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REVISTA QUERUBIM - UFF

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />

FACULDADE DE EDUCAÇÃO<br />

<strong>REVISTA</strong><br />

<strong>QUERUBIM</strong><br />

LETRAS – CIÊNCIAS HUMANAS – CIÊNCIAS SOCIAIS<br />

Número 13 – Ano 07<br />

Fevereiro<br />

2011<br />

N I T E R Ó I – R I O DE J A N E I R O


Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />

Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 13 – 2011 ISSN 1809-3264<br />

Página 2 de 175<br />

Revista Querubim 2011 Ano 07 nº 13 – 175 p. (Fevereiro – 2011)<br />

Rio de Janeiro: Querubim, 2011 1. Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais –<br />

Periódicos. I - Titulo: Revista Querubim Digital<br />

Conselho Científico<br />

Alessio Surian (Universidade de Padova - Italia)<br />

Carlos Walter Porto-Goncalves (<strong>UFF</strong> - Brasil)<br />

Darcilia Simoes (UERJ - Brasil)<br />

Evarina Deulofeu (Universidade de Havana - Cuba)<br />

Madalena Mendes (Universidade de Lisboa - Portugal)<br />

Vicente Manzano (Universidade de Sevilla - Espanha)<br />

Virginia Fontes (<strong>UFF</strong> - Brasil)<br />

Conselho Editorial<br />

Presidente e Editor<br />

Aroldo Magno de Oliveira<br />

Consultores<br />

Alice Akemi Yamasaki<br />

Andre Silva Martins<br />

Elanir França Carvalho<br />

Enéas Farias Tavares<br />

Guilherme Wyllie<br />

Janete Silva dos Santos<br />

João Carlos de Carvalho<br />

José Carlos de Freitas<br />

Jussara Bittencourt de Sá<br />

Luiza Helena Oliveira da Silva<br />

Marcos Pinheiro Barreto<br />

Paolo Vittoria<br />

Ruth Luz dos Santos Silva<br />

Shirley Gomes de Souza Carreira<br />

Vanderlei Mendes de Oliveira<br />

Venício da Cunha Fernandes


Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências<br />

Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 13 – 2011 ISSN 1809-3264<br />

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SUMÁRIO<br />

1 Relações entre tédio e trabalho na contemporaneidade – Adriana Aparecida Almeida de<br />

Oliveira e José Sterza Justo<br />

04<br />

2 Graciliano Ramos e os cárceres da memória – Ana Maria Abrahão S. Oliveira 10<br />

3 Fundamentos básicos da sociolinguística teórica e prática – Anselmo Pereira de Lima 15<br />

4 Globalização e associativismo: reflexões sobre uma nova prática sindical e de<br />

esquerda – Antonio Carlos Lopes Petean<br />

20<br />

5 Momentos de reflexões colaborativas em ambiente virtual: uso de estratégias<br />

textuais – Arlinda Cantero Dorsa e Danielle Bueno Fernandes Silva<br />

25<br />

6 Ciência, tecnologia e ideologia: uma relação possível? – Cézar Thadeu Pedrosa de<br />

Oliveira<br />

32<br />

7 Aprimoramento articulatório de algumas consonantes na pronúncia de anglofalantes<br />

aprendizes do português – Cirineu Cecote Stein e Rafael Alves de Oliveira<br />

39<br />

8 Compreensão responsiva leitora de alunos do 3º ano do ensino médio – Cristiane<br />

Malinoski Pianaro Angelo e Michele Kupczi<br />

45<br />

9 Um olhar sobre a poética de Maria Ângela Alvim – Danglei de Castro Pereira e Isabelle<br />

Akemi Diniz Tanji<br />

52<br />

10 UHE Belo Monte: questões políticas sobre aproveitamento hidrelétrico e<br />

desenvolvimento na Amazônia – Dion Márcio Carvaló Monteiro e Roselene de Souza<br />

Portela<br />

56<br />

11 Considerações sobre escolarização da leitura e formação do gosto do leitor<br />

Estela Natalina Mantovani Bertoletti<br />

62<br />

12 Educação diferenciada bilingue e intercultural no contexto escolar Apinayé: um olhar<br />

para o professor de língua materna e sua prática pedagogica<br />

Francisco Edviges Albuquerque, Severina Alves de Almeida, Maria José de Pinho e<br />

Eliana Henriques Moreira<br />

69<br />

13 Letramento literário numa escola de tempo integral: a formação de leitores em<br />

perspectiva – Gislene Pires de Camargos Ferreira e Maria José de Pinho<br />

76<br />

14 A educação à distância no ensino superior como instrumento de inclusão social –<br />

Hermísio Alecrim Aires, Severina Alves de Almeida e Jeane Alves de Almeida<br />

83<br />

15 Regulamentação do direito autoral na internet: normas e conceitos – Honácio Braga de<br />

Araújo, Ágnes Ravany de Sousa Meneses e Isabel Gomes e Silva<br />

90<br />

16 Planejamento educacional: o planejamento dialógico como alternativa ao projeto<br />

neoliberal – Jeane Alves de Almeida e Severina Alves de Almeida<br />

96<br />

17 Avaliação do desenvolvimento acadêmico do curso de biologia modalidade à<br />

distancia da uft: as turmas do pró-licenciatura em perspectiva – Jucilei Esteves de<br />

Macedo, Adriano Antonio Brito Darosci e Jeane Alves de Almeida<br />

109<br />

18 De identidade e de pós-modernidade: reflexões interdisciplinares – Leila Karla Morais<br />

Rodrigues Freitas<br />

115<br />

19 Ajudando a superar conflitos: a literatura infantil no processo de ensino-aprendizagem<br />

– Maurício Silva e Márcia Moreira<br />

122<br />

20 A poesia social no itinerário poético de Carlos Alberto de Assis Cavalcanti<br />

Miryan Jussara Leite Lopes e Carlos Alberto de AssisCavalcanti<br />

126<br />

21 Provocações ético-filosóficas a respeito da formação humana do professor – Pedro<br />

Braga Gomes e Ana Cristina Santos Siqueira<br />

134<br />

22 Artifícios de Mise en Abyme: a leitura em ilustrações de livros infantis –Rodrigo da<br />

Costa Araujo<br />

140<br />

23 O processo de escolarização: da emergência da classe e do currículo à maquinaria<br />

escolar – Rosa Marta Mendes Casal<br />

148<br />

24 A violência contra a mulher e a Lei Maria da Penha: um estudo teórico – Severina Alves<br />

de Almeida, Adriana Ribeiro Aguiar, Maria Antonia Almeida Climaco,<br />

Milkya Valéria Costa Batista da Silva e Odeisa Ribeiro dos Santos<br />

153<br />

25 Biblioteca viva: um relato de experiência – Silvana Aparecida Catellan Miliosi 160<br />

26 Tradução em contextos pós-coloniais: a desconstrução de uma visão metafísica –<br />

Tatiany Pertel<br />

165<br />

27 BICALHO, Gabriel ; DONADON-LEAL, José Benedito ; LEAL, Andreia Donadon ;<br />

FERREIRA, José Sebastião. Ventre de Minas: poesia. Mariana: Aldrava Letras e<br />

Artes, 2009, 124p. – José Luiz Foureaux de Souza Júnior<br />

172


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RELAÇÕES ENTRE TÉDIO E TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE<br />

Adriana Aparecida Almeida de Oliveira<br />

Bacharel em Psicologia<br />

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Assis – SP<br />

José Sterza Justo<br />

Livre-Docente em Psicologia do Desenvolvimento<br />

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho<br />

Docente do curso de graduação e pós-graduação em Psicologia<br />

UNESP – Campus de Assis – SP<br />

Resumo: O presente trabalho é uma reflexão teórica que procura discutir, a partir de autores e<br />

teorias consagradas, as possíveis relações entre o trabalho e o tédio na contemporaneidade.<br />

Diferentemente das sociedades industriais modernas, centradas principalmente na produção, as<br />

atuais são caracterizadas pela ênfase no consumo. O trabalho despojado de sentido para a existência<br />

e o consumo abdicador de ações criadoras e produtoras, tornam o sujeito apenas um organismo<br />

digestivo criando condições propícias para o aparecimento do tédio, um modo de subjetivação<br />

marcado por um estado de desinteresse pelo mundo, enfim, uma vida de baixa intensidade.<br />

Palavras-chave: Contemporaneidade; trabalho e tédio.<br />

RELATIONSHIPS BETWEEN BOREDOM AND WORK IN THE<br />

CONTEMPORANEOUSNESS<br />

Abstract: This study is a theoretical investigation which intends to discuss possible relationships<br />

between work and boredom based on notable authors and theories. Unlike modern industrial<br />

societies centered mainly in production, new societies are characterized by increased consumption.<br />

The meaningless work and non-productive and prospective consumption leads the subject to be<br />

only a digestive organ providing favorable conditions for the presence of boredom, a mode of<br />

subjectivation characterized by a status of unconcern for the world, i.e. a low-intensity lifestyle.<br />

Keywords: Contemporaneousness; work and boredom.<br />

Contemporaneidade e cultura do consumo<br />

A pós-modernidade pode ser caracterizada pela ampliação ao máximo das opções de<br />

escolhas dos indivíduos, pela valorização do I, em que o que importa é a realização pessoal<br />

imediata, não há otimismo quanto ao futuro e o que ocorre é ―sentimento de saciedade e<br />

estagnação‖ (LIPOVETSKY, 2005, p. 8).<br />

O sujeito contemporâneo, assim como a sociedade, encontra-se em constante mutação,<br />

pois como afirmam Esteves e Galvan (2006) tanto a Igreja quanto o Estado, que antes forneciam<br />

através da repressão uma certa estabilidade, são hoje representados de forma distinta da anterior.<br />

Assim, esse estado de instabilidade questiona e destrói muitos paradigmas antes amplamente aceitos<br />

como a segurança no trabalho e a estabilidade da instituição familiar, gerando o sentimento de<br />

desamparo:<br />

(...) Lugares em que o sentimento de pertencimento era tradicionalmente<br />

investido (trabalho, família, vizinhança) são indisponíveis ou indignos de<br />

confiança, de modo que é improvável que façam calar a sede por convívio ou<br />

aplaquem o medo da solidão e do abandono (BAUMAN, 2005, p.37).


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Salem (2001) afirma que a pós-modernidade instala uma nova concepção de individualismo<br />

ao despojar o indivíduo das obrigações sociais, Dufour (apud CAPOIA e CANIATO, 2006) aponta<br />

que se vive atualmente um momento inédito na história humana em que o indivíduo toma a si<br />

mesmo como referência, devido a descrença nos ideais políticos e religiosos da atualidade. Contexto<br />

esse que Lipovetsky (op.cit.) sugere como ―segunda revolução individualista". Assim: ‖Na época<br />

pós-moderna o indivíduo perdura como valor principal e, nesse sentido, seu direito de se realizar à<br />

parte do todo social mantém em curso a obra da modernidade (SALEM, 2001, p.101)‖.<br />

Bauman (2005) afirma que o sujeito contemporâneo tem como tarefa e objetivo de vida<br />

constituir uma identidade, sendo esta marco de uma libertação dos costumes tradicionais, das<br />

autoridades imutáveis, das rotinas impostas e dos axiomas. O indivíduo, cada vez mais responsável<br />

por si mesmo, se caracteriza pela falta de significado. Segundo Svendsen (2006) o sujeito não<br />

consegue obter significado pessoal: ‖(...) o significado está ligado à relação que uma pessoa<br />

motivada mantém com o mundo‖ (SVENDSEN, 2006, p.31). Em sua análise considera que o<br />

homem não consegue viver sem algum conteúdo que lhe permita constituir significado, ou seja,<br />

precisa de algo que lhe dê sentido para sua vida. Porém, com o avanço tecnológico, o sujeito pósmoderno<br />

afasta-se dessa possibilidade: ―O problema é que, cada vez mais, a tecnologia moderna<br />

nos torna consumidores e observadores passivos, e cada vez menos participantes ativos. Isso nos<br />

dá um déficit de significado‖ (idem).<br />

Na ausência de sentido, o sujeito recorre ao consumo, para que este aplaque esta falta e lhe<br />

dê uma identidade pessoal. Busca-se constantemente o novo, entretanto este sempre se torna velho<br />

e não cumpre uma função individualizante, como afirma Salem (2001, p.120): ‖Novos desejos<br />

devem despertar continuamente a atenção e o interesse dos consumidores, de modo a manter a<br />

engrenagem de um sistema que é alimentado pela insatisfação compulsória dos indivíduos‖.Sistema<br />

este que também ocasiona, segundo Lasch (apud SALEM, 2001), ―um estado de desconforto e<br />

ansiedade crônica‖, instigando as pessoas à ganância e agressividade tornando-as frágeis, passivas e<br />

dependentes.<br />

O consumo, no entanto, impossibilita a auto-individuação, visto que o consumo é<br />

impessoal por natureza e não permite ao homem a elaboração de questões existenciais básicas, tal<br />

como lembra Svendsen (2006) ao enfatizar a importância da produção de sentidos relevantes e<br />

estáveis para a vida. O consumo promove as identidades descartáveis, tornando-as efêmeras e<br />

vazias, vendendo a idéia de que se pode ser tudo o que deseja, por meio da compra de estilos de<br />

vida.<br />

O mundo do consumo se apresenta como um ―Mar de possibilidades‖ (Carvalho, 1998)<br />

entendido, sobretudo, como alternativas de escolhas dentre as variedades de mercadorias ofertadas.<br />

O próprio sujeito, constituído na onipresença do mercado, se transforma em mercadoria e se<br />

relaciona com o outro também transformado em mercadoria. Na verdade, o homem<br />

―despossuído‖, do qual fala Birman (2006), é o homem despojado de suas forças, neutralizado e<br />

substituído por uma infinidade de produtos e serviços disponíveis no mercado que fazem por ele<br />

praticamente tudo de que precisa para viver. Em suma, as liberdades e as possibilidades existentes<br />

têm como referentes principais o ―mar de mercadorias‖. Transformado em objeto e despossuído<br />

de si mesmo o homem se desvanece enquanto sujeito e perde o fio dos sentidos de sua existência.<br />

Diante de tantas possibilidades de identidades superficiais emerge o vazio depressivo.<br />

Carvalho (1998) afirma que os sujeitos permanecem desamparados, imersos nesse ―mar de<br />

possibilidades‖. Iludido sobre seu poder de decisão, o consumista, de acordo com Salem (2001),<br />

fica à deriva das lógicas de consumo e da produção de massa, além de perder um referencial estável<br />

devido a obsolescência das mercadorias.<br />

Em suma, as liberdades e as possibilidades existentes têm como referentes principais o<br />

―mar de mercadorias‖. Transformado em objeto e despossuído de si mesmo o homem se<br />

desvanece enquanto sujeito e perde o fio dos sentidos de sua existência. Afinal, além da


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possibilidade de consumir, há alguma possibilidade para o homem pós-moderno? Carvalho (1998,<br />

p.230) responde a tal questão, afirmando que: ―Basicamente tudo o que escapa à incorporação<br />

totalizante e irresistível do capital e da produção encontra-se desfocado, num processo de<br />

desinvestimento crescente", assim como reitera Bendassoli (2009, p.76): ―No fundo, a questão que<br />

atinge a todos: é a sociedade centrada no mercado que dita as regras.‖<br />

Tédio<br />

Nesse ambiente de instabilidade e consumismo, em que o ser humano não encontra<br />

segurança e sim a angústia, destaca-se uma forma de subjetivação: o tédio. Carvalho (1998) afirma<br />

que o tédio instala-se devido a um cansaço vindo pela busca de um ideal inatingível. Na atualidade o<br />

capital tornou-se um ideal supremo a ser buscado e esta busca interminável e fadada ao fracasso<br />

origina o tédio."Nasce assim a mais nova divindade contemporânea. O dinheiro, este meio de<br />

acesso ao‖ mundo maravilhoso ―(p.201), é também ele gerador de um tédio, de um cansaço que<br />

acompanha subseqüentemente cada um dos ideais inatingíveis" (CARVALHO, 1998, p.214).<br />

O tédio caracteriza-se pela apatia, desinteresse pelo mundo, impossibilidade de encontrar<br />

algo que desejamos, cansaço. Svenden (2006) reconhece a falta de significado pessoal do sujeito<br />

contemporâneo como tédio e propõe como uma das causas deste enfado a profunda<br />

autonomização do sujeito que perde qualquer referencial de limite, tornando-se valor supremo na<br />

sociedade, não reconhece nada que difira de si próprio e assim tudo torna-se igual e entediante.<br />

O tédio está circundado por uma avalanche de objetos do gozo, mas vazio de sentido. Os<br />

objetos estão aí, mas o sentido não; é a falta de sentido que torna os objetos indiferentes. O tédio<br />

diz respeito à indiferença, que é o oposto, segundo Freud (1915- 2006), tanto do amor como do<br />

ódio, porque ela não vincula. Afirma ele: ―O amor não admite apenas um, mas três opostos. Além<br />

da antítese‖ amar-odiar ―, existe a outra de‖ amar-ser-amado ―; além destas, o amar e o odiar<br />

considerados em conjunto são o oposto da condição de indiferença‖ (FREUD, 1915-2006, p.154).<br />

A saber, nessa passagem, Freud está comentando a origem das relações de objeto, na primitiva fase<br />

do narcisismo primário, e situa a indiferença em relação ao mundo como uma atitude primordial de<br />

desinteresse, presente no psiquismo do bebê. Portanto, a impulsão para o mundo, para a criação de<br />

vínculos, não é apriorística e, mais ainda, dependerá da atratividade do mundo, da sua capacidade<br />

de corresponder às buscas fundamentais da existência humana, vale dizer, não a busca de coisas,<br />

mas a busca do outro.<br />

A sociedade do consumo, como uma sociedade não vincular, como uma sociedade que<br />

procura substituir o outro por mercadorias desperta justamente, a indiferença, a falta de sentido e<br />

não o amor ou o ódio.<br />

Diante do estado subjetivo de vazio de sentido, busca-se o acúmulo de sensações e<br />

impressões. Bauman (1999) afirma que os consumidores são ―colecionadores de sensações‖, nas<br />

palavras de Salem (2001, p.125): ―(...) colecionadores de sensações cuja relação com o mundo se<br />

estabelece em torno das experiências que sirvam de alimento para a sensibilidade‖. A busca<br />

desenfreada pelas sensações é um movimento de fuga do tédio assim como a transgressão: "O tédio<br />

e a transgressão estão intimamente ligados.Tem-se a impressão de que a cura para o tédio reside em<br />

ir além do eu, de maneira cada vez mais radical, porque a transgressão põe o eu em contato com<br />

algo novo, algo diferente do mesmo que ameaça afogá-lo no tédio" (SVENDSEN, 2006, p.70).<br />

Não seria também o consumo desenfreado uma transgressão?<br />

Tédio e trabalho<br />

A cultura do consumo como um dos principais traços da contemporaneidade, assim como<br />

o tédio, têm conseqüências que abalam também a esfera do trabalho. Salem (2001) afirma que


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diferentemente das sociedades industriais modernas, centradas principalmente na produção, as<br />

atuais são caracterizadas pela ênfase no consumo: ‖Em outras palavras, enquanto as primeiras<br />

engajavam seus membros prioritariamente como produtores e soldados, as sociedades<br />

contemporâneas precisam comprometê-los como consumidores (SALEM, 2001, p.120)‖. Assim o<br />

trabalho e a produção deixam de ser o eixo principal da vida do sujeito pós-moderno, passando<br />

para segundo plano, enquanto o consumo ocupa o lugar central ofertando um ―mar de<br />

possibilidades‖ (Carvalho, 1998) de mercadorias e estilos de vida.<br />

O trabalho despojado de sentido para a existência e o consumo que dispensa<br />

ações criadoras e produtoras tornam o sujeito apenas um organismo digestivo, criando as condições<br />

propícias para o aparecimento do tédio. O trabalho entediante é tão corrosivo para as empresas que<br />

já surgem medidas para combatê-lo no ambiente de trabalho. Conforme destaca Bendassoli (2009)<br />

tédio e trabalho são antagônicos, pois o sujeito entediado não contribui para o trabalho, muito<br />

menos para o crescimento da empresa.<br />

Assim neste contexto pós-moderno faz-se necessário que a empresa tenha uma gama de<br />

alternativas que evitem tal estado. Bendassoli (2009) nomeia cinco antídotos que as organizações,<br />

principalmente por meio dos departamentos de recursos humanos, utilizam para combater o tédio:<br />

a cultura organizacional (pois esta oferece sentido ao trabalho e valoriza o trabalhador); o terror<br />

(este refere-se ao risco de se perder o emprego); o culto às sensações (frases que estimulam a<br />

aventura, a competição e a adrenalina); a insistência de que as pessoas encontrem sentido no<br />

trabalho que estão realizando; os salários e benefícios. Todo este arsenal de medidas busca<br />

convencer o sujeito da importância de seu trabalho, seja por meio da ameaça da perda de emprego,<br />

seja pelo investimento na auto-estima do empregado, seja pela promessa de realização pelo<br />

consumo. Todas estas ilusões mantêm milhares de trabalhadores entediados presos a necessidade<br />

de trabalho e consumo. Outra oferta presente é a de significado, mediante a qual as empresas<br />

buscam ofertar significado pessoal ao sujeito para que consiga assim aplacar seu tédio, porém, esta<br />

oferta deve ser comedida visto significação pessoal pode ser induzida, mas jamais assimilada como<br />

um objeto de consumo.<br />

Bendassoli (2009) diferencia trabalho e ideologia de trabalho, nesta diferenciação pode-se<br />

perceber que há também uma instância que mascara o tédio presente no primeiro, visto que este<br />

ainda é sinônimo de monotonia e baixa remuneração para muitos brasileiros. A ideologia de<br />

trabalho segundo o autor diz respeito ao conjunto de crenças da época sobre o valor do ―ganha -<br />

pão‖ e o trabalho relaciona-se às atividades práticas dos indivíduos que possui valor de troca com o<br />

empregador.Por meio da ideologia o trabalho passa a ter novas significações para o sujeito, então<br />

deixa de ser vivido como atividade repetitiva e torna-se possibilitador de autodescobertas, fonte de<br />

aprimoramento e de ―colecionamento de desafios, riscos e oportunidades‖ (Bendassolli, 2009), o<br />

mesmo sujeito colecionador de sensações (Bauman, 1999) que busca a fuga do tédio e do vazio de<br />

sentido também o faz na sua relação com o trabalho.Outra possibilidade de significado oferecida<br />

pela ideologia é apontada pelo sociólogo Ehrenberg (Apud BENDASSOLLI, 2009) que é a<br />

aproximação desta com os conteúdos ligados ao esporte, estimulando assim que os profissionais<br />

vivam em estado de caça aos desafios ocasionando estados crônicos de ansiedade e frustração, mas<br />

não de enfado.<br />

Outro aspecto do trabalho é o que Bendassoli (2009) denomina de ―reivindicações da<br />

época‖, afirmando que cada época tem um discurso oficial sobre a carreira profissional. Destaca<br />

que a atual caracteriza-se por novas práticas que sugerem rupturas radicais com um passado de<br />

práticas obsoletas, burocráticas e tradicionais. Neste discurso é possível perceber traços da cultura<br />

pós-moderna que, de acordo com Bendassoli (2009), podem ser resumidos em três premissas,<br />

sendo estas respectivamente: a carreira torna-se responsabilidade do próprio profissional, a morte<br />

do trabalho e a aceleração do tempo.


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O fim do trabalho o desloca do centro da vida fazendo com que o sujeito busque<br />

desenvolver um projeto de vida em consonância com seus próprios valores pessoais e aspirações. O<br />

trabalho deve então relacionar-se com a identidade do sujeito, é possível perceber que nesta esfera<br />

da vida também o objetivo é a constituição de uma identidade (Bauman,2005). Porém esse conceito<br />

é uma invenção moderna supondo-se que esta deve permanecer inalterável, exige-se o impossível:<br />

Ora, ao mesmo tempo em que se afirma que a carreira é uma realidade instável,<br />

sem gravidade, sujeita a rupturas, descontinuidades e fragmentações, admite-se,<br />

implicitamente, que há uma identidade que não varia, ou que, se variar, o faz<br />

apenas a título de ajustes de curso (BENDASSOLI, 2009, p.63).<br />

Bendassoli (2009) afirma que o sujeito "submetido ao discurso da identidade" pode<br />

acreditar que antes de fazer suas escolhas deve descobrir sua identidade, entretanto não percebe que<br />

esta também é algo instável e mutável.<br />

A aceleração do tempo refere-se a descartabilidade: ―O que valia ontem já não vale mais<br />

hoje. Isso significa que, a todo momento, é preciso revisar o projeto e estabelecer novas<br />

coordenadas, sem, no entanto, desviar-se do centro dos valores pessoais (BENDASSOLI, 2009,<br />

p.61)". O autor afirma que este tempo acelerado impõe aos profissionais o trabalho de Sísifo de<br />

recomeçar sempre. É possível perceber esta exigência como resultado da sociedade de consumo,<br />

que deixa o sujeito a cargo de si mesmo. Lipovetsky (Apud SALEM, 2001) afirma que o indivíduo<br />

torna-se responsável pelo próprio destino, submetido ao consumismo que lhe impõe a necessidade<br />

de fazer escolhas constantemente em sintonia com seu desejo e busca de satisfação imediata. Ao<br />

revisar constantemente seu projeto de vida, o indivíduo é tomado pela lógica da sociedade de<br />

controle que, segundo Deleuze (1992), implementa a experiência do tempo contínuo: nada se acaba,<br />

tudo permanece num constante estado de recomeço que não leva a lugar algum e sempre retorna ao<br />

ponto de partida.Trata-se de um processo de repetição que intensifica o tempo e mantém a vida<br />

sempre acelerada. Na sociedade hipercinética, nada tem permanência ou durabilidade, inclusive o<br />

próprio vínculo de trabalho ou até mesmo a identidade profissional solicitada a se reciclar<br />

continuamente em função das frenéticas mudanças tecnológicas.<br />

Bendassoli (2009) afirma que essas premissas têm a finalidade de simplificar e explicar um<br />

"conjunto amplo e díspar de fenômenos", sua finalidade é tranqüilizar e propiciar uma sensação de<br />

ordem ao trabalhador:<br />

"Por exemplo, ao instruir profissionais a cuidar de sua própria carreira, diversos<br />

consultores especializados partem do príncipio de que esta é a melhor maneira<br />

de lidar com o ambiente caótico e instável do emprego, transmitindo a seus<br />

clientes uma sensação de segurança relativa, no caso de eles estarem seguindo as<br />

prescrições - por exemplo: investindo em cursos de reciclagem, pós-graduação,<br />

coaching, mentoring, assessment ou simplesmente estando "preocupados",<br />

"antenados" (BENDASSOLI, 2009, p.61)".<br />

Estas instruções também funcionam como um remédio anti-tédio, pois ao buscar orientar<br />

o sujeito para a distância do caos, objetiva-se camuflar a condição humana na pós-modernidade,<br />

que como afirma Harvey (1998) caracteriza-se pela incorporação e aceitação do efêmero e do<br />

provisório, o tédio nesse sentido aparece como um estado subjetivo que é contrário a este<br />

movimento, pode também ser entendido como uma recusa a acompanhar o ritmo frenético da<br />

superfície da vida.<br />

Conclusão<br />

A presente reflexão teórica levantou algumas relações entre o trabalho e o tédio na<br />

contemporaneidade, procurando enfatizar o papel do consumismo. Na cultura do consumo,<br />

primeiro, o trabalho perde força, enquanto atividade básica de potencialização do sujeito, enquanto<br />

meio fundamental de sua inscrição no mundo; segundo, a passividade consumista compulsiva


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enfraquece a capacidade de o sujeito produzir sentido para a vida; terceiro, os produtos e serviços<br />

oferecidos pelo mercado são todos mediados pelo dinheiro, tornando-se abstratos e escamoteando<br />

as relações sociais neles presentes, com isso, funcionando como elemento de afastamento dos<br />

indivíduos.<br />

Solapado enquanto sujeito produtor e fragilizado nos seus vínculos de trabalho, resta ao<br />

indivíduo aferrar-se à busca de reconhecimento e visibilidade como consumidor, tornando-se uma<br />

máquina digestiva compulsiva, ou recusar sua diluição no frenesi do mercado, refugiando-se no tédio.<br />

É notável a inversão de valores ocorrida recentemente entre trabalho e consumo. Há não muito<br />

tempo atrás, a produção, o trabalho, a poupança, a ausência de dívidas eram tidas como grandes<br />

virtudes. A profissão era uma das principais insígnias do sujeito e ser um trabalhador, ainda mais<br />

aquele fiel ao patrão e à empresa, era seu bem mais precioso e o atestado principal do seu caráter.<br />

Hoje, ao contrário, em que pese a necessidade do trabalho, ele já não é uma referência nuclear do<br />

sujeito, nem seu foco identitário. Se antes éramos o que fazíamos, hoje somos o que consumimos e<br />

na volatilidade das mercadorias não se consegue experimentar alguma durabilidade ou continuidade<br />

de si mesmo.<br />

No turbilhão de excitações, de experiências passageiras e de relacionamentos fortemente<br />

mediados pelo mercado, o tédio comparece como um modo de subjetivação possível. No campo<br />

do trabalho, o tédio representa o protesto atual contra a alienação e a objetivação extremas,<br />

decorrentes de um exacerbado produtivismo que tende a substituir o homem pela máquina e<br />

mesmo quando o admite no processo de produção faz dele uma peça provisória que pode ser<br />

facilmente substituída.<br />

O tédio no trabalho pode ser tomado como falta de interesse, falta de motivação e<br />

indiferença pelo que se faz, como se faz e com quem se faz. Denuncia um trabalho reduzido à uma<br />

necessidade básica, uma necessidade imperiosa, obrigatória, porém, tão desinvestida de sentido<br />

social e pessoal que se realiza com um mínimo de implicação. Trabalho mantido como simples<br />

sobrevivência, como meio para se ter acesso àquilo que é ilusoriamente oferecido como sendo o<br />

sentido primordial da vida: comprar, consultar o manual de instrução, usar, gozar e descartar para<br />

recomeçar tudo outra vez.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BAUMAN, Z. Globalização: conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.<br />

____________ Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.<br />

BENDASSOLLI, P. F. Os fetiches da gestão. São Paulo: Idéias & Letras, 2009.<br />

BIRMAN, J. Subjetividades contemporâneas. In: Arquivos do mal-estar e da resistência. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira: 2006.<br />

CANIATO, A.M.P., CAPOIA, A. M. Narcisismo e Sociedade de Consumo. 2006. (Apresentação de<br />

Trabalho/Comunicação).In: IV Encontro Latino Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, 2006, São Paulo.Anais<br />

eletrônicos...São Paulo: Estados Gerais da Psicanálise, 2006.Disponível em:<br />

http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/ES/trabalhos.php.<br />

CARVALHO, P. R. O tédio nosso de cada dia: uma análise parcial dos processos de subjetivação da<br />

contemporaneidade.1998. 240f. Dissertação (Doutorado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo,<br />

1998.<br />

DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: 34, 1992.<br />

FREUD, S. Os instintos e suas vicissitudes. In: Edição eletrônica da obras completas de Sigmund Freud. Vol.XIV. p.129-<br />

162. Rio de Janeiro: Imago, 2006. (Originalmente publicado em 1915).<br />

___________ Luto e melancolia. In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.<br />

XIV p. 275-291. Rio de Janeiro: Imago, 1972. (Originalmente publicado em 1917).<br />

HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 1998.<br />

LIPOVETSKY, G. A Era do Vazio: Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Manole, 2005.<br />

SALEM, P. O Vazio sem Trágico: um estudo histórico sobre o tédio. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) -<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro:2001.<br />

SVENDSEN, L. Filosofia do Tédio. Tradução Rio de Janeiro: Zahar, 2006.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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GRACILIANO RAMOS E OS CÁRCERES DA MEMÓRIA<br />

Ana Maria Abrahão S. Oliveira<br />

Doutoranda em Literatura Comparada – <strong>UFF</strong><br />

Bolsista CNPq 2010-2014<br />

Resumo: O artigo intenta analisar a escritura autobiográfica de Graciliano Ramos em Memórias de<br />

cárcere (1953).Tenciona-se compreender como as memórias do Velho Graça, que foi detido como<br />

preso político durante a Ditadura de Getúlio Vargas, no Brasil da década de 1930, são escritas<br />

apenas dez anos após a soltura do escritor, que viveu todo esse tempo numa constante e<br />

angustiante hesitação até iniciar a sua obra de caráter testemunhal, elaborando uma escrita que se<br />

caracteriza, principalmente, pela necessidade e pela (im)possibilidade de representar os fatos vividos<br />

através da linguagem.<br />

Palavras-chave: escrita autobiográfica – testemunho – Graciliano Ramos<br />

Abstract: The article intends to analyze the writing of autobiographical memories Graciliano<br />

Ramos in Memórias do cárcere (1953). It is intended to understand how the memories of the Velho<br />

Graça, who are detained as a political prisoner during the dictatorship of Getúlio Vargas, in Brazil<br />

1930‘s, are written only ten years after release the writer who lived all this time on a constant and<br />

agonizing hesitation to begin this work of witnesses character, developing a writing that is<br />

characterized mainly by need and the impossibility of representing the events lived through the<br />

language.<br />

Keywords: autobiographical writing – witness – Graciliano Ramos<br />

Introdução<br />

Nietzsche não acreditava (...) que uma organização<br />

racional das relações sociais faria desaparecer,<br />

completamente, da sociedade moderna as figuras<br />

negativas da violência, opressão e<br />

experiência.(GIACOIA JR.: 2000, p. 39)<br />

(...) parecia-nos impossível preencher a distância que<br />

nós descobrimos entre a linguagem de que dispúnhamos<br />

e essa experiência que, em sua maior parte, nos<br />

ocupávamos ainda em perceber em nossos corpos.<br />

(ANTELME apud SELIGMANN-SILVA:<br />

2006, pp. 45-46)<br />

A escritura autobiográfica de Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere (1953), que foi<br />

detido como preso político, durante a Ditadura Vargas, dá-se apenas dez anos após a soltura do<br />

escritor, que viveu todo esse tempo numa constante e angustiante hesitação até iniciar a sua obra<br />

testemunhal – não obstante a insistência de amigos escritores e familiares – já com a certeza de que<br />

sua vida estava próxima do fim, elaborando uma escrita que se caracteriza, principalmente, pela<br />

necessidade e pela impossibilidade de representar os fatos vividos através da linguagem, numa


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dolorosa escritura do real, em que a experiência traumática, de acordo com a teoria freudiana, nunca<br />

é assimilada no tempo em que ocorre. (SELIGMANN-SILVA, 1999, p.40) e num exaustivo esforço<br />

em que ―a memória e o esquecimento são elementos sempre presentes.‖ (WEINRICH, 2001, p.10)<br />

As Memórias do cárcere: testemunho doloroso do passado<br />

As Memórias do cárcere, Graciliano representam não apenas o seu testemunho,mas recompõe<br />

o painel de uma época – a década de 1930 e a Ditadura Vargas. Nesse texto escrito apenas dez anos<br />

após a ocorrência dos fatos, há uma grande distância entre o eu que narra e aquele que sofreu as<br />

agruras do cárcere. É um movimento tenso entre o presente e o passado instaurando um diálogo<br />

entre o sujeito da enunciação ( o eu narrador) e o sujeito do enunciado ( o eu narrado), que é trazido<br />

à tona pelo primeiro. As Memórias iniciam-se com um capítulo que aqui denominaremos ―capítuloprefácio‖.<br />

O narrador explique por que razão titubeou tanto para iniciar a escrita de suas memórias.<br />

No decorrer da leitura da obra, podemos inferir que o cárcere é uma metáfora do país, com<br />

todas as suas desigualdades. O ―Brasil inteligente‖, os intelectuais, estavam encarcerados juntamente<br />

com criminosos dos mais diversos lugares, condenados a cumprir pena por terem praticado dos<br />

mais ―simples‖ aos mais horrendos delitos.<br />

O narrador via-se na impossibilidade de representar, através da escrita, a experiência vivida,<br />

mas, paradoxalmente, estava imbuído da necessidade de utilizar a literatura como instrumento de<br />

resistência, pois,<br />

(...) [n]a literatura de testemunho se articula: de um lado a necessidade premente<br />

de narrar a experiência vivida; do outro, a percepção tanto da insuficiência da<br />

linguagem de fatos (inenerráveis) como também – e com um sentido muito mais<br />

trágico – a percepção do caráter inimaginável dos mesmos (...) (SELIGMANN-<br />

SILVA: 2006, p. 46)<br />

O autor hesita muito antes de relatar os fatos que vivenciou e testemunhou, principalmente<br />

por ter de trilhar o caminho difícil e tortuoso da rememoração.<br />

No capítulo que já denominamos ―capítulo-prefácio‖, Graciliano expõe os motivos pelo<br />

quais hesitou tanto antes de iniciar a escrita, conferindo assim, um sentido metalinguístico à<br />

narrativa.<br />

Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos – e<br />

antes de começar digo os motivos porque silenciei e porque me decido. Não<br />

conservo notas: algumas que tomei foram inutilizadas e assim, com o decorrer<br />

do tempo, ia-me parecendo cada vez mais difícil, quase impossível, redigir essa<br />

narrativa. (RAMOS: 2001, v. 1, p.33)<br />

Num questionamento lúcido ao próprio fazer literário, nas condições em que se<br />

encontrava, já bem próximo da morte, Graciliano questiona-se quanto ao direito de escrever sobre<br />

pessoas ainda vivas com quem conviveu no cárcere. Isso havia se tornado um complicador porque<br />

não pretendia, segundo suas palavras, redigir uma ficção, o que se tornou um impasse para o<br />

escritor. Entretanto havia a necessidade de testemunhar.<br />

Também me afligiu a idéia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com<br />

os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes<br />

pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance, mas teria eu o direito de<br />

utilizá-las em história presumidamente verdadeira? Que diriam elas se se vissem<br />

impressas, realizando atos esquecidos, repetindo palavras contestáveis e<br />

obliteradas? (RAMOS: 2001, v.1, p.33)


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Diante da possibilidade de dizer o ―indizível‖, de rememorar o sofrimento de si e dos<br />

outros, o narrador até mesmo cogita fazer a opção de delegar a tarefa a outrem. ―(...) julgando a<br />

matéria superior às minhas forças, esperei que outros mais aptos se ocupassem dela.‖ (RAMOS:<br />

2001, v.1, p. 33). As Memórias do cárcere são uma obra de caráter testemunhal.<br />

Para Seligmann-Silva (1999), somente a arte pode dar conta de enfrentar o desafio de<br />

representar o indizível:<br />

O testemunho se coloca desde o início sob o signo de sua simultânea<br />

necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de realidade e o<br />

próprio testemunho enquanto narração testemunha uma falta: a cisão entre a<br />

linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (real) com o verbal.<br />

O dado inimaginável da experiência concentracionária desconstrói o maquinário<br />

da linguagem. Essa linguagem entravada, por outro lado, só pode enfrentar o<br />

real equipada com a própria imaginação: por assim dizer, só com a arte a<br />

intraduzibilidade pode ser desafiada _ mas nunca totalmente submetida. (SELIGMANN-<br />

SILVA: 1999, p. 40) grifo nosso<br />

Na literatura de testemunho, em que se pretende representar a realidade, o vivido, o que se<br />

manifesta pela intraduzibilidade, ressaltamos a importância da escrita testemunhal como um ato de<br />

comprometimento que o autor tem consigo mesmo e com a sociedade.―(...) o olhar perspicaz, coisa<br />

sempre rara, vê o que passa despercebido à maioria desatenta. Nesse caso, a verdade subjetiva de<br />

uma só testemunha poderá valer pela vontade objetiva que a História pretende guardar e<br />

transmitir.‖ (BOSI: 2008, p. 10)<br />

O escritor, quando fora conduzido ao Rio de Janeiro no porão do navio Manaus, quando<br />

juntamente com vários outros presos políticos, expressa sua necessidade visceral de escrever, de<br />

relatar aquela situação, não obstante e estar num ambiente sem higiene e sem condições mínimas de<br />

sobrevivência para o ser humano:<br />

Necessário escrever, narrar os acontecimentos em que me embaraçava (...)<br />

Indispensável fatigar-me, disciplinar o pensamento rebelde, descrever o balanço<br />

das redes, fardos humanos abatidos pelos cantos, a arquejar no enjoo, a vomitar,<br />

as feições dos meus amigos a acentuar-se pouco a pouco.(RAMOS: 2001, v. 1,<br />

p.151)<br />

Esse desejo imperioso de escrever, de testemunhar é o ponto de partida para a narrativa de<br />

Graciliano Ramos. O sofrimento em demasia, além do suportável, abre uma fenda entre o eu e o<br />

mundo. Segundo Nitschack,<br />

O cárcere e as armadilhas da memória<br />

A transformação de um sujeito de sofrimento (sujeito no sentido etimológico de<br />

‗subordinado‘) em um sujeito (no sentido enfático de ‗dono de si mesmo‘) que<br />

se apodera do mundo somente é possível, para Graciliano, no ato de significar o<br />

mundo, em outras palavras: o ato de escrever.(NITSCHACK: 2009, p. 240) grifo<br />

nosso<br />

A hesitação do narrador em escrever as suas Memórias do cárcere, cuja explicação aparece no<br />

primeiro capítulo da obra, o ―capítulo-prefácio‖, no decorrer da escrita, dilui-se e o memorialista<br />

passa a redigir como se estivesse fazendo um exercício de liberdade no seu escrever.<br />

O receio de cometer indiscrição exibindo em público pessoas que tiveram<br />

comigo convivência forçada já não me apoquenta (...) Não me agarram<br />

métodos, nada me força a exames vagarosos (...) não me obrigo a reduzir um<br />

panorama, sujeitá-los a dimensões regulares, atender ao paginador e ao horário


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do passageiro do bonde. Posso andar para a direita e para a esquerda como um<br />

vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens desprovidas de<br />

interesse, passear, correr, voltar a lugares desconhecidos. Omitirei<br />

acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se enxergasse<br />

pelos vidros pequenos de um binóculo;ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até<br />

cansar, se isto me parecer conveniente. (RAMOS: 2001, v.1, pp. 35-36)<br />

Entretanto, o narrador admite claramente que ―Liberdade completa ninguém desfruta: (...)<br />

mas nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.‖<br />

(RAMOS: 2001, v.1, p. 34) Num Estado totalitário, como na ditadura Vargas, marcado pela<br />

repressão e pela suspensão de direitos individuais e coletivos, avulta a narrativa memorialística de<br />

Graciliano Ramos, pois segundo Ginzburg, na literatura autobiográfica, questiona-se o valor do que<br />

chamamos de ―verdade‖.<br />

O estudo da autobiografia frequentemente evoca o problema da verdade.<br />

Dentro da discussão constantemente renovada sobre as relações entre realidade<br />

e ficção, hoje intensificadas pela teorização sobre o testemunho, a verdade é,<br />

muitas vezes, considerada um fator de definição de valor. (GINZBURG: 2009,<br />

p.124)<br />

Desse modo, a escrita testemunhal está diretamente ligada às forças históricas em tensão.<br />

Por isso como é possível atribuir veracidade a um relato testemunhal, que é consequência direta da<br />

distribuição dessas forças?<br />

Em cenários de luta política, o critério de atribuição de verdade a um texto é a<br />

expressão do posicionamento dentro da luta. A autobiografia pode assumir um<br />

papel de mediação, instrumento de confronto, em que a experiência individual<br />

atua como fundamento para interpretar e discutir as experiências<br />

coletivas.(GINZBURG: 2009, p. 124)<br />

Portanto, é construído um debate intelectual entre textos escritos _ depois de um contexto<br />

social conflitivo em regimes políticos ditatoriais _ que terminam por testemunhar, já com um certo<br />

distanciamento temporal, um passado caracterizado pela repressão.<br />

Graciliano escreveu durante todo o período em que esteve preso, o ato de escrever era uma<br />

necessidade visceral para ele, porém teve de se desfazer de seus escritos, o que para o autor não<br />

representou um impedimento, propriamente.<br />

Não resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de observação:<br />

num momento de aperto fui obrigado a atirá-los na água. Certamente me irão<br />

fazer falta, mas terá sido uma perda irreparável? Quase me inclino a supor que<br />

foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso a<br />

consultá-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de<br />

uma partida (...) frases autênticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que significa isso?<br />

Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se esmoreceram, deixálas<br />

no esquecimento: valiam pouco(...) Outras, porém, conservaram-se,<br />

cresceram, associaram-se e é inevitável mencioná-las. Afirmarei que sejam<br />

absolutamente exatas? Leviandade. (RAMOS: 2001, v.1, pp. 35-36)<br />

As lacunas presentes na memória evidentemente interferiram no escrever de Graciliano,<br />

mas por outro lado, o esquecimento faz-se necessário para que aflorem os elementos da memória.<br />

Nietzsche, no poema O sol está baixando, canta o esquecimento, conferindo a ele uma<br />

dimensão de liberdade, como no fragmento abaixo:<br />

Tudo o que foi difícil


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caiu em azul esquecimento<br />

ocioso está o meu barco agora<br />

Viagem e tempestade – tudo ele desaprende!<br />

Naufragaram desejos e esperança,<br />

Lisos estão a alma e o mar.<br />

(NIETZSCHE apud WEINRICH: 2001, p. 178)<br />

Os fatos passados são retomados porque a memória os retém, entretanto, ―as ideias<br />

passadas podem ser comparadas e medidas com as presentes: condição importante para conquistar<br />

experiência e saber.(...) o esquecimento faz parte da memória como seu ―defeito‖ sempre<br />

ameaçador‖(WEINRICH: 2001, p. 99) Porém, tanto para Graciliano quanto para Nietzsche, o<br />

esquecimento pôde proporcionar um certo ―alívio‖ para ―Tudo o que foi difícil‖.<br />

Referências bibliográficas:<br />

BOSI, Alfredo. ―A escrita do testemunho em Memórias do cárcere.” Revista de Estudos Avançados da<br />

USP.Volume 9, nº 23. São Paulo: jan./abr. 1995.<br />

GIACOIA JR. Oswaldo. Nietzsche. Coleção Folha Explica. São Paulo: Publifolha, 2000<br />

GINZBURG, Jaime. ―Impacto da violência e constituição do sujeito: um problema de teoria da<br />

autobiografia‖. In: GALLE, Helmut; OLMOS; Ana Cecília; KANZEPOLSKY, Adriana;IZARRA,<br />

Laura Zuntini (orgs.) Em primeira pessoa – Abordagens de uma teoria da autobiografia. São Paulo:<br />

Annablume; FAPESP; FFLCH, USP, 2009.<br />

NIETZSCHE, Friedrich. ―O sol está baixando‖ In: WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do<br />

esquecimento. Trad.: Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.<br />

NITSCHACK, Horst. ―A escrita autobiográfica de Graciliano Ramos: buscando o espaço da<br />

subjetividade‖ In: GALLE, Helmut; OLMOS; Ana Cecília; KANZEPOLSKY, Adriana;IZARRA,<br />

Laura Zuntini (orgs.) Em primeira pessoa – Abordagens de uma teoria da autobiografia. São Paulo:<br />

Annablume; FAPESP; FFLCH, USP, 2000<br />

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 37ª ed.,v. 1-2. Rio de Janeiro:Record, 2001<br />

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A literatura do trauma. Revista Cult, São Paulo, n. 23, p. 40, jun.<br />

1999.<br />

________________________ Escrituras da memória e da história. In: SELIGMANN-SILVA,<br />

Márcio. (org.) Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006.<br />

WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Trad.: Lya Luft. Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 2001.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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FUNDAMENTOS BÁSICOS DA SOCIOLINGUÍSTICA TEÓRICA E PRÁTICA<br />

Anselmo Pereira de Lima<br />

Professor Adjunto<br />

Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)<br />

Campus Pato Branco<br />

Resumo: Este texto tem por objetivo específico apresentar e discutir fundamentos básicos da<br />

Sociolinguística. Para isso, propõe e realiza um percurso de reflexão que parte de um breve resgate<br />

do Estruturalismo e do Gerativismo, passa pela própria definição do que é a Sociolinguística,<br />

explicita sua razão de ser (o porquê) até chegar a exemplos de trabalhos de pesquisa nela pautados (o<br />

como). O objetivo geral do trabalho é se constituir como convite para que leitores interessados em<br />

questões de Educação Linguística possam se iniciar e aprofundar nesse campo dos estudos da<br />

linguagem.<br />

Palavras-chave: Estruturalismo, Gerativismo, Sociolinguística.<br />

Abstract: The specific aim of this text is to present and discuss the basic foundations of<br />

Sociolinguistics. In order to achieve this goal, it proposes and follows a reflexive path that goes<br />

from a brief review of Structuralism and Generativism, accompanied by a definition of<br />

Sociolinguistics itself, to the presentation of its meaning (why it should be practiced) and of researches<br />

based on it (how it should be practiced). The general aim of the text is to invite readers interested in<br />

matters related to Linguistic Education to initiate and carry on investigations in this field of<br />

language studies.<br />

Keywords: Structuralism, Generativism, Sociolinguistics.<br />

Por que fazer Sociolinguística? Como ou de que forma fazer Sociolinguística? Para responder<br />

a essas questões de maneira adequada é necessário fazer um percurso que parte de um breve resgate<br />

do Estruturalismo e do Gerativismo, passa pela própria definição do que é a Sociolinguística,<br />

explicita sua razão de ser (o porquê) até chegar a exemplos de trabalhos de pesquisa nela pautados (o<br />

como). Neste texto, com o objetivo de apresentar alguns fundamentos básicos de introdução à<br />

Sociolinguística tanto teórica quanto prática, propomo-nos justamente a fazer esse percurso.<br />

Segundo Camacho (2001, p. 62), houve – e até hoje há – certa ―concepção monolítica de<br />

linguagem‖, baseada na ―suposição metodológica de que a estrutura Linguística é necessariamente<br />

homogênea‖. Tal concepção surgiu a partir de Saussure (1916/1977), que concebeu a Linguística a<br />

partir da dicotomia por ele proposta entre língua (langue) e fala (parole). Diz Saussure que a língua<br />

emerge da fala utilizada na comunicação social. Tem-se, então, a primazia da língua em detrimento<br />

da fala, considerada caótica demais para ser estudada. Esse é, em linhas gerais, o Estruturalismo.<br />

Ainda segundo Camacho (2001, p. 62), o Gerativismo, tendo em Chomsky (1965) seu real<br />

precursor, deu continuidade ao modelo estruturalista por meio da concepção de uma competência<br />

(competence) em oposição a um desempenho linguístico (performance) de um certo falante. Para<br />

Chomsky, a competência é o objeto de estudo da Linguística por ser homogêneo e, assim como a<br />

língua em relação à fala no modelo proposto por Saussure, tem primazia sobre o desempenho, o<br />

qual é, mais uma vez, um fenômeno caótico e heterogêneo demais para ser estudado.<br />

De acordo com esses paradigmas de estudo da linguagem, o Estruturalista e o Gerativista, a<br />

coleta de dados não poderia ter sentido algum, sendo inteiramente desnecessária. Com isso, passou<br />

a haver o estudo linguístico totalmente desvinculado de um contexto social no qual a fala ou o<br />

desempenho se realizam. Isso foi certamente conveniente e cômodo para o linguista, uma vez que


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ele ―sempre preferiu trabalhar com seu próprio conhecimento das regras (língua e competência) de<br />

funcionamento da linguagem‖ (Camacho, 2001, p. 62-63).<br />

Diante do Estruturalismo e do Gerativismo, o que viria a ser a Sociolinguística? Em poucas<br />

palavras, pode-se dizer que ela corresponde exatamente à maneira contrária de se fazer Linguística<br />

dos estruturalistas e dos gerativistas. Se nesses modelos a fala ou o desempenho são ―desprezados‖<br />

como sendo fenômenos caóticos e heterogêneos demais para serem cientificamente estudados, na<br />

Sociolinguística eles são o objeto de estudo ideal e único. Segundo Tarallo (1985, p. 06), a<br />

Sociolinguística diz respeito à relação entre língua e sociedade, sendo seu principal objetivo fazer a<br />

sistematização do aparente e suposto ―caos‖ e ―heterogeneidade‖ da língua falada, a qual é, na<br />

verdade, dentro desse modelo de análise, totalmente sistematizável. Segundo o autor, foi Willian<br />

Labov (1963; 1966) quem insistiu com mais veemência na relação entre língua e sociedade e na<br />

necessidade de sistematizar o suposto ―caos‖ linguístico.<br />

Já tendo trilhado parte do percurso proposto no início deste texto, podemos agora arriscar<br />

uma resposta à pergunta ―Por que fazer Sociolinguística?‖. Entendemos que toda ciência,<br />

principalmente as humanas, tem por objetivos principais duas ações igualmente importantes: 1)<br />

permitir o avanço do conhecimento em determinada área; 2) beneficiar diretamente os indivíduos<br />

pesquisados por meio do conhecimento gerado.<br />

Ao estudar a língua em detrimento da fala e a competência em detrimento do desempenho,<br />

o que – afinal – é mais ou menos equivalente, o Estruturalismo e o Gerativismo, apesar de todos os<br />

seus méritos, deixaram de lado um objeto de estudo muito importante: a linguagem em uso dentro<br />

de contextos sociais. Não queremos dizer que esses modelos não tenham dado suas contribuições e<br />

que não tenham de certa forma alcançado os objetivos da ciência expostos anteriormente.<br />

Queremos antes enfatizar a idéia de que, certamente, a Sociolinguística faz isso de maneira muito<br />

mais produtiva, ainda que – para isso – precise lançar mão de conceitos e procedimentos próprios<br />

do Estruturalismo e/ou do Gerativismo. Com a Sociolinguística, passa-se a conhecer mais a fundo<br />

os fenômenos linguísticos e, consequente e efetivamente, os indivíduos pesquisados são valorizados<br />

e beneficiados pelos resultados da pesquisa.<br />

Essa é a resposta. Deve-se fazer Sociolinguística sobretudo porque a língua na sociedade,<br />

em situação real de uso, a fala ou o desempenho – se se preferir –, é muito importante para ser<br />

ignorada. Deve-se também fazer Sociolinguística porque a linguagem é essencialmente social: é na<br />

sociedade que ela se realiza, é na sociedade que ela faz sentido, é na sociedade que ela existe. Como<br />

diz Bakhtin (1929/2002:70):<br />

Assim como, para observar o processo de combustão, convém colocar o corpo<br />

no meio atmosférico, da mesma forma, para observar o fenômeno da<br />

linguagem, é preciso situar os sujeitos — emissor e receptor do som —, bem<br />

como o próprio som, no meio social. Com efeito, é indispensável que o locutor<br />

e o ouvinte pertençam à mesma comunidade Linguística, a uma sociedade<br />

claramente organizada. E mais, é indispensável que estes dois indivíduos estejam<br />

integrados na unicidade da situação social imediata, quer dizer, que tenham uma<br />

relação de pessoa para pessoa sobre um terreno bem definido. É apenas sobre<br />

este terreno preciso que a troca linguística se torna possível; um terreno de<br />

acordo ocasional não se presta a isso, mesmo que haja comunhão de espírito<br />

(Bakhtin, 1929/2002, p. 70).<br />

Para aprofundar mais esta reflexão, deve-se explorar um pouco as características do<br />

suposto ―caos‖ linguístico e da chamada ―heterogeneidade‖ linguística de que falamos<br />

anteriormente. Segundo Tarallo (1985, p. 05), ―o ‗caos‘ basicamente se configura como um campo<br />

de batalha em que duas (ou mais) maneiras de dizer a mesma coisa (chamadas variantes linguísticas)<br />

se enfrentam em um duelo de contemporização, por sua subsistência e coexistência, ou, mais


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fatalisticamente, em um combate sangrento de morte‖. Para ilustrar esses aspectos, tomemos o<br />

exemplo de duas maneiras de dizer a mesma coisa:<br />

a) ―os carros vermelhos‖, b) ―os carro vermelho‖.<br />

No exemplo ―a‖, temos a marca de pluralidade nos três elementos do sintagma, conforme<br />

prescreve a norma padrão da língua portuguesa. Já no exemplo ―b‖, temos a marca de pluralidade<br />

apenas no primeiro elemento do sintagma, em oposição à prescrição da norma padrão. Poder-se-ia<br />

dizer que há aqui um estado de ―caos‖, de ―heterogeneidade‖ linguística. Porém, tomando-se o<br />

sintagma ―b‖ como exemplo e com um estudo mais detido do fenômeno de queda da marca de<br />

pluralidade dos dois últimos elementos, certamente a conclusão seria a de que há também<br />

consistência nessa forma linguística, segundo uma norma própria diferente, mas tão consistente<br />

quanto a norma padrão: é sempre o primeiro elemento do sintagma que vem marcado do ―s‖ em<br />

sinal de plural (cf. Bagno, 1999, p. 44-51).<br />

Por que ocorre essa variação? A resposta, como já foi explicitado, é relativamente simples:<br />

ocorre em função de elementos contextuais sociais, mas também linguísticos. É, como diria Bakhtin<br />

(1979/2003, p. 265), a língua na sociedade e a sociedade na língua, a língua penetrando na vida e a<br />

vida penetrando na língua. Mas que elementos contextuais sociais e linguísticos seriam esses?<br />

Fatores lingüísticos internos e fatores lingüísticos externos. Os primeiros dizem respeito às próprias<br />

regras linguísticas de cada variante, enquanto os últimos estão relacionados às características dos<br />

falantes: faixas etárias, regiões onde moram, classes sociais de que fazem parte, profissões que<br />

exercem, graus de escolaridade, grupos étnicos aos quais pertencem e uma série de outros fatores<br />

que se poderiam enumerar e considerar.<br />

Com isso, começamos a mostrar como ou de que maneira fazer Sociolinguística. O<br />

pesquisador precisa indispensavelmente levar em conta a realização linguística na sociedade,<br />

considerando os fatores linguísticos internos (as regras segundo as quais funciona cada variante) e<br />

os fatores linguísticos externos correspondentes às características sociais dos falantes.<br />

O modo como se deve fazer Sociolinguística diz respeito a procedimentos teóricometodológicos<br />

especiais. Tarallo (1985, p. 17-32) faz uma excelente descrição da teoria, do método e<br />

do objeto sociolinguístico. Diz o autor que a relação entre esses três elementos é imprescindível em<br />

qualquer ciência, não podendo existir independentemente. Na Sociolinguística, deve-se partir do<br />

objeto de estudo para posteriormente estabelecer o modelo teórico, o qual deverá dar conta de todos<br />

os fenômenos do objeto, evitando-se assim a chamada higienização dos dados, ou seja, a manipulação<br />

dos fenômenos pelo pesquisador com o objetivo de forçar um resultado desejado. Esse objeto<br />

corresponde, obviamente, à língua falada, ao vernáculo. Segue a definição de objeto apresentada<br />

pelo autor:<br />

―...é o veículo linguístico de comunicação usado em situações naturais de<br />

interação social, do tipo comunicação face a face. É a língua que usamos em<br />

nossos lares ao interagir com os demais membros de nossas famílias. É a língua<br />

usada nos botequins, clubes, parques, rodas de amigos; nos corredores e pátios<br />

das escolas, longe da tutela dos professores. É a língua falada entre amigos,<br />

inimigos, amantes e apaixonados. Em suma, a língua falada é o vernáculo: a<br />

enunciação e expressão de fatos, proposições, idéias (o que) sem a preocupação<br />

de como enunciá-los.‖ (todos os negritos são nossos) (Tarallo, 1985, p. 17-32).<br />

O grande desafio, segundo o autor, é como coletar o vernáculo. Em primeiro lugar, a<br />

quantidade de dados deve ser enorme e de boa qualidade sonora, pois o modelo Sociolinguístico é<br />

de natureza quantitativa, devendo o corpus ter representatividade dos fenômenos observados.<br />

Como os dados devem ser constituídos pela língua falada em situações naturais, a grande questão é<br />

como coletar essa quantidade de material sem alterar sua naturalidade como resultado da presença<br />

do pesquisador. Uma possível alternativa é assumir o papel de observador e também, quando for


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necessário provocar a realização de uma variável linguística específica, o de participante direto da<br />

interação.<br />

Ao participar diretamente da interação, o pesquisador, tendo em vista não alterar ou alterar<br />

o mínimo possível a naturalidade do vernáculo, deve lançar mão do método de entrevista<br />

sociolinguística: a coleta de narrativas de experiências pessoais. O pesquisador deve ter em mãos o<br />

gravador e, conforme a entrevista decorre, tentar neutralizar a influência de sua presença e da do<br />

gravador como elementos estranhos à situação. Isso pode ser conseguido por meio da<br />

representação do papel de aprendiz interessado na comunidade de falantes e em seus problemas e<br />

peculiaridades.<br />

O pesquisador deverá também evitar a palavra ―língua‖, para desviar a atenção do<br />

participante da pesquisa de sua maneira de falar. Como preparação para a coleta dos dados, o<br />

pesquisador poderá formular e utilizar um questionário-guia de entrevista. O resultado é que, ao<br />

relatar sua experiência pessoal, o participante fica emocionalmente envolvido com o que diz e, assim,<br />

presta o mínimo de atenção ao como, sendo exatamente esta a situação natural de comunicação que<br />

o pesquisador-sociolinguista busca obter.<br />

Cabe agora apresentar, de maneira breve, duas pesquisas para ilustrar o modo como se deve<br />

fazer Sociolinguística. O trabalho As vogais médias postônicas: uma análise variacionista, de Maria José<br />

Blaskovski Vieira (2002), teve por objetivo analisar ―as realizações das vogais médias em posição<br />

não-final e final, buscando-se identificar os fatores linguísticos e extralinguísticos que influenciam<br />

na preservação ou elevação dessas vogais‖. Nesse trabalho foi utilizado o banco de dados<br />

VARSUL, do qual foram selecionados, em função de idade e grau de escolaridade, oito<br />

participantes de cada uma das quatorze cidades que compõem o banco.<br />

Na análise das vogais postônicas não-finais, por exemplo, foi adotada como variável<br />

dependente a elevação das vogais médias /e/ e /o/ em posição postônica não-final. As variáveis<br />

independentes foram de dois tipos: as linguísticas e as extralinguísticas. As variáveis independentes<br />

linguísticas foram: o contexto que precede as vogais médias, o contexto que as sucede, a presença<br />

de vogal alta na palavra e a posição ocupada pela vogal média na palavra. As variáveis<br />

independentes extralinguísticas foram: faixa etária do participante, escolaridade e cidade onde mora.<br />

Uma das conclusões principais a que se chegou foi a de que, ao contrário do que se<br />

esperava, a variável geográfica foi considerada pela análise do pacote estatístico VARBRUL como<br />

aquela que menos têm influência nos fenômenos investigados. Percebe-se que esse estudo foi<br />

rigorosamente controlado no que se refere a suas variáveis e procedimentos. Foi um tipo de<br />

pesquisa sociolinguística muito próxima das pesquisas realizadas nas ciências naturais, uma vez que<br />

lidou mais com fatores de ordem fonética: as vogais médias /e/ e /o/ em posição postônica nãofinal.<br />

Um outro trabalho, chamado Negativa pré- e pós-verbal: implementação e transição, de Mônica G.<br />

R. Alckmim (2002), teve por objetivo ―tratar da implementação e da transição de uma estratégia de<br />

negação: a negativa que aparece simultaneamente antes e depois do verbo [Não V Não]‖, a qual é<br />

―recorrente na fala de informantes da região de Mariana (MG)‖. Nesse trabalho, foram utilizadas<br />

2505 amostras de negativas, das quais a construção estudada representa 19,5%.<br />

O estudo buscou contestar duas hipóteses conhecidas para esse fenômeno: 1) a de que essa<br />

estratégia de negação seja resultante do contato do português brasileiro com línguas africanas, tendo<br />

assim origem externa; 2) a de que seria resultado de mudanças linguísticas internas ao sistema das<br />

línguas românicas: o enfraquecimento do primeiro não que deu origem ao surgimento do segundo<br />

não. Além disso, o trabalho buscou confirmar a hipótese de que houve uma reanálise do item não, o<br />

qual no princípio figurava como um enunciado completo e depois foi reanalisado como parte da<br />

sentença.


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Levando-se em conta a importância do fator etnia, foi realizado um estudo variacionista<br />

das estratégias de negação em um corpus formado por falantes das comunidades de Pombal e de<br />

Mariana. Essa escolha foi decorrente do fato de a população desses lugares ser constituída de<br />

maioria negra e descendente de escravos. Buscando-se identificar o grupo que estaria levando<br />

adiante a implementação da negação dupla através do cruzamento dos fatores externos como faixa<br />

etária, etnia e escolaridade, chegou-se à conclusão de que ―trata-se de um tipo de mudança que<br />

ocorre de baixo para cima na escala social, isto é, dos não-escolarizados para os escolarizados‖,<br />

ficando claro que ―são, portanto, os analfabetos os responsáveis pela transição dessa variante na<br />

língua‖.<br />

A pesquisa não foi apenas sincrônica (em tempo aparente), mas, buscando-se confirmar as<br />

conclusões até o momento expostas, foi também realizada uma pesquisa diacrônica (em tempo<br />

real). Nesse caso, o corpus para análise se constituiu de textos de peças de teatro de séculos<br />

passados, com o objetivo de descobrir em que momento essa mudança se iniciou. A realização<br />

dessa segunda fase da pesquisa permitiu concluir que ―se trata de uma mudança em progresso, cuja<br />

variante inovadora surgiu na primeira metade do século XIX‖. A contestação das duas hipóteses<br />

conhecidas para esse fenômeno foi, com isso, legitimada, confirmando-se também a hipótese<br />

proposta, segundo a qual houve uma reanálise do item não, que – no princípio – figurava como um<br />

enunciado completo e, depois, foi reanalisado como parte da sentença.<br />

Percebe-se nesses dois exemplos de pesquisa sociolinguística muita relação com o modelo<br />

proposto por Tarallo no que diz respeito à teoria, ao método e ao objeto de estudo. Com isso,<br />

chegamos ao fim do percurso proposto no início deste texto, no qual lançamos as seguintes<br />

questões: por que fazer Sociolinguística? Como ou de que forma fazer Sociolinguística? Buscando<br />

responder adequadamente a essas questões, partimos de um breve resgate do Estruturalismo e do<br />

Gerativismo, passamos pela própria definição do que é a Sociolinguística, explicitamos sua razão de<br />

ser até chegarmos a exemplos de trabalhos de pesquisa nela pautados. O resultado são fundamentos<br />

básicos que podem servir como introdução à Sociolinguística teórica e prática, os quais ficam aqui<br />

registrados também na forma de convite para que o leitor se aprofunde nessa área dos estudos<br />

linguísticos.<br />

Referências bibliográficas<br />

ALCKMIM, M. G. R. Negativa pré- e pós-verbal: implementação e transição. In: COHEN, M. A.; RAMOS,<br />

J. M. (orgs.) Dialeto mineiro e outras falas. Estudos de variação e mudança linguística. Belo Horizonte: Faculdade de<br />

Letras/UFMG, 2002.<br />

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1979/2003.<br />

BAKHTIN, M. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud. Yara Frateschi Vieira. 10<br />

ed. São Paulo, Hucitec, 1929/2002.<br />

BAGNO, M. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 3. ed. São Paulo: Contexto, 1999.<br />

CAMACHO, R. G. Sociolinguística: Parte II. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (orgs.) Introdução à<br />

Linguística 1. Domínios e Fronteiras. 2. e.d. São Paulo: Editora CORTEZ, 2002.<br />

LABOV, W. The stratification of English in New York City. Washington, D. C.: Center for Applied Linguistics,<br />

1966.<br />

LABOV, W. The social motivation of a sound change. In: Sociolinguistics patterns. Philadelphia: University of<br />

Pennsylvania Press, 1963<br />

SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística geral. São Paulo, Cultrix, 1916/1977.<br />

CHOMSKY, N. Aspects of the theory of Syntax. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1965.<br />

TARALLO, F. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Editora Ática, 1985.<br />

VIEIRA, M. J. B. As vogais médias postônicas: uma análise variacionista. In: BISOL, L.; BRESCANCINI, C.<br />

(orgs.) Fonologia e variação: recortes do português brasileiro. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2002.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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GLOBALIZAÇÃO E ASSOCIATIVISMO: REFLEXÕES SOBRE UMA<br />

NOVA PRÁTICA SINDICAL E DE ESQUERDA<br />

Antonio Carlos Lopes Petean<br />

Doutorando em Sociologia pela UNESP/Araraquara/SP<br />

Resumo: O artigo propõe uma reflexão sobre a atuação dos sindicatos e dos partidos de esquerda<br />

frente à ―mitificação‖ do mercado, imposta pela atual globalização econômica. Buscaremos tratar<br />

dos ―prós e contras‖ da globalização, bem como apresentar suas raízes filosóficas e ideológicas<br />

construídas no século XVIII.<br />

Palavras-chave: Globalização, mitificação, mercado.<br />

Summary: This article proposes a reflection on achievements by the syndicates and left-wing parties<br />

front the ―mythfication‖ of the market, imposed by the present economic globalization. We will try<br />

to deal with the ―pros and cons‖ of the globalization, as well as presenting its philosophical and<br />

ideological sources built in the 18 century.<br />

Key-words: Globalization; Mythfication; Market.<br />

O problema das desigualdades sociais e regionais é um dos temas mais controvertidos e<br />

tem feito parte da agenda global. As desigualdades regionais se aprofundam, gerando um mundo<br />

cada vez mais instável e, portanto, inseguro. Embora exista uma grande preocupação com os efeitos<br />

da globalização, não há um consenso sobre como pode ser dada uma resposta aos graves problemas<br />

que o mundo globalizado tem vivenciado.<br />

Held e Mcgrew (2001), afirmam que muito embora haja uma preocupação com as<br />

desigualdades globais, não existe um consenso sobre suas causas e como lidar com seus efeitos. De<br />

um lado os céticos e de outro os globalistas, divididos em liberais e sociais democratas. Para os<br />

globalistas liberais, a criação de um mercado global, baseado no livre comércio e na competição<br />

global, será o instrumento responsável pela modernização e desenvolvimento uniforme da<br />

economia mundial. Esse grupo tem como exemplo o leste asiático, com altas taxas de crescimento<br />

econômico nos anos 1990. Os globalistas liberais dão ênfase na total abertura econômica e<br />

gradativa redução das tarifas alfandegárias. Nesta ótica, a globalização esta associada ao<br />

desenvolvimento econômico mundial. Já os globalistas de viés social democrata afirmam que a<br />

globalização tem aprofundado as desigualdades regionais e nacionais. Este grupo argumenta que a<br />

África, o Oriente Médio e parte da Ásia permanecem como regiões exploradas pelo capital<br />

internacional, dando continuidade a produção de bens primários. Portanto, a globalização para esse<br />

grupo, esta associada ao crescimento da pobreza em determinadas regiões do globo.<br />

No pólo oposto aos globalistas estão os céticos, de inclinação marxista, que não acreditam<br />

no ―New Deal global‖. Os céticos vêem a globalização como mais uma etapa de domínio do capital<br />

e de aprofundamento das desigualdades regionais e de classe. Para estes, a subordinação do mundo<br />

do trabalho ao capital permanece e aprofunda-se na nova ordem econômica.<br />

Para Ianni (1998), desde que o capitalismo se desenvolveu na Europa, apresentou<br />

conotações internacionais, multinacionais e transnacionais, responsáveis pela acumulação de capital<br />

e pelas desigualdades regionais. Ianni (1998) utiliza o termo ou metáfora ―Fábrica global‖ para falar<br />

da transformação quantitativa e qualitativa do capitalismo. Assim, toda economia nacional, torna-se<br />

província da economia global e finalmente o modo de produção capitalista entra na sua fase<br />

realmente global, desenvolvendo de forma mundial a nova divisão internacional do trabalho e<br />

acelerando mundialmente as forças produtivas.


