />
há pessoas que reclamam, mandando e-mails do<br />
tipo: “Por que não montam as exposições na segunda,<br />
quando o museu não abre <strong>ao</strong> público?”.<br />
Quando uma exposição chega, as obras precisam ficar<br />
em quarentena para não haver nenhum problema<br />
com mudanças bruscas de temperatura e umidade.<br />
Depois, as caixas de transporte são abertas e tudo é<br />
fotografado e catalogado. Só então vem a montagem,<br />
que muitas vezes tem desafios à parte. Depois<br />
de passar pelo MoMA e pelo Reina Sofía, a obra On<strong>das</strong><br />
Para<strong>das</strong> de Probabilidade, de Mira Schendel, chegou à<br />
Fundação Iberê Camargo. A peça tem 27.500 fios de<br />
náilon, que pendem do teto. Ok, mas pendem como?<br />
Aí é que está o problema. Para montar o trabalho, a<br />
equipe de produção teve de conseguir 27.500 pequenos<br />
ganchos. Depois de arranjar um fornecedor, que<br />
não honrou o compromisso da entrega, o material<br />
foi comprado às pressas direto do fabricante. No fim,<br />
após cinco dias de montagem, a obra ficou pronta.<br />
E então a exposição acaba. A exposição, não o trabalho.<br />
Fedrizzi conta que “sempre depois de uma<br />
exposição vem uma equipe que repara o espaço,<br />
deixando-o zerado para o próximo curador”. Em se<br />
tratando de arte contemporânea, nem sempre são<br />
reparos simples. Em novembro de 2010, por exemplo,<br />
a obra Ixodidae, do artista plástico Cadu, furava sem<br />
cessar uma <strong>das</strong> paredes da Fundação como componente<br />
do processo artístico.<br />
Mesmo em obras convencionais, há de se perguntar:<br />
quem fornece as molduras? Quem escreve o texto <strong>das</strong><br />
etiquetas? “Em geral, achamos que as obras nasceram<br />
com as etiquetas”, comenta Ana Carvalho, citada no<br />
início desta reportagem. “O que se vê, quando se visita<br />
uma exposição, é a ponta do iceberg”, diz ela. É como<br />
os estudantes da UFRGS, cujo trabalho de montar a<br />
exposição, na chuvosa Porto Alegre de 9 de novembro<br />
de 2010, não ficou aparente dois dias depois. Ou<br />
como o trabalho do jornalista, cujos sapatos, molhados<br />
no processo de fazer a reportagem, dificilmente<br />
aparecem no texto final.<br />
18 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 19
O edifício do antigo Detran, projetado por Oscar<br />
Niemeyer, prepara-se para receber o novo MAC<br />
Um museu de grandes novidades<br />
Por Marco Aurélio Fiochi | Fotos André Seiti<br />
O tempo não para, e depois de 48 anos o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo<br />
(MAC/USP), um dos mais importantes da capital paulista, está prestes a mudar de casa. Ele passa, ainda<br />
neste primeiro semestre, a ocupar o prédio do antigo Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo<br />
(Detran), integrante do conjunto arquitetônico do Parque do Ibirapuera, porém apartado deste pela Avenida<br />
23 de Maio. A mudança é audaciosa. Para tanto, o imponente edifício de 29,9 mil m2, projetado por Oscar<br />
Niemeyer num terreno de mais de 44,3 mil m2 e inaugurado em 1954, enfrentou mais de dois anos de reforma,<br />
bancada pela Secretaria de Estado da Cultura. Na nova sede, segundo o diretor da instituição, o crítico<br />
e historiador da arte Tadeu Chiarelli, será possível mostrar de forma permanente quase todo o acervo, que<br />
conta com cerca de 10 mil obras, de vários formatos, dos períodos moderno e contemporâneo no Brasil e no<br />
exterior. Curador de renome na arte brasileira e professor titular da universidade, Chiarelli fala, nesta entrevista,<br />
concedida no canteiro de obras, do futuro do museu e ressalta o aspecto simbólico da mudança: “Vamos<br />
devolver <strong>ao</strong> público aquilo que é público. O MAC hoje só mostra 1% de sua coleção. Serão seis andares de<br />
arte e um anexo, um espaço magnífico”.<br />
20 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 21<br />
entrevista
Para sua carreira, o que representa ser nomeado<br />
diretor do MAC? Como se deu esse processo?<br />
Existe uma norma na USP na qual só podem ser diretores<br />
dos museus da universidade os professores titulares,<br />
profissionais que já teriam percorrido toda a trajetória<br />
universitária. Na época da nomeação [em abril de 2010,<br />
para um período de quatro anos] eu havia acabado de<br />
fazer o exame de titularidade. O profissional que segue<br />
a carreira acadêmica é fundamentalmente um servidor<br />
público e deve se preparar para assumir as atribuições<br />
que vão aparecendo. Assumir o MAC é a responsabilidade<br />
máxima de um professor ligado à história e à crítica<br />
da arte. Mesmo se tivesse outros planos, não poderia me<br />
furtar a aceitar. Ainda mais num momento tão crucial<br />
quanto este. Tenho a honra de ter colegas que desenvolvem<br />
seu trabalho há muitos anos, como as docentes<br />
Cristina Freire [vice-diretora], Helouise Costa [coordenadora<br />
da Divisão de Pesquisa em Arte – Teoria e Crítica]<br />
e Ana Magalhães [membro do Conselho Deliberativo],<br />
entre outros. É uma equipe de altíssima qualidade, o que<br />
aumenta meu compromisso. Tem sido importante conviver<br />
com esses profissionais e discutir os rumos do museu.<br />
Uma experiência que vai ter frutos significativos.<br />
O MAC está dividido em três espaços [dois na USP<br />
e um na Fundação Bienal]. Com a mudança para<br />
o novo prédio, o que significa reunir esse museu<br />
fragmentado?<br />
Com a vinda para a nova sede, espera-se que o museu<br />
possa, em primeiro lugar, mostrar o acervo que reúne.<br />
Na sede atual, só é possível mostrar 1% da coleção<br />
[que conta com cerca de 10 mil obras]. Não é possível<br />
apresentá-lo em sua totalidade nem com o potencial<br />
que ele tem para a interpretação da arte moderna<br />
e contemporânea. Termos um espaço definitivo<br />
e tão amplo é fundamental para que a instituição<br />
dê prosseguimento à sua missão:<br />
com foco no acervo,<br />
produzir exposições e desenvolver um trabalho consistente<br />
e duradouro com o público. De fato, a fragmentação<br />
prejudica muito seu cotidiano. Mas a mudança não<br />
significa que o MAC deixará a universidade. Não podemos<br />
perder a interlocução com o campus. Manteremos<br />
o edifício maior, em frente à reitoria, para aulas e exposições<br />
específicas. A outra sala no campus, de menor<br />
tamanho, será devolvida à administração, bem como<br />
o ambiente no prédio da Fundação Bienal. A sede na<br />
Cidade Universitária será o MAC acadêmico. As disciplinas<br />
de graduação e pós-graduação [ofereci<strong>das</strong> como<br />
optativas <strong>ao</strong>s alunos da USP], além <strong>das</strong> atividades nitidamente<br />
pedagógicas, serão manti<strong>das</strong> naquele lugar.<br />
O único autorretrato que Modigliani pintou é do MAC.<br />
Esse quadro tem de estar à disposição para que as pessoas<br />
o vejam quantas vezes desejarem.<br />
Como será o novo espaço?<br />
Serão seis andares de arte [as áreas expositivas vão do segundo<br />
<strong>ao</strong> sétimo piso]. No primeiro andar, vai haver um<br />
auditório e a parte administrativa. No oitavo, um mirante<br />
e um restaurante. Quatro andares serão destinados à exposição<br />
permanente do acervo e dois a exposições temporárias.<br />
Uma parte, perto dos elevadores, abrigará salas<br />
especiais, para exposições monográficas de artistas bem<br />
representados na coleção, como Di Cavalcanti, Yolanda<br />
Mohalyi. Há outro edifício, o Anexo, também parte do<br />
projeto original [com 3.284 m2], um dos mais generosos<br />
que existem para a exibição de obras de arte contemporânea.<br />
Os artistas vão deitar e rolar! No Anexo, faremos<br />
exposições de artistas contemporâneos vivos, que vão<br />
produzir para o museu. Ou seja, o conjunto do espaço<br />
expositivo é magnífico [com mais de 11,1 mil m2].<br />
O cronograma de exposições sofrerá alterações?<br />
As obras do acervo ficarão no mínimo um ano expostas,<br />
com mudanças pontuais, devido a pesquisas dos<br />
curadores. É o que chamamos de exposição de longa<br />
duração. A ideia é que a coleção fique à disposição do<br />
público. Nos anos 1970, quando fui aluno de Walter<br />
Zanini, ele falava: “Todo cidadão de São Paulo tem o<br />
direito de entrar na Pinacoteca do Estado para ver o<br />
Chiarelli: “A mudança se deve <strong>ao</strong> desejo de devolver <strong>ao</strong> público o que é público”<br />
Caipira Picando Fumo [pintura de Almeida Júnior, de<br />
1893] quando quiser, pois é um patrimônio público”.<br />
O único autorretrato que Modigliani pintou é do MAC.<br />
Sei que há muitos cidadãos que adoram essa obra e a<br />
veem pouco. Quero voltar a fazer o que Zanini fazia na<br />
direção do MAC: o quadro do Modigliani tem de estar<br />
à disposição para que as pessoas o vejam quantas<br />
vezes desejarem. O museu tem de cumprir a função<br />
de devolver <strong>ao</strong> público o que é público. No tocante<br />
às exposições temporárias, elas não terão menos que<br />
seis meses. Não acredito que se consiga fazer um bom<br />
trabalho de formação de público em exposições que<br />
duram 40 dias. Como é um museu universitário, o foco<br />
na formação do público é visceral. A instituição não<br />
tem necessidade de acelerar exposições, não faz parte<br />
de seu perfil. Portanto, pode trabalhar a potencialidade<br />
<strong>das</strong> obras. Não vou expor um artista porque tenho<br />
espaço, mas, sim, aquele que o conselho do museu<br />
considerar importante, sobretudo, <strong>ao</strong> acervo.<br />
Qual é sua percepção da reação de outras instituições<br />
culturais da cidade à ampliação do MAC?<br />
Os colegas na direção de outras instituições paulistanas,<br />
que admiro profissionalmente, além de ser<br />
meus amigos, como Jorge Schwartz (do Museu Lasar<br />
Segall), Teixeira Coelho (do Masp) e Marcelo Araújo (da<br />
Pinacoteca), estão bastante entusiasmados.<br />
Faz-me muito bem contar<br />
com o apoio deles, pois todos, direta ou<br />
indiretamente, estão ou estiveram ligados <strong>ao</strong><br />
MAC. Se pensarmos no circuito como um todo,<br />
as pessoas têm muita expectativa sobre o MAC,<br />
pois nos anos 1960 e 1970, com a direção do Zanini,<br />
o museu tinha uma presença muito significativa na<br />
cena cultural e artística da cidade. Artistas e curadores<br />
têm um grande carinho pelo museu e imaginam<br />
visitas <strong>ao</strong> acervo para rever obras que há tempos não<br />
são apresenta<strong>das</strong>. As pessoas em geral, quando são<br />
informa<strong>das</strong> de que o prédio do antigo Detran vai ser<br />
um museu, se admiram. É um espaço muito importante<br />
para a cidade e foi tão malcuidado. A população<br />
sente que é uma devolução, pelo poder público, de<br />
um patrimônio que estava vilipendiado.<br />
Fale sobre a formação do acervo do MAC.<br />
O acervo do MAC é brilhante, um dos melhores de<br />
arte moderna e contemporânea da América Latina.<br />
O núcleo original vem da coleção doada por Ciccillo<br />
Matarazzo e Yolanda Penteado [fundadores do MAM/<br />
SP, em 1948] e dos prêmios aquisição <strong>das</strong> edições da<br />
Bienal de São Paulo que foram realiza<strong>das</strong> até 1962.<br />
Nele, há obras extremamente significativas: uma <strong>das</strong><br />
22 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 23
maiores coleções de arte italiana do período entreguerras,<br />
fora da Itália, está no MAC. A obra mais antiga<br />
é de Giacomo Balla, uma pintura de 1906, e há obras<br />
fundamentais de Modigliani, entre outros. A parte<br />
modernista internacional do acervo está muito bem<br />
representada, bem como a modernista nacional da primeira<br />
metade do século XX, com Tarsila, Di Cavalcanti e<br />
Portinari, que estabelecem um diálogo muito potente.<br />
Outra parte importante é a coleção de arte dos anos<br />
1960 e 1970. Walter Zanini [diretor entre 1963 e 1978]<br />
foi fundamental <strong>ao</strong> museu, pois trabalhou as vertentes<br />
conceituais do acervo. Ele comprava ou ganhava<br />
obras que são disputa<strong>das</strong> por museus internacionais.<br />
Mas o público não conhece aprofundadamente esse<br />
núcleo, fundamental para entender a arte contemporânea.<br />
Temos outro segmento muito importante, de<br />
arte dos anos 1980, que foi configurado com Aracy<br />
Amaral [membro do Conselho Administrativo de 1980<br />
a 1982]. Cada diretor do museu cuidou de diferentes<br />
aspectos dessa grande coleção. Outras bastante significativas,<br />
como parte da Cid Collection, a coleção do<br />
extinto Banco Santos, está sob a guarda do museu.<br />
Como você vê esse acervo no futuro?<br />
Eu e os curadores já começamos a mapear as lacunas<br />
e a projetar a expansão da vertente contemporânea. É<br />
um museu de arte contemporânea, então tem de dialogar<br />
intensamente com a produção atual. Na inaugu-<br />
A previsão é que o novo museu seja inaugurado no primeiro semestre deste ano<br />
ração, junto com a exposição do acervo, faremos uma<br />
com artistas brasileiros muito jovens, para demonstrar<br />
que, além de trabalhar seu acervo, o museu não deixa<br />
de pensar nas obras mais recentes que quer adquirir.<br />
O museu não está aberto a ofertas. Vamos escolher<br />
aquilo que interessa para expandir e referenciar a coleção.<br />
Essa é a política de aquisições.<br />
O que está sendo planejado para as áreas técnicas<br />
do museu?<br />
O MAC sempre primou pela qualidade e sofisticação<br />
do trabalho que desenvolve na conservação e no restauro<br />
de suas obras. Na sede do campus há um laboratório<br />
em que trabalham especialistas. São salas<br />
projeta<strong>das</strong> para guarda, preservação, estudo e restauro<br />
<strong>das</strong> peças. Isso será reproduzido na nova sede.<br />
Além da reforma, está sendo construído um edifício<br />
defronte <strong>ao</strong> Anexo, para abrigar as áreas técnicas [que<br />
compreendem reservas e laboratórios de conservação,<br />
em um espaço de 3.983 m²] e manter a qualidade<br />
da sede atual. Apenas parte do mobiliário será<br />
transferida para esse prédio, pois cerca de 90% dos<br />
equipamentos serão comprados para manter o padrão<br />
e para que se trabalhe com tecnologia mais<br />
avançada. Na reserva técnica laboratorial será<br />
possível ministrar aulas, e os alunos dos<br />
cursos do MAC terão um contato mais<br />
próximo com as obras.<br />
Homens em obras: reforma do edifício consumiu mais de dois anos de trabalho<br />
O museu não está aberto a ofertas. Vamos escolher aquilo<br />
que interessa para expandir e referenciar a coleção. Essa é<br />
a política de aquisições.<br />
Há algum estudo para facilitar a chegada do público<br />
<strong>ao</strong> museu? A entrada passará a ser cobrada?<br />
Manteremos a gratuidade da visita. Quanto à acessibilidade,<br />
ela já foi pensada. Há três entra<strong>das</strong> para o edifício.<br />
Quando inaugurado, o público poderá entrar pela<br />
passarela [Ciccillo Matarazzo, que atravessa a Avenida<br />
23 de Maio, ligando o parque <strong>ao</strong> edifício], que será reformada.<br />
Nesse caso, a pessoa que estiver passeando<br />
no Ibirapuera poderá atravessar a passarela e visitar o<br />
museu. Será possível entrar e sair do espaço como se<br />
a pessoa estivesse num parque, numa praça pública.<br />
A ideia é integrar <strong>ao</strong> máximo o MAC <strong>ao</strong> Ibirapuera.<br />
Haverá um jardim de esculturas no entorno do<br />
prédio [com cerca de 16 mil m²] em que o visitante<br />
pode passear, descansar. O estacionamento<br />
[na Rua Dante Pazzanese] será<br />
outra entrada. A terceira entrada será<br />
pela Avenida 23 de Maio.<br />
Como você vê a inserção do MAC no circuito dos<br />
grandes museus latino-americanos?<br />
O edifício do novo MAC não foi pensado para ser museu<br />
[o Palácio da Agricultura foi construído para abrigar<br />
a secretaria estadual voltada a esse setor]. Ele está sendo<br />
adaptado. Mas não é qualquer construção. É um prédio<br />
projetado por Oscar Niemeyer no melhor momento de<br />
sua arquitetura e também da produção arquitetônica<br />
brasileira, o início da década de 1950. Isso é muito simbólico.<br />
A construção é um grande monumento. Esse é<br />
o primeiro diferencial do museu. Ele já vem imantado<br />
pela excelência do autor do projeto e pela qualidade<br />
do resultado. Dessa forma, uma <strong>das</strong> principais obras do<br />
MAC é o edifício em que será implantado. Acho que<br />
quando o novo MAC estiver operando se igualará a museus<br />
como o Malba, o Masp e a Pinacoteca do Estado.<br />
No tocante à coleção internacional, ele ombreia o Masp,<br />
embora este tenha mais obras e peças mais antigas. O<br />
Malba tem mais artistas latino-americanos, porém o<br />
MAC não está limitado a essa região. Ele está no mesmo<br />
patamar de qualidade dos museus do continente.<br />
24 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 25
Coletânea de dicas<br />
Sugestões de filme, livros, site e música para colecionar na <strong>memória</strong>.<br />
Por André Seiti | Fotos divulgação<br />
INTERNET<br />
Arquivo World Press Photo<br />
(archive.worldpressphoto.org)<br />
O mais famoso prêmio de fotojornalismo do mundo<br />
disponibilizou recentemente na internet seu acervo<br />
com imagens contempla<strong>das</strong> nas diversas categorias do<br />
concurso. São mais de 10 mil fotos laurea<strong>das</strong> <strong>ao</strong> longo<br />
de 54 anos, entre elas as de nove brasileiros: André<br />
Vieira, Carlos Humberto TDC, Eraldo Peres, J. F. Diório,<br />
João Kehl, Luiz Vasconcelos, Marcos Prado, Orlando<br />
Brito e Sebastião Salgado.<br />
CINEMA<br />
balaio<br />
Uma Vida Iluminada, de Liev Schreiber (Warner<br />
Home Video, 2005)<br />
Jonathan é um ávido colecionador de objetos que remetem<br />
à história de sua família: fotos, medalhas, punhados<br />
de terra, dentaduras... Mas há uma história em particular<br />
que não possui objetos suficientes para ser contada: a<br />
de seu avô. Empenhado em descobrir mais sobre ele,<br />
o personagem parte para a Ucrânia em busca de uma<br />
mulher que, supostamente, teria salvado o ancião da<br />
perseguição nazista durante a Segunda Guerra.<br />
LITERATURA<br />
Ficções, de Jorge Luis Borges<br />
(Companhia <strong>das</strong> Letras, 2007)<br />
Este livro reúne alguns dos mais notórios contos do escritor<br />
argentino falecido em 1986. Estão lá: “Pierre Menard,<br />
Autor do Quixote”, “As Ruínas Circulares”, “O Jardim de<br />
Caminhos Que Se Bifurcam”, “Funes, o Memorioso” e “A<br />
Biblioteca de Babel”. Esses dois últimos, de certa forma,<br />
assemelham-se por tratar – com dose de pessimismo<br />
– de duas espécies de coleções grandiosas: a <strong>memória</strong><br />
e o conhecimento.<br />
26 Continuum Itaú Cultural<br />
Participe com suas ideias 27<br />
MÚSICA<br />
Coleção Chico Buarque (Abril Coleções, 2010)<br />
A obra e a carreira do cantor e compositor Chico Buarque<br />
são revisita<strong>das</strong> em 20 volumes que trazem 240 músicas.<br />
A coleção é acompanhada de livretos com notas de<br />
bastidores e histórias que contextualizam a produção<br />
dos discos. Vale lembrar que a coletânea conta também<br />
com álbuns raros, como Calabar, trilha sonora da peça<br />
homônima, que foi censurada durante a ditadura.<br />
Não Contem com o Fim do Livro, de Jean-Claude<br />
Carrière e Umberto Eco (Record, 2010)<br />
Quando se discute sobre o fim do livro de papel, geralmente<br />
se esquece de que ele é uma experiência para<br />
os sentidos. Muitos colecionadores falam do prazer de<br />
folhear, ou do perfume <strong>das</strong> páginas, ou ainda da soma<br />
dessas sensações <strong>ao</strong> sentimento de posse de um exemplar<br />
único ou raro em algum aspecto. Partindo dessa premissa,<br />
os bibliófilos Umberto Eco e Jean-Claude Carrière discutem<br />
a perenidade desse suporte. O livro dá voltas sobre<br />
temas que vão desde a censura a escritores, passando<br />
pela preservação da <strong>memória</strong>, até a pergunta: “O que<br />
fazer da sua biblioteca depois de sua morte?”.
Acervo feito de gente<br />
O Museu da Pessoa coleciona histórias para contar a história.<br />
Por Renata Penzani | Fotos André Seiti<br />
deadline<br />
Colecionar selos, moe<strong>das</strong>, cartas, tampinhas de garrafa. A necessidade de preservar coisas significativas é<br />
natural do ser humano. Mas nem só de numismática, filatelia e outros quiprocós semânticos é feito o colecionismo.<br />
Esses que são apenas nomes complicados para denominar uma mesma vontade não conseguem<br />
suprir uma necessidade mais incisiva: a construção de uma <strong>memória</strong> social. Foi dessa preocupação que<br />
surgiu, em 1991, o Museu da Pessoa – acervo virtual de narrativas – para pontuar que a vida é passageira e<br />
que é preciso reter se não a história inteira <strong>ao</strong> menos alguns pedaços importantes que a compõem.<br />
Desde a Idade Média, quando surgiram os primeiros museus, o homem constrói sua identidade com base<br />
nas lembranças. Mais do que áreas de preservação, os museus são testemunha do que aconteceu e ancoradouro<br />
do que irá ocorrer. Nesse sentido, o que pode ser mais decisivo para a construção da grande história<br />
do que as pequenas narrativas? Histórias simples, como a de Ana Maria Pupo, de 67 anos, que tinha uma<br />
galinha chamada Miss Brasil, ou a de Mestre Alagoinha [Geraldo Prado, pesquisador do Instituto Brasileiro<br />
de Informação em Ciência e Tecnologia], que construiu a duras penas uma <strong>das</strong> maiores bibliotecas rurais do<br />
Brasil, em Paiaiá, povoado pertencente <strong>ao</strong> município de Nova Soure, no sertão da Bahia. Criada em 2004, ela<br />
abriga mais de 50 mil volumes. “Não há nada mais precioso para entender o mundo que ouvir as pessoas.<br />
É muito simples: toda história de vida é importante, desde a do porteiro até a do presidente da República”,<br />
observa a historiadora Karen Worcman, fundadora do museu e maior entusiasta de sua metodologia. Ela<br />
define a instituição em palavras simples: “Uma metáfora do mundo narrada pelas próprias pessoas”. É sob a<br />
complexa responsabilidade de resguardar anônimas narrativas sociais, no entanto, que funciona o museu;<br />
hoje, ele preserva um acervo de aproximadamente 12 mil depoimentos, 72 mil fotos e documentos e 168<br />
projetos nas áreas de educação, comunicação, <strong>memória</strong> institucional e desenvolvimento social.<br />
Apesar de seus arquivos serem<br />
virtuais, o Museu da Pessoa tem sede<br />
em São Paulo. A metodologia do projeto<br />
inspirou outros países, e hoje há mais três núcleos:<br />
Portugal, Canadá e Estados Unidos. O do<br />
Brasil foi o primeiro. É de um sobrado modesto da<br />
Vila Madalena que saem certezas de que a emaranhada<br />
teia da <strong>memória</strong> social está sendo bordada<br />
a pontos pequenos. Ao entrar lá, podemos sentir o<br />
peso da <strong>memória</strong>. Nos quadros, nas fotos, nos livros e<br />
nos documentos do acervo estão fatos que os jornais<br />
nunca noticiaram. As paredes, cheias de lembranças,<br />
poderiam contar sozinhas fragmentos da trajetória do<br />
país. O museu é aberto a todo mundo, e seu estúdio<br />
de gravação fica disponível para qualquer pessoa que<br />
queira contar algo – basta agendar um horário. Sabrina<br />
Campos, de 22 anos, que cuida da limpeza do museu,<br />
faz questão de frisar, num sorriso de orelha a orelha:<br />
“Quem sabe um dia eu também conto a minha?”.<br />
É de um sobrado modesto da Vila Madalena que saem<br />
certezas de que a emaranhada teia da <strong>memória</strong> social está<br />
sendo bordada a pontos pequenos.<br />
O escritor Rubem Braga dizia que “os jornais noticiam<br />
tudo, mas esquecem algo fundamental que acontece<br />
todos os dias: a vida”. Talvez nem todo mundo dê<br />
valor a isso, mas é desse material humano que compõe<br />
a narrativa única da qual todos fazemos parte<br />
que é feito o museu. Histórias comuns de gente anônima,<br />
que não precisa de nenhuma notoriedade para<br />
integrar a <strong>memória</strong> social.<br />
O museu prima pelo escorregadio da vida, por aquilo<br />
que as lembranças têm de intangível. Afinal, o que<br />
leva as pessoas a querer contar suas histórias? Para<br />
Gustavo Ribeiro Sanchez, responsável pelo acervo há<br />
três anos e meio, um dos motivos é a “efemeridade da<br />
existência humana, a agonia de sermos passageiros”.<br />
Desejo de se eternizar, urgência de reflexão sobre o<br />
passado, nostalgia: são incontáveis os porquês e, no<br />
Museu da Pessoa, essas interrogações são reduzi<strong>das</strong> a<br />
uma certeza: todos eles são importantes.<br />
É impossível ignorar, porém, que a história seja uma<br />
ação que se dá no presente. Por isso, os documentos,<br />
as fotos, os depoimentos em vídeo e os textos transcritos<br />
do museu não são – ainda bem! – capazes de<br />
abarcar a <strong>memória</strong> inteira. Pedaços dela ficam elípticos<br />
num olhar cabisbaixo, num estalar de dedos, em<br />
toda uma conotação corporal que fala mais do que a<br />
oralidade. “Memória não é lembrar tudo, ela é muito<br />
mais esquecimento”, opina Sanchez.<br />
28 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 29
Dona Neuza conta suas histórias <strong>ao</strong> museu há 13 anos<br />
O que lembro tenho<br />
“Mais lembranças tenho eu do que todos os homens<br />
tiveram desde que o mundo é mundo.” Assim se define<br />
Irineo Funes, personagem do conto “Funes, o<br />
Memorioso”, de Jorge Luis Borges, que narra a agonia<br />
de um homem que se lembra de absolutamente tudo.<br />
Se o esquecimento é uma defesa para que não enlouqueçamos<br />
com nossas próprias <strong>memória</strong>s, não é por<br />
esse receio que dona Neuza, depoente do museu há<br />
mais de dez anos, deixa de relembrar suas histórias.<br />
Neuza Guerreiro de Carvalho – “Neuza-com-zê-guerreiro-de-carvalho.<br />
Gosto que escrevam completinho.<br />
Meu nome é minha identidade” – tem 80 anos e conta<br />
coisas de sua vida <strong>ao</strong> museu desde 1997. Ela começou<br />
por causa de um presente de família: um diário do avô<br />
de seu marido, datado de 1872, fez surgir a vontade<br />
de escrever a história da família. “Fui escrevendo, escrevendo,<br />
mas nunca me preocupei com o que aquilo<br />
iria virar. Para mim, era só um registro que queria deixar<br />
para os meus filhos.”<br />
De 1997 pra cá, dona Neuza acumulou mais de 15 pastas<br />
– “dessas grossonas, sabe?”, ela faz questão de frisar<br />
– só sobre sua vida, sem contar a dos parentes todos,<br />
entre avós, ir<strong>mãos</strong>, primos e agregados: registros de<br />
uma vida inteira passada a limpo. No Museu da Pessoa,<br />
ela tem dezenas de textos transcritos, fotos, documentos<br />
e um vídeo unitário sobre sua vida com duração de<br />
quatro horas. Além de banco de dados da família, esse<br />
material se transformou em documento de pesquisa<br />
histórica: “Acabei me tornando um repositório de registros.<br />
Por eles, dá para perceber quanto evoluiu ou involuiu<br />
a sociedade”. Ela conta com os olhos brilhando<br />
de satisfação que os netos, quando arrumam nova<br />
namorada, vão fuçar as pastas para impressionar<br />
a garota. “Sinto que eles têm orgulho.” O sentimento<br />
é perfeitamente justificável, afinal,<br />
quantas coisas durarão para além do<br />
nosso esquecimento?<br />
Dona Neuza afirma que não é saudosista – “As pessoas<br />
dizem que antes era melhor. Era nada!” – e quando<br />
questionada sobre o porquê de todo esse resgate ela<br />
responde: “A identidade da gente fica reparada. É uma<br />
maneira de eu me sentir enraizada”. E quando sugiro<br />
que utilize as plataformas digitais para armazenar suas<br />
histórias e livrar as tais 15 pastas do peso de uma vida<br />
inteira ela é incisiva: “Prefiro manusear”.<br />
Pode ser por necessidade, vontade, orgulho e – por<br />
que não? – um pouquinho de medo que o homem<br />
tenha criado diferentes maneiras de guardar suas<br />
lembranças. Não importa se representa<strong>das</strong> por tampinhas<br />
de garrafa amontoa<strong>das</strong> numa caixa de sapatos<br />
ou por uma imensa indumentária de guerra preservada<br />
em um museu, o homem é feito de tudo aquilo<br />
que tem para lembrar.<br />
Seja como for, o desejo de reter partes significativas<br />
de um período histórico ou contexto social, <strong>ao</strong> menos<br />
entre as paredes do Museu da Pessoa, continuará<br />
resguardado nas sagas dos Josés, <strong>das</strong> Marias e dos<br />
Raimundos de um Brasil que acontece todos os dias.<br />
Não é por acaso que Riobaldo Tartarana, personagem<br />
de Guimarães Rosa, atordoado com a urgência<br />
de possuir sua própria história, diz, em um trecho de<br />
Grande Sertão: Vere<strong>das</strong>: “O que lembro, tenho”. Essa frase<br />
deixa escapar a ideia de que lembrança guardada<br />
é posse e, além disso, não é melancolia de um passado<br />
encerrado, mas uma <strong>memória</strong> contínua, uma<br />
vida que se recobra na lembrança e, por isso mesmo,<br />
é viva. Cada fato que compõe a história é um mundo<br />
que revela outros mundos. Esse é o movimento que<br />
faz o universo girar. Como diria dona Neuza, “a história<br />
é uma coisa progressiva; enquanto eu não morrer, ela<br />
vai continuar a ser escrita”.<br />
Renata Penzani, 22 anos, é estudante do 3º ano do<br />
curso de jornalismo da Universidade Estadual Paulista<br />
(Unesp), em Bauru. Mantém o blog Furtacores em<br />
furtacores.tumblr.com.<br />
30 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 31
A paixão pelos livros<br />
Crime e castigo na trajetória de uma coleção.<br />
Por Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça | Ilustração Renan Magalhães<br />
Nenhuma manhã mais cinza do que esta sobre o lago de Lucerna. Estou no deque de um café e escrevo<br />
neste diário de capa florida que acabo de comprar. Pena. Em poucos minutos toda a beleza dos Alpes se<br />
apagará de meus olhos. Acabei de ingerir a última cápsula. Mesmo assim, aspirando o ar dessas montanhas<br />
cujos topos são páginas em branco gigantescas, estou em paz com minha consciência e meu sangue.<br />
Mal posso crer que há dois dias estava em São Paulo, fugindo para o Aeroporto Internacional de Guarulhos.<br />
Mal posso crer que acertei contas com um senhor chamado Jayme de León. Agora todos sabem que, por<br />
trás da máscara de bibliófilo e benemérito, escondia-se um homem vil, ambicioso e capaz de matar para<br />
atingir seu objetivo: formar a maior coleção particular de livros raros da América Latina. Agora que minha<br />
hora se aproxima, quero registrar neste diário a verdade de como tudo aconteceu.<br />
1.<br />
Fui uma menina cercada por uma floresta de livros. Olhando para o alto, estantes eram montanhas de papel<br />
que ameaçavam degelar a qualquer instante. Quase não via minha mãe. Ela vivia trancada no quarto de sua<br />
melancolia. Meu jovem pai, Giorgos Xenakis, era um amante dos livros e um dos maiores colecionadores<br />
do Brasil. Depois do divórcio de meus pais, nossa biblioteca encheu-se de luz. Filha única, meus dias eram<br />
povoados por histórias fantásticas e personagens enigmáticos. Eu e papai vivíamos solitários num mundo<br />
à parte. Organizávamos os livros interminavelmente, numa tranquila rotina quebrada apenas pela visita dos<br />
compradores. Era uma legião. Eu os odiava.<br />
32 Continuum Itaú Cultural<br />
ficção<br />
O senhor Jayme de León era um dos mais assíduos frequentadores<br />
de nossa casa no Jardim Europa. Meu pai<br />
o admirava. Não raras vezes eu os flagrava conversando<br />
sobre livros e mulheres. Recordo-me bem de sua figura<br />
esguia, seus olhos azul-Van Gogh devorando cada<br />
centímetro de meu corpo em flor. Como tudo aconteceu?<br />
Eu tinha apenas 13 anos. Numa noite de maio de<br />
1990, o senhor de León veio à nossa mansão para tentar<br />
convencer papai – mais uma vez – a vender-lhe os<br />
12 volumes de As Mil e Uma Noites, na célebre tradução<br />
de Antoine Galland, publicados entre 1704 e 1717.<br />
Eu estava em meu quarto no andar superior. Ouvi vozes<br />
ríspi<strong>das</strong> e tive medo. De repente, silêncio. Chamei<br />
por meu pai. Não houve resposta. Então o encontrei<br />
caído com a cabeça arrebentada sobre uma poça de<br />
sangue. Na porta que dava para a rua, vi o olhar atônito<br />
que De León me lançou antes de fugir. Numa <strong>das</strong><br />
estantes, um vazio. A coleção de Galland havia sido<br />
roubada. Mas o que o criminoso não sabia era que<br />
Giorgos havia esquecido em meu quarto, quando<br />
veio ler para mim na cama, o último tomo<br />
de As Mil e Uma Noites. O mesmo que apertei<br />
contra meu peito quando ouvi os<br />
gritos de horror.<br />
Participe com suas ideias 33
A dor e o choque da perda de<br />
meu pai provocaram lacunas em minha<br />
<strong>memória</strong>. A família me enviou para um<br />
colégio interno na Suíça. Mais tarde, já mulher<br />
feita, fui para o Rio de Janeiro e me especializei<br />
em restauração de livros na Biblioteca Nacional.<br />
Três anos depois, quando já era uma profissional<br />
destacada em minha área, recebi um convite irrecusável:<br />
trabalhar na restauração de um importante<br />
arquivo particular em São Paulo. O Instituto ***, um<br />
dos acervos particulares mais fascinantes do país,<br />
era um caixote cinza na Rua Monte Alegre, próximo<br />
à casa onde morou o poeta Haroldo de Campos. Por<br />
fora, face austera. Por dentro, o luxo de um palácio demonstrava<br />
a riqueza de seu proprietário. O salário era<br />
bom. Nossa equipe era formada por seis mulheres.<br />
Ocupávamos mesas compri<strong>das</strong> e trabalhávamos<br />
com jalecos e luvas brancas. No começo, eu me extasiei<br />
com as primeiras edições que fariam a alegria<br />
de qualquer alfarrabista. A grande biblioteca era composta<br />
de 20 mil títulos. Edições raras de Hans Staden,<br />
Jean de Léry, Machado de Assis e Guimarães Rosa e<br />
incontáveis manuscritos. Nas horas do café, nós nos<br />
perguntávamos quando, afinal, o rico colecionador<br />
apareceria para avaliar nosso trabalho.<br />
Certa tarde de inverno, eu preparava os livros do século<br />
XVII que iriam seguir para um leilão da Sotheby’s<br />
quando uma colega chamou minha atenção para uma<br />
descoberta que fizera <strong>ao</strong> resgatar os livros de uma estante<br />
que havia caído. Senti uma fria onda de arrepios<br />
quando meus olhos depararam com a familiar lombada<br />
azul puída de As Mil e Uma Noites, de Galland.<br />
34 Continuum Itaú Cultural<br />
Uma coleção que valeria, segundo minha colega, 1<br />
milhão de dólares. Valeria, não fosse por um detalhe,<br />
ela disse: a ausência do último volume. Abri um dos<br />