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Podemos afirmar, também, que uma das características da atual globalização é a crescente<br />

desproletarização do mundo do trabalho associada à formação de uma pobreza crônica que se situa<br />

à margem da sociedade de consumo. A diminuição do número de operários ligados diretamente à<br />

produção, tanto em países de capitalismo avançado, quanto em países em desenvolvimento, como<br />

o Brasil, é um fato consumado. Mas em contrapartida verificamos um aumento do setor de<br />

serviços.<br />

A crescente robotização da produção, a terceirização do trabalho e a flexibilização da<br />

produção, são as causas mais diretas da diminuição do proletariado. Lima (2006), afirma que a<br />

relação salarial passa igualmente a ser flexibilizada, quebrando a chamada rigidez de contratos de<br />

trabalho por tempo indeterminado, assim como os custos que foram sendo adicionados ao contrato<br />

de trabalho, resultantes de lutas sociais e acordos coletivos entre capital e trabalho. Esses custos<br />

referem-se aos direitos sociais que a partir da segunda metade do século XX tornaram a relação<br />

salarial ―objeto de desejo‖ da maioria dos trabalhadores.<br />

Ser assalariado, com um contrato de trabalho formalizado, tornou-se sinônimo de inserção<br />

social e mesmo de cidadania. Robôs substituindo a força de trabalho humana e o desenvolvimento<br />

do setor de serviços mantém os exércitos industriais de reserva e estes passaram a ser globais. Isso<br />

faz com que os pobres e desempregados de uma região busquem emprego em outra região, às vezes<br />

dentro do próprio território nacional ou em outro país. Circulação que transforma muitos<br />

indivíduos em ―nômades modernos‖.<br />

Sendo assim, um novo exército industrial de reserva global, formado por latinoamericanos,<br />

africanos e asiáticos, busca na Europa Ocidental e nos E.U.A. os empregos que não encontram em<br />

seus países de origem, transformando-se em subproletários clandestinos e distantes dos direitos<br />

trabalhistas. Lima (2006) deixa claro que a redução dos contingentes de trabalhadores envolvidos na<br />

produção direta, o aumento do setor de serviços e a imigração colocaram em xeque as tradicionais<br />

formas de organização dos trabalhadores, afetando diretamente o movimento operário e sindical,<br />

com mudanças nas formas de luta operária.<br />

Diante deste contexto econômico mundial, mais que as lutas por melhores condições de<br />

vida e trabalho e mesmo por uma sociedade mais justa, o movimento sindical passou a ter uma<br />

posição mais defensiva na luta pela manutenção dos postos de trabalho. Neste contexto, podemos<br />

dizer, também, que os Estados nacionais, incluindo o Estado brasileiro, perderam a autonomia<br />

frente ao discurso e a política neoliberal, identificada com a globalização em curso.<br />

O processo de transição para a democracia na América latina e a entrada no mundo<br />

globalizado está praticamente consolidado em países como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Com<br />

a consolidação da democracia segundo Avritzer (1997) torna-se claro que as transições<br />

democráticas preservaram aspectos culturais e políticos próprios da região. Mas um fator<br />

preocupante segundo Avritzer (1997) é a continuidade de práticas políticas de partidos com alto<br />

grau de fisiologismo e autoritarismo.<br />

A transição para a democracia deve ser vista como uma mudança de cultura política, de<br />

práticas sociais e nas formas de atuação coletiva. Avritzer (1997) destaca a importância, diante desse<br />

quadro, de um novo associativismo.Esse associativismo teria como características: o aumento do<br />

número de associações civis em diversos países e uma ruptura com o padrão de ação coletiva<br />

marcada pelo sindicalismo.<br />

O ponto de partida para o associativismo no Brasil e na América latina é dado pelo<br />

momento histórico, marcado pela consolidação da democracia e pela globalização pela qual passa o<br />

continente. Processo esse, marcado pelo liberalismo econômico.


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Mas os atores sociais na região, só parcialmente aderiram ao liberalismo e isso se deve,<br />

principalmente, ao tipo de colonização que manteve unidas as esferas publicas e privadas, ao<br />

associativismo das irmandades religiosas e a presença das lojas maçônicas. No Brasil o novo<br />

associativismo esta marcado pela redução da vida sindical como forma de ação coletiva e sua<br />

substituição por uma luta pelos direitos das minorias (índios), e pela luta dos afro-descendentes pelo<br />

reconhecimento de suas manifestações de caráter étnico-religioso. Já na Argentina, é forte a luta<br />

pelos direitos humanos e na Bolívia e Equador o movimento indígena ganhou força nas últimas<br />

décadas. Vale ressaltar também, o avanço dos movimentos ambientalistas. Sendo assim, o<br />

associativismo ganha força no mundo globalizado, principalmente, a partir das questões étnicoraciais<br />

e ambientais.<br />

Outro ponto a destacar são os mutirões para a construção de casas próprias e a luta pela<br />

posse da terra no Brasil, Bolívia, Paraguai e Equador. No caso do Brasil, se verifica uma mudança<br />

significativa nas formas de ação coletiva. Proliferam-se atores e associações (ONGS), criando forças<br />

mais heterogêneas.<br />

No México, segundo Avritzer (1997), existe uma ruptura no padrão de ação coletiva,<br />

marcada pelo populismo. Mas essas novas lutas e associações não possuem um caráter<br />

abrangente, ao ponto de modificar significativamente o quadro social. Neste contexto só resta aos<br />

―marginalizados‖ o caminho das drogas ou das igrejas, pois com o enfraquecimento dos estados e<br />

dos espaços de ação do setor público, uma massa de seres humanos esta longe de terem direito a<br />

cidadania plena. Para entendermos melhor essa perda de autonomia do Estado, devemos<br />

compreender os pressupostos do pensamento liberal.<br />

O liberalismo é uma filosofia política e econômica que começou a ser formulado durante o<br />

desenvolvimento do movimento iluminista ou filosofia das luzes. O Iluminismo desenvolveu-se nos<br />

séculos XVII e XVIII na Europa e se pautou pela proposta de organizar a sociedade segundo um<br />

modelo científico-natural e também por uma forte luta contra a ideologia clerical e o Estado<br />

absolutista. Caracterizamos o absolutismo, que marcou as sociedades européias do século XIV ao<br />

século XVIII, em dois pontos fundamentais: a ausência de liberdades civis e a forte interferência do<br />

Estado nas relações econômicas (fundamentalmente no comércio).<br />

A crítica do iluminista ao absolutismo passa por uma nova proposta de relação entre o<br />

Estado e a economia. Essa proposta caracteriza-se pela ausência de controle sobre as relações<br />

econômicas (tanto no campo da produção quanto no comércio) e pela defesa das liberdades civis<br />

entendidas como livre iniciativa. A marca dessa nova relação proposta pelo iluminismo é a da total<br />

separação entre o Estado e a economia. Daí a pertinência do conceito de Estado liberal. Para<br />

Toledo:<br />

O Estado liberal caracteriza-se, principalmente, pela separação entre Estado e<br />

economia e pela tentativa de reduzir a política à chamada sociedade política, isto<br />

é, por tentar despolitizar as relações econômicas e sociais. (Toledo,1997, p. 72).<br />

Esse tipo de Estado vai se firmar no século XIX, como ideologia oficial do capitalismo, e<br />

se opõe aos privilégios de nascimento ou direito divino que marcaram a ideologia clerical e o<br />

absolutismo. É essa ideologia oficial do capitalismo que é dado o nome de liberalismo. Os<br />

conceitos de igualdade e liberdade para o liberalismo foram fundamentais para a sua luta contra os<br />

privilégios e o direito divino.<br />

A noção de igualdade proposta pelo liberalismo permite a formulação de um novo conceito<br />

de sujeito jurídico. A afirmação de que todos são iguais perante as leis, ou seja, todos têm os<br />

mesmos direitos e deveres, é a marca do discurso da ideologia liberal. Fica claro que as noções de<br />

igualdade e liberdade se articulam ao de natureza para criar uma nova noção de sujeito: o sujeito


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moderno. O Direito natural à liberdade e à propriedade, presentes no discurso da ideologia liberal, è<br />

circunscrito ao indivíduo e o efeito desse discurso é o individualismo (egoísta).<br />

Daí o liberalismo ser sintetizado, por Toledo (1997) em dois elementos: a) Individualismo:<br />

a sociedade é a soma das ações individuais; estas ações são concebidas como racionais; isto é, em<br />

estreita conexão entre meios e fins; os fins representados pela otimização de benefícios a partir de<br />

meios escassos. b) Naturalismo: influência sobre o liberalismo clássico da visão Newtoniana do<br />

mundo, com os seus componentes de leis universais e de crença numa natureza humana imutável,<br />

sujeita, como toda natureza, as leis universais. Num primeiro momento, os fisiocratas (antecessores<br />

dos liberais em questão de teoria econômica) superestimaram um suposto instinto de conservação e<br />

a procura do prazer ou a fuga à dor como fundamentos da procura incessante por bens físicos.<br />

O Liberalismo, ao afirmar que o homem é um sujeito naturalmente livre, e, portanto,<br />

proprietário de sua pessoa e de suas capacidades, faz desse sujeito o responsável pelo seu sucesso<br />

ou fracasso fundamentalmente no plano material. Mas essa idéia só é possível porque o liberalismo<br />

postula uma natureza humana ontológica. Esse direito natural do homem, sobre sua pessoa e sobre<br />

suas capacidades, deve ser assegurado pelo Estado liberal (sua única função), conforme nos diz<br />

Gray:<br />

A instituição de um governo liberal limitado é, por estas razões, compatível com<br />

diversas variedades de sistema democrático (e com restrição ou ausência de<br />

democracia política), e pode adaptar uma série de mecanismos constitucionais<br />

para a concretização ou a proteção dos princípios e práticas liberais. A proteção<br />

jurídica da liberdade pode assentar num governo parlamentar e numa convenção<br />

constitucional, como na Inglaterra, ou pode subordinar ao mesmo tempo os<br />

legisladores e magistrados a uma constituição escrita. Nas suas dimensões legais.<br />

O Estado liberal pode primariamente confiar na lei comum, interpretada por<br />

uma magistratura independente, ou então pode depositar maior confiança na<br />

proteção legislativa da liberdade. (Gray,1998, p. 121).<br />

O século XX mostrou ao mundo a ruína da União Soviética, bem como o avanço e a<br />

consolidação do neoliberalismo, enquanto ideologia da globalização em praticamente todo o globo,<br />

exceto em alguns países que conseguiram resistir à sedução do seu discurso, caso de Cuba,<br />

Venezuela e alguns países do Oriente Médio. Pode-se dizer que é constitutivo do discurso<br />

neoliberal a mitificação do livre mercado como precondição para a estabilidade econômica e a<br />

modernização da economia, resultando, daí, os benefícios de que toda a sociedade passaria a gozar.<br />

Sobre esta teorização, Mészáros deixa claro que:<br />

A mitologia criada pela direita radical apresenta o mercado como um<br />

mecanismo radical e objetivo, baseado nos princípios da liberdade e igualdade<br />

econômicas, tanto entre compradores e vendedores como entre proprietários e<br />

trabalhadores, em que todos tendem a beneficiar-se do intercâmbio, troca e<br />

competitividade. (Mészàros,1997, p. 143).<br />

Para o funcionamento do sistema capitalista, é de fundamental importância a subordinação<br />

do trabalho ao capital, e o discurso neoliberal corrobora para isso. Esse discurso pode ser visto<br />

como a consciência prática da sociedade burguesa. Um discurso cujos efeitos de sentido seriam a<br />

mitificação do livre-mercado e a subordinação do trabalhador a ele, como forma de disciplinar a<br />

força de trabalho. Sobre isso, Mészàros nos diz que:<br />

No capitalismo há duas formas de disciplinar a força de trabalho. A primeira é o<br />

autoritarismo da empresa privada, onde o capitalista, como personificação do<br />

capital (segundo o conceito de Marx, o capitalista não é nada em si senão a<br />

personificação do capital), representa um poder soberano, podendo admitir,<br />

demitir, e determinar as condições de trabalho do operário. Os capitalistas, nesse<br />

sentido, cumprem em nosso sistema o papel de controladores do processo de<br />

metabolismo social. A personificação da função de controle implica as noções


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de ‗vontade‘ e ‗consciência‘ na medida em que não se trata de uma relação<br />

mecânica (um mecanismo), como afirma a mitologia da direita radical, mas de<br />

um conjunto de relações sociais que dominam as várias forças do capital e os<br />

próprios empreendimentos capitalistas. A ‗vontade‘ é, em si, uma questão de<br />

consciência, porque é necessário que essa vontade, que expressa os imperativos<br />

do capital, seja imposta sobre o trabalho. A segunda força que age sobre a<br />

disciplina do trabalho é a tirania do mercado, necessariamente internalizada pelo<br />

operário. A tirania do mercado implica na exposição dos operários aquilo que<br />

possa vir a acontecer na competição entre diversas empresas capitalistas.<br />

Quando uma empresa passa por dificuldades, vemos os trabalhadores dispostos<br />

não apenas a abandonarem quaisquer reivindicações como aceitarem uma<br />

redução salarial ou um retrocesso nas suas condições de trabalho, o que consiste<br />

na própria identificação do trabalhador com o mercado. (Mészàros,1997, p.148)<br />

Fica claro, a partir daí, que a formação discursiva neoliberal faz parte do funcionamento<br />

social geral da sociedade capitalista. O neoliberalismo apresenta o mercado como uma ―instituição‖,<br />

com vida própria onde as empresas em livre competição podem beneficiar a coletividade, mas que<br />

as dificuldades devem ser compartilhadas. Para Antunes (1997) aceitar a redução salarial e a<br />

flexibilização das leis trabalhistas são formas de dotar o capital dos instrumentos necessários para<br />

adequar-se a sua nova fase, ou seja, a fase da globalização neoliberal.<br />

A mitificação do mercado por parte do pensamento liberal e as respectivas propostas de<br />

redução salarial, férias coletivas e contratos temporários de trabalho para adequar as empresas à<br />

concorrência imposta pelo próprio mercado tem gerado muita insegurança no universo produtivo.<br />

Lima (2009), afirma que a empresa enxuta significou uma generalização dos processos de<br />

terceirização, com a focalização e a subcontratação de outras empresas para a elaboração de<br />

atividades consideradas secundárias, cujo objetivo é um só: a redução dos custos, para ganhar<br />

competitividade no mercado. A lógica do mercado se impõe sobre os direitos trabalhistas e a<br />

palavra mercado passa a ser mitificada dentro desta nova ordem global, garantindo os interesses da<br />

classe dominante. Mas para Mészàros (1997), a luta da esquerda deve começar por uma revisão de<br />

suas teses, pois a derrubada da propriedade privada, do Estado burguês e o fim do mercado de<br />

trabalho não bastariam para eliminar o capital e, assim, a conseqüente subordinação do trabalho ao<br />

capital. Outra questão a ser levantada é a incapacidade da esquerda e de parte do movimento<br />

sindical em incluir nas suas agendas as questões étnico-raciais e a questão ambiental.<br />

Talvez a melhor forma de associativismo e atuação das esquerdas e do sindicalismo, diante<br />

da crise do pensamento socialista, enfraquecimento da ação do estado liberal e avanço da<br />

globalização marcadamente de caráter liberal, seja a luta pela formação de cooperativas, onde o<br />

trabalho possa explorar o capital em beneficio de uma coletividade e, também, repensar a agenda<br />

política e social, englobando a temática étnico-racial e ambiental.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Antunes, Ricardo. Aonde vai o Mundo do Trabalho? In : O. Coggiola (org.), In: Globalização e Socialismo. São Paulo:<br />

Editora Xamâ, 1997.<br />

Avritzer, L.―Um desenho institucional para o Novo Associativismo‖. Lua Nova. São Paulo: Cedec, n.34, 1997. (p.149-<br />

174).<br />

Gray, John. O liberalismo. Lisboa, Portugal: Editora Estampa, 1998.<br />

Held, David e Mcgrew, Anthony. Prós e contras da Globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.<br />

Ianni, Octávio. Teorias da Globalização. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002.<br />

Lima, Jacob Carlos. Trabalho, Precarização e Sindicalismo: os Trabalhadores e as Cooperativas de Trabalho. Araraquara,<br />

São Paulo: Revista Estudos de Sociologia, ano 11- n.21, 2006.<br />

Mészàros, István. Ir Além do Capital. In O. Coggiola (org.), Globalização e Socialismo. São Paulo, Xamã, 1997.<br />

Toledo, Enrique Garza. Neoliberalismo e Estado. (Tradução de Rodrigo)<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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MOMENTOS DE REFLEXÕES COLABORATIVAS EM AMBIENTE<br />

VIRTUAL: USO DE ESTRATÉGIAS TEXTUAIS<br />

Arlinda Cantero Dorsa 1<br />

Danielle Bueno Fernandes Silva 2<br />

Resumo: Este artigo socializa o texto e suas textualidades, e o uso de estratégias textuais ocorridas<br />

nos momentos de reflexões colaborativas.. O objetivo é mostrar a importância dos fatores textuais<br />

no ambiente virtual denominado NING do Grupo de Pesquisas e Estudos em Tecnologia<br />

Educacional e Educação a Distância (GETED) A metodologia aplicada envolveu a leitura e analise<br />

dos textos inseridos no ambiente. Constatou-se que a presença dos fatores textuais é comum nas<br />

intervenções dos participantes e ainda que os gêneros textuais sejam diversos, as novas tecnologias<br />

contribuem para que novos padrões textuais sejam criados ou readaptados nas diferentes práticas<br />

discursivas.<br />

Palavras-chave: Fatores textuais. Tecnologia. Ambiente Virtual.<br />

Abstract: This article socializes the text and their textualities and use of textual strategies which<br />

have occurred in moments of reflection collaborative .. The goal is to show the importance of<br />

factors in textual virtual environment called NING Group Research and Studies in Educational<br />

Technology and Distance Education (GETED) The methodology involved the reading and analysis<br />

of the texts included in the environment. It was found that the presence of textual factors is<br />

common in the speeches of participants and that the genres are different, the new technologies that<br />

contribute to textual new standards are created or readjusted in different discursive practices<br />

Key-words: Textual factors. Technology. Virtual Environment.<br />

Introdução<br />

Este artigo é fruto de um trabalho desenvolvido junto ao Grupo de Pesquisas e Estudos<br />

em Tecnologia Educacional e Educação a Distância (GETED), de uma universidade privada que<br />

pesquisa o uso de novas tecnologias de informação e comunicação no âmbito presencial e a<br />

distância e conhecimentos com vista à interação comunicativa. Liga-se ao projeto que tem como<br />

título: Concepções dos professores sobre o ensino e a aprendizagem mediados por laptops em<br />

escolas municipais de tempo integral: momentos de reflexões colaborativas. Esta colaboração<br />

ocorreu em ambiente virtual, denominado Ning criado especificamente para a interação entre os<br />

membros do grupo de pesquisa.<br />

Sendo assim, tem como ponto de partida analisar o uso de estratégias textuais ocorridas<br />

nos momentos de reflexões colaborativas no ambiente virtual, no uso dos fatores textuais.<br />

Cumpre-nos ressaltar que estudar a textualidade desenvolvida pelos participantes é de suma<br />

importância, pois, as estratégias são repensadas e as trocas cooperativas são favorecidas, vez que a<br />

produção textual passa a ser um trabalho construtivista onde todos colaboram, e o conhecimento<br />

passa a ser construído por várias vozes discursivas.<br />

A textualidade permite que se analise o conhecimento construído conjuntamente por todos<br />

os participantes, que transformam um ambiente virtual em um ambiente colaborativo.<br />

1 É docente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local da UCDB. MS. E professora de<br />

Linguagem Forense. Curso de Direito. UCDB/MS. Orientadora programa de Iniciação Cientifica - PIBIC<br />

2 Graduanda curso de Direito. UCDB-MS Bolsista CNPQ


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Nesse sentido, Assis (2002), afirma que o meio tecnológico envolvido na produção de<br />

textos, estabelece em função das suas especificidades, determinados princípios para as regras de<br />

textualização, com isso em algumas situações, a legitimação discursiva deve ser elaborada de acordo<br />

com o ambiente em que se propaga, para que não sejam alteradas negativamente as condições de<br />

recepção do texto.<br />

Por se tratar de um ambiente virtual, faz-se mister dizer que a interação que ocorre, é<br />

diferente daquela que aparece em comunidades presenciais. As discussões são construídas neste<br />

ambiente virtual, onde há uma conexão, heterogeneidade e multiplicidade de conhecimentos e<br />

idéias.<br />

O ambiente virtual apresenta uma metodologia de intervenção e nesse contexto, o discurso<br />

vai se construindo por várias mãos, pois as interações abrem a possibilidade para colaborações a<br />

partir de diversos pontos de vistas, ultrapassando a visão de um grupo restrito, como ocorre nos<br />

ambientes presenciais.<br />

É importante refletirmos que os professores e participantes deste processo de colaboração,<br />

têm não só presenciado como se tornado protagonista do avanço considerável da tecnologia; como<br />

protagonistas, estão cada vez mais utilizando as ferramentas de aprendizagem para pesquisar,<br />

elaborar material didático, interagir com os alunos e colegas e isto envolve um novo pensar sobre as<br />

estratégias textuais utilizadas.<br />

Um breve olhar sobre texto e textualidade no ambiente virtual NING<br />

Das leituras apreendidas desde o início da pesquisa, concentramos o olhar inicialmente na<br />

definição feita por Travaglia. (1997) que assegura:<br />

O texto será entendido como uma unidade lingüística concreta (perceptível pela<br />

visão ou audição), que é tomada pelos usuários da língua (falante,<br />

escritor/ouvinte, leitor), em uma situação de interação comunicativa específica,<br />

como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa<br />

reconhecível e reconhecida, independentemente da sua extensão.<br />

(TRAVAGLIA 1997.p.67.)<br />

Neste sentido, um texto pode ser qualquer manifestação de comunicação, por meio de uma<br />

música, de uma pintura, de um romance, etc. Já no sentido restrito, segundo Koch (2007), um texto<br />

incide ―em qualquer passagem falada ou escrita, capaz de formar um todo significativo,<br />

independentemente de sua extensão.‖<br />

Nas palavras de Kristeva (1970) o texto é, pois, uma produtividade, e isso significa que: 1) a<br />

sua relação com a língua da qual faz parte é redistributiva (destrutivo-construtiva), sendo, por<br />

conseguinte, abordável através de categorias lógicas mais do que puramente lingüísticas; 2) é uma<br />

permutação de textos, uma intertextualidade: no espaço de um texto, vários enunciados, vindos de<br />

outros textos, cruzam-se e neutralizam-se.<br />

Dentre os critérios de textualidade apontados por Beaugrande e Dressler (1981), que fazem<br />

com que um texto seja um texto e não uma soma aleatória de frases, desponta a coerência como<br />

fator fundamental na medida em que, atingindo uma dimensão global, é ela que dá sentido ao texto.<br />

Ou seja, o texto, é uma unidade de sentidos, que pode ser interpretada de diferentes<br />

formas, um mesmo texto dificilmente apresenta resultados idênticos, os leitores podem interpretar<br />

de forma diversa os fatos apresentados. E os mecanismos envolvidos no processo de compreensão<br />

do texto, são fundamentais, para efetivar a atividade da leitura.<br />

Os fatores da textualidade, também estão intimamente ligados, com a discursividade, sendo<br />

assim, toda produção textual não acontece no vazio pois o texto se relaciona de alguma forma, com


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outros anteriormente produzidos e é nesse sentido que se diz que eles estão em constante e<br />

contínua relação uns com os outros. Esta relação entre um texto em particular e os demais é o que<br />

se tem chamado de intertextualidade.<br />

Contribuem Koch & Travaglia (2000: 75), com este assunto quando afirmam que ―há<br />

intertextualidade na medida em que, para o processamento cognitivo de um texto, recorre-se ao<br />

conhecimento prévio de outros textos‖.<br />

O fato de que o texto consiste apenas no ponto de partida para a busca do sentido já era<br />

igualmente sugerido por Eco (1984, p. 97) quando afirmou que o texto é um ―tecido cheio de<br />

lacunas, repleto de não-ditos, e todavia, esses não-ditos são de tal modo não-ditos que ao leitor é<br />

dada a oportunidade de colaborar para preencher esses não ditos‖.<br />

Quando um leitor se depara com um texto, o primeiro requisito para que se inicie o<br />

processo de compreensão é que ele possua conhecimento prévio a respeito dos elementos<br />

lingüísticos, como os itens lexicais e as estruturas sintáticas, presentes nos enunciados que lhe são<br />

propostos. Esses conhecimentos prévios são ativados, fazendo com que o nível de compreensão<br />

seja compensado.<br />

Não é difícil constatar que nos últimos dois séculos, foram as novas tecnologias, em<br />

especial, as ligadas à área de comunicação que propiciaram o surgimento de novos gêneros textuais.<br />

Um aspecto central no caso desses gêneros emergentes, de acordo com Marcuschi (2002), é a nova<br />

relação instaurada com os usos da linguagem como tal. Em certo sentindo, possibilitam a<br />

redefinição de alguns aspectos centrais na observação da linguagem em uso, como por exemplo, a<br />

relação entre a oralidade e a escrita, desfazendo ainda mais as suas fronteiras.<br />

Na concepção do autor, ―a comunicação mediada por computador abrange todos os<br />

formatos de comunicação e os respectivos gêneros que emergem nesse contexto, sendo assim,<br />

―futuramente, é provável que a expressão internet assuma a carga semântica e pragmática do<br />

sistema completo, já que se trata da rede mundial de comunicação ininterruptamente interconectada<br />

a todos os computadores ligados a ela‖. (MARCUSHI, 2008, p 199)<br />

O estudo da comunicação virtual na perspectiva dos gêneros tem sido trabalhado há quase<br />

uma década por autores como Erickson (1997) que vê na interação on-line uma força<br />

potencializadora capaz de fazer evoluir novos gêneros em função não só do meio tecnológico como<br />

também da forma como os textos se desenvolvem.<br />

Embora existam outras redes sociais que estimulem a criação de comunidades, assim como<br />

Orkut ou Facebook, o Ning é melhor para este objetivo pois, é um espaço próprio para o<br />

compartilhamento em razão de possuir uma interface amigável e customizável, integrada a muitos<br />

outros serviços, com diversas opções de uso de mídias. Por ser muito bem desenhado, o Ning é<br />

utilizado para criar comunidades específicas para os mais diferentes propósitos, além de possibilitar<br />

a quem desejar ser gerenciador de redes sociais, ou seja, o seu responsável.<br />

A partir do cadastro no Ning, o usuário pode participar de outras redes, como usuário, ou<br />

pode criar a sua rede, como administrador e gestor de ambientes virtuais; outro aspecto positivo é<br />

permitir que cada membro crie sua própria "comunidade" ou "grupo", de acordo com níveis<br />

distintos de permissão concedidos pelo administrador/gestor.<br />

Os recursos disponíveis são variados e vão desde fóruns e chats até enquetes e<br />

compartilhamento de artigos, fotos, vídeos e integração com outros widgets e demais<br />

funcionalidades.<br />

Compreender os gêneros virtuais utilizados nesses ambientes (chat, fóruns), possibilita não<br />

só o fornecimento de mecanismos para o uso dessas ferramentas no ensino e aprendizagem, mas<br />

também a compreensão da transformação do professor atuante nesse meio, pois a ferramenta não é


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mero instrumento de uso no processo de ensino/aprendizagem, ela é também responsável pela<br />

ação e comportamento do sujeito.<br />

É claro que esses ambientes virtuais, também podem ser utilizados para fins sociais, e<br />

professores que pretendem utilizar os ambientes para fins educacionais, devem se adaptar ao chat<br />

educacional, a fim de que este seja eficaz.<br />

Para o uso desses ambientes, com finalidades educativas é necessária uma prévia<br />

preparação, a fim de ser aproveitado cada minuto no ambiente virtual, marcar um horário para<br />

sanar dúvidas dos alunos, promover encontros on line a fim de discutir determinados assuntos, e<br />

principalmente focar que apesar de ser um ambiente de socialização, está sendo destinado à<br />

educação, e não permitir que se promovam o desenvolvimento de raciocínio que sejam longos, para<br />

que o tópico da conversa não mude por diversas vezes e perca o foco.<br />

Além do que o professor deve ditar o ritmo da aula, garantir a participação de todos os<br />

alunos, e tentar solucionar os problemas. É importante ressaltar que por se tratar de ambientes<br />

virtuais, é necessário que o professor disponibilize o material para ser lido anteriormente, é<br />

importante que as discussões sejam armazenadas, para haver sempre um registro do texto escrito.<br />

Com isso, visa-se evidenciar que toda comunicação, ou interação, dentro dos ambientes<br />

virtuais, necessita de preparação e principalmente de domínio da linguagem adequada, ou seja, do<br />

gênero em questão.<br />

As análises e reflexões no ambiente virtual NING<br />

O nosso projeto incidiu na análise de reflexões no campo da linguagem dos fatores textuais<br />

no ambiente colaborativo e pretendeu examinar como esses fatores são empregados, seus efeitos, e<br />

a maneira como são vistos pelos participantes deste grupo, em um ambiente virtual utilizado pelos<br />

participantes denominado NING.<br />

A afetividade fica bem demonstrada, neste ambiente pois percebe-se muitas trocas afetivas<br />

entre os participantes, o cuidado e atenção com os outros participantes é evidente.<br />

Com relação à coesão e coerência, percebe-se que todos as interações estão revestidas<br />

desses fatores textuais, pois a coerência se mostrou como responsável pelo sentido do texto,<br />

envolvendo fatores lógico-semânticos e cognitivos.<br />

Segundo Simon (2008), ―a interpretabilidade do texto depende do conhecimento partilhado<br />

entre os interlocutores, e um texto é coerente quando compatível com o conhecimento de mundo<br />

do receptor‖. E a coesão é a manifestação lingüística da coerência, que provém da forma como as<br />

relações lógico-semânticas do texto são expressas na superfície textual. Sendo assim, a coesão de<br />

um texto é verificada mediante a análise de seus mecanismos lexicais e gramaticais de construção, o<br />

que restou observado na análise em questão.<br />

No foco da análise, o objeto analisado foi retirado do fórum e do blog estabelecido dentro<br />

do Ning, e tratou-se de 25 textos que serviram de base para o trabalho voltado às questões relativas<br />

aos fatores textuais. Foi possível identificar um universo de textos voltados à informações sobre<br />

congressos, palestras, discursos, assim como informações que contribuíam com a pesquisa dos<br />

colegas, dados novos, referenciais teóricos, sugestões inéditas e assim por diante.<br />

No blog do Ning, foram encontrados 1 texto evidenciando apenas a intertextualidade, 14<br />

deles com informatividade, 3 deles evidenciando a intencionalidade, e 7 os dois fatores juntos<br />

intertextualidade e a informatividade.<br />

Excerto 1 - Situacionalidade<br />

A ABED NÃO CERTIFICA E NEM AVALIA CURSOS DE SEUS ASSOCIADOS


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Pessoal, tenho visto com freqüência propagandas de cursos onde consta o nome da<br />

ABED- Associação Brasileira de Educação a Distância como elemento reforçador de<br />

qualidade ou certificação do curso ofertado. Isto é propaganda enganosa, senhoras e<br />

senhores!<br />

No excerto 1, fica evidenciado, o fator textual da situacionalidade, uma vez que o autor do<br />

texto demonstra o contexto situacional imediato em que está inserido, contrapondo-se à realidade<br />

implícita. Neste caso quando o autor comunica aos amigos que ―isso é propaganda enganosa,<br />

senhoras e senhores‖, ele vincula a circunstancia, aponta a utilidade, e a pertinência do seu objetivo.<br />

Excerto 2 - Informatividade<br />

Olá, pessoal. Teremos reunião no dia 15 de março de 2010 às 14h pelo ambiente<br />

moodle.Quem ainda não tem acesso ao moodle, por favor, enviar um e-mail para<br />

xxxxxx@ucdb.br. solicitando a sua inscrição no ambiente. Utilizaremos a ferramenta<br />

chat conferência. Todos precisam providenciar fone e microfone para podermos nos<br />

comunicar (áudio e vídeo). Espero contar com a presença de todos.<br />

No excerto 2, a autora do texto, informa a nova reunião, bem como a data, o ambiente<br />

virtual em que vai ocorrer, a ferramenta a ser utilizada, informa o email dela para solicitação da<br />

inscrição no ambiente, o prosseguimento da reunião, sendo assim evidencia-se um alto grau de<br />

informatividade.<br />

Excerto 3 – Intencionalidade<br />

Passando para convidar todos os participantes do GETED para a nossa<br />

confraternização que ocorrerá na próxima segunda-feira dia 07/12/2009 às 16 horas<br />

na Sala de vídeo conferência da EAD, bloco administrativo. Trazer o que puder, um<br />

prato de comida ou um refrigerante, para fazermos uma linda confraternização.<br />

Esperamos por todos vcs!<br />

No excerto 3, percebe-se que a intenção da autora é de convidar todos os participantes<br />

para se dirigirem a confraternização, a convicção que a autora emprega, quando diz ―esperamos por<br />

todos vcs‖ é também ponto importante, dando bastante ênfase às suas palavras, onde fica<br />

evidenciado a intencionalidade do texto.<br />

Excerto 4 – Intertextualidade<br />

Discussão do artigo "Alterações no cotidiano escolar decorrentes da implantação de<br />

laptops educacionais" de Maximiliana Batista Santos e Martha Borges.<br />

No excerto 4 - o fenômeno da intertextualidade está ligado ao "conhecimento do mundo",<br />

que deve ser compartilhado, ou seja, comum ao produtor e ao receptor de textos. Pelo resgate, de<br />

uma linguagem retirada do próprio artigo, ativa-se o conhecimento prévio existente na memória e a<br />

intertextualidade nada mais é do que isso, o já dito, já pensado, já escrito e quando a autora<br />

transcreve o trecho: ― Alterações no cotidiano escolar decorrentes de implantacao de laptops<br />

educacionais‖ ela está reproduzindo o titulo dado pelo autor do artigo, fazendo o uso da<br />

intertextualidade.<br />

Excerto 5 – Aceitabilidade<br />

Autora 1- Vejam o tutorial que a Rosi elaborou para criar uma rede social no ning. É<br />

possível criarmos esta rede em nossas práticas docentes?


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Autora 2- Olá, acredito que a rede social ning pode contribuir de forma significativa,<br />

interativa, construtiva e prazerosa na aprendizagem de nossos alunos. Pode ser<br />

utilizada para a divulgação de projetos da escola, para uma troca de experiências entre<br />

alunos e docentes, pode ser dedicada a divulgação de textos com o objetivos de<br />

provocar reflexão entre os participantes....O importante é que haja um movimento na<br />

rede propiciando ao aluno oportunidades de construção do conhecimento.<br />

No excerto 5, percebe-se que a autora 1, faz um questionamento, uma provocação, e uma<br />

das pessoas que a responde, é a autora numero 2, e a aceitabilidade envolve justamente isso, ela está<br />

relacionada à atitude do receptor frente aos textos, se tem relevância ou utilidade para ele. No caso<br />

em tela, isso restou comprovado, vez que a remetente tenta criar um texto que tenha sentido e o<br />

destinatário o recebe como algo com sentido.<br />

A intencionalidade é um fator textual, que poderia ser melhor aperfeiçoado, pois,<br />

dentro de um ambiente virtual, é muito difícil perceber se a intenção do autor, é informar,<br />

persuadir, afirmar, contradizer, ou convencer o leitor. E não fica bastante evidente qual a fiel<br />

intenção dos autores.<br />

O ambiente virtual, gradativamente nos conduz à concepção do texto como um hipertexto<br />

na medida em que o texto é constituído por uma proposta de múltiplos sentidos, que está em<br />

constantes movimentos, recorrendo a diversas fontes de informações tanto textuais quanto<br />

extratextuais.<br />

Considerações Finais<br />

Ao se observar o processo de evolução da humanidade, constata-se a presença marcante<br />

das descobertas, inovações, e os avanços, estreitamente relacionados ao desenvolvimento. Essas<br />

transformações rápidas e profundas decorrentes dessas novas descobertas refletem-se nos mais<br />

variados setores, destacando-se os avanços tecnológicos, a transformação dos paradigmas<br />

produtivos, e em especial as mudanças relacionadas à educação.<br />

Sendo assim, visualiza-se que os ambientes virtuais, se tornam gradativamente,<br />

potencializadores das relações de ensino, pois a utilização do computador como ferramenta de<br />

trabalho ou ambiente de pesquisa é suscetível de proporcionar contextos de aprendizagem ricos e<br />

estimulantes que promovem o envolvimento dos alunos e são propícios ao seu crescimento e<br />

desenvolvimento individual.<br />

Referências<br />

ASSIS, Juliana Alves. Gêneros Textuais, tecnologia e textualização. Script, Belo Horizonte, Editora da<br />

PUC Minas, v.6, n. 11, 2002, p. 134-151.<br />

Disponível em: http://www.ich.pucminas.br . Acesso em: 12/07/2010<br />

BEAUGRAND & DRESSLER, W. U. Introdução a lingüística do texto. Barcelona: Ariel, 1981.<br />

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Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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CIÊNCIA, TECNOLOGIA E IDEOLOGIA: UMA RELAÇÃO POSSÍVEL?<br />

Cézar Thadeu Pedrosa de Oliveira<br />

Doutorando em Administração pela<br />

Universidade FUMEC, Belo Horizonte, MG<br />

Mestre em Administração pela FGV/EBAPE, Rio de Janeiro, RJ<br />

Professor, consultor e palestrante da<br />

Faculdade Serrana de Ensino Superior, Brasília, DF<br />

Resumo: O presente artigo tem por finalidade apresentar alguns aspectos ligados ao estudo das<br />

ciências e das tecnologias presentes historicamente no mundo, para fomentar a discussão sobre o<br />

tema. Há possibilidade de uma relação entre ciência, tecnologia e ideologia? Tentaremos uma<br />

conclusão. O trabalho não ousa esgotar o assunto. Ao contrário, busca provocar mais discussão<br />

acadêmica. Para tanto, achou-se necessária a realização de uma abordagem histórica, relembrando<br />

os grandes cientistas filósofos da antiguidade, tais como Sócrates e Aristóteles, apresentando uma<br />

base teórica daquilo que se pode chamar da grande referência tecnológica, científica e ideológica do<br />

homem, até os tempos modernos. O trabalho apresenta também uma pequena conceituação e as<br />

relações distintas entre os termos. Há um breve exemplo do caso brasileiro, quando se aborda o<br />

contexto Estado.<br />

Palavras-chave: Ciência, Tecnologia, Ideologia.<br />

Abstract: This article aims to present some aspects related to the study of sciences and technologies<br />

present historically in the world, to foster discussion on the topic. There is the possibility of a<br />

relationship between science, technology and ideology? We‘ll try a conclusion. The work does not<br />

dare to be exhaustive. On the contrary, seeks to provoke further scholarly discussion. To this end, it<br />

was felt necessary to perform a historical approach, recalling the great philosophers of ancient<br />

scientists, such as Socrates and Aristotle, with a theoretical basis of what might be called the great<br />

reference technological, scientific and ideological for human being until present time. The paper<br />

also presents a little different concepts and relations between terms. There is a brief example of the<br />

Brazilian case, when it addresses the context of the state.<br />

Keywords: Science, Technology, Ideology.<br />

Conhecendo um pouco sobre as ciências: Uma introdução<br />

A origem da palavra ciência vem do latim scientia, que quer dizer conhecimento, originandose<br />

por sua vez do verbo scire, que significa saber. Esta origem etimológica traz a fonte da faculdade<br />

mental do conhecimento pelo ser humano. Em uma análise mais restrita da palavra, pode-se dizer<br />

que a mesma se refere a um processo sistemático de aquisição do conhecimento, por intermédio de<br />

um método científico, este, um conjunto de regras básicas para se desenvolver uma experiência a<br />

fim de criar novos conhecimentos ou de corrigir os existentes. O método científico consiste, então,<br />

em um sistema organizado de observação dos fenômenos da natureza, inclusive do homem, onde<br />

este realiza a juntada de evidências mensuráveis, empíricas ou simplesmente observáveis, tentando<br />

testá-las por meio da lógica. Entenda-se a natureza como um conjunto de fatores ou espaços, que<br />

se encontram não só no meio ambiente, mas nas organizações, no mundo dos negócios, no meio<br />

acadêmico e no próprio homem. A ciência, no sentido mais amplo então, é um aglomerado de<br />

conhecimentos tácitos, empíricos e práticos, adquiridos pelas observações da natureza, por<br />

pensadores e pesquisadores da história e da atualidade, que se utilizam do método científico para<br />

testá-las e experimentá-las, no sentido de se encontrar a lógica dos fenômenos que ocorrem na vida<br />

terrestre, mesmo aqueles que deram origem às teorias sobre o universo.


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O surgimento do pensamento científico deu-se na Grécia antiga, pelos pensadores filósofos<br />

ditos pré-socráticos, como Xenófanes, Demócrito de Abdera, Tales de Mileto, Pitágoras,<br />

Empédocles, dentre vários outros. São assim denominados, não obrigatoriamente pelas suas<br />

existências físicas históricas, haja vista que muitos eram contemporâneos de Sócrates, mas por<br />

terem sido os primeiros pensadores e observadores da natureza, também chamados de précientistas<br />

ou filósofos da natureza. Por sua vez, o filósofo grego Sócrates (469 – 399 a.C) foi um<br />

dos principais pensadores das ciências antigas, sendo um dos fundadores da filosofia ocidental<br />

moderna. Utilizava-se da maiêutica (induzia a pessoa, pelo seu próprio raciocínio, ao conhecimento<br />

ou à solução de uma questão) e da ironia (fazia que o seu interlocutor caísse em contradição,<br />

levando-o a descobrir que seu conhecimento era limitado), ambas constituíam o método conhecido<br />

como socrático, muito famoso e utilizado pelo filósofo. Sobre o conhecimento, costumava a dizer<br />

que sua sabedoria se limitava à sua própria ignorância, sendo dele a célebre frase: ―Só sei que nada<br />

sei‖. Acreditava que os erros humanos eram frutos, unicamente da ignorância. Aristóteles, também<br />

filósofo grego contemporâneo de Sócrates e aluno de Platão, foi um ícone do pensamento<br />

científico da antiguidade, tendo seus escritos abordado diversos assuntos em áreas como a ética,<br />

governo, física, biologia, lógica, teatro, música, zoologia, isto é, quase todos os ramos do<br />

conhecimento humano de sua época. Era considerado por Augusto Comte como o príncipe eterno<br />

dos verdadeiros filósofos. Suas obras influenciaram os movimentos intelectuais da Idade Média, no<br />

Renascimento, e suas observações biológicas foram finalmente comprovadas no século XIX (Lins,<br />

1964).<br />

A ciência moderna surgiu no movimento conhecido como Revolução Científica, ocorrido<br />

nos séculos XVI e XVII no continente europeu. Embora o Renascimento viesse dar o tom da<br />

revalorização dos pensadores da antiguidade, o movimento em si se caracterizou por dar, ao<br />

conhecimento científico, um viés mais estruturado e prático, desvinculando-o praticamente da<br />

filosofia e, principalmente, das influências dogmáticas da Igreja Católica, que dominava o<br />

pensamento humano desde a Idade Média. Inicia-se a Idade Moderna, época de outros<br />

acontecimentos que também influenciaram os novos cientistas, como a reforma protestante, a<br />

criação da imprensa e as teorias e descobertas dos estudiosos da época como Newton, Copérnico,<br />

Descartes e Galilei, nas áreas da física cósmica, do movimento dos planetas (principalmente o<br />

nosso), do sistema solar e da afirmação de que a matemática poderia ser utilizada para explicar e<br />

descrever as dimensões e formas dos corpos (Souza Santos, 1987). O uso da matemática foi<br />

encorajado para dar uma nova dimensão à ciência, criando um método científico mais rigoroso e<br />

crítico. É dessa fase da história que se origina o paradigma newtoniano, com abordagem racional e<br />

lógica, com forte ênfase nas ciências naturais, onde tudo pode ser explicado, por medições e por<br />

tudo aquilo que possa ser observado. Havia uma tentativa de se separar o homem da natureza, onde<br />

o rigor científico se aferia pelo rigor das medições. Tal paradigma consolidou o método de<br />

Descartes (racional-dedutivo) quando pregava que para se conhecer o todo seria necessário<br />

fragmentá-lo. No entanto, foi quebrado pela lei da relatividade de Einstein. Uma de suas afirmações<br />

era a de que as medições no universo, embora não pudessem ser observadas, poderiam ser<br />

definidas, aqui, sem sair da própria Terra.<br />

As contribuições de novos pensadores, especialmente a partir do século XVIII, fizeram<br />

com que o mapeamento de outras teorias nas áreas sociais e de humanas, trouxesse um novo<br />

enfoque na aquisição do conhecimento humano. Autores como Marx, Smith, Ricardo, Weber,<br />

Freud e Darwin, com suas teorias econômicas, sociais, da psique e da evolução das espécies, por<br />

exemplo, provaram que o racional-positivista-dedutivo, isto é, o próprio modelo cartesianonewtoniano,<br />

não era a única e pura verdade existente na caminhada do homem na Terra,<br />

corroborando com os questionamentos de Rousseau (1750), em ―O discurso sobre as ciências e as<br />

artes‖, onde indaga sobre se há relação entre ciência e virtude, e se há razão para substituirmos o<br />

conhecimento da natureza, amplamente acessível, pelo científico produzido por poucos e reduzido<br />

a uma insignificante minoria. A resposta é não. As ciências podem andar em conjunto, interagindo<br />

entre si, como hoje ocorre com as naturais, exatas, sociais, humanas, da terra etc. Souza Santos


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(1987) lembra que sempre é possível estudar fenômenos sociais, pelos naturais, por mais que sejam<br />

diferentes e que todo conhecimento é auto-conhecimento, é interdisciplinar e é humano.<br />

O que é uma ideologia?<br />

Ideologia é um conjunto de idéias ou pensamentos de uma pessoa ou de um grupo de<br />

indivíduos. A ideologia pode estar ligada a ações políticas, econômicas e sociais. O conceito de<br />

ideologia foi muito trabalhado pelo filósofo alemão Karl Marx (2002), que ligava a ideologia aos<br />

sistemas teóricos (políticos, morais e sociais) criados pela classe social dominante. De acordo com<br />

Marx, a ideologia da classe dominante tinha como objetivo manter os mais ricos no controle da<br />

sociedade. No século XX, várias ideologias se destacaram:<br />

- Ideologia fascista: implantada na Itália e Alemanha principalmente, nas décadas de 1930 e 1940.<br />

Possuía um caráter autoritário, expansionista e militarista.<br />

- Ideologia comunista: implantada na Rússia e outros países (principalmente do leste europeu), após<br />

a revolução russa de 1917. Visava a implantação de um sistema de igualdade social.<br />

- Ideologia democrática: embora surgida em Atenas, na Grécia Antiga, possui como ideal a<br />

participação dos cidadãos na vida política.<br />

- Ideologia capitalista: surgiu na Europa durante o Renascimento comercial e urbano (século XV).<br />

Ligada ao desenvolvimento da burguesia, visa o lucro e o acumulo de riquezas.<br />

- Ideologia conservadora: idéias ligadas à manutenção dos valores morais e sociais da sociedade.<br />

- Ideologia anarquista: defende a liberdade e a eliminação do Estado e das formas de controle de<br />

poder.<br />

- Ideologia nacionalista: exaltação e valorização da cultura do próprio país.<br />

A ideologia no pensamento Marxista (materialismo dialético) é um conjunto de<br />

proposições elaborado na sociedade burguesa, com a finalidade de fazer aparentar os interesses da<br />

classe dominante com o interesse coletivo, construindo uma hegemonia daquela classe. A<br />

manutenção da ordem social requer dessa maneira menor uso da violência através de força explícita.<br />

Assim, a ideologia torna-se um dos instrumentos da reprodução do status quo e da própria<br />

sociedade. Já o método precípuo da ideologia é a utilização do discurso lacunar, de Althusser<br />

(1965), onde uma série de proposições, nunca falsas, sugere uma série de outras, que as são. Desse<br />

modo, a essência do discurso lacunar é o não dito porém sugerido. Por exemplo, quando se diz:<br />

―Todos são iguais perante a lei‖ (verdade, numa sociedade burguesa, segundo o autor) sugere que<br />

todos são iguais no sentido de terem oportunidades iguais (o que é falso, segundo Althusser, devido<br />

à propriedade privada dos meios de produção). Marx & Engels (2002) desenvolveram uma teoria a<br />

respeito da ideologia, na qual concebe a mesma, como uma consciência falsa, proveniente da<br />

divisão entre o trabalho manual e o intelectual. Nessa divisão, surgiriam os ideólogos ou<br />

intelectuais, que passariam a operar em favor da dominação ocorrida entre as classes sociais, por<br />

meio de idéias capazes de deformar a compreensão sobre o modo como se processam as relações<br />

de produção. Neste sentido, a ideologia (enquanto falsa consciência) geraria a inversão ou o disfarce<br />

da realidade, para os ideais ou interesses da classe dominante. Segundo Chauí (1997), a ideologia<br />

não é sinônimo de subjetividade oposta à objetividade, não é pré-conceito nem pré-noção, mas sim<br />

um fato social justamente porque é produzida pelas relações sociais, possui razões muito<br />

determinantes para surgir e se conservar, não sendo um amontoado de idéias falsas que prejudicam<br />

a ciência, mas uma certa maneira de produção das idéias pela sociedade ou melhor, por formas<br />

históricas determinadas das relações sociais.<br />

O termo tem sido identificado pela história, por certos conceitos dos quais podem se<br />

destacar dois: o neutro, que trata de um ideal, isto é, um objetivo compartilhado por um grupo de<br />

pessoas, formado por um conjunto de idéias orientadas para ações sociais e políticas de interesse<br />

coletivo, e o da crítica, fazendo com que a ideologia possa ser considerada como um instrumento<br />

de dominação que age por meio de convencimento, persuasão ou dissuasão, mas não por meio da<br />

força física ou constrangimento ético, moral ou intelectual, de forma prescritiva, alienando a


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consciência humana. Há também a questão da palavra ser confundida com radicalismo ou<br />

fanatismo, coisa que etimologicamente pouco tenha a ver (alguns dicionários a ligam como<br />

fundamento de seita religiosa, logo encaixa-se o fanatismo). Tal confusão pode chamar a atenção do<br />

fato de que certos grupos, em nome da ideologia, ou radicalizam no trato com demais grupos ou<br />

simplesmente descumprem aquilo que por ventura tenham acordado, caracterizando a falsidade. A<br />

principal divergência conceitual da concepção crítica de ideologia está na necessidade ou não de que<br />

um fenômeno, para que seja ideológico, necessariamente tenha de ser ilusório, mascarador da<br />

realidade e produtor de falsa consciência.<br />

Tecnologia e Ciência<br />

A palavra tecnologia, de origem grega (techno: técnica, arte, ofício; logia: estudo), significa<br />

o conjunto das técnicas, processos e métodos específicos de uma ciência, ofício, indústria, dentre<br />

outros, tratando dos métodos e do desenvolvimento das artes industriais, como a tecnologia das<br />

telecomunicações, e dos termos próprios das artes, ofícios, indústrias etc. É um termo muito<br />

empregado quando se relacionam o conhecimento técnico, científico, processos e materiais que são<br />

reunidos, como ferramentas para a criação de novos processos, produtos e serviços. Normalmente,<br />

a palavra é lembrada quando se envolve algum tipo de inovação, mesmo que as tarefas sejam, na<br />

sua essência, rotineiras ou antigas. Um bom exemplo poderia ser colocado no caso da escrita<br />

realizada por máquinas. Hoje, ―digita-se‖ o texto em meios eletrônicos (computadores, telefones<br />

celulares etc), levando a ―velha‖ máquina de escrever, praticamente, à inexistência.<br />

Desde o surgimento da pedra lascada (cerca de 10.000 a.C., passagem do período<br />

Paleolítico para o Neolítico), quando os primeiros homens descobriram como transformá-la em<br />

ferramenta para caça, até as viagens espaciais de hoje, a tecnologia sempre esteve presente. Deste<br />

modo, pode-se dizer que a tecnologia é tão antiga quanto à história da humanidade. Como inovação<br />

ou evolução tecnológica do homem, lembra-se a descoberta do fogo, o que permitiu o melhor<br />

aproveitamento dos alimentos e a qualidade da alimentação, proteção contra outras tribos e<br />

animais, e iluminação e aquecimento das habitações primitivas. A evolução tecnológica continuou<br />

nos tempos antigos, tendo o homem inovado, inventado e descoberto uma série de utilizações dos<br />

recursos ofertados pela natureza. O uso do cobre data de 8.000 a.C, já o homem possuindo<br />

habilidades de derretimento e forja, com o emprego do fogo. O bronze é utilizado pelo ser humano<br />

desde 4.000 a. C., e o ferro e o aço, desde 1.400 a. C. Nessa viagem pelo tempo, podem ser citados<br />

outros inventos e descobertas, tais como o emprego da argila para fabricação de utensílios<br />

domésticos em cerâmica, construções dos mais diversos usos como as cidades gregas e os<br />

aquedutos romanos, a madeira como combustível e os minerais para forja desde armas de guerra até<br />

acessórios de uso individual. Hoje, quando se vive a era nuclear e espacial, podem ser citados os<br />

diversos tipos de tecnologias utilizados pelo homem, como a biotecnologia, a nanotecnologia, a<br />

tecnologia da informação, a de defesa e a de energia.<br />

A ciência e a tecnologia sempre andaram juntas. Desde os cientistas pré-socráticos,<br />

passando pela revolução científica até os dias atuais, o homem busca conhecimento, pesquisa,<br />

estuda e desenvolve tecnologia em prol de sua sobrevivência na Terra. Mesmo nas ciências sociais<br />

aplicadas e em outras disciplinas interdisciplinares não cartesianas ou racionais, a tecnologia está<br />

presente como produto do conhecimento adquirido para a transformação, não só de materiais,<br />

como também de processos e serviços. O que inicialmente pode ser encarado como subjetividade,<br />

pode, em um segundo momento, gerar situações ou aspectos mensuráveis no meio ambiente em<br />

que se viva. Basta ver os esforços de algumas nações, como exemplo de caso, em buscar ao<br />

máximo, proporcionar uma melhor qualidade de vida de seus cidadãos, por intermédio de políticas<br />

públicas eficazes, que trazem retorno à sociedade em bons serviços públicos básicos. O índice de<br />

desenvolvimento humano (IDH) é um bom exemplo disto. A tecnologia, portanto, encontra-se<br />

também no Estado. Seja na melhoria da qualidade de vida da população, seja na melhoria de sua<br />

própria estrutura, para oferecer o bom atendimento aos anseios do povo e de sua relação com<br />

outros Estados, seja cultural, comercial ou diplomática apenas. Sabe-se que, a partir das cidades-


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estado gregas, origem dos Estados modernos, a tecnologia e a ciência, na maioria dos casos, partem<br />

da iniciativa destes organismos. São incentivos à cultura, à educação, ao desenvolvimento de novos<br />

conhecimentos e produtos, como maquinaria, ferramentas, indústria de transformação, de novas<br />

fontes energéticas, novas formas de proteção à saúde, novos alimentos, dentre outros, que são<br />

emanados do Estado por intermédio de suas políticas públicas de ciência e tecnologia.<br />

A relação entre ciência, tecnologia e ideologia<br />

A existência humana sempre foi impregnada pela ideologia, seja no conceito neutro, seja no<br />

crítico, seja no materialismo dialético de Marx (2002), seja no discurso lacunar de Althusser (1965).<br />

Tratando-se da abordagem neutra, isto é, aquela que visa um ideal, um objetivo compartilhado por<br />

um grupo de pessoas a ser alcançado, formado por um conjunto de idéias orientadas para ações<br />

sociais e políticas de interesse coletivo, percebe-se, sim, que há relação entre estes três atores<br />

abstratos (ciência, tecnologia e ideologia) e que podem caminhar juntos. Embora o conceito de<br />

ideologia esteja atrelado a questões sociais e políticas (não necessariamente partidárias e sim as do<br />

próprio ser humano), a questão é que a mesma influencia na ciência e na tecnologia, ferramentas<br />

essenciais para a sobrevivência do homem, no sentido de influenciá-lo na busca de novas<br />

descobertas ou inovações tecnológicas, mesmo que certas teorias vejam a ciência como a<br />

representação da verdade pura e absoluta de fenômenos reais, físicos e observáveis (o paradigma<br />

newtoniano). Não haveria o avanço tecnológico de certas culturas ou nações, se não houvesse a<br />

influência humana, conseqüentemente, no acreditar ser possível a realização, criação, transformação<br />

ou a simples descoberta dos elementos disponíveis na natureza, de onde tudo emana. É como<br />

critica Dagnino (2000) sobre a visão instrumental da ciência. Segundo o autor, a mesma vive<br />

atrelada a dois aspectos distintos: o da neutralidade e o do controle humano sobre a tecnologia. O<br />

primeiro, tratando da questão de que a ciência é independente de fatores sociais, políticos,<br />

ideológicos, econômicos e até mesmo culturais, e o segundo, de que a tecnologia é submetida,<br />

efetivamente, ao controle do homem.<br />

Na visão de Estado, esta relação apresenta-se um pouco mais complexa. Enquanto a<br />

sociedade acadêmica, no caso brasileiro, por exemplo, percebe o quão importante é o<br />

desenvolvimento tecnológico e científico que pode ser gerado nas Universidades, tal anseio frustrase<br />

por entraves estruturais, legais e até ideológicos das autoridades públicas. Não é concebida por<br />

um servidor público a idéia de que uma multinacional ou mesmo uma empresa de grande porte<br />

brasileira possa entrar numa Universidade para desenvolver projetos científicos, de modo a<br />

desenvolver a área de C&T de ambas as partes, algo que é comum no continente europeu e na<br />

América do Norte. Alguns servidores públicos e autoridades de altos cargos na administração<br />

pública brasileira, possuidores de um nível elevado de ideologia crítica, além de não inovarem para a<br />

modernização do Estado, ainda militam contra tal desenvolvimento. Aliás, a última tentativa de<br />

reforma gerencial na administração pública brasileira, segundo Bresser-Pereira (2001), foi em 1995,<br />

sob sua coordenação, quando foi ministro da administração federal e reforma do Estado, no<br />

primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, saindo o país de um plano<br />

patrimonial, desde o regime ―autoritário-modernizado‖ de Getúlio Vargas, nos anos 30 e passando<br />

pela reforma desenvolvimentista de Castelo Branco, em 1960. Segundo o próprio autor, tal reforma<br />

não pôde ser implantada. Visava o foco no cidadão, porém um Estado mais presente na economia e<br />

na vida da sociedade, regulador, máximo, estatizante, ao contrário do pensamento neo-liberal de<br />

Estado ―mínimo‖, desestatizante, centralizado e financeiro. Eis o viés ideológico que pode<br />

influenciar negativamente o desenvolvimento da ciência e da tecnologia de um país e de seus<br />

cidadãos. A questão regulamentar parecer ser outro entrave à boa convivência entre ciência,<br />

tecnologia e ideologia, que possa proporcionar o crescimento de um povo. No Brasil, por exemplo,<br />

há outro obstáculo que impede tal relação entre a iniciativa privada e os estabelecimentos de ensino<br />

científico-tecnológico. Trata-se da Lei nº 8.666/93, que normatiza as licitações e os contratos<br />

públicos. Por ela, todo tipo de fornecimento ao Estado (produtos e serviços), tem que passar pelo<br />

crivo de todos os interessados no mercado, sendo o processo também acessível ao cidadão, numa<br />

espécie de concorrência pública, um tipo de pregão, isto é, ganha aquele fornecedor que venda seus


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produtos ou serviços pelo menor preço. É óbvio que no caso do desenvolvimento de<br />

conhecimento em pesquisa, ciência e tecnologia, este tipo de regra não funciona. Não se pode<br />

leiloar o que está na cabeça dos seres humanos ou seu aprendizado, isto é, aquilo que é produzido a<br />

partir do conhecimento tácito do homem, mesmo transferido para as organizações em forma de<br />

competências adquiridas.<br />

Já no âmbito da iniciativa privada, a relação parece ocorrer de forma mais flexível. As<br />

grandes corporações, na disputa pela sobrevivência em um mercado competitivo global, não<br />

pensam duas vezes em investir cada vez mais em ciência e tecnologia. A questão ideológica é que<br />

parece se pulverizar. Enquanto as relações internas da organização, sem entrar no mérito da<br />

estratégia, do marketing ou do estudo sobre clima e cultura organizacionais, fazem com que o ideal,<br />

isto é, o objetivo no lucro, no ganho de marcado e na vantagem competitiva, naquilo que foi visto<br />

no presente trabalho como sendo a ideologia neutra, possam interagir perfeitamente com a ciência e<br />

a tecnologia; por outro lado há divergências e críticas sérias do modo de agir de certas empresas.<br />

Independentemente do marketing social ou de puro conceito de marketing que possam realizar,<br />

quando se conveniam com Universidades em prol do desenvolvimento de C&T, o que se põe em<br />

crítica é a forma de atuação no mundo globalizado. Chomsky (2000) apresenta bem as questões que<br />

envolvem desigualdade, exclusão e democracia na atual ordem econômica mundial. Além de<br />

retratar aspectos ligados ao imperialismo de nações superpotências econômicas mundiais, no<br />

controle econômico direto e indireto das demais periféricas, especialmente as subdesenvolvidas ou<br />

em desenvolvimento, o autor alerta também sobre a atuação de grandes corporações globais em tais<br />

mercados emergentes ou de terceiro mundo, citando empresas como a Gillette, a Caterpillar, a<br />

General Motors e a Volkswagen, que concentram suas áreas de ciência e tecnologia em seus países<br />

de origem, normalmente desenvolvidos economicamente, transferindo para os países periféricos<br />

linhas de montagem ou produção, em troca de benefícios fiscais e de baixos custos de mão-de-obra<br />

e matéria prima, provocando em países ―depositários‖ a ilusão do desenvolvimento. Neste cenário,<br />

a relação tripartite se apresenta extremamente vantajosa para as corporações e suas nações de<br />

origem detentoras do conhecimento e da tecnologia, em detrimento às desvantagens gritantes para<br />

as nações periféricas, comprometendo significativamente a pesquisa, o desenvolvimento, a ciência,<br />

a tecnologia, afetando inclusive a ideologia de um povo e o seu futuro. Não é à toa que há bastante<br />

tempo, se ouve falar em ―países em desenvolvimento‖, como se fosse um estigma do eterno<br />

subdesenvolvimento.<br />

Conclusões<br />

O presente trabalho não tem a pretensão de esgotar o assunto. Busca provocar novas<br />

discussões acerca do tema. Nessa ótica, achou-se necessária uma abordagem inicial, praticamente<br />

passando por cada um dos tópicos até fechar na questão de que a relação entre ciência, tecnologia e<br />

ideologia é, sim, possível, podendo estes entes caminharem em conjunto. A história humana é rica,<br />

complexa e fascinante. Nada existiria, no mundo moderno, se o homem não tivesse experimentado,<br />

descoberto, pensado, arriscado e inovado, desde o manuseio de ferramentas primitivas e a<br />

descoberta do fogo, passando pelos grandes cientistas filósofos da antiguidade, como Platão,<br />

Aristóteles, Anaxímenes, Tales de Mileto, Galilei, Pitágoras, Empédocles, São Tomás de Aquino,<br />

Descartes, Comte, Newton, Darwin, Einstein, Marx, Smith, Ricardo, dentre tantos outros, até os<br />

dias atuais, o que permite a existência de pesquisas e novas descobertas no ramo da nanotecnologia,<br />

biotecnologia e a tecnologia espacial, dando continuidade na caminhada terrena do homem, em<br />

busca de sua sobrevivência e de seu bem-estar econômico e social. É nesta caminhada que o<br />

homem vem juntando seus construtos ideológicos, fazendo ciência, construindo tecnologia e<br />

buscando e dependendo, cada vez mais, dos recursos da natureza.<br />

Os avanços modernos na área da tecnologia das comunicações, como a internet, o cloud<br />

computing, a velocidade da transmissão da voz e dos on line abroud news, por exemplo, podem se<br />

apresentar como um espelho do potencial humano para visão do futuro e da continuidade da<br />

aquisição do conhecimento. E este conhecimento compartilhado globalmente, pode incentivar ao


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homem persistir em mais aprendizado, buscando amparo na ciência do passado e do presente, para<br />

lançar-se ao futuro, com o surgimento de novas tecnologias. O homem, em sua essência continua o<br />

mesmo, isto é, o pensamento e o conhecimento humano são empregados na sua sobrevivência,<br />

como animal que é. Mas por causa da luta pela sobrevivência, não necessariamente, deve-se utilizar<br />

da coisa antiética. É sempre bom lembrar do que Chomsky (2000) escreveu sobre a globalização<br />

excludente, a respeito da ―verdade duradoura‖ equivocada de certas nações ricas e das grandes<br />

corporações, no trato com as nações menos favorecidas.<br />

Não se pode esquecer das palavras de Sócrates: ―Só sei que nada sei‖. Eis a essência do<br />

objetivo em que o homem dever persistir e continuar perseguindo, qual seja, a eterna busca pelo<br />

conhecimento. Sem este, nada é possível. Não se tem ciência, nem tecnologia e muito menos<br />

ideologia. A relação é possível, mas ainda se apresenta no mundo moderno como algo muito longe<br />

do ideal. Ao mesmo tempo em que trabalha em prol do homem, o maltrata. Ao mesmo tempo em<br />

que precisa, busca e recebe da natureza os insumos importantes e necessários para a eficácia de sua<br />

existência terrena, a destrói. Neste bojo de reflexão, Estados e corporações devem se encontrar e<br />

repensar o futuro. Afinal, ciência e tecnologia são para servir ao homem, bem como o ideário<br />

positivo, dinâmico, criativo e construtivo. Pensar no conceito de ideologia, como um conjunto de<br />

idéias políticas, econômicas e sociais, em favor da boa qualidade de vida na terra coaduna com a<br />

necessidade do desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Não se pode perder de vista os riscos<br />

de quebra desse elo, se for lembrada a teoria crítica do termo ideologia, pois se o pensamento<br />

humano parte para o radicalismo ou fanatismo, a harmonia e a tolerância deixam de existir. Desse<br />

modo, não há trabalho em equipe, visando à satisfação da comunidade. Tampouco haverá ciência e<br />

muito menos tecnologia.<br />

Referências<br />

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CTS+I de lª OEI, disponível em . Rio de Janeiro, Campus. 2002.<br />

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SOUZA SANTOS, Boaventura de. Um discurso sobre as ciências. Cidade do Porto: Edições Afrontamento, 1987. 64 p.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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APRIMORAMENTO ARTICULATÓRIO DE ALGUMAS CONSONANTES NA<br />

PRONÚNCIA DE ANGLOFALANTES APRENDIZES DO PORTUGUÊS<br />

Cirineu Cecote Stein<br />

Doutor em Letras Vernáculas pela<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro;<br />

Professor Adjunto do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas<br />

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba<br />

Rafael Alves de Oliveira<br />

Graduando do Curso de Licenciatura em<br />

Letras – Português da Universidade Federal da Paraíba<br />

Resumo: Na aquisição de uma língua estrangeira (L2), o aprendiz tende a projetar as características<br />

próprias dos segmentos sonoros de sua língua materna (L1) sobre a articulação desses segmentos na<br />

L2. Com base na pronúncia de anglofalantes, este trabalho analisa, brevemente, as estratégias<br />

articulatórias utilizadas por eles durante a pronúncia de segmentos fônicos do português brasileiro<br />

(PB) e propõe, com base na fonética acústico-articulatória, exercícios que aperfeiçoem a pronúncia<br />

do tap alveolar, das consoantes oclusivas, da consoante fricativa glotal desvozeada e da consoante<br />

lateral palatal, de forma semelhante às realizações feitas por brasileiros.<br />

Palavras-chave: fonética articulatória; português como língua estrangeira; pronúncia de<br />

anglofalantes<br />

Abstract: During the acquisition of a foreign language (L2), there is a tendency to project the<br />

characteristics of the segments of the mother language (L1) on the articulation of those segments in<br />

the L2. Based on the pronunciation of English speakers, this paper briefly focuses the articulatory<br />

strategies used by them during the pronunciation of Brazilian Portuguese segments, and suggests,<br />

based on the acoustic and articulatory phonetics, exercises to improve the pronunciation of the<br />

alveolar tap, the plosive consonants, the devoiced glottal fricative consonant, and the palatal lateral<br />

consonant, in a way similar to their phonetic realizations by Brazilians.<br />

Key-words: articulatory phonetics; Portuguese as a foreign language; English speakers<br />

pronunciation<br />

1. Introdução<br />

O ensino do português como língua estrangeira (PLE) é sustentado, tradicionalmente, por<br />

três pontos principais em sua metodologia: leitura, escrita e conversação. Um ponto essencial no<br />

ensino de uma segunda língua (L2) é que a conversação traga a capacidade, no nível fonético, de os<br />

aprendizes articularem os sons adequadamente, sem a influência de sua língua materna (L1).<br />

Durante a aquisição da L2, além da importância de o estudante adquirir um novo léxico e<br />

uma nova sintaxe, é desejável que ele também adquira a habilidade de pronunciar as palavras com a<br />

menor dificuldade possível, atendendo ao objetivo da transmissão de significado por meio dos sons<br />

dessa língua (LIMA JR., 2010). Por uma tendência normal do aprendizado, os estudantes tendem a<br />

adaptar a realização de alguns fonemas da L2 que não integram seu sistema fonológico, realizandoos<br />

de forma semelhante aos fonemas de sua língua materna que apresentam ponto e/ou modo de<br />

articulação mais próximos (ECKMAN, 2004). Esse procedimento contribui para um tipo de<br />

―nativização de empréstimos‖ (FREITAS & NEIVA, 2006) de fonemas, sobrepostos diretamente à<br />

L2 pelos aprendizes. Aqui, o termo ―empréstimo‖ diz respeito à pronúncia de fonemas<br />

consonantais do português brasileiro (PB) com a incorporação de algumas características<br />

articulatórias observadas na língua materna dos anglofalantes.