livros e corri meus dedos à página 13, onde tateei, no<br />
canto inferior esquerdo, as letras G e X em alto-relevo.<br />
Senti uma forte náusea. Foi assim que me vi dentro da<br />
biblioteca roubada de Jayme de León. Foi assim que<br />
deparei com a coleção que havia sido arrancada de<br />
meu pai, na última página de sua vida.<br />
2.<br />
Fomos surpreendi<strong>das</strong> num final de tarde com a chegada<br />
de De León <strong>ao</strong> Instituto ***. Os leilões europeus<br />
haviam sido lucrativos, sobretudo a venda dos manuscritos<br />
de Stephan Zweig conseguidos junto à coleção<br />
do uruguaio Dubuffet. De León queria cumprimentar<br />
sua nova equipe. Logo no primeiro encontro seus<br />
olhos azuis folhearam meu rosto, meus cabelos cautelosamente<br />
tingidos de negro. Convidou a to<strong>das</strong> para<br />
uma ceia. Uma vez no restaurante, evitei seus olhos<br />
colocando meus óculos de grau. Em nenhum momento<br />
ele suspeitou de mim. Eu já havia mudado meu<br />
sobrenome legalmente para Brand, da parte de minha<br />
mãe suíça. Pouco tempo depois, ele me convidou para<br />
jantar num restaurante grego. Aos 60 anos, ainda era<br />
um homem atraente. Limitei <strong>ao</strong> máximo informações<br />
sobre minha vida particular e meu passado. Durante<br />
nossas conversas, tal qual uma Sherazade, eu deleitava<br />
o colecionador com minhas histórias e conhecimentos<br />
sobre livros antigos e o mercado livreiro, e também<br />
com minha facilidade com línguas. Ele passou a me<br />
visitar to<strong>das</strong> as tardes no Instituto ***. No 11º encontro,<br />
confessou que estava louco por mim.<br />
Foi fácil. Atraí sua cobiça contando que ele possuía um<br />
último tesouro que poderia salvar o Instituto ***. Foi assim<br />
que o esperei ficar exatamente onde eu queria, diante da<br />
gigantesca muralha de livros no fim do corredor.<br />
3.<br />
Foi então que iniciei a segunda parte de meu plano.<br />
Apagar da existência o senhor Jayme de León, página<br />
por página.<br />
Não contarei como, anonimamente, destruí seu casamento<br />
em poucos meses, enviando fotos dele com to<strong>das</strong><br />
as garotas do Instituto ***, inclusive eu mesma; não<br />
contarei como, em sua embriaguez, gravei a confissão<br />
de seus muitos crimes e a enviei à polícia. Não contarei<br />
como ele teve de se desfazer de seus livros mais valiosos<br />
para pagar a divisão dos bens, as dívi<strong>das</strong> e os advogados.<br />
Apenas contarei que, numa noite, eu o levei <strong>ao</strong><br />
mais escuro dos corredores de sua biblioteca.<br />
Foi fácil. Atraí sua cobiça contando que ele possuía um<br />
último tesouro que poderia salvar o Instituto ***. Sua<br />
salvação estava bem ali, <strong>ao</strong> <strong>alcance</strong> de suas <strong>mãos</strong>. Foi<br />
assim que o esperei ficar exatamente onde eu queria,<br />
diante da gigantesca muralha de livros no fim do<br />
corredor. De León, agora pálida sombra decadente,<br />
perguntou-me o motivo de tanto mistério. Eu<br />
me virei e apontei para uma antiga coleção.<br />
Ele deu um sorriso, reconhecendo os<br />
volumes de As Mil e Uma<br />
Noites, e acariciou as lomba<strong>das</strong>, balançando a cabeça.<br />
Comentou que, por faltar o último volume, aquilo lhe<br />
custara uma bagatela. Quando seus olhos se voltaram<br />
para mim, empalideceram <strong>ao</strong> ver surgir, em minha mão<br />
trêmula, o último volume perdido de sua coleção. Então<br />
lhe revelei quem eu era. Sua face crispou.<br />
E a última coisa de que me lembro, antes de entrar naquele<br />
avião, são os sons horríveis de seus ossos sendo esmagados<br />
por uma avalanche de centenas de volumes.<br />
* * *<br />
Redijo estas linhas porque sei que ninguém acreditará<br />
em minha história. Os jornais brasileiros mataram<br />
minha reputação, dizendo que eu seria a assassina de<br />
meu próprio pai, e que o crime teria sido testemunhado<br />
pelo livreiro Jayme de León há exatos 20 anos. Isso<br />
é completamente inverídico. Eu, Sonya Xenakis, amava<br />
meu pai.<br />
Rodrigo Garcia Lopes é tradutor e autor de Nômada<br />
(Lamparina, 2004) e Visibilia (Travessa dos Editores,<br />
2004), e mais 11 títulos.<br />
Maurício Arruda Mendonça é poeta e dramaturgo.<br />
Participe com suas ideias 35
Um tesouro natural<br />
reportagem<br />
Coleções de ciência, <strong>ao</strong> longo da história, ajudam o homem a entender a<br />
natureza e a preservar o passado.<br />
Por Mariana Lacerda | Ilustração Cynthia Gyuru<br />
Vitor Osmar Becker nasceu em Brusque, Santa Catarina, há 66 anos. Primogênito de 17 ir<strong>mãos</strong> em uma família<br />
de pequenos agricultores, cursou o ensino fundamental em sua terra natal, onde também concluiu o curso<br />
de contabilidade. Durante os estudos, aproveitava o tempo que sobrava para ajudar seus pais na lavoura.<br />
Mais tarde, trabalhou como balconista e entregador de compras da pequena mercearia que a família havia<br />
adquirido na periferia de Brusque para, conta Becker <strong>ao</strong> se lembrar do pai, “facilitar os estudos <strong>das</strong> crianças”.<br />
Hoje, Becker é pesquisador do Departamento de Zoologia da UnB, do Museu Nacional de História Natural<br />
em Washington, DC (Smithsonian Institution) e do Museu Carnegie, em Pittsburgh, Pensilvânia, nos Estados<br />
Unidos. Ao longo dos anos de trabalho, organizou uma <strong>das</strong> melhores coleções do mundo de mariposas e<br />
borboletas (lepidópteros) noturnas da região da América Tropical e uma <strong>das</strong> mais importantes bibliotecas<br />
sobre esses espécimes. A coleção é constituída por aproximadamente 250 mil exemplares, representando<br />
25 mil espécies. A biblioteca dispõe de cerca de 5 mil títulos sobre lepidópteros, além de centenas de outros<br />
sobre áreas da biologia. Ao observar, coletar e analisar mariposas, Becker escreveu mais de cem trabalhos<br />
científicos sobre elas. A maior parte da sua produção foi publicada em revistas internacionais.<br />
Coleções de animais, plantas, artefatos, sons, línguas<br />
e dialetos são fragmentos do mundo que, guardados<br />
em ambientes organizados, devem estar prontos para<br />
responder a perguntas sobre seu funcionamento.<br />
“Para poder conhecer a vida, o homem começou a<br />
reunir em um espaço controlado fragmentos dela.<br />
Uma coleção de ciência é uma tentativa de pôr em<br />
ordem o c<strong>ao</strong>s que é característico do mundo natural”,<br />
diz o pesquisador Nelson Sanjad, coordenador de<br />
comunicação e extensão do Museu Paraense Emílio<br />
Goeldi. Localizada em Belém, a instituição é guardiã<br />
de 4,5 milhões de itens tombados, entre os acervos<br />
zoológico, botânico e geológico – além, claro, dos<br />
registros etnológicos e arqueológicos, “esses últimos<br />
sempre de caráter único e insubstituível”, diz Sanjad.<br />
O funcionamento do mundo<br />
A história <strong>das</strong> ciências e <strong>das</strong> ideias encontra entre os<br />
séculos XVII e XVIII uma nova metodologia: a da observação<br />
e, consequentemente, da comparação e da<br />
classificação. Vem desse período – o Renascimento –<br />
a noção de que fragmentos da natureza armazenados<br />
em vidros, gavetas e exsicatas [amostras de planta seca<br />
fixada em cartolina, cuja etiqueta<br />
contém informações para estudos<br />
botânicos] podem nos indicar o funcionamento<br />
do mundo, resultando em novos fármacos<br />
ou nos levando a entender a geografia<br />
<strong>das</strong> plantas – e, com ela, as possibilidades para a<br />
aclimatação de vegetais e, logo, a agricultura.<br />
Nem sempre foi assim. Antes, muito antes, colecionar<br />
animais e plantas, explica Sanjad, estava relacionado<br />
a poder e status. “Quanto mais diferente e exótica<br />
pudesse ser a coleção, mais valor ela teria.” Viajantes<br />
e desbravadores de novas terras, então, ocupavam-se<br />
de trazer <strong>ao</strong>s pés de seus reis e rainhas os mais encantadores<br />
rabos de sereia, os mais encaracolados chifres<br />
de unicórnio. Sábios, por sua vez, preenchiam compêndios<br />
com seres como a mandrágora, planta cuja<br />
raiz teria feições humanas e que, contam os relatos,<br />
chorava quando arrancada do solo.<br />
Sereias e unicórnios não foram extintos da natureza.<br />
O próprio homem, <strong>ao</strong> longo de sua existência<br />
e à custa de suas coleções, deu conta de dar sentido<br />
<strong>ao</strong> que a imaginação tinha como inexplicável: o<br />
canto que Cristóvão Colombo, <strong>ao</strong> singrar os mares,<br />
Coleções de animais, plantas, artefatos, sons, línguas e dialetos<br />
são fragmentos do mundo que, guardados em ambientes<br />
organizados, devem estar prontos para responder<br />
a perguntas sobre seu funcionamento.<br />
36 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 37
elatou ser o de uma sereia era,<br />
na verdade, o rugir de um peixe-boi.<br />
Unicórnios nunca existiram, mas sabe-se<br />
que o dente esquerdo de um macho de baleia<br />
narval cresce em formato de espiral.<br />
A partir do século XVII, nossos olhos começaram a<br />
ver o que corações e mentes resistiram por séculos a<br />
crer. O mundo, quando posto em pequenos pedaços<br />
lado a lado, não é feito de magia. Nosso olhar em relação<br />
<strong>ao</strong> universo não mudou de um dia para o outro,<br />
claro. Tampouco resultou, necessariamente, de um<br />
acréscimo de conhecimentos.<br />
Aprendemos a perceber o mundo por causa de<br />
uma ruptura (que não se deu de repente) entre o<br />
que se vê, o que os outros viam ou contavam (como<br />
Colombo que acreditou ter visto uma sereia <strong>ao</strong> cruzar<br />
o Atlântico) e aquilo que se podia imaginar. Cada vez<br />
mais, os relatos sobre as coisas da natureza passaram<br />
a se aproximar do sentido da visão. As coleções de ciência,<br />
com seus milhares de seres postos lado a lado,<br />
contribuíram enormemente para isso.<br />
Notícias de além-mar<br />
Esse percurso esteve vinculado <strong>ao</strong>s debates que aconteciam<br />
dentro da própria história natural, mas contava<br />
ainda com um fato importante: o mundo já não era o<br />
mesmo, ganhara novos contornos e dimensões.<br />
E era do outro lado do mar que chegava uma quantidade<br />
razoável de coisas e de notícias. Elas vinham<br />
<strong>das</strong> terras recém-alcança<strong>das</strong> pelos navegadores europeus.<br />
Terras que, <strong>ao</strong>s olhos dos forasteiros, se derramavam<br />
em flora exuberante, povo gentil e fauna diversa.<br />
Entender o mundo novo e o que de bom ele podia<br />
trazer em medicamentos, alimentos, ouro e prata se<br />
tornou tarefa imprescindível.<br />
Bichos e plantas passaram a fazer parte do acervo de<br />
colecionadores ricos, fascinados pelas novidades. Nos<br />
textos dos primeiros cronistas que escreveram sobre<br />
o Brasil, por exemplo, é comum a menção do envio de<br />
um ou outro exemplar de bichinho, pena ou planta <strong>ao</strong><br />
Velho Mundo. Jean de Léry, missionário francês que<br />
aqui permaneceu entre 1556 e 1558, menciona um<br />
sagui, em seu escrito intitulado Viagem à Terra do Brasil<br />
(Edusp, 1972), como “algum desses animaizinhos” que<br />
já se veem na Europa.<br />
Por outro lado, naturalistas tentaram pôr ordem no<br />
que viam e pegavam nas <strong>mãos</strong>. Caixas e mais caixas<br />
desembarcavam na Europa para que seu conteúdo se<br />
tornasse objeto de estudo. Nesse período surgiu, por<br />
assim dizer, o “viajante de gabinete”, aquele que conheceu<br />
terras e mares apenas colecionando os relatos<br />
e os objetos que chegavam <strong>das</strong> expedições e, a partir<br />
deles, formulou teorias de ciência.<br />
É nessa confusão de<br />
quereres, entre moda e ciência, que se<br />
vê surgir, no século XVII, o verbete “Cabinet<br />
d´Histoire Naturelle”, escrito por Diderot em sua<br />
Enciclopédie – um dos documentos mais representativos<br />
do pensamento no período. “O que significa<br />
uma coleção de seres naturais sem o mérito da<br />
ordem? A esses naturalistas que não têm gosto nem<br />
gênio, eu vos direi, devolveis to<strong>das</strong> as suas conchas <strong>ao</strong><br />
mar, restituais à terra suas plantas e sementes [...]. Um<br />
gabinete de história natural foi feito para instruir; [...] devemos<br />
encontrar detalhadamente e em ordem aquilo<br />
que o universo apresenta em bloco”, defendeu Diderot.<br />
Agora, sim, a natureza podia ser confinada pelo homem,<br />
e então se tornava possível observá-la sistematicamente.<br />
“E, na riqueza um pouco confusa da<br />
representação, [o mundo] pode ser analisado, reconhecido<br />
por todos e receber, assim, um nome que<br />
cada qual poderá entender”, escreveu Michel Foucault<br />
em seu livro As Palavras e as Coisas (Martins Fontes,<br />
2000) sobre a criação de Lineu, a taxonomia, ciência<br />
que descreve, identifica e classifica os organismos.<br />
Testemunho sobre o passado<br />
Hoje, uma coleção de ciência é mais do que uma<br />
tentativa de pôr em ordem e entender aquilo que<br />
pertence <strong>ao</strong> c<strong>ao</strong>s. Ela pode representar também um<br />
testemunho sobre o passado <strong>ao</strong> guardar espécies de<br />
animais e plantas que não existem mais e <strong>ao</strong> preservar<br />
artefatos de etnias e civilizações que estão desaparecendo<br />
ou já se extinguiram.<br />
Os índios caiapós, por exemplo, recorreram <strong>ao</strong> Museu<br />
Emílio Goeldi em busca de seus antigos artefatos que<br />
não são mais produzidos. O objetivo era recuperar as<br />
feições daquilo que, <strong>ao</strong> longo dos anos, ficou perdido.<br />
Becker viajou boa parte do Brasil em busca de borboletas<br />
e mariposas. Ao fazê-lo, pôde testemunhar a<br />
redução, de mais a mais, de nossas matas. “De pouco<br />
adianta guardar amostras de animais e plantas, empalhados<br />
ou secos, se nada for feito para preservá-los, vivos,<br />
na natureza”, observa. Foi assim que, em 1998, ele<br />
e sua esposa, Clemira, resolveram iniciar sua mais nova<br />
coleção: um trecho de Mata Atlântica, com mais de mil<br />
hectares de área, localizado <strong>ao</strong> sul da Bahia. Comprado<br />
com to<strong>das</strong> as economias do casal, o local constitui<br />
uma Reserva Particular do Patrimônio Natural.<br />
É lá que vivem hoje: um lugar que recebeu o nome de<br />
Instituto Uiraçu. As portas estão abertas para receber<br />
pesquisadores, que podem contar com o apoio de seis<br />
laboratórios de estudos, uma biblioteca e uma incrível<br />
coleção de mariposas e borboletas. Ela está disponível<br />
para quem desejar entender o mundo – organizado<br />
em gavetas e caixinhas nada secretas, mas também<br />
livres na mata <strong>ao</strong> redor.<br />
38 Participe com suas ideias 39
De coletores a colecionadores<br />
reportagem<br />
Conheça homens movidos pelo sentimento de preservação da <strong>memória</strong> de<br />
quem somos e do que apreciamos.<br />
Por Micheliny Verunschk | Ilustração Guilherme Kramer<br />
Tudo começou há cerca de 20 mil anos. Coletar para nossos antepassados mais distantes, os primeiros hominídeos,<br />
era sinônimo de sobreviver, pois, <strong>ao</strong> recolher sementes, moluscos, raízes e tudo o que de comestível<br />
aparecesse pela frente, os grupos nômades subsistiam, garantiam que a espécie se multiplicasse e, <strong>ao</strong> modo<br />
bíblico, povoasse o mundo. Também chamados de coletores-caçadores, seus abrigos eram fruto do trabalho<br />
de “colher” o que a natureza disponibilizava. Mal sabiam eles, aqueles avós arqueológicos, que do seu ato<br />
surgiria outro, obsessivo, dinâmico e extremamente seletivo, o ato de colecionar.<br />
Todo museu é, de fato, um monumento erigido à cata compulsiva de objetos. Há quem colecione brinquedos,<br />
fotografias, pedaços de vela. Há quem colecione canetas e cadernetas de viagem. Há quem colecione<br />
livros, histórias, imagens e palavras. E são esses colecionadores que nos interessam no momento. Esse recorte,<br />
a seu modo, não deixa de ser uma espécie de coleção, pois colecionar significa também categorizar,<br />
emoldurar numa escolha pessoal as coisas que nem sempre à primeira vista se alinham.<br />
O ato de colecionar do escritor paulistano Mário de Andrade era um exemplo de como a atividade é multifacetada.<br />
Revistas, jornais, manuscritos, obras de arte, gravuras, recortes e fotografias, entre outras coisas,<br />
se configuraram num acervo afetivo que tanto fala da sensibilidade estética do escritor quanto da atuação<br />
como protagonista no cenário cultural de sua época. Os múltiplos objetos que Mário colecionou em vida<br />
parecem gritar o sentimento de infinitude que ele anunciou em poema, além de, quem sabe, traduzir a<br />
ambição de multiplicidade de todo colecionador: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cincoenta...”. [Leia mais<br />
sobre a coleção formada pelo escritor no artigo “Na mala do turista aprendiz”, publicado no site.]<br />
40 Continuum Itaú Cultural<br />
Ao colecionismo se atrela a criação de um método. Colecionadores<br />
de livros fazem da leitura de catálogos de<br />
leilões uma obrigação, e bookdealers procuram os livros<br />
que lhes interessam.<br />
Homem de livros<br />
O bibliófilo brasileiro José Mindlin, falecido no ano<br />
passado, começou a colecionar palavras ainda criança:<br />
<strong>ao</strong>s 13 anos adquiriu uma edição rara do livro Discours<br />
sur L’Histoire Universelle, de Jacques-Bénigne Bossuet,<br />
um dos principais teóricos do absolutismo francês.<br />
Ao final da vida, Mindlin havia reunido um fantástico<br />
acervo de cerca de 40 mil obras, incluindo livros, manuscritos,<br />
relatos e iconografia, entre outros.<br />
Segundo Cristina Antunes, curadora da Biblioteca<br />
José e Guita Mindlin, em São Paulo, desde 1980, para<br />
o bibliófilo colecionar livros era uma paixão que decorria<br />
do prazer e do amor à leitura. Ela relembra<br />
que “Mindlin costumava classificar a biblioteca<br />
de indisciplinada, uma vez que muitos dos<br />
livros chegaram até lá em decorrência do<br />
gosto literário de seu dono. O processo<br />
da busca pelo livro<br />
certamente lhe era mais excitante do que ver o livro<br />
nas estantes de sua casa-biblioteca. Ainda assim, não<br />
ter determinado livro não era coisa que lhe tirasse o<br />
sono, de modo que essa obsessão se resume no que<br />
ele classificava de ‘loucura mansa’ ”.<br />
Ao colecionismo se atrela quase que automaticamente<br />
a criação de um método. E cada colecionador tem<br />
o seu: colecionadores de livros geralmente fazem da<br />
leitura de catálogos de leilões e de livreiros uma obrigação<br />
e muitos têm acordos com bookdealers para<br />
que estes procurem os livros que lhes interessam.<br />
Cristina Antunes sinaliza que esse não era o caso de<br />
Mindlin: “Ele mesmo procurava pelos livros que queria<br />
adquirir. Mas, pelo fato de ser mundialmente conhecido<br />
como colecionador, recebia informações e ofertas<br />
de livreiros, outros colecionadores ou proprietários de<br />
obras raras e especiais oriundos de todos os países.<br />
Mindlin costumava dizer que ‘você procura o livro e o<br />
livro procura você’ ”, conta ela.<br />
Participe com suas ideias 41
42<br />
Objeto não sacralizado<br />
O poeta paulistano Haroldo de Campos colecionava<br />
livros, bengalas e gibis do personagem Asterix.<br />
Quem conta é a pesquisadora Gênese Andrade,<br />
responsável pelo Centro de Referência Haroldo<br />
de Campos, situado na Casa <strong>das</strong> Rosas – Espaço<br />
Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em São<br />
Paulo: “Haroldo era acima de tudo um leitor. Então<br />
eu diria que era um leitor-colecionador. Ocorre que<br />
não reuniu livros para mantê-los como objetos intocáveis.<br />
Ele adquiria aqueles que lhe interessavam<br />
para suas pesquisas e reflexões. Mesmo livros raros,<br />
primeiras edições e obras artesanais eram<br />
tratados como material de trabalho, e carregavam<br />
suas anotações, demonstrando<br />
ter sido manuseados como os livros<br />
mais corriqueiros”.<br />
A biblioteca e o acervo de Campos residem na mesma<br />
instituição e são coordenados por Rahile Escaleira.<br />
A biblioteca caracteriza-se pela variedade e pelas marcas<br />
de leitura que os documentos trazem. São cerca<br />
de 20 mil volumes – a maioria deles lidos –, compostos<br />
de livros, periódicos, separatas, catálogos e guias,<br />
entre outros, além de coleções completas, caso de<br />
Signos, Debates e Estudos, to<strong>das</strong> da Editora Perspectiva,<br />
da qual o poeta foi colaborador.<br />
Gênese demonstra que o valor de uma coleção extrapola<br />
o simples objeto físico que a constitui: “Há um<br />
sabor especial em consultar os exemplares que pertenceram<br />
a Haroldo, ver o que destacou, como reagiu<br />
perante algumas obras. Suas marcas em papéis encontrados<br />
dentro dessas obras constituem marcas do<br />
tempo e do espaço em que ocorreu a leitura ou em<br />
que a obra foi adquirida”.<br />
Colecionando o abstrato<br />
Quem pensa que colecionar é matéria apenas para<br />
quem lida com o concreto deve se lembrar de que<br />
escritores colecionam palavras, imagens, histórias. É<br />
certo que para guardá-las, muitas vezes, colecionam<br />
cadernos, cadernetas, agen<strong>das</strong>. Mas nem sempre.<br />
Escritores colecionam outros escritores e escrever um<br />
poema ou um romance significa mergulhar de cabeça<br />
numa coleção abstrata feita de referências e escolhas<br />
adquiri<strong>das</strong> <strong>ao</strong> longo de uma vida.<br />
O poeta, ensaísta e editor gaúcho, radicado em São<br />
Paulo, André Dick nunca colecionou objetos no sentido<br />
estrito do termo. Autor dos livros Grafias (Instituto<br />
Estadual do Livro e Corag, 2002) e Papéis de Parede<br />
(7Letras/Funalfa Edições, 2004), ele pondera: “Nunca<br />
cheguei a exatamente colecionar ou fazer listas de<br />
imagens – no entanto, de algum modo, é uma coleção<br />
delas que acaba sustentando qualquer poesia.<br />
Creio que, de algum modo, todos os poemas sejam<br />
fragmentos de um grande poema”.<br />
O método de escrita do poeta, no entanto, revela organização,<br />
seleção e, por que não, persistência de um<br />
franco colecionador: “Costumo escrever em cadernos.<br />
Por meio de diversos fragmentos e rascunhos<br />
acabo concentrando material para selecionar<br />
o que seria interessante para algum escrito.<br />
Desse modo, os poemas ficam um tanto<br />
híbridos: não se sabe onde cada um<br />
começa ou termina”.<br />
Dick aproxima ainda o olhar colecionista do escritor<br />
<strong>ao</strong> do editor: “O escritor procura selecionar uma tradição,<br />
ou seja busca autores que possam lhe transmitir<br />
conhecimento. Com o editor, o caminho é parecido:<br />
escolher um texto consiste justamente em abrir caminhos<br />
de percepção não apenas para si mas para<br />
o leitor, que está interessado em descobrir autores<br />
e escolhas. Assim, o editor pode ser considerado um<br />
colecionador de histórias. E, nesse sentido, ele acaba<br />
sendo um criador”, conclui.<br />
Nossos antepassados certamente nunca imaginariam<br />
que ponto de refinamento a coleta de objetos alcançaria.<br />
No entanto, creio que aquilo que os movia e<br />
aquilo que nos move seja talvez a mesmíssima coisa:<br />
um sentimento de preservação, seja da <strong>memória</strong> <strong>das</strong><br />
coisas e dos lugares, seja de nós mesmos, da nossa<br />
vida, de quem somos e do que apreciamos.<br />
Participe com suas ideias 43
Encontro de colecionadores de postais publicitários, em São Paulo<br />
Várias pessoas, a mesma mania<br />
Colecionar sozinho ou em grupo? Algumas coleções têm em comum a<br />
tendência de gerar clubes e associações de colecionadores.<br />
Por Fernanda Castello Branco | Fotos André Seiti<br />
reportagem<br />
O homem coleciona desde a pré-história, quando começou a acumular objetos. O que era feito de forma<br />
solitária, por uma necessidade de sobrevivência, virou um hobby. E esse hobby pode unir em clubes ou<br />
associações pessoas com a mesma mania de juntar determinados objetos.<br />
Há quem prefira nem chamar de clube os grupos mais informais <strong>ao</strong>s quais pertence. “Somos apenas pessoas<br />
que têm a mesma afinidade por coleções”, explica Raquel Belchior, moradora de São Paulo, dona de 20 mil<br />
postais publicitários.<br />
Ela integra um grupo de colecionadores de postais, que costumava se reunir a cada três meses, mas atualmente<br />
se vê apenas uma vez por ano. “Participam de 30 a 35 pessoas, inclusive de outros estados”, conta<br />
Raquel, que organiza os eventos. “No começo, realizávamos no Centro Cultural São Paulo, mas depois fiz<br />
contato com umas lanchonetes. O mais legal é que é bem provável que se veja um garotinho de 8 anos<br />
trocando postais com um senhor de 70”, completa.<br />
Para a psicologia, essa cena é perfeitamente entendida. “A mania de colecionar é normal, comum a determina<strong>das</strong><br />
fases de desenvolvimento. Por exemplo: crianças colecionam papéis de carta, conchinhas, tampinhas<br />
de garrafa, álbuns de adesivos. Ao crescer, elas mudam os interesses: figurinhas, latinhas de cerveja<br />
de diferentes países, postais, caixinhas decora<strong>das</strong>, selos. Esse é um comportamento que pode perdurar ou<br />
modificar-se de uma hora para outra, sem problemas”, analisa Marina Vasconcellos, psicóloga formada pela<br />
PUC/SP, com especialização em psicodrama terapêutico.<br />
O problema não é a idade e sim<br />
saber diferenciar mania de colecionar<br />
de colecionismo. “Colecionismo ou compulsão<br />
por armazenamento é um dos sintomas<br />
do TOC (transtorno obsessivo compulsivo),<br />
em que a pessoa guarda coisas que, para os outros,<br />
parecem absolutamente dispensáveis e sem qualquer<br />
utilidade”, explica Marina.<br />
Unidos em nome da arte<br />
Uma forma de incentivar o surgimento de colecionadores<br />
é proposta pelo MAM, tanto no Rio de Janeiro<br />
quanto em São Paulo. Na capital paulista, seus clubes<br />
de colecionadores começaram nos anos 1980.<br />
Atualmente, o museu tem clubes de gravura, fotografia<br />
e design. Os sócios pagam uma anuidade que vai<br />
de 3 mil reais (fotografia e design) a 3.400 reais (gravura)<br />
e recebem, a cada ano, cinco obras concebi<strong>das</strong> por<br />
artistas selecionados pelos curadores. Os trabalhos<br />
saem com tiragens de cem exemplares e passam a<br />
integrar o acervo do museu.<br />
No total, são 275 sócios: 100 de fotografia, 100 de gravura<br />
e 75 de design, clube criado em 2010. Como o<br />
número de sócios é limitado a cem – e eles têm preferência<br />
na hora de renovar sua participação anual –,<br />
desde 2009 há uma fila de espera com 160 nomes.<br />
Sobre o perfil dos colecionadores, Fátima Pinheiro,<br />
coordenadora dos clubes, conta que é variado.<br />
“Geralmente, as pessoas têm um nível social e cultural<br />
elevado ou em ascensão, mas as profissões são<br />
diversas: médicos, advogados, fotógrafos, arquitetos,<br />
jornalistas, adidos culturais etc.”, conta. “Em relação à<br />
idade, temos sócios de 23 a 70 anos. E temos homens<br />
e mulheres na mesma proporção”, completa.<br />
Cauê Alves, curador do clube de gravura, o mais antigo,<br />
ressalta que a confiança dos sócios nos curadores é<br />
grande. “Eles não opinam sobre os artistas a ser escolhidos.<br />
Sugestões sempre chegam, mas eles confiam no<br />
museu”, explica. “Nossa função é fazer com que cada<br />
integrante do clube, tendo contato com o sistema,<br />
passe a se interessar por adquirir mais obras”, afirma.<br />
“Colecionismo ou compulsão por armazenamento é um<br />
dos sintomas do TOC, em que a pessoa guarda coisas que,<br />
para os outros, parecem absolutamente dispensáveis e sem<br />
qualquer utilidade.” (Marina Vasconcellos)<br />
Rachel Belchior, com alguns de seus 20 mil postais, e Lelê Mak<strong>ao</strong>, segurando uma de suas 700 Hello Kitty<br />
44 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 45
Parte da coleção de Lelê Nak<strong>ao</strong> integrou, no ano passado, uma exposição da marca criadora da Hello Kitty<br />
A empresária Lelê Nak<strong>ao</strong> se apaixonou pela Hello Kitty em<br />
1996. Foi apelando para a internet que ela começou uma<br />
busca que durou três anos: um protetor de orelha com a<br />
carinha da personagem.<br />
Mantendo a tradição<br />
Enquanto uns preferem definir seus grupos como algo<br />
menos formal, há clubes de colecionadores que têm<br />
eleição de diretoria e estatuto. É o caso do Clube para<br />
Colecionadores de Veículos em Miniatura (CPCVM),<br />
criado em 2007 e com eleição de presidente a cada dois<br />
anos. “Temos 380 sócios e eles não pagam anuidade”,<br />
explica Alexandre Bruno, diretor financeiro da associação.<br />
“O que fazemos é apurar os custos dos encontros<br />
para poder ratear entre os participantes”, completa.<br />
Como esses encontros não acontecem sempre, os<br />
integrantes do CPCVM têm uma chance semanal de<br />
falar sobre suas coleções. Toda terça-feira, <strong>das</strong> 19h<br />
às 23h, acontece o Autoshow, no Anhembi, em São<br />
Paulo – evento para colecionadores de veículos em<br />
tamanho normal e em miniaturas. “Esse encontro é<br />
religioso”, conta Bruno. “Mantemos um jargão, que é<br />
‘família CPCVM´. Somos como uma família, unida pelo<br />