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As pesquisas relacionadas ao campo fonético e direcionadas para o ensino do PLE têm<br />

sido escassas, e não visam, normalmente, metodologias que permitam o aperfeiçoamento e a<br />

produção natural dos movimentos articulatórios necessários à realização de segmentos fônicos<br />

específicos. No âmbito da linha de pesquisa ―A fonética e o ensino da língua portuguesa como<br />

língua estrangeira‖, no Grupo de Estudos em Fonética (GEFone), e com a participação dos alunos<br />

do Programa Língüístico-Cultural para Estudantes Internacionais (PLEI) da Universidade Federal<br />

da Paraíba, analisamos algumas das interferências fonético-fonológicas do inglês sobre a pronúncia<br />

de algumas consoantes do PB, e sugerimos a conformação de alguns exercícios facilitadores do<br />

aprendizado articulatório dessas consoantes. Esperamos, com isso, contribuir, ainda que<br />

modestamente, para o preenchimento dessa lacuna.<br />

2. Metodologia<br />

Com o objetivo de identificar as dificuldades na aquisição da pronúncia dos fonemas<br />

portugueses, foram analisadas as falas de quatro informantes de L1 inglesa, aprendizes do PB. Esses<br />

estudantes estavam, à época, filiados ao Programa Língüístico-Cultural para Estudantes<br />

Internacionais (PLEI), em realização na Universidade Federal da Paraíba, e cursavam,<br />

respectivamente, os níveis básico, pré-intermediário, intermediário e avançado. Os dois primeiros<br />

eram masculinos, nascidos nos Estados Unidos da América; as duas outras, femininas, eram<br />

nascidas na Inglaterra. A expectativa foi a de, numa análise em tempo aparente, qualificar as<br />

dificuldades articulatórias segundo a sua complexidade. Assim, os problemas articulatórios que<br />

persistissem intensamente, mesmo na fala dos estudantes de nível avançado, deveriam ser<br />

considerados como oferecendo maior dificuldade à aquisição.<br />

A coleta dos dados baseou-se em um protocolo de pesquisa envolvendo a leitura de textos<br />

e frases. Além dessa leitura, realizou-se uma entrevista de cunho metalingüístico, em que os<br />

estudantes tiveram a oportunidade de externar suas dificuldades articulatórias quanto ao<br />

aprendizado da língua. Esse corpus foi analisado com o auxílio do programa computacional de<br />

análise acústica Praat (BOERSMA & WEENINK, 2006), o que permitiu identificar empiricamente<br />

os traços acústico-articulatórios transpostos do inglês para o português. Com base nesses dados,<br />

focamos as consoantes cuja realização fonética apresentou maior ocorrência de impropriedades e<br />

construímos alguns exercícios com o intuito de aprimorar o posicionamento articulatório dos<br />

órgãos da fala durante a pronúncia desses segmentos pelos estudantes de PLE.<br />

3. Dificuldades fonético-articulatórias detectadas em estudantes anglofalantes de PLE<br />

Como já mencionado, um dos fatores que influenciam a identificação de um estrangeiro em<br />

relação a uma L2 é a pronúncia de certos fonemas. Essa impropriedade articulatória ocorre, entre<br />

outros fatores, devido à projeção das características típicas desses segmentos na L1 sobre a L2. No<br />

escopo deste trabalho, as principais estratégias acústico-articulatórias utilizadas pelos anglofalantes<br />

na pronúncia dos segmentos do português foram a aspiração de consoantes oclusivas desvozeadas;<br />

o desvozeamento de consoantes oclusivas e fricativas vozeadas; a realização de uma consoante<br />

aproximante alveolar no lugar do tap alveolar; a qualidade imprecisa da consoante fricativa glotal<br />

desvozeada e da consoante lateral palatal.<br />

3.1. Aspiração em [t] e [k]<br />

No âmbito das línguas naturais, as consoantes oclusivas são articuladas de modo que<br />

ocorra um fechamento completo do trato vocal, impedindo a passagem da corrente de ar. Tanto no<br />

inglês quanto no português, as consoantes oclusivas apresentam equivalência: [p, b, t, d, k, g]. No<br />

entanto, esses segmentos consonantais possuem qualidades fonéticas distintas em uma e em outra<br />

língua.<br />

Analisando-se o corpus de fala, confirmou-se que as consoantes oclusivas desvozeadas [t] e<br />

[k] apresentaram uma qualidade que foge às características fonéticas do PB: no inglês, esses


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segmentos são produzidos com aspiração após a explosão típica das oclusivas. Essa aspiração,<br />

indicada pelo diacrítico [ h] em transcrições fonéticas restritas, ocorre nas consoantes [p, t, k] em<br />

posição inicial de palavra e em início de sílaba tônica, mas não quando seguem [s] na mesma sílaba<br />

(LADEFOGED, 1999).<br />

3.2. Desvozeamento em [d, g, z]<br />

A análise da pronúncia dos anglofalantes indicou desvozeamento, total ou parcial, em<br />

algumas consoantes vozeadas. Na língua inglesa, esse desvozeamento ocorre comumente nas<br />

consoantes oclusivas sonoras [b, d, g], à exceção de quando elas se encontram entre sons vozeados.<br />

No português, o desvozeamento não é comum em nenhuma oclusiva e tampouco nas fricativas.<br />

Observou-se que, além do constante desvozeamento motivado pela língua materna do<br />

informante em [d, g], pode ocorrer também o desvozeamento consonantal em [z], mesmo quando<br />

entre vogais.<br />

3.3. Problemas quanto ao ponto e ao modo de articulação do tap alveolar<br />

O tap alveolar não integra o sistema fonológico da língua inglesa. Por conta disso, os<br />

anglofalantes, na tentativa de produzirem esse segmento, buscam adaptar sua realização fonética ao<br />

modo de articulação de segmentos existentes em sua L1. Além de utilizarem com bastante<br />

freqüência um fonema consonantal do seu sistema fonológico que seja mais próximo do tap<br />

alveolar, como a consoante aproximante alveolar, os informantes ingleses empregaram também<br />

outras estratégias, como o apagamento segmental; a inserção de uma vogal epentética (longa)<br />

anteriormente ao segmento, no caso dos encontros consonantais, produzindo um tap intervocálico;<br />

e a qualidade lateral.<br />

3.4. Descaracterização da fricativa glotal desvozeada<br />

A fricativa glotal desvozeada caracteriza-se, articulatoriamente, por uma obstrução parcial<br />

da passagem de ar, devido à aproximação dos músculos da glote, sem a vibração das pregas vocais.<br />

Tanto no sistema fonológico da língua portuguesa quanto no da língua inglesa, manifesta-se a<br />

consoante fricativa glotal desvozeada, ainda que em posições fonológicas distintas, o que impede ao<br />

anglofalante reconhecer essa realização no PB como equivalendo sonoramente à que verifica em<br />

sua L1.<br />

Os estudantes de PLE que foram entrevistados apresentaram, como ―empréstimos‖<br />

(referindo-se ao fonema da língua inglesa que é sobreposto ao da língua portuguesa) de sua língua<br />

materna para realização da fricativa glotal desvozeada, o uso de uma consoante aproximante<br />

alveolar.<br />

3.5. Anteriorização da consoante lateral palatal<br />

A consoante lateral palatal é articulada com uma obstrução central da corrente de ar no<br />

trato vocal, motivada pelo levantamento da parte média da língua em direção à parte final do palato<br />

duro. Dessa forma, o ar é ejetado pelas laterais do trato vocal. Essa consoante, no entanto, não<br />

possui correspondente no sistema fonológico do inglês, em comparação ao sistema fonológico do<br />

português. Na análise do corpus, foi evidenciada uma ―anteriorização‖ da consoante lateral palatal.<br />

Nesse caso, o segmento foi substituído por uma consoante lateral alveolar.<br />

Como estratégia articulatória, notou-se que os anglofalantes pronunciaram uma consoante<br />

lateral alveolar e, em seguida, a vogal anterior alta, ou uma lateral alveolar velarizada com a mesma<br />

vogal anterior alta, e até mesmo um glide anterior consonantal, numa correspondência com a<br />

consoante aproximante palatal do inglês.


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4. Exercícios para o aprimoramento articulatório em anglofalantes<br />

Com base nos resultados obtidos, buscamos desenvolver, no âmbito da fonética<br />

articulatória, exercícios facilitadores da realização dos fonemas que ofereceram maior dificuldade na<br />

pronúncia pelos estudantes anglofalantes de PLE. Para cada aspecto, elaboraram-se as atividades a<br />

seguir.<br />

4.1. Aspiração de [t] e [k]<br />

a) Reconhecimento de palavras inglesas em que os fonemas [t] e [k] são pronunciados com<br />

as mesmas características articulatórias no português, ou seja, sem aspiração. Para [k], faz-se a<br />

diferenciação entre as pronúncias das palavras inglesas ‗scuba‘ (não-aspirada) e ‗cousin‘ (aspirada).<br />

Em seguida, conduz-se a percepção das semelhanças articulatórias entre ‗scuba‘ e ‗escuro‘. Para a<br />

distinção das realizações aspirada e não-aspirada de [t], no inglês e no português, são utilizadas as<br />

palavras cognatas ‗telephone‘ (aspirada) e ‗telefone‘ (não-aspirada), e as palavras ‗state‘ e ‗estado‘<br />

(não-aspiradas), para evidenciar a equivalência entre os sons não-aspirados;<br />

b) para ambas as consoantes, aplica-se um exercício oral, numa seqüência de cinco frases,<br />

com grau de dificuldade que varia gradativamente em número de fonemas (como no exemplo ‗O<br />

tamanho do tucano era espetacular.‘).<br />

4.2. Desvozeamento de [d, g, z]<br />

a) Apresentação de uma tabela com palavras em inglês, onde se introduz um par correlato<br />

dos respectivos fonemas, para que se torne perceptível a diferença entre uma consoante desvozeada<br />

e uma vozeada. Em relação às consoantes em questão, pode-se utilizar, para [d], ‗DELL‘ – ‗tell‘;<br />

para [g], ‗cat‘ – ‗get‘; para [z], ‗song‘ – ‗zombie‘;<br />

b) a partir do último exercício de percepção de consoantes vozeadas e desvozeadas,<br />

apresenta-se cada fonema separadamente, com o intuito de mostrar ao aprendiz as palavras inglesas<br />

em que não ocorre desvozeamento e relacionar sua pronúncia às palavras do PB em que ele<br />

também não ocorre, da seguinte forma: para [d], ‗DELL‘ – ‗dado‘; para [g], ‗gap‘ –‘gato‘; e para [z],<br />

‗zebra‘ – ‗casa‘;<br />

c) para cada fonema, estipulam-se cinco frases em inglês, com suas respectivas traduções<br />

no português, onde cada fonema é destacado em sublinhado e em letra capitular para reforçar a<br />

percepção dos sons iguais nas duas línguas, como em ‗I wanna Divorce!‘ – ‗Eu quero o Divórcio!‘.<br />

4.3. Problemas quanto ao ponto e ao modo de articulação do tap alveolar<br />

a) Inicialmente, estabelece-se a diferença entre as peculiaridades de pronúncia das palavras<br />

‗car‘ e ‗hat‘, distinguindo a aproximante alveolar da fricativa glotal desvozeada;<br />

b) aplica-se uma técnica articulatória progressiva, em que primeiro se exercita o<br />

relaxamento dos lábios, com a realização de um movimento de vibração, e depois a produção de<br />

uma consoante lateral palatal juntamente com a vogal central baixa, com o objetivo de identificar o<br />

modo de articulação do tap. Após isso, para chegar ao modo de articulação de um tap em posição<br />

alveolar, pede-se que a língua seja posicionada atrás dos dentes, ou até mesmo em contato com o<br />

palato duro, mantendo-se o mesmo movimento vibratório, até que se evidencie uma vibração de<br />

seu ápice;<br />

c) aplica-se um exercício prático para fixação, com três graus de dificuldade, estipulados<br />

através da quantidade de palavras em que o tap alveolar ocorra, chegando até quatro palavras numa<br />

mesma frase, como em ‗Caroline é carinhosa, amorosa e serelepe‘.<br />

4.4. Articulação apropriada da consoante fricativa glotal vozeada<br />

a) Conscientização de que há apenas semelhança – e não identidade – entre a pronúncia da<br />

consoante fricativa glotal do português e a do inglês, ressaltando-se que não são sons idênticos;


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b) aplicação de exercício que visa ao aprimoramento articulatório dessa consoante. O<br />

músculo da língua deve estar totalmente relaxado. Faz-se o reconhecimento da diferença entre as<br />

pronúncias das palavras inglesas ‗car‘ e ‗hat‘. Na língua portuguesa, solicita-se a pronúncia da<br />

palavra ‗porta‘, utilizando-se a mesma técnica de relaxamento do músculo da língua para ambas as<br />

palavras inglesas;<br />

c) utilização de um exercício prático para fixação, com três etapas, cada uma contendo<br />

cinco frases, com o grau de dificuldade relacionado à quantidade de vezes em que ocorre a<br />

consoante em questão (como em ‗José furtou um carro.‘);<br />

d) aplicação da leitura de um texto, em que o foco principal sejam as variantes do /R/ do<br />

português. A proposta de inclusão desse texto é o anglofalante fazer a distinção entre os sons do tap<br />

alveolar e da fricativa glotal desvozeada do português.<br />

4.5. Articulação apropriada da consoante lateral palatal<br />

a) Aplicação de exercício que visa ao aprimoramento articulatório dessa consoante, em que<br />

se faz a distinção da pronúncia de ‗alio‘, com a ponta da língua direcionada para trás dos dentes<br />

superiores, e a pronúncia de ‗alio‘ com o corpo da língua encostando-se ao palato duro. Em<br />

seguida, esse movimento repete-se algumas vezes, com aceleração do ritmo, até que ocorra a<br />

pronúncia de ‗alho‘ com a consoante lateral palatal;<br />

b) utilização de dois exercícios práticos para fixação, constituídos de cinco frases, em que o<br />

nível de dificuldade varie de uma (como em ‗A lhama bebeu água.‘) até duas (como em ‗O coelho<br />

comeu o milho.‘) consoantes laterais palatais.<br />

4.6. Exercício Final<br />

a) Leitura de um texto que apresente todos os fonemas exercitados reunidos.<br />

5. Resultados<br />

Visando à melhoria da articulação dos fonemas em questão na pronúncia do PB por<br />

anglofalantes, a aplicação dos exercícios acima a uma estudante escocesa, por exemplo, deixou<br />

perceber que:<br />

a) os exercícios para o tap alveolar obtiveram êxito. Porém, a informante sentiu dificuldade<br />

de pronúncia quando o segmento ocorreu em meio de palavra, como em ‗parede‘, e facilidade para<br />

pronunciá-lo em encontros consonânticos, como em ‗problema‘;<br />

b) nos exercícios de conscientização sobre a não-aspiração de [t, k] na língua portuguesa, a<br />

estudante conseguiu realizar os fonemas sem a aspiração quando a atenção estava direcionada para<br />

esse aspecto específico; no entanto, continuou produzindo a aspiração, geralmente na consoante [t]<br />

em posição inicial de palavra, quando outros núcleos problemáticos eram envolvidos;<br />

c) em relação aos exercícios que visaram ao não-desvozeamento de [d, g, z], a estudante<br />

conseguiu perceber as semelhanças desses segmentos nas palavras ‗divorce‘ e ‗divórcio‘, porém, nas<br />

palavras ‗diamonds‘ e ‗diamantes‘, não conseguiu perceber semelhança alguma, pois, na palavra<br />

inglesa ‗diamonds‘, a primeira ocorrência de [d] palataliza-se em seu dialeto. A pronúncia de [g], em<br />

algumas palavras, como ‗gastronomic‘, ocorreu com um pouco de desvozeamento. Para a<br />

consoante [z], a informante não realizou nenhum tipo de desvozeamento;<br />

d) a estudante realizou sem dificuldade a consoante fricativa glotal em posição inicial de<br />

palavra; porém, em final de sílaba, houve uma maior dificuldade, substituindo-se a consoante<br />

fricativa glotal por uma consoante aproximante alveolar em diversas palavras;<br />

e) quanto à consoante lateral palatal, a informante conseguiu fazer a pronúncia de ‗alho‘<br />

com exatidão, ao invés de ‗alio‘.


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Considerações Finais<br />

Como os sistemas fonológicos das línguas naturais tendem a se diferenciar uns dos outros,<br />

ainda que em particularidades, é necessário que o estudante de L2 se conscientize de que a<br />

articulação de um fonema em sua L1 não deve ser projetada sobre a articulação de um fonema que<br />

lhe é estranho na L2, ou mesmo sobre a de um que lhe seja equivalente. Mesmo em casos de<br />

equivalência, a realização de um fonema em línguas diferentes assume contornos próprios, que<br />

contribuirão para a sua individualização (HANDBOOK OF THE INTERNATIONAL<br />

PHONETIC ASSOCIATION, 1999). Assumindo-se esse pressuposto, o ensino de PLE,<br />

incorporando o desenvolvimento de pesquisas no campo fonético-articulatório, talvez oferecesse<br />

uma diminuição das dificuldades relativas à aquisição dos fonemas do português aos estudantes<br />

estrangeiros. Os exercícios aqui descritos foram uma primeira e modesta contribuição para inspirar<br />

uma metodologia que atente para a aplicação dos princípios da fonética articulatória a essa área.<br />

Os exercícios realizados sugerem um resultado satisfatório, na medida em que se consegue<br />

que o aprendiz adquira uma consciência, inclusive corporal, sobre as particularidades articulatórias<br />

dos segmentos sonoros. Deve-se considerar, sempre, que esses exercícios contribuem para uma<br />

parte do processo de aquisição. É necessário que o aprendiz repita esses exercícios inúmeras vezes,<br />

alternados com outros tipos de atividades, de forma a automatizar os movimentos articulatórios.<br />

Essa automatização, naturalmente, ocorre apenas com a repetição ao longo do tempo.<br />

Pretendemos, nesse sentido, que essas técnicas contribuam para a diminuição desse tempo de<br />

aprendizagem.<br />

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Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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COMPREENSÃO RESPONSIVA LEITORA DE ALUNOS<br />

DO 3º ANO DO ENSINO MÉDIO<br />

Cristiane Malinoski Pianaro Angelo 3<br />

Michele Kupczi 4<br />

Resumo: Fundamentado na perspectiva de Bakhtin e seu Círculo, o presente artigo aborda o<br />

conceito de compreensão responsiva leitora, bem como apresenta e discute as diferentes formas de<br />

expressão da compreensão, constatadas na leitura de alunos do 3º ano do Ensino Médio.<br />

Palavras-chave: compreensão responsiva; leitura; ensino médio.<br />

Abstract: This article, grounded on the perspective of Bakhtin and his Circle, approaches the<br />

concept of the responsive reading comprehension, as well as it presents and discusses on the<br />

different ways of comprehension expression, found in the reading of final year High School<br />

students.<br />

Keywords: responsive comprehension; reading; high school.<br />

A compreensão responsiva<br />

A questão da compreensão responsiva é abordada com mais propriedade em duas obras de<br />

Bakhtin e o Círculo: Marxismo e filosofia da linguagem (2003) e Estética da criação verbal (1999). Na<br />

primeira obra, Bakhtin/ Volochinov ressaltam que ―a cada palavra da enunciação em processo de<br />

compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica‖ (1999,<br />

p.132). Duas coisas saltam-nos aos olhos quando lemos essa citação. Um delas é que quando<br />

estamos inseridos no processo de compreensão algo ―nosso‖, próprio do ―compreendente‖, vem à<br />

tona, o que nos permite refutar o conceito de compreensão como ato de repetir as palavras do<br />

outro, reproduzir. Reforçando essa noção, Bakhtin/ Volochinov expõem que no processo de<br />

compreensão formamos uma ―réplica‖. Assim, compreender é ―replicar‖. Esse conceito fica mais<br />

claro ao recorrermos a três dicionários de Língua Portuguesa: o Dicionário Aurélio Escolar da<br />

Língua Portuguesa, o Dicionário Michaelis Online e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.<br />

Buscamos essa estratégia porque os dicionários registram os usos que se fazem das palavras,<br />

indicando o que a sociedade pensa sobre os assuntos. O verbete ―replicar‖ aparece nos dicionários<br />

da seguinte forma:<br />

Replicar. V.t.d..1. Combater com argumentos; contestar, refutar, redargüir. 2.<br />

Dizer como réplica, ou como explicação. T.i. 3. Responder a objeções ou<br />

respostas de outrem; retorquir: Não replicara ao orador (...) - Dicionário<br />

Aurélio Escolar da Língua Portuguesa<br />

Replicar (lat replicare) vti e vint 1 Responder às objeções ou críticas de; contestar,<br />

impugnar, objetar: Não houve quem lhe replicasse. Replicou fazendo novas acusações. vtd<br />

2 Dizer em réplica; responder, retorquir, retrucar: Replicar o insulto. Ninguém me<br />

replicou uma só palavra. vint 3 Responder, quando se deve obedecer calado. vtd e<br />

vint 4 Apresentar réplica; redargüir; responder desmentindo ou dizendo em<br />

contrário: Replicar uma impertinência. Criticados, precisamos replicar. - Dicionário<br />

Michaelis Online<br />

3 Professora do Departamento de Letras da Unicentro-Campus de Irati-PR; cristiane.mpa@gmail.com.<br />

4 Graduanda do curso de Letras: Português da Unicentro-Campus de Irati-PR. Pesquisa desenvolvida no<br />

Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência/ PIBID, apoiado pela Capes.


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Replicar v. (1292) 1 t.d., t.i., int. responder a objeções, a acusações; contestar,<br />

refutar < não quis r.> 2 t.d. dizer como<br />

réplica ou como (...) - Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa<br />

Segundo as definições apresentadas pelos dicionaristas, replicar consiste em um ato de pôrse<br />

à frente do discurso, um ato de não indiferença ao outro, o que pode ser constatado ao se<br />

observar as diferentes acepções: ―combater com argumentos‖; ―responder a objeções‖; ―responder<br />

as respostas de outrem‖; ―contestar‖; ―refutar‖. Ao considerarmos a compreensão como réplica na<br />

situação de leitura, ponderamos, então, que o leitor não se mantém apático diante do texto, mas<br />

toma uma atitude diante do lido, juntando-se ao autor, oferecendo-lhe uma resposta aos seus<br />

anseios e as suas visões de mundo.<br />

Na sequência da obra bakhtiniana, a compreensão é definida como um movimento dialógico:<br />

―a compreensão é uma forma de diálogo‖ (...) ―compreender é opor à palavra do locutor uma<br />

contrapalavra‖ (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1999, p.132). Isso significa que o ouvinte do<br />

discurso/leitor torna-se locutor/autor, participando ativamente de toda a prática interativa, ao<br />

ocupar uma posição responsiva e dar continuidade e expandir o processo comunicativo. Também<br />

o locutor/autor, ao produzir seu enunciado, conta com o seu ouvinte/leitor como parceiro no<br />

discurso ao esperar dele uma contrapalavra; ao mesmo tempo está dialogando, respondendo a<br />

enunciados anteriores, com os quais o seu próprio se relaciona de alguma maneira.<br />

Levando em conta as definições aqui apresentadas: ―compreender é replicar‖; ―compreender<br />

é dialogar‖; ―compreender é ‗contrapalavrear‘‖, torna-se nítido que o ativismo é intrínseco ao<br />

processo de compreender: ―qualquer tipo genuíno de compreensão deve ser ativo deve conter o<br />

germe de uma resposta‖ (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999, p.95 – grifos dos autores). A<br />

compreensão como ato passivo, aquela que exclui qualquer tipo de réplica, ―nada tem a ver com a<br />

compreensão da linguagem‖ (p.99); ela existe somente no trabalho do filólogo-linguista, que<br />

desvincula o enunciado da esfera real de comunicação, apreendendo o enunciado como um todo<br />

independente que se apoia em si mesmo, o que resulta ―uma teoria totalmente falsa da<br />

compreensão‖ (p.99).<br />

A natureza ―ativa‖ da compreensão responsiva é melhor elucidada na obra Estética da criação<br />

verbal (BAKHTIN, 2003), mais especificamente no capítulo ―Gêneros do discurso‖. Para Bakhtin,<br />

―até hoje existem na lingüística ficções como o ‗ouvinte‘ e o ‗entendedor‘ (parceiros do ‗falante‘, do<br />

‗fluxo único da fala‘, etc.). Tais ficções dão uma noção absolutamente deturpada do processo<br />

complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva‖ (2003, p. 271), ao sugerirem que o<br />

processo é ativo no falante e passivo no ouvinte/ receptor. Na verdade, ao longo de todo o<br />

processo de compreensão, desde o início, desde a primeira manifestação do falante, o ouvinte<br />

ocupa em relação ao discurso ―uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou<br />

parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.‖ (BAKHTIN, 2003, p.271).<br />

Bakhtin também destaca algumas formas de expressão da compreensão responsiva:<br />

É claro que nem sempre ocorre imediatamente a seguinte resposta em voz alta<br />

do enunciado logo depois de pronunciado: a compreensão ativamente<br />

responsiva do ouvido (por exemplo, de uma ordem militar) pode realizar-se<br />

imediatamente na ação (o cumprimento da ordem ou comando entendidos e<br />

aceitos para execução), pode permanecer de quando em quando como<br />

compreensão responsiva silenciosa (...), mas isto, por assim dizer, é uma<br />

compreensão responsiva de efeito retardado: cedo ou tarde, o que foi ouvido e<br />

ativamente entendido responde nos discursos subseqüentes ou no<br />

comportamento do ouvinte (...) Tudo o que aqui dissemos refere-se<br />

igualmente, mutatis mutandis, ao discurso escrito e ao lido. (BAKHTIN, 2003, p.<br />

272)


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Menegassi (2009), em estudo sobre as manifestações da responsividade mencionadas por<br />

Bakhtin, explica que a atitude responsiva é imediata quando ―o outro, ao compreender o enunciado,<br />

apresenta, imediatamente, ao locutor, a sua devolutiva, ou seja, expressa publicamente a sua posição<br />

em relação ao conteúdo verbal que lhe foi endereçado‖ (2009, p. 160). É passiva quando ―a<br />

devolutiva ao enunciado formulado pelo locutor se manifesta, no outro, pelo atendimento e<br />

cumprimento de um pedido, uma solicitação ou uma ordem‖, evidenciando uma relação social<br />

altamente assimétrica entre falante e ouvinte (p. 163); é de efeito retardado quando ―o<br />

posicionamento do outro não é verificado no exato momento da troca verbal‖ (p. 165), mas reflete<br />

mais tarde, nos discursos seguintes. Portanto, a compreensão responsiva não se manifesta de<br />

maneira única, mas de formas distintas, em virtude da própria situação de comunicação em que<br />

falante e ouvinte se encontram envolvidos.<br />

As noções trazidas pelo Círculo de Bakhtin sobre a compreensão responsiva vêm<br />

repercutindo nas discussões sobre leitura e têm trazido muitas contribuições às propostas<br />

pedagógicas para o seu ensino na escola.<br />

Menegassi (2010) ressalta como uma das características do leitor crítico a capacidade de<br />

estabelecer a ―leitura réplica‖. Trata-se do leitor que se posiciona como sujeito ativo frente ao<br />

material trabalhado, permitindo a produção de sentidos próprios, que se revelam por meio de<br />

palavras próprias. Desse modo, nas aulas de leitura é imprescindível que o professor instigue o<br />

aluno a constituir-se como um respondente crítico em relação ao texto, aliando-se ao autor num<br />

gesto de concordância ou discordância com o que diz.<br />

Na mesma linha de raciocínio, Rojo destaca que ler ―é escapar da linearidade dos textos e<br />

interpretá-los, colocando-os em relação com outros textos e discursos, de maneira situada na<br />

realidade social; é discutir com os textos, replicando e avaliando posições e ideologias que<br />

constituem seus sentidos; é, enfim, trazer o texto para a vida e colocá-lo em relação com ela‖ (2004,<br />

p.01-2), o que constitui a leitura como uma prática para a cidadania. Para a autora, essa leitura<br />

réplica abrange um conjunto de apreciações em relação ao texto, exigidas pela sociedade<br />

contemporânea, que envolvem desde a recuperação do contexto de produção do texto, a definição<br />

de finalidades e metas de leitura, a percepção de relações de intertextualidade e interdiscursividade,<br />

a percepção de outras linguagens até a elaboração de apreciações estéticas, afetivas e relativas a<br />

valores éticos e políticos. Essas últimas – apreciação de valores éticos e políticos – são, segundo<br />

Rojo, especialmente importantes para a cidadania, visto que envolvem a avaliação das ideias<br />

colocadas em circulação pelo texto, o que leva ―a uma réplica crítica a posições assumidas pelo<br />

autor no texto‖ (2004, p.07).<br />

Curado (2010, p.146) também sugere uma concepção de leitura não como um ato<br />

monológico, de significação imutável, mas como ―atividade, ação entre interlocutores,<br />

dialogicidade‖, o que significa inscrever o ato de ler em sua relação com a sociedade. Nessa<br />

perspectiva, a leitura aprofunda a visão sobre os fatos do cotidiano e motiva uma postura ativa e<br />

crítica do sujeito do mundo, incitando-o à ação, à busca pela transformação social. Como aponta o<br />

mesmo autor, a leitura consiste ―numa atividade social de ‗alcance político‘ porque constituída de<br />

sujeitos capazes de compreender o mundo e nele agir, exercendo as suas cidadanias‖ (CURADO,<br />

2010, p.146).<br />

As Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para o Estado do Paraná (PARANÁ, 2008,<br />

p.51), apropriando-se dos pressupostos do Círculo de Bakhtin e concebendo o texto como ―uma<br />

atitude responsiva a outros textos‖, destaca que a leitura implica uma resposta do leitor ao que lê.<br />

Na situação escolar de ensino da leitura, o professor deve atuar como mediador, propiciando o<br />

―desenvolvimento de uma atitude crítica que leva o aluno a perceber o sujeito presente nos textos e,<br />

ainda, tomar uma atitude responsiva diante deles‖ (PARANÁ, 2008, p.71).


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Enfim, na condição de réplica ativa, ler ultrapassa a ideia de oralizar e/ou extrair informações<br />

pontuais do texto, conforme se observa ainda em muitas práticas escolares. Pelo contrário, ler<br />

consiste numa conversa do leitor com o autor, via texto. Sendo assim, o leitor engaja-se na tarefa de<br />

reaver os conteúdos sociais que deram origem ao texto e que despertam no leitor uma posição<br />

responsiva ativa. Significa, então, trazer a vida para o momento da interação com o texto, o que<br />

implica tomar o texto ―como ‗um tecido de muitas vozes‘, de muitos textos ou discursos, vozes que<br />

se entrecruzam, se completam, que se respondem nas relações do discurso com o processo<br />

enunciativo, como o contexto sócio-histórico, com o ‗outro‘‖ (CURADO, 2010, p.143).<br />

Mostras da compreensão responsiva de alunos do 3º ano do Ensino Médio<br />

Levando em conta que a compreensão responsiva pode dar-se de diferentes formas,<br />

interessou-nos investigar de que modo alunos do 3º ano do Ensino Médio se manifestam na leitura.<br />

Para tanto, selecionamos duas turmas, composta por 40 alunos, que estão concluindo a Educação<br />

Básica em uma escola pública de Irati-PR. Na aplicação, foi entregue a cada participante uma cópia<br />

da crônica ―O Brasil explicado em galinhas‖ 5, de Luís Fernando Veríssimo, juntamente com três<br />

atividades de leitura: 1) Explique o título do texto. 2) É possível perceber mudanças no tratamento dado pelo<br />

delegado ao preso. Por que ocorrem essas mudanças? 3) Que críticas sobre o Brasil você percebeu no texto? Explique.<br />

Solicitou-se, então, que os alunos realizassem a leitura do texto e também as questões propostas,<br />

individualmente.<br />

Convém ressaltar que ―O Brasil explicado em galinhas‖ trata-se de uma crônica do cotidiano.<br />

Esse gênero se caracteriza por uma história curta, baseada em acontecimentos do dia a dia das<br />

pessoas e da realidade nacional, normalmente contendo uma crítica indireta e um tom humorístico.<br />

Nesse contexto, a crônica constitui-se como um lugar de representação dos fatos cotidianos;<br />

segundo Nélo (2009, p.04), ―é quase um registro historiográfico do olhar aguçado do cronista que<br />

passa a flagrar a cidade, os costumes e os usos do povo brasileiro, e revela ao seu leitor os casos<br />

mais inusitados e em suas interpretações sensíveis‖.<br />

Após a aplicação, passou-se a análise das respostas dadas pelos alunos e foram constatadas<br />

as seguintes manifestações, que passaremos a apresentar e comentar, sem qualquer interesse de<br />

quantificação: compreensão responsiva enviesada; compreensão responsiva não expansiva;<br />

compreensão responsiva em processo de construção crítica; compreensão responsiva criadora.<br />

Compreensão responsiva enviesada<br />

Consideramos como compreensão responsiva enviesada as respostas que não se respaldam<br />

no diálogo com o texto, mas consistem em adivinhações do leitor. Citamos como exemplos:<br />

- ―Que o Brasil está descontrolado, pessoas roubando para sobreviver‖;<br />

- ―Falta empregos no Brasil, aí as pessoas tem que roubar para comer‖.<br />

Nessas situações, os alunos procuram adivinhar as respostas, sem procurar confirmá-las no<br />

texto. Assim, no primeiro exemplo, o aluno expõe: ―o Brasil está descontrolado‖ e justifica a<br />

afirmação: ―pessoas roubando para sobreviver‖, o que não corresponde à discussão proposta pelo<br />

autor. No texto, o ladrão não rouba as galinhas para sobreviver (ou porque faltam empregos), mas<br />

para sentir-se realmente um ladrão, pois todos os crimes graves cometidos por ele, como sonegação<br />

de impostos e tráfico de drogas, não são passíveis de punição no Brasil.<br />

5 Disponível em: http://verissimotextos.blogspot.com/2010/10/o-brasil-eplicado-em-galinhas.html. Acesso<br />

em 03/09/2010.


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Como afirma Kleiman: ―Ir ao texto com idéias pré-concebidas, inalteráveis, com crenças<br />

imutáveis dificulta a compreensão quando estas não correspondem àquelas que o autor apresenta,<br />

pois nesse caso o leitor nem sequer consegue reconstruir o quadro referencial através das pistas<br />

formais (2000, p.65). Desse modo, ao darem as respostas demonstradas nos exemplos, os alunos<br />

evidenciam que realizaram a leitura presos a formulações prévias de que há no Brasil pessoas que<br />

cometem crimes para sobreviver ou porque faltam empregos e, sendo assim, tiveram dificuldades<br />

de recuperar os indícios textuais que poderiam levá-los a refletir sobre questões retratadas na<br />

crônica, como a impunidade e a corrupção no Brasil, colocando em relevo uma lacuna da escola no<br />

trabalho com a leitura.<br />

Compreensão responsiva não expansiva<br />

Chamamos de ―não expansiva‖ as amostras em que os alunos respondem de forma bastante<br />

limitada, com poucas palavras, ou limitam-se a copiar ou parafrasear trechos do texto, confirmando<br />

desinteresse em manter o diálogo com o autor.<br />

- ―O Brasil explicado em galinhas‖ trata-se de um roubo de galinhas de um galinheiro‖;<br />

- ―Identificando o Brasil sendo roubado por um ladrão de galinhas‖;<br />

- ―Sim, pois o cara fez um acerto com o dono do galinheiro, mais o cara finalmente foi<br />

preso‖;<br />

- ―Sim, porque não é uma história de galinhas‖;<br />

- ―O Brasil é tudo galinha e ovo‖.<br />

Os três primeiros exemplos consistem em meras cópias de trechos do texto, sendo os dois<br />

primeiros um recorte da parte inicial: ―Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um<br />

galinheiro e levaram para a delegacia‖, e o terceiro um recorte do diálogo do delegado como o<br />

preso ―-Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega...-Já me pegou. Fiz um acerto<br />

com ele‖. Nas outras duas respostas, os alunos fazem generalizações, respondendo de forma vaga e<br />

sem explicar as informações dadas: por que o texto não é uma história de galinhas? Por que no<br />

Brasil é tudo galinha e ovo?<br />

Supõe-se, por essas amostras, que os alunos não leram efetivamente o texto, mas somente<br />

responderam ao que foi perguntado, executando simplesmente o que lhes foi determinado. Assim,<br />

para esses alunos, as atividades de leitura não consistem numa possibilidade de construir sentidos,<br />

de ouvir o que o outro tem a dizer e de oferecer-lhe uma contrapalavra, mas como um<br />

cumprimento de uma tarefa escolar. Não há interesse de colocar-se em relação ao texto e de revelar<br />

ideias e pontos de vista próprios. Isso pode ter se dado em virtude das experiências escolares desses<br />

alunos com a leitura. Angelo e Menegassi (2007), ao analisarem a recepção dos alunos às atividades<br />

rotineiras de pergunta-resposta, apontam que essas atividades são vistas por esses leitores como<br />

tarefas que não têm finalidade do ponto de vista pedagógico. Por isso, escreve-se o mínimo, para<br />

garantir uma nota e atender a uma exigência do professor.<br />

Compreensão responsiva em processo de construção crítica<br />

Consistem em compreensão responsiva em processo de construção crítica as respostas que,<br />

de forma semelhante à categoria anterior, mostram-se bastante restritas, no entanto já apresentam<br />

indícios de reflexão pessoal.<br />

- ―O tratamento diferenciado que as pessoas bem de vida recebem na prisão‖;<br />

- ―Critica seu sistema de condenação‖<br />

- ―As pessoas acabam tomando a decisão errada por causa do dinheiro‖<br />

Esses alunos demonstram uma percepção crítica acerca da realidade social, ao citarem: a<br />

ineficácia da justiça no Brasil (―Critica seu sistema de condenação‖); os privilégios obtidos pelos


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presos com recursos financeiros (―O tratamento diferenciado que as pessoas bem de vida recebem<br />

na prisão‖); as atitudes tomadas pelas pessoas quando o dinheiro está em jogo (―As pessoas acabam<br />

tomando a decisão errada por causa do dinheiro‖). Todavia, não argumentam, não tecem<br />

explicações, não expandem o diálogo, como seria esperado de leitores que estão concluindo a<br />

Educação Básica. Mais uma vez, a escola demonstra falhas na formação desses alunos-leitores, visto<br />

que não os ensinou a replicar, contestar com argumentos, expor opiniões e ideias próprias,<br />

questionar os referenciais impostos pelo texto que circulam em sociedade e refletir sobre as<br />

condições da realidade circundante (ANGELO, 2010).<br />

Compreensão responsiva criadora<br />

Chamamos de compreensão responsiva criadora as manifestações em os alunos revelam-se e<br />

emitem um ponto de vista crítico referente ao conteúdo do texto ou a uma dada situação social. São<br />

exemplos disso:<br />

- ―O texto trata sobre roubo que se relaciona com a história do Brasil. O dinheiro aqui<br />

compra tudo. Pessoas se vendem para fazer o mal, roubar dinheiro público que serviria para<br />

melhorias na educação, segurança, entre outros fatores. E daí que vem as ‗gangues‘ do Brasil,<br />

com políticos como membros‖;<br />

- ―Que a pessoa pode ser o maior ladrão e a justiça sabe que ele tem ‗dinheiro‘ eles não o<br />

prendem, mas se for uma pessoa pobre e que não faça ‗nada‘ grave a justiça prende. A<br />

conclusão seria que a justiça apenas pensa no dinheiro e não no problema a ser resolvido‖.<br />

No primeiro exemplo, o aluno expande o diálogo com o autor ao questionar um problema<br />

sério quando se rouba dinheiro público da forma como ocorre na crônica: o desvio de dinheiro<br />

destinado a serviços utilizados pelo povo, como educação e segurança. No segundo há uma crítica<br />

severa ao sistema judiciário brasileiro que não pune aqueles que têm um alto poder aquisitivo,<br />

minimizando os crimes cometidos por esses: ―a justiça apenas pensa no dinheiro e não no<br />

problema a ser resolvido‖. Ao dialogar com o texto, esses alunos trazem discursos reproduzidos<br />

constantemente na sociedade e que certamente são bem vistos pela escola: o desvio de dinheiro<br />

público prejudica ou impede a execução de obras e serviços em benefício da população; no Brasil,<br />

só os pequenos delitos são punidos, relembrando um dito jocoso que afirma que no Brasil só ladrão<br />

de galinhas vai para a cadeia ou só para esse tipo de crime há justiça.<br />

Nesses casos, os alunos mostram que estão concluindo a Educação Básica como sujeitos<br />

leitores criativos, capazes de dialogar com o autor e de assumir um ponto de vista crítico em relação<br />

ao que está posto no texto e à realidade social.<br />

Considerações finais<br />

Nas respostas dos alunos do 3º ano do Ensino Médio, foram percebidas diferentes formas de<br />

expressão de compreensão: 1) compreensão responsiva enviesada: respostas que revelam uma leitura<br />

superficial, que não se confirmam no diálogo com o texto; 2) compreensão responsiva não expansiva:<br />

situação em que os alunos respondem de forma bastante limitada, com poucas palavras, ou<br />

restringem-se a copiar ou parafrasear trechos do texto, evidenciando desinteresse em manter o<br />

diálogo com o autor; 3) compreensão responsiva em processo de construção crítica: as respostas que, de forma<br />

semelhante à categoria anterior, mostram-se bastante restritas, no entanto já apresentam pequenos<br />

indícios de reflexão pessoal; 4) compreensão responsiva criadora: manifestações em os alunos revelam-se<br />

e emitem um julgamento crítico referente ao conteúdo do texto ou a uma dada realidade, dando<br />

continuidade ao diálogo com o autor.<br />

Ao final da Educação Básica, seria desejável que todos os alunos revelassem uma<br />

compreensão responsiva criadora, questionando os referenciais impostos pelos textos que circulam<br />

em sociedade e expondo um parecer crítico sobre a realidade. Assim, esses leitores estariam em


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condições de libertar-se da obediência cega e do passivismo, de protestar contra os aspectos<br />

desiguais da sociedade e de lutar por um mundo mais justo e equitativo. No entanto, não é o que<br />

acontece. Os alunos – jovens cidadãos, eleitores em sua maioria, muitos deles universitários amanhã<br />

– mostram-se ingênuos, passivos diante do texto. Tal situação convida-nos a repensar as<br />

metodologias de ensino da leitura no espaço escolar, para que ler se constitua de fato como uma<br />

prática social, crítica e reflexiva, em que o aluno-leitor dialoga, por meio do texto, com a sociedade,<br />

compreende e julga fatos e situações, posiciona-se frente ao mundo.<br />

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(Orgs.). Leitura: compreensão e interpretação de textos em Língua Portuguesa. Maringá: EDUEM,<br />

2010.<br />

NÉLO, M. J. Cultura e implícitos do brasileiro em crônicas de cotidiano. Disponível em<br />

http://www.lenguas.unc.edu.ar/aledar/hosted/actas2009/expositores/Nelo,%20Maria.pdf. Acesso<br />

em 20/11/2010<br />

ROJO, R. Letramento e capacidades de leitura para a cidadania. São Paulo: SEE: CENP, 2004.<br />

http://suzireis.bravehost.com/posgraduacao/artigos/roxane_rojo.pdf. Acesso em 20/11/2010.<br />

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa para os<br />

Anos Finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio: Língua Portuguesa. Curitiba: SEED, 2008.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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UM OLHAR SOBRE A POÉTICA DE MARIA ÂNGELA ALVIM<br />

Danglei de Castro Pereira UEMS/UUCG<br />

Isabelle Akemi Diniz Tanji UEMS/CNPq<br />

Resumo: O artigo aborda a poética Maria Ângela Alvim no contexto da publicação de seus livros e,<br />

ao mesmo tempo, comenta aspectos relevantes em sua produção. Nossa preocupação central foi<br />

discutir a poética de Alvim e sua relação com valores estéticos de seu tempo e, nesse percurso,<br />

discutir particularidades de sua obra.<br />

Palavras-chave: revisão do cânone, poesia modernista, Maria Ângela Alvin<br />

ABSTRACT<br />

The article approaches poetic Maria Ângela Alvim in the context of the publication of its books<br />

and, at the same time, it comments important aspects in its production. Our central concern went<br />

discuss to poetic of Alvim and its relationship with aesthetic values of its time and, in that course,<br />

to discuss particularities of its work.<br />

Keys-words: revision of the canon, modernist poetry, Maria Ângela Alvin<br />

Introdução 6<br />

Pretendemos neste trabalho discutir a importância de revisitar o cânone literário e, mais<br />

especificamente, apresentar a obra de Maria Ângela Alvim. Ao compreender que o percurso<br />

canônico, muitas vezes, produz o enquadramento de obras literárias ao conjunto de regras<br />

preestabelecidas pelos compêndios literários, a investigação aqui apresentada entra em consonância<br />

com a proposta de valorização intrínseca da diversidade de obras dentro da tradição, elemento<br />

central dos estudos revisionistas do cânone literário linha teórica a qual esta pesquisa é vinculada.<br />

O principal aspecto metodológico envolvido na pesquisa consiste em abordar a obra de<br />

Maria Ângela Alvim, apresentar algumas reflexões sobre a recepção de sua poesia e, por fim,<br />

comentar aspectos de sua obra dentro da poesia brasileira. Nesta postura apresentaremos uma<br />

discussão critica de alguns poemas de Maria Ângela Alvim, retirados da obra Superfícies único livro<br />

publicado em vida pela autora em 1956.<br />

Cabe lembrar, que não pretendemos colocar a autora em discussão em posição de destaque<br />

dentro do cânone literário e do Modernismo brasileiro, antes discutir a recepção de sua obra e,<br />

neste contexto, apontar para algumas particularidades de sua poésia em um contexto tão rico como<br />

o foi a poesia brasileira do século XX.<br />

Vida e Obra de Maria Ângela Alvim<br />

Maria Ângela da Costa Cruz Alvim, nasceu no primeiro dia de janeiro de 1926, na fazenda<br />

de Pouso Alegre, Volta Grande, Zona da Mata, Minas Gerais. Filha mais velha de Fausto Figueira<br />

Soares Alvim e de Mercedes Costa Cruz Alvim, teve quatro irmãos, Mauricio da Costa Cruz Alvim,<br />

6 O trabalho é resultado de uma pesquisa em nível de iniciação científica desenvolvida pela acadêmica Isabelle<br />

Akemi Diniz Tanji, com apoio do CNPq, na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Unidade<br />

Universitária de Campo Grande, sob orientação do Prof. Danglei de Castro Pereira, no período de agosto de<br />

2009 a agosto de 2010.


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Maria Lucia Alvim, Francisco Soares Alvim Neto e Fausto Alvim Junior. Formada pela<br />

Universidade Federal de Minas Gerais, na primeira turma de do curso de Assistência Social, foi uma<br />

pessoa ligada às dificuldades sócio-econômicas da cidade de Belo Horizonte no inicio do processo<br />

de transformação da cidade provinciana em uma metrópole. Em um períod de grandes<br />

transformações sócio/econômicas Alvim manteve um forte envolvimento com temas sociais e as<br />

dificuldades enfrentadas pelos menos favorecidos. Deste envolvimento surge um sentido de<br />

incompreensão do mundo, agravado pelo estado de inoperância vivido pelo homem após a eclosão<br />

da Grande Guerra Mundial. O sentido de não pertencimento e situação fragmentária do homem<br />

pós-guerra surge uma temática recorrente em sua poesia.<br />

Maria Ângela Alvim faleceu em 19 de Outubro de 1959 de uma doença nervosa. Seu livro<br />

de estréia foi Superfície publicado em 1956, sendo um dos trabalhos mais conhecidos da autora.<br />

Postumamente foram publicados: Barca do Tempo (1950-1955), Poemas (1962), Outros Poemas, Poemas<br />

de Agosto (2000) e Carta a um cortador de linho (2000). Ela também teve alguns de seus poemas<br />

publicados no livro “Os cem melhores poemas brasileiros do século” (2001).<br />

O acesso do público leitor a sua obra é bem restrito. Um dos motivos do distanciamento é<br />

a dificuldade de aquisição dos textos, em sua maioria, publicados em tiragem bem reduzida e de<br />

difícil localização. Uma ação importante para minimizar o desconhecimento do público face à obra<br />

de Alvim foi a publicação em 1993,pelas mãos de Francisco Alvim, poeta e irmão de Maria Ângela,<br />

do livro Poemas que reúne a obra completa da poeta.<br />

Recepção de Maria Ângela Alvim<br />

A obra da autora teve no mento de sua publicação uma boa recepção critica recebendo,<br />

inclusive, elogios de Carlos Drummond de Andrade. Depois de sua morte, aconteceu com Maria<br />

Ângela o que acontece com muitos poetas, caiu no esquecimento. Como nosso objetivo é comentar<br />

a poesia de Maria Ângela Alvim e, posteriormente, tecer comentários sobre algumas das<br />

particularidades de sua obra poética procederemos a um breve resumo dos textos críticos<br />

publicados sobre a poeta, estes ainda bem reduzidos.<br />

O primeiro texto crítico sobre a obra de Maria Ângela Alvim são os comentários de Carlos<br />

Drummond de Andrade e Alexandre Eulálio quando da publicação de Superficies. Drummond<br />

(1993), mesmo apontando defeitos no imantes a poesia de Alvim, comenta em sua poesia<br />

uma presença nova e marcante entre os poetas que surgem, e a qualidade<br />

especial de uma natureza poética extremamente fina, que sabe selecionar os<br />

aspectos da realidade interior e nos oferecer, com sóbria dicção, o resultado da<br />

realidade interior e nos oferecer, com sóbria dicção, o resultado último da<br />

experiência lírica (DRUMMOND, 1993, p.142)<br />

Nas palavras do poeta mineiro identificamos aspectos importantes para a avaliação da<br />

poesia de Maria Ângela Alvim. Um deles é a temática intimista da poeta, o segundo a concisão de<br />

sua forma de expressão. De fato a poesia de Maria Ângela é feita por um verso rápido que à forma<br />

do haicai japonês filtra a realidade em busca da emoção singular do momento. O mesmo percurso<br />

avaliativo podemos identificar em Alexandre Eulálio (1980) para quem Alvim pratica o exercício do<br />

verso e a ―agilidade da expressão‖ ao filtrar o singular e o individual em um universo agressivo<br />

como o é a sociedade brasileira ao final dos anos 40 do século XX.


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Um olhar sobre Maria Ângela Alvim<br />

Maria Ângela utiliza um verso cromático de forte implicação emotiva, fato que induz a um<br />

velocidade rítmica avessa ao contato imediato com a temática concreta do cotidiano. A carência de<br />

referentes concretos dá a Alvim uma de suas principais características: a emotividade e a<br />

sensibilidade da palavra modeladas por um sentido sinestésico. Este recurso propõe uma analogia<br />

entre som e imagem colaborando para aproximar a poesia de Alvim ao sentido de contiguidade<br />

entre o estado de alma do poeta e as poucas referências ao real perceptíveis em sua obra.<br />

Percebe-se em sua obra um sentido profundo de tristeza e melancolia em muito presente<br />

na poesia da década de 40. Esta melancolia diante do homem e do mundo é uma tônica em seus<br />

poemas, fato que representa o desconforto do sujeito no pós-guerra. Um de seus poemas é<br />

dedicado a morte dos soldados nos campos de batalha e a compreensão da precariedade da<br />

sociedade após a Segunda Grande Guerra.<br />

De tudo me afastei, por não querença<br />

De tudo me afastei, por não querença<br />

ou medo de demais querer a tudo<br />

e de fixar em ócio e inexistência<br />

o móbil ser ideal com que me iludo.<br />

E de tudo herdei minha inocência,<br />

este sentido de não ser, agudo,<br />

vivo mistério e tão mortal ciência<br />

que me aprendeu a ouvir o verso mudo.<br />

A vida não vivi, - hora distante<br />

que nunca se deteve em meu caminho<br />

A imagem vista em ver era bastante.<br />

Mas, se não sei nem mesmo o que devoro,<br />

e me consome a mim, e é sozinho<br />

suor de aurora, poesia, eu fui teu poro.<br />

Neste poema o eu lírico parece impotente diante da vida e das coisas do mundo. Seu filtro<br />

é a passagem inerte diante do tempo e a constatação de que na poesia encontra um espaço para a<br />

reflexão e o refúgio deste mundo agressor. A poesia é ao mesmo tempo herança e mistério para a<br />

compreensão da realidade. Uma posição mais observadora do que realmente vivida o que lhe vale a<br />

sensação de vazio, de falta de valor na vida além de matéria de poesia.<br />

Entretanto uma das saídas para este mal estar é a arte, a poesia. Ao produzir este<br />

afastamento de forma consciente ―De tudo me afastei, por não querença‖ o eu-lírico valida a<br />

transmutação do real imediato em matéria poética e, neste percurso, reorganiza a realidade imediata<br />

em matéria poética ao pensar-se como poro, como uma voz silenciosa da angústia da vida.<br />

Inteira me deixo aqui,<br />

inteira, posto que ausente,<br />

- neste corpo que nasci<br />

fez-me a vida ou minha mente?<br />

De ninguém sobrevivi<br />

Ah vida, me fiz consciente,<br />

mestiça de mim, de ti<br />

em morte - quase semente.


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E em terra desejo estar<br />

e sempre, enquanto me alerto<br />

nas vozes de vento e mar.<br />

Sem jamais me resolver<br />

a conter-me num deserto<br />

ou saciar-me de morrer.<br />

Neste poema reaparece a busca pelo silêncio do espaço exterior. O silêncio passa a algoz<br />

do eu-lírico e a morte física é sublimada pela produção da poesia. É neste mundo de criação que<br />

encontramos a metalinguagem como tema recorrente na obra de Alvim. Sua poesia fala no<br />

apagamento do real dentro do processo angustiante da construção poética.<br />

É desta dúvida ou duplicidade que advém a ânsia pelo verso intimista e a aparente<br />

abstração do real em sua poesia. A ―quase semente‖ e a presença de ―vozes de vento e mar‖<br />

indicam a busca pelo poético como refugio para o poeta.<br />

Considerações finais<br />

Feitos estes comentários, mesmo que superficiais, sobre a poesia de Maria Ângela Alvim<br />

podemos pensar em um poeta que construiu uma obra enigmática. Seu verso intimista e a<br />

velocidade de suas imagens são representações de um talento em processo.<br />

Ficam evidentes pontos positivos como a concisão do verso e o cromatismo, porém o<br />

estudo direto da poesia de Alvim deve passar pela percepção de uma poesia em muito marcada<br />

pelos excessos subjetivos, fato que prejudica o tom de seu verso, mas não descaracteriza sua<br />

relevância enquanto poeta modernista, uma vez que uma das marcas indeléveis do Modernismo é a<br />

heterogeneidade.<br />

Referências Bibliográficas<br />

ALVIM, M. A. Superfícies. São Paulo: Record, 1956.<br />

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Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.<br />

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CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. 3.ed. São Paulo: Cultrix, 2000. v. II.<br />

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KOTHE, F. O cânone colonial. Brasília: EUNB, 1999.<br />

LAUTER, P. Canons and Contexts. Oxford: Oford Universite Pren Demand, 1991.<br />

PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Tradução de Olga Savary. Rio de<br />

janeiro: Nova Fronteira, 1984.<br />

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SAID, E. Culture et imperialisme. Paris: Fayard, 2000.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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UHE BELO MONTE: QUESTÕES POLÍTICAS SOBRE APROVEITAMENTO<br />

HIDRELÉTRICO E DESENVOLVIMENTO NA AMAZÔNIA<br />

Dion Márcio Carvaló Monteiro 7<br />

Roselene de Souza Portela 8<br />

Resumo: Historicamente, o modelo de desenvolvimento implementado na Amazônia tem sido<br />

pautado nos grandes projetos de exploração vegetal, mineral e hídrica. Em relação às grandes usinas<br />

hidrelétricas, a experiência tem demonstrado que não trouxeram desenvolvimento para o local onde<br />

foram construídas, ao contrário, são responsáveis pelo aumento da concentração urbana, violência,<br />

populações expulsas de suas terras, etc. As políticas de desenvolvimento implementadas pelo<br />

Estado capitalista constituem-se produto das contradições resultantes das relações entre classes<br />

sociais antagônicas, que se manifestam nos modos de ocupação territorial. O avanço destas<br />

reflexões levará ao debate sobre modelo de desenvolvimento implementado na Amazônia e suas<br />

conseqüências.<br />

Palavras-Chaves: Amazônia, Belo Monte, Desenvolvimento<br />

Resumen: Históricamente, el modelo de desarrollo implementado en Amazonia se ha formado en<br />

la exploración de grandes proyectos de vegetales, minerales y agua. Para grandes usinas<br />

hidroeléctricas, la experiencia ha demostrado que no trajo el desarrollo a la ubicación donde se<br />

construyeron, en cambio, son responsables del aumento de la concentración urbana, la violencia, las<br />

personas expulsadas de sus tierras, etc. Las políticas de desarrollo implementadas por el estado<br />

capitalista como producto de las contradicciones que surgen de las relaciones entre clases sociales<br />

antagónicas, que se manifiestan en los modos de ocupación. El progreso de estas discusiones se<br />

lleva a debate sobre el modelo de desarrollo implementado en Amazonia y sus consecuencias.<br />

Palabras-clave: Amazonia; Belo Monte; Desarrollo<br />

1. Aspectos históricos<br />

Na Amazônia, cujo símbolo maior é a floresta tropical, região com características<br />

geográficas, climáticas e ambientais peculiares, as políticas de desenvolvimento têm provocado<br />

substanciais transformações na vida econômica, social e cultural de seus habitantes, com a utilização<br />

da ciência e tecnologia para modernizar e incorporar economicamente os recursos naturais<br />

hidrográficos e da floresta tropical ao mundo globalizado.<br />

Em maior ou menor grau, o processo recente de desenvolvimento é resultante da ação ou<br />

omissão da elite regional – governantes, políticos, fazendeiros, empresários e intelectuais<br />

amazônicos – que, diretamente e/ou associada a interesses externos, tem ajudado a promover a<br />

modernização na região, a partir de objetivos estritamente econômicos e localizados, o que tem<br />

contribuído para o crescimento dos problemas sociais e da degradação ambiental.<br />

Isto pode ser verificado nos projetos minerais localizados no Estado do Pará, como a<br />

exploração de ouro em Serra Pelada (Curionópolis); exploração de ferro (Parauapebas); exploração<br />

de bauxita (Juruti, Paragominas e Oriximiná); exploração de níquel (Ourilândia do Norte); e<br />

exploração de cobre (Canaã dos Carajás), além do modelo hidrelétrico implementado na região,<br />

como exemplos, Tucuruí e Curuá-Una no Pará, Balbina no Amazonas e Samuel em Rondônia.<br />

7 Mestre em Planejamento do Desenvolvimento e Economista do Instituto Amazônia Solidária e Sustentável<br />

(IAMAS).<br />

8 Professora da UFPA, Mestre em Planejamento do Desenvolvimento e doutoranda em Desenvolvimento<br />

Sócio-Ambiental, pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA).


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A ausência de infraestrutura básica e outros grandes problemas verificados nas cidades que<br />

receberam essas hidrelétricas comprovam que nem mesmo os royalties repassados se mostraram um<br />

instrumento que tenha compensado os problemas advindos dos referidos projetos.<br />

É nesse contexto que se desenvolve o debate sobre os grandes projetos na região<br />

amazônica, e mais especificamente as propostas de barramento de seus rios objetivando a produção<br />

de energia para atender as indústrias do centro-sul do Brasil, bem como as grandes empresas<br />

nacionais e internacionais que atuam na Amazônia, em especial as exploradoras de recursos<br />

minerais, e que por este motivo necessitam de muita energia no desenvolvimento de seu processo<br />

produtivo, as chamadas eletro-intensivas.<br />

Encravado na Amazônia brasileira, o rio Xingu é um dos mais importantes rios da região,<br />

dele dependem aproximadamente 14 mil indígenas dos estados do Mato Grosso e Pará, além de<br />

centenas de comunidades compostas por ribeirinhos, pescadores, extrativistas, quilombolas,<br />

agricultores familiares, e inclusive moradores das zonas urbanas, que retiram sua alimentação das<br />

águas deste rio e o utilizam como meio de transporte, não raras vezes o único.<br />

A partir da década de 1960, a perspectiva de ―desenvolvimento‖ da região do Xingu se deu<br />

com a intensificação do processo de industrialização do parque nacional em detrimento das fontes<br />

primárias de geração de riqueza, instaurada em função do modelo econômico que ensejou a política<br />

de valorização econômica da Amazônia, no bojo do processo de integração nacional, que tinha por<br />

objetivo garantir uma maior participação regional no esforço do desenvolvimento nacional e, ao<br />

mesmo tempo, possibilitar a conversão do espaço regional em espaço de valorização e acumulação<br />

do capital nacional, massificando na sociedade que o uso de fontes de energia e de tecnologias<br />

modernas de uso final levariam a mudanças qualitativas na vida humana, proporcionando tanto o<br />

aumento da produtividade econômica quanto do bem-estar da população (GOLDEMBERG;<br />

MOREIRA, 2005 apud CARDOSO; PORTELA, 2007).<br />

De acordo com Viana (2004 apud CARDOSO; PORTELA, 2007), em 1964, quando o<br />

regime militar assumiu o poder com um golpe de Estado, a proposta prioritária era de estabilizar a<br />

economia brasileira, debelar a inflação e iniciar um novo ciclo de expansão do setor energético.<br />

Porém, somente a partir da década de 1970 é que a Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobrás)<br />

assumiu posição ativa no setor elétrico nacional, proporcionando uma postura e atuação estatal<br />

decisiva para a consolidação da nova estrutura produtiva e financeira do setor de energia elétrica.<br />

Assim, a política energética da Eletrobrás foi pautada por quatro vertentes:<br />

prioridade atribuída à opção hidrelétrica, em oposição à termoelétrica; estratégia<br />

de construir grandes usinas geradoras de alcance regional em termos de mercado<br />

consumidor; constituir-se em holding estatal e elaborar um padrão de<br />

financiamento do setor elétrico nacional, conjugando recursos de diferentes<br />

fontes: tarifária, impostos, empréstimos compulsórios e empréstimos do sistema<br />

financeiro internacional (VIANA, 2004, p. 01).<br />

Surgiram, então, no Brasil, projetos gigantescos de produção de energia, especialmente os<br />

programas hidrelétricos, todavia, esses projetos sofreram os efeitos da crise econômica que afetou o<br />

país na década de 1970. A idéia era construir grandes hidrelétricas na Amazônia capazes de<br />

subsidiar a implantação de empresas de grande porte que serviriam para atender a demanda dos<br />

setores considerados estratégicos para o Plano de Desenvolvimento Nacional (PND)<br />

(GOLDEMBERG; MOREIRA, 2005 apud CARDOSO; PORTELA, 2007).<br />

Este processo contrariou a noção de políticas públicas concebida, segundo Raichellis (2007,<br />

pág. 34), como uma ―linha de ação coletiva que concretiza direitos sociais declarados e garantidos<br />

em lei‖. Diz ainda esta autora que a política pública começou a ser implementada como mecanismo


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de enfrentamento das seqüelas da questão social, assim ela é convertida em políticas setoriais e se<br />

configura como mecanismo na mediação dos conflitos sociais.<br />

Em 1975, a Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A (Eletronorte) iniciou os estudos do<br />

Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu, primeiro passo no projeto de<br />

construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, sendo responsável por este levantamento<br />

o Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores S.A (CNEC Engenharia), empresa naquele<br />

momento integrante do Grupo Camargo Corrêa.<br />

O ano de 1989 é um marco no processo de resistência ao então chamado Complexo<br />

Hidrelétrico do Xingu (conjunto que propunha a construção de sete barragens no curso deste rio),<br />

quando foi realizado na cidade de Altamira, estado do Pará, Amazônia brasileira, o 1º Encontro dos<br />

Povos Indígenas do Xingu, reunindo aproximadamente 3 mil pessoas, entre lideranças indígenas<br />

como Raoni Metuktire (cacique Kayapó), Marcos Terena e Ailton Krenak; o então diretor da<br />

Eletronorte José Antônio Muniz Lopes, que no governo do presidente de FHC tornou-se<br />

presidente da Eletronorte, e no governo do presidente Lula presidente da Eletrobrás; o cantor<br />

inglês Sting; além de centenas de ambientalistas e jornalistas.<br />

A demonstração de preocupação e indignação dos indígenas, e demais povos da floresta,<br />

foi tão forte, com tanta repercussão nacional e internacional, que forçou o governo a recuar em<br />

suas intenções, mudar sua estratégia e refazer seu projeto, porém não fez empresários e influentes<br />

políticos desistirem de seus objetivos. Dezesseis anos se passaram, e em agosto de 2005 a<br />

Eletrobrás firmou acordo de cooperação com as construtoras Norberto Odebrecht, Andrade<br />

Gutierrez e Camargo Correa para a conclusão dos Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e<br />

Ambiental da UHE Belo Monte.<br />

O governo federal afirma que a UHE Belo Monte é vital para o Brasil, e bom para a<br />

Amazônia, e encaminha a passos largos a construção desta usina hidrelétrica. Este discurso da<br />

sustentação à intervenção do Estado, mas sobre ele também se produzem "contra-discursos" de<br />

contestação da legitimidade dada em uma esfera ideológica e política, quando programas e projetos<br />

de desenvolvimento entram no debate. Assim, parte-se da compreensão da intervenção estatal<br />

como sendo a forma mais elaborada e desenvolvida, da resposta capitalista à necessidade de<br />

ampliação das forças produtivas.<br />

As políticas de desenvolvimento implementadas pelo Estado capitalista representam ações<br />

que visam regular e atenuar os efeitos negativos – no nível do funcionamento global das formações<br />

sociais – da segregação sócio-territorial e da mutilação capitalista, constituindo um produto das<br />

contradições resultantes das relações entre classes sociais antagônicas, que se manifestam nos<br />

modos de ocupação dos territórios.<br />

Aqui, o Estado pode ser compreendido como articulador, organizador da sociedade e<br />

fiador das relações sociais, uma vez que é mantenedor das relações de dominação e suas ações são<br />

contraditórias, pois, se por um lado é incontestável que defenda os interesses do setor dominante<br />

(identificada nesse caso como indústria barrageira, bancos), por outro, sua atuação pode e é, por<br />

vezes, direcionada para atender às demandas populares, pois além de sua função de acumulação,<br />

exerce também a função de legitimação. Porém, de fato, e na maioria das vezes, estas demandas<br />

populares não reverberam como ações e medidas dos agentes públicos.<br />

Nesse contexto, em maio de 2009, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de<br />

Impacto Ambiental (RIMA) da UHE Belo Monte foram entregues ao Instituto Brasileiro do Meio<br />

Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), órgão brasileiro responsável pela análise<br />

destes documentos e posterior emissão das licenças para a realização do leilão e obras da<br />

hidrelétrica.


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Em fevereiro de 2010, o governo brasileiro apoiado por grandes empreiteiras, como as já<br />

citadas Camargo Corrêa, Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez, além do grupo GDF Suez;<br />

companhias eletro-intensivas e mineradoras como Votorantim, VALE e ALCOA; diversos<br />

empresários; governadores, prefeitos e políticos de todas as esferas, emitiu a chamada Licença<br />

Prévia (LP), autorizando o leilão de Belo Monte. Em 20 de abril de 2010, envolto em uma grande<br />

disputa judicial, o leilão foi realizado, tendo como vencedor o Consorcio Norte Energia.<br />

Mas porque os povos do Xingu, a mais de 20 anos, lutam contra a construção desta<br />

hidrelétrica, apelidada de ―Belo Monstro‖ pelos moradores da região? A resposta parece ser clara<br />

para quem conhece a floresta e o rio, mas aparentemente ―incompreensível‖ para quem mora a<br />

milhares de quilômetros de distância das regiões amazônicas.<br />

Em outubro de 2009, cinco meses após a versão final do EIA/RIMA ter sido entregue ao<br />

IBAMA, foi disponibilizado também ao mesmo órgão, e ao Ministério Público Federal (MPF),<br />

instituição que tem a função constitucional de defender os direitos sociais e individuais<br />

indisponíveis dos cidadãos brasileiros, um relatório com 230 páginas. Este documento foi<br />

elaborado por mais de 40 pesquisadores, entre antropólogos, sociólogos, zoólogos, biólogos,<br />

doutores em energia e planejamento de sistemas energéticos, historiadores, economistas,<br />

engenheiros, hidrólogos, entre outros, pertencentes as mais destacadas universidades e centros de<br />

pesquisas nacionais e internacionais, que fizeram uma análise detalhada dos estudos de Belo Monte.<br />

No relatório do Painel de Especialistas, denominação utilizada pelos referidos<br />

pesquisadores, foram levantadas várias interrogações que ainda estão sem respostas, além de<br />

diversas outras questões que foram abordadas de forma incorreta ou inconsistente no Estudo de<br />

Impacto Ambiental elaborado pela empresa contratada pela Eletrobrás. O documento dos<br />

estudiosos, chamado ―Analise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento<br />

Hidrelétrico de Belo Monte‖ apresenta uma grande quantidade de informações que realmente<br />

instigam a reflexão. Da mesma forma, uma leitura mais atenta do próprio EIA/RIMA, também é<br />

bastante reveladora. Foram principalmente estes dois documentos que deram base aos dados e<br />

informações expostas na seqüência deste texto.<br />

2. Questões sem respostas<br />

O primeiro fator a chamar atenção, tratado de forma velada pelo governo brasileiro, é o<br />

que se refere ao principal objetivo da UHE Belo Monte, sendo este atender com energia barata as<br />

empresas do centro-sul do país. Assim, aproximadamente 80% será para atender as empresas deste<br />

eixo, e até 20%, caso a negociação realizada entre o governo federal e o governo do Pará se efetive,<br />

ficará para atender as empresas eletro-intensivas deste estado, principalmente as transnacionais<br />

VALE e ALCOA, gerando vantagens competitivas para estes grupos no cenário internacional, mas<br />

não prevendo nem 1 quilowatt (KW) para atender as comunidades amazônicas que até hoje não<br />

possuem energia elétrica.<br />

Também não é divulgado que a energia prometida, de 11 mil MW, só será fornecida<br />

durante, aproximadamente, 3 (três) meses do ano; a média de energia gerada não passará de 4,5 mil<br />

MW, o que inviabiliza o projeto economicamente, exigindo a construção de novas barragens rio<br />

acima.<br />

O estudo entregue pela Eletrobrás ao IBAMA não informa que mais de 20 mil pessoas<br />

serão remanejadas compulsoriamente de suas áreas, deixando para trás suas estruturas sociais e<br />

econômicas, além de suas memórias. Nesse ponto uma questão chama atenção, pois o EIA utiliza<br />

como parâmetro a média brasileira de componentes por grupo familiar, que varia entre 3 a 4<br />

pessoas, porém, especificamente na região amazônica, a bibliografia disponível indica que o grupo<br />

familiar é composto, em média, por uma quantidade que varia de 5,5 a 7 pessoas. As conseqüências<br />

deste equivoco são graves, pois ao subestimar a população remanejada não é possível pensar


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corretamente as estruturas e equipamentos sociais necessários para atender todas as pessoas que<br />

precisarão de moradia, escola, posto de saúde, estradas, entre outros.<br />

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte apresenta um reservatório de 516<br />

km², entretanto, o edital de licitação aponta 668 km², 30% maior que o considerado no estudo; o<br />

governo estima gastos de, aproximadamente, 20 bilhões de reais na obra, contudo, as empresas de<br />

engenharia afirmam que os referidos gastos na construção não vão sair por menos de 30 bilhões de<br />

reais.<br />

A estimativa feita pelos empreendedores é que aproximadamente 100 mil pessoas migrarão<br />

para a região, principalmente para a cidade de Altamira, mas o EIA diz que no pico da obra<br />

somente serão gerados, quase, 40 mil empregos, entre diretos e indiretos, e diz mais, que ao final da<br />

obra restarão apenas 700 empregos diretos e que, aproximadamente, 32 mil pessoas permanecerão<br />

na região.<br />

O EIA/RIMA afirma que serão afetadas diretamente 03 (três) terras e áreas indígenas, tais<br />

como: a Terra Indígena Paquiçamba (do povo Juruna), Terra Indígena Arara da Volta Grande do<br />

Xingu (do povo Arara) e a Área Indígena Juruna do Quilômetro 17 (também do povo Juruna). O<br />

Conselho Indigenista Missionário (CIMI) afirma que também será afetada diretamente a Terra<br />

Indígena Trincheira Bacajá (dos povos Kayapó e Xicrin). Porém, mesmo reconhecendo este<br />

impacto direto, o governo do Brasil se recusa a realizar as oitivas indígenas, conforme determina a<br />

Constituição Brasileira, e a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Este<br />

também é um dos principais questionamentos levantados pelo MPF.<br />

Com a construção da barragem principal da usina de Belo Monte, uma área de<br />

aproximadamente 100 km da chamada região da Volta Grande do Xingu terá a sua vazão de água<br />

reduzida para algo em torno de 30% do que ocorre hoje. Sobre isso, o parecer técnico nº114/2009,<br />

assinado por 06 analistas ambientais do IBAMA, e um dos documentos base para a emissão da LP,<br />

é claro. Diz o parecer: ―o estudo sobre o hidrograma de consenso não apresenta informações que<br />

concluam acerca da manutenção da biodiversidade, a navegabilidade e as condições de vida das<br />

populações do TVR [Trecho de Vazão Reduzida]‖.<br />

Além desses itens, identificados ao se analisar o estudo feito pelo Painel de Especialista, o<br />

EIA/RIMA do empreendimento, e alguns documentos emitidos posteriormente, verificam-se<br />

outras indagações que também se encontram sem respostas, ou no mínimo sem respostas<br />

consistentes. Uma destas vincula-se ao eminente perigo da retomada do projeto original para o rio<br />

Xingu, que apresentava inicialmente a proposição de 7 e depois 5 barramentos.<br />

Aqui a grande interrogação dá-se devido a já observada indefinição em relação a algumas<br />

questões fundamentais, especificamente de caráter econômico e da capacidade de produção de<br />

energia, implicando em uma insegurança no que se refere à viabilidade da obra. O MPF e os<br />

movimentos e organizações sociais tem afirmado que no futuro nada impede que o governo use o<br />

argumento da necessidade de otimizar o empreendimento para justificar a construção de outras<br />

barragens no rio Xingu.<br />

Considerações finais<br />

A UHE Belo Monte é um dos maiores investimentos do Programa de Aceleração do<br />

Crescimento (PAC), e como tal tem recebido atenção especial do governo federal. Isto ficou<br />

particularmente evidente no fato ocorrido no mês de fevereiro de 2010, quando expressando uma<br />

ação defendida pelo próprio presidente da república, a Advocacia-Geral da União (AGU) ameaçou<br />

processar membros do MPF que se contraporem ao processo de licenciamento e construção da<br />

Usina Hidrelétrica de Belo Monte, alegando que as ações do MPF são ―sem fundamento, destinadas<br />

exclusivamente a tumultuar a consecução de políticas públicas relevantes para o país‖ (AGU, 2010).


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Também é importante observar que, até o momento, oito processos impetrados pelo MPF,<br />

entre os anos de 2006 e 2010, estão pendentes de julgamento, sendo cinco na primeira instância da<br />

Justiça Federal, em Belém, e três no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília.<br />

Diversas comunidades indígenas já deixaram clara sua oposição à construção de Belo<br />

Monte. Isto pode ser verificado, por exemplo, em carta datada de 01 de novembro de 2009, enviada<br />

ao presidente Luis Inácio Lula da Silva, e assinada pelos povos indígenas Mebengôkre (Kayapó),<br />

Xavante, Yudjá (Juruna), Kawaiwet (Kaiabi), Kisêdjê (Suiá), Kamaiurá, Kuikuro, Ikpeng, Panará,<br />

Nafukua, Tapayuna, Yawalapiti, Waurá, Mehinaku e Trumai, habitantes da bacia do Rio Xingu e das<br />

regiões circunvizinhas, reunidos na aldeia Piaraçu (Terra Indígena Capoto/Jarina), onde afirmam<br />

textualmente que ―Caso o governo decida iniciar as obras de construção de Belo Monte, alertamos<br />

que haverá uma ação guerreira por parte dos povos indígenas do Xingu. A vida dos operários e<br />

indígenas estará em risco e o governo brasileiro será responsabilizado‖.<br />

Juntamente a resistência indígena, verifica-se a oposição de diversas organizações e<br />

movimentos sociais existentes na região, como o Movimento Xingu Vivo para Sempre (MXVPS).<br />

Composto por mais de 150 organizações, o MXVPS tem provocado o debate público sobre o tema,<br />

contestando a construção de barragens no rio Xingu, mas também realizando outras ações de<br />

resistência, utilizando meios institucionais, mas também não institucionais.<br />

Corroborando os aspectos citados, Chazel observa que todo movimento social pode ser<br />

compreendido como ―um empreendimento coletivo de protesto e de contestação que visa impor<br />

mudanças, de importância variável, na estrutura social e/ou política através do recurso freqüente,<br />

mas não necessariamente exclusivo, a meios não-institucionalizados‖ (1995, p. 291).<br />

O resultado dos séculos de autoritarismo e exploração dos recursos naturais na Amazônia<br />

brasileira tem demonstrado a insustentabilidade do atual modelo de desenvolvimento, bem como a<br />

urgência de sua substituição por outras propostas, como por exemplo: a energia solar, energia<br />

eólica, e a energia a partir dos resíduos da biomassa, sem que para isso se desenvolvam<br />

monoculturas, entre outras possibilidades; a consolidação de relações concretamente sustentáveis,<br />

onde os elementos econômicos não se sobreponham aos elementos ambientais, sociais, culturais ou<br />

políticos; e finalmente a implementação de relações sócio-ambientais pautadas em paradigmas que<br />

totalizem a harmonia entre a natureza e os seres humanos, garantindo a existência primeira do<br />

planeta, em seu conjunto.<br />

Referências<br />

BRASIL. Advocacia Geral da União. Nota Pública de 03.02.10. Disponível em:<br />

http://www.agu.gov.br/sistemas/site/TemplateImagemTextoThumb.aspx?idConteudo=124851&id_site=3. Capturado em 21.02.10.<br />

______. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Parecer Técnico nº 114/2009.<br />

______. Parecer Técnico nº 06/2010.<br />

______. Nota Técnica nº 04/2010.<br />

______. Parecer Técnico Conclusivo nº 001/2010.<br />

______. Licença Prévia nº 342/2010.<br />

CHAZEL, François. Poder. In: BOUDON, Raymond (org). Tratado de sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p. 213-245.<br />

CARDOSO, Andréia. S. C. S., PORTELA, Roselene. S. O Papel das Políticas Públicas de Geração de Energia e o Desenvolvimento Regional: a<br />

mesorregião sudeste do Estado do Pará. In: V Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Regionais e Urbanos, 2007, Recife/Pe.<br />

EIA/RIMA, Relatório de Análise do Conteúdo dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) e do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do<br />

Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte, Estado do Pará. Relatório de Análise do EIA-RIMA, maio de 2009. Leme Engenharia.<br />

RAICHELIS, Raquel. Esfera pública e Conselhos de assistência social: caminhos da construção democrática. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2007.<br />

SANTOS, Sônia Maria S. B. Magalhães; HERNANDEZ, Francisco del Moral (org.). Painel de Especialistas: Análise Crítica do Estudo de<br />

Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte. 2009.<br />

VIANA, Fabiana Gama. Histórico do planejamento energético no Brasil. Consciência, 2004. Disponível em: http://<br />

www.comciencia.br/reportagens. Capturado em 01 de agosto de 2006.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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CONSIDERAÇÕES SOBRE ESCOLARIZAÇÃO DA LEITURA E FORMAÇÃO<br />

DO GOSTO DO LEITOR<br />

Estela Natalina Mantovani Bertoletti<br />

Pós-doutoranda em Educação Escolar/UNESP/Araraquara<br />

Professora de Ensino Superior/UEMS/Paranaíba<br />

Resumo: Neste texto, buscando contribuir para o debate acerca da escolarização da leitura,<br />

sobretudo da leitura literária, faço uma análise sucinta dos critérios de seleção do material de leitura<br />

e dos pressupostos que norteiam as práticas desse ensino na escola. Por meio dessa análise é<br />

possível afirmar que tanto o material, selecionado a partir de critérios do mercado editorial e do<br />

gosto do aluno, quanto as práticas de leitura, sustentadas numa autoeducação do gosto, têm-se<br />

apresentado inadequados, denotando que o ensino da leitura na escola demanda soluções, que<br />

passam por uma mudança do ponto de vista teórico.<br />

Palavras-chave: leitura, escolarização da leitura, formação do gosto do leitor.<br />

Abstract: In this text, in order to contribute for the debate concerning the school education of the<br />

reading, over all of the literary reading, I make an analysis of the criteria of election of the material<br />

of reading and the estimated ones that they guide the practical ones of the education of the reading<br />

in the school. By means of this analysis it is possible to affirm that as much the material, chosen<br />

team from criteria of the publishing market and the taste of the pupil, how much the practical ones<br />

of reading, supported in an auto-education of this taste, have been presented inadequate, denoting<br />

that the education of the reading in the school demand solutions, that pass for a change of the<br />

theoretical point of view.<br />

Key words: reading, school education of the reading, formation of the reader.<br />

Introdução<br />

Ninguém contesta a importância da leitura nas práticas sociais do mundo moderno, tanto<br />

para o exercício pleno da cidadania, no plano individual, quanto para a medida do nível de<br />

desenvolvimento de uma nação, no nível sociocultural e político, no entanto, a precária habilitação<br />

dos leitores, ou ainda, a falta de hábito de leitura têm apontado para dados nada alentadores sobre a<br />

aquisição e utilização desse bem cultural 9.<br />

No Brasil, a histórica relação entre ensino da leitura, escola e educação tem-se sustentado<br />

em tentativas de solução desses problemas, centradas em iniciativas emergenciais e estruturais por<br />

parte do poder público e da sociedade civil brasileira que podem ser assim sintetizadas:<br />

[...] produção, por parte de diferentes sujeitos em um dado momento histórico,<br />

de uma heterogeneidade de tematizações, normatizações e concretizações [...],<br />

em que se sobressai a tensão entre os que propõem o novo, a partir de sínteses<br />

homogeneizadoras de seu passado recente — sentido como presente porque<br />

ainda operante no nível das concretizações —, visando a exorcizá-lo como<br />

tradicional e origem dos males legados a esse momento histórico; e aqueles que,<br />

especialmente no nível das concretizações, continuam defendendo o antigo e<br />

resistindo à mudança, que se encontra, predominantemente, proposta nas<br />

tematizações e impostos nas normatizações. (MORTATTI, 2000, p. 22-23)<br />

9 A título de exemplo, temos que dos brasileiros entre 15 e 64 anos, 61% têm muito pouco ou nenhum<br />

contato com livros; 47 % possuem, no máximo, dez livros em casa, destes, 80% são livros didáticos; 30%<br />

localizam informações simples em uma frase; 37% localizam informação em um texto curto; 25%<br />

estabelecem relações em um texto longo (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, 2007).


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Ou seja: a preocupação com o ensino da leitura não é privilégio de nossos dias, é, ao<br />

contrário, problema persistente e complexo que acompanha a história da escola pública brasileira,<br />

quando esta se imbuiu da responsabilidade de solucionar o analfabetismo e tantos outros problemas<br />

de caráter político, social, cultural e econômico do país, apontando para uma tendência em se<br />

manter e reforçar a associação entre ensino da leitura e educação escolar.<br />

No entanto, este problema parece vir-se agravando nas últimas décadas, apesar de terem se<br />

ampliado as oportunidades de leitura e de escolarização, no Brasil.<br />

Por que tal preocupação? Por que se preocupar em tematizar, normatizar e concretizar<br />

propostas para o ensino de um conteúdo escolar como tantos outros, de maneira sistemática e<br />

efetiva, uma vez que, se sabe dos inúmeros encontros, congressos, publicações, projetos, programas<br />

e tantas outras iniciativas governamentais ou não, ao longo da história da educação do Brasil para<br />

resolver a questão da leitura? Talvez porque o domínio da leitura pressupõe algo mais do que<br />

aprender a ler, como meio; pressupõe dominar a leitura para uso social, o que significa adquirir o<br />

gosto de ler, carregando-o para toda a vida, sustentando grande parte do desenvolvimento<br />

cognitivo, da linguagem e da personalidade do ser humano.<br />

O ato de ler [é] um processo mental de vários níveis, que muito contribui para o<br />

desenvolvimento do intelecto. O processo de transformar símbolos gráficos em<br />

conceitos intelectuais exige grande atividade do cérebro; durante o processo de<br />

armazenagem da leitura coloca-se em funcionamento um número infinito de<br />

células cerebrais. A combinação de unidades de pensamento em sentenças e<br />

estruturas mais amplas de linguagem constitui, ao mesmo tempo, um processo<br />

cognitivo e um processo de linguagem. A contínua repetição desse processo<br />

resulta num treinamento cognitivo de qualidade especial. Esse treinamento<br />

cognitivo consiste em trazer à mente alguma coisa anteriormente percebida, e<br />

em antecipar, tendo por base a compreensão do texto precedente; a repetição<br />

aumenta e assegura o esforço intelectual.<br />

Por todas essas razões, a leitura é uma forma exemplar de aprendizagem.<br />

Estudos psicológicos revelaram que o aprimoramento da capacidade de ler<br />

também redunda no da capacidade de aprender como um todo, indo muito além<br />

da mera recepção. A boa leitura é uma confrontação crítica com o texto e as<br />

idéias do autor. Num nível mais elevado e com textos mais longos, tornam-se<br />

mais significativas a compreensão das relações, da construção ou da estrutura e a<br />

interpretação do contexto. Quando se estabelece a relação entre o novo texto e<br />

as concepções já existentes, a leitura crítica tende a evoluir para a criativa, e a<br />

síntese conduzirá a resultados completamente novos. (BAMBERGER, 2002,<br />

p.10)<br />

Será que a educação escolar, a quem tem sido delegada a responsabilidade pelo ensino da<br />

leitura e cultivo do hábito e formação do gosto pela leitura tem concebido a leitura desse modo?<br />

Quais os critérios de seleção do material de leitura? Quais os princípios que norteiam as práticas<br />

escolares de leitura?<br />

Neste texto, na tentativa de resolver preliminar e parcialmente essas questões, arrisco<br />

algumas respostas, muito mais para promover um debate do que para propor soluções para o<br />

ensino da leitura no Brasil, uma vez que abordo esse tema como questão não resolvida.<br />

A escolarização da leitura para formação do gosto<br />

No Brasil, o ensino da leitura tem sido delegado à escola e ao professor de português. Com<br />

essa assunção quase exclusiva vem se delineando um processo de escolarização da leitura que, em<br />

geral, é tomado em sentido pejorativo, especialmente pelos resultados que tem apresentado.


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Soares (2003), no entanto, aponta a escolarização da leitura como inevitável, ―[...] porque é<br />

da essência da escola a instituição de saberes escolares, que se constituem pela didatização ou<br />

pedagogização de conhecimentos e práticas culturais‖ (SOARES, 2003, p. 47) e referindo-se<br />

especialmente à leitura literária na escola, realça a necessidade de uma escolarização ―adequada‖<br />

distintamente da maneira ―inadequada‖ com que se vem apresentando.<br />

[...] adequada seria aquela escolarização que conduzisse eficazmente às práticas<br />

de leitura literária que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores<br />

próprios do ideal de leitor que se quer formar; inadequada é aquela escolarização<br />

que deturpa, falsifica, distorce a literatura, afastando, e não aproximando, o aluno das<br />

práticas de leitura literária, desenvolvendo nele resistência ou aversão ao livro e ao ler.<br />

(SOARES, 2003, p. 47, grifos meus)<br />

A relação entre leitura, literatura e escola, portanto, é uma questão não resolvida que<br />

precisa ser analisada, conforme Soares (2003), como apropriação pela escola de uma literatura<br />

específica, para atender a seus fins também específicos. Concebida desse modo, a escola atua<br />

inevitavelmente na formação do gosto do leitor, gerando e moldando as necessidades do mercado<br />

para leitura dos gêneros que nela circulam (MAGNANI, 1989).<br />

Quando se trata da leitura para formação do gosto do leitor, a inadequação diz respeito<br />

tanto ao material de leitura, quanto aos princípios que norteiam seu ensino e às práticas escolares de<br />

leitura.<br />

O material de leitura ou, mais especificamente, os livros de literatura têm sido selecionados<br />

a partir de indicações do mercado editorial de livros para crianças e jovens que, em geral, categoriza<br />

suas publicações de acordo com critérios extratextuais, relativos a necessidades escolares e não<br />

literárias, de adequação à faixa etária e/ou série escolar, de categorização por temas transversais ou<br />

datas comemorativas, de veiculação de conteúdos úteis em detrimento do estético (BERTOLETTI,<br />

2008). E, ainda, um dos mais frequentes critérios de seleção e utilização de livros de literatura tem<br />

sido, conforme Magnani (1994), o gosto dos alunos, o que tem servido, ainda segundo essa autora,<br />

para confirmar o gosto estabelecido, como ―conformismo educacional e cultural‖, porque fundado<br />

numa ―lógica da privação da leitura‖.<br />

Assim, expande-se na escola o que poderíamos chamar de um ―funcionamento<br />

conforme‖ da leitura e da literatura, o que, associado a todos os outros<br />

problemas educacionais, tende a imobilizar o gosto e a formar não leitores, mas<br />

consumidores da trivialidade histórica, lingüística, literária, cultural e... política.<br />

(MAGNANI, 1994, p. 102)<br />

De acordo com a análise de Magnani (1994; 1995), isto está diretamente ligado aos<br />

princípios que norteiam o ensino da leitura enquanto formação do gosto, uma vez que, tem como<br />

ponto de partida o respeito à realidade do aluno e ―[...] a adequabilidade entre o nível de dificuldade<br />

crescente do material indicado para leitura [...] de acordo com as etapas de desenvolvimento<br />

cognitivo de seus alunos [...]‖ (MAGNANI, 1995, p. 30).<br />

Relativamente a outros materiais de leitura e mesmo aos textos literários, têm-se<br />

apresentado, em sua maioria, fragmentados ou adaptados, ainda buscando contemplar critérios<br />

extratextuais, de modo a formalizar currículos, matérias e disciplinas, programas e metodologias, no<br />

inevitável processo de ―escolarização do conhecimento‖:<br />

[...] a escola é uma instituição em que o fluxo das tarefas e das ações é ordenado<br />

através de procedimentos formalizados de ensino e de organização dos alunos<br />

em categorias (idade, grau, série, tipo de problema, etc.), categorias que<br />

determinam um tratamento escolar específico (horários, natureza e volume de


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trabalho, lugares de trabalho, saberes a aprender, processos de avaliação e de<br />

seleção, etc.) [...] (SOARES, 2003, p. 21)<br />

Como se pode perceber, o material utilizado na escola para formar o gosto do aluno pela<br />

leitura tem se apresentado inadequado.<br />

É importante realçar, entretanto, que segundo Magnani (1994; 1995), o termo ―gosto‖ não<br />

pode ser entendido como sabor, agrado, opinião, preferência ou moda, mas como uma faculdade<br />

social de discriminar, discernir e tomar decisões entre diferentes qualidades e valores relativos a<br />

objetos culturais que envolvem aspectos éticos e estéticos, objetos estes que não se destinam a<br />

―utilidade‖, mas que formam a humanidade do homem: as obras de arte e dentre elas as obras<br />

literárias. ―Trata-se de uma atividade, enfim, que, envolvendo aspectos éticos e estéticos, questiona<br />

o relativismo e a opinião da maioria como substitutos da razão e critérios de verdade‖<br />

(MAGNANI, 1995, p. 35).<br />

Ao que tudo indica, as práticas escolares de leitura desconhecem esse conceito, pois se<br />

pautam numa autoeducação do gosto, a partir de um ―suposto‖ respeito aos alunos, abrindo espaço<br />

para que todos os outros estímulos produzidos pela indústria cultural concorram com o escrito e<br />

ocupem um espaço que deveria ser da prática de leitura. Como se pôde compreender, o gosto é<br />

uma atividade cultural que se forma e, portanto, que pode ser ensinado dentro e fora da escola, ou<br />

seja, o gosto se forma por meio de ensino sistemático que o desenvolve e aprimora, não é um dado<br />

da natureza humana, imutável e acabado (MAGNANI, 1994; 1995). Respeitar o gosto do aluno,<br />

portanto, deve ser o ponto de partida do ensino da leitura, mas nunca o ponto de chegada.<br />

Assim, cabe ao professor a interferência crítica na formação do gosto, ―[...] a partir do<br />

trabalho com os ‗disfuncionamentos‘ literários, enquanto caminho desestabilizador da dicotomia<br />

entre prazer e saber‖ (MAGNANI, 1989, p. 3), pois<br />

[...] ler é uma atividade especificamente humana, intersubjetiva e não natural,<br />

supondo aprendizagem e, portanto, ensino, os quais se tornaram<br />

necessariamente escolares no caso das sociedades letradas contemporâneas, em<br />

que a escola se apresenta como mediadora entre o mundo público e o privado,<br />

entre o passado, o presente e o futuro. No entanto, apesar da institucionalização<br />

das relações de ensino-aprendizagem da leitura e da implementação de projetos<br />

[...], aprender e ensinar a ler podem ser compreendidos como atividades cujo<br />

sentido advém de sua condição de constituição do sujeito que lê, sobre o qual o<br />

lido atua e que, com e pela leitura, constitui-se como tal. (MAGNANI, 1995, p.<br />

35)<br />

O ensino da leitura delegado como responsabilidade apenas do professor de português tem<br />

implantado uma cultura de leitura na escola e para a escola que tem velado a leitura como prática<br />

social legítima e autorizada, na qual propostas e projetos de leitura têm sido gerados no contexto de<br />

formação de não-leitores, para confirmação do gosto estabelecido e ditado, principalmente, pela<br />

indústria cultural. Essa afirmação não busca condenar o trabalho do professor dessa disciplina, mas<br />

alertar para a necessidade de distribuição de tarefas no ensino da leitura, apontando para a<br />

necessidade de um ensino interdisciplinar, no qual cada área de conhecimento tem responsabilidade<br />

na formação do gosto pela leitura; no qual cada professor, em sua especificidade, pense de forma<br />

abrangente o ensino que propicia e que se dá por meio da leitura de textos.<br />

Silva (1995) aponta o espaço privilegiado que a leitura ocupa em todas as disciplinas<br />

escolares e o justifica:<br />

[...] Isso porque a escola é, hoje e desde há muito tempo, a principal instituição<br />

responsável pela preparação de pessoas para o adentramento e a participação no<br />

mundo da escrita, utilizando-se primordialmente de registros verbais escritos


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(textos) em suas práticas de criação e recriação de conhecimentos. Mais<br />

especificamente, a leitura, enquanto um modo peculiar de interação entre os<br />

homens e as gerações, coloca-se no centro dos espaços discursivos escolares,<br />

independentemente da disciplina ou área de conteúdo. (SILVA, 1995, p. 16)<br />

No entanto, tal espaço não é reconhecido e explorado e a promoção da leitura não é<br />

concebida como responsabilidade de todo corpo docente da escola, de maneira interdisciplinar e<br />

coletiva. Mediante a interlocução entre professores de todas as disciplinas escolares e seus alunos,<br />

por meio de uma diversidade textual é possível formar o gosto do aluno, pois a leitura é conteúdo<br />

específico da disciplina de língua portuguesa, enquanto objeto de estudo, mas medeia as relações<br />

sociais, enquanto prática social e dentro dessa diversidade textual, sendo, por isso, de<br />

responsabilidade de todas as áreas do conhecimento.<br />

Nesse modo de conceber a leitura escolar, a concorrência com a indústria cultural que tem<br />

formado e ―enformado‖ o gosto pelas coisas em geral e também pela leitura torna-se possível, pois<br />

textos ―reais‖ devem formar o repertório de material para leitura, correspondendo a textos de<br />

todas as áreas do conhecimento; assim não cabem fragmentos, adaptações mal feitas, nem seleção<br />

de enunciados ―adequados‖ à idade cronológica da criança ou ao conteúdo<br />

ortográfico/gramatical/temático etc. trabalhado pelo professor. Mas impõe-se a necessidade de<br />

seleção criteriosa de textos, não para interditar, privar ou censurar a leitura, configurando aulas de<br />

leitura precárias, artificiais e sem estímulo, mas uma seleção visando à formação de um repertório<br />

ao qual o aluno não teria acesso fora da escola ou, mesmo tendo acesso, não conseguiria ler sem ter<br />

sido ensinado, por ser considerado ―difícil‖ (MAGNANI, 1994).<br />

A especificidade do texto literário<br />

Diante de todas as considerações sobre a leitura na escola, é importante ressaltar a<br />

especificidade do texto literário na formação do gosto do leitor.<br />

Segundo Candido (1972), o homem tem necessidade natural de fantasia. O texto literário<br />

apresenta-se como gênero privilegiado para formação do gosto, porque corresponde exatamente à<br />

necessidade existencial de fantasia, conseguindo atuar em zonas profundas, propiciando a<br />

superação de conflitos internos e mobilizando a imaginação para a superação de problemas de outra<br />

ordem.<br />

Assim, embora aparentemente gratuitos, os textos literários têm uma função social: a de<br />

humanizar o homem, ou melhor, ―confirmar a humanidade do homem‖ (CANDIDO, 1972) e isto<br />

não diz respeito estritamente a uma função educativa. De acordo com Candido (1972),<br />

A literatura pode formar, mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la<br />

ideologicamente como um veículo da tríade famosa, - o Verdadeiro, o Bem, o<br />

Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da<br />

sua concepção de vida. Longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica<br />

[...], ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela, -<br />

com altos e baixos, luzes e sombras [...]<br />

[...]<br />

Dado que a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua com toda a sua<br />

gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa<br />

conduta [...]<br />

[...]<br />

[...] Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que<br />

chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo,<br />

porque faz viver. (CANDIDO, 1972, p. 805-806)<br />

Outros elementos alternativos para suprir essa necessidade humana de fantasia e de<br />

conhecimento simbólico da realidade não conseguem dar o que ―[...] só a literatura com seus meios


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específicos nos pode dar‖ (CALVINO, 1998), como valores, qualidades ou especificidades que,<br />

para Italo Calvino (1998), dão confiança quanto ao futuro da literatura mesmo na era tecnológica<br />

―dita pós-industrial‖, especialmente relativos à leveza, à rapidez, à exatidão, à visibilidade e à<br />

multiplicidade presentes no texto literário como propostas para esse milênio.<br />

A leveza do pensamento permitida pela literatura opõe-se ao peso do mundo, mesmo<br />

quando trata de temas pouco leves. A leveza ―[...] está associada à precisão e à determinação, nunca<br />

ao que é vago ou aleatório‖ (CALVINO, 1998, p. 28) e pode ser exemplificada em pelo menos três<br />

acepções distintas:<br />

1) um despojamento da linguagem por meio do qual os significados são<br />

canalizados por um tecido verbal quase imponderável até assumirem essa<br />

mesma rarefeita consistência.[...] 2) a narração de um raciocínio ou de um<br />

processo psicológico no qual interferem elementos sutis e imperceptíveis, ou<br />

qualquer descrição que comporte um alto grau de abstração.[...] 3) uma imagem<br />

figurativa de leveza que assuma um valor emblemático [...] (CALVINO, 1998, p.<br />

28-30)<br />

A rapidez característica da literatura não diz respeito à velocidade física, mas sim à<br />

velocidade mental que não pode ser medida e não permite comparações ou disputas, que<br />

[...] vale por si mesma, pelo prazer que proporciona àqueles que são sensíveis a<br />

esse prazer, e não pela utilidade prática que se possa extrair dela. Um raciocínio<br />

rápido não é necessariamente superior a um raciocínio ponderado, ao contrário;<br />

mas comunica algo de especial que está precisamente nessa ligeireza<br />

(CALVINO, 1998, p. 58)<br />

E é isso que possibilita a manutenção da comunicação<br />

[...] numa época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade<br />

espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando a reduzir toda<br />

comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, [possibilitando a<br />

comunicação] entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando<br />

mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem<br />

escrita. (CALVINO, 1998, p. 58, grifos do autor)<br />

A exatidão na linguagem literária, permitida por seu caráter escrito, no qual se pode ―[...]<br />

emendar cada frase tantas vezes quanto ache necessário‖ [...] ―[...] é a Terra prometida em que a<br />

linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser‖ (CALVINO, 1998, p. 72). No entanto, a ―[...]<br />

obra literária é uma dessas mínimas porções nas quais o existente se cristaliza numa forma, adquire<br />

um sentido, que não é fixo, nem definitivo, nem enrijecido numa imobilidade mineral, mas tão vivo<br />

quanto um organismo‖. (CALVINO, 1998, p. 84).<br />

A visibilidade é a primeira coisa que conta na produção escrita, seguida da necessidade<br />

intencional de organização das imagens e, ao mesmo tempo, da ―tradução em palavras‖. Assim, no<br />

texto literário unificam-se geração espontânea das imagens e intencionalidade do pensamento<br />

discursivo, sendo a primeira, ― [...] a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer<br />

brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca,<br />

de pensar por imagens. (CALVINO, 1998, p. 107-108, grifos do autor)<br />

A multiplicidade do texto literário reside na rede de conexões entre os fatos, entre as<br />

pessoas e entre as coisas do mundo contidas neste gênero, que pode ser vislumbrada no texto<br />

unitário ―[...] que se desenvolve como o discurso de uma única voz, mas que se revela interpretável<br />

a vários níveis‖, e o texto multíplice ―[...] que substitui a unicidade de um eu pensante pela


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multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo, segundo aquele modelo que Mikhail<br />

Bakhtin chamou de ‗dialógico‘, ‗polifônico‘ ou ‗carnavalesco‘ [...]‖ (CALVINO, 1998, p. 132).<br />

Em vista dessas características, o texto literário pode e deve ser mediador e ―objeto<br />

privilegiado‖ para o ensino da leitura enquanto formação do gosto, uma vez que ―Seguramente um<br />

bom leitor de textos literários, em especial, de poesia [...] será um excelente leitor de textos sérios:<br />

os informativos, os científicos etc.‖ (BRANDÃO; MICHELETTI, 2001, p. 27).<br />

Considerações Finais<br />

Neste texto, busquei problematizar a escolarização da leitura e arrisquei apontar o texto<br />

literário como mediador privilegiado desse ensino, na tentativa de demonstrar que se a leitura ainda<br />

apresenta-se com muito por fazer no que diz respeito ao seu ensino na escola, apesar dos avanços<br />

nos estudos e pesquisas, dos programas e projetos, é porque a educação escolar tem se baseado em<br />

princípios que não consideram a formação do gosto como tarefa escolar de ensino. Assim, a<br />

inadequação do material de leitura e as práticas isoladas de ensino permitem a concorrência da<br />

indústria cultural com recurso triunfante do elemento visual que cria alternativas para a necessidade<br />

humana de fantasia e de conhecimento simbólico da realidade, afastando o leitor do escrito.<br />

Essa constatação, no entanto, não esgota o tema. Como é possível perceber, a leitura ainda<br />

permite muitas reflexões e a formação do gosto ainda é um desafio. Diante de tantos pontos<br />

tocados por mim: o paradoxo entre importância da leitura e sua aquisição e utilização; a<br />

incumbência à escola e ao professor de português da responsabilidade pelo ensino da leitura; o<br />

conceito de gosto e a necessidade de ensino desse gosto; o papel da leitura na formação da<br />

humanidade do homem; dentre outros que poderiam ter sido desenvolvidos, é importante ressaltar<br />

que o ensino da leitura na escola, para formação do gosto demanda soluções urgentes e<br />

importantes, que passam por uma mudança do ponto de vista teórico. A tentativa de respostas aqui<br />

apresentada demanda aprofundamento, reflexão e análise sobre como fazer.<br />

Referências<br />

BAMBERGER, R. Como incentivar o hábito de leitura. 7. ed. 4. impr. São Paulo: Ática, 2002. (Educação em<br />

Ação). 109 p.<br />

BERTOLETTI, E. N. M. Mediação da leitura para formação do gosto: o papel do mercado editorial. In.:<br />

LIMA-HERNANDES, M. C. et. al. (Org.). A língua portuguesa no mundo. São Paulo: FFLCH-USP, 2008.<br />

BRANDÃO, H. N.; MICHELETTI, G. Teoria e prática da leitura. In.: ______. (Coord.). Aprender e ensinar<br />

com textos didáticos e paradidáticos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001. (Aprender e ensinar com textos, v. 2). p. 17- 27<br />

CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. 2. ed. 4. reimpr. São Paulo: Companhia<br />

das Letras, 1998. 141 p.<br />

CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura, v. 24, n. 9, p. 803-839, set. 1972.<br />

MAGNANI, M.R.M. Leitura, literatura e escola – sobre a formação do gosto. São Paulo: Martins Fontes, 1989.<br />

121 p.<br />

______. Leitura e formação do gosto (por uma pedagogia do desafio do desejo). Série Idéias, n. 13. São Paulo:<br />

FDE, 1994. p. 101-106.<br />

______. Sobre ensino da leitura. Leitura: teoria & prática, n. 25, p. 29-41, 1995.<br />

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo/ 1876-1994). São Paulo: Editora<br />

UNESP: CONPED, 2000. 372 p.<br />

SILVA, E. T. A produção da leitura na escola: pesquisas X propostas. São Paulo: Ática, 1995.<br />

SOARES, M. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In.: EVANGELISTA, A.A.M.; BRANDÃO,<br />

H.M.B.; MACHADO, M.Z.V. A escolarização da leitura literária – o jogo do livro infantil e juvenil. 2. ed. 1.<br />

reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. (Linguagem & Educação). p. 17-58.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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EDUCAÇÃO DIFERENCIADA BILINGUE E INTERCULTURAL NO CONTEXTO<br />

ESCOLAR APINAYÉ: UM OLHAR PARA O PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA E<br />

SUA PRÁTICA PEDAGOGICA 10<br />

Francisco Edviges Albuquerque 11<br />

Severina Alves de Almeida. 12<br />

Maria José de Pinho 13<br />

Eliana Henriques Moreira 14<br />

Resumo: Neste trabalho compartilhamos resultados parciais de uma pesquisa sobre a educação<br />

escolar na sociedade Apinayé, focalizando o Professor de Língua Materna. A metodologia abrange<br />

pesquisa bibliográfica e etnografia com observação participante. Percebemos que o bilinguismo<br />

Apinayé/português e a interculturalidade são práticas pedagógicas agregadas às atividades do<br />

professor de língua materna. Tais práticas refletem os aspectos sociolinguísticos desse povo e se<br />

apresentam incorporados aos conteúdos curriculares, uma vez que o material de apoio pedagógico<br />

utilizado na condução das aulas, nos anos iniciais do ensino fundamental, foi produzido pelos<br />

próprios indígenas, simultaneamente, em sua língua materna e em português.<br />

Palavras Chave: Educação Bilíngue; Bilinguismo; Professor de Língua Materna.<br />

Abstract: In this paper we share the partial results of a survey on school education in society<br />

Apinayé, focusing on the mother tongue teachers. The methodology includes literature research<br />

with ethnography and participant observation. We realize that bilingualism Apinayé / Portuguese<br />

and intercultural teaching practices are aggregated to the activities of teachers of English. Such<br />

practices reflect the sociolinguistic aspects of these people and have incorporated the curriculum,<br />

since teaching support material used in the conduct of classes in the early years of elementary<br />

school, was produced by Indians themselves, both in their mother tongue and in Portuguese.<br />

Keywords: Bilingual Education, Bilingualism, Interculturalism, Teacher of Mother Tongue.<br />

10Trabalho vinculado ao Projeto de pesquisa: “Interculturalidade e Educação Escolar Apinayé: uma<br />

experiência bilíngue nas escolas das aldeias São José e Mariazinha, que se realiza para produção de<br />

uma dissertação de Mestrado em Língua e Literatura, da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus<br />

de Araguaína.<br />

11Professor Adjunto da UFT - Universidade Federal do Tocantins – Campus de Araguaína, e orientador da<br />

pesquisa. e-mail: fedviges@uol.com.br.<br />

12Pedagoga, Mestranda na Universidade Federal do Tocantins, Campus de Araguaína e bolsista do Programa<br />

do ―Observatório de Educação Escolar Indígena‖ vinculado à CAPES. sissi@uft.edu.br<br />

13Professora Adjunta da UFT – Universidade Federal do Tocantins, Campus de Palmas. e-mail:<br />

mjpgon@uft.edu.br<br />

14 Professora Assistente da UFT – Universidade Federal do Tocantins, Campus de Tocantinópolis, e-mail:<br />

liahenriques@uft.edu.br


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Introdução<br />

A década de 1990 veio consolidar os dispositivos da Constituição Federal do Brasil<br />

(CFB/88), quando foi promulgado um Decreto Lei que delegou ao MEC - Ministério da Educação<br />

- a execução de políticas públicas voltadas para a educação escolar indígena em substituição à<br />

FUNAI – Fundação Nacional do Índio - órgão responsável pelo setor até então no País. Esse<br />

Documento Legal transfere a organização da educação indígena aos Estados e Municípios, a qual<br />

passa a figurar nos documentos educacionais posteriores: LDB - Lei de Diretrizes e Bases para a<br />

Educação Nacional (1996); PDE - Plano Nacional de Educação (1998) e no RCNEI - Referencial<br />

Nacional para as Escolas Indígenas (2002).<br />

Quando falamos em Bilinguismo, imediatamente nos deparamos com a ideia de que numa<br />

sociedade existem sujeitos com competência para se comunicar em duas línguas. Em relação à<br />

interculturalidade, o quadro é quase o mesmo, ou seja, se pressupõe que duas ou mais culturas estão<br />

de alguma forma se relacionando. Tanto numa situação quanto na outra, existe um campo de<br />

convergência que imbrica para a questão da educação escolar. O diferencial está no contexto em que<br />

ocorre cada uma dessas manifestações.<br />

Portanto, a categoria ―Escola Indígena‖, que baliza esse nosso estudo, tem no binômio<br />

―Bilinguismo e interculturalidade‖ sua mais expressiva identidade. Agregada a essa ―Escola Indígena‖,<br />

se sobrepõe a interculturalidade, considerada por alguns teóricos, por exemplo, Paula (1999), Maher<br />

(2006), Grupioni (2006), como condição primordial para que seja respeitada a especificidade da<br />

educação escolar indígena, sendo os fenômenos ―Bilinguismo‖ e ―interculturalidade‖ elementos<br />

constitutivos dessa educação que se pretende ―diferenciada‖.<br />

Com efeito, essa ―educação diferenciada‖ é uma conquista dos povos indígenas brasileiros,<br />

garantida por instrumentos jurídicos nacionais e internacionais e, segundo Grupioni (2001), tem<br />

apresentado avanços importantes. Para esse autor, a diversidade das culturas e a riqueza de<br />

conhecimentos, saberes e práticas associadas à educação dos povos indígenas, tantas vezes negada<br />

pelo saber hegemônico e pelo poder autoritário, hoje é reconhecida e valorizada, abrindo espaço<br />

para o reconhecimento e a aceitação da diferença e do pluralismo.<br />

Neste artigo refletimos acerca da interculturalidade, do bilingüismo e das práticas<br />

pedagógicas do Professor de língua materna Apinayé, enfatizando a importância que assume um<br />

currículo intercultural na promoção de uma educação diferenciada, considerando a convivência na<br />

fronteira étnica.<br />

Os procedimentos metodológicos, de caráter qualitativo, contemplam pesquisa etnográfica<br />

com observação participante, agrupando entrevistas semidirigidas enquanto técnica que possibilita a<br />

interação, e microanálise etnográfica como aporte facilitador na análise e interpretação dos dados.<br />

O corpus investigado é composto de duas escolas e entrevistas – foco principal da análise - com os<br />

professores de língua materna e com líderes da comunidade Apinayé e, também, diários e notas de<br />

campo. Os resultados demonstram que o Bilinguismo é uma realidade na sociedade Apinayé, desde<br />

que os professores de língua materna se desdobram no sentido de fazerem com que as aulas sejam<br />

significativas para os estudantes.<br />

1 – Bilinguismo e Educação Intercultural<br />

O que vem a ser uma ―Educação Bilíngue e Intercultural‖, e como ela se manifesta?<br />

Inicialmente é importante que se distinga ―Bilinguismo‖ de ―Educação Bilingue‖. Para Saunders<br />

(1988:8) "Bilinguismo simplesmente significa possuir duas línguas" 15. Segundo Quadros (1999) o<br />

15 SAUNDERS, George. Bilingual children: From birth to teens. England: Multilingual Matters, (1988). –<br />

Tradução livre da autora.


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Bilinguismo é uma proposta de ensino usada por escolas que se propõem a tornar acessível à<br />

criança duas línguas no contexto escolar. Esse conceito mais geral de Bilinguismo é determinado<br />

pela situação sócio-cultural da comunidade como parte do processo educacional. O Bilinguismo<br />

atravessa a fronteira linguística e inclui o desenvolvimento da pessoa dentro da escola e fora dela,<br />

numa perspectiva sócio-cultural.<br />

A Educação Bilíngue é aquela que ocorre simultaneamente em duas línguas, sendo uma a<br />

língua materna e a outra, uma segunda língua. Dessa forma, a educação indígena Apinayé é bilíngue<br />

desde que se efetiva um ensino na língua indígena (materna) e em português. Para Harmers e Blanc<br />

(2000:189) Apud, Megale (2005:24) a Educação Bilíngue pode ser entendida como ―qualquer<br />

sistema de educação escolar no qual, em dado momento e período, simultânea ou<br />

consecutivamente, a instrução é planejada e ministrada em pelo menos duas línguas‖. E uma<br />

educação intercultural? É aquela que se desenvolve num ambiente onde interagem diferentes<br />

culturas ou, segundo Grupioni (2002:87), ―é uma educação onde se faz presente a diversidade de<br />

culturas e a riqueza de conhecimentos, saberes e práticas a elas associadas‖.<br />

Segundo Ouellet (1991) 16 o conceito de educação intercultural designa toda a formação<br />

sistemática que visa a desenvolver melhor compreensão das culturas nas sociedades modernas;<br />

maior capacidade de comunicação entre pessoas de culturas diferentes; atitudes mais adaptadas ao<br />

contexto da diversidade cultural, através da compreensão dos mecanismos psicossociais e dos<br />

fatores sociopolíticos capazes de produzir racismo; maior capacidade de participar na interação<br />

social, sendo esta vista como criadora de identidades e promotora de sentido de pertença comum à<br />

humanidade 17.<br />

Podemos dizer que a educação intercultural, enquanto instrumento que nos ajuda a<br />

interferir e a intervir no mundo que nos rodeia, inscreve-se numa perspectiva mais ampla, como é o<br />

caso da educação para a cidadania, onde a coesão social aparece associada à valorização da<br />

diversidade. As iniciativas que promove correspondem a cinco preocupações e/ou valores: coesão<br />

social (procura de uma pertença coletiva); aceitação da diversidade cultural; igualdade de<br />

oportunidades e equidade; participação crítica na vida democrática; preocupação ecológica (Ouellet,<br />

2002) 18. Já Banks 19 (1993) define-a como uma ideia, um movimento de reforma educativa e um<br />

processo, cujo objetivo é a mudança estrutural das instituições educativas de modo que os alunos<br />

de diversas etnias e grupos culturais venham a ter oportunidades iguais para alcançarem o sucesso<br />

escolar. Na medida em que a educação intercultural se constitui como um instrumento para que<br />

todos os alunos possam realizar o seu potencial, Banks também lhe chama de educação para a<br />

liberdade. (BANKS, 1993) 20.<br />

Com efeito, quando falamos de educação intercultural, estamos nos referindo a um<br />

conjunto de dimensões presente nos múltiplos contextos educacionais que, preferencialmente,<br />

devem permear a escola como um todo e a vida social no seu conjunto. Segundo Banks (1993), a<br />

educação ou é intercultural ou não é uma boa educação 21, de sorte que a interculturalidade envolve,<br />

em última análise, um movimento e um processo de conscientização pessoal e de criação de novas<br />

oportunidades de inclusão para todos.<br />

16 Fernand Ouellet é Professor da Faculdade de Teologia e Filosofia da Universidade de Sherbrooke, Canadá.<br />

http://www.entreculturas.pt. Acesso dia 27-Jul-2010.<br />

17 Tradução livre disponível http://www.entreculturas.pt. Acesso dia 27-Jul-2010.<br />

18 Tradução livre disponível http://www.entreculturas.pt. Acesso dia 27-Jul-2010..<br />

19James Banks é Professor de Educação e Diretor do Centro de Educação Multicultural da Universidade de<br />

Washington, Seattl. http://www.entreculturas.pt. Acesso dia 27-Jul-2010.<br />

20 Tradução livre disponível http://www.entreculturas.pt. Acesso dia 27-Jul-2010<br />

21 Tradução livre disponível http://www.entreculturas.pt. Acesso dia 27-Jul-2010


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Referindo-se às conquistas educacionais alcançadas pelos povos indígenas no Brasil, Lopes<br />

da Silva (2001) constata que estas são inegáveis. Entretanto, ela admite que existe uma distância<br />

considerável separando a escola rural ou missionária e catequética, presente entre os povos<br />

indígenas ainda no século XX, do reconhecimento oficial e legal da especificidade da escola e da<br />

educação escolar indígena, defendidas como necessárias e legitimamente diferenciadas em relação às<br />

demais escolas brasileiras. Segundo a autora, essas conquistas são largamente contempladas em<br />

deferentes instâncias legais, desde que os povos indígenas brasileiros têm:<br />

[...] no plano jurídico, o reconhecimento ao direito, à diferença sociocultural e à<br />

valorização de suas línguas, modos e concepções; no plano político, o<br />

surgimento de associações locais ou regionais de professores índios, que<br />

realizam encontros de trabalho, discussão, reciclagem e revisão crítica de sua<br />

atuação. [...] no plano pedagógico, a criação de escolas indígenas autônomas<br />

mas reconhecidas pelo sistema nacional de educação, tendo regimento,<br />

currículo e pedagogia próprios, defendidos de acordo com as particularidades<br />

de cada situação local, por obra do trabalho de professores e comunidades<br />

indígenas, e os cursos específicos de formação de professores índios (LOPES<br />

DA SILVA 2001:103-4).<br />

Entretanto um aparato jurídico e normativo, por mais abrangente que seja não é garantia<br />

efetiva de uma educação diferenciada, intercultural e bilíngue para as sociedades indígenas<br />

brasileiras. Isso porque, em nossa pesquisa com os Apinayé, identificamos que os currículos<br />

encaminhados às escolas das aldeias são os mesmos utilizados nas escolas não indígenas e, portanto,<br />

descontextualizados de sua realidade. Constatamos também que os professores não índios<br />

enfrentam a barreira linguística, tendo que lecionar falando numa língua que não é compreendida<br />

pela imensa maioria dos alunos. Não bastasse isso, existe o fato dos alunos indígenas serem<br />

obrigados a se submeter a avaliações externas de abrangência nacional, atendendo às exigências<br />

corporativas, consequência das políticas neoliberais presentes em todo sistema educativo brasileiro,<br />

mas com maior intensidade no ensino fundamental 22, comprometendo a interculturalidade, razão de<br />

ser das escolas indígenas.<br />

2 - Um Olhar Sobre o Professor de Língua Materna Apinayé<br />

A alfabetização bilíngue, isto é, a aquisição da leitura e da escrita pelos povos indígenas<br />

brasileiros, em sua maioria sociedades ágrafas, surge em função da necessidade de se estabelecer<br />

formas de comunicação entre estes e a sociedade nacional. O que requer a formação de professores<br />

capazes de sistematizar a transposição da oralidade para a escrita na fronteira étnica, ou seja, exige<br />

profissionais com domínio de leitura e escrita das línguas materna e portuguesa. Lopez e Sichra<br />

(2007) advertem que é preciso levar em conta a formação desses professores, adequado-a às<br />

exigências da educação indígena, com ênfase na recuperação e na sistematização das práticas de<br />

criação, geração e construção de conhecimentos das comunidades indígenas para, dessa forma, estar<br />

em melhores condições de desenvolver conteúdos e didáticas interculturais nas diversas áreas do<br />

currículo, visando à efetivação de uma educação diferenciada e intercultural.<br />

Devemos considerar, no entanto, que o corpo docente que atende às comunidades indígenas<br />

é formado também por professores não indígenas. Dessa forma, a interação desses professores deve<br />

se pautar nos princípios da interdisciplinaridade (Fazenda, 2006), envolvendo todos os agentes que<br />

interagem em sua estrutura tanto pedagógica e administrativa quanto social. Tais proposições devem<br />

alcançar áreas como: gestão, organização administrativa, planejamento pedagógico, currículo,<br />

22 Fizemos tal constatação ao desenvolvermos uma pesquisa de iniciação científica PIBIC/CNPQ, 2006-2007<br />

intitulada “A Dialética da Globalização e Seus Efeitos na Educação”, quando identificamos os impactos<br />

do neoliberalismo no ensino fundamental. O resultado foi publicado nos anais do III seminário de iniciação<br />

científica UFT Palmas: 2007.


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avaliação institucional e da aprendizagem, conselhos escolares, participação da comunidade nos<br />

assuntos da escola, etc.<br />

Grupioni (2003) alerta que o professor bilíngue e intercultural que atua na realidade indígena<br />

deve ser formado também como pesquisador. Porém, não só dos aspectos relevantes da história e da<br />

sua cultura, mas também dos assuntos considerados significativos nas várias áreas de conhecimento.<br />

Para esse autor, dessa atividade de pesquisa e estudo pode resultar materiais utilizáveis tanto no<br />

processo de formação desse professor, como na escola, para o uso didático com seus alunos. Aliás,<br />

este é um dos encaminhamentos que daremos ao final de nossa pesquisa com as escolas indígenas<br />

Apinayé.<br />

Com efeito, a expectativa em torno da formação desse profissional é que ele, além de ser<br />

professor de sua escola, deva ser também um pesquisador, o que não deixa de ser um grande desafio<br />

que envolve, de um lado, investimentos na sua formação individual e específica e, do outro, a<br />

comunidade indígena que ele representa. Esta, por sua vez, deve participar ativamente das discussões,<br />

dos objetivos e das práticas da escola indígena local, bem como dos programas de formação e<br />

qualificação de seus professores. Afinal, uma das excelências da educação intercultural indígena é o<br />

envolvimento dos mais velhos e lideranças da aldeia nos assuntos da escola, desde que estes são<br />

figuras centrais na educação de sua população, que se dá de forma efetiva também fora da sala de<br />

aula, ou seja, na comunidade.<br />

De modo geral, esses processos de formação possibilitam que os professores de língua<br />

indígena desenvolvam competências que lhes permitam atuar, de forma responsável e crítica, nos<br />

contextos interculturais e sociolinguísticos nos quais as escolas indígenas estão inseridas. Entretanto,<br />

em diversas situações, cabe aos professores que lecionam nessas escolas atuarem como mediadores e<br />

interlocutores da comunidade com os representantes do mundo de fora da aldeia, e com a<br />

sistematização e organização de novos saberes e práticas (Grupioni, 2003). Consequentemente<br />

compete a esses professores a tarefa de refletir criticamente sobre sua própria formação, criando<br />

estratégias para que se promova a interação dos diversos tipos de conhecimentos que se apresentam e<br />

se entrelaçam no processo escolar. Observando que, de um lado, encontram-se os conhecimentos<br />

ditos universais, a que todo estudante, indígena ou não, deve ter acesso. E, de outro, os<br />

conhecimentos étnicos próprios ao seu grupo, que, se antes eram negados, hoje assumem<br />

importância crescente nos contextos escolares.<br />

Todavia, como temos duas categorias de professores bem específicas atuando nessa<br />

realidade, ou seja, o professor de língua materna nativo da aldeia e o professor que não é indígena é<br />

preciso considerar alguns fatores. Primeiro, tem o professor indígena que faz parte da comunidade e<br />

que domina plenamente seu idioma, mas não domina inteiramente o português. Segundo, existe o<br />

professor que vem de fora o qual, por sua vez, nada sabe da língua falada por seus alunos, conforme<br />

observamos em nossa pesquisa nas escolas Mãtyk e Tekator das aldeias Apinayé. Dessa forma<br />

percebe-se que a situação do professor que vem de fora é mais complicada, pois a comunicação, fator<br />

primordial para que a aprendizagem ocorra, está comprometida. Sendo assim, é imperioso que exista<br />

algum planejamento no sentido de preencher essas lacunas, ou seja, um intercâmbio entre as escolas<br />

indígenas e os órgãos responsáveis pelo monitoramento e avaliação dessas instituições, realizando um<br />

trabalho de preparação prévia visando à consecução de uma escola que cumpra no mínimo sua<br />

missão básica, que é alfabetizar.<br />

Henriques et alli (2007) entendem que o perfil profissional a ser buscado na formação desse<br />

professor corresponde, necessariamente, ao de um ator social que age nas dimensões sociais,<br />

políticas, culturais e educativas, considerando a mediação intercultural entre a comunidade e os<br />

agentes da sociedade majoritária e vice-versa. Sendo assim, sua formação precisa ser ininterrupta e de<br />

qualidade, e a pesquisa dever ser um condicionante para fundamentar sua prática pedagógica;<br />

valorizado os saberes tradicionais, dialogando com os conhecimentos da outra sociedade, buscando o<br />

novo. Esta conjuntura favorece uma reflexão acerca do papel da escola no contexto interétnico


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vivido pela comunidade, ancorado no compromisso de se transformar a escola em espaço de diálogo<br />

intercultural e na difusão do conhecimento sobre os direitos e a valorização da língua e da cultura<br />

indígenas.<br />

Com efeito, o bilinguismo se caracteriza por ser um processo vinculado às práticas sociais da<br />

comunidade; práticas de preservação e manutenção da língua indígena, na medida em que possibilita<br />

o seu desenvolvimento, contribuindo para a sua permanente afirmação e para o reconhecimento<br />

étnico diante da sociedade não indígena. Nesse sentido, consideramos primordial a construção de um<br />

projeto escolar que potencialize uma educação diferenciada, bilíngue e intercultural, a ser construída<br />

na realidade educacional da sociedade Apinayé. Valorizando o trabalho dos professores, tanto o de<br />

língua materna quanto os que vêm de fora, numa ação coordenada, favorecendo o trabalho<br />

interdisciplinar, edificado por bases sólidas, construídas na convivência com a diferença, sobretudo<br />

no respeito a esta.<br />

Considerações Finais<br />

Neste artigo foi discutida a Educação Indígena no contexto Apinayé, ora identificada como<br />

Educação Bilíngue e Intercultural. O texto faz alusões acerca da interculturalidade, do Bilinguismo,<br />

da alfabetização bilíngue e dos professores indígenas bilíngues. Tudo isso contextualizado na<br />

realidade vivenciada pelos Apinayé das aldeias São José e Mariazinha, as quais são consideradas, pela<br />

organização social e política dessa sociedade, como as mais importantes, num total de dezenove<br />

aldeias habitadas por esse povo indígena.<br />

O texto informa que a Educação Bilíngue e Intercultural é uma realidade e que na sociedade<br />

Apinayé seus professores se desdobram no sentido de fazerem com que as aulas sejam significativas<br />

para os estudantes. Apesar das adversidades visivelmente presentes nas formas como são ―recebidos‖<br />

os currículos e o material didático oficial, as escolas Mãtyk e Tekator, através de seus professores<br />

bilíngues, apresentam alternativas, desde que utilizam um material de apoio pedagógico concebido<br />

por eles mesmos com a participação de outros habitantes da comunidade. Nesse material são<br />

intercalados elementos da cultura Apinayé e também da língua portuguesa, evidenciando a<br />

preocupação em se edificar uma aprendizagem que atenda aos pressupostos da interculturalidade.<br />

Constatamos, também, que as aldeias São José e Mariazinha apresentam peculiaridades bem<br />

significativas, confirmando opiniões de alguns teóricos, Grupioni (2001; 2003), Lopes da Silva (2000;<br />

2001), Nunes (2003), Albuquerque (1999), entre outros, que corroboram a heterogeneidade dos<br />

povos indígenas. Para esses autores, os membros de uma mesma sociedade, desde que vivam em<br />

aldeias diferentes, podem apresentar comportamentos distintos e diferenças importantes. E isto foi<br />

possível identificar nas duas aldeias onde se localizam as escolas objeto do estudo, o que nos faz<br />

concordar com esses autores que são unânimes ao admitirem que um dos sérios problemas do nosso<br />

sistema de ensino é trabalhar com a concepção de uma única nação indígena, como se entre esses<br />

povos não houvesse nenhuma diferença.<br />

Nesse sentido, acreditamos que não é apenas imperativo, mas urgente e necessário que se<br />

desenvolvam projetos de educação para essa comunidade que busquem fazer um trabalho de<br />

manutenção e preservação da língua e da cultura Apinayé. Projetos capazes de promover o diálogo<br />

necessário entre a sociedade Apinayé e a nossa sociedade, promovendo um intercâmbio que efetive a<br />

interculturalidade enquanto aspecto primordial para o fortalecimento das relações entre povos de<br />

sociedades e de culturas diferentes. Projetos que visem à revitalização da língua Apinayé nos<br />

domínios sociais da aldeia Mariazinha, e que elevem seus falantes ao status de terem uma identidade<br />

linguística. Não obstante, acenamos para a possibilidade de uma educação que contribua de forma<br />

emancipatória e participativa para a valorização, revitalização e a manutenção da língua e da cultura<br />

dos povos Apinayé, considerando a imperiosa necessidade de se pensar uma escola feita ―por eles‖, e<br />

não ―para eles‖.


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Temática Indígena na Escola Novos Subsídios para Professores de 1º. E 2º. Graus. MEC/MARI; UNESCO, 2000,<br />

p. 149-165.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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LETRAMENTO LITERÁRIO NUMA ESCOLA DE TEMPO INTEGRAL:<br />

A FORMAÇÃO DE LEITORES EM PERSPECTIVA 23<br />

Gislene Pires de Camargos Ferreira 24<br />

Maria José de Pinho 25<br />

Resumo: O presente artigo tem por objetivo problematizar e analisar a Hora de Leitura e o PPP –<br />

Projeto Político pedagógico de uma Escola de Tempo Integral em Palmas, capital do Tocantins.<br />

Nesta escola os alunos permanecem 9 horas no espaço escolar, tendo aulas com horários<br />

específicos para a ―Hora da Leitura‖. Sendo assim buscamos responder aos seguintes<br />

questionamentos: como acontece a ―Hora da Leitura‖ numa Escola de Tempo Integral? Qual o<br />

papel da ―Hora da Leitura‖ na formação de leitores? Alem disso, buscamos identificar no PPP<br />

elementos que identifiquem as práticas de letramento de textos literários capazes formar leitores<br />

competentes.<br />

Palavras Chave: Letramento Literário; Escola de Tempo Integral; Hora da leitura.<br />

Abstract: This article aims to discuss and analyze the Time of Reading and the PPP - Political<br />

Project of an educational day schools in Palmas, Tocantins. In this school students stay in school<br />

nine hours, taking classes with specific times for the "Reading Time". Thus we seek to answer the<br />

following questions: how does the "Reading Time" in School Full-Time? What is the role of<br />

"Reading Time"in the formation of readers? Furthermore, we identify elements in the PPP to<br />

identify the literacy practices of literary form capable competent readers.<br />

Keywords: Literacy Literature; School Full-Time, Time of reading.<br />

Introdução<br />

As tendências contemporâneas da pesquisa e metodologias científicas objetivam possibilitar<br />

a integração entre duas ou mais teorias e disciplinas que possam corroborar para a construção de<br />

objetos complexos, uma visão holística e maior diálogo entre as diferentes correntes teóricas, rumo<br />

a um maior e mais profundo desvelamento da realidade e consequentemente à produção de novos<br />

conhecimentos sob novos olhares.<br />

O nosso objetivo neste artigo é descrever as observações realizadas durante as aulas da<br />

―Hora da leitura‖ em uma escola de Tempo Integral, em Palmas, estado do Tocantins. Além disso,<br />

buscamos refletir e provocar reflexões sobre como se desenvolve o processo de letramento literário<br />

neste espaço escolar que conta com um horário específico para leitura contemplado na carga<br />

horária e no PPP – Plano Político Pedagógico da Unidade Escolar.<br />

Cumpre ressaltar, no entanto, que a pesquisa à qual este artigo está vinculado, encontra-se e<br />

andamento, visando à elaboração de uma Dissertação de Mestrado em Língua e Literatura.<br />

A metodologia a ser usada será numa abordagem qualitativa e do tipo estudo de caso.<br />

(YIN, 2001). Os instrumentos a serem utilizados para coleta de dados são: análise documental do<br />

PPP – Projeto Político Pedagógico da escola; dos planos de ensino e planejamentos dos professores<br />

23 Trabalho vinculado ao Projeto de Dissertação de Mestrado Em Língua e Literatura: “Escola de Tempo<br />

Integral: Possibilidades e Desafios de Práticas Inter (Trans)disciplinares”.<br />

24 Professora da Educação Básica e Mestranda do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras – no<br />

MELL – Mestrado em Língua e Literatura da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus de<br />

Araguaína.<br />

25 Professora Adjunta da UFT – Universidade Federal do Tocantins, Campus de Palmas. email:<br />

mjpgon@uft.edu.br


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de Língua portuguesa e Hora da leitura; observação de algumas aulas de leitura (doze aulas até o<br />

presente momento).<br />

Nessa fase atual da pesquisa, estamos concluindo a revisão bibliográfica, analisando o PPP<br />

da escola e observando as Aulas de Leitura (até o presente momento já observamos doze aulas). Os<br />

dados coletados até então, incluem, dentre outras práticas, conversações com a diretora, com as<br />

coordenadoras da biblioteca e de cultura, com duas professoras de Língua Portuguesa e da Hora da<br />

Leitura e com seis alunas e cinco alunos no intervalo das doze aulas observadas.<br />

Ao pensar na Hora da leitura numa escola com uma estrutura tão grandiosa, com um<br />

horário específico para a Hora da leitura e com um PPP que prioriza a formação de leitores, são<br />

várias as perguntas que nós fazemos, tais como: de que modo acontecem essas aulas da Hora da<br />

Leitura? Será que nelas é possível perceber o letramento literário acontecer? Como as professoras<br />

motivam os alunos e alunas para a leitura? E a fruição estética acontece mesmo? As leituras são de<br />

livre escolha, direcionadas ou acontecem os dois tipos? Enfim, são muitas interrogações<br />

espreitando esse ―lugar‖ e essa ―Hora da leitura‖.<br />

1 – Literatura e Letramento Literário: Concepções Epistemológicas e Diálogos<br />

Interdisciplinares<br />

A teoria aristotélica pressupõe a literatura como a arte da palavra, que tem como<br />

característica primeira a imitação. Para Aristóteles o poeta narra o que poderia ter acontecido, e não<br />

o que aconteceu, o possível, de acordo com a verossimilhança. (ARISTÓTELES, 1969). O filósofo<br />

grego ressalta que é natural e instintiva a imitação no ser humano e que é através dela que acontece<br />

a aprendizagem e o prazer estético que promovem o letramento literário.<br />

Procuraremos retratar a literatura, ressaltando o caráter polissêmico e a grande dificuldade<br />

apontada por inúmeros estudiosos em conceituar tal palavra, inicialmente recorreremos à origem<br />

etimológica da palavra:<br />

Literatura vem de letras, ae, que significa letra em latim e dá origem à palavra<br />

literatura, ciência relativa às letras, arte de ler e escrever. Daí sua relação, desde<br />

os clássicos, com a cultura letrada, portanto limitada aos segmentos da sociedade<br />

que têm acesso á escrita, por suas condições econômicas privilegiadas. Nesse<br />

sentido, literatura está ligada ao poder e ao prestígio das classes dominantes e é<br />

conservada na medida em que expressa a visão do mundo e os interesses dessas<br />

camadas (AGUIAR, 2007, p. 17).<br />

Rangel (2005) destaca a grande importância do papel da literatura e do letramento literário no<br />

processo educacional, principalmente no ensino fundamental onde faz-se necessário a formação de<br />

leitores.<br />

Este autor apresenta o letramento literário como ―o conjunto das formas pelas quais uma<br />

determinada cultura ao mesmo tempo dá uma existência social e se serve da escrita, atribuindo-lhe<br />

diferentes sentidos e funções‖. (RANGEL, 2005, p. 130), que se apresentam agregadas a ética e a<br />

estética, a diferentes processos de produção, circulação e distribuição social da leitura e escrita em<br />

determinadas comunidades.<br />

Letramento literário é definido também como ferramenta para ―formar um leitor para quem<br />

o texto é objeto de intenso desejo, para quem a leitura é parte indissociável do jeito de ser e de<br />

viver‖ (RANGEL, 2005, p. 137-138), o que vai ao encontro do que propaga Soares, ou seja, que o<br />

letramento literário precisa se configurar por intermédio de uma leitura ―que se realiza pelo desejo,<br />

pela espontaneidade, pela ausência de controles e satisfações devidas‖ (SOARES, APUD,<br />

CORREA, 2005:72)


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Vale ressaltar que a literatura nos leva, realmente a vivenciar, (re)significar, (re)produzir e<br />

(re)construir situações e fatos permeados pela subjetividade, emoções, ludicidade, pelo estético e<br />

pelo sensível. Não se pode negar também o seu importante papel na construção de atitudes morais<br />

e éticas na promoção da construção do conhecimento e da cidadania.<br />

Nesse sentido, a literatura e o letramento literário devem assegurar, especialmente, a função<br />

estética, que desperta e intensifica a sensibilidade e provoca sensações prazerosas, possibilitando ao<br />

educando o aguçamento e o refinamento da sensibilidade, da imaginação e especialmente da fruição<br />

estética e do prazer de ler.<br />

Para Soares letramento é ―o conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem a<br />

leitura e a escrita, gerados por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou<br />

questionar valores e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais. (SOARES,<br />

1998, p. 98)<br />

Cosson conceitua o ensino da literatura como ―processo de formação de um leitor capaz de<br />

dialogar no tempo e no espaço com sua cultura, identificando, adaptando ou construindo um lugar<br />

para si mesmo‖ (COSSON, 2007, p. 120). Para esse autor:<br />

[...] o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da<br />

escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a<br />

literatura, (...) mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem<br />

transformá-la em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu<br />

poder de humanização. (COSSON, 2007, p. 23).<br />

Dessa forma o autor destaca que o letramento literário precisa acompanhar, por um lado, as<br />

três etapas do processo de leitura (antecipação, decifração e interpretação) e por outro, o saber<br />

literário, sendo a literatura uma linguagem que compreende três tipos de aprendizagem: da literatura<br />

(experienciar o mundo por meio da palavra); sobre literatura (conhecimentos da história, teoria e<br />

crítica); por meio da literatura (saberes e habilidades que a prática da literatura proporciona aos seus<br />

usuários).<br />

Cumpre ressaltar que Cosson indica essa escolarização da literatura voltada especialmente<br />

para o ensino médio. Sendo assim, indagamos: será que tal metodologia seria pertinente para as<br />

séries finais do ensino fundamental? Insistimos nesse questionamento porque o objetivo principal<br />

desse estágio da pesquisa é a formação de leitores tendo como foco textos literários. E acreditamos<br />

que essa formação de leitores pressupõe, essencialmente, a leitura pelo prazer e pela fruição estética.<br />

Com efeito, a primeira fase do letramento literário deve ser marcada pela diversidade nas<br />

escolhas dos livros, sem discriminação ou qualquer tipo de preconceito. Corroborando nesse<br />

sentido Magalhães aponta que:<br />

[...] é preciso considerar que se está trabalhando a sensibilidade, e sensibilidade<br />

ou senso estético é um construto cujo percurso e ritmo são únicos para cada<br />

pessoa. Respeitar isso significa aceitar todos os tipos de textos literários, desde<br />

que proporcionem prazer estético, ou seja, que deleite o leitor. (MAGALHÃES,<br />

2008, p. 125).<br />

Ademais, o tipo de conhecimento apreendido pela estética acontece no percurso da<br />

conjunção do sujeito com o mundo, provocando um ―sentir‖ imediato do corpo que,<br />

sensivelmente, promove o deslocamento do sujeito de seus parâmetros, de suas certezas, para fazêlo<br />

viver, no instante mesmo em que ocorre o evento, no tempo de sua duração, uma expansão<br />

sensorial que promove o seu construir significação.


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2 - A Escola de Tempo Integral e Seu PPP: O “Lugar da Hora da Leitura” em Perspectiva<br />

A Escola de Tempo Integral (ETI) objeto desse estudo, atende, em período integral, 1.164<br />

educandos do ensino fundamental, onde estes permanecem por 9 horas, sendo 4 horas com as<br />

disciplinas do Currículo Básico, que são cumpridas em sala de aula com as disciplinas do Núcleo<br />

Comum e parte diversificada; quarenta minutos divididos em dois tempos de 20 minutos de<br />

intervalo; uma hora de almoço e três horas e vinte minutos para as atividades da parte diversificada<br />

do currículo (natação, dança, estudo dirigido, etc.)<br />

O Projeto Político Pedagógico da Escola de Tempo Integral dispõe o seguinte sobre o<br />

currículo escolar:<br />

Concebemos, ainda, que o currículo desta instituição de ensino precisa pautar-se<br />

em encaminhamentos metodológicos que contemplem: A interdisciplinaridade e<br />

a Transdisciplinaridade; A leitura e a pesquisa; A avaliação enquanto processo<br />

contínuo e de caráter diagnóstico-formativo‖. (PPP. 2006, p .21).<br />

Ao analisarmos o que dispõe o PPP desta instituição sobre o currículo escolar, percebemos<br />

que suas diretrizes vão ao encontro das normas e teorias vigentes sobre a formação integral do<br />

educando e contempla a inter e transdisciplinaridade e a formação de pesquisadores e leitores.<br />

De acordo com o PPP desta Unidade Escolar É importante ressaltar que a Hora da Leitura<br />

irá ampliar e intensificar as ações já desenvolvidas nas aulas de Língua Portuguesa. Assim, sua<br />

finalidade é:<br />

Desenvolver atitudes e procedimentos que os leitores assíduos adquirem a partir<br />

da prática; Propiciar um intenso e sistematizado contato dos alunos com<br />

diferentes gêneros textuais, especialmente no que se refere ao ler para<br />

apreciar/fruir e para conhecer; Possibilitar aos alunos do ensino fundamental<br />

momentos para saborear e compartilhar as idéias de autores da literatura<br />

universal, em especial da literatura brasileira; Utilizar diferentes procedimentos<br />

didáticos que seduzam os alunos para leitura; Otimizar a utilização do acervo<br />

existente na escola. (PPP, 2006, p.173)<br />

Os objetivos da Hora da Leitura acima citados apontam que esta escola parece<br />

comprometida e procura privilegiar o letramento literário em suas diversas ações pedagógicas. É<br />

possível também reconhecer características que evidenciam que a Hora da Leitura está voltada tanto<br />

para a escolarização e didatização da literatura como também para a leitura de livre escolha que<br />

atende ao desejo permeada pelo prazer e fruição estética.<br />

2.1 - Diálogos entre ―A Hora da Leitura‖ e algumas correntes teóricas: analisando o Projeto Político<br />

Pedagógico<br />

As aulas da Hora da Leitura acontecem na biblioteca da escola, num ambiente amplo,<br />

confortável, com várias mesas e cadeiras distribuídas de forma harmônica e um considerável acervo<br />

bibliográfico, estimado em 4.000 títulos. São as professoras e os alunos que se deslocam até esse<br />

ambiente (biblioteca) onde acontecem, ou melhor, aconteceram as aulas observadas. A primeira<br />

aula inicia-se às 7h30 com término às 8h30. Os participantes são alunos do nono ano e a professora<br />

que acompanha as turmas é a mesma que ministra a disciplina de Português.<br />

Observamos que a professora estava trabalhando o material das Olimpíadas de Língua<br />

Portuguesa, sendo que os alunos estavam estudando sobre crônicas. Neste momento, ela solicita<br />

que eles escolham dentre vários livros com crônicas dispostos numa das mesas. Alguns lêem, outros<br />

conversam e atrapalham os colegas. A professora, então, começa a fazer a avaliação de cada um. O<br />

método utilizado para conduzir esta atividade na biblioteca é leitura silenciosa, com anotações sobre<br />

o autor e a obra lida.