hobby”, define.<br />
Quando se fala em coleção, a filatelia é quase sinônimo.<br />
As coleções de selo ainda fazem nascer grupos<br />
tradicionais, organizados em sociedades e federações. A<br />
Sociedade Philatélica Paulista (SPP) existe desde 1919 e<br />
conta com 500 sócios, que pagam anuidade de 60 reais a<br />
300 reais. Eles se reúnem em uma palestra mensal, no último<br />
sábado de cada mês, e também em dois leilões por<br />
mês. “Nos sábados em que não temos evento, nós nos<br />
reunimos para o nosso bate-papo filatélico”, diz Reinaldo<br />
Basile Júnior, diretor administrativo da entidade.<br />
Com sede no Rio de Janeiro e foro administrativo<br />
em Brasília, a Federação Brasileira de Filatelia (Febraf )<br />
existe desde 1976 e reúne 44 clubes e associações<br />
filatélicas de todo o país. “Não podemos ser considerados<br />
um agrupamento de clubes, mas, sim,<br />
representantes dos interesses dos clubes e associações<br />
filiados que, por sua vez, representam<br />
os interesses dos filatelistas associados a<br />
eles”, define Marcelo Studart, presidente<br />
da Federação.<br />
Protetor de orelha<br />
Muito mais que facilitar a comunicação entre colecionadores,<br />
a internet gera clubes virtuais, causando uma<br />
mudança significativa na forma pela qual os colecionadores<br />
se agrupam a pessoas com o mesmo hobby.<br />
O professor Alfredo Manhães, de Macaé (RJ), coleciona<br />
brinquedos antigos nacionais e estrangeiros. E os<br />
grupos dos quais faz parte são todos virtuais. “Integro<br />
vários grupos on-line, fóruns e sites nacionais e estrangeiros”,<br />
diz. Apesar de participar deles, Alfredo também<br />
gosta de trocar informações com pessoas que não são<br />
associa<strong>das</strong>. “Nem todos usam a internet”, ressalta.<br />
A rede é tão útil para conectar colecionadores que atrai<br />
até quem optou por manter sua coleção de forma mais<br />
solitária, sem pertencer a grupo ou clube. A empresária<br />
Lelê Nak<strong>ao</strong> se apaixonou pela Hello Kitty em 1996 e, de<br />
lá para cá, acumulou cerca de 700 peças relaciona<strong>das</strong><br />
à personagem. E foi apelando para a internet que ela<br />
começou uma busca que durou três anos.<br />
“Levei todo esse tempo para encontrar um protetor de<br />
orelha com a carinha da Hello Kitty. Nesses três anos,<br />
Wando e sua coleção<br />
“coletiva”<br />
Provavelmente, a coleção mais popular do Brasil<br />
seja a de Wando. Ela começou, de certa forma, de<br />
uma ideia alheia: o cantor não faz parte de um<br />
grupo, mas é um grupo de fãs que alimenta o<br />
seu tão badalado acervo de calcinhas.<br />
As 17 mil calcinhas começaram a ser coleta<strong>das</strong><br />
depois do disco Tenda dos Prazeres, de 1990.<br />
“Uma calcinha parece uma tenda e, no lançamento<br />
do disco, distribuí algumas peças com<br />
meu nome gravado. Era uma ideia apenas para<br />
envolvi várias pessoas na busca e<br />
ficava horas na internet”, lembra Lelê,<br />
que acabou achando a tão sonhada peça em<br />
uma loja em Nova York, durante uma viagem.<br />
Fã-clube sem sede<br />
Se há um lugar que pode ser considerado a casa dos<br />
colecionadores, ele se chama fã-clube. E até mesmo o<br />
mais renomado fã-clube brasileiro, da banda mais famosa<br />
de todos os tempos, tem recorrido à internet para<br />
continuar na ativa. O Revolution, que tem um ca<strong>das</strong>tro<br />
de 9 mil fãs dos Beatles, além de um mailing geral com<br />
60 mil nomes, usa o e-mail para conectar os fãs.<br />
“Por causa <strong>das</strong> constantes viagens que faço para a<br />
Inglaterra, o Revolution não tem mais uma sede”, explica<br />
Marco Antônio Mallagoli, que criou o grupo em<br />
1979. “É a internet que facilita o contato com os sócios.”<br />
Mallagoli usa o e-mail para avisar os sócios sobre<br />
shows de ban<strong>das</strong> cover dos Beatles que considera<br />
boas. “O fã-clube não cobra anuidade nem mensalidade.<br />
O que fazemos é dar descontos nesses shows e<br />
eventos para quem tem ca<strong>das</strong>tro no site”, diz ele.<br />
promover o disco. Comecei a brincar dizendo<br />
que trocava uma nova por uma usada e passei a<br />
receber um número muito grande”, relembra.<br />
As calcinhas ficam guarda<strong>das</strong> no escritório do<br />
cantor e ele não se deixa fotografar com o acervo<br />
completo. “Pretendo fazer um show com to<strong>das</strong><br />
elas no cenário. Se isso for mostrado agora, perde<br />
o encanto e a curiosidade”, justifica.<br />
No cenário, sim. Como grife, não. “Se eu fizesse<br />
isso, perderia a fantasia”, diz o cantor que, a cada<br />
show, distribui cerca de 15 peças. Mesmo sem o<br />
projeto de montar uma grife, ele arrisca definir<br />
quanto vale disputar uma peça íntima com seu<br />
nome: “A mulher que não tem uma calcinha do<br />
Wando provavelmente não passou pela vida.”<br />
46 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 47
Série Encontros Inusitados, fotopinturas de Franklin Lacerda | imagens: acervo do artista<br />
Sequências e (in)consequências<br />
Produção seriada reforça vínculo entre artista e obra, além de estimular e<br />
facilitar a fruição dos trabalhos.<br />
Por Tatiana Diniz<br />
reportagem<br />
Quando a ilustradora Mariana Belém deu à luz, os seres em seus desenhos ganharam asas. Nasciam duas séries<br />
paralelas, Pássaros de Gente e Mulheres Ala<strong>das</strong>, com as quais, há três anos, a artista vem expressando os altos<br />
e baixos da experiência feminina. “São o reflexo da minha vida, da perda de liberdade que a maternidade me<br />
trouxe. Finquei os pés no chão, criei raízes, mas a cabeça e o desejo de liberdade voam no papel”, comenta.<br />
Com cores quentes, luz e força, Mariana faz eco à diversidade e à intensidade dos seus sentimentos. “Em apenas<br />
uma obra não conseguiria sintetizar o que vem aflorando em mim durante esse processo”, diz. Até hoje<br />
são mais de 20 desenhos, expostos pela primeira vez em setembro passado na coletiva 3 Lugares Diferentes,<br />
que aconteceu no Espaço Muda, no Recife.<br />
Sequência. Variação. Semelhança. Continuidade. Das pré-históricas cenas eróticas repeti<strong>das</strong> nas pinturas rupestres<br />
nordestinas às sete telas de girassóis pinta<strong>das</strong> pelo pós-impressionista holandês Vincent van Gogh, a execução<br />
seriada de obras marcou e marca as artes de todos os tempos. E se por um lado permite <strong>ao</strong> artista um envolvimento<br />
continuado com determinado estímulo criativo, por outro desperta a atenção dos colecionadores, que<br />
nas séries enxergam verdadeiros conjuntos de objetos de desejo. Mas nem tudo se resume à ideia de coleções.<br />
“A noção de objeto ‘colecionável’<br />
qualifica um resultado que alguns<br />
artistas rejeitam”, ressalta Luiz Guilherme<br />
Vergara, coordenador do curso de graduação<br />
em produção cultural do Departamento de<br />
Arte da Universidade Federal Fluminense, cofundador<br />
do Instituto Mesa e coordenador do Núcleo<br />
Experimental de Educação e Arte do MAM/RJ. De<br />
acordo com o especialista, a abordagem pode contribuir<br />
para a fruição. “As séries são jogos em que o próprio<br />
artista está construindo e desconstruindo uma<br />
gramática estética e cognitiva”, analisa. Ele lembra, porém,<br />
que há vários sentidos para a produção seriada e<br />
observa que ela se tornou constante na arte contemporânea.<br />
“Hoje, a maioria dos artistas desenvolve seus<br />
trabalhos como se fosse uma fluência criativa, com<br />
início, meio e fim. Muitas vezes, o início é bastante experimental,<br />
como algo ainda não gestado, sem que<br />
eles realmente saibam o que vai surgir”, descreve.<br />
“Entre as pulsações da criação, temos a oportunidade<br />
de ‘saltar’ de uma possibilidade a outra.” O comentário<br />
do artista visual Leopold Kunrath, de Porto Alegre,<br />
sobre sua série DesAparecido dialoga com o processo<br />
descrito por Vergara. No trabalho de Kunrath,<br />
o rosto de uma criança acompanhado da palavra<br />
“DesAparecido” é o ícone empregado no projeto seriado<br />
de ações artísticas.<br />
Ao mesclar técnicas como estêncil, colagem, ilustração,<br />
videoarte e intervenção urbana, Kunrath leva às ruas uma<br />
produção alinhada a conceitos emprestados da física<br />
quântica: “Para existir, toda matéria deve desaparecer por<br />
milionésimos de centésimos de segundo e reaparecer<br />
reorganizada”. Como “elétrons”, explica, seus trabalhos assumem<br />
“espaços intermediários do universo”. As imagens<br />
leva<strong>das</strong> a espaços públicos trazem em comum o ícone<br />
descrito acima, reproduzido em aplicações diversas.<br />
Bólides, bichos, naves<br />
Arte em série, no entanto, não deve ser necessariamente<br />
encarada como sinônimo de potencial artístico.<br />
“A busca pode ser desenvolvida em várias obras<br />
até que o artista descubra e dê por concluída aquela<br />
‘série’. Outros continuam reelaborando composições<br />
e novas estruturas que alimentam o vínculo criativo<br />
entre artista e produção: série, mas não produção em<br />
série”, enfatiza Vergara, para quem o risco <strong>das</strong> sequências<br />
é gerar acomodação, “fórmulas de sucesso”.<br />
Das cenas eróticas repeti<strong>das</strong> nas pinturas rupestres nordestinas<br />
às sete telas de girassóis pinta<strong>das</strong> por Van Gogh,<br />
a execução seriada de obras marcou e marca as artes de<br />
todos os tempos.<br />
Série DesAparecido, de Leopold Kunrath, técnica mista | imagens: acervo do artista<br />
48 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 49
Ainda assim, ele não<br />
tem dificuldades em apontar as séries<br />
que mais admira na arte contemporânea:<br />
“No Brasil, os cinecromáticos e as progressões<br />
de Abraham Palatnik; os bólides, de Oiticica; a série<br />
de bichos de Lygia Clark; os estudos sobre as<br />
rotações do quadrado, de Almir Mavignier; as monotipias<br />
sobre a boca de forno, de Carlos Vergara; as<br />
Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles; os<br />
dobráveis Des-mov-em, de Paulo Roberto Leal; a série<br />
de lonas de caminhão, de José Bechara; as naves<br />
de Ernesto Neto; e os plasmatios e sudários de José<br />
Rufino”, lista. Na cena internacional, “os autorretratos<br />
e retratos de Rembrandt; as cadeiras elétricas e as<br />
pinturas <strong>das</strong> sombras, de Andy Warhol; as diferentes<br />
variações conceituais de Sol Lewitt; e os quadrados de<br />
Joseph Albers”, completa.<br />
Baixe as calças!<br />
O deslocamento geográfico de uma ideia também<br />
alimenta a produção continuada. Barcelona, Berlim,<br />
Estocolmo, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Aix en<br />
Provence, Milão e Varsóvia são destinos para os quais<br />
Renata Faccenda já levou seu projeto En Bragas –<br />
performance itinerante e interativa na qual voluntários<br />
entram em uma cabine montada em espaço<br />
público para fazer uma foto polaroide de seu corpo.<br />
O enquadramento vai do umbigo à coxa e apenas<br />
uma condição é imposta pela artista <strong>ao</strong>s participantes:<br />
baixar as calças.<br />
Circulando pelo mundo com a cabine desde 2001,<br />
Renata gerou uma coleção com mais de 500 fotos. A<br />
série então passou de obra a matéria-prima, e outros<br />
produtos foram gerados. O primeiro foi um jogo da<br />
<strong>memória</strong> criado a partir de uma seleção de 25 imagens<br />
(também disponível em renatafaccenda.com/<br />
enbragas/bajate.html).<br />
Atualmente, a artista desenvolve a série inédita Casais<br />
Alheios: “São ampliações de pares imaginários, alheios<br />
entre si, unidos somente pela observação <strong>das</strong> fotos,<br />
por traços comuns ou totalmente díspares no tempo<br />
e no espaço”, conta. O trabalho de Renata ilustra o potencial<br />
de renovação implícito na produção seriada.<br />
Talvez por isso o formato chegue a ser adotado de forma<br />
deliberada e até conceitual por opção artística.<br />
Série En Bragas, fotografias de Renata Faccenda | imagens:<br />
acervo do artista<br />
Séries Pássaros de Gente e Mulheres Ala<strong>das</strong>, ilustrações de Mariana Belém | imagens: acervo do artista<br />
Para o pintor Rinaldo, esse potencial é evidente e capaz<br />
de otimizar os resultados. “Os desenhos e pinturas<br />
dentro do contexto seriado organizam meu potencial<br />
criador e definem melhor os objetivos da mostra”, comenta.<br />
A partir dessa percepção, há dois anos, ele desenvolve<br />
a série O Olhar Contorcido pela Úmida Razão.<br />
A abordagem vai bem além da prática sequencial,<br />
gerando uma espécie de “série de séries”: “A cada cinco<br />
desenhos em técnica mista sobre papelão, realizo<br />
uma pintura de 200 cm x 150 cm”, conta. Toda série é<br />
composta de 11 pinturas e 55 desenhos e deverá ser<br />
exposta em breve.<br />
Em alguns casos, a experimentação em torno de determinado<br />
suporte ou material é o fio condutor do surgimento<br />
de uma sequência de peças. Leda Catunda,<br />
por exemplo, concebeu obras com base em uma série<br />
de camisetas brancas, enquanto Vik Muniz dedicou<br />
parte de sua obra a uma série feita com sucata. Outras<br />
vezes, um estímulo imagético se torna a força geradora<br />
de várias peças. Foi o caso de Louise Bourgeois, que<br />
espalhou pelo mundo esculturas de aranhas gigantes,<br />
a maior delas com 9 metros de altura. Os trabalhos homenageavam<br />
a mãe da artista, por ela descrita como<br />
inteligente e protetora, e o ofício da tapeçaria transmitido<br />
por gerações como negócio da família.<br />
Encontros inusitados<br />
No sertão do Cariri cearense, uma investigação<br />
realizada por Franklin Lacerda em torno<br />
da tradicional atividade de fotopintura de retratos<br />
desvendou <strong>ao</strong> artista um universo ainda pouco<br />
conhecido. “Percebi que existe uma forte presença<br />
do imaginário local no processo de elaboração dos<br />
retratos pintados. Muitas vezes, o produto final corresponde<br />
a desejos não realizados dos retratados”, conta.<br />
Com esse mote, o artista resolveu explorar a fotopintura<br />
como “magia” capaz de realizar desejos. Há dois anos,<br />
ele desenvolve uma série de “fotografias-encontros”<br />
reunindo personagens que nunca se encontrariam<br />
na realidade. Absurdos à primeira vista, os retratos do<br />
impossível fazem parte da tradição local do Cariri: “Os<br />
clientes sempre buscaram os fotopintores na tentativa<br />
de recriar encontros com entes queridos ou com o<br />
Padre Cícero, por exemplo”, explica Franklin.<br />
Para ele, a série não tem prazo de validade: “Ainda tem<br />
muito pano pra manga”, observa. A importância da<br />
continuidade reside em assumir que o trabalho está<br />