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Durante a aula da ―Hora da Leitura‖ tem um momento em que os alunos iniciam uma leitura<br />

de Machado de Assis. Inicia-se então um momento de agitação que atrapalha o andamento da aula<br />

comprometendo a concentração necessária para o bom andamento das atividades. A professora<br />

reclama, mas justifica dizendo que os alunos não gostam de ler Machado de Assis, nem José de<br />

Alencar. Todavia, ela admite que é importante tal leitura porque posteriormente serão cobradas<br />

essas leituras nos vestibulares.<br />

A reclamação da professora vem ao encontro da afirmação de vários autores no que se refere<br />

à repulsão da grande maioria dos adolescentes em relação á literatura canônica, por exemplo,<br />

Magalhães (2008).<br />

Segundo Magalhães (2008), a metodologia da livre escolha das crônicas a serem lidas pelos<br />

discentes é pertinente para a formação de leitores. No entanto, no decorrer do desenvolvimento<br />

desta Hora da Leitura, ficou evidente um ―certo distanciamento‖ entre o que dizem os autores e a<br />

prática docente da professora, notadamente no que diz respeito ao estímulo à subjetividade, à<br />

criatividade, ao prazer pela leitura e à fruição estética.<br />

Para Pereira (2007) o letramento literário deve vir ao encontro da expressão livre, da<br />

imaginação e catarse, desenhada entre o possível, o impossível, do vivido e do devir,<br />

desconstruindo os modelos corriqueiros e possibilitando o círculo mágico do prazer, absorvendo<br />

completamente o jogador-leitor como objeto de intenso prazer e atração.<br />

Em relação ao que Cosson (2007) diz sobre o letramento literário como prática social e,<br />

consequentemente, a responsabilidade da escola, podemos perceber que a escola tenta<br />

desempenhar bem o seu papel. O que não podemos afirmar ainda é até que ponto a escola,<br />

juntamente com suas aulas de português, hora da leitura e demais oficinas, e principalmente com<br />

seu PPP, que prioriza a formação de leitores e enfatiza o papel preponderante desta escola nesta<br />

tarefa educacional e social, está conseguindo desempenhar o seu papel. Tais questões continuarão<br />

norteando nosso trabalho e nos instigando durante todo o processo da pesquisa.<br />

Em relação ao que diz Cosson (2007), acerca da didatização e ou escolarização da literatura, é<br />

possível afirmar que a escola estudada, juntamente com sua professora, estão imbuídas nesse<br />

propósito, pois constatamos que a mesma está trabalhando o material das Olimpíadas de Língua<br />

Portuguesa, estudando sobre crônicas, como material didático para as aulas de português.<br />

Assim sendo, é perceptível afirmar que está acontecendo a escolarização da literatura pela<br />

escola, conforme priorizado no PPP desta escola. Porém, Cosson (2007, p. 23), preconiza sobre<br />

―como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si<br />

mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização‖. Todavia, percebemos que a<br />

professora está tentando fazer essa escolarização da melhor forma possível, porém tal escolarização<br />

poderia ser feita de forma mais lúdica e criativa que levassem em conta a subjetividade e o prazer<br />

pela fruição estética conforme apontam Pereira (2007) e Magalhães (2008), numa tentativa de<br />

aproximação entre a literatura e o jogo.<br />

Levando-se em conta tais direções teóricas, a principal e primeira função do letramento<br />

literário é ―encantar‖, primeiro passo para formar leitores em que a literatura torne-se um objeto de<br />

intenso desejo e grande interesse. Nessa perspectiva, letramento literário se refere á<br />

aquisição de competências e habilidades que formam o hábito de ler, ou melhor, o desejo e o prazer<br />

em ler, a autonomia e a fruição estética.<br />

Nesse contexto, é pertinente afirmar que existem dois aspectos diferentes do letramento<br />

literário: um voltado para o ―sentir‖ e outro para o ―racionalizar‖ o texto, o que favorece tipos<br />

diferentes de leitura. Para Baudelot, Cartier e Detrez, apud, Faria (2005, p. 15-16), ―os tipos de


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leitura podem ser: comum e comprometida. A primeira é marcada pela afetividade entre leitor e<br />

obra, já a segunda requer um trabalho em reconhecer os princípios que integram a literariedade do<br />

texto‖. A comum, por intermédio da leitura, o leitor realça sua subjetividade. Na comprometida,<br />

trabalha o texto com racionalidade, esmiuçando-o com o objetivo de identificar os traços da<br />

literatura no tempo e no espaço.<br />

Nessa perspectiva, Lins (1974, P. 155 ) apud Camargo (2009, p. 26), assegura que ―a obra<br />

literária só se realiza no ato da leitura, pois tal ‗leitor não é apenas o correlativo do ato de escrever:<br />

ele conforma e amplia o significado intrínseco da obra‘‖ . sendo assim, ―o leitor, no ato da leitura,<br />

ao desvendar os múltiplos significados do texto, participa do processo de construção do sentido da<br />

obra, ora seguindo as trilhas deixadas pelo autor, ora desbravando os seus próprios caminhos pela<br />

selva romanesca. (CAMARGO, 2009, p. 26).<br />

Seguindo essa tendência, Branco faz referência a duas categorias: a leitura de/da literatura,<br />

feita pelo leitor amador, e a leitura literária, realizada pelo leitor especializado; ligadas, à primeira, â<br />

livre produção de sentidos legítimos e, a segunda, à decodificação ―dos aspectos específicos dos<br />

textos em causa, em determinados contextos especializados‖ (Branco, apud, Magalhães 2008, p. 32).<br />

Nesse sentido, surge a interrogação: Quando e como inserir estes tipos de leitura no<br />

processo de letramento literário? Certamente, não há necessidade de separá-las, pois ao lermos um<br />

texto literário, estamos introduzindo saberes sobre sua especificidade. Apesar disso, mesmo que os<br />

dois aspectos do letramento literário aconteçam ao mesmo tempo, é papel da escola, no ensino<br />

fundamental, priorizar o prazer da leitura, para que, assim, o hábito da leitura seja natural e<br />

espontâneo. Hábito este voltado para o desejo e prazer pela leitura, o alargamento da sensibilidade,<br />

da criatividade, da imaginação e da fruição estética.<br />

Considerações finais<br />

Neste artigo, buscamos problematizar e analisar a ―Hora da Leitura‖ e o PPP de uma Escola<br />

de Tempo Integral em Palmas, capital do Tocantins e chegamos, ao final do caminho trilhado, a<br />

algumas (in) conclusões. Verificamos que o PPP desta unidade escolar vai ao encontro da<br />

formação de leitores, deixando claro que a Hora da Leitura contemplada na matriz curricular possui<br />

horário específico garantido em sua carga horária. Além disso, este documento aponta a leitura<br />

literária como fator determinante no processo de formação de leitores, pois assegura a leitura<br />

entendida não como mera decodificação dos signos, mas como leitura interativa, onde o espaço<br />

para interpretação e confrontação, possibilita a transformação do educando, por intermédio da<br />

fruição estética.<br />

Ao longo das aulas da ―Hora da Leitura‖ observadas, pudemos perceber que o local onde<br />

estas acontecem é adequado e que o acervo oferecido atende ao objetivo de formar leitores de<br />

literatura, sendo que as professoras informantes possuem formação acadêmica adequada para<br />

ministrar tal disciplina.<br />

Ademais, durante as aulas observadas, evidenciamos que as professoras tentam despertar o<br />

gosto e o prazer pela leitura, porém ressaltamos que no decorrer das aulas observadas ficou<br />

evidente ―um certo distanciamento‖ entre o que dizem alguns autores e a prática observada no que<br />

se refere ao estímulo à subjetividade, à criatividade, ao prazer pela leitura e à fruição estética, pois<br />

constantemente a professora enfatizava e cobrava a participação por intermédio de uma suposta<br />

avaliação pontual.<br />

Acreditamos, ao (in)concluir este trabalho, que não esgotamos o assunto formação de<br />

leitores de literatura numa escola de Tempo Integral, pois esse não era nosso objetivo.


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Esperamos, sim, ter semeado algumas idéias que possam vir ao encontro da formação de<br />

leitores numa perspectiva em que a literatura tenha um papel preponderante na democratização do<br />

ser humano, evidenciando o homem e a sociedade com toda sua complexidade e alteridade,<br />

tornando-nos mais tolerantes e compreensivos rumo a uma democracia cultural.<br />

Referências<br />

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Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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A EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA NO ENSINO SUPERIOR COMO INSTRUMENTO<br />

DE INCLUSÃO SOCIAL<br />

Hermísio Alecrim Aires 26<br />

Severina Alves de Almeida 27<br />

Jeane Alves de Almeida 28<br />

Resumo: Neste artigo fazemos um estudo sobre a Educação à Distância, EaD, buscando identificar,<br />

nesta modalidade de Ensino Superior, aspectos que favoreçam a inclusão social. A investigação,<br />

uma pesquisa qualitativa, avalia os aspectos conceituais da EaD como instrumento de inclusão<br />

social e de apreensão do conhecimento, descrevendo possibilidades de utilização como alternativas<br />

viáveis no processo de ensino-aprendizagem. Os resultados sinalizam para uma democracia<br />

cognitiva, quando mais pessoas têm acesso ao Ensino Superior e apontam estratégias de ensino<br />

produzidas em um país com dimensões continentais e realidades diversas, onde a EaD apresenta-se<br />

como dupla via, encurtando distâncias e promovendo a inclusão social.<br />

Palavras chave: Educação à Distância; Inclusão Social; Ensino Superior<br />

Abstract: In this article we do a study on distance education, distance education, seeking to identify,<br />

in this mode of Higher Education, all of which promote social inclusion. The research, qualitative<br />

research, evaluates the conceptual aspects of distance education as an instrument of social inclusion<br />

and acquisition of knowledge, describing potential uses as viable alternatives in the process of<br />

teaching and learning. The result signals a cognitive democracy when more people have access to<br />

higher education. Link to teaching strategies produced in a country with continental dimensions<br />

and different realities, where DL is presented as a double way, shortening distances and promoting<br />

social inclusion.<br />

Keywords: Distance Education, Social Inclusion; Higher Education<br />

Introdução<br />

A Educação a Distância (EaD) é uma modalidade de ensino que possibilita ao estudante a<br />

auto aprendizagem e assume um papel fundamental neste novo século na disseminação do<br />

conhecimento, propiciando o acesso aos que estão, por algum motivo, excluídos do processo de<br />

educação formal. Para Mattar & Maia (2007, p. 6), a EaD ―é uma modalidade de educação em que<br />

professores e alunos estão separados fisicamente e é planejada por instituições que utilizam diversos<br />

recursos advindos das tecnologias de comunicação e informação.‖<br />

Atualmente a EaD vem ganhando espaço no ensino superior, passando a ser vista como<br />

uma alternativa de ensino que, associada aos cursos de capacitação, graduação e pós-graduação,<br />

oferece maior oportunidade às pessoas de estudarem, conforme Litwin (2001), tendo, portanto,<br />

forte impacto como possibilidade de política inclusiva.<br />

Com efeito, a EaD não só pode contribuir neste processo independente e peculiar através<br />

de sua forma inovadora, criativa, coletiva e individual, como leva ao estudante, movido pelos<br />

26Graduando do curso de Biologia (UAB/EaD) / UFT - e-mail: halcrim@gmail.com<br />

27 Pedagoga, Professora Tutora do curso de Biologia (UAB?EaD) /UFT e Mestranda do MELL – Mestrado<br />

em Língua e Literatura da UFT campus de Araguaina. e-mail: sissi@uft.edu.br.<br />

28Professora Adjunta da UFT – Universidade Federal do Tocantins, campus de Araguaina e orientadora do<br />

trabalho - e-mail: jeane@uft.edu.br


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recursos pedagógicos e uso de novas Tecnologias de Comunicação e Informação (TIC‘s),<br />

elementos que permitem escolher o método que melhor se encaixe ao seu perfil. Desta forma,<br />

possibilita ao estudante acesso ao saber sistematizado, possibilitando a este deixar de ser apenas<br />

―mais um‖ no contexto social, para ser ―um dos‖ inseridos no processo de formação de opinião,<br />

criador, autor, aprendiz e mestre.<br />

De acordo com Filho (2007), a EaD apresenta, além da flexibilidade de estudos e da<br />

determinação do tempo para realização das atividades, vantagens, dentre as quais, se destaca a<br />

possibilidade de compatibilizar o seu horário de estudo com o trabalho, o lazer, administrando seu<br />

tempo para solucionar problemas pessoais e/ou familiares.<br />

Nesse sentido, um dos principais desafios colocados para essa modalidade de ensino,<br />

notadamente no ensino superior, é oferecer condições para que um número cada vez maior de<br />

pessoas tenha acesso aos instrumentos de produção de conhecimento e, consequentemente ao<br />

mercado de trabalho, possibilitando uma formação para alcançar a cidadania e uma ação<br />

multiplicadora das capacitações. Contudo, percebe-se a necessidade de se obter informações<br />

concretas em relação aos fundamentos e à eficácia da EaD.<br />

Nesse sentido idealizamos este trabalho, que busca identificar aspectos conceituais de EaD<br />

e do desenvolvimento de programas e ações práticas que reforcem o caráter de política inclusiva da<br />

EaD no Brasil. Neste contexto, abordamos o programa Universidade Aberta do Brasil (UAB) como<br />

principal política pública do governo Federal para implementação e implantação de cursos de<br />

educação superior à distância. Enaltecemos, também, aspectos favoráveis, ou não, ao processo de<br />

implementação dos cursos do sistema UAB, apontando como estes vêm dando contribuições<br />

importantes, e apresentando a educação à distância como uma política de inclusão por meio da<br />

educação superior, num país de grandes desigualdades (sociais e territoriais) como é o Brasil.<br />

1 – A EaD como via de acesso ao conhecimento sistematizado<br />

Data da primeira metade do século XX os primeiros indícios da EaD em nosso País,<br />

inicialmente, através de cursos por correspondência via correio postal. Posteriormente à década de<br />

1970, a comunicação via rádio marcou o desenvolvimento de cursos nesta modalidade, passando.<br />

nos anos 1980, aos cursos veiculados pela televisão, os conhecidos tele-cursos. Com essas ações, a<br />

EaD passou a alcançar uma parcela significativa da sociedade, com o objetivo de oportunizar,<br />

principalmente àqueles que não tiveram a chance de frequentar uma escola regular de ensino<br />

presencial.<br />

Segundo Litwin (2001) a evolução da EaD no Brasil que, inicialmente, teve como suporte<br />

midiático cartilhas, livros e guias, evoluiu através do rádio, da televisão e, mais adiante, por meio de<br />

áudios e vídeos. Atualmente, estão incluídas as redes de satélites, correio eletrônico e internet isto é, a<br />

rede mundial de computadores.<br />

Percebe-se, então, que já muito antes do advento da comunicação em rede, a internet,<br />

instrumento de comunicação extensamente associada aos cursos à distância, a EaD já desenvolvia<br />

papel importante na democratização do ensino. Com advento das NTCIs, Novas Tecnologias de<br />

Informação e Comunicação, na última década do século XX, esse processo foi acelerado. Hoje a<br />

EaD, baseada ou não no e-learning, é reconhecidamente uma modalidade que contribui<br />

significativamente com o processo de inclusão social, viabilizada pelo acesso ao conhecimento.<br />

No entanto, é pertinente conceituar adequadamente a EaD, e para tanto recorremos a<br />

alguns teóricos. Segundo Walter Perry e Greville Rumble (1987, p. 1-2):<br />

[...] a característica básica da educação à distância é o estabelecimento de uma<br />

comunicação de dupla via, na medida em que professor e aluno não se


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encontram juntos na mesma sala requisitando, assim, meios que possibilitem a<br />

comunicação entre ambos como: correspondência postal, correspondência<br />

eletrônica, telefone ou telex, rádio, "modem", videodisco controlado por<br />

computador, televisão apoiada em meios abertos de dupla comunicação, etc.<br />

Do ponto de vista de Dohmem (1967) a EaD:<br />

[...] é uma forma sistematicamente organizada de auto estudo onde o aluno se<br />

instrui a partir do material de estudo que lhe é apresentado, onde o<br />

acompanhamento e a supervisão do sucesso do estudante são levados a cabo<br />

por um grupo de professores. Isto é possível de ser feito à distância através da<br />

aplicação de meios de comunicação capazes de vencer longas distâncias. O<br />

oposto de "educação à distância" é a "educação direta" ou "educação face a<br />

face": um tipo de educação que tem lugar com o contato direto entre<br />

professores e estudantes.<br />

Porém, a comunicação entre o professor e o aluno deve ser facilitada por meios impressos,<br />

eletrônicos, mecânicos e outros. Ademais, esse modelo educacional encontra base legal na Lei de<br />

Diretrizes e Bases da educação Nacional, (LDB 9394/96), que no Art. 80 diz seguinte:<br />

[...] caracteriza-se a educação a distância como modalidade educacional na qual a<br />

mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre<br />

com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com<br />

estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou<br />

tempos diversos. (BRASIL, 1996).<br />

O conceito de EaD, segundo a LDB, permite uma distinção importante entre ensino e<br />

educação a distância. Para melhor entender os termos ―Ensino e Educação à Distância‖,<br />

recorremos a Maroto (1995). Segundo esse autor, enquanto o termo ―Ensino‖ expressa<br />

treinamento, instrução, socialização, aprendizagem, transmissão de informações etc., o vocábulo<br />

―Educação‖ implica numa estratégia básica de formação humana, favorecendo o aprender a<br />

aprender, saber pensar, criar, inovar, construir conhecimento, participar, etc.<br />

2 – A EaD como instrumento de inclusão social<br />

Com efeito, os desafios para a construção de um modelo de educação à distância que<br />

permita a inclusão social, consiste no desenvolvimento de políticas públicas para a efetivação de<br />

cursos que utilizem tecnologias educacionais dentro do paradigma da educação à distância. No<br />

Brasil, a necessidade destas políticas públicas é significativa, diante da complexidade no<br />

entendimento da possível eficácia da EaD frente à inevitável comparação com os cursos<br />

presenciais.<br />

Dentre os grandes desafios destas políticas públicas, inclui-se a necessidade de<br />

desenvolvimento de parâmetros de regulamentação que garanta sua qualidade, sem inibir uma área<br />

emergente e com enorme potencial, respeitando as realidades regionais e entendendo, ao mesmo<br />

tempo, que a educação à distância traz consigo uma nova noção de territorialidade. Segundo Mota<br />

(2007), deve-se levar em consideração as iniciativas em EaD com expressivo nível de qualidade,<br />

bem como a necessidade de introduzir e incentivar para que se incorporem novas tecnologias<br />

educacionais em todos os níveis da educação, inclusive nos cursos presenciais.<br />

Não obstante, essas políticas têm sido implementadas. Inicialmente as bases legais para a<br />

modalidade de EaD foram estabelecidas na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (Lei nº. 9.394, de 20 de<br />

dezembro de 1996 ), e regulamentada posteriormente pelo Decreto nº. 5.622, de 2005. Desde<br />

então, o desenvolvimento das novas políticas públicas para a educação à distância no Brasil têm<br />

buscado rumos que culminaram com o projeto da Universidade Aberta do Brasil (UAB). Esta, por


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sua vez, possibilitou a implementação de vários pólos de apoio presencial a cursos à distância nos<br />

municípios do interior do Brasil, bem como a priorização da utilização da EaD como principal<br />

ferramenta para a formação de professores em todo o território nacional e, também, o<br />

financiamento à pesquisa na referida área.<br />

Nesta perspectiva, algumas possibilidades de modelos para a educação superior à distância,<br />

capazes de apoiar as diferentes realidades regionais foram implantados. No entanto, num país como<br />

o Brasil, com vasto território, forte diversidade cultural e grande desigualdade econômica e social,<br />

não é possível imaginar a hegemonia de um único modelo de educação à distância. Neste quadro, as<br />

reais condições do cotidiano e as necessidades dos alunos são fatores determinantes para o desenho<br />

pedagógico dos cursos, para a organização curricular e para a seleção dos recursos tecnológicos a<br />

serem utilizados.<br />

3 – A EaD como política de inclusão via Universidade Aberta do Brasil (UAB)<br />

Como mediadora do processo educacional na modalidade à distância, a Universidade<br />

Aberta do Brasil (UAB), vem dando uma contribuição importante no sentido de apontar a<br />

educação à distância como uma possível política de inclusão social. Para tanto, busca expandir e<br />

interiorizar a oferta de cursos e programas de educação superior à distância, permitindo acesso à<br />

educação superior a pessoas antes excluídas, notadamente pela distância e diferenças regionais de<br />

um Brasil com dimensões continentais. Para isso, o sistema tem como pilares fortes parcerias entre<br />

as esferas federais, estaduais e municipais do governo.<br />

Com efeito, o Decreto presidencial 5.800 de 08 de junho de 2006 instituiu o Sistema<br />

Universidade Aberta do Brasil, onde o Art. 1 0 estabelece que o objetivo fundamental da UAB é<br />

―oferecer, prioritariamente, cursos de licenciatura e de formação inicial e continuada de professores<br />

da educação básica‖. Segundo Costa (2007), a UAB não se constitui formalmente como uma<br />

unidade de ensino, mas é um órgão do Ministério da Educação (MEC) articulador das instituições<br />

públicas, responsáveis pela oferta de cursos superiores na modalidade à distância. Esse mesmo<br />

autor indica quatro missões básicas que definem o modo de operar da UAB: o financiamento, a<br />

avaliação institucional, a articulação institucional e a indução de modelos de educação à distância.<br />

Nesse sentido, o projeto da UAB tem como principal objetivo articular e integrar um<br />

sistema nacional de educação superior à distância, em caráter experimental, visando a sistematizar<br />

ações, criar programas, desenvolver projetos e atividades pertencentes às políticas públicas voltadas<br />

para a ampliação e interiorização da oferta do ensino superior, que deve ser gratuito e de qualidade,<br />

atendendo à demanda de nosso País.<br />

Segundo Zuim (2006), quando a discussão caminha para as formas de aplicação dos<br />

recursos para a difusão do ensino superior público e de qualidade no Brasil, o programa da UAB<br />

surge como alternativa para viabilizar a formação universitária pretendida de um percentual<br />

significativo dos estudantes brasileiros até 2011.<br />

A dimensão da UAB para a educação a distância se distingue de outras ações, como o<br />

programa Pró-licenciatura, pela parceria entre as universidades públicas ofertantes de cursos na<br />

modalidade EaD com outros três níveis governamentais, quais sejam, federal, inicialmente através<br />

do MEC, estadual e municipal. Nesta perspectiva, Zuim (2006), assegura que os municípios, cujas<br />

prefeituras se interessarem pelo programa de UAB, poderão se associar à Secretaria de Educação de<br />

seus respectivos estados e/ou Distrito Federal para a organização da infraestrutura e do pessoal de<br />

apoio dos chamados pólos presenciais.<br />

Segundo Zuim (2006), o conceito de pólo presencial elaborado pelo MEC, se apresenta<br />

como estrutura para a execução descentralizada de algumas das funções didático-administrativas de<br />

curso, consórcio, rede ou sistema de educação à distância, geralmente organizada com o concurso


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de diversas instituições, bem como com o apoio dos governos municipais e estaduais. Os recursos<br />

humanos concernentes à equipe técnica, administrativa e docente de cada pólo serão os seguintes: o<br />

coordenador do pólo, o técnico em informática, um bibliotecário, um auxiliar para a secretaria e os<br />

tutores presenciais.<br />

No modelo estabelecido pelo programa da UAB, pólos de apoio presencial são elementos<br />

fundamentais para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem à distância. Nesses locais,<br />

os acadêmicos dos cursos superiores à distância, sejam de cursos de graduação ou de<br />

aperfeiçoamento, acessam bibliotecas, são atendidos por tutores, assistem às aulas presencias<br />

obrigatórias (dependendo do projeto pedagógico do curso). Além disso, o laboratório de<br />

informática com recursos tecnológicos, enfatizando aqui a possibilidade de uso irrestrito a Internet,<br />

possibilita aos acadêmicos serem atendidos de forma síncrona ou assíncrona por professores e<br />

tutores a distância, além de poder acessar os diversos recursos online.<br />

Essa nova dimensão aumenta muito a possibilidade de acesso de maior quantidade de<br />

pessoas ao sistema de ensino, possibilitando a jovens excluídos pela distância, quando se encontram<br />

nos rincões do Brasil, a frequentar uma universidade sem se deslocar para os grandes centros. Essa<br />

possibilidade de acesso se estende para fins nobres para regiões com expressivas desigualdades<br />

educacionais, com o estabelecimento de pólos em estados das regiões norte e nordeste do Brasil.<br />

Ademais, a importância da criação da UAB, no âmbito do MEC, e do crescente<br />

envolvimento das instituições públicas de educação superior com a EaD, é de grande importância<br />

para a consolidação do processo de acesso ao ensino principalmente por aqueles que de uma forma<br />

ou de outra estão excluídos do processo educacional. É uma política pública, que abre um<br />

importante caminho para o processo de democratização do acesso à educação, oportunizando a<br />

oferta de ensino da qualidade para pessoas que estão distantes de centros de formação e, portanto,<br />

impossibilitadas de freqüentar os ambientes presenciais.<br />

A avaliação do sistema de EaD/UAB no Brasil aponta dados que destacam a eficiência da<br />

modalidade de ensino e abre caminho para implementação e a consolidação do sistema, como<br />

ferramenta de aprendizagem e redução das desigualdades sociais, considerando-se as demandas<br />

reprimidas do ensino superior.<br />

Em publicações no site da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED) a EaD<br />

foi apontada por especialistas internacionais como a ―alternativa mais viável e eficiente para<br />

promover a capacitação de mão-de-obra qualificada nos lugares mais remotos‖. A conclusão foi<br />

divulgada no encerramento do 13º Congresso Internacional de Educação a Distância, em setembro<br />

de 2007. Segundo o professor canadense Mohamed Ally, da Athabasca University, palestrante no<br />

congresso, é preciso mudar a cultura, porque hoje o aluno pode aprender em qualquer lugar, em<br />

qualquer momento. De acordo com Oliveira (2001, p. 74) ―por permitir a quebra das barreiras de<br />

tempo e principalmente de espaço geográfico é que a mesma vem se tornando uma aliada aos<br />

processos de formação inicial, continuada e permanente.‖ Porém, pode-se observar que na região<br />

norte do Brasil, ainda há uma disparidade muito grande quanto ao alcance da EaD.<br />

Enfim, não se pode olhar a EaD com uma visão simplista, de que ela é capaz de viabilizar<br />

todas as oportunidades educativas àqueles que outrora não tiveram chance, promovendo uma linear<br />

inclusão social. Ela por si só não faz a inclusão acontecer. O sucesso dessa modalidade de ensino<br />

superior no Brasil está sujeito a fatores sociais, econômicos, culturais e tecnológicos, conforme<br />

evidenciou este trabalho. Contudo, o que se pode retirar desse contexto é que o sucesso da inclusão<br />

social através da EaD depende da maneira como essas mudanças serão conduzidas na sociedade e<br />

na instituição educacional e, também, das ações que estão sendo implementadas através das<br />

políticas públicas quanto à expansão, democratização e uso do uso das TIC‘s.


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Considerações finais<br />

Não há como negar a importância da EaD no processo de inclusão social através da<br />

aquisição do conhecimento, diante das facilidades e de inúmeras vantagens que pode proporcionar<br />

ao desenvolvimento da educação no Brasil. A implantação da EaD poderá aumentar a média de<br />

anos de estudo por pessoa na universidade, além de poder atuar diretamente na redução do<br />

percentual de analfabetos.<br />

Não obstante, é possível acreditar que essa modalidade de ensino pode possibilitar ao<br />

estudante ultrapassar a aprendizagem linear. A riqueza de materiais disponíveis torna infinitas as<br />

possibilidades tanto para o orientador do processo quanto para o aluno. Portanto, a EaD apresentase<br />

como um instrumento poderoso para a otimização do processo de ensino e da aprendizagem,<br />

atuando decisivamente para a diminuição das desigualdades nas oportunidades escolares.<br />

Ademais, com uma responsável e adequada utilização de todos os meios disponíveis e sem<br />

ignorar as dificuldades existentes no país, observa-se que a EaD vem sendo cada dia mais utilizada<br />

como mediadora da melhoria da educação brasileira, proporcionando um aprendizado<br />

tecnologicamente rico, permitindo acesso aos estudantes a uma grande variedade de mídias,<br />

possibilitando a supressão das distâncias geográficas, econômicas, sociais e culturais,<br />

universalizando as oportunidades de aprendizado e fazendo a inclusão social acontecer.<br />

Referências<br />

ABED - Associação Brasileira de Educação a Distância. Aumenta Procura por cursos a Distância.<br />

Disponível no endereço eletrônico-<br />

http:/www.abed.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=14&infoid=309. Acessado em<br />

08 de setembro de 2010.<br />

ABREU, Maria Rosa. Incluindo os excluídos: Escola para Todos. Experiências de Educação à<br />

Distância no Brasil, UNESCO; Brasília, 1999.<br />

BRASIL. Congresso Nacional. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB nº. 9.394, de<br />

20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, 23 de dezembro de 1996.<br />

COSTA, Celso José da. Modelos de Educação Superior a Distância e Implementação da<br />

Universidade Aberta do Brasil. Revista Brasileira de Informática na Educação Volume 15 - Número<br />

2 - Maio a Agosto de 2007.<br />

DOHMEM, G. (1967) Distance Education International Perspectives. Routledge, Nova York.<br />

FILHO, Luiz Augusto de Morais. Especialista em Educação a Distância pela UFPE. O que<br />

significa a autonomia do aluno de EaD fundamentado na flexibilidade do tempo e espaço.<br />

Disponível em http://www.via6.com/topico/46103/autonomia-do-aluno-de-ead. Acessado em 26<br />

de outubro de 2010.<br />

LITWIN, Edith. Educação à distância: temas para debate de uma nova agenda educativa. Porto<br />

Alegre: Artmed Editora, 2001.<br />

MAIA, Carmem; MATAR João. ABC da EaD: a educação a distância hoje. 1. ed. São Paulo:<br />

Pearson Prentice Hall, 2007.<br />

MAPA. de pólos de apoio presencial da UAB/UnB no território nacional. Disponível em<br />


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MINISTÉRIO da educação. O que é UAB. (2007). Disponível<br />

em


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REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO AUTORAL NA INTERNET:<br />

NORMAS E CONCEITOS<br />

Honácio Braga de Araújo<br />

Ágnes Ravany de Sousa Meneses<br />

Isabel Gomes e Silva<br />

Resumo: Este artigo apresenta uma breve discussão acerca da ligação entre Propriedade Intelectual<br />

e Direito Autoral, a proteção dada pela Lei de Direito Autoral brasileira e busca esclarecer conceitos<br />

dessa área, alguns dos quais não são suficientemente claros quando relacionados à internet.<br />

Palavras-chave: Propriedade Intelectual; Direito Autoral; Internet.<br />

Abstract: This paper shows a brief discussion about the relation between Intellectual Property and<br />

Copyright, the protection by means of the Brazilian Copyright Act and aims at clarifying its legal<br />

concepts, once some of them are not clear enough when related to the internet.<br />

Keywords: Intellectual Property; Copyright; Internet.<br />

Introdução<br />

A revolução tecnológica fez com que a internet se tornasse um dos principais mecanismos<br />

de disseminação e divulgação mundial de informações. A massificação de transferência de arquivos<br />

digitalizados (textos, músicas, imagens, filmes, etc.) através da internet para computadores de todo<br />

o mundo, tem preocupado autores que querem proteger suas obras e fazer valer os seus direitos<br />

sobre a sua arte, sua ciência e sua literatura, pois o conteúdo disponibilizado online, na maioria das<br />

vezes, é utilizado de forma ilegal. A facilidade com que são acessados e distribuídos esses conteúdos<br />

levanta uma série de indagações relacionadas ao direito autoral. Nesse cenário a efetivação dos<br />

direitos do autor sobre sua obra vem exigindo maior eficácia e adequação social da legislação em<br />

vigor, que versa sobre os direitos autorais no Brasil, a lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, i.e.<br />

Lei de Direito Autoral (LDA).<br />

O presente artigo visa esclarecer os reais direitos do autor sobre sua obra quando da sua<br />

inserção no ambiente virtual. Com tal fim, analisam-se normas que ficam vagas se aplicadas a obras<br />

digitais com o objetivo de relacionar os principais conceitos da área em discussão, direito autoral,<br />

para examinar como o texto normativo correspondente é interpretado quando o veículo de<br />

comunicação das obras intelectuais é a internet. São relacionados, também, os pontos mais<br />

relevantes da legislação referida no que toca as permissões e proibições de uso dessas obras, além<br />

das condições em que elas recebem a proteção da lei.<br />

O que apresentamos aqui são os resultados de uma pesquisa vinculada ao Programa<br />

Institucional de Iniciação Científica Voluntária da Universidade Federal do Piauí (ICV/UFPI) por<br />

meio do projeto Propriedade artística e intelectual na internet, realizada entre agosto de 2009 e julho de<br />

2011, no Núcleo de Pesquisa em Literatura Digitalizada (NUPLID) da mesma IFES, sob orientação<br />

do Prof. Cláudio Augusto Carvalho Moura.<br />

1 – Propriedade intelectual e direito autoral<br />

É necessário, primeiramente, discorrer sobre os conceitos Propriedade Intelectual e Direito<br />

Autoral. O primeiro representa uma expressão genérica referente ao direito que garante aos<br />

inventores ou responsáveis por qualquer produção do intelecto (seja nos domínios industrial,<br />

científico, literário e/ou artístico) a obtenção, ao menos por um determinado período de tempo, da<br />

recompensa pela própria criação.


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A Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) 29, em seu site oficial,<br />

caracteriza como propriedade intelectual as invenções, obras literárias, artísticas e científicas,<br />

símbolos, nomes, imagens, desenhos e modelos utilizados pelo comércio. A OMPI define, também,<br />

que a propriedade intelectual abrange duas importantes áreas: a) Propriedade Industrial (patentes,<br />

marcas, desenhos industriais e indicações geográficas) e b) Direito Autoral (obras literárias, artísticas<br />

e científicas, programas de computador, domínios da internet e cultura imaterial).<br />

Já o Direito Autoral constitui o conjunto de direitos que o criador de obra intelectual<br />

(criação do espírito expressa por qualquer meio) exerce sobre suas criações, segundo o Caderno do<br />

Fórum Nacional de Direito Autoral do Ministério da Cultura (2009). O Direito Autoral divide-se<br />

nos direitos dos autores e dos que lhe são conexos, que tem como finalidade garantir a proteção<br />

dos interesses jurídicos dos indivíduos que, com seu ofício, tornam acessíveis as obras ao público.<br />

Segundo Henrique Gandelman, é importante atentar para a distinção entre direito autoral,<br />

marca e patente (esta referente ao direito do inventor), quando tais expressões são empregadas no<br />

sentido de proteção legal de obras intelectuais (2007, p. 37). Esses três tipos de proteção estão<br />

abrigados no conceito de propriedade intelectual (propriedade sobre criações do espírito humano);<br />

algumas obras intelectuais, eventualmente, necessitam de mais de um tipo de proteção (ibidem, p. 39).<br />

Por sua vez, as obras protegidas pelo direito autoral são, de acordo com Carlos Alberto<br />

Bittar, puramente intelectuais, demonstram função estética ou de conhecimento; diferem das obras<br />

utilitárias, materializadas em objetos de aplicação técnica, que podem vir a ser protegidas pelos<br />

direitos de marca e de patente, se registradas (2008, p. 21). Apesar disso, nada impede a utilização<br />

comercial e industrial de obras estéticas, caso em que se tem a ―obra de arte aplicada‖, uma criação<br />

intelectual estético-utilitária, que receberá as duas proteções se reunidos os requisitos legais (ibidem,<br />

p. 22). Qualquer obra produzida pelo intelecto – seja industrial ou não – constitui ―obra<br />

intelectual‖. Entretanto, a LDA faz menção às ―obras puramente intelectuais‖ (relativas ao Direito<br />

Autoral) apenas como ―obras intelectuais‖, em oposição às utilitárias (relativas ao Direito de<br />

Propriedade Industrial).<br />

As obras intelectuais ganham a proteção legal no momento de sua criação, não no de<br />

publicação – um dos direitos morais do autor da obra, aliás, é o de mantê-la inédita 30. O amparo da<br />

lei, contudo, é conferido às obras utilitárias quando de seu registro, que para estas se faz<br />

obrigatório, enquanto para as obras intelectuais é facultativo. Assim, os direitos do autor sobre sua<br />

obra são protegidos pela LDA, independentemente de registro, conforme o seu art.18.<br />

2 – Proteção legal<br />

De acordo com Bittar, o titular do direito de autor é o criador da forma protegida, mesmo<br />

que seja incapaz (menor, silvícola, ou doente mental, por exemplo), caso em que, para exercer esse<br />

direito, o titular precisa ser representado ou assistido (2008, p. 33). Iniciamos este tópico<br />

enunciando as produções humanas não protegidas pelo direito autoral e depois aquelas que<br />

recebem a proteção jurídica. Seguidamente, indicam-se os usos permitidos das obras e os usos<br />

proibidos, que violam direitos.<br />

Primeiramente, vemos em Gandelman que simples descrições de fatos comuns (sem<br />

criatividade) não são protegidas pelo direito autoral (2007, p. 178). Fatos são informações de<br />

domínio público. Ainda nas palavras do autor, pode haver criatividade na seleção e organização dos<br />

dados, que, nesse caso, receberiam proteção legal. Quando protegidas, as obras intelectuais assim se<br />

mantêm, mesmo quando digitalizadas – reproduzidas eletronicamente em dados digitais para serem<br />

29 World Intellectual Property Organization (WIPO).<br />

30 Art.24, inc.III, LDA.


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lidos por computadores (ibidem, p. 178), pois a digitalização das obras não altera sua essência<br />

jurídica.<br />

Segundo Bittar, leis, regulamentos, decisões judiciais, ofícios públicos, considerações<br />

religiosas ou políticas, notícias de jornais e de periódicos são criações do intelecto não alcançadas<br />

(como exceção) pelo direito de autor (2008, p. 20), pois carecem de criatividade e originalidade,<br />

requisitos que qualificam uma obra intelectual nos termos da LDA, separando-a da concepção<br />

geral, que engloba quaisquer obras produzidas através de um trabalho do intelecto humano.<br />

As idéias são de uso livre, de acordo com Bittar, por comporem o acervo comum da<br />

humanidade, portanto, não protegidas pelo direito autoral, que resguarda o conteúdo intelectual da<br />

exteriorização do pensamento e da arte (2008, p. 23). A fim de receber resguardo jurídico, a obra<br />

deve conter criatividade, resultar ―da atividade criadora do autor, com a qual introduz na realidade<br />

fática manifestação intelectual estética não-existente (o plus que acresce ao acervo comum)‖ (ibidem,<br />

p. 23). Para o autor, além de criativa, a obra deve ser original, possuir traços próprios, características<br />

individualizadoras, que a diferenciem de outras preexistentes; não se exige novidade absoluta,<br />

apenas contornos essenciais em sua expressão e composição (2008, p. 23), ou seja, quando inserido<br />

no ramo jurídico autoral, o termo ―criatividade‖ não guarda relação com qualquer concepção de<br />

―talento‖, seja na arte, na literatura ou na ciência. Logo, não se analisa o valor estético da obra para<br />

enquadrá-la sob a proteção jurídica.<br />

A obra também precisa ser exteriorizada e inserida em suporte – qualquer meio físico que<br />

veicule seu conteúdo – para receber amparo legal. Conforme Bittar, o direito autoral protege obras<br />

exteriorizadas por um ou mais meios de expressão, como a palavra oral ou escrita, gestos, sons,<br />

sinais ou traços, imagens e figuras (2008, p. 24). O importante é a materialização, não o meio<br />

empregado para alcançá-la.<br />

A LDA, em seu art. 29, determina as circunstâncias de utilização da obra que exigem<br />

consentimento de seu criador (regra geral), ao passo que, no art. 46, são apontadas as situações em<br />

que o uso da obra não transgride os direitos do autor. Por conseguinte, à exceção da citação, crítica<br />

e outros usos, como os de fins didáticos e científicos, a utilização de obra originária para criação de<br />

obra secundária exige autorização do autor primário, sendo a obra derivada também protegida, caso<br />

constitua forma de expressão independente. Contudo, não se aplicam ao art. 29 as obras de<br />

domínio público 31 (exceção).<br />

Outro ponto, considerado por Gandelman, é a questão da reprografia – multiplicação dos<br />

exemplares de uma obra – que pode implicar ou não violação aos direitos autorais (má-fé ou boafé).<br />

A reprografia de má-fé, mais conhecida como pirataria, é todo ato de reprodução de obra<br />

intelectual legalmente protegida e de utilização do produto reprografado, com fins lucrativos e sem<br />

consentimento do titular dos direitos autorais (2007, p. 56-59). No entanto, a LDA (artigo 46,<br />

inciso II) permite a reprografia de boa-fé, não considerando pirata a cópia única, realizada pelo<br />

copista, para uso exclusivamente pessoal.<br />

É possível dizer, sinteticamente, que pode haver ―obra intelectual‖ e ―obra intelectual<br />

legalmente protegida‖ e que ambas devem ser diferenciadas. Correspondem ao segundo tipo todas<br />

aquelas materializadas que apresentem originalidade e criatividade, sendo sua reprodução<br />

regulamentada conforme os critérios acima expostos. A LDA (artigos 29 e 46) oferece uma lista de<br />

possíveis modalidades de uso, detalhadas quanto à sua permissividade, contemplando itens não<br />

citados neste trabalho. Todavia, mesmo os artigos citados são incapazes de abarcar todas as<br />

possibilidades de uso das obras, em face da constante criação e/ou atualização de suportes, em<br />

especial a internet.<br />

31 Melhor explicado no próximo tópico.


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3 – Domínio público e internet<br />

A internet pode ser definida como uma coleção de computadores interligados em uma rede<br />

de âmbito mundial, descentralizada e de acesso público. A web 32, um dos serviços da internet (assim<br />

como o e-mail e o bate-papo), é um banco de dados em permanente expansão, um sistema de<br />

acesso a informações baseado em interconexões informáticas. Atualmente, emprega-se a palavra<br />

―internet‖ (a rede) como um sinônimo de ―web‖ (um recurso da rede), sendo a primeira um termo<br />

muito mais difundido.<br />

Embora a internet facilite a difusão de informações e conteúdos diversos, constitui, ao<br />

mesmo tempo, uma barreira evidente contra a legalidade nas transações comerciais, pois a<br />

democratização de dados ocasionada pela mesma entrou em extrema contradição com o aparato<br />

legal que o Estado dispunha, até então, como mecanismo de resolução de conflitos no que tange<br />

aos direitos autorais.<br />

A popularização da internet como meio de compartilhamento de informações faz com que<br />

muitos, enganados, encarem todo e qualquer conteúdo online como pertencente ao domínio público.<br />

Passam, assim, a se utilizar, apropriar-se e até mesmo comercializar a propriedade intelectual de<br />

forma ilícita.<br />

O domínio público é composto pelas obras de tecnologia ou informação que estão sob<br />

livre uso comercial, por não lhe serem atribuídos direitos patrimoniais exclusivos de alguma pessoa<br />

física ou jurídica. No entanto, o direito moral, que é um direito inalienável e irrenunciável (art. 27,<br />

LDA) limita sua utilização.<br />

Uma obra passa a ser de uso livre por qualquer interessado quando disponibilizado para<br />

domínio público, o que ocorre, segundo regra geral, setenta anos após a morte do autor (art. 41,<br />

LDA), pois este possui direitos vitalícios sobre suas criações. Esse uso independe de remuneração<br />

ou permissão estatal, entretanto, devem ser respeitadas as características básicas da obra, como a<br />

integridade e a genuinidade. Isso porque, mesmo extintos os direitos patrimoniais (retorno<br />

financeiro), permanece o direito moral de ter sua obra defendida contra modificações ou qualquer<br />

ato prejudicial (art. 24, inc. IV, LDA), defesa realizada pelo Estado se a obra for de domínio<br />

público, um direito que perdura enquanto a obra existir.<br />

Como nem tudo que está na internet é de domínio público e nem pode ser apropriado de<br />

qualquer maneira, surge a necessidade de criação de medidas que facilitem, sem infringir a LDA, a<br />

distribuição, compartilhamento e apropriação adequada do conteúdo disponibilizado em rede.<br />

4 – Princípios do direito autoral<br />

Para compreender o funcionamento do Direito Autoral, é preciso antes ter ciência do<br />

princípio autoral da territorialidade. Segundo Gandelman, cada legislação autoralista atua em um<br />

determinado território, contudo a internet comunica as obras intelectuais para o mundo todo,<br />

ultrapassa fronteiras,<br />

32 Teia, em inglês.<br />

independentemente da nacionalidade original dos titulares, estendendo-se<br />

através de tratados e convenções de reciprocidade internacional. Daí ser<br />

recomendável, nos contratos de cessão ou licença de uso, que se explicitem os<br />

territórios negociados. Deve ser observado que na era digital (internet) o<br />

princípio da territorialidade vem sendo frontalmente atingido, o que deverá<br />

provocar a elaboração de novos tratados internacionais (2007, p. 35-36).


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De acordo com outro princípio, apontado por Gandelman como o princípio básico da<br />

legislação autoral (2007, p. 258), presente em vários países, incluso o Brasil, a utilização da obra, por<br />

quaisquer modalidades, depende de autorização prévia e expressa do autor, princípio estabelecido<br />

pelo art. 29 da LDA.<br />

Acerca dos princípios gerais perceptíveis na LDA (que leis estrangeiras também adotam<br />

como fundamentos genéricos), é importante frisar que o direito autoral não protege as idéias em si,<br />

pois dois autores podem desenvolver noções semelhantes em trabalhos diferentes. Protege-se a<br />

forma de expressão da idéia. A novidade da idéia não é alvo da proteção, consoante Gandelman,<br />

mas sim a originalidade de seu modo de expressão, isto é, da obra (2007, p. 35). Entenda-se,<br />

portanto, que o direito autoral não resguarda idéias (abstração), mas sim a sua exteriorização<br />

perceptível (concretização). Embora a propriedade intelectual seja imaterial, o veículo da expressão<br />

de idéias é físico, logo a obra precisa estar materializada para receber a proteção legal, que não é<br />

dada para uma obra apenas composta de idéias, isto é, uma criação intelectual ainda não<br />

exteriorizada através de um suporte.<br />

Já a aquisição de um suporte, por exemplo, um livro, não traz consigo o poder de usufruir<br />

do conteúdo intelectual ali inserido (um conto, poema) além do fim pelo qual se remunerou o autor<br />

(divertimento, informação). Desse modo, o adquirente não possui o direito de copiar e revender,<br />

direito patrimonial exclusivo do autor, pois, como afirma Bittar, quem adquire acresce ao<br />

patrimônio pessoal apenas o veículo da obra, e não a obra veiculada (2008, p. 54). Contudo, ainda<br />

segundo o autor, os usos particulares dos bens intelectuais são permitidos, por serem exceções ao<br />

princípio da autorização autoral (ibidem, p. 55). Exceções que, previstas universalmente, ―compõem<br />

a própria estruturação dos direitos autorais, como resultantes de esquemas conciliatórios entre os<br />

interesses privados do autor e os interesses gerais da coletividade‖ (ibidem p. 59). Ao longo do<br />

tempo, mudanças na sociedade e na tecnologia alteram a maneira como os usuários interagem com<br />

as obras intelectuais. Assim, tratados internacionais são criados para atualizar e compatibilizar as<br />

legislações locais de direito autoral. Com a sequência de épocas e a multiplicidade de espaços,<br />

podem surgir pontos de vista diversos a respeito do mesmo assunto.<br />

Por conta da evolução e variedade de visões, existem diferentes nomenclaturas:<br />

propriedade literária, artística e científica; propriedade imaterial; direitos imateriais; direitos<br />

intelectuais; direitos de criação; direito de autor; direito autoral, entre outros. O termo mais<br />

disseminado no mundo, copyright, ou right of copy – termo pioneiro, criado no início do século XVIII<br />

na Inglaterra – carrega o sentido de ―direito de reprodução‖, embora seja usado como sinônimo de<br />

direito de autor (uma expressão mais ampla). ―Direito autoral‖ (LDA/1998) é, aliás, mais atual que<br />

―propriedade literária, artística e científica‖ (Código Civil/1916), primeiro nome dado a esse ramo<br />

jurídico quando se iniciou sua regulamentação no Brasil. Em 1973 surgiu a primeira LDA, que<br />

revogou a parte sobre propriedade literária, artística e científica do CC/1916. Em 1998 a LDA de 1973<br />

foi substituída pela atual LDA e, em 2002, o CC/1916 foi substituído pelo atual Código Civil. Além<br />

dessas, é necessária uma atualização legislativa que discipline as atuais questões brasileiras sobre<br />

direito autoral na internet, em virtude da relativa distância entre o texto normativo e a realidade<br />

autoralista virtual.<br />

Conclusão<br />

Muitos questionam se, na internet, ocorre publicação, transmissão, distribuição,<br />

comunicação ou reprodução das obras intelectuais. Esses termos não são sinônimos e estão, junto a<br />

outros, definidos no art. 5º da LDA. São utilizações distintas, necessitando de autorizações<br />

específicas. Por falta de clareza, muitos pensam que a utilização virtual dessas obras não se encontra<br />

devidamente amparada e prevista na LDA, entretanto, tal pensamento é equivocado.


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Para Gandelman, ―um dos aspectos cruciais dos debates é a definição jurídica da<br />

transmissão eletrônica de obras protegidas pelo direito autoral‖ (2007, p. 189), pois ocorre ―uma<br />

confusão dos conceitos já existentes em razão da difícil identificação das utilizações que ocorrem<br />

quase simultaneamente e no mesmo lugar, mas isso, repita-se, não descaracteriza os direitos<br />

consagrados‖ (2007, p. 264). O autor quis dizer que a aplicação da LDA ao ambiente virtual torna<br />

suas normas pouco claras porque a internet, de certo modo, cria uma nova realidade, onde elas<br />

parecem, à primeira vista, não funcionar tão bem quanto no ambiente não-virtual.<br />

Gandelman sugere um ponto de partida para esse esclarecimento ao afirmar que<br />

a questão básica é definir se a internet é um meio de comunicação impresso –<br />

como, por exemplo, os jornais, revistas ou livros – e, assim sendo, estaria livre<br />

de qualquer censura prévia e de qualquer controle governamental; ou a internet<br />

é um veículo de broadcasting como a TV, por exemplo, e nesse caso sujeita ao<br />

controle governamental e a critérios de auto-regulamentação (2007, p. 176).<br />

Em regra, se um avanço social e tecnológico faz uma regra parecer obscura quando a ele<br />

aplicada, deve-se buscar adaptá-la de modo a dirimir tal imprecisão, clarificá-la. Esta proposição é<br />

sustentada pelo fato de que, ―historicamente, os limites abrangidos pela proteção do direito autoral<br />

vão se alargando em paralelo ao desenvolvimento tecnológico dos veículos de informação‖ (ibidem<br />

p. 72). Neste novo século, a realidade social é marcada pela influência das tecnologias digitais no<br />

modo como lidamos com o conhecimento, com a informação, essência destes primeiros anos do<br />

século XXI. Como bem declara o teórico, esta época consiste em ―um momento de acomodação<br />

dessa nova realidade‖ (2007, p. 266). Pode se perceber que ―para uma convivência harmoniosa e<br />

coerente, as diversas legislações deverão, cada vez mais, tentar universalizar seus conceitos e<br />

princípios, em vez de buscar tão-somente soluções locais‖ (ibidem p. 277), pois, o ramo<br />

internacional do Direito está essencialmente ligado ao ramo autoral na Sociedade da Informação – a<br />

coletividade mundializada através da troca de criações do intelecto.<br />

É primordial que o Direito, como elemento ordenador da sociedade e responsável pela<br />

solução de conflitos, atue sempre com o escopo de adequar o corpo de leis e as jurisprudências –<br />

num sentido mais estrito de tomada de decisões dos tribunais – à constante dinâmica da sociedade.<br />

Tanto os instrumentos legais como as ações governamentais precisam produzir melhores resultados<br />

na luta contra os delitos na área da direito autoral. Neste intuito baseia-se a busca por conceitos<br />

mais claros (aqui distinguidos alguns dos mais importantes) e normas mais precisas (aqui mostradas<br />

até que ponto funcionam) no que se refere à atuação dos direitos autorais através do mecanismo<br />

virtual de transmissão das obras intelectuais conectadas a esses direitos.<br />

Referências<br />

BITTAR, Carlos Alberto. Direito de autor. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.<br />

BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Portal da Legislação da Presidência da República<br />

Federativa do Brasil. Disponível em: . Acesso em:<br />

09/09/2010.<br />

BRASIL. Ministério da Cultura. Caderno do Fórum Nacional de Direito Autoral. Disponível em:<br />

.<br />

Acesso em: 08/09/2010.<br />

GANDELMAN, Henrique. De Gutenberg à internet: direitos autorais na era digital. 5. ed. revista e<br />

atualizada. Rio de Janeiro: Record, 2007.<br />

Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Sobre propriedade intelectual. Disponível em:<br />

. Acesso em: 08/09/2010.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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PLANEJAMENTO EDUCACIONAL: O PLANEJAMENTO DIALÓGICO COMO<br />

ALTERNATIVA AO PROJETO NEOLIBERAL<br />

Jeane Alves de Almeida 33<br />

Severina Alves de Almeida 34<br />

Resumo: Este texto reflete acerca do planejamento educacional enfatizando o planejamento<br />

dialógico-participativo como alternativo ao projeto neoliberal. Nesse sentido, promovemos um<br />

diálogo com teóricos como Paulo Freire, Moacir Gadotti, José Carlos Libâneo, Celso Vasconcelos e<br />

Paulo Roberto Padilha, entre outros para, à luz da filosofia Freireana, refletir como a comunidade<br />

educativa enfrenta a dicotomização (teoria x prática) ao planejarem suas atividades pedagógicas.<br />

Concluímos que, só por meio de um trabalho que promova um planejamento consistente e<br />

comprometido com o pensamento freireano é possível enfrentar o caos estabelecido na educação<br />

brasileira, resultado das políticas neoliberais globalizadas hegemônicas e excludentes.<br />

Palavras chave: Planejamento Educacional; Diálogo; Educação.<br />

Abstract: This paper reflects on the educational planning emphasizing dialogic, participatory<br />

planning as an alternative to the neoliberal project. In this sense, we promote a dialogue with<br />

theorists like Paulo Freire, Moacir Gadotti, José Carlos Libâneo, Celso Vasconcelos and Paulo<br />

Roberto Padilla and others, to the light Paulo Freire's philosophy, reflecting how the educational<br />

community faces the dichotomy (theory x practice) to plan their educational activities. We conclude<br />

that only through a work plan that promotes a consistent and committed to Freire's thought is<br />

possible to confront the chaos set in the Brazilian education, the result of the neoliberal globalized<br />

hegemonic and exclusionary.<br />

Keywords: Educational Planning; Dialogue; Education.<br />

Introdução<br />

Passados mais de cem anos da sua criação, inspirados no idealismo burguês da Revolução<br />

Francesa, os sistemas educacionais encontram-se num contexto daquilo que Moacir Gadotti (2000)<br />

chama de explosão descentralizadora. Com efeito, o autor conclui que, numa época em que o<br />

pluralismo cultural e político assumem características universais assistimos de um lado a crescente<br />

globalização da economia impulsionada pelas novas tecnologias da comunicação e informação<br />

(NTCIs) e, de outro, à emergência do poder local democrático que desponta no campo educativo,<br />

enfrentando o desafio de preservar a identidade de povos e nações.<br />

Nessa perspectiva o processo de globalização se consolida, interferindo de maneira<br />

significativa nas políticas educativas, acarretando conseqüências imprevisíveis. Vive-se uma fase de<br />

insegurança, incertezas, especulações, e, sobretudo de desafios. É imprescindível compreender com<br />

a suficiente clareza este fenômeno, para viabilizar a construção de alternativas capazes de enfrentar<br />

os problemas educacionais advindos dessa conjuntura, que concebe a educação como uma<br />

perspectiva mercadológica.<br />

É nesse contexto que Paulo Roberto Padilha (2005) discute o planejamento educacional,<br />

fazendo um recorte preciso da concepção dialógica, e o faz na condição de um especialista no tema,<br />

acenando com a possibilidade de se instaurar em nossas escolas uma nova perspectiva visando à<br />

33 Professora Assistente da UFT – Universidade Federal do Tocantins Campus de Araguaina. e-mail:<br />

Jeane@uft.edu.br<br />

34 Acadêmica Mestranda do PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras, no Mestrado em Língua e<br />

Literatura da UFT - Universidade Federal do Tocantins Campus de Araguaina; e-mail: sissi@uft.edu.br


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construção do projeto político-pedagógico como aspecto relevante para fazer frente o projeto<br />

neoliberal, determinando a dimensão pedagógica implícita nesse processo.<br />

O trabalho se desenvolve em alguns momentos que se articulam. Inicialmente dialogamos<br />

com autores como, José Carlos Libâneo (2002), Moacir Gadotti (2000), Celso dos Santos<br />

Vasconcelos (2004) e Paulo Roberto Padilha (2005), dentre outros, apresentando o planejamento<br />

como necessidade do trabalho pedagógico e o planejamento dialógico como alternativa ao<br />

neoliberalismo globalizado, hegemônico e excludente são a pauta da discussão. À luz da filosofia<br />

Freireana, e pautados no pensamento de Paulo Roberto Padilha buscamos entender a complexidade<br />

da relação pedagógica, do currículo e a da avaliação, naquilo que ele chama de transversalidade<br />

cidadã. Concluímos com algumas considerações acerca do Projeto escola Cidadã, proposto por<br />

Paulo Freire.<br />

1. O planejamento como necessidade do trabalho pedagógico<br />

O trabalho humano possui características próprias. É uma ação humana dirigida a um fim e<br />

planejar não é algo externo ou estranho ao trabalho, antes é o exercício de antever uma intervenção<br />

repleta de intencionalidade e de selecionar caminhos, atos e procedimentos coerentes ao fim<br />

estabelecido. Assim, o trabalho humano combina atos de concepção e execução (momentos<br />

rompidos quando submetidos à alienação e à divisão social do trabalho).<br />

Apoiados em alguns autores, por exemplo, Libâneo (1992), podemos afirmar que o<br />

planejamento da prática pedagógica representa uma necessidade inerente a este tipo de intervenção<br />

social que nos leva à explicitação da nossa intencionalidade: o que pretendemos? Isso quer dizer<br />

que, na ação de planejar, já manifestamos nossas opções, compromissos, princípios, enfim, nossas<br />

posições político-pedagógicas. Além disso, a intencionalidade também emerge das situações<br />

concretas: nossas angústias, dificuldades, insatisfações e desafios da nossa prática pedagógica. (nesse<br />

sentido, um bom diagnóstico dessa prática torna-se algo precioso, bem como uma análise rigorosa<br />

das brechas existentes para uma possível intervenção). Segundo Libâneo:<br />

O planejamento é uma atividade de reflexão acerca das nossas opções e ações;<br />

se não pensarmos detidamente sobre o rumo que devemos dar ao nosso<br />

trabalho, ficaremos entregues aos rumos estabelecidos pelos interesses<br />

dominantes na sociedade. A ação de planejar, portanto, não se reduz ao simples<br />

preenchimento de formulários para controle administrativo; é, antes, a<br />

atividade consciente de previsão das ações docentes, fundamentadas em opções<br />

político-pedagógicas e tendo como referência permanente as situações didáticas<br />

concretas (isto é, a problemática social, econômica, política e cultural que<br />

envolve a escola, os professores, os alunos, os pais, a comunidade, que<br />

interagem no processo de ensino (LIBÂNEO, 1992: 222).<br />

Ao apresentar a intencionalidade pedagógica, também é necessário escolher e apontar as<br />

ações necessárias para efetivar essa intencionalidade: como tornar real a nossa projeção? Quais<br />

passos, recursos, tempo, condições materiais, por exemplo, serão fundamentais? Mas além de<br />

permitir organizar o nosso fazer pedagógico em face dos objetivos propostos, o planejar nos<br />

possibilita permanentemente revisitar esse processo. Nesse sentido, Libâneo considera que o<br />

planejamento não possui um caráter apenas de programar a nossa intervenção: ―mas é também um<br />

momento de pesquisa e reflexão intimamente ligado à avaliação‖ (IBID., p. 221).<br />

Vasconcellos (1995:53-54) considera a existência de níveis de planejamento: do sistema de<br />

educação (em nível nacional, estadual ou municipal, relacionado-se com grandes políticas<br />

educacionais); planejamento da escola (projeto educativo da instituição); planejamento curricular<br />

(proposta geral das experiências de aprendizagem oferecidas pela escola nos diversos componentes<br />

curriculares em todos níveis de escolarização); planejamento de ensino-aprendizagem (o mais<br />

próximo da prática pedagógica do professor; subdivido em plano de curso e de aula).


sejam:<br />

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Nesse sentido Libâneo (1992: 225) nos fala de diversos tipos de planejamentos, quais<br />

(...) da escola: documento global que media relação com sistema escolar mais<br />

amplo e com planos de ensino propriamente dito; diz respeito ao plano<br />

pedagógico e administrativo da unidade escolar; contempla concepção<br />

pedagógica, bases teórico-metodológicas da organização didática,<br />

contextualização social, econômica, política e cultural da escola, caracterização<br />

da clientela escolar, objetivos educacionais, estrutura curricular, entre outros<br />

aspectos. (...) plano de ensino: previsão dos objetivos e tarefas do trabalho<br />

docente para um ano ou semestre; é um documento mais elaborado, dividido<br />

por unidades seqüenciais; Componentes presentes: justificativa da disciplina em<br />

relação aos objetivos da escola; objetivos gerais; objetivos específicos, conteúdo<br />

(com divisão temática de cada unidade); tempo provável e desenvolvimento<br />

metodológico (atividades do professor e dos alunos). (...) plano de aula:<br />

previsão do desenvolvimento do conteúdo para uma aula ou conjunto de aulas<br />

e tem um caráter bastante específico.<br />

O planejamento, assim posto, é um processo permanente de tomada de decisões; ressaltase,<br />

no entanto, que essas decisões não são necessariamente exclusividade do professor; podem e<br />

devem integrar os vários membros da comunidade escolar. O planejamento participativo aparece<br />

como um desafio para a escola ao incluir novos modelos de pensar, decidir, agir. (VIANNA, 1986).<br />

―O plano é o produto do planejamento explicitado em forma de registro de documento ou<br />

não‖ (VASCONCELLOS, 1995:43). Entendemos ser relevante que o planejamento educacional<br />

ganhe a forma de plano devidamente registrado e justificado. Tal procedimento demanda um<br />

esforço de sistematização que propicia maiores possibilidades de reflexão. Gramsci (1995:120-121)<br />

afirma que existe uma luta rigorosa contra os hábitos de diletantismo, da improvisação, das<br />

soluções oratórias e declamatórias.e que, escrever as notas e as críticas é princípio didático que se<br />

tornou necessário graças à obrigação de combater os hábitos da prolixidade, da declamação e do<br />

paralogismo criados pela oratória.<br />

2. O planejamento dialógico como alternativa ao projeto neoliberal<br />

As transformações que emergem da atual conjuntura sócio-econômica apontam à<br />

inevitabilidade de se compreender as relações sociais no contexto da globalização, da revolução<br />

tecnológica e da ideologia do livre mercado (neoliberalismo) 35. A globalização deve ser vista como<br />

uma tendência internacional do capitalismo que, juntamente com o projeto neoliberal, impõe aos<br />

países periféricos a economia de mercado global sem restrições, a competição ilimitada e a<br />

minimização do Estado na área econômica e social, conforme apontam Libâneo e Oliveira (1998).<br />

Nessa perspectiva, alguns questionamentos importantes surgem como é o caso da exclusão social, o<br />

desemprego estrutural e uma pobreza que beira à indigência. Essa forma de globalização significa a<br />

predominância da economia do livre mercado, do Estado mínimo, uma situação em que o máximo<br />

possível é privatizado, com o agravante do desmonte social. Entenda-se que o mínimo é para o<br />

social, pois, para o capital o Estado continua o ―máximo‖.<br />

Segundo Gadotti (2003), condições para que essa globalização pudesse se desenvolver<br />

foram a interconexão mundial dos meios de comunicação, das moedas nacionais e das mega-fusões<br />

de empresas transnacionais, o que se deu de forma progressiva nas últimas décadas. Robinson dos<br />

Santos e Antônio Inácio Andreoli (2004) advertem que a concentração do capital e o abismo social<br />

entre ricos e pobres (apenas 48 empresários possuem a mesma renda de 600 milhões de outras<br />

pessoas) e o crescimento do desemprego cada vez mais preocupante (1,2 bilhões de pessoas no<br />

35 O neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na Europa e América do Norte, como reação<br />

teórica e política contra o Estado intervencionista de bem-estar. Seu marco é o livro ―A caminho da<br />

Servidão‖ escrito pelo austríaco Friedrik Von Hayek em 1944.


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mundo estão à deriva) e da pobreza (800 milhões de pessoas passam fome), são os principais<br />

entraves sociais da globalização neoliberal.<br />

Gadotti (2003) sustenta que a globalização capitalista e o neoloberalismo hegemônico e<br />

excludente trabalham com a noção de ―governo‖ (aparatos administrativos) separada da noção de<br />

―Estado‖. O Estado além do governo tem uma dimensão simbólica que inclui a noção de cidadania.<br />

O Estado não apenas financia a educação, mas também constrói valores, sentido (direitos,<br />

cidadania). Para o autor, no ―globalismo‖ o cidadão é reconhecido como cliente, um consumidor,<br />

que tem uma ―liberdade de escolha‖ entre diferentes produtos. O cidadão precisa apenas ser bem<br />

informado para ―escolher‖. Por isso ele precisa saber do ―ranking‖ das principais escolas, as<br />

―melhores‖ (aspas do autor). ―Esse cidadão não precisa ser emancipado. Precisa apenas saber<br />

escolher‖. (IBID. p. 5).<br />

Outro aspecto levantado por Gadotti é o de que os governos devem ser eqüitativos nos<br />

gastos, privilegiando os mais pobres e delegando a função de educador aos pais. Os ricos devem<br />

pagar pelo ensino. Filantropia para os pobres e Mercado para os ricos. De um lado, os tutelados, os<br />

necessitados e, de outro, os globalizados. Para as políticas neoliberais o Estado deve abandonar a<br />

idéia de igualdade (socialização) para assumir a eqüidade (legislação).<br />

Esses princípios da economia globalizada e neoliberal que norteiam as políticas educativas<br />

são essencialmente instrucionistas, isto é, estão centradas no ensino e não na aprendizagem. É a<br />

predominância de uma pedagogia tradicional largamente criticada por diferentes correntes<br />

pedagógicas. Defende-se o aumento de tempo para instrução e não qualidade da formação escolar.<br />

O discurso do Banco Mundial 36 e da OMC (Organização Mundial do Comércio) - hoje os principais<br />

promotores das reformas da educação na América Latina - sobre a qualidade do ensino, parte da<br />

idéia de que a questão da quantidade no ensino fundamental já foi resolvida. Agora o problema<br />

seria a qualidade. Só que não oferece indicadores de qualidade. E mais: os professores estão<br />

excluídos de toda discussão do tema da qualidade. Eles não têm voz. O que se busca é a<br />

estandartização (padronização) da qualidade, da avaliação, dos currículos, da aprendizagem e a<br />

criação de ―parâmetros‖ para tudo, como se tudo pudesse ser mensurável na educação.<br />

(GADOTTI, 2003).<br />

O neoliberalismo, no tocante à educação, defende a escola básica, universal, laica, gratuita e<br />

obrigatória a todos. A proposta no Brasil, por exemplo, é de uma formação geral e polivalente<br />

visando à qualificação de mão-de-obra para o mercado. Essa idéia de preparação de mão-de-obra<br />

certamente está voltada muito mais ao campo técnico do que propriamente humano. Segundo<br />

Santos & Andreoli (2004), a preocupação com que o trabalhador aprenda a ler escrever e contar<br />

não tem nada de edificante ou humanitário, nem tampouco filantrópico. Para os autores, o<br />

aprendizado da leitura pode ser apenas para poder manusear qualquer manual de instruções;<br />

escrever, para poder emitir um relatório de produção; e contar para não colocar uma unidade a mais<br />

do produto na embalagem. Esta mentalidade é a fase superior da exploração capitalista. Os autores<br />

citam Herbert Marcuse, (1979:111). Apud (ibid., p: 7) dizendo que ―a racionalidade está a serviço da<br />

rentabilidade, a qual está orientada pelo cálculo sistemático e metódico do capital‖<br />

36 Para Gadotti (2003) apesar de ambos estarem caminhando na mesma direção, não significa que não existam<br />

diferenças entre eles. Pode-se dizer que a política de mercantilização da educação da OMC é muito mais<br />

explícita do que a do Banco Mundial. Uma diferença fundamental está na questão do papel do Estado:<br />

enquanto o Banco Mundial ainda defende os organismos intergovernamentais como a UNESCO e a<br />

UNICEF, a filosofia da OMC caminha na direção da extinção desses organismos e a substituição por<br />

representantes das próprias corporações para chegar até os governos corporativos, escolhidos por<br />

corporações, através de um ―acordo‖.


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4.1 - O planejamento dialógico, o projeto da escola e as políticas neoliberais.<br />

Na medida em que as relações sociais pautam-se pelos critérios do tripé produtividade,<br />

competitividade e lucrabilidade, fatores inerentes à globalização, questiona-se como deve ser<br />

conduzido o processo educativo, uma vez que a educação assume cada vez mais o contorno de um<br />

bem a ser adquirido como qualquer objeto de consumo. Portanto, o desafio que se apresenta é que,<br />

apesar de todos os esforços teórico-práticos, ainda é incerto o ideal de uma educação crítica e<br />

emancipadora, como pressuposto de inserção dos indivíduos numa sociedade marcadamente<br />

conduzida pelos interesses mercantis.<br />

A orientação política da globalização e do neoliberalismo evidencia, do ponto de vista<br />

ideológico, um discurso de crise e de fracasso da escola pública como decorrência da incapacidade<br />

administrativa e financeira do Estado em gerir um bem comum, aponta Libâneo (2003). O autor<br />

adverte para a necessidade de reestruturação da escola pública e denuncia a primazia da iniciativa<br />

privada gerenciada pelas leis de mercado. Assim, o papel do Estado fica renegado a segundo plano,<br />

ao mesmo tempo em que se valorizam os métodos no desenvolvimento o no pretenso progresso<br />

individual e social.<br />

Teóricos como Gaudêncio Frigotto (2001) e Moacir Gadotti (2003), por exemplo, unem-se<br />

à Libâneo denunciando que o Estado, na perspectiva neoliberal, vem, paulatinamente,<br />

desobrigando-se da responsabilidade pela educação pública. Contraditoriamente, nesse mesmo<br />

contexto, vem-se discutindo a problemática da requalificação dos trabalhadores, a qual encontra-se<br />

diretamente vinculada à uma formação escolar básica que venha atender aos anseios do exigente<br />

mercado. Daí a necessidade de se (re) pensar no papel que o professor assume, investindo na sua<br />

formação integral e também em suas práticas didático-pedagógicas, vistas como possibilidade real<br />

de interferência nas conseqüências da globalização e do neoliberalismo homogênico e excludente na<br />

arena educativa.<br />

Nesse sentido a educação apresenta-se com a função primordial de desenvolver as novas<br />

habilidades e as competências sociais necessárias à adaptação do indivíduo ao novo paradigma do<br />

sistema produtivo, além de formar o consumidor consciente, exigente e crítico, requisitos básicos<br />

para sua autonomia social e política. Torna-se necessário que a educação, a capacitação e a<br />

investigação avancem em direção a um enfoque sistêmico, como constata, por exemplo, os últimos<br />

relatórios do Banco Mundial e as recomendações de Promedila (V Reunião do Comitê Regional<br />

Intergovernamental do Projeto da Educação: América Latina e Caribe-1990), aponta Libâneo<br />

(2003).<br />

Segundo Padilha (2005), a politicidade do ato pedagógico, no que diz respeito á educação,<br />

precisa ser reforçada no sentido de aprofundar a dimensão pedagógica, sobretudo em referência à<br />

relação pedagógica, ao currículo e à avaliação do processo de ensino e aprendizagem, os quais<br />

assumem aspectos fundamentais quando se pensa no projeto escolar visando a influenciar as<br />

políticas públicas educacionais, partindo do pressuposto de que ―o planejamento socializado e<br />

ascendente contribui para que as pessoas, as escolas e a sociedade sejam cidadãs‖. (IBID., P. 95).<br />

Para o autor, quando se aborda a dimensão do ato pedagógico, inevitavelmente o olhar<br />

recai sobre o que se entende por pedagogia, e cita Selma Garrido Pimenta (1996:55) apud (Ibid) a<br />

qual entende que a pedagogia ―enquanto ciência prática da e para a práxis educacional, (que)<br />

determina objetivos pedagógicos desta a partir da e para a práxis, cujo sentido não está pois na<br />

compreensão, mas no aperfeiçoamento da práxis‖. Estamos, pois, ―no âmbito da Pedagogia<br />

Dialética (Schimied Kowarzik), da Pedagogia da Autonomia e Pedagogia da Indignação (Freire) e da<br />

Pedagogia do Conflito, da Práxis e Pedagogia da Terra‖ (GADOTTI) APUD (IBID., P. 96).<br />

Nessa perspectiva o fenômeno educativo (aqui entendido como o que se manifesta à<br />

consciência, promovendo educação) adquire um caráter humanizador o qual imprescinde da


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mediação pedagógica para se concretizar. A pedagogia enquanto ciência dialética vai nos mostrar<br />

que ―o conflito está na base de toda a pedagogia‖ (Gadotti, 1996:3) apud (ibid.) e que o seu<br />

referencial se manifesta na práxis, entendida como ação transformadora.<br />

Nesse sentido Francisco Gutiérres e Daniel Pietro (1994:61) apud (Padilha, 2005:96.)<br />

advertem que: ―A mediação pedagógica ocupa um lugar privilegiado em qualquer sistema de<br />

ensino-aprendizagem (e) no caso da relação de presença, é o docente quem deveria atuar como<br />

mediador pedagógico entre a informação a oferecer e a aprendizagem por parte dos estudantes‖.<br />

Nessa perspectiva, e retomando o pensamento de Padilha, acreditamos que a relação<br />

pedagógica na escola, em particular na sala de aula, assume o caráter da ciência dialética proposta<br />

por Gadotti (1996) apud (ibid.) e vai depender da confluência de diferentes fatores presentes no<br />

processo de ensino e de aprendizagem, vide a ação do educador e do educando, tendo como pano<br />

de fundo os conflitos inerentes ao trabalho educativo, e do modo como os conhecimentos<br />

previamente existentes são mediados, convergindo para que novos conhecimentos surjam, mesmo<br />

durante o processo de ação e reflexão sobre a práxis pedagógica.<br />

Diante de toda a complexidade presente na educação, sendo a pedagogia teoria e a prática<br />

desta, podemos admitir que a pedagogia é, conforme aponta Padilha (2005), a arte da educação<br />

presente e aberta às demais ciências, de sorte que, sozinha não conseguiria dar conta da<br />

complexidade do ato pedagógico e de, por conseguinte, explicar todas as variantes do fenômeno<br />

educativo. Para o autor é por isso que ela recorre à ajuda das demais ciências, quais sejam: Biologia,<br />

Psicologia, Antropologia, Etnografia, Sociologia, Economia, Ecologia e à Filosofia, corroborando<br />

desse modo toda sua conotação de transdisciplinaridade 37, pois, segundo Padilha, a pedagogia é<br />

uma ciência transversal e transdisciplinar, uma vez que, ao mesmo tempo em que perpassa as<br />

demais ciências – quando estas, nas suas especificidades, precisam a ela recorrer para explicar o seu<br />

próprio objeto de investigação – é por elas perpassada e a elas recorre ao investigar a práxis<br />

educativa. Nesse sentido o caráter transcisciplinar da pedagogia funde-se na práxis transformadora<br />

por ela estudada o que se configura como essencialmente criadora, ousada, crítica e reflexiva.<br />

Considerações finais<br />

Enfatizando o processo que envolve as práticas pedagógicas no tocante ao planejamento<br />

educacional que a educação atualmente requer, e fazendo uso de um diálogo franco com alguns<br />

autores, conforme evidenciado ao longo desse trabalho, concluímos afirmando e que, só por meio<br />

de um trabalho que promova um planejamento consistente e comprometido com o pensamento<br />

Freireano é possível se enfrentar o caos estabelecido na educação brasileira, resultado das políticas<br />

neoliberais, globalizadas, excludentes e hegemônicas.<br />

O projeto Escola Cidadã idealizado por Paulo Freire e executado pelo Instituto que leva o<br />

seu nome, com sede em São Paulo e mais 15 países, promove uma educação que forma pela e para<br />

a cidadania. Essa escola dita cidadã, de acordo com Paulo Freire (1997) apud (GADOTTI, 2000),<br />

promove as condições para que se atinjam os fins de uma educação conforme a proposta neste<br />

trabalho, ou seja, emancipatória, dialógica, libertadora e preocupada com a formação holística de<br />

alunos e alunas, em detrimento do caráter meramente instrumental do projeto neoliberal.<br />

Para Freire (1997) a Escola Cidadã é aquela que se assume como um centro de direitos e<br />

deveres cuja finalidade essencial é a formação para e pela cidadania. É, portanto, a escola que<br />

37 Transdisciplinaridade, segundo Basarab Nicolescu (2002) como o próprio prefixo ―trans‖ indica, diz<br />

respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de<br />

qualquer disciplina. Seu objeto de estudo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos<br />

imperativos é a unidade do conhecimento.