em constante transformação. “Técnicas tão rústicas e<br />
em processo de desaparecimento por causa <strong>das</strong> novas<br />
tecnologias se renovam por esses fatores. A semelhança<br />
entre o que faço e o que os retratistas populares fazem<br />
está exatamente nesse exercício de busca pelo aprimoramento<br />
da imagem. E acaba aí também”, conclui.<br />
50 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 51
Mais de 12 mil brinquedos guardados em um apartamento na Vila Mariana, em São Paulo<br />
Ordem no c<strong>ao</strong>s<br />
Para valorizar e preservar uma coleção, seja do que for, há regras básicas<br />
como conservação e catalogação.<br />
Por Carlos Costa | Fotos André Seiti<br />
reportagem<br />
Uma coleção organizada adquire outro status. Seja de selos, brinquedos ou arte. Catalogação, conservação,<br />
prevenção do manuseio danoso, restauração dos itens danificados. Essas são algumas <strong>das</strong> diretrizes que o colecionador<br />
deve seguir se pretende que sua coleção tenha vida longa e seja valorizada. Estabelecer um recorte,<br />
desenvolver uma curadoria, perceber similaridades e mensagens entre os componentes do acervo e primar<br />
pela estética na hora de expô-los são outras normas importantes. Mas como cumprir essas determinações?<br />
Nos museus, equipes de profissionais desempenham essas funções. Restauradores, curadores e museólogos<br />
– profissionais especializados em catalogar, pesquisar, reparar e conservar – garantem que as coleções<br />
tenham valor histórico, credibilidade, consigam sobreviver à ação contínua do tempo e, por meio de publicações<br />
e exposições, possam chegar a novos olhos.<br />
Atualmente, diversos desses profissionais ampliaram a área de atuação e organizam e mantêm coleções particulares.<br />
São as leis de oferta e procura do mercado, que já deram até nome a esses conselheiros pessoais<br />
de coleções, os personal collectors.<br />
Aida Cordeiro é personal collector<br />
e atua exclusivamente como conselheira<br />
e mantenedora de coleções priva<strong>das</strong><br />
há cerca de dez anos. O trabalho nasceu da<br />
experiência em museus. Na década de 1980, ela<br />
catalogou as obras do MAC/USP. Era o momento<br />
anterior à revolução digital. Nos anos 1990, digitalizou<br />
o acervo do MAM/SP.<br />
As experiências permitiram que a profissional repetisse<br />
a tarefa em outras coleções, e, enquanto pesquisava<br />
sobre o pintor Alfredo Volpi para um catálogo, surgiu<br />
seu primeiro cliente. Assim como os que se sucederam,<br />
era uma pessoa de alta condição social que, <strong>ao</strong> longo<br />
dos anos, foi acumulando obras de arte e, em um dado<br />
momento, se viu perdido em meio à coleção. Não sabia<br />
mais o que possuía, onde estava e em que condições.<br />
Para ordenar o c<strong>ao</strong>s, Aida usou a fórmula dos museus<br />
e o primeiro passo foi fazer um inventário. Identificar,<br />
medir, fotografar, examinar e organizar a coleção em<br />
um catálogo. “Trato tudo como um objeto. Meço altura<br />
e largura, pesquiso sobre a obra em livros e catálogos, e<br />
confirmo informações sobre autoria, data, procedência.”<br />
Aida voltou às grandes instituições, convidada para<br />
informatizar a Coleção Nemirovsky, da qual algumas<br />
peças têm exibição permanente na Pinacoteca do<br />
Estado de São Paulo, e a coleção de arte da Fundação<br />
Padre Anchieta. E os clientes não paravam.<br />
Assim, ficou conhecida no circuito fechado dos colecionadores<br />
e passou a se dedicar exclusivamente a eles.<br />
Mantém atualmente uma dezena de clientes. Trabalha<br />
apenas com uma auxiliar e uma fotógrafa e desconversa<br />
sobre o valor do trabalho. “Os grandes colecionadores<br />
de arte não vivem na nossa realidade. É outro<br />
mundo. Por exemplo, os catálogos que faço para eles<br />
têm um modelo cujo álbum de couro custa 2 mil reais<br />
e cada folha impressa em papel fotográfico sai por 10<br />
reais. Há obras que valem mais que um apartamento.”<br />
Além de obras de arte, catalogou para seus clientes<br />
relógios, prataria, louça, tapetes, objetos de decoração<br />
antigos. Uma coleção, comenta, começa a existir a partir<br />
do 51º item. Mas desde o início a catalogação é importante.<br />
Assim como a conservação: deve-se sempre<br />
estar ciente de que os grandes inimigos dos objetos<br />
são a luz direta – natural ou artificial – e a umidade.<br />
Atualmente, diversos profissionais ampliaram a área de atuação<br />
e organizam e mantêm coleções particulares. São as leis de<br />
oferta e procura do mercado, que já deram até nome a esses<br />
conselheiros pessoais de coleções, os personal collectors.<br />
Para ordenar uma coleção, usa-se a mesma fórmula dos museus. O primeiro passo é um inventário<br />
52 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 53
A manutenção consome diariamente horas de trabalho: um artesanato constante Dicas de conservação não são simples. O conselho é manter objetos em boas condições<br />
No processo de catalogação, passa<br />
um pente-fino na coleção e avalia molduras,<br />
armazenamento, exposição. Pouco a<br />
pouco, peça a peça, identifica tudo. Obras em<br />
más condições são envia<strong>das</strong> para restauro. As que<br />
estão em situação de risco seguem para uma melhor<br />
condição de armazenamento. As compras passam a<br />
ser registra<strong>das</strong>, com todos os dados importantes, e a<br />
arrumação da coleção recebe atenção especial.<br />
Assim, a personal collector ensina sobre artistas, movimentos<br />
e estilos e aconselha a valorização da coleção por<br />
meio de aquisição de peças importantes para o recorte<br />
do acervo, além da democratização do acesso às obras<br />
por meio de exposições, catálogos e aparições em revistas,<br />
livros. “A circulação da obra de arte valoriza seu preço<br />
e é muito importante. Tento mostrar isso <strong>ao</strong>s colecionadores.<br />
Também cuido da parte de seguro, embalagem e<br />
transporte, para garantir que não ocorram danos.”<br />
Coletânea de brinquedos<br />
Jean Scuto coleciona brinquedos há 12 anos. Segundo<br />
a esposa, Jane, o hábito começou por prescrição médica.<br />
Scuto era um publicitário estressado e com úlcera,<br />
por isso seu médico o aconselhou a encontrar um hobby.<br />
Ele pensou sobre o tema alguns dias, até se deparar<br />
com um carro de brinquedo, de lata, fabricação japonesa,<br />
preto e no modelo dos carros de polícia de filmes, à<br />
venda. Era o mesmo modelo que tinha amado em sua<br />
infância. Comprou e descobriu um mundo mágico, de<br />
lembranças e emoções; a infância não estava perdida.<br />
Conheceu outras pessoas que colecionavam brinquedos,<br />
que buscavam em desespero algum item antigo.<br />
Especializou-se no tema. Ensinou o hobby à esposa,<br />
alugou um apartamento para guardar as peças e deixou<br />
a publicidade para viver da e para a coleção.<br />
Hoje, em um andar de um edifício na Vila Mariana,<br />
em São Paulo, guarda mais de 12 mil brinquedos.<br />
Algumas bonecas vende por mil reais. Sabe de cor<br />
ano, fabricante, modelo. Discorre sobre história contemporânea<br />
relacionando os materiais da indústria de<br />
brinquedos, os mais vendidos, os jogos, a roupa <strong>das</strong><br />
bonecas. Scuto aluga peças para gravações de filmes<br />
e propagan<strong>das</strong>; monta exposições e sonha, um dia,<br />
poder dar à coleção um local digno de exposição: “O<br />
museu de brinquedos que a cidade ainda não tem”.<br />
E a manutenção do acervo consome, diariamente, horas<br />
de trabalho. Lavar bonecas, refazer penteados, cuidar<br />
dos olhos, <strong>das</strong> roupas. Consertar mecanismos de<br />
movimentos e emissão de sons. Um artesanato constante.<br />
Dessa forma, a loja é também um hospital. O<br />
casal desenvolveu técnicas específicas e faz com que<br />
bonecas voltem à vida e carrinhos a andar. E, como<br />
regra para manutenção, apontam dois conselhos que<br />
todo adulto deve ter ouvido na infância: não molhe<br />
nem guarde com as pilhas.<br />
Restauro e conservação<br />
Sílvia Ferreira é restauradora de obras de arte. Trabalha<br />
para instituições e colecionadores privados há mais<br />
de 20 anos. Atualmente, observa que as coleções priva<strong>das</strong><br />
demandam mais trabalho. “Os colecionadores,<br />
geralmente, têm maior poder aquisitivo e podem investir<br />
em mais manutenção.”<br />
Segundo ela, o restauro implica a educação do colecionador.<br />
Depois de ver uma obra restaurada e receber<br />
os laudos que descrevem o processo, o colecionador<br />
abre os olhos para uma série de detalhes. “Aprende<br />
o que é abaloamento e craquelê, a olhar o verso <strong>das</strong><br />
pinturas, a perceber as intervenções.”<br />
Dicas de conservação não são simples de prescrever.<br />
Segundo Sílvia, cada caso merece atenção específica.<br />
“Não adianta dizer que uma tela deve ser limpa com<br />
um objeto macio, como um pincel, porque, se tem ranhuras,<br />
mesmo um pincel seco pode causar danos.<br />
Meu conselho é que conservem em boas condições,<br />
em local seguro, e chamem um profissional para avaliar<br />
o estado da obra, sempre que necessário.”<br />
Sílvia explica que estar atento <strong>ao</strong> armazenamento<br />
evita diversos acidentes, frequentes com<br />
quadros que ficam atrás de uma porta ou<br />
na altura de um móvel, como uma cadeira,<br />
que, <strong>ao</strong> encostar-se<br />
à obra, arranha ou mesmo rasga a tela. Outra dica é<br />
estar seguro de que o suporte na parede é apropriado<br />
<strong>ao</strong> peso e às dimensões da tela ou a escultura não<br />
está na passagem, sujeita a tromba<strong>das</strong> dos transeuntes.<br />
Em outras palavras, bom senso.<br />
Uma lenda que combate é que o restauro desvaloriza<br />
a obra. Segundo ela, o restauro bem feito tem efeito<br />
contrário. Por exemplo, acaba de restaurar uma tela<br />
comprada num leilão na Inglaterra que estava coberta<br />
por verniz e tinha interferências que escondiam o<br />
nome do autor. Na limpeza, retirando cama<strong>das</strong> e recuperando<br />
cores, ela resgatou a assinatura e deu à tela<br />
novo valor de mercado.<br />
Ela traz na trajetória outras histórias de resgate arqueológico,<br />
como um quadro de Lasar Segall em que<br />
conseguiu restabelecer a data original e uma pintura<br />
da escola cusquenha, em que percebeu uma intervenção<br />
para cobrir um buraco na tela, interferindo<br />
na obra original. “Desenharam um crânio onde havia<br />
apenas uma parte de uma caveira. Mudaram a obra,<br />
que pude resgatar por meio de pesquisa.”<br />
O trabalho de restauro tem duração e valor relativos,<br />
de acordo com as condições da obra. Pode durar meses<br />
e valer mais que o quadro ou ser breve e custar<br />
pouco em relação <strong>ao</strong> valor da obra. Por exemplo, a<br />
tela do leilão inglês, que tinha lance inicial de 50 mil<br />
libras, teve restauro de 4 mil reais.<br />
54 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 55
Vestir o presente com a<br />
<strong>memória</strong> do passado<br />
Roupas, sapatos e acessórios podem significar muito mais do que<br />
objetos colecionáveis. Eles são farto material para análise histórica.<br />
Por Roberta Dezan<br />
O ato de colecionar é tão velho quanto o homem. Ele atende à sua necessidade de, através do inventário,<br />
do registro, arquivamento, catalogação e outras práticas análogas, ordenar a realidade excessivamente<br />
dispersa do mundo, e, no limite desse esforço ordenador, dar um sentido à própria existência.<br />
Frederico Morais, O Colecionismo no Sistema da Arte (Soraia Cals, 2003)<br />
A moda mantém relações diretas e distintas com a palavra “coleção”. O termo pode ser empregado para determinar<br />
o conjunto de peças de vestuário e acessórios acumulados no decorrer do tempo, com a intenção<br />
de preservar a história de uma época, deixar um legado para as gerações posteriores, ou até mesmo por<br />
razões unicamente afetivas, acaso, impulso repentino ou gosto pessoal. Alguns estudiosos do colecionismo<br />
chegam a falar em obsessão, ansiedade, sublimação, compensação autogratificante e coisas do gênero.<br />
Outra interseção entre os termos talvez soe mais interessante. Hoje, quando nos referimos <strong>ao</strong> conjunto de<br />
peças cria<strong>das</strong> por um designer para determinada estação, com variações de um mesmo tema, utilizamos a<br />
palavra “coleção” para designá-lo. Essa relação elucida a inserção de um modo coletivo de trajar e diz muito<br />
sobre a sociedade e os hábitos de consumo, como os conhecemos atualmente.<br />
56 Continuum Itaú Cultural<br />
reportagem<br />
Imagem da exposição Flávio de Carvalho Desveste a Moda Brasileira da Cabeça <strong>ao</strong>s Pés – MuBE | foto: Gustavo Zylbersztajn<br />
“As roupas dançam nos cabides e depois envolvem os corpos<br />
humanos num balé que aproxima, afasta e se recria todos<br />
os dias para embalar nosso modo de vida em direção <strong>ao</strong><br />
futuro.” (Carol Garcia e Ana Paula de Miranda)<br />
A coleção de moda é um fenômeno recente e surgiu<br />
somente com o estabelecimento dos costureiros em<br />
maisons. Com a chegada da máquina de costura, em<br />
1870, as casas puderam produzir mais rapidamente e<br />
oferecer uma “coleção de modelos” ainda inéditos. “A<br />
função do costureiro, em sua natureza, era apresentar<br />
algo à elite diferente do que havia caído no gosto<br />
popular. O objetivo era distinguir os privilegiados tradicionais<br />
daqueles novos ricos, emergentes. Hoje em<br />
dia a coisa é mais complexa, e há estilos cuja intenção<br />
é exatamente uniformizar. Sendo assim, analisar uma<br />
coleção de moda nos dá a ideia de conflitos de classes,<br />
de costumes. Falar de moda não é falar exclusivamente<br />
de roupas”, explica a especialista em autonomia da<br />
moda em espaços culturais Priscila Rezende.<br />
Instrumento de documentação<br />
Se a moda, como pensa o jornalista especializado no<br />
assunto Ricardo Oliveros, “é um dos mais importantes<br />
e confiáveis documentos para entender o espírito de<br />
cada tempo”, ilustrações, registros fotográficos, croquis,<br />
vídeos, catálogos e revistas e coleções de roupa<br />
e complemento desempenham a função fundamental<br />
de atuar como materiais históricos.<br />
Esses instrumentos documentais nos permitem analisar,<br />
refletir e entender melhor as rupturas sociais e<br />
estéticas que nos trouxeram até aqui. Dessa forma,<br />
podemos compreender com mais clareza e senso<br />
crítico o que passou, a realidade de hoje e o que<br />
ainda está por vir. “As roupas dançam nos cabides<br />
e depois envolvem os corpos humanos num balé<br />
que aproxima, afasta e se recria todos os dias para<br />
embalar nosso modo de vida em direção <strong>ao</strong> futuro”,<br />
observam Carol Garcia e Ana Paula de Miranda, em<br />
Moda É Comunicação: Experiências, Memórias, Vínculos<br />
(Anhembi Morumbi, 2005).<br />
Colecionismo x consumismo<br />
A consultora de moda Gloria Kalil reforça a importância<br />
de diferenciar colecionismo de consumismo.<br />
“Normalmente colecionadores de moda são profissionais<br />
da área, pois têm como intenção primordial<br />
conservar peças representativas, símbolos de vira<strong>das</strong><br />
históricas, de transições, como no caso dos<br />
tailleurs de jérsei de Coco Chanel e de peças de<br />
Yves Saint Laurent. Uma mulher que compra<br />
cem pares de sapatos numa única<br />
temporada está mais para<br />
Participe com suas ideias 57
consumista do que para colecionadora”, enfatiza. O autor<br />
e professor de história da moda João Braga dá outro<br />
direcionamento à questão <strong>ao</strong> dizer que “com certeza<br />
existe uma diferença entre alguém que compra diversos<br />
pares de sapatos para consumir numa estação e um<br />
colecionador convencional. Mas se essa pessoa guarda<br />
esses sapatos com o intuito de criar uma <strong>memória</strong> já<br />
podemos falar em colecionismo, e caso ela nem os use<br />
temos o colecionismo propriamente dito”, acredita.<br />
Para Adolpho Leirner, que soma <strong>ao</strong> seu acervo diversas<br />
obras de arte de alto valor cultural e agregado, “todo<br />
colecionador reúne, em doses iguais, amor, paixão, descobertas,<br />
procura incessante, critério e racionalidade”.<br />
Colecionar é um prazer individual, uma relação de afetividade<br />
com determinados objetos. Prazer que se amplia<br />
e se renova enormemente cada vez que a coleção<br />
é exposta. “O ato de colecionar está ligado a uma conduta,<br />
a uma postura do universo do luxo, independentemente<br />
da natureza da coleção, pois está relacionado<br />
sempre <strong>ao</strong> desejo e não à necessidade. Ele envolve<br />
também um aspecto de raridade, de escassez, pois o<br />
colecionador sai à caça e costuma gastar um dinheiro<br />
considerável por aquilo que deseja”, completa Braga.<br />
Imagem da exposição Flávio de Carvalho Desveste a Moda<br />
Brasileira da Cabeça <strong>ao</strong>s Pés – MuBE | foto: Thelma Vilas Boas<br />
Para além da coleção<br />
Apesar de sua coleção não se enquadrar como algo<br />
que será fruto de estudos e análises complexas daqui a<br />
alguns anos, a mestra em ecologia e voraz consumidora<br />
de esmaltes Camila Zatz encontrou uma maneira de<br />
expor e tornar seu hobby relevante para outras pessoas:<br />
começou a escrever no blog Loucas por Esmalte.<br />
Com aproximadamente 12 mil acessos únicos por dia,<br />
o blog é escrito por Camila e mais duas colaboradoras,<br />
que testam produtos, mostram novas técnicas, discutem<br />
tendências e, claro, mostram suas coleções. As<br />
novas tecnologias possibilitaram às práticas individuais<br />
uma mudança de caráter e dimensão, tornando-as<br />
muito mais abrangentes. O veículo permitiu às colecionadoras,<br />
que juntas somam mais de 2 mil vidrinhos<br />
coloridos, dividir com o leitor algo, até o momento,<br />
estritamente particular.<br />
Compartilhar suas descobertas lhes possibilitou conhecer<br />
diversas pessoas com os mesmos interesses e<br />
até lhes rendeu consultorias para marcas de cosméticos.<br />
“As empresas percebem que temos credibilidade<br />
como consumidoras e que nossas opiniões são leva<strong>das</strong><br />
em consideração por um grande público. Sendo<br />
assim, elas acabaram criando uma maneira de entrar<br />
em contato direto com seus clientes. Algumas<br />
mandam produtos para avaliarmos, outras nos<br />
convocam para participar de pesquisas internas<br />
ou até mesmo para bate-papos informais<br />
sobre o que gostaríamos de ver<br />
no mercado”, diz Camila.<br />
Capas da publicação francesa L’Officiel – exposição L’Officiel: 90 Anos de História da Moda – Espaço Iguatemi<br />
A blogueira acredita que, apesar<br />
de a moda mudar a cada estação, algumas<br />
pessoas têm essa vontade de colecionar<br />
(ou consumir em larga escala) peças<br />
voláteis e efêmeras, sem valor documental expressivo,<br />
pois “os modismos passam mais rápido<br />
que alguns gostos pessoais”. De fato, a moda é um<br />
poderoso instrumento de inserção humana no contexto<br />
cultural e amplia as possibilidades corpóreas para<br />
além dessas peças, pelo uso de roupas e adornos que<br />
o vento não leva e o tempo não consegue apagar.<br />
Moda de museu<br />
Os museus são o desdobramento lógico <strong>das</strong> coleções<br />
de arte. À medida que crescem, elas passam a exigir<br />
espaços cada vez maiores e tecnicamente adequados<br />
e pessoal especializado, além de recursos humanos<br />
e financeiros que já não podem ser suportados e/ou<br />
administrados por seus proprietários.<br />
As roupas podem exigir mais empenho para a conservação<br />
do que muitas obras de arte – com exceção de algumas<br />
contemporâneas cria<strong>das</strong> com materiais diversos<br />
–, pois tecidos são perecíveis e não costumam resistir<br />
tão bem à ação do tempo. “O segredo do colecionismo<br />
é ter e manter, e ainda não há técnicas adequa<strong>das</strong> para<br />
conservar algumas peças de vestuário. As feitas de elastano,<br />
por exemplo, muito usa<strong>das</strong> nos anos 1980, possuem<br />
borracha na composição. Com o tempo o tecido<br />
endurece e vira pó. Ainda não se sabe <strong>ao</strong> certo como<br />
preservar essas roupas”, observa o professor Braga.<br />
Mesmo inspirando muitos cuidados e dividindo a opinião<br />
de especialistas, que divergem quanto <strong>ao</strong> fato de<br />
a moda poder ou não ser encarada como arte – devido<br />
à sua relação indissociável com o mercado –, esse<br />
tipo de coleção está gradualmente figurando no centro<br />
de alguns museus e galerias, mesmo não havendo<br />
políticas públicas adequa<strong>das</strong> com o compromisso de<br />
preservação da <strong>memória</strong> dos vestíveis.<br />
No mês de novembro de 2010, em São Paulo, três<br />
exposições com focos diferentes, porém complementares,<br />
foram a prova de que a moda está finalmente<br />
sendo entendida como cultura. A intenção comum<br />
era demonstrar por meio de capas de revista (L’Officiel:<br />
90 Anos de História da Moda), vídeos, croquis e figurinos<br />
(individual do estilista Conrado Segreto), fotografias<br />
de Bob Wolfenson, Gui Paganini e Klaus Mitteldorf,<br />
e de estudos pioneiros de Flávio de Carvalho (Flávio de<br />
Carvalho Desveste a Moda Brasileira da Cabeça <strong>ao</strong>s Pés)<br />
o transitório, o efêmero, o contingente capaz de gerar<br />
grandes inovações, impor novas exigências, mudar a<br />
direção do olhar coletivo.<br />
É sempre possível reabrir algumas portas da arte de<br />
um passado recente ou remoto e, feito isso, estabelecer<br />
a continuidade entre o que aparentemente deixou<br />
de ser e o que ainda não é. A moda tem o poder<br />
de desempenhar papel semelhante, mas, “para se legitimar<br />
como cultura, ela precisa quebrar paradigmas,<br />
assumir uma importância, um campo cultural próprio<br />
e estabelecer suas relações com o todo, não apenas<br />
com o mercado”, conclui Priscila Rezende.<br />
58 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 59
Quem dá mais?<br />
As listas de favoritos ganham força e a brincadeira de hierarquizar as coisas<br />
cresce com as redes sociais. Tem gente que passa o dia pensando nos 5<br />
melhores filmes, nas 10 melhores músicas e nos 15 melhores romances. De<br />
onde vem essa mania?<br />
Por Mariana Sgarioni<br />
reportagem<br />
Responda rápido: quais os cinco filmes que mudaram sua vida? Os cinco melhores guitarristas de todos os<br />
tempos? Os cinco principais bordões de novela que caíram na boca do povo? Os cinco livros que mais prenderam<br />
sua atenção? E as cinco pessoas que mais fizeram você sofrer? Dá para passar o dia inteiro listando<br />
os cinco melhores e os cinco piores. Os “especialistas” na brincadeira garantem que a partir de um tempo é<br />
inevitável sair dos “top five” e passar para os 10 mais, até chegar à incrível marca dos 15. “É como um vício. De<br />
repente, você se pega listando até os cinco melhores entregadores de pizza dos últimos três meses”, brinca<br />
o publicitário carioca José Gomes Navarro, 42 anos, um listeiro convicto.<br />
O hábito – que se tornou mania compulsiva – começou, segundo Gomes, quando leu o livro Alta Fidelidade<br />
(Rocco, 1998), do inglês Nick Hornby, lá pelos idos de 1999. O personagem principal, Rob Fleming, é dono<br />
de uma loja decadente de discos em Londres e tem obsessão por listas. Ele acaba de tomar um fora da namorada,<br />
Laura, e logo no início do livro já despeja sua primeira lista, em que consta o nome <strong>das</strong> cinco ex-namora<strong>das</strong><br />
que mais o fizeram sofrer – lembrando que Laura não significava tanto assim para ele, portanto não<br />
merecia entrar nas cinco mais. Fleming se tornou um ícone pop de uma década, tanto que sua história virou<br />
filme e, mais tarde, no Brasil, tornou-se uma peça de teatro (A Vida É Cheia de Som e Fúria, 2000). “Muita gente<br />
diz que essas escolhas, listas e tais são coisas de americano, sempre querendo competir, mas, estranhamente,<br />
o livro que mais celebra a cultura pop em geral, e listas em particular, Alta Fidelidade, foi escrito por um inglês”,<br />
lembra Marcelo Costa, editor do site de música Scream & Yell (screamyell.com.br) e fã de Fleming.<br />
foto: André Seiti<br />
Formadores de opinião<br />
Mais de uma década depois, os seguidores de Fleming<br />
não deixaram sua história morrer. Se ele aparecesse hoje,<br />
certamente seria blogueiro e se ocuparia de listas virtuais<br />
– embora o autor Nick Hornby já tenha declarado que<br />
seria impossível escrever esse mesmo livro ambientado<br />
nos dias atuais, uma vez que as lojas de discos como a<br />
do personagem praticamente não existem mais.<br />
“É como um vício. De repente, você se pega listando até<br />
os cinco melhores entregadores de pizza dos últimos três<br />
meses.” (José Gomes Navarro)<br />
Isso porque a internet é campo fértil para a hierarquização<br />
de nossos gostos e desgostos – começando<br />
pelo ícone Favoritos <strong>das</strong> páginas dos navegadores.<br />
Nas redes sociais, a todo momento aparecem correntes<br />
na linha dos “mais” da temporada. Atualmente,<br />
uma corrente tomou conta do Facebook, por exemplo.<br />
O texto é sempre o mesmo, só variam os itens,<br />
como livros, filmes, músicas etc.:<br />
“Não demore muito para pensar sobre isso. Quinze<br />
livros que vão sempre estar com você. Liste os primeiros<br />
quinze que você lembra em não mais do que<br />
quinze minutos. Eles não têm que estar em ordem<br />
de importância. Marque quinze amigos, incluindo eu,<br />
porque eu estou interessado em ver quais livros meus<br />
amigos escolheram.”<br />
Como usuária do Facebook, recebi alguns desses convites.<br />
Confesso que achei tão difícil que não me animei.<br />
Costa, do Scream & Yell, explica essa dificuldade:<br />
“quase todo mundo se complica quando tem de relacionar<br />
numa ordem de importância aquilo de que<br />
mais gosta. É fácil entender. Afinal, listar os melhores<br />
quer dizer que algo ou alguém será preterido, o<br />
que é chato e, na maioria <strong>das</strong> vezes, inaceitável.<br />
E, principalmente, é difícil porque as coisas são<br />
diferentes umas <strong>das</strong> outras, o que nos faz<br />
olhar cada coisa do seu jeito, e não<br />
como concorrentes”.<br />
Frame do filme Alta<br />
Fidelidade, adaptado do livro<br />
homônimo, originalmente<br />
publicado em 1995<br />
60 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 61
No caso do convite do Facebook,<br />
eu me interessei em conferir a lista<br />
alheia, em busca de boas dicas culturais,<br />
mais do que em fazer a minha própria.<br />
Portanto, além de colocar as preferências em ordem,<br />
os listeiros acabam, de certa maneira, agindo<br />
como formadores de opinião. Sobretudo quando o<br />
ambiente é uma rede social – só no Brasil, as redes<br />
atraem 29 milhões de pessoas por mês, o que quer<br />
dizer que oito em cada dez brasileiros com acesso à<br />
internet estão em algum desses sites, como Facebook<br />
ou Orkut. “Tecnologicamente, um blog tem o mesmo<br />
poder comunicativo que a CNN”, lembra o sociólogo<br />
italiano Massimo di Felice, especialista em mídias digitais<br />
e professor da ECA/USP.<br />
O multimídia Marcelo Tas é um desses formadores de<br />
opinião que não escondem seu gosto em elencar os<br />
acontecimentos. Muita gente aguarda com ansiedade<br />
suas listas. No CQC, programa comandado por ele<br />
na TV Bandeirantes, sua trupe arranca gargalha<strong>das</strong><br />
com o quadro “Top Five”, que pinça, semanalmente,<br />
a dedo, as cinco escorregadelas mais diverti<strong>das</strong> exibi<strong>das</strong><br />
na televisão. Já entraram para essa disputada lista<br />
uma repórter entrevistando pombos e a apresentadora<br />
Hebe Camargo caindo do sofá. Recentemente,<br />
Marcelo Tas elegeu as dez piores manca<strong>das</strong> do Twitter.<br />
Entre elas, o tweet de Sasha, filha de Xuxa, em que<br />
ela escreveu “sena”, em vez de “cena”, e as palavras da<br />
cantora Sandy dizendo que as vítimas do terremoto<br />
no Haiti podiam esperar, uma vez que em terras brasileiras<br />
as coisas não iam tão bem. No sentido inverso,<br />
neste ano, Tas foi incluído na lista dos cinco humoristas<br />
mais influentes do mundo, elaborada pela revista<br />
americana Foreign Policy, especializada em política.<br />
Marcelo Tas apresenta<br />
o quadro “Top Five” do<br />
programa CQC | foto:<br />
divulgação<br />
Mas que mania é essa?<br />
Muitos dos listeiros juram que esse hábito surgiu<br />
bem antes de Rob Fleming. O relações-públicas<br />
Denis Pacheco, de 27 anos, autor do blog Topismos<br />
(topismos.blogspot.com), diz que foi influenciado,<br />
sim, pelo personagem, mas que sempre teve esse<br />
hobby. “Sempre tive o hábito de fazer listas, não necessariamente<br />
listas públicas. Usava-as como forma<br />
de me organizar para ver filmes e séries, ouvir discos<br />
ou hierarquizar que livros ia ler primeiro. Anotava em<br />
bloco de notas ou agen<strong>das</strong>, somente como forma de<br />
controle”, afirma. O estudante de engenharia Daniel<br />
Souza, que pretende lançar nos próximos meses um<br />
blog só com suas listas, concorda: “Desde criança eu<br />
arrumava minhas coleções numa ordem com os itens<br />