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viabiliza a cidadania de que está nela e de quem vem a ela. Assim, essa escola não poder ser uma<br />

escola cidadã em si e para si, adverte Gadotti (2000). ―Isso a descaracterizaria. Ela é cidadã na<br />

medica em que se exercita na construção da cidadania de quem utiliza o seu espaço‖ (Ibid. p.4).<br />

Dentro da filosofia Freireana a Escola Cidadã assume um caráter de coerência permanente com a<br />

liberdade. È coerente também com seu discurso formador e libertador (IBID). Nesse sentido, é<br />

toda escola que, brigando por ser ela mesma, luta para que os educandos e os educadores também<br />

sejam eles mesmos, e, como preconiza Paulo Freire ninguém pode se educar sozinho, e a Escola<br />

Cidadã como não poderia deixar de ser, é uma escola de e para a comunidade, de companheirismo<br />

(aqui entendido como o ato de repartir o pão). È, portanto, uma escola de produção do<br />

conhecimento, do saber e da liberdade.<br />

A educação conforme proposto nesse trabalho não pode, portanto, assumir o contorno de<br />

uma lógica meramente mercantil, visando a uma perspectiva de eficiência ou de racionalização. O<br />

momento atual nos convida a uma redescoberta da função social da utopia, ou no dizer de António<br />

Nóvoa (1998), das pequenas utopias que dão sentido ao trabalho quotidiano de educadores e<br />

educadoras. Reside aí um dos prazeres em trabalhar com educação, aliado ao diálogo que travamos<br />

com os professores na aprendizagem partilhada, na cumplicidade com os nossos ―outros‖, na<br />

amorosidade que se estabelece nas relações humanas pautadas por solidariedade e confiança.<br />

Referências Bibliográficas<br />

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A canção das sete cores. São Paulo: Contexto, 2005.<br />

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metodológicos para elaboração e realização. São Paulo: Libertad, 2004.<br />

VIANNA, Ilca Oliveira de Almeida. Planejamento participativo na escola: um desafio ao educador. São<br />

Paulo: EPU, 1986.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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PROVOCAÇÕES ÉTICO-FILOSÓFICAS A RESPEITO<br />

DA FORMAÇÃO HUMANA DO PROFESSOR<br />

38Pedro Braga Gomes<br />

39Ana Cristina Santos Siqueira<br />

Resumo: Este artigo consiste com algumas provocações éticas e filosóficas a respeito da formação<br />

humana do professor, um caminho para se promover o pensar estético, científico e filosófico na<br />

Educação.<br />

Palavras Chave: Educação, Estética, Ética e Filosofia.<br />

Abstract: This article consists of some challenges with ethical and philosophical questions about the<br />

formation of the human teacher, a way to promote thinking aesthetic, scientific and philosophical<br />

in Education.<br />

Keywords: Education, Aesthetic, Ethics and Philosophy.<br />

Um dia virá em que só terá um único pensamento:<br />

A EDUCAÇÃO<br />

F. Nietzsche, Fragmentos póstumos (1875).<br />

O trabalho profissional, aquele que escolhemos por deferência, interesse ou por qualquer<br />

outra circunstância, representa uma escolha pessoal e faz parte integrante da nossa vida. Representa<br />

ainda os mecanismos sem que tenhamos a consciência de desenvolvimento de atividades,<br />

comportamentos e responsabilidades sociais afetivas que exerçam influências sobre nós mesmos e<br />

sobre todas as pessoas que nos cercam. Essa é a interação que se processa à própria evolução do ser<br />

humano e a sociedade. Pois nunca como antes, a educação foi tão decisiva para construir<br />

uma economia próspera e uma democracia e uma democracia participativa, fundada no pacto dos<br />

cidadãos.<br />

A transformação humana se processa às 24 horas do nosso dia. Ao acordarmos, no contato<br />

com ambiente familiar, na atividade profissional, nas ruas, com os amigos e até quando dormimos<br />

processamos os nossos sonhos.<br />

Na sociedade contemporânea, a televisão tornou-se fonte efetiva para absorção de<br />

informação, entretenimentos e valores, alterando os padrões de comportamento, as formas de<br />

comunicação, de aprendizagem e de percepção do mundo. Dessa forma, torna-se necessário que os<br />

educadores tenham uma formação que lhes proporcione condições de contribuir para o<br />

entendimento de uma sociedade cada vez mais comunicacional e informatizada.<br />

O processo de mudança e desenvolvimento das finalidades propostas para todos os níveis<br />

do Ensino tem trazido muitos desafios aos educadores de hoje, principalmente quando o<br />

relacionamos a formação do professor. O desenvolvimento tecnológico deixa a maioria dos<br />

38 Filósofo e Professor. Mestre em Educação. Especialista em Bioética e Biotecnologia e Ciência da Religião.<br />

É professor da rede estadual de São Paulo. É Professor da Faculdade de Educação e Medicina da UNIMES.<br />

É membro do núcleo de pesquisa Pedagogia do Sujeito da Universidade Cidade de São Paulo.<br />

39 É Professora de Arte. Mestre em Educação. Atualmente está Professora Coordenadora de Oficina<br />

Pedagógica (PCOP) da Diretoria de Ensino Leste 2. É membro do núcleo de pesquisa Pedagogia do Sujeito<br />

da universidade de mesmo nome.


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educadores na inércia. A informatização e a automação criaram um cenário de competição<br />

globalizada, que tanto aos produtores de tecnologia como seus consumidores, exigindo-se cada vez<br />

mais competências cognitivas em massa. Superando o axioma do marxismo de que o avanço da<br />

tecnologia desqualificaria a mão-de-obra. Tais movimentos chegam ao mesmo tempo para os<br />

alunos e professores.<br />

Enfrentamos um período, no qual há urgência de refletirmos sobre a formação, do<br />

profissional de educação que carece da aprendizagem para ser preceptor do currículo escolar.<br />

Conhecemos bem as dificuldades de apreensão do contemporâneo e já discutimos sobre a<br />

experiência, do sujeito, um Ser que aprende, desenvolve-se e modifica-se e afirmando-se como<br />

sujeito livre e ativo, pois modificar-se é o começo para a sabedoria. Como resultado de uma<br />

reorganização de categorias e relações, ou seja, uma forma de conhecimento, bem como a<br />

autocompreensão, através de estudos acadêmicos. Essa reflexão, inevitavelmente, emerge a urgência<br />

de formação superior voltada para o incentivo à pesquisa. Sendo condição prevalente para o<br />

desenvolvimento econômico.<br />

Para Steven Connor (1993 p.11-26) que discorre sobre introdução a teorias do<br />

contemporâneo, levanta questões que nos fazem perceber a importância de compreendermos a<br />

modernidade para entendermos a pós-modernidade, no sentido de termos de pensar a relação entre<br />

experiência e conhecimento, presente e passado, como termos e estruturas deles mesmos derivados:<br />

―Se aquilo que a teoria cultural herdou do modernismo for um conjunto<br />

particular de relações conceituais entre experiência e conhecimento,<br />

essas relações não vão tomar, no interior do conhecimento, forma<br />

meramente abstrata. Quer dizer, elas não se relacionam apenas com<br />

questões ou conceitos acadêmicos os abstratamente filosóficos,<br />

vinculando-se também, e de modo crucial, com as formas sociais e<br />

institucionais que essas relações abstratas ou conceituais tomam e a<br />

partir das quais são operadas. O desenvolvimento de estruturas e<br />

instituições de conhecimento no final do século XX, universidades e<br />

instituições de ensino superior, escolas, organizações editoriais e vários<br />

ambientes de produção cultural, tem uma ligação crucial com as formas<br />

de conhecimento desenvolvidas no âmbito dessas instituições e em<br />

relação com outras formas de conhecimento e de representação‖.<br />

O que se quer dizer com isto, é que ao vivenciar a experimentação do conhecer e aprender a<br />

estruturar os caminhos da pesquisa, é que se pode visualizar os diversos meios de conduzir o<br />

pensamento no processo de aprender a ensinar a aprender.<br />

Em virtude desta situação, é necessário todo um processo de preparação e de elaboração de<br />

métodos lógicos (habilidades intelectuais de interpretação, análise e critica), é de competência do<br />

pesquisador que torne isto possível na educação, pois, se assim não for feito, não estamos<br />

transformando, mas manipulando e mantendo o ―status quo‖.<br />

Devemos fazer do ambiente da pesquisa em qualquer nível, uma arte de colocar questões em<br />

cada domínio do saber e da ação. Uma arte de argumentação capaz de permitir aos seres humanos<br />

resgatar todo o pensamento; abordando-se assim toda e qualquer questão segundo a perspectiva do<br />

universal. Pois, a realidade é um todo complexo e implica uma compreensão que busque entender,<br />

cada vez mais, esta complexidade, aguçando, com isso nossos receptores, a manifestação do desejo<br />

de saber sempre mais. Quanto mais soubermos sobre o mundo mais poderemos dominá-lo e não o<br />

contrário.


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E qual o outro meio onde a ―razão‖ pode ser acionada na construção fundamental para a<br />

superação da dominação? Não existe um outro local onde o cérebro possa assumir o papel da<br />

intelectualidade (pesquisador – academia) seja tão enfatizada, nem outro lugar onde o educando, a<br />

escola e a própria sociedade seja tão ardente para a busca das Utopias (sonhos) universais, a pujança<br />

mestra do vanguardismo. Este é o terreno que a educação e a teoria educacional caminham.<br />

A teoria da educação, em geral baseia-se na noção de que o conhecimento e o saber<br />

constituem fonte de libertação, esclarecimento e autonomia. A teoria educacional crítica, em<br />

particular acredita que os presentes entraves educacionais pelos ―arranjos‖ por objetivo de interesse<br />

e de poder, transmitem saberes e conhecimentos contaminados, pela ideologia, idéias estas que são<br />

transmitidas por meio dos veículos de comunicação social que tem se espalhado pelo mundo,<br />

agregados ao processo de globalização econômica e financeira.<br />

Com objetivos claros de criar os caminhos na busca da verdade, que deve ser determinado<br />

pelo pesquisador o mercado sem fronteiras. Mas que é possível a mudança do ―status quo‖ através<br />

de uma crítica ideológica da não aceitação do não definitivo e do silêncio como resposta de entrar e<br />

chegar a um entendimento não fragmentado do mundo social.<br />

A verdade é um norte, que pode ser circunstancial e mutável, necessário porque conduz o<br />

raciocínio lógico, imprescindível porque desmorona o absolutismo e importante, pois nos ensina<br />

crescer nas idéias.<br />

Na direção deste segmento, vai causar um mal estar nas visões pós-modernistas –<br />

estruturalistas das superestruturas que a partir do posicionamento convencional entre ciência –<br />

saber e ignorância – mistificação, que este último de forma velada apresenta uma posição contrária<br />

que pode ser traçada ao poder ideológico e o primeiro apresenta um distanciamento em relação ao<br />

poder verdade – de fato – real. Todo o saber-conhecimento fica suspeito de vínculo com o poder.<br />

No segundo estágio, a própria noção de poder ideológico sofre um deslocamento, não<br />

podendo mais ser referida a uma única fonte de informação, separando - se a priori para sempre. A<br />

fonte opressiva – libertadora de um discurso não pode ser determinada teoricamente a priori, ela<br />

precisa ser investigada historicamente em cada caso específico. No sentido de não mais identificar a<br />

fonte de saber como elas atuam, mas sim como elas funcionam e exercem seu poder oculto.<br />

A teoria da educação precisa ser vista como uma forma de integração dos humanos, desde<br />

aquele que mora numa mansão na Ilha de Caras, por exemplo, como aquele que mora sob a ponte<br />

nas periferias dos grandes centros urbanos do Brasil e do mundo.<br />

Neste sentido, podemos entender nenhum processo de teoria de pesquisa em educação, ou<br />

em qualquer outra área do conhecimento, pode ser entendido apenas como aplicação de técnicas ou<br />

metodologias, ao contrário, somente terá sentido na articulação com as concepções da educação, da<br />

sociedade, da cultura e da política.<br />

Resgatando neste momento a aula magna da Professora Bernadete Gatti, que tão bem nos<br />

abrilhantou na manhã do dia 5 de março que norteou o ano letivo de 2008 do Programa de<br />

Mestrado em Educação da UNICID com belas e sinceras reflexões, a profissão de ensinar e de<br />

pesquisar é a mais nobre da educação escolar, depende do lugar chamado escola. O Ateneu, onde<br />

Aristóteles propunha que se ensinasse o diálogo com o qual Sócrates provocou que a virtude<br />

depende de sabedoria. O último não tinha a formatação estrutural do conhecimento, ele somente<br />

tinha a formatação construída a partir do intelecto e do senso comum. O primeiro não desconhecia<br />

esse senso comum, mas fazia muito bem a passagem da teoria para prática.<br />

Com programação extensa a cumprir, numa seqüência determinada pelo órgão regulador do<br />

curso de pós-graduação no Brasil, a maioria dos pesquisadores e iniciantes limita-se a executar as<br />

tarefas meramente burocráticas que lhe são impostas pelo planejamento e, a adotar uma


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metodologia de pesquisa, o mais simples e objetiva possível: falar, enquanto o outro é um mero<br />

receptor.<br />

O método escolhido pelo pesquisador que parte da realidade em educação, já compreendida<br />

nos seus nexos internos, como mera abstração, para encaminhar-se a um novo concreto pensado,<br />

tem que estudar a sala de aula, a organização escolar, as estruturas de ensino, a sociedade onde está<br />

inserido, no caso concreto a brasileira e as suas relações com a educação.<br />

É um fator de observação, que o pesquisador e em especial o pesquisador iniciante, faz uma<br />

representação menos abstrata da sua prática, ou seja, interpreta-a de acordo com os dados que o seu<br />

cotidiano lhe apresenta. Deixa de lado a teoria da pedagogia de hoje, para sustentar na pedagogia<br />

tradicional, procurando-se assim responder o problema de hoje com o problema de ontem,<br />

chegando até o uso de subterfúgios de burlar a própria organização posta que impede de trabalhar<br />

de acordo com as reais necessidades e interesses.<br />

Neste sentido, percebe-se que o discurso do pesquisador fica como algo vago, solto no ar,<br />

que não se une, pelo desejo e pela vontade e nem aos que fazem de conta que pesquisam e nem aos<br />

que fazem de conta que estão compreendendo. Ninguém fala. Quem fala é o sujeito, universal,<br />

abstrato: observa-se, nota-se, constata-se, conclui-se. Deste modo escondem-se os sintomas<br />

importantes do nosso autoritarismo social e endossam um processo que faz do aprendente<br />

verdadeiras vítimas do aparato escolar.<br />

Podemos refletir com o tema em epígrafe, que este é o momento do acordar mágico do<br />

pesquisador e também do próprio educador, que precisam passar por um ato de regeneração do<br />

discurso, o que exige uma atitude de denodo. Coragem para dizer abertamente os seus sonhos que<br />

nos fazem tremer. A formação do educador? Antes de qualquer coisa: é necessário reaprender a<br />

falar.<br />

Está na lembrança neste momento do nosso saudoso Jorge Amado em Gabriela Cravo e<br />

Canela, há um momento do diálogo que a filha de um coronel diz á sua mãe que pretendia casar-se<br />

com um professor. Ao que a mãe retruca numa clássica lição de realismo político:<br />

E o que é um professor na ordem das coisas? O que tem o ensino a ver com o<br />

poder? Como podem as palavras se comparar com as armas? Por acaso a<br />

linguagem já destruiu ou já construiu mundos? (apud, Brandão, 1982 p. 17 –<br />

27).<br />

O educador – pesquisador é aquele que quer saber, mas não quer ser tapeado ou enganado.<br />

O brasileiro faz um esforço para se educar. A escola na sua incompetência, é que não o ajuda. E há<br />

uma coisa a ser ensinado, é preciso empenho, método, atenção, concentração e calma. Mas chegará<br />

o momento da exposição, da apresentação para o mundo concreto, o da convivência com aqueles<br />

que querem ludibriar os seus iguais. O momento da ―infusão‖ como nos ensinou AGOSTINHO<br />

(1989) é a da meditação, e da luta. Solidão e alarido. Solidão é a Ágora Sautet (1992).<br />

Podemos pensar que os educadores são como as velhas árvores, que possuem uma face, um<br />

nome, uma ―estória‖ a ser dita. Habitam em um mundo em que o que vale é a relação que os ligam<br />

aos alunos, sendo que cada um deles é ―sui generis‖, portador de um nome e também de uma<br />

―estória‖, sofrendo tristezas e alimentado esperanças. E a educação é algo para acontecer da escola<br />

para ela mesma, num espaço invisível e denso, que se estabelece a dois.<br />

Por isso mesmo professores não são entidades ―descartáveis‖, da mesma forma como há<br />

canetas descartáveis, coadores de café descartáveis, copinhos descartáveis. De professores para<br />

pesquisadores da educação realizamos o salto de pessoas para funções.<br />

Pensemos alto, exercendo a nossa cidadania, na dimensão águia, na maioria dos pobres,<br />

empobrecidos e excluídos. E nisso estaremos exercendo o Amor na feliz expressão de Santo


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Agostinho, de pensar e agir pelo respeito do mundo e em especial respeito ao ―Ser‖ Heidegger<br />

(2000).<br />

A Bioética em Educação para a formação do educador inclui dois momentos de relevância<br />

na concepção de Ética em Enrique Dussel, a saber: o conflito e a ruptura. A primeira seria o divisor<br />

de águas entre o período social pré-revolucionário e de um período pós-revolucionário. E o<br />

segundo é momento da transformação que JOSSO (2004) nos ensina como sendo de momentos<br />

“charneiras‖. O poder da estrutura social são elementos de relevância para operar qualquer mudança<br />

significativa do envolver humano.<br />

No ensinamento do pensador latino-americano, só é possível na Filosofia pensar a Ética no<br />

campo teórico. No entanto, é urgente a moral no continente sul - americano. Assim, o nosso<br />

saudoso Paulo Freire, referencial de que DUSSEL muito bem se apropriou é a da fundamentação<br />

para se colocar em prática a Ética, ocorre pela Educação como humanização do homem no<br />

cumprimento de seu papel o desenvolvimento da formação humana: a vida.<br />

Atitudes que exigem espírito de aventura, para acompanhar a trajetória humana na terra, que<br />

muito bem me faz citar MORIN (2002), ―não é mais teleguiada por deus, pela ciência, pela razão ou<br />

até mesmo pela lei da História‖. Faz-nos digredir o sentido grego da palavra: astro errante. Para os<br />

gregos estar vivo significava estar vendo, e não perder a honra, para o período medieval estar vivo<br />

significava não perder a alma, isto é, a razão e no século XXI, qual está sendo a representação de<br />

vida?<br />

Comparativamente, qual é o papel da Filosofia na problemática do homem? Ela é sem<br />

dúvida, a expressão mais global e autêntica do seu esforço em superar seus problemas, pois procura<br />

ir até as causas últimas. Com efeito, é impossível encontrar soluções como esses, sem se responder<br />

com muita honestidade às questões fundamentais: o que é o homem? Qual o seu fim último? O<br />

homem é dono ou escravo de suas relações com o universo e com sua História? O que é bom? O<br />

que é certo? O que é justo? O que é a liberdade? Qual é o sentido da dor, do mal e da morte? Por<br />

que existe o mundo em vez do nada? Qual é o sentido e o valor da ciência?<br />

E neste sentido Hegel (apud, Guatarri 1988, p.85) nos ensinou:<br />

Só a filosofia, em seu conjunto, nos dá o conhecimento do universo como<br />

totalidade, totalidade que nos desenvolve a partir de seu conceito e que em nada<br />

perder do que dela faz o conjunto, um todo no qual todas as partes estão ligadas<br />

umas às outras pela necessidade entra em si mesma e, nessa união com ela<br />

mesma forma o mundo da verdade.<br />

A História da Filosofia é o registro do gigantesco esforço dos grandes pensadores para<br />

encontrar respostas a essas e outras questões fundamentais. Vale a pena conhecer as diferentes<br />

visões sobre a natureza humana que levam a diferentes conclusões a respeito do que podemos fazer<br />

e de como podemos agir. Crenças conflitantes sobre a natureza e o fim da vida humana estão<br />

freqüentemente encarnadas em diferentes formas de vida, em sistemas políticos e econômicos e em<br />

teorias educacionais.<br />

O debate das diferentes teorias filosóficas é um precioso meio para a reflexão critica sobre<br />

os problemas existenciais do homem de hoje, vivendo num mundo complexo, visando a uma<br />

tomada de posição consciente, ao assumir cada um seu grau de responsabilidade na superação da<br />

crise que está em nós e nos envolve.<br />

O conhecimento das grandes sínteses filosóficas podem também servir para alguns como<br />

estímulos e ponto de partida para a busca de novas respostas, que reflitam as condições de vida do<br />

homem atual, a essas eternas questões, que nunca serão plena e definitivamente respondidas, mas<br />

que precisam ser sempre mais esclarecidas.


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O homem não pode deixar de conviver com seus problemas, porque será sempre aquele ser<br />

misterioso e intranqüilo, procurando continuamente superar-se a si mesmo em busca de algo mais.<br />

Contudo, essa busca de superação nem sempre tem se processado no sentido do aperfeiçoamento<br />

de seu Ser e nem sempre se baseia em valores universais.<br />

Para KANT (1992), BOFF (2004) a conscientização das conseqüências maléficas de seus<br />

desvarios e o discernimento dos valores universais podem se constituir nos grandes objetivos da<br />

Educação no século XXI. Só assim o educador poderá encontrar a luz de uma ―pedagogia viva‖<br />

GOMES (2010), isto é, sempre revisitada que lhe indique o rumo para a busca de soluções<br />

inadiáveis para os graves problemas sociais que o afligem e o ameaçam. E assim também poderá<br />

conviver, positivamente, com problemas e crises inerentes à sua própria existência como nos<br />

ensinou MONTAIGNE (2009) em saber desfrutar lealmente do nosso ser.<br />

É importante exercitar todas as formas de compreensão da realidade e do mundo. A<br />

Filosofia é uma delas. Não é a melhor e nem a mais importante, mas é tão boa e tão importante<br />

quanto às demais. No processo de pesquisa em Educação o importante é saber equilibrar o pensar<br />

estético FREIRE (1967) e (1975), o cientifico e o filosófico como nos ensina ASSMANN (1996).<br />

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Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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AVALIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ACADÊMICO DO CURSO DE BIOLOGIA<br />

MODALIDADE À DISTANCIA DA UFT: AS TURMAS DO<br />

PRÓ-LICENCIATURA EM PERSPECTIVA<br />

Jucilei Esteves de Macedo 40,<br />

Adriano Antonio Brito Darosci 41<br />

Jeane Alves de Almeida 3<br />

Resumo: Este trabalho tem como objetivo avaliar o desenvolvimento acadêmico do Curso de<br />

Licenciatura em Biologia, na modalidade à distância, através da descrição do programa e da análise<br />

da evasão nas turmas do Pro-Licenciatura fase I e II ofertadas pela UFT – Universidade Federal do<br />

Tocantins. A metodologia alcançou pesquisas bibliográfica, documental e empírica. Os resultados<br />

demonstram que o curso de Biologia EaD da UFT está se consolidando. Todavia, constatou-se que<br />

existe evasão, determinada por um conjunto de fatores extrínsecos ao curso, como motivos<br />

pessoais, características do trabalho, acesso às tecnologias e falta de tempo do alunado.<br />

Palavras chave: Avaliação; Educação à distância; Evasão.<br />

Abstract: The Education Distance is increasing your popularity in Institutions of Higher Education.<br />

Since 2006, the Federal University of Tocantins - UFT - has been investing in this type of education<br />

aiming to train teachers to work in the Elementary and Secondary Education. In this perspective,<br />

this study aims to evaluate the academic development of biology‘s course in the distance, through<br />

the description of the program and analysis of the dropout of students from classes Pro-<br />

Licenciatura - Phase I and II offered by UFT. The methodology used was literature review,<br />

documental analysis and a questionnaire.<br />

Keywords: Evaluation, Education Distance, Dopout, Teacher Trainning.<br />

Introdução<br />

A Educação a Distancia (EaD) vem passando por um momento revolucionário, aliada às<br />

tecnologias de informação e comunicação (informática, multimídias, ciberespaço, etc.) que rompem<br />

as barreiras de espaço e tempo entre as regiões distantes. Com o desenvolvimento das tecnologias<br />

de informação e comunicação - TIC‘ s -, o mundo vem se transformando e, junto a elas, a educação<br />

vem ganhando cada vez mais destaques, mudando as perspectivas de viver, de ensinar e de<br />

aprender da sociedade (FANSTONE et al 2009).<br />

A EaD caracteriza-se principalmente pelo fato de seus interlocutores não estarem presentes<br />

no mesmo espaço físico, ao mesmo tempo, e pelo tempo exigido à dedicação ao estudo. Para<br />

Moore & Kearsley (2007) a EaD corresponde ao aprendizado que ocorre num lugar diferente do<br />

local de ensino, utilizando técnicas e tecnologias, além de uma estrutura organizadora que ofereça<br />

apoio a esta modalidade.<br />

Segundo Belloni (2002) a EaD no Brasil, surgiu na década de 1920, voltada para o ensino<br />

de profissões, apresentando como uma alternativa para aqueles que não podiam freqüentar um<br />

estabelecimento de ensino presencial e tinham a necessidade do preparo profissional e cultural.<br />

Neste contexto da qualificação para o trabalho, na era do conhecimento e das novas tecnologias,<br />

surge o conceito de EaD. As primeiras experiências com EaD no Brasil foram os cursos por<br />

40 Graduanda em Licenciatura em Biologia (EaD) – UFT e-mail: jucileibiologi@uft.edu.br<br />

41 Profª. Msc. em Biologia Vegetal, Instituto Federal de Goiás – e-mail: solacost@gmail.com<br />

3 Profª. Drª. em Ciências Biológicas (Zoologia) – UFT – e-mail: jeane@uft.edu.br


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correspondências, passando pela tele-educação e, recentemente, ampliada pelas novas tecnologias<br />

de informação. A partir dessas novas tecnologias, tais como computadores, internet, multimídias,<br />

ciberespaço, a EaD alcançou grandes avanços, mas, somente em 1996, a EaD foi reconhecida pela<br />

Lei de Diretrizes e Bases – LDB.<br />

Com o objetivo de garantir o cumprimento desta lei e levar o conhecimento para muitos<br />

cidadãos, a Universidade Federal do Tocantins (UFT) tem sua primeira experiência em Educação a<br />

Distância para a formação de professores com a oferta do curso de Licenciatura em Biologia na<br />

modalidade a distancia, através do programa Pro-Licenciatura (MEC/SEED, 2004). O objetivo<br />

maior foi levar a formação para professores da rede publica das séries finais do ensino fundamental<br />

e/ou do ensino médio. A Biologia EaD na UFT, foi ofertada inicialmente em 2006 com o Pro-<br />

Licenciatura Fase I, e em 2007, para uma segunda turma, através do Pro-Licenciatura Fase II, nos<br />

Pólos de apoio presencial Universitário de Araguaina, Arraias, Gurupi e Porto Nacional.<br />

Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo avaliar e descrever aspectos acadêmicos<br />

relacionados ao desenvolvimento do curso de Biologia, modalidade a distância, da UFT,<br />

apresentando, para tanto, o histórico da EaD na UFT, sua organização pedagógica e suas mídias<br />

norteadoras, além de dados acadêmicos que permitem discutir as possíveis causas de evasão nas<br />

turmas do Pro-Licenciatura.<br />

1. Breve Histórico da Educação a Distância na UFT<br />

Na UFT a EaD iniciou-se com discussões teóricas no 1° e 2° seminário de educação a<br />

distância da UFT, nos anos de 2003 e 2004, respectivamente. Naquele momento, teóricos da EaD<br />

nacional se juntaram ao recém criado grupo de EaD da UFT, buscando traçar rumos para oferta do<br />

curso de EaD na universidade. Dessa discussão, surgiu sua primeira experiência em educação à<br />

distância a partir da participação no projeto do programa Pro-Licenciatura do Consórcio<br />

Setentrional (edital 0513, 2004, MEC/SEED). Tal evento deu-se juntamente com as seguintes<br />

Universidades Públicas Federais e Estaduais: Universidade de Brasília (UNB), Universidade Federal<br />

do Goiás (UFG), Universidade Estadual de Goiás (UEG), Universidade Federal do Pará (UFPA),<br />

Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Universidade Estadual do Mato Grosso do<br />

Sul (UEMS), Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Universidade de Roraima (UNIR) e<br />

Universidade Federal da Amazônia (UFAM). Estas instituições Públicas de Ensino Superior<br />

formaram este consórcio com o objetivo de ofertar o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas<br />

na modalidade à distância para formação de professores da rede pública de ensino.<br />

O Pró-Licenciatura ocorre em parceria com instituições de ensino superior que<br />

implantaram cursos de licenciatura à distância, com duração igual ou superior à mínima exigida para<br />

os cursos presenciais, de forma que o professor-aluno mantenha suas atividades docentes. O<br />

objetivo foi melhorar a qualidade de ensino na educação básica por meio de formação inicial<br />

consistente e contextualizada do professor em sua área de atuação.<br />

A proposta inicial do Consócio foi aprovada pelo MEC em 2004, com previsão para inicio<br />

do curso em 2005. A inserção da UFT foi encaminhada para o MEC em Março de 2005, sendo que,<br />

as normas para o funcionamento do curso de Licenciatura em Biologia – EaD da UFT, foram<br />

regulamentada segundo a resolução do Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão - CONSEPE, em<br />

Junho de 2006 (CONSEPE N°07/2006).<br />

A abertura do primeiro vestibular para ingresso dos alunos da Primeira turma do curso de<br />

Biologia (Pro-Licenciatura I) aconteceu no ano de 2005, tendo como público-alvo os alunos<br />

egressos do Ensino Médio. O vestibular foi produzido pelo CESP/UNB, ofertando 75 vagas<br />

distribuídas em três pólos universitários, Araguaina, Arraias e Gurupi. Em 2006 aconteceu a<br />

abertura do processo seletivo para o ingresso dos alunos da segunda turma, (Pro-Licenciatura Fase<br />

II) instituído pela resolução FNDE n° 34/2005, sendo este produzido pelo Centro de Seleções da


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Universidade Federal de Goiás e aplicado pelo Centro de Seleções da UFT (COPESE). Nesta<br />

segunda fase foi ofertado 200 vagas para professores em exercícios na rede publica de ensino,<br />

distribuídas nos pólos de Araguaina, Arraias, Gurupi e Porto Nacional.<br />

O Curso de Licenciatura em Biologia EaD, foi pioneiro para a implantação da Educação a<br />

Distância na UFT em nível superior, abrindo portas para a implantação de outros cursos nesta<br />

modalidade de ensino. Atualmente, a UFT em parceria com a Universidade Aberta do Brasil<br />

(UAB), oferece, além dos cursos de Licenciatura em Biologia, vários outros cursos a distância como<br />

Química, Física, Matemática, e os cursos de Pós-Graduação Latu Sensu em Gestão Pública<br />

Municipal e Gestão Pública em Saúde.<br />

Com o intuito de levar o ensino Superior para diferentes regiões do estado, a estrutura<br />

acadêmica para cursos em EaD da UFT objetiva contribuir para a interiorização do ensino superior<br />

gratuito no Estado do Tocantins; facilitar o acesso ao ensino superior àqueles que não podem<br />

estudar em um curso presencial e atuar na formação de professores, com atenção especial para o<br />

processo de atualização de professores da rede publica de ensino.<br />

2. Organização Didática Pedagógica e curricular do Curso<br />

A organização pedagógica do curso de Biologia EaD da UFT foi elaborada levando em<br />

consideração a formação do professor no campo das Ciências Biológicas, onde destacam-se alguns<br />

princípios norteadores, como: a flexibilidade do curso, o respeito ao ritmo e às condições do aluno,<br />

a autonomia dos alunos na aprendizagem, a contextualização e o incentivo à pesquisa com<br />

principio educativo, e o uso e a difusão de novas tecnologias que favorecem a mediação no<br />

processo da aprendizagem.<br />

O curso foi estruturado com material didático comum e optativo para serem utilizados de<br />

forma flexível pela instituição de ensino, de acordo com as características e peculiaridades de cada<br />

aluno.<br />

O material didático impresso é organizado de forma modular e cada módulo contempla um<br />

aspecto do fenômeno biológico, por exemplo, Módulo I - O contexto da vida; Módulo II -<br />

Processos Biológicos na Capacitação e na Transformação da Matéria e da Energia; Módulo III -<br />

Processos de Manutenção da Vida; Módulo IV - Desenvolvimento e Crescimento; Módulo V -<br />

Processos Reprodutivos; Módulo VI - Mecanismo de Ajustamento Ambiental e Colonização;<br />

Módulo VII - Soluções Adaptativas e Filogenia e o Módulo VIII - Processos Emergentes e<br />

Biodiversidade. Os módulos são divididos em unidades que se relacionam de forma interdisciplinar,<br />

servindo como um guia de apoio ao aluno. Cada módulo corresponde a um semestre e estão<br />

estruturados em três eixos temáticos:<br />

1. Eixo Pedagógico – Contendo os materiais pedagógicos que caracteriza a formação dos<br />

professores;<br />

2. Eixo Biologia Sociedade e Conhecimento (BSC) – Relacionado à Biologia com a sociedade<br />

e o conhecimento.<br />

3. Eixo Biológico – Onde se trata dos fenômenos Biológicos.<br />

Além do material impresso, faz se uso de vários meios tecnológicos de comunicação que<br />

envolve o processo educativo do curso, entre eles pode se citar o Ambiente Virtual de<br />

Aprendizagem (MOODLE).<br />

O MOODLE é uma ferramenta gratuita e de fácil acesso, que pode ser utilizado por todos<br />

os alunos para realização das atividades à distância do curso. Tem-se constituído como importante<br />

instrumento de suporte no processo de ensino-aprendizagem, permitindo uma interação entre<br />

professor/aluno, aluno/aluno e aluno/objeto de estudo. Neste Ambiente, ficam disponibilizados


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tanto os materiais criados ou adquiridos para serem utilizados no curso e matérias produzidos pelos<br />

professores e alunos.<br />

2.1 Equipe Multidisciplinar do Curso<br />

A organização do curso conta com uma equipe multidisciplinar para sua execução.<br />

Segundo Nobre et al (2008), esta equipe é responsável por planejar, organizar, assessorar e orientar<br />

o processo de aprendizagem, dando ênfase a uma metodologia dialética.<br />

De acordo com o MEC/SEED (2004), O curso de Biologia à distância é administrado<br />

academicamente por uma equipe multidisciplinar composta por:<br />

Coordenadores – Estes são os profissionais responsáveis pelas articulações em<br />

setores específicos e que transitarão pelos diversos tipos de atividades no sistema<br />

geral. Há uma coordenação central composta por: coordenador-geral, coordenador<br />

acadêmico, coordenador de gestão, coordenador tecnológico, coordenador de<br />

capacitação e acesso e coordenador da prática pedagógica. Além disso, há<br />

coordenadores locais em cada Instituição Pública de Ensino Superior (IPES). O<br />

conjunto desses coordenadores constitui o Colegiado Central do Curso.<br />

Coordenador Local – É responsável pelo gerenciamento local do curso,<br />

acompanhando e apoiando as atividades dos tutores e o desenvolvimento do curso<br />

em seus aspectos teórico-metodológicos e operacionais;<br />

Supervisor – Acompanha os tutores em cada IPES, relacionando-se com<br />

professores e autores de módulo. É também responsável pelo acompanhamento<br />

dos aspectos formais e administrativos do curso, como matrícula, calendário de<br />

atividades, acompanhamento de oferta dos módulos, recebimento e distribuição do<br />

material.<br />

Professor tutor presencial/distancia – Os tutores têm como função acompanhar o<br />

desenvolvimento teórico (didático) do curso, estar presente nas aulas práticas e nas<br />

avaliações. Ao tutor cabe corrigir e dar retorno aos alunos nas avaliações à<br />

distância através do Ambiente Virtual de Aprendizagem. Também auxilia os<br />

monitores em suas dúvidas e, se necessário, atende e ajuda os alunos nas questões<br />

teórico-metodológicas do curso.<br />

Professor Autores – São os responsáveis pela produção do conteúdo do curso.<br />

Formam, com os outros professores das IPES consorciadas, as equipes de<br />

produção dos módulos por área de conhecimento. Estas equipes produzem o<br />

material dos módulos na perspectiva interdisciplinar proposta pelo curso.<br />

Monitores - os monitores têm como função auxiliar o aluno a resolver as dúvidas<br />

com relação à utilização dos recursos tecnológicos, requeridos e utilizados no<br />

módulo em desenvolvimento, bem como dos conteúdos específicos do módulo.<br />

Portanto ele deve, necessariamente, ter competência acadêmica comprovada e,<br />

minimamente, ser aluno de curso de Ciências Biológicas (depois do segundo ano<br />

poderá ser desse mesmo curso) ou compatível, ou ser professor da rede de ensino<br />

com a mesma formação.<br />

Segundo Nobre et al (2008), todos esses profissionais interagem freqüentemente com os<br />

alunos, de forma virtual através da plataforma Moodle ou presencial, favorecendo um vinculo<br />

afetivo entre professor/aluno que muitas vezes funciona como chave contra evasão em curso na<br />

modalidade à distancia.<br />

2.2 – Evasão no Curso<br />

A evasão segundo Favero (2006) é a desistência do curso, incluindo aqueles que, após<br />

terem se matriculado, nunca se apresentaram ou se manifestaram de alguma forma para os colegas e<br />

mediadores do curso, em qualquer momento.


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Em se tratando de evasão em Instituição de Ensino Superior na modalidade à distância,<br />

esta questão se torna ainda mais preocupante, pois a heterogeneidade do perfil do aluno é diferente<br />

de um aluno do ensino presencial, tendo em vista a realidade e a distância entre o município em que<br />

o aluno reside, e o pólo de acesso para os encontros presenciais, bem como a realidade sócioeconômica<br />

de cada estudante.<br />

Dados da nossa pesquisa comprovam que houve um elevado percentual de evasão no<br />

curso de Biologia EaD da UFT, atingindo 28,7%. Tal problemática se estendeu ao curso nas duas<br />

turmas, porém, foi maior na primeira turma, com 44,4% de alunos que abandonaram as atividades.<br />

Para Xenos et al (2002) apud Abbad & Zerbini (2006), a evasão tem sido uma preocupação para as<br />

Instituição de Ensino a Distancia e é causada por múltiplos fatores que estão relacionados às<br />

percepções e particularidades do aluno; ao curso e seus tutores e a certas características<br />

demográficas, como idade, sexo, estado civil, numero de filhos, tipo de trabalho ou profissão, entre<br />

outros.<br />

Com relação ao sexo e estado civil dos alunos evadidos, nossos dados apontam que 75%<br />

são do sexo feminino, 25% do masculino e 75% são casados. Analisando este resultado, nota-se que<br />

a maioria é mulher e casada e que, conseqüentemente, divide seu tempo com outras atividades tais<br />

como: cuidar da casa e dos filhos. Os dados mostram ainda que 83% destes alunos possuem filhos.<br />

Dessa forma, é de se esperar que não haja tempo suficiente para se dedicar aos estudos, sendo que a<br />

EaD exige uma carga horário maior em relação aos cursos presenciais. Em contrapartida, ao<br />

comparar estes dados com os alunos não evasivos, percebe-se que o percentual de homens e<br />

mulher é similar e a diferença entre o número de casados e solteiros não é grande. Neste sentido,<br />

pode-se deduzir que a evasão deste grupo pode estar relacionada a características demográficas,<br />

como proposto por Xenos et al (2002).<br />

Em relação à análise do curso, percebeu-se que 42% dos alunos evasivos consideraram o<br />

curso bom, 42% regular e 16% ótimo. Talvez, os estudantes evasivos não tiveram o tempo<br />

suficiente de estudo para avaliar o curso, ou ainda pode ser motivados pela não afinidade pelo<br />

curso, pois somente 29% lecionam ciências. Ao comparar estes dados com os alunos não-evasivos,<br />

em relação à análise do curso foram diferentes, visto que somente 9% consideram o curso regular,<br />

67% o consideram bom e 24% ótimo.<br />

Também foi feito um levantamento sobre os principais motivos que levaram os estudantes<br />

a tomar a atitude de evadirem do curso. Percebeu-se que 50% dos alunos desistiram do curso por<br />

motivos pessoais; 38% responderam que desistiram do curso por morar muito distante do pólo,<br />

onde realizavam as atividades presenciais; 8% por ter emprego fora do local do pólo e 4% por que<br />

não se identificaram com o curso.<br />

Considerações finais<br />

O curso EaD da UFT já pode ser considerado bem estabelecido, visto que, houve uma<br />

procura muito grande no vestibular 2010, com uma concorrência de (20/1) vinte candidato por<br />

vaga. Em relação ao histórico do curso, este possui uma organização didática pedagógica e<br />

curricular bem desenvolvida, com seus princípios norteadores voltados para a formação de<br />

professores. Além disso, conta com um material didático impresso de qualidade que foi elaborado<br />

de forma interdisciplinar. Além do material impresso, o curso conta com várias tecnologias de<br />

comunicação, entre elas, o MOODLE, onde são realizadas todas as atividades a distância do curso.<br />

Todavia, o estudo constatou que houve um considerável número de evasão no curso de<br />

Biologia (EaD) – UFT, sendo possível identificar vários fatores que provavelmente determinaram<br />

tal evasão, tais como: falta de tempo para dedicação ao estudo, visto que muitos desistentes<br />

possuem uma carga horária de trabalho incompatível, sendo ainda, casados e com filhos; Também


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colaborou para a evasão a indisponibilidade das TIC‘s, tempo e demais dificuldades extrínseca ao<br />

curso, como por exemplo, motivos pessoais e a distância entre o local de trabalho e o pólo, onde<br />

realizam as atividades presenciais.<br />

Portanto, é importante que outros estudos sejam realizados, para que outros fatores que<br />

levam a evasão sejam identificados, visando sempre à melhoria da educação à distância na UFT e<br />

no Brasil.<br />

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Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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DE IDENTIDADE E DE PÓS-MODERNIDADE: REFLEXÕES<br />

INTERDISCIPLINARES<br />

Leila Karla Morais Rodrigues Freitas<br />

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da<br />

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN<br />

Resumo: Historicamente concebida como uma categoria complexa, de difícil conceituação, a<br />

identidade figura, na pós-modernidade, como uma das problemáticas mais proeminentes, sobre a<br />

qual têm se debruçado estudiosos de diversas correntes teóricas. No novo cenário social, global,<br />

marcado pelas tônicas da mudança e da instabilidade, o indivíduo (pós-moderno) é concebido<br />

como um sujeito fragmentado, cambiante, suscetível às oscilações estabelecidas pela dinâmica da<br />

sociedade, detentor, portanto, de identidades. Em face disto, no prumo inter/transdisciplinar, este<br />

trabalho percorre um trajeto teórico que vai dos Estudos Culturais à Análise do Discurso, com<br />

vistas a ―cercar‖ a(s) identidade(s) por todos os lados e, assim, abordá-la(s) sob ângulos variados.<br />

Palavras-chave: Identidade. Pós-modernidade. Sujeito.<br />

Abstract: Historically conceived as a complex category of difficult concepts, identity figure in postmodernity,<br />

as one of the most prominent issues on which scholars have been addressing various<br />

theoretical perspectives. In the new social scene, overall, marked by the tonic of change and<br />

instability, the individual (postmodern) is conceived as a fragmented subject, changeable,<br />

susceptible to changes set by the dynamics of society, keepers, therefore, identities. In the face of it,<br />

plumb inter / transdisciplinary, this work goes a theoretical path that goes to the Cultural Studies of<br />

discourse analysis, in order to "surround" the identities on all sides and thus to approach under<br />

various angles.<br />

Keywords: Identity. Postmodernity. Subject.<br />

Considerações inicias<br />

A temática que compreende a(s) identidade(s) situa-se, na atualidade, no bojo dos tópicos<br />

mais discutidos pela sociedade. Da mídia aos bancos acadêmicos, esta questão tem assumido um<br />

lugar de destaque. O ritmo de vida imposto pelo mundo moderno ou pós-moderno, caracterizado,<br />

sobretudo, pela dinamicidade e aceleração tem provocado alterações de toda sorte na estrutura<br />

organizacional social.<br />

O efeito das transformações transcorridas nos últimos tempos, em especial nas duas<br />

últimas décadas, se faz sentir em diversos setores. Embora sua percepção esteja voltada<br />

sobremaneira para os campos científico-tecnológico e midiático, pesquisadores da área das Ciências<br />

Sociais afirmam que tais mudanças não se restringem a estes ramos, mas, contrariamente, atingem e<br />

provocam impacto de igual ou superior intensidade sobre os aspectos social e cultural, incidindo,<br />

logo, sobre o campo pessoal e inter(relacional) da vida dos sujeitos.<br />

Isso dá vazão ao que Stuart Hall (2006) chama de crise de identidade. De fato, a pósmodernidade,<br />

segunda modernidade ou ainda Modernidade tardia 42 é marcada por processos<br />

intensos que afetam aspectos da vida social de diversas formas. No plano econômico, por exemplo,<br />

tem-se o (re)nascimento dos mercados globais, fortalecidos e validados pela lógica da globalização.<br />

42 Os três termos são empregados para designar um mesmo objeto, ou seja, um mesmo período históricosocial,<br />

que tem início no final do século XIX aproximadamente e que compreende até os dias atuais. O<br />

emprego de um ou outro, portanto, varia de acordo com a ―preferência‖ dos pesquisadores, mediante suas<br />

pretensões e recortes teóricos específicos.


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Nos planos social e institucional, assiste-se a exarcebação do individualismo, a crise moral e ética,<br />

bem como a inversão de valores e das expressões de autoridade.<br />

Antes de nos aventurarmos na questão da possível crise identitária vivenciada pelo sujeito<br />

nos dias atuais, cabe-nos tecermos algumas considerações acerca do próprio termo identidade que,<br />

por si só é bastante complexo e, por isso mesmo, rico em possibilidades de acepções. Temos, pois,<br />

que identidade recebe definições distintas consoante recortes teóricos específicos.<br />

Conforme Souza (1994), o termo identidade − uma vez tomado em sua concepção clássica,<br />

tradicional – remete-nos à idéia de unidade e estabilidade. Entretanto, isso não quer dizer que esta é<br />

a premissa correta ou mesmo mais adequada nesse sentido. Antes de pressupor unidade, identidade<br />

pressupõe diferença, haja vista que ―a identidade é o que, em princípio, nos diferencia dos outros‖<br />

(SOUZA, 1994, p. 17).<br />

Nessa perspectiva, o termo identidade pressupõe, pois, as duas faces: diferença e unidade,<br />

porém tomadas em momentos díspares. Diferença ao sugerir nossa distinção em relação aos outros<br />

e unidade ao reunir o conjunto de nossas características pessoais formando uma espécie de todo<br />

coeso. Tomada nessa vertente, identidade remete-nos a idéia de um sujeito consciente, ―dono de si‖<br />

que, por sua vez, remete-nos a uma noção que remonta a períodos longínquos da história da<br />

humanidade, à Antiguidade grega, para sermos mais precisos. Do nascimento na antiga Grécia até<br />

aproximadamente o final do século XVIII, essa concepção vem sendo defendida amplamente. Esta<br />

bandeira foi levantada por movimentos de relevância inquestionável como o Humanismo<br />

Renascentista do século XVI, O Iluminismo do século XVIII. Do movimento iluminista,<br />

sobretudo, herdamos a premissa ainda corrente na cultura ocidental do modelo de indivíduo<br />

soberano, independente, indivisível, uno. Premissa esta que coincide com a do ―sujeito da razão‖<br />

cartesiano.<br />

O filósofo e matemático frances René Descartes (1984) se utilizou da dicotomia<br />

estabelecida por Platão (mundo das idéias – relevante − versus mundo das emoções – irrelevante<br />

para o homem) para conferir credibilidade a esse sujeito pensante, individual, centrado no seu ―eu‖.<br />

O sujeito cartesiano, assim foi de encontro à hegemonia da igreja católica medieval, rompendo com<br />

o dogma da impotência do homem frente à onipotência divina. A partir de então, o homem (sujeito<br />

da razão) passa a ser reconhecidamente capaz de produzir conhecimento e de gerir seu destino por<br />

si só.<br />

A ideia do sujeito cartesiano, embora ainda reminiscente no seio social ainda hoje,<br />

sobretudo nas entranhas das estruturas de poder por meio das instituições sociais, não tem mais o<br />

respaldo que tivera no passado. Atualmente, as evidências apontam para um movimento de<br />

descentramento do sujeito. Em virtude da impossibilidade de estabilização, unificação, o sujeito da<br />

pós-modernidade ou modernidade tardia é um sujeito muito mais complexo, incalculavelmente<br />

mais diverso que aquele.<br />

Nessa direção Hall (2006) sinaliza que a crise de identidade presenciada pela pósmodernidade<br />

reside no fato de que o processo de constituição identitária se tornou mais fluido,<br />

mais complexo, de modo que o indivíduo sofre os efeitos impactantes de um descentramento de<br />

caráter duplo. De um lado, ele vive o descentramento sob o viés sócio-cultural e, do outro, o<br />

descentramento de si mesmo nesse contexto de turbulências ao qual está inserido. Para o autor, a<br />

identidade é, pois, uma entidade volátil, provisória, variável, daí a impossibilidade quase que total de<br />

definição identitária, já que esta não é jamais unificada, segura e/ou completa. Como arremate do<br />

que foi posto, temos que<br />

A identidade passa a ser definida historicamente e não biologicamente. O sujeito<br />

assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são


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unificadas ao redor de um ―eu‖ coerente. [...] Se sentimos que temos uma<br />

identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque<br />

construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora<br />

―narrativa do eu‖. A identidade plenamente unificada, completa, segura e<br />

coerente é uma fantasia (HALL, 2006, pp. 13-14).<br />

Ante o posto, estudiosos como Giddens (1994), se negam a falar em identidade no<br />

singular como entidade una pertencente ao indivíduo, fazendo opção pelo termo ―identidades‖ no<br />

plural por considerarem mais adequado e pertinente. Consoante esta premissa, os indivíduos seriam<br />

detentores de múltiplas identidades sociais – vulgarmente conhecidas como ―papéis sociais‖. 43<br />

Entretanto, o conceito de identidade social difere substancialmente do conceito de papel<br />

social. Este último ─ categoria, a priori, de cunho sociológico ─ possui um caráter prescritivo, fixo,<br />

estável, ao passo que a(s) identidade(s) social(is) ─ concebida(s) aqui, exercem um caráter distinto:<br />

múltiplo, dinâmico, instável, volátil.<br />

Da Identidade como inscrição discursiva<br />

A compreensão do discurso enquanto processo de construção social subjaz toda discussão<br />

travada no seio das correntes teórico-analíticas do Discurso, de modo que ele é percebido como<br />

uma maneira de ação dos indivíduos no mundo. Nesse sentido, os sujeitos agiriam mediante os<br />

discursos proferidos; discursos estes, por seu turno, não neutros, mas carregados de ―sentido‖,<br />

determinados ideologicamente, conforme suas filiações. Uma vez que as pessoas seriam inscritas<br />

em várias Formações discursivas ao mesmo tempo, tais como: identidades inerentes à raça, classe<br />

social, gênero, dentre outras, ter-se-ia a possibilidade de efetivação de identidades diversas,<br />

exercidas, contudo, em práticas discursivas diferentes. Assim como indicam Foucault (2005) e<br />

Orlandi (2002) nossas ações mediante nossos discursos independem da nossa vontade, nos<br />

escapam o controle. Na verdade, elas correspondem a ―determinações‖ contidas nos já-ditos<br />

(re)cuperados nas e pelas filiações discursivas às quais nos engajamos.<br />

No tocante à possibilidade de engajamento dos indivíduos em práticas discursivas diversas,<br />

Foucault (2005) mais uma vez chama nossa atenção para duas implicações delas decorrentes. A<br />

primeira consiste na naturalização de algumas práticas discursivas. Esse fator é frequentemente<br />

encontrado no bojo da sociedade e ocorre toda vez que um determinado discurso toma uma<br />

dimensão expressiva em termos de aceitação/repasse que o leva a assumir um caráter normalizador,<br />

naturalista. Esse fenômeno é viabilizado, sobretudo no âmbito do senso comum. Os discursos<br />

acerca da relação de submissão/dominação entre homens e mulheres, da superioridade da raça<br />

branca sobre as demais, em especial a negra, dentre outros ilustram perfeitamente isso a que<br />

estamos referindo-nos. As questões sobre as quais este fenômeno incide assumem, pois, certo status<br />

de verdades inabaláveis, inquestionáveis no adro da sociedade. Estas práticas tendem a ignorar as<br />

circunstâncias sócio-históricas às quais os indivíduos estão alicerçados, de modo que se age como se<br />

estivessem imersos no vácuo social, dissociado de tudo ─ o que é ponto problemático a ser levado<br />

em conta.<br />

A segunda implicação, por sua vez, ao contrário da anterior, representa um aspecto<br />

positivo, por assim dizer, desse mesmo fenômeno. A saber, a possibilidade de emergência de<br />

atitudes de resistência ─ via discurso ─ às práticas discursivas naturalizadas, vinculadas a discursos<br />

hegemônicos, respaldados no poder instituído institucional e relacionalmente (FOUCAULT, 2005),<br />

de modo que se abre a possibilidade de emergência de contradiscursos. Os contradiscursos são a<br />

43 A utilização do termo vulgarmente para alusão ao conceito de papéis sociais não está aqui imbuída de<br />

qualquer conotação pejorativa e/ou depreciativa. A opção pelo seu emprego se deu em virtude da certa dose<br />

de popularidade sob a qual este goza. Longe de nós empreendermos qualquer atitude no sentido de subjugar<br />

esta ou aquela corrente teórica e/ou ciência.


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prova de que o discurso de fato implica em ação por e a partir dos sujeitos, bem como nos revela<br />

que o discurso não é monolítico, mas antes disso um ato político plural.<br />

Foucault (1998 e 2005) nos diz, acerca do envolvimento das pessoas nas práticas<br />

discursivas, que elas se posicionam em relações de poder consoante o papel que desempenham nas<br />

relações das quais participam. Essas práticas incluem também a possibilidade de contradiscursos<br />

que se articulam, como forma de subversão, no processo de agir socialmente através da linguagem,<br />

ou seja, no processo social de construção do discurso, refletindo as visões de mundo e os projetos<br />

políticos daqueles envolvidos nos embates discursivos.<br />

A atitude de resistência acima mencionada pode ser vislumbrada através de (das)<br />

contestações efetivas manifestas no bojo das sociedades, sobretudo na atualidade em tempos de<br />

pós-modernidade. Contestações estas que, materializadas em contra-discursos, têm sido<br />

disseminadas e engendradas por grupos minoritários que, via de regra, se apresentam<br />

historicamente situados em posições desprestigiadas ─ inferiores, por assim dizer ─ em relação aos<br />

grupos hegemônicos dentro da sistemática relacional social de poder. Os movimentos deliberados<br />

em prol das mulheres (Feminismo), dos povos indígenas, dos sem-terra (MST), dos homossexuais<br />

(lésbicas, gays e outras variações 44 afins) são representativos nesse sentido. Os contra-discursos,<br />

nesse contexto, consistem em ―instrumentos‖ de luta em favor das minorias que, através deles,<br />

empreendem tentativas de boicote a modelos hegemônicos cristalizados sócio-culturalmente<br />

falando e expresso em práticas discursivas de produção/reprodução das relações de<br />

dominação/submissão que existe (resiste) há gerações.<br />

Da pluralidade da(s) identidade(s)<br />

Retomando, agora, pois, alguns aspectos concernentes à cunhagem do termo identidade,<br />

vale ressaltar que, enquanto alguns pesquisadores optam pelo emprego do termo identidades ─ por<br />

razões que já aludimos ─ outros , em outra vertente, Souza (1994) a partir do constructo teórico de<br />

Lacan, consideram mais conveniente falar em identificação 45 a falar em identidade(s). Tendo em<br />

vista a noção de identidade fluida e múltipla já negociada neste espaço, identificação passa a ser<br />

concebida como espécies de marcas que a partir das quais se constitui o sujeito. Assumida nessas<br />

condições, considerar-se-ia então a possibilidade de viabilização de diversos momentos de<br />

identificação, à medida que entendemos as identificações como associações dos indivíduos a<br />

discursos que se lhe são circundantes e que se lhe ―afetam‖. Graças às identificações, de acordo<br />

com essa premissa, poder-se-ia ―flagrar‖ os sujeitos assumindo posições distintas, por vezes até<br />

contraditórias entre si.<br />

Encarada sob este prisma, diz-se, pois que as identificações não são uniformes, mas<br />

fragmentadas, instáveis. O sujeito não detém os controles sobre elas de modo que, muitas vezes<br />

elas erigem nos seus dizeres, no seu discurso como contrastantes, representando, desta feita<br />

movimentos antagônicos. Contudo, ainda assim, tais identificações ─ por mais opostas que sejam<br />

─ encontram-se intimamente imbricadas no e pelo sujeito. A essa altura, Coracini (2001) nos chama<br />

atenção para o movimento realizado efetivamente pelo sujeito em direção a sua ―identidade<br />

verdadeira‖. Nesse movimento, as identificações divergentes se digladiam corporificadas no<br />

44 Ao falarmos em variações, referimo-nos a toda sorte de categorizações relacionadas à Sexualidade dos<br />

indivíduos que fogem aos padrões heterossexuais e de divisão sexual em pares convencional. Dentre os quais<br />

destacamos os travestis, transexuais, bissexuais, dentre outros. A título de esclarecimento, queremos deixar<br />

claro que ao fazermos uso de tal expressão, não estamos emitindo qualquer opinião ou julgamento de valor<br />

quanto às condutas e/ou orientações sexuais de uma ou outra natureza. Esta, inquestionavelmente não é<br />

nossa intenção.<br />

45 Embora façamos alusão a ambas as denominações identidades e identificações, empregamos<br />

preferencialmente o primeiro termo em função dos aportes teóricos sob os quais baseamo-nos.


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sujeito/discurso, decorrendo daí a sua insegurança que o move em busca da sua identidade original,<br />

real ─ como se esta existisse em unidade.<br />

Do lugar do Outro na constituição do Sujeito e das Identidades<br />

Uma vez definidos o conceito de identidade em sua trajetória histórica, passaremos a tratar<br />

doravante de outro elemento pertinente à compreensão do processo de constituição do sujeito e,<br />

logo, de sua(s) identidade(s). Nessa perspectiva, a Alteridade surge como aspecto de extrema<br />

relevância e, que enquanto tal não deve ser desmerecido. A Alteridade consiste num elemento que<br />

se faz presente em todas as etapas do referido processo. Ela participa mesmo do ato discursivo<br />

desde a sua elaboração quando o indivíduo está ainda inscrevendo-se nas Formações discursivas<br />

que determinarão sua fala, passando pelas expectativas, negociações de ―sentido‖, entre outros. Ela<br />

é representada pelo Outro 46 ─ categoria por excelência empregada pela AD ─ que, enquanto tal<br />

exerce influência sobre os indivíduos sobremaneira. A saber, sobre o que dizem, como o dizem,<br />

como o seu dizer será ―recebido‖, dentre outras coisas. A este respeito, dizemos, parafraseando<br />

Moita Lopes (2002), que há uma relação de comprometimento entre o indivíduo, seu ―eu‖ e o<br />

Outro mediante o discurso, de modo que o que dizemos depende, em grande medida, do Outro ─<br />

ou dito de outra forma ─ dos outros com os quais estamos comprometidos no discurso. Ora, até<br />

mesmo percepção que temos acerca de nós mesmos depende do olhar que esses outros lançam<br />

sobre nós. Assim, inferimos que ele (o Outro) é/funciona como um ponto de referência sobre o<br />

qual nos pautamos. Em outras palavras, o Outro exerce a função de espelho invertido para nossa<br />

compreensão acerca dele e de nós mesmos. Isto posto, tem-se que, ―o sujeito se constrói pelo outro<br />

e se vê pelo olhar dos outros. (MOITA LOPES, 2002, p. 244) de modo que ―o que somos, nossa<br />

identidades sociais, portanto, são construídas por meio de nossas práticas discursivas com o outro<br />

(MOITA LOPES, 2002, p. 32).<br />

A presença marcante do outro, o lugar que a alteridade ocupa no cerne do processo de<br />

constituição identitária do sujeito coincide com o Outro tão apregoado pela Psicanálise e pela<br />

Análise de Discurso; o Outro que exerce desejo sobre nós; o Outro que nos constitui e nos habita o<br />

Outro que nos torna sujeitos plurais e singulares simultaneamente. È nessa relação intrincada de via<br />

dupla que os sentido se constroem e as subjetividades dos sujeitos emergem, haja vista que não há<br />

sentido nas palavras em si, mas, longe disso, ele (o sentido) é uma construção efetivada mediante<br />

gestos de interpretação impetrados pelos sujeitos sobre o discurso proferido em relação a outros<br />

discursos acessíveis (ORLANDI, 2002).<br />

Isto posto, merece destaque a consideração da heterogeneidade como característica<br />

inerente ao discurso; característica que lhe concede um caráter híbrido. Quer seja:<br />

Se aceitarmos, pois a heterogeneidade como constitutiva do sujeito perpassado<br />

pelo inconsciente, fica mais fácil perceber que todo e qualquer dizer resvala<br />

sentidos inesperados ou até indesejados, conflitos e contradições, desejos<br />

recalcados, faltas que, preenchidas, gerarão sempre outras faltas (CORACINI,<br />

2001, p 193).<br />

Dito de outro modo, ―nenhuma palavra é ‗neutra‘, mas inevitavelmente ‗carregada‘,<br />

‗ocupada‘, ‗habitada‘, ‗atravessada‘ pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente<br />

sustentada‖ (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 27).<br />

Importa-nos ainda registrar outras formas de concepção da alteridade. Em Bakhtin (1992),<br />

este aspecto é tratado em outros termos ─ embora visualizemos diversos pontos de convergência e<br />

46 Esse Outro aqui referido remete-nos a um elemento que não está fora de nós por completo. Ele representa<br />

um exterior que se faz interior. É um dentro que é de fora, uma vez que nossa natureza constitutiva segue<br />

nessa mesa direção. Ora, se o Outro nos constitui, ele acaba por fazer parte de nós.


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ou similaridades entre a já apresentada neste espaço e a ―inaugurada‖ pelo autor. Na concepção<br />

bakhtiniana, a alteridade é inserida numa proposta teórico-conceitual deveras ampla, dentro de uma<br />

perspectiva interacionista da linguagem e seu uso, a partir do binômio interlocutor/alocutário.<br />

Nesse sentido, trabalha-se com uma premissa sociodialógica, segundo a qual ambos os sujeitos<br />

presentes na cena discursiva são agentes efetivamente, não havendo, portanto, espaço para a<br />

passividade. Conforme esta assertiva, os sujeitos estabelecem entre si relações dialógicas que,<br />

mediante o discurso se corporificam e se perfazem em efetivo. Os sentidos, por seu turno,<br />

resultariam de uma construção párea, calcada na co-participação dos indivíduos envolvidos, sendo,<br />

portanto co-construídos.<br />

A heterogeneidade (discursiva) é abordada por Bakhtin (1992) em termos de<br />

multivocalidade ou polifonia discursiva. Esta diz respeito ―às vozes‖ contidas no discurso. Para o<br />

autor, haveria em todo e qualquer ato enunciativo (discurso) a presença de pelo menos duas vozes.<br />

A saber: a voz do ―eu‖ e a voz do ―outro‖ ─ ambos pares iguais na/da interlocução. Arrematando<br />

o que foi posto até aqui, ―na verdade toda palavra contém duas faces. (...) é determinada pelo fato<br />

de que ela é direcionada a alguém. É o produto da interação entre o falante e o ouvinte.<br />

(BAKHTIN, 1992, p. 113)<br />

Considerações adicionais<br />

No percurso trilhado ao longo deste estudo, constatamos que prevalece hoje no campo<br />

teórico que compreende a Análise do Discurso, a Linguística aplicada e os Estudos Culturais, uma<br />

concepção de sujeito múltiplo, detentor de várias identidades. Cada uma delas individual e plural<br />

simultaneamente.<br />

De fato, os argumentos ora relatados nos dão provas de que um novo cenário se configura<br />

na pós-modernidade, alterando, sensivelmente os modos de ser e estar no mundo. É certo que as<br />

reflexões acerca da Identidade não surgiram apenas no ensejo das discussões em torno da pósmodernidade,<br />

no entanto, indubitavelmente, tais questões imbuíram-se de um relevo especial<br />

exatamente nesse momento sócio-histórico marcado por rupturas insidiosas, uma vez que, nada<br />

mais oportuno do que debater (sobre) as identidades num contexto em que elas se corporificam em<br />

múltiplos âmbitos, ganham ares irrestritamente inusitados, se revestem e se travestem de cores e<br />

nuances plurais, encenam e reencenam figuras, formatos, moldes em (des)obediência a referências e<br />

a padrões pré-estabelecidos.<br />

Como vimos, não há mais espaço para se falar em Identidade como entidade una. ―Ao<br />

invés de pensarmos sobre identidade como a fato já concluído, (...) devemos pensar sobre<br />

identidade como uma ‗produção‘, que nunca está completa (...)‖ Hall (2006, p. 222). A identidade,<br />

de qualquer ordem, não é inata, mas construída e reconstruída num movimento constante mediante<br />

práticas discursivas que, por seu turno, se inscrevem em relações de poder (FOUCAULT, 1998)<br />

que as legitimam e lhes concedem sua posição na escala da hierarquia relacional.<br />

Cabe-nos esclarecer que estamos certos de que as discussões e os apontamentos feitos<br />

neste trabalho estão longe de encerrar o debate em torno desta temática, mas, de qualquer modo,<br />

estamos cientes de que cumprimos com afinco nossa modesta proposta de reflexão e que alargamos<br />

− se não os de outros − os nossos próprios horizontes rumo às investigações mais profundas nesta<br />

vertente.<br />

Referências<br />

AUTHIER-REVUZ. J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos.<br />

Campinas, UNICAMP – IEL, v. 19, p. 25-42, Jun./dez., 1990.<br />

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992.


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CORACINI, M. J. ―Autonomia, poder e identidade na aula de língua‖. In: L. Passegi e M. S<br />

Oliveira (orgs.). Linguística e educação: gramática, discurso e ensino. São Paulo: Terceira Margem,<br />

2001.<br />

DESCARTES, René. O discurso do método. Intr. versão e notas Manuel dos Santos Alves. Lisboa:<br />

Livraria Popular Francisco Franco, Ltda., 1984.<br />

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de<br />

Janeiro: Edições Graal, 13 ed. 1998.<br />

_____. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense<br />

Universitária, 2005.<br />

GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Oeiras: Celta, 1994.<br />

HALL. S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006<br />

MOITA LOPES. Luiz Paulo da. Identidades Fragmentadas: A construção discursiva de Raça,<br />

Gênero e Sexualidade em sala de aula. Campinas/ SP: Mercado de Letras, 2002.<br />

SOUZA, O. Fantasias de Brasil. São Paulo: Escuta, 1994.<br />

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 4. Ed. Campinas, São<br />

Paulo: Pontes, 2002.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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AJUDANDO A SUPERAR CONFLITOS: A LITERATURA INFANTIL NO PROCESSO<br />

DE ENSINO-APRENDIZAGEM<br />

Maurício Silva<br />

Universidade Nove de Julho/SP<br />

Márcia Moreira<br />

Universidade Nove de Julho/SP<br />

Resumo: Este artigo procura analisar alguns aspectos básicos da Literatura Infantil, como suas<br />

particularidades estéticas, suas funções práticas e, sobretudo, sua relação com conflitos diversos<br />

da infância e com a educação.<br />

Palavras-chave: Literatura infantil, educação, conflitos, infância<br />

Abstract: This article analyzes some basic aspects of Infantile Literature, detaching its aesthetic<br />

peculiarities, its practical functions, and especially its relation with diverse conflicts of childhood<br />

and the education<br />

Key words: Infantile Literature, Education, conflicts, childhood<br />

A Literatura Infantil, talvez mais do que qualquer outra manifestação cultural, é uma arte<br />

plural. Por isso, pode-se dizer, há várias modalidades de Literatura Infantil, tanto na consideração dos<br />

suportes por meio dos quais ela é veiculada quanto no que diz respeito aos gêneros pelos quais ela<br />

se manifesta. Em relação aos suportes citados, deve-se considerar, antes de tudo, que para a<br />

criança, desde seus primeiros contatos com livro, ele é tido como um brinquedo, motivo pelo qual<br />

se verifica um rápido interesse por parte da criança, que vê no livro mais um componente de seu<br />

diversificado universo dos jogos e das brincadeiras. Isso será tanto mais verdade quanto mais esse<br />

livro apresentar características próximas aos objetos que compõem esse universo, atuando numa<br />

dimensão lingüístico-discursiva e lúdica e sendo recomendável para as crianças que se encontram na<br />

chamada primeira infância (um a três anos), período particularmente propício ao aperfeiçoamento<br />

dos movimentos motores, à sensibilidade tátil, à exploração dos sentidos, à descoberta de formas<br />

concreta e à conquista da linguagem.<br />

Quase tudo o que se disse acerca do livro-brinquedo pode ser dito a respeito do livro<br />

ilustrado, com a diferença de que, neste último caso, concede-se particular atenção aos aspectos<br />

relacionados ao desenvolvimento lingüístico e sensorial da criança, além do incentivo à sua<br />

criatividade e capacidade de abstração. Afinal de conta, como já dissera Nelly Novaes Coelho,<br />

―é pelas imagens que a criança pequena vai podendo estabelecer relações entre o<br />

seu eu e os outros, tornando possível que determinada consciência-de-mundo<br />

passe a integrar seu pequeno mundo interior. Portanto, ilustração não deve ser<br />

mero ornamento dos livros infantis, mas tornar-se instrumento de comunicação‖.<br />

(COELHO, 2000, p. 30)<br />

Há que se destacar, portanto, na consideração do livro ilustrado – mais apropriado às<br />

crianças na fase da pré-alfabetização – os valores da imagem, sua adequação à história narrada, suas<br />

possibilidades de interpretação, sua capacidade de promover maior interação entre a criança e o


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livro. Afinal de contas, entre as qualidades do livro ilustrado encontram-se uma série de fatores<br />

particularmente apropriados ao desenvolvimento de habilidades e competências infantis nessa fase<br />

de formação da criança: ele estimula a atenção visual, facilita a comunicação entre a criança e a<br />

situação contida na história, concretiza relações abstratas presentes nas palavras e nas imagens,<br />

permite a fixação de sensações transmitidas pela narrativa, auxilia no desenvolvimento da<br />

imaginação e da criatividade infantis etc.<br />

Por isso, tanto no que se refere ao livro-brinquedo quanto no que concerne ao livro<br />

ilustrado, de acordo com Maria Antonieta Cunha,<br />

―para (...) crianças pequenas, em quem queremos desenvolver o interesse pelas<br />

histórias (...) é importante a gravura (...) o texto deve ser pequeno para conduzir<br />

quase à observação das figuras. Para essa fase, os livros costumam ser maiores<br />

que o normal, e muitos ganham o formato da personagem principal: um<br />

animalzinho ou uma criança, recortados. Os livros tornam-se até um apelo ao<br />

tato, e são bastante motivadores‖. (CUNHA, 1985, p. 74)<br />

Em relação aos gêneros, poder-se-iam destacar vários tipos diferentes de discursos<br />

literários, como a poesia, que congrega os efeitos da dicção popular ao estudo da sonoridade e do<br />

ritmo, resultando na narratividade simples, na linguagem repetitiva e em outros efeitos estéticos.<br />

Evidentemente, a poesia para criança não está isenta de apresentar, sobretudo na pena de autores<br />

menos criativos, uma faceta indesejavelmente conservadora, manifesta por meio de uma exagerada<br />

intenção educativa, um descritivismo excessivo, o emprego de estereótipos, o uso de uma métrica<br />

regular ou simplesmente uma idealização exagerada. Não é, contudo, o que se recomenda para um<br />

leitor-em-formação como é o caso da criança, já que é justamente nessa fase do desenvolvimento<br />

da personalidade humana que todo ranço de exemplaridade deve ser substituído por uma liberdade<br />

criadora e criativa. Como afirma Maria Antonieta Cunha, ―a poesia, fruto da sensibilidade, visa a<br />

sensibilidade do leitor, a emoção, a pura beleza. De todos os gêneros, deve ser o menos<br />

comprometido com aspectos morais ou instrutivos‖. (CUNHA, 1985, p. 121)<br />

Felizmente, o excesso de moralismo não é o que se verifica na poesia infantil<br />

contemporânea de boa qualidade, a qual, ao contrário da poesia mais tradicionalista, prima pela<br />

valorização da descoberta e da experimentação, revelando uma pedagogia não-moralizadora;<br />

prestigia o desenvolvimento da sensibilidade lingüística da criança, seja explorando a sonoridade das<br />

palavras e do ritmo poético, seja empregando uma linguagem simples e lúdica; valoriza a<br />

investigação sensorial e o domínio da fantasia. Novamente, é a criatividade, aliada à mais pura<br />

emoção infantil que a nova poesia para crianças deve prestigiar:<br />

A literatura infantil ajudando a superar conflitos<br />

―a poesia para crianças, assim como a prosa, tem que ser, antes de tudo, muito<br />

boa! De primeiríssima qualidade!!! Bela, movente, cutucante, nova,<br />

surpeendente, bem escrita... Mexendo com a emoção, com as sensações, com os<br />

poros, mostrando algo de especial ou que passaria despercebido, invertendo a<br />

forma usual de a gente se aproximar de alguém ou de alguma coisa‖.<br />

(ABRAMOVICH, 1995, p. 67)<br />

Não é novidade o fato de a literatura infantil contemporânea tratar de assuntos diversos,<br />

podendo-se dizer que, nesse sentido, ela adquiriu uma nova dimensão, sobretudo ao abordar temas<br />

que vão da sexualidade à morte, dos conflitos pessoais aos dramas sociais. Nesse contexto, não<br />

causa espanto o fato de a fantasia ceder, cada vez mais, espaço para a ficção realista, com um claro<br />

traço social e, muitas vezes, pouco interessada em fazer concessões a uma pedagogia protecionista e<br />

moralizante, fazendo com que a literatura infantil assuma, plenamente, seu papel de agente de<br />

formação da criança.


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O livro de literatura infantil, embora a rigor não funcione como uma prática terapêutica,<br />

pode sem dúvida alguma amenizar o sofrimento da criança, criando mecanismos para enfrentar<br />

problemas complexos e dolorosos até mesmo para os adultos (PETIT, 2009). É certo que é apenas<br />

na idade adulta que a criança terá uma compreensão do significado da própria existência no mundo,<br />

mas bem antes disso, a literatura já desempenha um papel de auxiliá-la na construção da própria<br />

identidade. (BETTELHEIM, 1980)<br />

Considerada até pouco tempo um gênero literário secundário, a literatura infantil passou a<br />

ter uma importância incomensurável na atualidade, agindo ainda na construção da própria cidadania<br />

da criança, apesar de serem minoritários os livros que abordem assuntos críticos, exatamente pelo<br />

fato de a valorização da literatura infantil como facilitadora de diálogo e formadora de consciência<br />

ser relativamente novo. Por esta razão, verifica-se certa carência no mercado editorial de obras que<br />

tratem de temas considerados tabus para as crianças. Desse modo, tanto o educador quanto os pais<br />

têm oportunidade de trabalhar conflitos infantis a partir de histórias que estimulem o imaginário<br />

infantil, levantando a criança ao autoconhecimento e ajudando-as na melhoria de sua autoestima,<br />

numa tarefa de superar tabus e fobias da sociedade contemporânea. Nelly Novaes Coelho lembra<br />

ainda que<br />

―identificada com os heróis e as heroínas do mundo maravilhoso, a criança é<br />

levada, inconscientemente, a resolver sua própria situação – superando o medo<br />

que inibe e ajudando-a a enfrentar os perigos e as ameaças que sente à sua volta<br />

e assim, gradativamente, poder alcançar o equilíbrio adulto.‖ (COELHO, 2000,<br />

p. 55)<br />

Estudando a fundo a questão da interface ensino-aprendizagem, Vygotsky acreditava que<br />

tal processo se concretizava por meio das interações nos diversos contextos sociais, já que, no seu<br />

ponto de vista, a criança assimilaria melhor os conhecimentos por meio das relações com os outros.<br />

Vygotsky acreditava, portanto, que o ambiente transforma o sujeito e o sujeito transforma o<br />

ambiente (LA TAILLE, 1992). Essa interação é, na verdade, mediada, na sala de aula, pelo<br />

professor, fazendo com que ele passe de mero transmissor da disciplina para a condição de alguém<br />

que transmita o conhecimento de forma a estimular o senso crítico da criança. (RIOS, 2008)<br />

Nesse contexto, a literatura torna-se instrumento fundamental do processo ensinoaprendizagem,<br />

desempenhando um papel próximo do que Vygotsky defendia. Evidentemente, fazse<br />

necessário não só mediar esse papel, mas também incentivar o contato da criança com obras que<br />

abordem temas considerados tabus (CUNHA, 1985), que possam ser um ponto de partida para a<br />

iniciação da criança no mundo real em que vivemos e com o qual ela irá se deparar quando adulto.<br />

Conclusão<br />

Embora não seja novidade se falar na propriedade da literatura infantil em ajudar a superar<br />

conflitos diversos, nada disso prescinde dos pressupostos estéticos, por assim dizer, que<br />

fundamentam a própria natureza dessa literatura. Não há, em última instância, literatura sem aquele<br />

sentido secreto que ultrapassa palavras e frases de que nos fala Clarice Lispector em um de seus melhores<br />

romances; (LISPECTOR, 1977); tampouco pode haver literatura Infantil sem aquele prazer espiritual<br />

de que nos fala Cecília Meireles. (MEIRELES, 1979, p. 23)<br />

São exatamente os chamados aspectos estéticos que enformam a Literatura Infantil os<br />

responsáveis pela trama narrativa, pelo discurso ficcional, pela variedade de personagens e pelo<br />

arcabouço temporal que, no conjunto, tornam um texto essencialmente literário.<br />

Dessa forma, aliando ética e estética, sem prescindir do contexto pedagógico, a literatura<br />

infantil ultrapassa os seus próprios limites e passa a desempenhar um papel fundamental na<br />

supressão dos conflitos próprios do universo infantil.


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Referências Bibliográficas<br />

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil. Gostosuras e Bobices. S. Paulo, Scipione, 1995.<br />

BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.<br />

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática. São Paulo, Moderna, 2000.<br />

CUNHA, Maria Antonieta Antunes. Literatura Infantil: Teoria e Prática. São Paulo, Ática 1985.<br />

LA TAILLE, Yves de (org.). Piaget, Vygostsky, Wallon: Teorias Psicogenéticas em Discussão. São Paulo,<br />

Summus, 1992.<br />

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977.<br />

MEIRELES, Cecília. Problemas da Literatura Infantil. São Paulo, Summus, 1979.<br />

PETIT, Michèle. A Arte de Ler ou Como Resistir à Adversidade. São Paulo, Editora 34, 2009.<br />

RIOS, Terezinha Azeredo. Ética e Competência. São Paulo, Cortez, 2008.<br />

Avaliado em 15/01/2011<br />

Recebido em 15/02/2011


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A POESIA SOCIAL NO ITINERÁRIO POÉTICO DE<br />

CARLOS ALBERTO DE ASSIS CAVALCANTI 47<br />

Miryan Jussara Leite Lopes 48<br />

Carlos Alberto de AssisCavalcanti 49<br />

Resumo: A partir do exame do livro Itinerário Poético, obra que reúne poemas de Carlos Alberto<br />

de Assis Cavalcanti, mostramos a poesia social desse poeta que fotografa as injustiças sociais e se<br />

irmana com os menos favorecidos, denunciando a fome, a corrupção, a violência, o descaso com o<br />

meio ambiente, o desemprego. Fazendo da poesia uma tribuna onde a oratória se impõe pela beleza<br />

da sinuosidade poética, esse poeta se comporta à maneira de Drummond, Bandeira, Gullar, entre<br />

outros, com os quais esse trabalho mantém uma ponte para fundamentar no plano teórico as<br />

aproximações artísticas e as equivalências estruturais e temáticas que o autor objeto desse estudo<br />

tem por marco de influência.<br />

Palavras chave: Literatura; Modernismo; Poesia; Crítica.<br />

Abstract: From the examination of the book Poetic Itinerary, a work that brings together poems of<br />

Carlos Alberto de Assis Cavalcanti, we show that the social poetry poet who shoots the social<br />

injustices and sister with the poor, denouncing the hunger, corruption, violence The neglect of the<br />

environment, unemployment. Making poetry a platform where the oratory is imposed by the<br />

sinuous beauty of poetry, this poet is behaving the way for Drummond, Bandeira, Gullar, among<br />

others, with which this work has a bridge to support the theoretical approaches and artistic<br />

equivalences structural and thematic object that the author of this study is March of influence.<br />

Keywords: Literature; Modernism; Poetry; Critique.<br />

Introdução<br />

O trabalho se pautou em examinar aspectos biográficos e literários de Carlos Alberto de<br />

Assis Cavalcanti, poeta, acadêmico, intelectual, conhecido nacionalmente por seus poemas de<br />

cunho social, os quais vêm angariando prêmios pelo Brasil afora. O texto, resultado de uma<br />

pesquisa qualitativa, se divide em dois momentos, e nela se pretende mostrar a importância da<br />

poesia social como instrumento de desenvolvimento intelectual e crítico da realidade social<br />

brasileira, tendo por foco a poesia de Carlos Alberto.<br />

Num primeiro momento fazemos um relato de cunho biográfico sobre Carlos Alberto de<br />

Assis Cavalcanti, sua vida e obra, visto que todo texto literário é melhor compreendido quando<br />

conhecemos o autor, o contexto que o inspirou e o meio onde se desenvolveu, observando assim a<br />

influência que sua obra recebeu do contexto familiar, cultural, social e intelectual.<br />

Um segundo momento trata da Poesia Social Registrada no Itinerário de CAAC 50,<br />

enfatizando a poesia social e sua importância como arma de denúncia, servindo assim ao público<br />

alvo, os sem-vez e sem-voz, o povo brasileiro marginalizado e marcado pelo estigma do<br />

subdesenvolvimento.<br />

47 Este artigo é parte integrante de uma pesquisa realizada para desenvolver uma monografia para conclusão<br />

do curso de Letras da<br />

48 Graduada em Letras pela Autarquia De Ensino Superior De Arcoverde – Aesa/Centro De Ensino Superior<br />

De Arcoverde – Cesa, e professora da Educação Básica.<br />

49 Professor da Autarquia De Ensino Superior De Arcoverde – Aesa/Centro De Ensino Superior De<br />

Arcoverde – Cesa, e orientador da pesquisa.<br />

50 Passamos a nos referir ao professor Carlos Alberto de Assis Cavalcanti como CAAC.


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Concluímos entendendo que a poesia de CAAC é um alerta, um pedido de socorro de uma<br />

sociedade que precisa acordar e lutar para reagir contra o mal que ela mesma causou e da qual se faz<br />

refém.<br />

1. Carlos Alberto de Assis Cavalcanti: eis que nasci um poeta social<br />

Nascido aos 28 dias de fevereiro de 1955, na pequena cidade da Pedra, interior de<br />

Pernambuco, situada a aproximadamente 255,4 km da capital Recife, Carlos Alberto de Assis<br />

Cavalcanti é o primogênito do casal Gilberto de Assis Cavalcanti e Maria Djanira Assis Cavalcanti.<br />

Teve uma infância igual a dos meninos do seu tope: correr pela rua, jogar pião, bila (bola de<br />

gude), brincar de cavaleiro, montado num galho de ―canafista‖, planta de fácil acesso, cujo galho ele<br />

serrava decorativamente, e ainda pendurava fitas (azul ou vermelha) na cabeça do bicho, e saía<br />

esbanjando ares de vaqueiro, influência das tradicionais cavalhadas interioranas, que reunia um<br />

grupo de cavaleiros para disputar uma competição, onde um grupo (os azulados) enfrentava outro<br />

(os vermelhos). O alvo era uma argola que deveria ser alcançada e içada pela lança do cavaleiro em<br />

movimento.<br />

Porém, não era só brincadeira a vida do pequeno futuro poeta, Carlos sofria de asma que o<br />

pegava durante a noite e não o deixava dormir. A asma lhe tirou certas liberdades infantis, como<br />

tomar banho de chuva, tomar sorvete (só lhe era permitido comer a casca... ordem expressa de<br />

Dona Djanira). No entanto, a doença o levaria na vida adulta e literária a identificar-se com grandes<br />

poetas que sofreram estigma parecido, tal ocorrera com Manuel Bandeira. Vejamos como Carlos<br />

Alberto descreve essa fase ruim em ―Poemasmático‖:<br />

Eu me lembro do canto<br />

sinistro da asma<br />

que como um fantasma<br />

pousava em meu peito à noite,<br />

chiava feito porta velha<br />

de casa mal-assombrada<br />

e não me deixava dormir direito;<br />

a noite comprida,<br />

em silêncio relevante,<br />

partia dormente<br />

em busca do dia<br />

que eu também esperava,<br />

pra escapar daquela sinfonia<br />

desafinada e sufocante.<br />

(ASSIS, 2005, p. 76).<br />

O poema intertextualiza-se com Pneumotororáx de Bandeira e revela o suplício de CAAC<br />

durante a infância. Certamente o seu gosto pelos poemas de Manoel Bandeira seja uma<br />

identificação tanto com os problemas respiratórios quanto com a temática social que ambos<br />

possuem.<br />

Quanto à vida escolar, Carlos era aluno da Escola Amália Cavalcanti, uma escolinha bem<br />

em frente à sua casa, onde cursou o Primário. Em referência a essa época ele mencionou no poema<br />

―Reminiscências‖:<br />

Do alto se avista toda a cidade:<br />

o Hospital, a Prefeitura;<br />

a escola da minha primeira leitura;<br />

a casa onde morou d. Florisa Vaz


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que a muitos ensinou o abc<br />

com maternal paciência e saber<br />

e a dedicação de quem foi capaz<br />

de ensinar a escalar um monte<br />

mais alto e desafiador.<br />

(ASSIS, 2005, p. 91)<br />

Durante a infância, Carlos Alberto assistia a declamação de cordéis e repente nas feiras<br />

livres da Pedra, quando tinha contato com José Firmo Cavalcanti, sonetista célebre da pequena<br />

cidade, que influenciou suas trovas e sonetos. Carlos chegou a dedicar um de seus poemas a José<br />

Firmo, intitulado ―Mestre e Pupilo‖, que revela seu apreço ao sonetista que, já cedo, lhe influenciou<br />

poeticamente:<br />

[...] Hoje, ao ler teus sonetos e poemas<br />

pressinto que teu verso me desperta<br />

o versejar, também, nobre poeta,<br />

pra declamar em versos esses temas<br />

que inspirado deixaste como oferta<br />

ao pupilo que o mestre tem por meta. [...]<br />

(ASSIS, 2005, p.114)<br />

O tio de Carlos Alberto era pintor, pianista e poeta, sua avó também era dada a trabalhos<br />

manuais, podemos observar, então que o ambiente foi bastante propício ao desenvolvimento<br />

artístico e intelectual de CAAC.<br />

Sua adolescência não mudou muito em relação à infância, nessa fase passou a ser aluno do<br />

Ginásio Amália Cavalcanti, onde aprendeu a admirar a Língua Portuguesa e a ler poesias de Castro<br />

Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac, entre outros. Começava aí sua intimidade com os poetas<br />

clássicos. A asma passa a não incomodá-lo tanto, chegando a dar uma trégua.<br />

Para cursar o Segundo Grau, Carlos foi morar com seus avós em Arcoverde - PE, estudou<br />

os dois anos iniciais do Segundo Grau no Colégio Carlos Rios e durante esse período foi aprovado<br />

no Concurso dos Correios para o cargo de monitor postal, e por viajar muito em função do<br />

trabalho, não terminou os estudos no Carlos Rios, o término de terceiro ano foi realizado em escola<br />

supletiva.<br />

Carlos sai dos Correios em 1981. Em seguida começa sua produção literária escrevendo<br />

para os jornais de Arcoverde na coluna Momento Literário, no Jornal do Comércio e no Diário de<br />

Pernambuco. Ainda nessa década, passa a trabalhar na Secretaria do Colégio Onze de Setembro,<br />

por indicação do Pastor Israel Guerra, e é aí que conhece Jaci, sua esposa e companheira, grande<br />

incentivadora e ―promoter‖. Carlos e Jaci já eram membros da Igreja Batista de Arcoverde, porém<br />

não mantinham muito contato, passando então a ter mais aproximação a partir de sua entrada no<br />

Onze de Setembro. Por esse tempo, começou o Curso de Letras na então Faculdade de Arcoverde,<br />

o que veio a concluir em 1986.<br />

Em 1986, quando terminou o curso de Letras na Autarquia de Ensino Superior de<br />

Arcoverde – AESA. Com a realização do concurso do Estado para professor, em 1989, no qual foi<br />

aprovado, passou a lecionar na Escola Industrial de Arcoverde.<br />

O fato de cursar Letras o faria ter mais contato com o mundo literário e desenvolveria<br />

ainda mais sua sensibilidade poética pelas leituras, pela intimidade maior com a Literatura Brasileira<br />

e os ensinamentos de José Rabelo, o qual era filiado ao mesmo partido político, advogado


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excepcional e apaixonado pela Literatura Sertaneja, Carlos o descreve como a voz do povo no<br />

soneto: ―A Força do Povo‖: ―Do repente de São José do Egito, / fez seu mote, seu hino, reza e<br />

rito, / divulgando a cultura sertaneja‖ (2005, p. 113).<br />

Em 1990, casa-se com Jaci, e com a intensificação das atividades intelectuais no magistério,<br />

começa a participar de concursos literários, angariando prêmios pelo Brasil afora.<br />

Em 2004, publica seu primeiro livro: Itinerário Poético, tão esperado pelos seus amigos e<br />

apreciadores e sempre apoiado por Jaci, Carlos recebe, da AESA, o seu ―maior prêmio literário‖,<br />

palavras suas na noite de apresentação do livro no Auditório da Autarquia. O livro foi editado pela<br />

Editora Manufatura. Livro que lhe rendeu Menção Honrosa no Concurso Nacional de Poesias da<br />

Academia Pernambucana de Letras, em 2001. Em 2005, é aprovado na seleção de mestrado da<br />

UFPE, em Teoria da Literatura, desligando-se dos afazeres de sala de aula para dedicar-se à<br />

pesquisa do tema de sua dissertação: A Atualidade da Literatura de Cordel.<br />

Atualmente, Carlos Alberto de Assis Cavalcanti é professor universitário e Delegado da<br />

União Brasileira de Trovadores – UBT, no município de Arcoverde, é membro Correspondente da<br />

Academia Cachoeirense de Letras – Cachoeiro do Itapemirim – ES; Academia de Letras Rio –<br />

Cidade Maravilhosa, RJ; e da Academia de Letras e Artes de Ponta Grossa – PR.<br />

2. A poesia social registrada no itinerário<br />

Maria do Socorro de Assis Monteiro, mestra em Teoria da Literatura pela UFPE, em orelha<br />

do Itinerário Poético, descreve a poesia de Carlos como um protesto, um protesto político-social,<br />

sendo também um protesto artístico e por isso mesmo mais convincente, pois a arte tem o poder<br />

de ir de encontro à alma e de sensibilizá-la.<br />

Carlos fotografa assim a fome, a seca, a violência, o desemprego, o descaso com a infância,<br />

a impunidade, a corrupção, o racismo, fotografando o que não queremos ver, mas que precisamos<br />

ver para mudar, para transformar esse país em um país realmente democrático e envolvido com seu<br />

povo.<br />

POEMANOTÍCIA é um exemplo do protesto social contra a falsa democracia do Brasil,<br />

onde o rico fica cada vez mais rico e o pobre, miserável:<br />

O sol nascente<br />

acorda o morro<br />

dormente<br />

de sono-sonhos<br />

sob o forro<br />

de papel jornal.<br />

Os cães ladram<br />

e a caravana passa<br />

enchendo a lotação.<br />

Manhã fria,<br />

Bóias-frias<br />

à procura da bóia nossa<br />

de cada dia.<br />

No planalto,<br />

Os altos planos<br />

dos homens baixos<br />

de gravatas<br />

engavetam


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a lei vigente<br />

sob a incúria<br />

da impunidade<br />

que ofusca o sol da liberdade<br />

num eclipse repentino.<br />

Quebra-se o decoro parlamentar<br />

pelo silêncio clandestino<br />

das negociatas<br />

dos homens plenos<br />

de bravatas.<br />

Boas-vidas<br />

à procura da vida boa<br />

de cada dia.<br />

No plenário,<br />

mais salário...<br />

no tesouro,<br />

menos erário;<br />

na cúria, mais injúria.<br />

Cai a noite<br />

sobre o morro;<br />

recolhe-se o povo.<br />

Num barraco da esquina,<br />

sob a luz da lamparina,<br />

um rádio anuncia:<br />

―Em Brasília, dezenove horas...‖<br />

Os cães ladram...<br />

(ASSIS, 2005, p. 14-15)<br />

O poema narra a sociedade brasileira na sua mais pura realidade, o favelado em seu morro,<br />

dormindo em jornal, cheio de sonhos e sem nem uma esperança de concretizá-los, faz ―bico‖ para<br />

ter o que comer. Enquanto isso, nas esferas do Poder Público, onde se deveria trabalhar a máquina<br />

administrativa para o povo, acontece o contrário.<br />

A impunidade aos colarinhos brancos, as CPIs da vida brasileira que não põem rico na<br />

cadeia, o desvio de verba destinada à saúde, à educação, à segurança do brasileiro vai direto para os<br />

paraísos fiscais dos ―boas-vidas‖. O poema denuncia uma realidade marcada pela contradição de<br />

um país cheio de riquezas, dividido paradoxalmente em classes sociais desiguais.<br />

Faz o leitor refletir: onde está o ―sol da liberdade‖, tão cantado no maior símbolo nacional,<br />

se o brasileiro é escravizado pela pobreza, pela falta de oportunidades, vivendo sem dignidade, sem<br />

acesso ao básico?<br />

É esse ―gênero poético‖ que Ferreira Gullar idealizou quando rompeu com o Concretismo<br />

em 1959, publicando no Jornal do Brasil um manifesto propondo uma poesia social, mais<br />

comunicativa, voltada para os problemas do país e reagindo contra o excesso formal do movimento<br />

concreta do qual participara.<br />

A poesia social, poesia de protesto, de resistência, é a arma do poeta e de seus co-autores,<br />

os leitores, os quais se unem ao mestre para reivindicar o melhor para os concidadãos sem-voz e<br />

sem-vez.<br />

O poeta deve ser protestante, deve se prestar a fazer esse papel, é sua função-mor, por<br />

intelectual que é. Além do mais, se não o fizer, quem o fará? Assim o fizeram Chico Buarque,


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Ferreira Gullar, Gilberto Gil, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes e tantos<br />

outros. ―Acho que a literatura, tal como as artes plásticas e a música, é uma das grandes consolações<br />

da vida, e um dos modos de elevação do ser humano sobre a precariedade da sua condição‖<br />

(DRUMMOND, 2004, folha de rosto).<br />

Carlos faz, portanto, o seu papel e, tal qual Drummond, utiliza o poema como meio de<br />

consolação da vida. ―Perdidos e Achados‖ é um exemplo da arte-denúncia, onde a precariedade do<br />

ser humano se revela verdadeiramente.<br />

No meio do caminho<br />

tinha uma bala perdida<br />

à procura de achar a morte;<br />

no meio do caminho<br />

tinha uma vida perdida<br />

à procura de achar a sorte;<br />

no encontro fatal,<br />

o desfecho mortal:<br />

um corpo vai ao chão<br />

levando a ilusão<br />

e a vida anônima;<br />

de onde partiu<br />

o tiro certeiro<br />

ninguém viu...<br />

janelas fechadas,<br />

bocas fechadas,<br />

a coragem sumiu<br />

com a mesma rapidez<br />

com que o gatuno fugiu<br />

do xadrez.<br />

E agora José?<br />

de quem será a vez?<br />

(ASSIS, 2005, p. 18)<br />

O poema faz intertexto com os poemas: ―No meio do caminho‖ e ―José‖ de Drummond,<br />

intertexto esse que ganha novos significados, pois ―toda produção literária transcende as fronteiras<br />

do explícito e do implícito e nos guia necessariamente para o não-limite‖ (SILVA, 2003, p. 51). O<br />

novo significado ou o ―não-limite‖ está em denunciar a violência, mal constante da sociedade<br />

moderna.<br />

O poema questiona a violência urbana, o descaso com o próximo, chamado no poema de<br />

anônimo, CAAC foi preciso ao referir-se assim, pois o leitor-crítico denotará o descaso e medo que<br />

a palavra revela.<br />

Descaso, porque com as grandes distâncias, o aumento populacional, o trabalho e os<br />

afazeres cotidianos, as pessoas passaram a se afastar. Hoje são poucos os que conhecem os seus<br />

vizinhos. E denota medo, porque, por não se conhecerem mais, as pessoas desconfiam umas das<br />

outras e têm medo de se envolverem com os ―problemas alheios‖. Esse medo, também pode ser o<br />

medo de não ter coragem de ajudar o outro e assim sofrer retaliações.<br />

―Perdidos e Achados‖ também chama a atenção para os problemas do sistema<br />

penitenciário brasileiro, o qual está cada vez mais precário, ineficaz e incompetente em sua função.<br />

Cadeias superlotadas, agentes despreparados... A sociedade torna-se refém de si mesma, de seu<br />

crescimento, de suas desigualdades sociais.


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Encontramos no Itinerário Poético, ―Novos Tempos‖, poema que tem a mesma<br />

identificação temática, a violência ―sinal de modernidade‖:<br />

Antigamente,<br />

por elegância,<br />

se tirava o chapéu<br />

em cumprimento;<br />

hoje, por arrogância,<br />

se arranca o pescoço<br />

a velho e moço<br />

sem pedir licença;<br />

é a modernidade<br />

em alvoroço<br />

amputando a tradição<br />

(e o pescoço) pela mão<br />

da violência<br />

que faz a cidade<br />

refém da sentença<br />

daqueles que julgam<br />

que o crime compensa.<br />

(ASSIS, 2005, p. 28)<br />

Na poesia social de CAAC, observamos também uma constante preocupação ambiental, há<br />

no seu livro um protesto a favor da natureza, em sua fauna e flora. Essa temática está registrada em<br />

―Poemeto Desmatado‖, ―Último Vôo‖, ―Pó(ema)‖, ―Metamorfose Nuclear‖, entre outros.<br />

Passaremos agora à reflexão de um deles:<br />

Último Vôo<br />

Suave voava a ave<br />

volteando o céu azul<br />

com suas acrobacias aladas;<br />

a cada movimento<br />

desenhava figuras geométricas<br />

sob o comando de suas asas,<br />

ágeis pincéis exóticos.<br />

No solo, o caçador,<br />

peçonhento predador,<br />

caça a ave,<br />

cassa a liberdade,<br />

caça a dor.<br />

Do seu fuzil<br />

sai voando<br />

em retilíneo<br />

movimento,<br />

a antiave<br />

pelo céu cinzento<br />

de pólvora.<br />

No seu vôo mortífero,<br />

cumpre o seu desígnio<br />

e devora<br />

a vida da ave<br />

que desaba para o chão<br />

como uma nave desgovernada.


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O caçador<br />

recolhe a presa<br />

como se fosse um troféu.<br />

Menos uma ave no céu,<br />

Mais um crime contra a natureza.<br />

(ASSIS, 2005, p. 44 - 45)<br />

O autor, no início do poema, ressalta a beleza da ave e sua liberdade, trazendo ao<br />

imaginário do leitor os movimentos do pássaro e as formas que o mesmo faz no céu, depois mostra<br />

o homem-predador, predador que mata pelo simples prazer de acabar, de dar fim.<br />

Para provocar a sensibilidade do leitor, Carlos descreve o momento crucial do texto, o<br />

desferimento da bala no pobre animal que sem escapatória perde sua vida em favor do egoísmo do<br />

homem-predador.<br />

É o próprio homem, quem destrói o seu bem mais precioso, a natureza. Em pleno século<br />

XXI, já estamos sofrendo as conseqüências desse egoísmo. O aquecimento global, as espécies em<br />

extinção, a poluição atmosférica, são exemplos da devassidão humana em relação meio ambiente.<br />

Considerações finais<br />

Uma obra literária, seja lá em que época se publique, deve não só preservar o belo, o<br />

encantatório, que é a finalidade do texto poético em prosa e/ou verso, (pois se sabe que um bom<br />

romance também traz, no seu formato em prosa, relatos poéticos de muita sensibilidade, assim<br />

também como se sabe que, a despeito do formato verticalizado, nem todo texto nesse modo é<br />

poesia), portanto, independe da estrutura propriamente dita qualidade do que é poético.<br />

Mas além de ser poético, de causar um sentimento de prazer pelo belo, a obra há que<br />

também indicar saídas para as grandes questões que instigam a existência humana todo tempo. E<br />

isso CAAC faz, com certeza, no Itinerário Poético. Ele convida a todos para traçarem, juntos, um<br />

outro itinerário, mais ousado e mais esperançoso. As análises aqui realizadas apontam essa<br />

realidade, e até demonstram que o olhar interiorano do poeta está antenado para além dos<br />

horizontes caseiros. Ele olha bem mais à frente e desafia a outros que dêem continuidade a esse<br />

olhar, seja pela leitura, seja pela reflexão.<br />

Referências<br />

ALVES, Ieda Maria. Neologismo criação Lexical. 2 ed. São Paulo, Editora Ática: 1994.<br />

ARISTÓTELES. A poética. Traduzido por: Lígia M. da Costa. São Paulo: Ática, 2006.<br />

ANDRADE, Carlos Drummond, Antologia Poética. 53 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.<br />

CAVALCANTI, Carlos Alberto de Assis. Itinerário Poético. João Pessoa: Manufatura, 2005.<br />

______. Da prosa poética e da poética prosaica. Revistidéias, Arcoverde, v. 1, nº 2, p. 89-94, jun.<br />

2002.<br />

CEGALLA, Domingo Paschoal. Minigramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Nacional,<br />

2003.<br />

FERNANDES, Aparício. A Trova no Brasil: história e antologia. [s.l.]: Artenova, 1972.<br />

LEITE FILHO, Aleixo. Cartilha do Cantador. Recife: CEPE, 1985.<br />

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 4 ed. São Paulo: Cultrix, 1985.<br />

POLITO, Ronald. Notas sobre a poesia no Brasil a partir dos anos 70. Revista Cacto, São Paulo, nº<br />

2, p. (?), 2003.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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PROVOCAÇÕES ÉTICO-FILOSÓFICAS A RESPEITO DA<br />

FORMAÇÃO HUMANA DO PROFESSOR.<br />

51Pedro Braga Gomes<br />

52Ana Cristina Santos Siqueira<br />

Resumo: Este artigo consiste com algumas provocações éticas e filosóficas a respeito da formação<br />

humana do professor, um caminho para se promover o pensar estético, científico e filosófico na<br />

Educação.<br />

Palavras Chave: Educação, Estética, Ética e Filosofia.<br />

Abstract: This article consists of some challenges with ethical and philosophical questions about<br />

the formation of the human teacher, a way to promote thinking aesthetic, scientific and<br />

philosophical in Education.<br />

Keywords: Education, Aesthetic, Ethics and Philosophy.<br />

Um dia virá em que só terá um único pensamento:<br />

A EDUCAÇÃO<br />

F. Nietzsche, Fragmentos póstumos (1875).<br />

O trabalho profissional, aquele que escolhemos por deferência, interesse ou por qualquer<br />

outra circunstância, representa uma escolha pessoal e faz parte integrante da nossa vida. Representa<br />

ainda os mecanismos sem que tenhamos a consciência de desenvolvimento de atividades,<br />

comportamentos e responsabilidades sociais afetivas que exerçam influências sobre nós mesmos e<br />

sobre todas as pessoas que nos cercam. Essa é a interação que se processa à própria evolução do ser<br />

humano e a sociedade. Pois nunca como antes, a educação foi tão decisiva para construir uma<br />

economia próspera e uma democracia e uma democracia participativa, fundada no pacto dos<br />

cidadãos.<br />

A transformação humana se processa às 24 horas do nosso dia. Ao acordarmos, no contato<br />

com ambiente familiar, na atividade profissional, nas ruas, com os amigos e até quando dormimos<br />

processamos os nossos sonhos.<br />

Na sociedade contemporânea, a televisão tornou-se fonte efetiva para absorção de<br />

informação, entretenimentos e valores, alterando os padrões de comportamento, as formas de<br />

comunicação, de aprendizagem e de percepção do mundo. Dessa forma, torna-se necessário que os<br />

educadores tenham uma formação que lhes proporcione condições de contribuir para o<br />

entendimento de uma sociedade cada vez mais comunicacional e informatizada.<br />

O processo de mudança e desenvolvimento das finalidades propostas para todos os níveis<br />

do Ensino tem trazido muitos desafios aos educadores de hoje, principalmente quando o<br />

51 Filósofo e Professor. Mestre em Educação. Especialista em Bioética e Biotecnologia e Ciência da Religião.<br />

É professor da rede estadual de São Paulo. É Professor da Faculdade de Educação e Medicina da UNIMES.<br />

É membro do núcleo de pesquisa Pedagogia do Sujeito da Universidade Cidade de São Paulo.<br />

52 É Professora de Arte. Mestre em Educação. Atualmente está Professora Coordenadora de Oficina<br />

Pedagógica (PCOP) da Diretoria de Ensino Leste 2. É membro do núcleo de pesquisa Pedagogia do Sujeito<br />

da universidade de mesmo nome.


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relacionamos a formação do professor. O desenvolvimento tecnológico deixa a maioria dos<br />

educadores na inércia. A informatização e a automação criaram um cenário de competição<br />

globalizada, que tanto aos produtores de tecnologia como seus consumidores, exigindo-se cada vez<br />

mais competências cognitivas em massa. Superando o axioma do marxismo de que o avanço da<br />

tecnologia desqualificaria a mão-de-obra. Tais movimentos chegam ao mesmo tempo para os<br />

alunos e professores.<br />

Enfrentamos um período, no qual há urgência de refletirmos sobre a formação, do<br />

profissional de educação que carece da aprendizagem para ser preceptor do currículo escolar.<br />

Conhecemos bem as dificuldades de apreensão do contemporâneo e já discutimos sobre a<br />

experiência, do sujeito, um Ser que aprende, desenvolve-se e modifica-se e afirmando-se como<br />

sujeito livre e ativo, pois modificar-se é o começo para a sabedoria. Como resultado de uma<br />

reorganização de categorias e relações, ou seja, uma forma de conhecimento, bem como a<br />

autocompreensão, através de estudos acadêmicos. Essa reflexão, inevitavelmente, emerge a urgência<br />

de formação superior voltada para o incentivo à pesquisa. Sendo condição prevalente para o<br />

desenvolvimento econômico.<br />

Para Steven Connor (1993 p.11-26) que discorre sobre introdução a teorias do<br />

contemporâneo, levanta questões que nos fazem perceber a importância de compreendermos a<br />

modernidade para entendermos a pós-modernidade, no sentido de termos de pensar a relação entre<br />

experiência e conhecimento, presente e passado, como termos e estruturas deles mesmos derivados:<br />

―Se aquilo que a teoria cultural herdou do modernismo for um conjunto<br />

particular de relações conceituais entre experiência e conhecimento, essas<br />

relações não vão tomar, no interior do conhecimento, forma meramente<br />

abstrata. Quer dizer, elas não se relacionam apenas com questões ou conceitos<br />

acadêmicos os abstratamente filosóficos, vinculando-se também, e de modo<br />

crucial, com as formas sociais e institucionais que essas relações abstratas ou<br />

conceituais tomam e a partir das quais são operadas. O desenvolvimento de<br />

estruturas e instituições de conhecimento no final do século XX, universidades e<br />

instituições de ensino superior, escolas, organizações editoriais e vários<br />

ambientes de produção cultural, tem uma ligação crucial com as formas de<br />

conhecimento desenvolvidas no âmbito dessas instituições e em relação com<br />

outras formas de conhecimento e de representação‖.<br />

O que se quer dizer com isto, é que ao vivenciar a experimentação do conhecer e aprender<br />

a estruturar os caminhos da pesquisa, é que se pode visualizar os diversos meios de conduzir o<br />

pensamento no processo de aprender a ensinar a aprender.<br />

Em virtude desta situação, é necessário todo um processo de preparação e de elaboração de<br />

métodos lógicos (habilidades intelectuais de interpretação, análise e critica), é de competência do<br />

pesquisador que torne isto possível na educação, pois, se assim não for feito, não estamos<br />

transformando, mas manipulando e mantendo o ―status quo‖.<br />

Devemos fazer do ambiente da pesquisa em qualquer nível, uma arte de colocar questões<br />

em cada domínio do saber e da ação. Uma arte de argumentação capaz de permitir aos seres<br />

humanos resgatar todo o pensamento; abordando-se assim toda e qualquer questão segundo a<br />

perspectiva do universal. Pois, a realidade é um todo complexo e implica uma compreensão que<br />

busque entender, cada vez mais, esta complexidade, aguçando, com isso nossos receptores, a<br />

manifestação do desejo de saber sempre mais. Quanto mais soubermos sobre o mundo mais<br />

poderemos dominá-lo e não o contrário.<br />

E qual o outro meio onde a ―razão‖ pode ser acionada na construção fundamental para a<br />

superação da dominação? Não existe um outro local onde o cérebro possa assumir o papel da


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intelectualidade (pesquisador – academia) seja tão enfatizada, nem outro lugar onde o educando, a<br />

escola e a própria sociedade seja tão ardente para a busca das Utopias (sonhos) universais, a pujança<br />

mestra do vanguardismo. Este é o terreno que a educação e a teoria educacional caminham.<br />

A teoria da educação, em geral baseia-se na noção de que o conhecimento e o saber<br />

constituem fonte de libertação, esclarecimento e autonomia. A teoria educacional crítica, em<br />

particular acredita que os presentes entraves educacionais pelos ―arranjos‖ por objetivo de interesse<br />

e de poder, transmitem saberes e conhecimentos contaminados, pela ideologia, idéias estas que são<br />

transmitidas por meio dos veículos de comunicação social que tem se espalhado pelo mundo,<br />

agregados ao processo de globalização econômica e financeira.<br />

Com objetivos claros de criar os caminhos na busca da verdade, que deve ser determinado<br />

pelo pesquisador o mercado sem fronteiras. Mas que é possível a mudança do ―status quo‖ através<br />

de uma crítica ideológica da não aceitação do não definitivo e do silêncio como resposta de entrar e<br />

chegar a um entendimento não fragmentado do mundo social.<br />

A verdade é um norte, que pode ser circunstancial e mutável, necessário porque conduz o<br />

raciocínio lógico, imprescindível porque desmorona o absolutismo e importante, pois nos ensina<br />

crescer nas idéias.<br />

Na direção deste segmento, vai causar um mal estar nas visões pós-modernistas –<br />

estruturalistas das superestruturas que a partir do posicionamento convencional entre ciência –<br />

saber e ignorância – mistificação, que este último de forma velada apresenta uma posição contrária<br />

que pode ser traçada ao poder ideológico e o primeiro apresenta um distanciamento em relação ao<br />

poder verdade – de fato – real. Todo o saber-conhecimento fica suspeito de vínculo com o poder.<br />

No segundo estágio, a própria noção de poder ideológico sofre um deslocamento, não<br />

podendo mais ser referida a uma única fonte de informação, separando - se a priori para sempre. A<br />

fonte opressiva – libertadora de um discurso não pode ser determinada teoricamente a priori, ela<br />

precisa ser investigada historicamente em cada caso específico. No sentido de não mais identificar a<br />

fonte de saber como elas atuam, mas sim como elas funcionam e exercem seu poder oculto.<br />

A teoria da educação precisa ser vista como uma forma de integração dos humanos, desde<br />

aquele que mora numa mansão na Ilha de Caras, por exemplo, como aquele que mora sob a ponte<br />

nas periferias dos grandes centros urbanos do Brasil e do mundo.<br />

Neste sentido, podemos entender nenhum processo de teoria de pesquisa em educação, ou<br />

em qualquer outra área do conhecimento, pode ser entendido apenas como aplicação de técnicas ou<br />

metodologias, ao contrário, somente terá sentido na articulação com as concepções da educação, da<br />

sociedade, da cultura e da política.<br />

Resgatando neste momento a aula magna da Professora Bernadete Gatti, que tão bem nos<br />

abrilhantou na manhã do dia 5 de março que norteou o ano letivo de 2008 do Programa de<br />

Mestrado em Educação da UNICID com belas e sinceras reflexões, a profissão de ensinar e de<br />

pesquisar é a mais nobre da educação escolar, depende do lugar chamado escola. O Ateneu, onde<br />

Aristóteles propunha que se ensinasse o diálogo com o qual Sócrates provocou que a virtude<br />

depende de sabedoria. O último não tinha a formatação estrutural do conhecimento, ele somente<br />

tinha a formatação construída a partir do intelecto e do senso comum. O primeiro não desconhecia<br />

esse senso comum, mas fazia muito bem a passagem da teoria para prática.<br />

Com programação extensa a cumprir, numa seqüência determinada pelo órgão regulador<br />

do curso de pós-graduação no Brasil, a maioria dos pesquisadores e iniciantes limita-se a executar as<br />

tarefas meramente burocráticas que lhe são impostas pelo planejamento e, a adotar uma


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metodologia de pesquisa, o mais simples e objetiva possível: falar, enquanto o outro é um mero<br />

receptor.<br />

O método escolhido pelo pesquisador que parte da realidade em educação, já<br />

compreendida nos seus nexos internos, como mera abstração, para encaminhar-se a um novo<br />

concreto pensado, tem que estudar a sala de aula, a organização escolar, as estruturas de ensino, a<br />

sociedade onde está inserido, no caso concreto a brasileira e as suas relações com a educação.<br />

É um fator de observação, que o pesquisador e em especial o pesquisador iniciante, faz<br />

uma representação menos abstrata da sua prática, ou seja, interpreta-a de acordo com os dados que<br />

o seu cotidiano lhe apresenta. Deixa de lado a teoria da pedagogia de hoje, para sustentar na<br />

pedagogia tradicional, procurando-se assim responder o problema de hoje com o problema de<br />

ontem, chegando até o uso de subterfúgios de burlar a própria organização posta que impede de<br />

trabalhar de acordo com as reais necessidades e interesses.<br />

Neste sentido, percebe-se que o discurso do pesquisador fica como algo vago, solto no ar,<br />

que não se une, pelo desejo e pela vontade e nem aos que fazem de conta que pesquisam e nem aos<br />

que fazem de conta que estão compreendendo. Ninguém fala. Quem fala é o sujeito, universal,<br />

abstrato: observa-se, nota-se, constata-se, conclui-se. Deste modo escondem-se os sintomas<br />

importantes do nosso autoritarismo social e endossam um processo que faz do aprendente<br />

verdadeiras vítimas do aparato escolar.<br />

Podemos refletir com o tema em epígrafe, que este é o momento do acordar mágico do<br />

pesquisador e também do próprio educador, que precisam passar por um ato de regeneração do<br />

discurso, o que exige uma atitude de denodo. Coragem para dizer abertamente os seus sonhos que<br />

nos fazem tremer. A formação do educador? Antes de qualquer coisa: é necessário reaprender a<br />

falar.<br />

Está na lembrança neste momento do nosso saudoso Jorge Amado em Gabriela Cravo e<br />

Canela, há um momento do diálogo que a filha de um coronel diz á sua mãe que pretendia casar-se<br />

com um professor. Ao que a mãe retruca numa clássica lição de realismo político:<br />

E o que é um professor na ordem das coisas? O que tem o ensino a ver com o<br />

poder? Como podem as palavras se comparar com as armas? Por acaso a<br />

linguagem já destruiu ou já construiu mundos? (apud, Brandão, 1982 p. 17 –<br />

27).<br />

O educador – pesquisador é aquele que quer saber, mas não quer ser tapeado ou enganado.<br />

O brasileiro faz um esforço para se educar. A escola na sua incompetência, é que não o ajuda. E há<br />

uma coisa a ser ensinado, é preciso empenho, método, atenção, concentração e calma. Mas chegará<br />

o momento da exposição, da apresentação para o mundo concreto, o da convivência com aqueles<br />

que querem ludibriar os seus iguais. O momento da ―infusão‖ como nos ensinou AGOSTINHO<br />

(1989) é a da meditação, e da luta. Solidão e alarido. Solidão é a Ágora Sautet (1992).<br />

Podemos pensar que os educadores são como as velhas árvores. Possuem uma face, um<br />

nome, uma ―estória‖ a ser dita. Habitam em um mundo em que o que vale é a relação que os ligam<br />

aos alunos, sendo que cada um deles é ―sui generis‖, portador de um nome e também de uma<br />

―estória‖, sofrendo tristezas e alimentado esperanças. E a educação é algo para acontecer da escola<br />

para ela mesma, num espaço invisível e denso, que se estabelece a dois.<br />

Por isso mesmo professores não são entidades ―descartáveis‖, da mesma forma como há<br />

canetas descartáveis, coadores de café descartáveis, copinhos descartáveis. De professores para<br />

pesquisadores da educação realizamos o salto de pessoas para funções.


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Pensemos alto, exercendo a nossa cidadania, na dimensão águia, na maioria dos pobres,<br />

empobrecidos e excluídos. E nisso estaremos exercendo o Amor na feliz expressão de Santo<br />

Agostinho, de pensar e agir pelo respeito do mundo e em especial respeito ao ―Ser‖ Heidegger<br />

(2000).<br />

A Bioética em Educação para a formação do educador inclui dois momentos de relevância<br />

na concepção de Ética em Enrique Dussel, a saber: o conflito e a ruptura. A primeira seria o divisor<br />

de águas entre o período social pré-revolucionário e de um período pós-revolucionário. E o<br />

segundo é momento da transformação que JOSSO (2004) nos ensina como sendo de momentos<br />

“charneiras‖. O poder da estrutura social são elementos de relevância para operar qualquer mudança<br />

significativa do envolver humano.<br />

No ensinamento do pensador latino-americano, só é possível na Filosofia pensar a Ética no<br />

campo teórico. No entanto, é urgente a moral no continente sul - americano. Assim, o nosso<br />

saudoso Paulo Freire, referencial de que DUSSEL muito bem se apropriou é a da fundamentação<br />

para se colocar em prática a Ética, ocorre pela Educação como humanização do homem no<br />

cumprimento de seu papel o desenvolvimento da formação humana: a vida.<br />

Atitudes que exigem espírito de aventura, para acompanhar a trajetória humana na terra,<br />

que muito bem me faz citar MORIN (2002), ―não é mais teleguiada por deus, pela ciência, pela<br />

razão ou até mesmo pela lei da História‖. Faz-nos digredir o sentido grego da palavra: astro errante.<br />

Para os gregos estar vivo significava estar vendo, e não perder a honra, para o período medieval<br />

estar vivo significava não perder a alma, isto é, a razão e no século XXI, qual está sendo a<br />

representação de vida?<br />

Comparativamente, qual é o papel da Filosofia na problemática do homem? Ela é sem<br />

dúvida, a expressão mais global e autêntica do seu esforço em superar seus problemas, pois procura<br />

ir até as causas últimas. Com efeito, é impossível encontrar soluções como esses, sem se responder<br />

com muita honestidade às questões fundamentais: o que é o homem? Qual o seu fim último? O<br />

homem é dono ou escravo de suas relações com o universo e com sua História? O que é bom? O<br />

que é certo? O que é justo? O que é a liberdade? Qual é o sentido da dor, do mal e da morte? Por<br />

que existe o mundo em vez do nada? Qual é o sentido e o valor da ciência?<br />

E neste sentido Hegel (apud, Guatarri 1988, p.85) nos ensinou:<br />

Só a filosofia, em seu conjunto, nos dá o conhecimento do universo<br />

como totalidade, totalidade que nos desenvolve a partir de seu conceito e<br />

que em nada perder do que dela faz o conjunto, um todo no qual todas<br />

as partes estão ligadas umas às outras pela necessidade entra em si<br />

mesma e, nessa união com ela mesma forma o mundo da verdade.<br />

A História da Filosofia é o registro do gigantesco esforço dos grandes pensadores para<br />

encontrar respostas a essas e outras questões fundamentais. Vale a pena conhecer as diferentes<br />

visões sobre a natureza humana que levam a diferentes conclusões a respeito do que podemos fazer<br />

e de como podemos agir. Crenças conflitantes sobre a natureza e o fim da vida humana estão<br />

freqüentemente encarnadas em diferentes formas de vida, em sistemas políticos e econômicos e em<br />

teorias educacionais.<br />

O debate das diferentes teorias filosóficas é um precioso meio para a reflexão critica sobre<br />

os problemas existenciais do homem de hoje, vivendo num mundo complexo, visando a uma<br />

tomada de posição consciente, ao assumir cada um seu grau de responsabilidade na superação da<br />

crise que está em nós e nos envolve.


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O conhecimento das grandes sínteses filosóficas podem também servir para alguns como<br />

estímulos e ponto de partida para a busca de novas respostas, que reflitam as condições de vida do<br />

homem atual, a essas eternas questões, que nunca serão plena e definitivamente respondidas, mas<br />

que precisam ser sempre mais esclarecidas.<br />

O homem não pode deixar de conviver com seus problemas, porque será sempre aquele<br />

ser misterioso e intranqüilo, procurando continuamente superar-se a si mesmo em busca de algo<br />

mais. Contudo, essa busca de superação nem sempre tem se processado no sentido do<br />

aperfeiçoamento de seu Ser e nem sempre se baseia em valores universais.<br />

Para KANT (1992), BOFF (2004) a conscientização das conseqüências maléficas de seus<br />

desvarios e o discernimento dos valores universais podem se constituir nos grandes objetivos da<br />

Educação no século XXI. Só assim o educador poderá encontrar a luz de uma ―pedagogia viva‖<br />

GOMES (2010), isto é, sempre revisitada que lhe indique o rumo para a busca de soluções<br />

inadiáveis para os graves problemas sociais que o afligem e o ameaçam. E assim também poderá<br />

conviver, positivamente, com problemas e crises inerentes à sua própria existência como nos<br />

ensinou MONTAIGNE (2009) em saber desfrutar lealmente do nosso ser.<br />

É importante exercitar todas as formas de compreensão da realidade e do mundo. A<br />

Filosofia é uma delas. Não é a melhor e nem a mais importante, mas é tão boa e tão importante<br />

quanto às demais. No processo de pesquisa em Educação o importante é saber equilibrar o pensar<br />

estético FREIRE (1967) e (1975), o cientifico e o filosófico como nos ensina ASSMANN (1996).<br />

Referências.<br />

ARISTÓTELES, Educação. Coleção os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1982.<br />

ARENDT, H. A condição Humana. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2005.<br />

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Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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ARTIFÍCIOS DE MISE EN ABYME: A LEITURA EM ILUSTRAÇÕES<br />

DE LIVROS INFANTIS<br />

Rodrigo da Costa Araujo 53<br />

Resumo: Este ensaio procura demonstrar, em diversos livros infantis, a ilustração como recurso<br />

atrativo e sedutor encenando a própria leitura em metáforas que recorrem ao livro dentro do livro<br />

ou a leitura dentro da leitura. Sob essa perspectiva, inserem-se representações e imagens da leitura,<br />

como também se ilustram situações discursivas, metatextuais e que se inscrevem nas práticas de<br />

leitura e literatura infantil.<br />

Palavras-chave: ilustração - metatextualidade - representações de leitura<br />

Abstract: This essay seeks to demonstrate, in several children's books, illustrated how attractive<br />

and seductive appeal by staging his own reading in metaphors that use the book within a book or<br />

reading in the reading. From this perspective, fit images and representations of reading, but they<br />

also illustrate discursive situations, metatextual that subscribe to the practices of reading and<br />

children's literature.<br />

Keywords: illustration - metatextuality - representations of reading<br />

1. Fiando as tramas e a visualidade da leitura<br />

Dos procedimentos discursivos da construção do texto literário, ganha destaque de forma<br />

significativa no século XX, e mais ainda no século XXI, a reflexão crítica da arte sobre si mesma, do<br />

discurso artístico que ao construir-se fala ou sugere o modo como se dá essa construção. Nessa<br />

trama, a literatura -, e, também, a literatura infantil-, debruça-se sobre ela mesma e o texto, passa a<br />

ser tanto um produto de criação artística quanto um veículo de reflexão sobre o que vem a ser<br />

literatura. Trata-se, na verdade, de uma tentativa empreendida pela literatura de explicar-se a si<br />

mesma.<br />

Os livros apontados aqui enovelam-se no processo de desmistificação da criação literária<br />

que se desnuda diante do leitor e, ao mesmo tempo, referindo-se à leitura como num jogo de<br />

espelhos ou citações, instigam criação e reflexão crítica, investindo-se, questionando-se, analisandose.<br />

E, mais ainda, transfere essas indagações ao leitor, envolvendo-o e fisgando-o com a ajuda da<br />

ilustração. A essa reflexão, sobre a narrativa, elaborada na própria estrutura do texto artístico,<br />

Gerard Genette, em Palimpsestos (1982), ao proceder ao estudo das relações transtextuais, chamou<br />

de metatextualidade. Em Introdução ao arquitexto [1986], outro livro do autor, ele define a<br />

metatextualidade como ―a relação transtextual que une um comentário ao texto que comenta‖<br />

(1986, p.97). Nesse percurso ele inclui a metatextualidade entre os cinco tipos possíveis de relações<br />

transtextuais, utilizando o termo transcendência textual para designar o procedimento que coloca<br />

um texto em relação explícita com outros textos. Nesse caso, o processo metatextual de construção<br />

do livro ou narrativa em questão, o transforma num objeto de leitura dupla, já que nele estão<br />

―ficcionalizados‖ tanto a matéria ficcional, quanto o comentário sobre a escritura-leitura da ficção.<br />

Ficcionalizando o processo de leitura, então, a narrativa sugere uma construção que olha<br />

para si mesma, apontando para o seu processo, refletindo criticamente sobre os mecanismos<br />

utilizados na escritura e construindo, de certa forma, um modo de como deve ser lida. As<br />

ilustrações da leitura no livro salientam, indiretamente, a fascinação da leitura, e, também, da escrita,<br />

no sentido de orientar o entendimento de um sistema que possa ―explicar‖ a sua construção poética<br />

ou algum modo revelar os seus mecanismos narrativos.<br />

53 Doutorando em Literatura Comparada pela <strong>UFF</strong> e Mestre em Ciência da Arte


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A metatextualidade, nesse caso, funciona como um recurso metafórico para falar do ato de<br />

ler e da literatura em si mesma, como objeto desejado, encantador e envolvente. O prefixo ―meta‖<br />

remete à relação crítica e se estabelece no apelo que um texto faz à sua própria interpretação. Essa<br />

atividade crítica e discursiva inserida nos livros sugere a preocupação do artista/escritor em<br />

mostrar-se consciente de sua atividade de operação sobre a linguagem, de construtora de discursos<br />

que se misturam, se observam e se completam. O viés crítico, nesse contexto, - tematizando a<br />

paixão de ler, - torna-se matéria constituinte do livro, de forma que a matéria da trama textual passa<br />

a ser a própria literatura e a crítica indireta no processo de construção da própria obra. A<br />

metatextualidade, nesse livros, portanto, passa a ser uma estratégia para falar da ―felicidade e da<br />

fruição clandestina‖ do próprio ato de ler e escrever como desejo experimentado e sugerido na<br />

obra.<br />

A esse respeito, Roland Barthes considera que, enquanto linguagem, a literatura é capaz de<br />

voltar-se para si mesma, descobrindo-se ―ao mesmo tempo objeto e olhar sobre esse objeto, fala e<br />

fala dessa fala, literatura-objeto e metaliteratura‖ (BARTHES, 1964, p.107)4. Para o autor de Le<br />

plaisir du texte, essa atitude da literatura de falar sobre si mesma aponta para o questionamento a<br />

respeito de sua natureza, de seu ser, afinal, por si só ecoando continuamente o questionamento: o<br />

que é literatura? Essas indagações críticas, segundo esse olhar, acabam estabelecendo uma relação<br />

dialética entre a literatura e ela mesma, seu processo de construção e sua identidade. Essa tendência<br />

moderna, como também fez Roland Barthes, em sua prática opera aproximações entre crítica e<br />

produção literária, reflexão e fazer literário, tornando-os um único e mesmo objeto.<br />

2. Livros que citam livros, infinitamente<br />

A noção de leitura, como processo gradual de decodificação, diálogo com o objeto lido,<br />

percepção crítica, interpretação e transformação se amplia e se completa, ao considerar a imagem<br />

como signo e paratexto potencial do exercício de pensamento dialógico e recurso estratégico<br />

passível de desencadear diálogos visuais no espaço e no tempo, produzindo novos signos, novos<br />

significados, num processo autogerativo. Assim, no livro infantil contemporâneo, o processo de<br />

decodificação encaminha-se para um gesto transformador, numa relação dialógica entre diferentes<br />

linguagens, que se interinfluenciam crítica e criativamente.<br />

Genericamente, o centro das questões da leitura parece ter como foco a palavra, porém é<br />

importante considerar, - principalmente nos livros infantis aqui considerados -, que o mundo dos<br />

significados é composto por outros tipos de signos. Assim, a leitura como gesto e representação,<br />

nesse ensaio, é considerada como jogo representativo na ilustração, experiência que permite a<br />

adoção de estratégias, regras que definem a existência de um jogo entre diferentes formas de<br />

apresentação, de ideias que traduzem a metáfora de leitura.<br />

A questão que se coloca, nesse caso, é a possibilidade de leitura, considerando palavras e<br />

imagens que se apresentam no próprio livro, - livros que falam de livros, livros que citam, incitam o<br />

ato de ler-, como jogo de códigos de linguagens que se imbricam, integram-se e combinam-se para<br />

completar o objetivo de dar a conhecer o próprio universo lúdico da leitura, apresentado na<br />

ilustração. Através da tentativa desse jogo de códigos, pode-se perceber que a significação se<br />

constrói em diferentes tipos de signos, como no caso, os linguísticos e plásticos, processos<br />

discursivos que, juntos na narrativa, criam uma semiose 54 que leva à cognição, um dos múltiplos<br />

aspectos constitutivos da rede semiótica.<br />

A leitura na ilustração, nesse caso, metáfora ela mesma que perpassa as palavras e as<br />

imagens incita o leitor a percorrer descobertas, criando um campo semântico-visual que sustenta o<br />

54 O processo de semiose entendido como ação do signo, como transformação de signos em outros signos. A<br />

semiose é uma relação de momentos num processo seqüencial-sucessivo ininterrupto. (PLAZA, 1987.p.17)


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prazer de transformar cada leitura num momento novo e criativo. Nessa junção entre palavra e<br />

ilustração é que se completa o efeito comunicativo e de interpretação, configurando-se, assim, o ato<br />

de ler materializado, encenado ludicamente no livro e na narrativa como um todo textual.<br />

Instigado por esta ideia/ metáfora, - livro dentro do livro, leitura que fala de leitura-,<br />

selecionamos algumas obras que fazem alusão a este tema, embora algumas não revelem esta<br />

intenção de forma direta, mas o faz de maneira impar, e nos leva a compreender a função simbólica<br />

da ilustração que representa uma ideia, instiga, de certa forma, a atenção para o caráter metafórico<br />

da história ou é a própria metáfora do texto/leitura. São sete os livros: Atrás da porta de Ruth Rocha;<br />

As memórias da Bruxa Onilda de Roser Capdevila e Enric Larreula; Monteiro Lobato: Crianças Famosas<br />

de Nereide S. Santa Rosa e Mica Ribeiro; Asa de Papel de Marcelo Xavier; A palavra feia de Alberto de<br />

Audrey Wood; Alice viaja nas histórias de Gianni Rodari e Anna Laura Cantone e O cabelo de Lelê de<br />

Valéria Belém.<br />

Figura 1. Atrás da porta. (1997).<br />

Atrás da porta sugere, metaforicamente pela ilustração, a leitura como diálogo e encontro de<br />

gerações -, adultos e crianças-, além do espaço onde confluem esses saberes, que apesar de tempos<br />

diferentes, instigam a magia, a curiosidade e a troca.<br />

Figura 2. As memórias da Bruxa Onilda. (2003).<br />

Nesse outro livro, em As memórias da Bruxa Onilda, a Bruxa-mãe está concentrada na leitura<br />

em busca de informações, descobertas. A metáfora de leitura, nesse contexto, envolve a construção<br />

de um gesto, além de carinhoso, afetivo. A ilustração leve e sombria ocupa duas páginas para<br />

sugerir a conotação de amplitude, onde todos os elementos instigam ser uma casa de bruxa, com<br />

muitos livros e fonte de conhecimento.


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Figura 3. Monteiro Lobato: Crianças Famosas (2007).<br />

Metáfora de memória e de leitura, a ilustração apresenta o personagem-leitor numa<br />

biblioteca, lugar subjetivo de tranquilidade, mas também de descobertas e fantasia. O livro, nessa<br />

cena infantil, sugere, além da paixão, meio de prazer e lazer, objeto acessível às estantes imensas e<br />

cheias, proporcionando momentos de sonhos e magia, basta pegá-lo e abri-lo. Uma ilustração que<br />

aponta, metaforicamente, o ato de ler como momento de conhecimento e sonho.<br />

Figura 4. O menino que vendia palavras (2007).<br />

Nesta cena delicada e sugestiva através da ilustração, a leitura é a própria figuração do<br />

significante ―livros‖ sobrevoando o espaço - letras que transbordam o espaço narrativo e ocupam<br />

todo o ambiente - que se transmite de pai para filho. O filho, delirante e em êxtase, demonstra, pelo<br />

seu gesto flutuante, o entusiasmo do que aprendeu a ler com o pai, por isso viaja em aventuras<br />

representadas simbolicamente pelas estrelas.<br />

Figura 5. (1993). Asa de papel.


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Asa de papel, livro premiadíssimo de Marcelo Xavier, remete ao momento de total<br />

introspecção da leitura, onde todos os elementos conotam descoberta, sabedoria, convivência,<br />

medo, olhar crítico, leveza, viagem interior. Todas as metáforas, imagens (construídas<br />

delicadamente em massinha) e palavras sugerem e apontam a leitura como ato solitário, por<br />

inúmeros motivos, para pensar, chorar e sorrir. A leitura é possibilidade de novas vivências e<br />

também uma companheira. Por outro lado, a poesia da leitura, -sentimento e metalinguagem forte<br />

em todo a obra -, surge na imagem reforçando o aspecto político do protagonista e também, a do<br />

leitor nesse processo.<br />

Figura 6. (Alice Viaja nas Histórias. (2007).<br />

O título/ paratexto intertextual, metafórico e instigante, - Alice viaja nas Histórias -, dialoga<br />

com a imagem da menina caminhando com um cesto de maçãs e um grande livro de contos de<br />

fadas e ou narrativas fantásticas. Todo esse sentimento e descobertas sugeridos, desde já antecipam<br />

que para conhecê-las será necessário abrir o livro e certifica-se que as histórias de Alice são<br />

maravilhosas e dialogam com a cultura. O livro, por si só, é objeto para conhecer, além da narrativa,<br />

outras histórias, outros lugares, novas maneiras de se divertir e muitas para imaginar. O designer da<br />

letra no título do livro sugere a época, a ludicidade dos enredos e os mecanismos da imaginação da<br />

protagonista.<br />

Figura 7. O cabelo de Lelê (2008).<br />

O abraço ao livro, nem precisa dizer que sugere o amor, a descoberta, a metáfora do modo<br />

de ser e se reconhecer como parte de um tempo, lugar e espaço. A protagonista com os cabelos


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encaracolados ocupa, além do paratexto inicial, boa parte das imagens que enfatizam a cultura<br />

negra. Desde a capa, fica evidente a informação pelo livro como bem cultural, como formação de<br />

uma leitura pela diversidade, metáfora de identidade.<br />

A imagem (ilustração e projeto gráfico) não surge no livro para ficar apenas atraente, mas<br />

trata-se de um recurso potencializador do objeto livro como veículo de comunicação e ludicidade<br />

particular. Ela, em conjunto com vários elementos, instiga o descortinamento de várias leituras que<br />

a imagem esconde em seus intertextos, inúmeras histórias ou discursos que ainda podemos<br />

encontrar, contar ou ver. O livro infantil ilustrado, segundo a ilustradora Graça Lima pode ser<br />

encarado como uma espécie de ritual iniciatório, que obedecerá a uma série de etapas progressivas<br />

na formação de um homem esteticamente civilizado. A inteligência visual aumenta o efeito da<br />

inteligência humana, amplia o espírito criativo. Não se trata apenas de uma necessidade, mas de<br />

uma promessa de enriquecimento cultural para o futuro.<br />

Esses recursos, atrelados ao livro, já são por si só, objetos fantásticos, cheio de<br />

possibilidade formais, funcionais e de linguagem. Livros são portas para mundos desconhecido e a<br />

imagem é sem dúvida nenhuma, uma das chaves para estas portas todas (LINS, 2009, p.47). O texto<br />

escrito conta uma história recheada de imagens nas linhas e nas entrelinhas. A ilustração, por sua<br />

vez, complementa e enriquece esta história, a ponto de cada parte de uma imagem poder gerar<br />

outras histórias. O texto e a imagem juntos dão ao leitor o poder de criar, na sua cabeça, a única<br />

história que realmente interessa: a história dele (LINS, 2009, p.46). Espécie de tradução<br />

intersemiótica, a ilustração reforça que a própria palavra pode ser recodificada em outro sistema,<br />

lida de outra maneira (ARAÚJO, 2008, p.3). O livro é, simultaneamente, veículo de comunicação,<br />

peça literária, instrumento pedagógico, fonte de saber e de lazer (LINS, 2009, p.46).<br />

Desta perspectiva, a ilustração em conjunto com a narrativa, é lida como um texto em que<br />

se citam e se representam ações, atitudes, sentimentos, jogo de olhares etc. (ARAÚJO, 2008, p.1). A<br />

imagem precisa concentrar elementos de hipersignificação da narrativa: a) elementos estáticos,<br />

ligados à descrição, por meio de sugestões espaciais, como o ambiente em que se passa a ação, as<br />

personagens e suas características como a roupa que vestem o lugar em que vivem seus objetos<br />

pessoais etc.; b) os elementos dinâmicos, ligados ao encadeamento da narrativa, como exprimir com<br />

clareza a ação, os gestos e as expressões motivadoras das personagens, além de marcar o ritmo da<br />

ação e a progressão da narrativa (FARIA, 2008, p.42). Portanto, o texto ―infantil‖ pressupõe um<br />

leitor competente intersemioticamente, isto é, um leitor que saiba ler e relacionar as temáticas<br />

concretizadas nesses dois tipos de texto (GREGORIN FILHO, 2009, p.17).<br />

Em última análise podemos perceber a importância da ilustração no livro infantil como<br />

mecanismo articulador de incentivo a leitura, que complementa ou não o texto escrito (linguagem<br />

verbal). Lugar mesmo, onde o professor mediador de leitura deve compreender ou procurar<br />

entender, pois apresenta qualidades estruturais e artísticas que podem ser analisadas, ampliando e<br />

educando olhares numa dimensão de autonomia. Lendo ou vendo, nesse caso, nos tornamos mais<br />

humanos e sensíveis.<br />

3. Babel de livros, algumas conclusões<br />

―Falar é incorrer em tautologias‖.<br />

[Jorge Luis Borges. In: A Biblioteca de Babel, 2001, p.99].<br />

A atividade crítica sobre a leitura ou a própria crítica sobre o ato de ler inserida no texto<br />

ficcional ou nos livros infantis aqui citados revela, além do próprio gesto lúdico de ler (sempre<br />

fantasiado, encenado em algum cenário), a preocupação por parte do escritor em mostrar-se<br />

consciente de sua atividade de operação sobre a linguagem e visualidade de construtor de discursos<br />

que se interpenetram, se observam e se completam. O discurso crítico ,- do livro dentro do livro ou<br />

a leitura dentro da leitura-, torna-se a atividade lúdica constituinte do texto ficcional de forma que a


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matéria da literatura é a própria literatura e a crítica ou o leitor passa a ser mais do que um olhar<br />

sobre a narrativa/texto, torna-se, mesmo, um processo criativo de construção da própria metáfora<br />

de leitura. Certa mise en abyme 55 desse gesto, poética da leitura.<br />

A ilustração, em certo sentido, instaura, através do olhar, um processo de conhecimento e<br />

de criação que é espelhístico: o olho vê através do olhar que o outro desfere. A metáfora inaugural<br />

desse processo é a própria leitura que, tomando o olho e se aproximando do leitor/voyeur,<br />

metamorfoseia-se em leitor. Pela ilustração, o olhar capta o movimento de aproximação e a<br />

simultânea metamorfose do gesto de leitura.<br />

Na metatextualidade explorada nesses livros, os limites entre o texto observado e o texto<br />

que o leitor constrói tornam-se tênues, já que o texto imagético, enquanto é construído, desnuda,<br />

analisa e avalia, metalinguisticamente, os processos de construção. Os livros infantis<br />

contemporâneos que optam por esse trabalho, de certa forma, demonstram grande preocupação em<br />

colocar-se criticamente o aluno diante do ato de ler e, também, das tendências artísticas<br />

contemporâneas.<br />

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do Estado do Pará. Disponível em:. Acesso em 26 de dez.2010.<br />

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BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel. In: Ficções. 3ª ed. São Paulo. Globo. 2001. [pp. 91-100].<br />

CAMARGO, Luís. Ilustração do livro Infantil. Belo Horizonte, MG: Lê, 1995.<br />

DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire. Essai sur la mise em abyme. Paris: Seuil.1977.<br />

GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil. 1982.<br />

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JOUVE, Vincent. A Leitura. São Paulo. Editora UNESP. 2002.<br />

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PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo. Perspectiva. 1987.<br />

ROCHA, Ruth. Atrás da porta. Ilustrado por Elisabeth Teixeira.Rio de Janeiro: Salamandra, 1997.<br />

55 Um dos recursos mais interessantes usados pelas artes contemporâneas para refletir sobre ela mesma é o<br />

emprego ou a técnica da mise-en-abyme, geralmente representada pela história dentro da história. A definição<br />

que Dällenbach propõe para a mise-en-abyme nos fala que o fragmento reflexivo deve espelhar ―o conjunto do<br />

relato‖, o que não inclui apenas o enunciado, mas também o processo de enunciação e o código em que é<br />

feito o relato. Diz-nos ele que: ―um espelhamento é um enunciado que reenvia ao enunciado, à enunciação e<br />

ao código‖ (DÄLLENBACH, 1977, p.62).