que mais gosto em cima da pilha”.<br />
Todo listeiro que se preze tem regras para incluir (ou excluir)<br />
algo de sua lista. A maioria diz que os critérios são<br />
principalmente emocionais – o item deve ter alguma<br />
ligação com sua história de vida e sua maneira de ver o<br />
mundo. “É preciso ter uma ligação emocional comigo.<br />
Nem sempre é fácil mensurar relevância, ainda mais<br />
quando se trata de cultura pop, por isso, como assino a<br />
lista, o maior critério que utilizo é mesmo minha relação<br />
Denis Pacheco, autor do blog Topismos: listas<br />
como forma de controle | foto: André Seiti<br />
com cada um dos objetos ali mencionados. Além do<br />
critério emocional, às vezes utilizo regras mais simples<br />
como cronologia ou ordem alfabética”, explica Pacheco.<br />
Segundo o listeiro José Navarro, esses critérios são tão<br />
rígidos que, em geral, uma lista demora dias (ou meses)<br />
para ser finalizada. “Outro dia me pediram para fazer a<br />
lista <strong>das</strong> dez melhores ban<strong>das</strong> dos anos 1990, no melhor<br />
estilo Rob Fleming. Pior: tive só uma semana para<br />
entregar. Passei dias sem dormir, incluindo e excluindo<br />
itens”, lembra ele, um fanático por rock. “Cheguei à conclusão<br />
de que dez era muito pouco para uma década.<br />
Quando terminei, já fui logo avisando: tenho certeza<br />
que vou querer mudar isso mais tarde.”<br />
Os amigos dos listeiros, como esse que pediu a seleção<br />
a Navarro, já estão acostumados e acabam entendendo<br />
esse estado volúvel constante, assim como essa mania<br />
de hierarquizar tudo o tempo inteiro. “Já fui chamado<br />
de obcecado algumas (várias) vezes. Costumava andar<br />
com uma planilha de Excel no celular onde listo os filmes<br />
a que assisti, os livros que queria ler e os discos<br />
que mais gostei no último ano”, resume Pacheco.<br />
Ele acredita que depois de tantos anos passou a<br />
ser mais compreendido por amigos e familiares.<br />
“Ou então eles aprenderam a fingir<br />
muito bem”, diverte-se.<br />
62 Continuum Itaú Cultural Participe com suas ideias 63
O “dentista e desdentado” Liêdo Maranhão<br />
O memorialista do povão<br />
Liêdo Maranhão: um dentista desdentado que, <strong>ao</strong> longo de 40 anos, reuniu<br />
uma coleção de mais de 30 mil peças e histórias do povo.<br />
Por Silvia Bessa | Fotos Ricardo Labastier<br />
perfil<br />
Tem dezenas de missais em brochura austeros; réplicas de livros de catequese com sacanagens. Recordatórios<br />
de mais de mil pessoas mortas, centenas de cartões-postais, um sem-número de cordéis, assim como uma<br />
máquina enorme de madeira rústica e pesada para fabricar os tais folhetos. Edições do almanaque publicitário<br />
Biotônico Fontoura, da década de 1940, com a deliciosa narrativa do caboclo Jeca Tatuzinho, inspirado em<br />
personagem criado por Monteiro Lobato, para prevenir a doença do amarelão. Tem. “Se você reunir todos os<br />
best-sellers do Brasil, para mim, não dá um exemplar desse”, diz o proprietário do relicário, Liêdo Maranhão<br />
– dentista por formação; colecionador de objetos, expressões e costumes populares por devoção. “É uma<br />
beleza...”, admira o senhor de 85 anos. Parece saborear o patrimônio enquanto repete a frase preferida, seguida<br />
por uma sonora risada que mostra a boca banguela.<br />
“Sou dentista e desdentado. É meu marketing”, explica Liêdo, o memorialista do povão. A imagem do doutor<br />
banguela ficou mais próxima daqueles que, <strong>ao</strong> longo de 40 anos, lhe ensinaram e estimularam a preservar<br />
nas estantes e nas paredes as lembranças do tempo e de quem nele esteve. Sua coleção acumula 30 mil<br />
itens, com personalidade e passado notáveis.<br />
Amostras da Revista do Rádio<br />
dos anos 1950, com Emilinha Borba<br />
e Nelson Gonçalves formosos como nunca,<br />
ele também tem. Calendários da folhinha<br />
dos idos de 1967, panfletos com a programação<br />
do extinto cinema Art Palácio, no Recife (PE), fotografias<br />
do galã Tyrone Power tem. “Esse rapaz era o<br />
‘ai, Jesus’ <strong>das</strong> mulheres. Eu levava a namorada para<br />
o cinema e tinha de ir uma acompanhante. Chegava<br />
lá, a moça ficava com ‘ai, Jesus’ por Tyrone. Não levei<br />
mais.” E livros de receitas afrodisíacas para melhorar a<br />
potência masculina e fórmulas de remédios fitoterápicos<br />
para dezenas de enfermidades tem também.<br />
De tudo, a mais original: a coleção da história oral do<br />
povo nordestino. Registrada pelo ainda pesquisador,<br />
fotógrafo, escultor e antropólogo formado pela rotina<br />
da persistência, Liêdo Maranhão, em 31 diários. Foram<br />
escritos a próprio punho, com relatos garimpados depois<br />
de praticar a ouvidoria nas ruas durante dez anos.<br />
A história oral do Nordeste só Liêdo tem.<br />
Joe Gould brasileiro<br />
Com essa coletânea de diários, ele concretizou o sonho<br />
que o americano Joe Gould não conseguiu realizar.<br />
Conhecido boêmio de Nova York dos anos 1930 e<br />
1940, foi personagem do livro O Segredo de Joe Gould,<br />
de Joseph Mitchell (Cia. <strong>das</strong> Letras, 2003). Joe passou<br />
a vida tentando colher fragmentos do cotidiano – “a<br />
maior e mais importante história oral da humanidade”,<br />
prometia, orgulhoso.<br />
Liêdo perambulou diariamente pelo bairro de São José,<br />
no Recife, entre os anos 1960 e 1970. Tornou-se amigo<br />
de camelôs, prostitutas, cantadores, ambulantes vendedores<br />
de remédios, de ervas. Prestava atenção nas<br />
frases, decorava-as, corria para um lugar reservado, a<br />
Igreja da Penha, ali pertinho, e as colocava no papel.<br />
Amostras da coleção que conta com mais de 30 mil itens<br />
“Gosto de andar como merda na cheia, sem fazer planos”,<br />
revela. “Fico observando uma coisa, outra, ouvindo<br />
pedaços de conversas e, às vezes, faço entrevistas.<br />
Quando iniciei esse negócio, começou um boato do<br />
povo de que estava ca<strong>das</strong>trando o pessoal para mandar<br />
para as obras da Transamazônica”, lembra o homem de<br />
ouvidos e olhos indiscretos. Liêdo permanece na ativa:<br />
“Há pouco, ouvi alguém dizendo, de gozação, que o<br />
pastor estava comendo a aleluia da irmã. São expressões<br />
que marcam uma época. Não é uma beleza?!”<br />
Como Gould, Liêdo andava (e ainda anda) para cima<br />
e para baixo ouvindo o povo da cidade dele. O pernambucano<br />
escreveu à mão, com caneta, quase 4 mil<br />
linhas. A partir dos “diários de campo” – como ele os<br />
rotula – publicou 13 livros. Tudo o que colheu nas ruas,<br />
de palavras àquilo que seria quinquilharia no parecer<br />
do desinteressado, está no seu acervo. Ele guarda os<br />
diários com outras dezenas de coleções num espaço<br />
bem cuidado nos fundos da sua residência em Bairro<br />
Novo, Olinda, onde mora há 50 anos. O ambiente se<br />
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transformou em algo entre museu e galeria de arte<br />
(sim, ele possui ainda muitos quadros de pintores famosos<br />
de Pernambuco, a exemplo de João Câmara,<br />
Bajado e José Cláudio). Lá, funciona o Memorial da<br />
Cultura Popular. Dos 30 mil itens, há 15 mil cópias de<br />
fotografias. A maioria clicada por Liêdo: “Fui fazendo<br />
<strong>ao</strong>s poucos quando via alguém ou alguma coisa interessante.<br />
Só ando a pé ou de ônibus. Encostei o carro<br />
porque ele individualiza muito as pessoas”.<br />
“A coleção dele é única”, afirma Marcos Galindo Lima,<br />
doutor em história, professor da UFPE, biblioteconomista<br />
e responsável pelo projeto de digitalização do<br />
acervo de Liêdo. Ele lança uma previsão: “Ainda servirá<br />
para muitos estudos sociológicos e antropológicos”.<br />
Oitenta por cento do trabalho de digitalização já foi<br />
concluído, com recursos obtidos na Petrobras. “O que<br />
caracteriza e diferencia a coleção de Liêdo é que ele<br />
faz um registro <strong>das</strong> pessoas. Por isso, o título de ‘escriba<br />
do povo’ é a melhor definição que deram a ele”,<br />
considera Marcos Galindo.<br />
Para Liêdo não faltam adjetivos. “É a maior autoridade <strong>das</strong><br />
ruas do Recife”, já disse o diretor do Centro de Pesquisa<br />
Luso-Brasileira da Universidade de Sorbonne, em Paris,<br />
Raymond Catel. “Liêdo Maranhão é um dos maiores conhecedores<br />
da literatura de cordel do Nordeste”, avaliza<br />
o romancista Ariano Suassuna: “Com uma particularidade:<br />
enquanto todos nós, estudiosos como Diéges<br />
Júnior ou simples curiosos como eu, conhecemos ou<br />
vemos os folhetos como um bando de eruditos de gabinete,<br />
Liêdo vive e convive com todo o seu estranho,<br />
pobre, vaticinante, mágico e duro mundo”.<br />
Assim foi o princípio<br />
A paixão e a coletânea dos folhetos literários populares<br />
tiveram início em 1967, quando ele se embrenhou<br />
pelas estra<strong>das</strong> do Nordeste para conhecer mais o cangaço.<br />
O dentista quis fazer o que considerava ainda<br />
por ser feito no Brasil, no Nordeste, em Pernambuco,<br />
no Recife. A ideia de se misturar com o povo e colecionar<br />
tudo o que era pouco valorizado ou excluído<br />
surgiu numa viagem à Espanha. Na década de 1960,<br />
graduado em odontologia e comunista ligado <strong>ao</strong><br />
Movimento de Cultura Popular, resolveu viajar pela<br />
Europa. Percorreu 11 países em<br />
três anos – de carona. Passou pelo<br />
Palácio de Alhambra, em Granada, e soube<br />
do impulso que o americano Washington<br />
Irving (1783-1859), visionário que escreveu a novela<br />
Cuentos de la Alhambra, em 1829, após uma<br />
imersão na região, havia dado para ajudar a transformar<br />
o palácio numa atração turística. “Quando você<br />
volta, fica mais brasileiro. Vi que estava tudo por fazer”,<br />
conta. Mãos à obra. “Quando cheguei à praça do<br />
Mercado São José, vi meu Palácio de Alhambra”.<br />
A partir daí, vieram as visitas rotineiras à região do mercado,<br />
os diários, o garimpo de relatos, a observação<br />
dos hábitos e a coleta de objetos: da caixa de fósforos<br />
coberta por crochê cor-de-rosa <strong>ao</strong> pedaço de ferro<br />
contorcido. Porque até ferro-velho, colhido no centro<br />
do Recife, ele resolveu colecionar. “Para preservar a<br />
<strong>memória</strong> arquitetônica”, argumenta. “Visitava tudo que<br />
era ferro-velho. Gostava muito do de seu João, na Rua<br />
<strong>das</strong> Águas Verdes. Depois ele inflacionou porque um<br />
dia levei um catálogo de um prêmio que ganhei. Seu<br />
João, sabido que só, soltou esta”, conta Liêdo com sorriso<br />
no rosto: “Perguntei a ele quanto custava tal peça.<br />
Ele olhou para mim e disse: ‘Na mão do senhor, sei não.<br />
Não quero nem dar preço’ ”. Liêdo conta e, logo em<br />
seguida, ri de si mesmo. Ou dos outros. Ou dos dois.<br />
Cada peça de ferro-velho, quadro afixado na parede,<br />
fotografia, postal, xilogravura, revista ou folheto de<br />
Liêdo Maranhão tem uma história para contar. E ele é<br />
bom quando as conta porque parece se divertir antes<br />
mesmo de terminar. Há um monte de relatos dos amigos<br />
da Praça do Sebo, onde se vendem livros usados,<br />
que ajudou a fundar no centro do Recife, em 1981. Os<br />
amigos selecionavam as preciosidades. “Uma vez fui à<br />
praça e um vendedor chamado Jaime disse pra mim:<br />
‘Doutor, hoje não tem nada do gênero’. Olhei para ele,<br />
ri porque falar ‘nada do gênero’ é muito bom, mas insisti<br />
em procurar. Aí achei um livro que me interessei.<br />
Ele, então, percebeu e se adiantou: ‘Esse daí guardei<br />
para o senhor’ ”, relata Liêdo. “Não é uma beleza?”<br />
Conversar com Liêdo é se perder nas histórias, viajar<br />
nas expressões e conhecer um mundo que correu e<br />
corre fora <strong>das</strong> janelas dos automóveis e mal se ouve.<br />
Cordéis que integram a coleção<br />
História digitalizada<br />
Cerca de 25 mil itens da coleção de Maranhão<br />
já podem ser consultados na internet.<br />
As expressões e o pensamento de João Antônio<br />
de Barros – o J. Barros, poeta popular e primeiro<br />
entrevistado da coleção dos diários memorialistas<br />
de Liêdo Maranhão, em 10 de julho de 1971 –, da<br />
prostituta Maria Branquinha e do ambulante apelidado<br />
de Fazendeiro, e tudo o que foi guardado<br />
pelo pernambucano durante 40 anos farão parte<br />
do futuro. Internautas já podem consultar parte<br />
do acervo e terão oportunidade de vê-lo quase<br />
por completo em alguns cliques, ainda neste ano.<br />
Os 30 mil itens do acervo de Liêdo Maranhão, para<br />
o qual não é necessário direito autoral, têm sido<br />
digitalizados pelo projeto Memorial da Cultura<br />
Popular, coordenado pelo biblioteconomista e<br />
doutor em história Marcos Galindo Lima.<br />
Galindo e equipe passaram dois anos, 2008 e 2009,<br />
debruçados sobre a recuperação, o tratamento e a<br />
organização da coleção. Estima-se que uma média<br />
de 80% do material já foi digitalizado – algo em<br />
torno de 25 mil itens. Parte do acervo já está disponível<br />
no site do projeto (memorialpopular.org).<br />
Galindo adotou um padrão internacional de catalogação,<br />
moderno e refinado, para tornar as consultas<br />
ágeis. Responsável pelo Laboratório de Tecnologia<br />
do Conhecimento do Departamento de Ciência<br />
da Informação da UFPE, o Liber, revela que foi o<br />
próprio Liêdo quem se movimentou para tornar<br />
público e preservar o que guardou por quatro déca<strong>das</strong>.<br />
O professor espera para os próximos meses<br />
o anúncio de um novo patrocínio da Petrobras para<br />
a conclusão do projeto de digitalização.<br />
Galindo viu relíquias no acervo de Liêdo que lhe<br />
impressionaram. “As fotografias, em particular,<br />
merecem um estudo específico.” Outra menção<br />
foi para o material relativo às prostitutas dos anos<br />
1920. Um dos livros de Liêdo, no prelo, foi baseado<br />
em material reunido e trata da prostituição na<br />
área portuária do Recife. Se um dia você encontrar<br />
o colecionador, pode dar o mote da conversa.<br />
Ele adora falar de sexo e de tudo o que diga<br />
respeito <strong>ao</strong> assunto. Qualquer semelhança com o<br />
gosto popular não é mera coincidência.<br />
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PROGRAMAÇÃO ESPECIAL NA RÁDIO-WEB DO ITAÚ CULTURAL<br />
Na nova série Estéreo Saci, personalidades do meio musical apresentam<br />
especiais sobre grandes nomes da música brasileira, destacando a vida,<br />
as histórias, os trabalhos e algumas curiosidades dos homenageados.<br />
A compositora pernambucana Lulina apresenta Dolores Duran, o rapper<br />
Parteum apresenta Tom Capone e o maestro Leandro Carvalho apresenta<br />
Villa-Lobos, mas a programação não para por aí.<br />
Acesse<br />
itaucultural.org.br/estereosaci