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RODARI, Gianne. Alice Viaja nas Histórias. Ilustração Anna L. Cantone. Tradução Silvana C. Leite e Denise<br />

M. Marino. São Paulo: Biruta, 2007.<br />

ROSA, Nereide S. Santa. Monteiro Lobato: Crianças Famosas. Ilustração Mica Ribeiro. São Paulo: Callis, 1999.<br />

XAVIER, Marcelo. Asa de Papel. Texto e ilustração de Marcelo Xavier. Fotografia Gustavo Campos. Belo<br />

Horizonte, Formato, 1993.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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O PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO: DA EMERGÊNCIA DA CLASSE E DO<br />

CURRÍCULO À MAQUINARIA ESCOLAR<br />

Rosa Marta Mendes Casal<br />

Acadêmica do curso de Pedagogia<br />

Universidade Federal de Ouro Preto<br />

Campus ICHS – Mariana – MG<br />

Resumo: Neste artigo, pretende-se articular a noção de escolarização enquanto artefato histórico às<br />

noções de currículo e de classe escolar enquanto produção e reprodução social, econômica e<br />

política.<br />

Palavras-chave: Escolarização, Currículo, Classe escolar.<br />

Abstract: In this article, we propose to articulate the notion of schooling as a historical artifact to<br />

the notions of curriculum and classroom as social production and reproduction, economic and<br />

political.<br />

Keywords: Schooling, Curriculum, Grade school.<br />

Considerações iniciais<br />

A escola enquanto lugar destinado a práticas educacionais parece sempre ter existido, mas<br />

enquanto instituição, tal como se conhece hoje, é recente, com apenas pouco mais de um século de<br />

existência haja vista que se fundamentou segundo bases administrativas e legislativas de modo que a<br />

escola pública e obrigatória, segundo Varela e Alvarez-Uria (1992), foi instituída por Romanones,<br />

no início do século XX, haja vista as atribuições relegadas ao docente e circunscritas pelo<br />

funcionalismo público. Quando se abandona, pois, a perspectiva – própria ao senso comum – de<br />

que a escola sempre existiu, é preciso que se debruce numa pesquisa que considere as condições<br />

históricas de sua formação enquanto instituição social.<br />

O seguinte artigo pretende relevar o papel da escolarização segundo as noções de currículo<br />

e de classe escolar de modo que, a fim de perscrutar o surgimento do processo de escolarização,<br />

será necessário que se proponha um breve cotejamento de dados diacrônicos que visa a elucidar<br />

cada condicionante deste processo, bem como o momento em que se deu a organização dos<br />

estudantes por turma, nível de aprendizagem e idade conforme a orientação do curriculum, vocábulo<br />

cuja etimologia remete a uma trajetória a priori constituída que se propõe a hierarquizar e a<br />

classificar, programaticamente, os conteúdos pedagógicos.<br />

Breve excurso histórico<br />

Segundo Cambi (1999), a escola, tal como se constituiu na Idade Média, se centralizava na<br />

unidade social estática do feudo, de modo que as igrejas e os mosteiros afirmavam-se como<br />

instituições letradas ao passo que os outros estratos sociais fruíam de pouca mobilidade social e,<br />

sobretudo, a centralização da cultura letrada tornava-se um óbice à formação intelectual.<br />

A escola medieval, em cuja vertente escolástica observavam-se as sete artes liberais<br />

dispostas segundo o trívio e o quadrívio, atendia a uma pequena monta de clérigos e nobres de<br />

modo que a instituição da Igreja Católica, ainda que nela se admitisse a leitura de autoridades<br />

antigas (pagãs), centralizava as práticas educativas tanto que as artes do trívio, a retórica, a gramática<br />

e a dialética, eram filtradas pelo crivo da teologia, que selecionava a leitura dos manuais de retórica<br />

de Cícero ou atribuídos a ele – como o Retórica a Herênio –, os progymnasmata, ou exercícios de<br />

retórica, de autores como Aftônio e a leitura de Virgílio, por exemplo, e de somente algumas obras


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de Ovídio haja vista que a leitura mnemônica das autoridades constava das primeiras lições de<br />

gramática.<br />

Sob outra perspectiva, com o recrudescimento do comércio observa-se a dimensão de<br />

concretude imediata da organização das práticas educativas visto que, nas corporações de ofício,<br />

afirmava-se a transmissibilidade dos saberes do mestre, sem que este gozasse do estatuto e da<br />

autoridade de um doutor da filosofia escolástica. Apesar de a educação na Idade Média não ser de<br />

caráter universalizante, o paradigma do ensino não se franqueava de se enquadrar em um conceito<br />

de escola – alguém ensina, alguém aprende –, ainda que não seja um conceito que possua muitos<br />

pontos de similitude com o que se verifica em voga contemporaneamente. Era necessário, pois, um<br />

método que atendesse às necessidades do aprendiz (considerado individualmente ou em grupo).<br />

O discurso da maquinaria escolar universal surge no final do século XVI e no início do<br />

XVII, quando Comenius propõe um ensino que fosse igual para todos, cuja base fosse conferida<br />

por uma didática que incorporasse a finalidade de solucionar problemas sociais de sua época. A<br />

pedagogia proposta pelo filósofo consistia em divisões seqüenciadas – em se respeitando a idade do<br />

sujeito –, associadas a uma determinada etapa, e em uma escola a que o indivíduo de qualquer classe<br />

social tivesse acesso. Segundo Naradowski (2006), o discurso de Comenius é atravessado por ideais<br />

que compreendem duas utopias: da sabedoria e da ―ordem em tudo‖, as quais deveriam<br />

desenvolver-se harmoniosamente de modo que uma completasse a outra. A instituição ―escola‖<br />

surge, pois, neste momento, segundo a perspectiva da ordem e da formação do homem.<br />

O processo de escolarização, em sua análise diacrônica, pode suscitar questionamentos<br />

como, por exemplo: o que existe de símile entre as pedagogias da escolarização do século XVII,<br />

XVIII e XX? Porque surgiu a sala de aula e os métodos empregados na classe escolar? Ainda que<br />

os pesquisadores asseverem que o ensino sempre existiu, individualizado ou não, o ensino<br />

circunscrito pela classe escolar nunca se deu de modo cristalizado. Hamilton (1992) afirma que a<br />

Universidade de Glasgow é a primeira a registrar o termo ―class room‖. Adam Smith (professor de<br />

Glasgow – 1793) e Stow (1864) cunham o termo ―simpatia‖ para que se justificasse o agrupamento<br />

dos alunos para a ―instrução simultânea‖.<br />

Hamilton ainda propõe que se observe, parataticamente, a evolução histórica da<br />

escolarização em se oferecendo uma visão abrangente do processo desde as relações pedagógicas<br />

que, na Idade Média, visavam ao ensino de um ofício do qual se separava radicalmente o<br />

academicismo escolástico do trívio e quadrívio ainda que circulasse a valorização das sete artes<br />

liberais como dado de cultura, em se considerando Comenius, que refletia sobre a instrução<br />

simultânea a fim de solucionar problemas econômicos de sua época, até Adam Smith e Stow, que<br />

acreditavam na formação moral e intelectual das sociedades de massas que objetivava sanar os<br />

problemas sociais advindos da Revolução Industrial de modo que a característica central tanto da<br />

escola quanto das fábricas seria fomentar um gerenciamento melhor tal como maquinaria técnica.<br />

É preciso salientar que a escolarização sempre se deu como processo, seja a partir da<br />

Revolução Francesa na qual se observava a escolarização individual para formar ―lotes‖ que<br />

encerrassem os mesmos conhecimentos de modo que se atendesse à produção das fábricas, seja<br />

durante o século XIX, quando a instrução pedagógica tornou-se simultânea devido ao crescimento<br />

da escolarização ―elementar‖, e no início do século XX, quando ainda se verifica o processamento<br />

do ensino por meio do estabelecimento de ―lotes‖, porém individualizado (Hamilton, 1992).<br />

Inicialmente, a instrução simultânea era oferecida em grandes auditórios seccionados ao passo que a<br />

classe propõe o agrupamento de menos alunos de modo que na sala de aula as lições são coletivas e,<br />

ao mesmo tempo, individuais; a instrução simultânea seria, portanto, um precursor do ensino de<br />

classe.<br />

Entre 1860 e 1870 até o século XX o ensino de classe adquire outras formas; o surgimento<br />

dos manuais de métodos pedagógicos relaciona-se, cada vez de modo mais estreito, à construção de


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mais escolas, bem como às mudanças da estrutura da escolarização, atinentes ao controle social. É<br />

comum que se proponha, entre os pesquisadores, que a escolarização continua a mesma em sua<br />

terminologia; a prática, entretanto, muda de acordo com as necessidades econômicas, afirma<br />

Hamilton (1992). Não há, pois, uma linearidade na história da pedagogia. O que se observa é que a<br />

história da escolarização da Idade Média ao século XVII – anterior, pois, ao paradigma historicista<br />

– permite que se discuta a relação entre escolarização, regulação social e mercado de trabalho de<br />

modo que, segundo Hamilton (1992), até as escolas de caridade do século XVIII preparavam o<br />

sujeito paro o mercado de trabalho.<br />

Escolarização: artefato histórico. Classe e currículo: termos universais<br />

No discurso da escolarização como artefato histórico, classe e currículo surgem como<br />

termos universais. O vocábulo currículo quando empregado contemporaneamente evoca os tópoi da<br />

escolarização para a dianteira da análise educacional. A escolarização medieval existia ―com uma<br />

forma organizacional de textura frouxa em que se absorvia um grande número de estudantes‖<br />

(HAMILTON, 1992, p.36). No final do século XV, a divisão interna dos colégios em diferentes<br />

seções de estudantes conduz Philipe Áries a argumentar que ―os meninos diaristas inundaram os<br />

colégios‖ (ÁRIES apud HAMILTON, 1992, p.39). Segundo Hamilton (1992), as universidades do<br />

final do século XV funcionavam com uma administração colegiada, isto é, um sistema autoritário<br />

formado por uma comunidade de mestres e de alunos, cuja gerência se restringia, hierarquicamente,<br />

dos professores para os alunos.<br />

Consoante o vínculo, cada vez mais estreito, entre escolarização e controle burocrático,<br />

emergem as discussões acerca do currículo – que se observam, sobretudo, na utilização do vocábulo<br />

curriculum em Glasgow, a partir de 1633 –, que, programaticamente, estabelecia um curso inteiro de<br />

vários anos seguido por cada estudante de modo que o currículo reportava ao controle maior tanto<br />

dos conteúdos do ensino quanto dos objetivos e metas da aprendizagem. Deste modo, segundo<br />

Hamilton (1992), o currículo não é empregado com uma acepção educacional, como paradigma<br />

educacional, em nenhum registro até, pelo menos, o século XVII. Para que se possa compreender<br />

melhor isto, Naradowski (2006) assevera que, no final do século XVI e no começo do XVII,<br />

Comenius em nenhuma página de sua Didática Magna cita o vocábulo currículo e sim, o vocábulo<br />

―ordem‖, sem que lhe seja conferido, pois, qualquer acepção concernente a práticas didáticas.<br />

Ainda segundo Hamilton (1992), a partir do agitado século XVI, no qual se vê a crescente<br />

mobilização da reforma protestante, surge uma nova noção de currículo e de classe que, refletiam,<br />

respectivamente, na práxis pedagógica, tanto o refinamento do conteúdo e dos métodos<br />

pedagógicos quanto a divisão de alunos em turmas de aprendizagem. Adjacente à nova acepção de<br />

currículo e de classe, observa-se a escolarização municipal, não mais sob a jurisdição da igreja de<br />

modo que se verifica uma popularização da escolarização no nível municipal.<br />

Como se expressou anteriormente, a escola sempre existiu – se se considerar que alguém<br />

ensina e alguém aprende –, independente dos modelos advindos de cada época, visto que toda<br />

criança passa por uma escola como órgão socializador, com um professor com autoridade em<br />

função de seus saberes e poderes. Segundo Varela e Alvarez-Uria (1992), a instituição escola sofreu<br />

várias mudanças durante sua consolidação. Houve os colégios Jesuíticos que fizeram com que a<br />

nobreza substituísse os preceptores de seus filhos em virtude da educação oferecida pela companhia<br />

de Jesus em meados do século XVII. Os colégios, segundo uma nova forma de socialização,<br />

discerniram os trabalhos manuais dos intelectuais, uma vez que aqueles eram ensinados tãosomente<br />

nas classes populares. Opõe-se, portanto, os colégios jesuíticos às instituições educativas<br />

medievais, bem como, a manufatura se opõe à oficina artesanal de modo que a Idade Moderna<br />

trouxe um movimento da desvinculação do saber escolar e universitário em relação à vivência<br />

política e social.


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Deste modo, engendra-se uma relação entre o saber dominante e os saberes submetidos,<br />

reproduzindo, pois, uma relação social a partir da relação professor-aluno, o que implicava uma<br />

hierarquização tal como se observava numa oficina, na qual circulavam saberes práticos. O<br />

movimento que conduz à imposição da escola obrigatória retira a criança de seu meio de convívio<br />

familiar para conferir à ela o status de mercadoria, que receberia formação a fim de que atendesse às<br />

necessidades econômicas da sociedade, sem que se considerasse como relevante a formação letrada.<br />

Na segunda metade do século XIX e no início do XX, a educação surge como instrução e formação<br />

sistemática de modo que a Escola Nacional para a classe popular prioriza o desenvolvimento<br />

ordenado de instrução e educação. No século XIX, o discurso se aproximava da fórmula ―custam<br />

menos as escolas do que as rebeliões‖; a escola seria, portanto, um espaço de tratamento no qual se<br />

difundiriam racionalizações ideológicas.<br />

O currículo passa a se associar à escolarização de massa, à pedagogia e à avaliação,<br />

efetivamente, quando, em 1850, surge o primeiro sistema de avaliação por meio das chamadas<br />

juntas examinadoras. Em 1868, Tauton – citado por Goodson (1995) – classifica a escolarização<br />

secundária em três níveis: currículo clássico, destinado a filhos de estratos sociais mais abastados,<br />

currículo prático, referente aos níveis de segundo grau e de terceiro grau – no qual se formavam os<br />

artesãos superiores – e um currículo elementar, que se propunha a ensinar ler, escrever e contar.<br />

Segundo Goodson, ―se ‗a classe e o currículo‘ passaram a integrar o discurso educacional, quando a<br />

escolarização foi transformada em uma atividade de massa na Inglaterra, ‗o sistema de aula‘ e a<br />

matéria escolar emergiram no estágio em que a atividade de massa se tornou um sistema subsidiado<br />

pelo Estado‖ (1995: 35).<br />

A epistemologia adequada à escolarização estatal envolve, pois, a tríade constituída de<br />

pedagogia, currículo e exames de modo que o currículo passou a centralizar-se na normatividade da<br />

premência da avaliação de um conteúdo possivelmente examinável. Após a Revolução Francesa, o<br />

Estado desempenhou um papel cada vez mais importante no ato de organizar a escolarização e o<br />

currículo. Foi a partir da Revolução Francesa que o currículo escolar se revestiu, muitas vezes, dos<br />

interesses de controle social em relação à massa trabalhadora. A escolarização estatal aos poucos<br />

ocupou o ambiente educacional com um paradigma de currículo ainda que pudesse se postular que,<br />

no final do século XIX, o currículo deveria ser principalmente acadêmico e associado às disciplinas<br />

universitárias. Os educadores que visavam a afirmar que tanto a prática pedagógica quanto o<br />

currículo deveriam ser igualitários constantemente propunham a necessidade do diálogo e da<br />

mutualidade a fim de que se defendesse a ―reconstrução do conhecimento e do currículo‖<br />

(GOODSON, 1995, p.42).<br />

Ainda segundo Varela e Alvarez-Uria (1992), no começo do século XX, a instituição<br />

escolar, vista como enclausuramento a partir de um conjunto sistemático de regras para domesticar<br />

os filhos dos operários, pautava-se na ordem que consistia em o aluno assentar-se, saudar o<br />

professor, ―fazer‖ silêncio, num espaço escolar ordenado, com regulamento e tempo determinado<br />

(observe-se o caráter normativo do termo currículo). O professor, funcionário público, era<br />

autoridade pedagógica que, com técnicas apropriadas, domesticava os alunos. A escola, invenção da<br />

burguesia para civilizar os filhos dos trabalhadores, passava a ser colonizada por uma camisa de<br />

força psicopedagógica de modo que este pendor ainda contemporaneamente verificável suplanta as<br />

expressões subjetivas visto que o aluno parece se inserir na lógica da mercadoria, a partir da<br />

necessidade de corresponder ao horizonte de expectativas do docente, tanto em termos de um<br />

desenvolvimento psico-maturacionista natural e previsível quanto de potenciais cognitivos<br />

supostamente mensuráveis. Nos anos 60, pois, o ensino, centrado no tecnicismo, era sustentado<br />

por um currículo demasiado capitalista. Contudo, a partir dos anos 70, estudos vinculados à<br />

sociologia do currículo passaram a contestar o ensino de cunho tecnicista de sorte que os valores<br />

investidos do paradigma da social-democracia promoveram o possível estreitamento entre escola e<br />

sociedade.


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Hoje, o currículo, enquanto um artefato de produção e reprodução cultural, bem como um<br />

campo de luta, visa a valorizar a cultura popular, a tecnologia (inclusão digital, por exemplo), a<br />

democracia, a igualdade e a justiça social. Observa-se, por exemplo, que a premência de construção<br />

da identidade social e individual, de cidadania, atravessa as discussões acerca de currículo haja vista<br />

as proposições dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN‘s), que enfatizam que a possibilidade<br />

de democratização do conhecimento torna o sujeito escolar crítico e independente. As discussões<br />

sobre currículo, portanto, remetem a reflexões de cunho social e, sobretudo, a um movimento de<br />

auto-reflexão e de auto-avaliação dos agentes envolvidos no processo educacional.<br />

Referências Bibliográficas<br />

CAMBI, Franco. História da pedagogia. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 155-167.<br />

GOODSON, I. F. Currículo: teoria e história. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 29-43.<br />

HAMILTON, David. Mudança social e mudança pedagógica: a trajetória de uma pesquisa histórica.<br />

Porto Alegre: Teoria & Educação, n. 6, 1992, p. 3-52.<br />

_________________. Sobre as origens dos termos classe e curriculum. Porto Alegre: Teoria e<br />

Educação, n.6., 1992, p. 33-52.<br />

NARADOWSKI, M. Comenius & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 17-42.<br />

VARELA, J.; ALVAREZ-URIA, F. A maquinaria escolar. Teoria & Educação, n. 6, p. 68-96, 1992.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A LEI MARIA DA PENHA:<br />

UM ESTUDO TEÓRICO<br />

Severina Alves de Sissi de Almeida 56<br />

Adriana Ribeiro Aguiar 57<br />

Maria Antonia Almeida Climaco 58<br />

Milkya Valéria Costa Batista da Silva 59<br />

Odeisa Ribeiro dos Santos 60<br />

Resumo: Nosso objetivo neste artigo é fazer um estudo sobre a violência contra a mulher à luz da<br />

Lei Maria da Penha (LMP). Considerando a relevância social desta temática, analisamos a referida<br />

Lei em sua face prática, ou seja, como ela está sendo implementada e os resultados alcançados<br />

nestes quatro anos de sua vigência. A metodologia aplicada é uma pesquisa qualitativa mediante<br />

revisão bibliográfica. Os resultados mostram que apesar de LMP, a mulher ainda sofre violência no<br />

seio de seu lar, e que a denúncia ainda é a melhor arma para ela lutar contra essa situação.<br />

Palavras- Chave: Violência Contra a Mulher; Lei Maria da Penha; Violência Doméstica.<br />

Abstract: Our objective in this paper is to study on violence against women in the light of Maria da<br />

Penha Law (PML). Considering the importance of this issue, we analyzed this law practice in his<br />

face, or how it is being implemented and results achieved in these four years of its operation. The<br />

methodology is a qualitative research through literature review. The results show that although<br />

LMP, women still suffer violence within their home, and that the complaint is still the best weapon<br />

for her fight against this situation.<br />

Key words: Violence Against Women, Maria da Penha Law, Domestic Violence<br />

Introdução<br />

“Nunca use violência de nenhum tipo. Nunca ameace com<br />

violência de nenhum modo. Nunca sequer tenha pensamentos<br />

violentos. Nunca discuta, porque isto ataca a opinião do outro.<br />

Nunca critique, porque isto ataca o ego do outro. E o seu<br />

sucesso está garantido”.<br />

Mahatma Gandhi 61<br />

O presente artigo traz o resultado de uma pesquisa realizada sobre a violência contra a<br />

mulher no Brasil, tendo como foco central a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de<br />

2006). Segundo Queiroz (2008), um dos fatores que estimulam a violência praticada às mulheres é a<br />

impunidade, materializada na certeza de que nada acontecerá ao agressor. Contudo, esta realidade<br />

começa a ser modificada com a aprovação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que é fruto<br />

das pressões do movimento feminista e de direitos humanos, que visa a prevenir e combater a<br />

violência doméstica e de gênero.<br />

56 Pedagoga. Mestranda em Língua e Literatura no PPGL – Programa de Pós Graduação em Letras da UFT<br />

– Universidade Federal do Tocantins – Campus de Araguaina. E-mail: sissi@uft.edu.br<br />

57 Acadêmica do curso de Serviço Social na EADECON. adriannapink_1@hotmail.com<br />

58 Acadêmica do curso de Serviço Social na EADECON. maria-antonia2007@hotmail.com<br />

59 Acadêmica do curso de Serviço Social na EADECON.<br />

60 Acadêmica do curso de Serviço Social na EADECON.<br />

61 http://www.pensador.info/violencia_domestica/. Acesso, dia 16 de agosto de 2010.


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Várias são as batalhas que as mulheres enfrentam no seu quotidiano em relação aos maus<br />

tratos que recebem de seus parceiros. Contudo, de acordo com o Art. 2º da Lei 11.340/2006, toda<br />

mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível<br />

educacional, idade e religião, etc. goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendolhe<br />

asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e<br />

mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.<br />

Nesse sentido, este artigo, realizado através de uma pesquisa bibliográfica, analisa as<br />

principais causas da violência contra a mulher, refletindo sobre a aplicabilidade prática da Lei Maria<br />

da Penha que está em vigor desde agosto de 2006, portanto, há quatro anos.<br />

Dada a relevância social que assume o tema aqui tratado, acreditamos que podemos<br />

contribuir de forma direta com as mulheres que são violentadas diariamente por seus maridos, aqui<br />

na cidade de Aguiarnópolis, estado do Tocantins. Isso porque pretendemos, após a conclusão deste<br />

artigo, disponibilizá-lo, encaminhando uma cópia do mesmo aos órgãos competentes, para que<br />

dessa forma, sirva de fonte de consulta para todos aqueles que se preocupam com a situação em<br />

que a mulher se encontra, uma vez que ela é uma vítima, e que diante da violência que sofre nem<br />

sempre busca ajuda.<br />

Assim sendo, acreditamos que a Lei Maria da Penha é uma importante conquista não só da<br />

mulher brasileira, mas de toda sociedade, uma vez que foi idealizada por uma mulher que sofreu<br />

uma violência bem parecida com a de muitas outras histórias de violência de tantas outras mulheres.<br />

Também porque demonstra que as mulheres que são vítimas não estão sozinhas, desde que tem<br />

nesta Lei um amparo legal.<br />

1 – Violência doméstica e a Lei Maria da Penha: caminhos que se entrecruzam<br />

“A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é<br />

sempre uma derrota”.<br />

Jean-Paul Sartre 62<br />

A violência contra a mulher, não apenas no Brasil, mas em muitos outros países, é uma das<br />

principais causas de desajuste nas famílias, principalmente em relação ao trauma que causa nos<br />

filhes que sempre estão presentes nos momentos de agressão.<br />

Segundo Carneiro (2009), esse tipo de violência:<br />

Manifesta uma série de comportamentos prejudiciais que lhes são dirigidos em<br />

razão de seu gênero, incluindo o abuso psicológico-emocional, o abuso sexual, o<br />

homicídio, o abuso de meninas, a prostituição forçada e a própria mutilação<br />

sexual feminina. Especificamente, a violência às mulheres inclui todo ato de<br />

força verbal ou física, de coerção ou ameaça, dirigida individualmente a uma<br />

mulher, causando dano físico ou psicológico, humilhação ou privação arbitrária<br />

da liberdade, com vias de perpetuação. (CARNEIRO, 2009, P. 3).<br />

O que se percebe nesta fala, é que a mulher encontra-se exposta a diversas formas de violência,<br />

por exemplo, física, psicológica, moral e até espiritual, desde que todas as agressões que ela sofre<br />

vão além da dor corporal, atingindo também a sua alma.<br />

Neste contexto, Piovesan e Pimentel (2007) entendem que a Lei Maria da Penha, ao enfrentar<br />

a violência que de forma desproporcional acomete tantas mulheres, é instrumento de concretização<br />

da igualdade material entre homens e mulheres, conferindo efetividade à vontade constitucional,<br />

62 http://www.pensador.info/violencia_domestica/. Acesso, dia 16 de agosto de 2010.


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inspirada em princípios éticos compensatórios. ―Atente-se que a Constituição dispõe do dever do<br />

Estado de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares (artigo 226,<br />

parágrafo 8o). Inconstitucional não é a Lei Maria da Penha, mas a ausência dela‖ (PIOVESAN E<br />

PIMENTEL, 2007, P. 4).<br />

1.1 – Lei Maria da Penha: Proteção e auxílio às mulheres em risco de violência doméstica<br />

A Lei Maria da Penha se apresenta como uma forma importante de ajudar a mulher vítima da<br />

violência doméstica, sendo mesmo um apoio nos momentos mais difíceis pelo qual passam todas<br />

aquelas que são expostas à brutalidade de seus parceiros.<br />

De acordo com Piovesan e Pimentel (2007), em nosso país a violência doméstica contra a<br />

mulher é um problema social, e tem sido combatida desde a década de 1970 com a atuação do<br />

movimento feminista, sendo que as lutas se ampliaram, no início dos anos 1980, mediante<br />

denúncias de espancamentos e de maus-tratos conjugais impulsionando a criação dos primeiros<br />

serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência, a exemplo dos SOS Mulher e no âmbito<br />

governamental das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAM), criadas a partir<br />

do ano de 1985.<br />

Segundo Safiotti (2004), o fenômeno da violência contra a mulher é próprio das<br />

organizações desiguais de gênero que, por sua vez, são tão estruturais quanto a divisão da sociedade<br />

em classes sociais, ou seja, o gênero, a classe e a raça/etnia são igualmente estruturantes das<br />

relações sociais. Para Piovesan e Pimentel (2007), as diferenças entre homens e mulheres têm sido<br />

sistematicamente convertidas em desigualdades em detrimento do gênero feminino, sendo a<br />

violência contra mulher a sua face mais cruel.<br />

No entanto, apesar dos altos índices de violência contra as mulheres no Brasil, as políticas<br />

públicas de prevenção e combate à violência contra a mulher não tem tido bons resultados, sendo<br />

mesmo, na maioria das vezes ineficientes, visto que existem poucos serviços disponíveis, bem como<br />

a falta de profissionais capacitados (as) e/ou sensibilizados (as) para atuarem junto a esta<br />

problemática. No caso da Lei Maria da Penha, apesar de sua divulgação pelos meios de<br />

comunicação em massa, sua aplicabilidade se torna ineficiente porque muitas mulheres, temendo a<br />

reação de seus maridos violentos, nem sempre denunciam, o que colabora para que a situação se<br />

agrave cada dia mais.<br />

1.2 – A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006) em perspectiva<br />

É a partir dos anos 1970, quando foi promulgada a Lei do Divórcio (Lei nº 6.515, de 26 de<br />

dezembro de 1977), que a mulher brasileira passa a ser menos oprimida no seu lar, mas é só na<br />

década de 1980 que os Estados da Federação foram incentivados a criar delegacias especializadas<br />

para cuidar dos casos de violência contra a mulher. Mas, apenas em 2006, com o advento da Lei<br />

Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006), a sociedade brasileira cria mecanismos<br />

para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, como é o caso da ordem programática<br />

de criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.<br />

Segundo Medeiros, Oliveira e Veloso (2009), essa Lei surge com o fim de coibir a violência<br />

doméstica e familiar contra a mulher, sendo esta mesmo uma das formas de violação dos direitos<br />

humanos (art. 6º). Tal afirmação pode ser constatada ao lermos o artigo 5º da referida Lei,<br />

parágrafos de 1 a 3 que diz o seguinte:<br />

[...] configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou<br />

omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual<br />

ou psicológico e dano moral ou patrimonial:


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I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio<br />

permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as<br />

esporadicamente agregadas;<br />

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por<br />

indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por<br />

afinidade ou por vontade expressa;<br />

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha<br />

convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único.<br />

As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.<br />

Nesta perspectiva, está claro que a opressão por parte dos seus companheiros é uma das<br />

mais cruéis formas de violência que a mulher enfrenta em sua vida doméstica e, segundo Medeiros,<br />

Oliveira e Veloso (2009), devemos entender que o termo violência engloba aspectos de<br />

discriminação, exploração, crueldade e opressão. Isso também está explícito na Lei Maria da Penha<br />

que em seu Art. 7º, parágrafos de 1 a 5 afirma que são formas de agressão:<br />

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua<br />

integridade ou saúde corporal;<br />

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause<br />

dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o<br />

pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,<br />

comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,<br />

humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição<br />

contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito<br />

de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à<br />

autodeterminação;<br />

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a<br />

presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante<br />

intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a<br />

utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer<br />

método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à<br />

prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que<br />

limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;<br />

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure<br />

retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de<br />

trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,<br />

incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;<br />

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia,<br />

difamação ou injúria.<br />

Nesse sentido, é importante lembrar que:<br />

(...) as propostas jurídico-punitivas que tutelam o assunto da violência contra a<br />

mulher delimitam-se pelo vínculo afetivo, oriundo das relações privadas, e<br />

esquecem-se das violências simbólicas presentes na nossa sociedade que<br />

contribuem com a prática da dominação masculina (MEDEIROS, OLIVEIRA<br />

E VELOSO, 2009, P. 8).<br />

Contudo, esses autores apontam que as violências física, psicológica, sexual, patrimonial e<br />

moral, como também as configurações de violências simbólicas, existem tanto no espaço privado e<br />

quanto no espaço público, e citam Saffioti (2005), entendendo que muitas análises, em termos de<br />

patriarcado, são incompletas por não se darem conta de que os vínculos familiares avançam os<br />

limites domésticos, estendendo-se pela sociedade inteira e, o que mais importante, lançando num<br />

patamar de extrema complexidade a relação marido-mulher, uma vez que é desta ordem de gênero<br />

que se origina toda forma de opressão e violência contra a mulher.<br />

Assim sendo, os reflexos dessa situação são sentidos em todos os demais setores da<br />

sociedade, o que se verifica também no espaço profissional, desde que são recorrentes, nos


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noticiários, menção a atos de assédio sexual seguido de perseguição contra a mulher em seu<br />

ambiente de trabalho, pois o homem também se sente dono desse espaço, e sendo assim persegue a<br />

mulher com quem convive, sabendo que dificilmente será punido.<br />

Aliás, a impunidade é um dos mais sérios aliados do homem em sua posição de opressor,<br />

pois, mesmo com a Lei Maria da Penha, eles continuam a espancar e até matar suas companheiras,<br />

isso porque sabem que dificilmente serão denunciados, e quando o são, na maioria das vezes não<br />

são condenados. Portanto, a impunidade precisa de ser combatida, tanto quanto a própria situação<br />

de violência e opressão.<br />

No que diz respeito à assistência à mulher em situação de Violência Doméstica e Familiar,<br />

o Capítulo 1 da Lei Maria da Penha, tratando das Medidas Integradas de Prevenção, diz em seu Art.<br />

8º que:<br />

A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a<br />

mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos<br />

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais,<br />

tendo por diretrizes:<br />

I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da<br />

Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde,<br />

educação, trabalho e habitação;<br />

II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações<br />

relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às<br />

causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra<br />

a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a<br />

avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;<br />

III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da<br />

pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou<br />

exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no<br />

inciso III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da<br />

Constituição Federal;<br />

IV - a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres,<br />

em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher;<br />

V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da<br />

violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à<br />

sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos<br />

direitos humanos das mulheres;<br />

Dessa forma, o caso da violência contra a mulher em nosso país passa a ser visto como um<br />

caso a ser tratado pelo Estado, evidenciando o caráter de política pública que envolve seu combate.<br />

Assim sendo, cabe à sociedade civil, através de organizações específicas sobre a questão, se<br />

mobilizar no sentido de reivindicar os direitos que são garantidos por Lei, e a partir daí promover<br />

ações punitivas em relação aos agressores, pois, como dito anteriormente, a problemática se agrava<br />

em função da impunidade que prevalece sempre nos casos que são noticiados.<br />

Conclusão<br />

“A violência familiar envolve membros de uma mesma família<br />

extensa ou nuclear, levando-se em conta a consangüinidade e a<br />

afinidade. Pode ocorrer no interior do domicílio ou fora dele. A<br />

violência intrafamiliar extrapola os limites do domicílio. A<br />

violência doméstica apresenta pontos de sobreposição com a<br />

familiar. Atinge, porém, também pessoas que, não pertencendo<br />

à família, vivem, parcial ou integralmente, no domicílio do<br />

agressor, como é o caso de agregadas (os) e empregadas (os)<br />

domésticas. (Saffioti, 2004:71)


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Este artigo tratou de discutir a violência contra a mulher, sob a perspectiva da Lei Maria da<br />

Penha (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006), que trata de regulamentar ações que venham a<br />

coibir a violência praticada contra a mulher, no local onde ela mais poderia se sentir segura, que é o<br />

seu lar.<br />

O estudo, que se realizou de forma teórica, foi possível a partir de uma revisão<br />

bibliográfica. A pesquisa, que se apresenta como qualitativa, deu-se a partir de um estudo teórico,<br />

quando consultamos alguns autores que discutem a temática, sendo que o foco da discussão é a Lei<br />

Maria da Penha.<br />

A investigação constatou que com o advento da referida Lei, a sociedade brasileira, em<br />

especial as mulheres vítimas de violência doméstica, tem alcançado avanços importantes, pois elas<br />

de alguma forma se sentem mais amparadas. Todavia, a situação ainda é preocupante, porque os<br />

homens que praticam tal violência não se intimidam, o que pode ser constatado pela recorrência de<br />

crimes noticiados pelos meios de comunicação, bem como pelo que observamos em nosso dia a dia<br />

na cidade onde moramos.<br />

A pesquisa constata também que esses agressores, na maioria das vezes, agem assim porque<br />

não são punidos com o devido rigor, pois nem sempre são condenados a qualquer pena, o que faz<br />

com que eles se sintam confiantes de que nada acontecerá contra eles.<br />

Outro fator que o estudo evidencia, diz respeito ao silêncio de muitas mulheres, pois, ao<br />

denunciarem seus companheiros, quando retomam sua rotina novamente estão expostas a novas<br />

agressões, e sendo assim resolvem silenciar para evitar uma situação de confronto, na qual elas saem<br />

sempre perdendo.<br />

Assim sendo, acreditamos que a Lei Maria da Penha deve ser aplicada com mais rigor, e<br />

que as mulheres precisam de mais segurança para enfrentar a situação, o que é dever dos órgãos<br />

públicos que atendem essas mulheres em situação de violência.<br />

Só assim poderemos ter uma sociedade mais justa e com as Leis sendo respeitadas, o que<br />

favorece a convivência familiar e social da mulher brasileira, desde que a justiça possa ser feita sem<br />

coerção, e a mulher possa exercer seu direitos inalienáveis de cidadania. Direito esse garantido,<br />

dentre outros documentos legais, pela Constituição Federal do Brasil (CRF/1988).<br />

Referências<br />

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. (CRFB/88). Versão on-line. Disponível:<br />

www.senadofederal.org.br. Acesso dia 03 de abril de 2009.<br />

______. Lei no 11.340 de 7 de agosto de 2006 - Coíbe a violência doméstica e familiar contra a<br />

Mulher. Disponível: www.planalto.gov.br/ccivil/_...2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso 16 de<br />

agosto de 2010.<br />

CARNEIRO, Valnêda Cássia Santos. A violência contra a mulher no Brasil e na América Latina:<br />

uma análise à luz dos Direitos Humanos. Disponível:<br />

http://www.f2j.edu.br/artigos/2009/a_violencia_contra_a_mulher_no_brasil.pdf . Acesso dia 16<br />

de agosto de 2010.<br />

GANDHI, Mahatma. http://www.pensador.info/violencia_domestica/. Acesso, dia 16 de agosto<br />

de 2010.<br />

MEDEIROS, Gracila Graciema de. OLIVEIRA, Wilma Janielle Souza de.VELOSO, Wanessa<br />

Souto. O Espaço Da Violência Contra A Mulher. Universidade Federal da Paraíba-UFPBA -<br />

Violência contra a mulher no Brasil e na América Latina: uma análise à luz dos Direitos Humanos.<br />

II Seminário Nacional de Gênero e Práticas Culturais: Culturas, Leituras e Representações.<br />

Disponível: http://itaporanga.net/genero/gt8/8.pdf. Acesso dia 16 agosto 2010.


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SARTRE, Jean-Paul. http://www.pensador.info/violencia_domestica//. Acesso, dia 16 de agosto<br />

de 2010.<br />

PIOVESAN, Flávia e PIMENTEL, Silvia. Lei Maria Da Penha: Inconstitucional não e a Lei, mas a<br />

ausência dela. Disponível: www.violenciamulher.org.br/index.php. Acesso dia 16 de agosto de<br />

2010.<br />

QUEIROZ, Fernanda Marques de. Lei Maria da Penha; Gênero; Violência contra a mulher. ST 11 -<br />

Exclusão social, Poder e Violência. (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte). Disponível:<br />

www.fazendogenero8.ufsc.br/.../ST11/Fernanda_Marques_de_Queiroz. Acesso dia 16 de agosto<br />

de 2010.<br />

SAFFIOTI, Heleieth I. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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BIBLIOTECA VIVA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA<br />

Silvana Aparecida Catellan Miliosi 63<br />

Resumo: Este artigo tem como finalidade relatar todas as etapas do projeto ―Biblioteca Viva‖<br />

desenvolvido na escola Ensino Básico Vice-prefeito Antonio Mamoni. Inicialmente far-se-á um<br />

breve histórico da Escola, em seguida mostra-se a fundamentação teórica do trabalho, no qual<br />

destacam-se alguns estudos que foram relevantes para a execução do projeto. Por fim, apresenta-se<br />

a metodologia, em que se descreve as etapas do trabalho, os resultados alcançados e as conclusões<br />

finais.<br />

Palavras- chave: biblioteca, interação, leitura, envolvimento.<br />

Summary: This article has as purpose to tell to all the stages of the project ―Alive Library‖. Initially<br />

a historical briefing of the Municipal School of Basic Education will become Vice-mayor Antonio<br />

Mamoni, after that theoretical recital of the work reveals to it, in which it is distinguished some<br />

studies that had been excellent for the execution of the project. Finally it is distinguished<br />

methodology, in which it describes the reached stages of the work, results and the final<br />

conclusions.<br />

Words key: library, interaction, reading, envolvement.<br />

Introdução<br />

O objetivo deste artigo é descrever o projeto ―Biblioteca Viva‖ implantado na Escola<br />

Municipal de Ensino Básico Antônio Mamoni, localizada no Município de Valinhos, (SP). O<br />

trabalho foi iniciado no ano de 2003, pela iniciativa da Diretora Silvana Aparecida Catellan Miliosi.<br />

O foco do projeto foi tornar a biblioteca um espaço que fosse usado pelos alunos, para que<br />

ocorresse um envolvimento deles na manutenção e organização desse espaço, isto é, fazer a<br />

biblioteca um núcleo vivo.<br />

A necessidade do projeto surgiu a partir de cinco problemáticas, são elas: (i) as dificuldades<br />

dos alunos na leitura, produção e interpretação de textos; (ii) evitar que a biblioteca tivesse o papel<br />

de ―depósito‖ de livros na escola; (iii) desenvolver a auto estima dos alunos e conseqüentemente da<br />

família; (iv) envolver a comunidade nas atividades da escola;(v) exercitar nos alunos o voluntariado<br />

e a cidadania.<br />

A Escola Municipal de Ensino Básico Antônio Mamoni existe há vinte e quatro anos.<br />

Inicialmente, o Governo Estadual de São Paulo era quem administrava essa instituição. A partir de<br />

1998 a escola começou a ser municipalizada.<br />

As famílias apresentam renda aproximada entre 1 e 4 salários mínimos. Os moradores do<br />

bairro exercem profissão de pedreiros, empregada domésticas, diaristas, motoristas de caminhões e<br />

outros autônomos.<br />

Grande parte dos pais de alunos da EMEB possui o Ensino Fundamental I incompleto.<br />

Suas moradias se constituem basicamente em casas populares de alvenaria, o bairro possui<br />

saneamento básico e ruas asfaltadas. A comunidade escolar convivia com histórias de violência.<br />

63 Diretora da EMEB Vice-Prefeito Antônio Mamoni possui Curso de Licenciatura Plena em Geografia e<br />

Pedagogia e pós graduação (latu sensu em Psicopedagogia)


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Em 2002 a professora Silvana assumiu a direção. O cenário encontrado foi preocupante, a<br />

escola precisava de uma reforma no espaço físico e o envolvimento ativo da comunidade, os pais<br />

tinham uma imagem negativa do ambiente escolar, pois estava desorganizada e sem credibilidade. A<br />

comunidade não se sentia motivada a matricular os filhos na escola do bairro. Existiam relatos de<br />

práticas de violência, tais como: brigas entre alunos na sala de aula, agressão verbal dos alunos<br />

contra os professores e de professores contra alunos, faltas constantes dos docentes, por conta<br />

disso os alunos ficavam freqüentemente sem aulas, e com tempo ocioso para brigar no pátio da<br />

escola, muitas mães se revezavam para ―olhar‖ os filhos na hora do intervalo.<br />

Além de todos esses problemas a escola não possuía nenhum atrativo para que os alunos<br />

interagissem com ela. A sala de informática contava com oito computadores quebrados, a sala de<br />

vídeo tinha uma TV de 20 polegadas patrimônio do estado, a biblioteca estava fechada com livros<br />

amontoados e velhos, enfim, os recursos pedagógicos eram limitados. Partindo dessa realidade a<br />

direção decidiu montar um projeto em que o foco fosse o aluno como agente transformador do seu<br />

espaço escolar.<br />

Assim a direção percebeu que precisaria resgatar a confiança dos alunos e da comunidade<br />

na escola. Partiu-se do principio que a auto-estima começa a se formar na infância, a maneira como<br />

as crianças são motivadas e tratadas, as experiências que elas vivenciam influenciam<br />

significativamente nas suas atitudes quando adultos.<br />

O caminho para o desenvolvimento do projeto biblioteca foi desafiador. A primeira etapa<br />

foi organizar o espaço. O acervo bibliotecário era mínimo e os professores também não tinham um<br />

trabalho adequado para usá-la, não havia orientação de um bibliotecário para catalogar os livros e<br />

mostrar o funcionamento correto. A Direção da escola pediu orientação à bibliotecária da<br />

Prefeitura de Valinhos para catalogar os livros, foram três meses de trabalho. A diretora com o<br />

auxilio da inspetora identificava os livros alfabeticamente por cores. Nesse período a direção<br />

começou a arrecadar papel e papelão para conseguir dinheiro para a APM 64, para melhorar a<br />

aparência externa da escola e sensibilizar a comunidade para questões de preservação do espaço<br />

físico.<br />

Neste período os alunos começaram a discutir a idéia de voluntariado e sua importância<br />

dentro da sociedade. Esse trabalho foi feito por meio de conversas informais, em circulares<br />

enviadas para os pais esclarecendo a comunidade a respeito das intenções da escola com o trabalho<br />

voluntário. Era necessário discutir a respeito do voluntariado com os alunos para que eles se<br />

sentissem motivados a trabalhar de forma voluntária na biblioteca. Com esse trabalho ―nasceu‖ o<br />

aluno MONITOR SOLIDÁRIO DA BIBLIOTECA VIVA.<br />

3. Fundamentação teórica<br />

Os estudos teóricos que fundamentam este artigo tem em sua temática duas questões, são<br />

elas: (i) reflexões acerca da concepção de leitura e (ii) alguns estudos que tratam do uso da<br />

biblioteca na escola.<br />

A concepção de leitura adotada neste projeto é a postulada por Kleimam (2000) que afirma<br />

que o ato de ler precisa permitir que o leitor apreenda o sentido do texto, não podendo<br />

transformar-se em mera decifração de signos lingüísticos sem a compreensão semântica dos<br />

mesmos.<br />

Desse modo, acredita-se que a prática da leitura está presente na vida da criança desde o<br />

momento em que ela começa a "compreender" o mundo no qual está inserida. A vontade de<br />

decifrar e interpretar o sentido de tudo que a cerca, de perceber o mundo sob diversas perspectivas,<br />

64 Associação de Pais Mestres. Essa associação administra as doações recebidas pela escola.


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de relacionar a realidade ficcional com a que às crianças vivem no contato com um livro, enfim, em<br />

todos estes casos os alunos estão de certa forma lendo.<br />

Lamentavelmente, é recorrente ainda na fala de alguns profissionais da educação o<br />

discurso que o aluno ―não gosta de lê nada‖, ―o aluno não sabe lê‖. Mas, questiona-se o que é esse<br />

―nada‖? Acredita-se que o aluno gosta da prática de leitura, afinal, ele compreende o mundo em que<br />

vive. Um exemplo prático disso é que os alunos dominam com maestria o uso de novas<br />

tecnologias, como a internet, conhecem com profundidade as redes sociais de relacionamento<br />

orkut, facebook escrevem em blogs , ao contrário de muitos profissionais da educação que em<br />

muitas situações não sabem dominar minimamente os recursos da rede mundial de computadores.<br />

Nesse sentido, o projeto ―Biblioteca Viva‖ parte do pressuposto de que trabalhar a<br />

leitura não é somente ―colocar‖ o aluno na frente de um livro para que ele decodifique as palavras,<br />

mas levá-lo a perceber que a leitura da palavra é precedida da leitura do mundo. Conforme<br />

defendeu Freire (1988, p.65):<br />

o ato de ler se veio dando na sua experiência existencial.<br />

Primeiro, a ―leitura‖ do mundo do pequeno mundo em que se<br />

movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo da<br />

sua escolarização, foi a leitura da ―palavra mundo‖. Na verdade,<br />

aquele mundo especial se dava a ele como o mundo de sua<br />

atividade perspectiva, por isso, mesmo como o mundo de suas<br />

primeiras leituras. Os ―textos‖, as ―palavras‖, as ―letras‖ daquele<br />

contexto em cuja percepção experimentava e, quando mais o<br />

fazia, mais aumentava a capacidade de perceber se encarnavam<br />

numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão ia<br />

aprendendo no seu trato com eles, na sua relação com seus<br />

irmãos mais velhos e com seus pais.<br />

No que se refere à biblioteca observa-se que historicamente o uso da biblioteca está<br />

diretamente ligado com a história da biblioteca pública no Brasil. A inauguração da primeira<br />

biblioteca pública no Brasil aconteceu no ano de 1811, foi marcada pela falta de um projeto<br />

articulado, geralmente, a biblioteca eram em lugares improvisados que não apresentavam uma<br />

estrutura adequada.<br />

4. Metodologia<br />

1º passo: Mobilização e Organização<br />

O primeiro passo foi o levantamento dos livros, no inicio havia somente 500 livros e<br />

poucas prateleiras. Por meio da divulgação do projeto na comunidade e na rede de Ensino a escola<br />

começou a receber doações de livros. Alguns livros foram doados pelo poder público e por<br />

professores. Hoje a biblioteca conta com o acervo de 4.774 livros.<br />

2º passo: Orientação para os professores<br />

Com a organização dos livros o passo seguinte foi orientar os professores a respeito do uso<br />

da biblioteca. Para o sucesso do projeto acredita-se que ter somente uma biblioteca organizada não<br />

é o suficiente. Por essa razão, criou-se um plano estratégico para que o professor pudesse<br />

desenvolver um trabalho produtivo nesse espaço. Esse plano consiste em:<br />

(i) criar normas para o uso da biblioteca;<br />

(ii) estabelecer um calendário semanal para pesquisa e retirada de livros;<br />

(iii) orientar os alunos quanto às normas da biblioteca;


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3º passo: Orientação para os monitores da biblioteca<br />

O trabalho com os monitores começa com o treinamento ministrado pela Coordenação e<br />

Direção. O treinamento tem uma duração de 20h/a e possui dois pilares centrais, são eles: (i)<br />

responsabilidade; (ii) respeito ao ser humano. Para ser monitor o aluno necessita apresentar uma<br />

postura comprometida com a escola e ser um leitor voraz, por essa razão no treinamento os alunos<br />

são orientados a manter o hábito de leitura, a mostrar um excelente desempenho escolar, a manter<br />

um relacionamento saudável com os seus colegas além de ser prestativo.<br />

Além disso, o treinamento ensina como os alunos devem proceder dentro da biblioteca, por<br />

isso foi ensinado a eles.<br />

- Técnica para arquivar os livros<br />

- Respeito às regras da escola;<br />

- Trabalhar em equipe;<br />

- Manutenção dos livros;<br />

- Etiquetar livros;<br />

- Indicação dos livros;<br />

Os alunos monitores recebem as camisas e assinam um termo de responsabilidade devendo<br />

devolvê-la em novembro quando encerra os trabalhos do ano e começa a arrumação para o ano<br />

seguinte, com organização geral dos livros, restauração e vistoria geral das estantes.<br />

4º passo: Controle<br />

Os alunos monitores controlam a saída e entrada dos livros. Dois alunos monitores<br />

organizam e controlam a leitura de uma sala de aula;<br />

4. Resultados Obtidos<br />

Desde sua implantação o projeto biblioteca viva provocou uma mudança representativa na<br />

vida dos alunos e da comunidade que cerca a Escola de Ensino Básico Antônio Mamoni,<br />

destacamos as seguintes<br />

(i) Oitenta inscrições por ano para monitoria;<br />

(ii) Trabalha-se com quarenta monitores nos dois períodos Fundamentais l e ll<br />

(iii) A biblioteca e um núcleo vivo na escola<br />

(iv) A comunidade do bairro participa das decisões no que se refere<br />

(v) O numero de alunos matriculados aumentou<br />

(vi) Houve avanços na produção de leitura e escrita dos alunos<br />

Considerações Finais<br />

O impacto do projeto na vida das crianças é extraordinário. Além de criar o gosto e o<br />

hábito pela leitura os alunos desenvolvem atividades que extrapolam o espaço da sala de aula. A<br />

escola promove o dia da Reabertura anual da biblioteca, que acontece em meados de março, nesse<br />

momento os monitores aprovados na seleção, organizam uma peça teatral cujo tema é voltado para<br />

temas como: virtude, solidariedade, caridade, respeito ao próximo, é apresentado para toda a escola.<br />

Nesse dia a direção da escola oferece um coffe break para os monitores voluntários. É gratificante e<br />

emocionante perceber a forma como os alunos sentem-se respeitados, motivados e acima de tudo<br />

valorizados, enquanto, cidadãos que fazem à diferença na escola.


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A relação das famílias com a escola mudou significativamente, por meio do projeto e das<br />

melhorias feitas no espaço físico. Quando o projeto iniciou eram cinco monitores, um por dia<br />

atendendo apenas os alunos do fundamental I. No ano seguinte o número de alunos aumentou e<br />

passou a ser dois monitores por dia totalizando dez na semana. No ano de 2007 a procura foi tão<br />

grande que houve a necessidade de um processo seletivo. A seleção se faz por meio de uma<br />

produção textual com os seguintes temas: (i) para os já monitores o tema é ―O que eu aprendi<br />

como monitor da biblioteca‖ para os alunos novos o segundo tema é ―O que eu tenho de<br />

ESPECIAL para ser monitor da biblioteca‖.Com todos os avanços obtidos por meio do projeto os<br />

pais dos alunos começaram a incentivar os filhos a participar das atividades propostas pela escola e<br />

com isso eles envolvem toda a família.<br />

Depois de sete anos do projeto ―Biblioteca Viva‖ a auto-estima dos alunos foi resgatada.<br />

Porém, é necessário avançar mais, principalmente, estruturalmente é necessário o acervo literário<br />

precisa ser ampliado, pois a demanda de leitores aumenta a cada ano.<br />

Bibliografia<br />

ANDRADE, Araci Isaltina de. Atividades de incentivo à leitura em bibliotecas escolares: biblioteca<br />

do Colégio Estadual Simão Hess. Florianópolis, 1997. (Relatório do projeto de extensão -<br />

Departamento de Biblioteconomia e Documentação da UFSC).<br />

BLATTMANN, Ursula. Atividades de incentivo à leitura em bibliotecas escolares: biblioteca da<br />

Escola Desdobrada Jacinto Cardoso. Florianópolis, 1996. (Relatório do projeto de extensão -<br />

Departamento de Biblioteconomia e Documentação da UFSC)<br />

CALIXTO, José Antônio. Biblioteca pública versus biblioteca escolar: uma proposta de mudança.<br />

Cadernos BAD, Lisboa, n. 3, p.57-67, 1994.<br />

FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. 22 ed. São<br />

Paulo: Cortez, 1988.<br />

KLEIMAN, Ângela. Oficina de Leitura – teoria e prática. Campinas – SP: Pontes/ Unicamp, 2000.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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TRADUÇÃO EM CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS: A DESCONSTRUÇÃO<br />

DE UMA VISÃO METAFÍSICA<br />

Tatiany Pertel<br />

Resumo: Considerando um conjunto de princípios reunidos a partir da perspectiva filosófica<br />

desconstrutivista e da pós-colonial, buscamos discutir e problematizar a questão do texto ―original‖<br />

e do texto traduzido, entendendo a tradução como um processo dinâmico, uma atividade produtora<br />

de significados.<br />

Palavras-chave: Tradução; desconstrução; pós-colonialismo.<br />

Abstract: Relying on a set of principles collected from a deconstructive philosophical perspective,<br />

and also on a post-colonial perspective, the question of the original text and the translated text is<br />

discussed and problematized, taking translation as a dynamic process, a producer of meanings.<br />

Word keys: Translation, deconstruction, post-colonialism<br />

Introdução<br />

Em contextos pós-coloniais, a problemática da tradução tornase<br />

lugar significante para o surgimento de questões relacionadas<br />

à representação, poder e historicidade (NIRANJANA,<br />

1992, p. 1, tradução nossa).<br />

Uma das atividades cognitivas mais antigas do mundo, a tradução sempre foi foco de<br />

inúmeras discussões, tanto relacionadas a fatores linguísticos quanto a ideológicos. Porém, questões<br />

ligadas à comunicação interlingual, como a tradução interlingual 65, tiveram maior ênfase quando<br />

vimos, a partir dos anos noventa, surgir meios eletrônicos de comunicação mais avançados, como o<br />

computador e a internet. O fenômeno da globalização viabilizou tais questões e abriu caminho para<br />

que a tradução viesse desempenhar papel indispensável na gigantesca troca de informações entre<br />

países que não carregam diferenças somente linguísticas, mas também culturais, históricas e<br />

ideológicas. A ênfase dada a fatores ideológicos, bem como aos linguísticos ―[...] abre<br />

caminho à discussão do tema nos termos mais vastos do discurso pós-colonial 66‖<br />

(BASSNETT, 2003, p. XX).<br />

Essa atividade interdisciplinar que envolve desenvolvimento, crescimento, criatividade, é o<br />

tema central deste artigo, onde, a partir de uma conjuntura linguística baseada na perspectiva<br />

65 Em seu clássico ensaio sobre os aspectos linguísticos da tradução em 1959, Jakobson distingue entre três<br />

tipos diferentes de tradução: a tradução intralingual (interpretação dos signos dentro da mesma língua); a<br />

tradução interlingual ou tradução propriamente dita (interpretação dos signos entre línguas distintas) e a tradução<br />

inter-semiótica ou transmutação (interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais (JAKOBSON,<br />

1959, p. 64-65). No entanto, neste trabalho nos ateremos a questões concernentes à tradução interlingual.<br />

66 Discurso/Perspectiva Pós-Colonial vs. Discurso/Perspectiva Colonialista – Apesar de ser considerada uma época<br />

extinta, o período colonial – que antes era interpretado pela política utilizada pelos países colonizadores para<br />

exercer o poder e o controle sobre os territórios ocupados por elas através de poder militar ou por<br />

representantes do governo contra a vontade dos seus habitantes – ainda existe, porém possui outra forma: o<br />

colonizador, para sustentar seu ato de dominação, vem desenvolvendo um discurso de verdade que embute<br />

sua ânsia pelo poder.


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filosófica desconstrutivista e na pós-colonial, buscamos problematizar a questão do texto original e<br />

do papel do tradutor. Com o decorrer da discussão, surge a questão da interpretação, da<br />

representação, do discurso, da intencionalidade e do poder. A prática da tradução nos faz pensar na<br />

originalidade do nosso discurso, e na leitura que fazemos do discurso do outro.<br />

Desconstruindo a visão logocêntrica<br />

Considerar a atitude antropofágica do tradutor 67 é preocupar-se com fatores ideológicos e<br />

linguísticos, uma vez que, articulada ao discurso desconstrutivista 68 de Derrida, essa perspectiva vê<br />

o produto da tradução como outro original, e, dessa forma, oposta à noção logocêntrica 69 de<br />

interpretação atrelada ao texto original. Para Derrida ―não há signo linguístico antes da escritura 70‖<br />

(DERRIDA, 1973, p. 17). Dessa forma, poderíamos dizer que não há um significado primeiro, um<br />

original, como preconizam os estruturalistas. Em seu consagrado trabalho ―Gramatologia‖ (De la<br />

Grammatologie), Derrida chama esse significado com o qual sonha o estruturalismo, que ultrapassa os<br />

tempos e destrói todos os outros possíveis significados, de significado transcendental (DERRIDA,<br />

1973, p. 24). A cada escritura a relação significado/significante se refaz, tecendo-se novas tramas,<br />

formando-se diferentes desenhos, outras formas, e, assim, tendo-se, a cada nova leitura, ―[...] a<br />

ilusão de se prender o signo na nova malha‖ (GRIGOLETTO, 1992, p. 32).<br />

Muitos teóricos da área de tradução acreditam que o texto original possa ser descodificado<br />

e que uma leitura adequada possa revelar e proteger seu significado correto, sendo, dessa forma,<br />

perfeitamente possível preservar esse significado no texto-traduzido. Essa perspectiva encara o<br />

processo tradutório como uma atividade de simples transporte de significados do texto original para<br />

o traduzido, de uma língua para outra, e de uma cultura para outra (ARROJO, 1993), apresentando<br />

o tradutor como tendo ―função meramente mecânica‖ (ARROJO, 2002, p. 12), sendo, por uma<br />

visão/noção logocêntrica, e como denomina Venuti (1986 apud ARROJO, 1993, p. 138), ―[...]<br />

invisível em duas frentes, uma textual ou estética, a outra socioeconômica‖.<br />

Essa missão impossível, que, segundo Arrojo, é criada pelos defensores do logocentrismo<br />

para acometer o tradutor, também prevê a necessidade de o tradutor ter um conhecimento<br />

superior, saber tudo sobre as línguas, culturas, histórias e ideologias das línguas em questão. Nesse<br />

contexto, diz Arrojo, o tradutor deve buscar a ―[...] preservação ideal do significado original sem<br />

nenhuma alteração ou perda‖ (1993, p. 134-135). Porém, Walter Benjamin deixa claro que<br />

67 Esta é uma metáfora criada pelos tradutores brasileiros a qual identifica o sujeito tradutor como um canibal<br />

cujo intuito é devorar o texto original com a intenção de criar algo completamente novo a partir desse ato<br />

(BASSNETT, 2003, p. XX).<br />

68 Discurso desconstrutivista; perspectiva desconstrutivista – Segundo o discurso desconstrutivista não há signo<br />

lingüístico antes da escritura (DERRIDA, 1973, p. 17). Ou seja, para que se tenha a escritura em seu sentido<br />

metafórico, é necessário que se renuncie à noção de significado inscrito, fixo e imutável construído pelo<br />

autor, dando, assim, lugar ao leitor, que vai à busca desse significado.<br />

69 Noção logocêntrica/visão logocêntrica; Logocentrismo – Se refere à tendência no pensamento ocidental, desde<br />

Platão, em buscar a centralidade da palavra (logos), das idéias, dos sistemas de pensamento, de forma a serem<br />

compreendidos como formas inalteráveis. As verdades veiculadas pelo logocentrismo são sempre tomadas<br />

como definitivas e irrefutáveis. Todas as teorias ligadas ao logocentrismo acreditam que ―[...] é fora do<br />

sujeito/leitor ou receptor que se encontra a origem dos significados‖. Isso quer dizer que ―[...] a origem do<br />

significado é necessariamente localizada no significante (no texto, na mensagem, na palavra), nas intenções<br />

(conscientes) do emissor/autor, ou numa combinação ou alternância dessas duas possibilidades‖ (ARROJO,<br />

1992, p. 35).<br />

70 Escritura – Derrida utiliza esse termo fora do seu sentido corrente, levando em conta seu sentido<br />

metafórico. De acordo com o autor, no sentido corrente, a escritura ―[...] é letra morta, é portadora da morte.<br />

Ela asfixia a vida‖. Por outro lado, em seu sentido metafórico, a escritura remete à ―[...] voz da consciência<br />

como lei divina, o coração, o sentimento, etc.‖ (DERRIDA, 1973, p. 21). Ou seja, a escritura é tomada no<br />

sentido em que sua natureza se encontra na ―[...] voz que se ouve ao se encontrar em si‖: uma leitura íntima e<br />

individual que procede do interior de cada indivíduo. A escritura não está sujeita à autoridade de quem<br />

escreve. O sentido de um texto está sempre adiado, nunca pode ser fixado.


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―nenhuma tradução seria possível se, em sua essência, ela buscasse a aparência com o original‖<br />

(BENJAMIN, 2000, p. 17, tradução nossa). E adiante afirma que ―uma transferência literal de<br />

sintaxe destrói completamente a teoria da reprodução do significado e é uma ameaça direta à<br />

compreensão‖ (BENJAMIN, 2000, p. 21, tradução nossa).<br />

A visão centrada no conceito de logos é combatida pela desconstrução 71. Jacques Derrida,<br />

seu precursor e maior defensor, rejeita a idéia objetivista de uma estrutura inerente ao texto, por<br />

isso é conhecido por muitos como pós-estruturalista 72. A significação, segundo ele, é gerada num<br />

processo dinâmico, ela é o jogo formal das diferenças, ou seja, o signo somente adquire significação<br />

pela sua diferença em relação a outros elementos com os quais ele se encontra em contraste<br />

sintagmático ou em oposição paradigmática (SANTIAGO, 1976, p. 83). Por isso, o texto, numa<br />

perspectiva desconstrutivista, não pode assumir, nem possuir nenhuma significação definitiva.<br />

Em seu polêmico estudo ―A Morte do Autor‖ (1984), Barthes parece compartilhar dessa<br />

visão desconstrutivista enfatizando essa questão sob a perspectiva do autor. Segundo ele não existe<br />

a figura do autor fora ou anterior à linguagem. O autor, para Barthes, é um produto do ato de<br />

escrever – é o ato de escrever que faz o autor e não o contrário (BARTHES, 1984). Assim, a partir<br />

de uma visão desconstrutivista e, além de tudo, não-logocêntrica, podemos caracterizar o tradutor<br />

não como um simples descodificador e transportador de significados, mas como um autor que deve<br />

ter condições de ler, interpretar e produzir/transformar os significados provisórios que encontra<br />

em sua leitura em outros significados, sendo fiel, não ao texto original, mas àquilo que considera ser<br />

o texto original, àquilo que considera constituí-lo. Pois, o tradutor é, antes de qualquer coisa ―[...]<br />

primeiro um leitor e só depois um escritor‖ (BASSNETT, 2003, p. 132), e como leitor e produtor<br />

de significados, o tradutor será fiel à sua interpretação do texto de partida, que será, sempre, um<br />

produto daquilo que ele mesmo é, daquilo que pensa, daquilo que sente (ARROJO, 2002, p. 44).<br />

Essa transformação acontece dentro de um jogo de substituições infinitas:<br />

[...] não é porque a infinidade de um campo não pode ser coberta por um<br />

olhar ou um discurso finitos, mas porque a natureza do campo – a saber<br />

a linguagem e uma linguagem finita – exclui a totalização: este campo é<br />

com efeito o de um jogo, isto é, de substituições infinitas no fechamento<br />

71 Partindo do método especulativo de Nietzche, da fenomenologia de Husserl e da ontologia de Heidegger,<br />

Derrida apresenta a tese referente ao que chama de Desconstrução (Déconstruction), rejeitando qualquer<br />

definição estável ou dicionarizável para o que se entende por esse movimento. Através dele, Derrida fez<br />

repensar a forma como a linguagem opera. Desconjuntando os valores de verdade, significado inequívoco e<br />

presença, a Desconstrução aponta para a possibilidade de escrever não mais como representação de qualquer<br />

coisa, mas como a infinidade do seu próprio jogo. Tem como objetivo imediato criticar a metafísica ocidental e<br />

sua tendência ao logocentrismo. Do ponto de vista da análise textual, a Desconstrução visa a leitura de um<br />

texto de forma a revelar suas incompatibilidades e ambigüidades retóricas, suas aporias, o ponto cego que o autor<br />

nunca viu (RAJAGOPALAN, 1992, p. 26) demonstrando que é o próprio texto que as assimila e dissimula.<br />

Para alcançar tal intento, a desconstrução se apresenta como nada além do próprio estruturalismo levado às suas últimas<br />

conseqüências. Assim, o desconstrutivista se revela um estruturalista, porém com mais empenho e dedicação que<br />

os próprios estruturalistas praticantes e inveterados, num paradoxo que, segundo Rajagopalan, pode ser visto<br />

como o mais intrigante de todos (cf. RAJAGOPALAN, 1992, p. 26). O autor, como ensina Foucault, não<br />

representaria mais a fonte das significações que nos levam à interpretação correta de uma obra. Já o leitor,<br />

através da reflexão desconstrutivista, deixa de ser um simples “receptor”: o passivo decodificador de significados idealizado<br />

pelo logocentrismo [e] passa a se conscientizar de sua interferência autoral nos textos que lê (ARROJO, 1992, p. 38). Um<br />

texto é feito de escritas múltiplas [...] há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem<br />

dito até aqui, é o leitor (BARTHES, 1984, p. 53).<br />

72 O pós-estruturalista interpreta o pós da expressão pós-estruturalismo como nomeando algo que vem depois e<br />

que tenta ampliar o estruturalismo, colocando-o na direção certa. Constitui-se como uma crítica ao<br />

estruturalismo, feita a partir dele mesmo, ou seja, tende-se a voltar alguns dos argumentos do estruturalismo<br />

contra o próprio estruturalismo, apontando-se algumas inconsistências fundamentais em seu método que são<br />

ignoradas pelos estruturalistas.


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de um conjunto finito. Este campo só permite estas substituições<br />

infinitas porque é finito, isto é, porque em vez de ser um campo<br />

inesgotável, [...] em vez de ser demasiado grande, lhe falta algo, a saber<br />

um centro que detenha e fundamente o jogo das substituições<br />

(DERRIDA, 1971, p. 244-245).<br />

O centro sobre o qual fala Derrida corresponde ao logos defendido pelo logocentrismo.<br />

Esse logos (razão), segundo Derrida não pode existir, uma vez que ―[o] movimento da significação<br />

acrescenta alguma coisa, o que faz que sempre haja mais [...]‖ (DERRIDA, 1971, p. 245).<br />

Essa perspectiva desconstrutivista inscreve-se paralelamente à corrente pós-colonialista que<br />

recentemente vem redefinindo pensamentos e posições teóricas de muitos pesquisadores. Segundo<br />

essa nova corrente do pensamento pós-moderno,<br />

A tradução foi efetivamente usada no passado como instrumento do poder<br />

colonial, um meio de silenciar a voz dos povos colonizados. No modelo colonial<br />

havia uma cultura dominante, sendo os restantes subservientes, e a tradução<br />

reforçava esta hierarquia de poder (BASSNETT, 2003, p. 6).<br />

Da mesma forma que a desconstrução de Derrida vê a leitura enquanto acontecimento e a<br />

considera, junto à tradução, como fenômeno de construção e transformação de significados, de<br />

sentidos, a corrente pós-colonialista defende uma prática de tradução e leitura que faça o mesmo,<br />

fugindo da visão logocêntrica de um significado primeiro, original, correto, como afirma Arrojo: ―A<br />

tradução, como a leitura, deixa de ser, portanto, uma atividade que protege os significados<br />

―originais‖ de um autor, e assume sua condição de produtora de significados; mesmo porque<br />

protegê-los seria impossível‖ (ARROJO, 2002, p. 24).<br />

Em seu livro de grande sucesso e repercussão ―Siting Translation: History, Post-<br />

Structuralism, and The Colonial Context‖ (1992), a autora indiana Tejaswini Niranjana apresenta<br />

argumentos que serão retomados por pensadores que compartilham de uma visão crítica a respeito<br />

da tradução e abraçam uma postura pós-colonial. Nesse mesmo livro, a autora nos lembra que ―a<br />

prática da tradução provê a forma, ao mesmo tempo em que também a adquire dentro das relações<br />

assimétricas de poder que operam sob colonialismo‖ (1992, p. 2, tradução nossa).<br />

A linguagem e o discurso com que são construídas as traduções são os maiores<br />

responsáveis por colocá-la como instrumento que enfatiza a ―[...] desigualdade das relações de<br />

poder‖ que caracterizam o processo colonizador (BASSNETT, 2003, p. 7), principalmente no<br />

mundo globalizado de hoje, onde ―[...] os contatos entre os povos estão se processando na<br />

velocidade da luz‖ (RAJAGOPALAN, 2003, p. 26).<br />

Se pensarmos pelo prisma linguístico, com implicações textuais, temos o autor do texto<br />

como construtor de sentidos que, a partir de sua visão e linguagem sociopolíticas, construídas<br />

através de suas interações com a sociedade em que está inserido, passa a ser um transmissor do<br />

discurso que ouve. O discurso, na visão de Rajagopalan, não é de outra ordem senão política, e<br />

carrega o poder de assujeitamento, dominação, e é frequentemente utilizado como ferramenta de<br />

manipulação identitária.<br />

Rajagopalan, com sua visão pós-colonialista, nos permite fazer uma ligação com as idéias<br />

sobre discurso e noções de poder e saber postuladas por Michel Foucault. Para Foucault (1996),<br />

existem regimes de verdade utilizados com o intuito de controlar e regular. Ele acredita que verdade e<br />

poder estão sistematicamente ligados. A verdade existe numa relação de poder, e este opera em<br />

conexão com a verdade. Segundo o teórico, cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política<br />

geral de verdade, isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros. Foucault<br />

assinala que o poder pode incitar, seduzir, induzir, facilitar ou dificultar, limitar ou ampliar, tornar


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menos provável ou mais provável. Sendo assim, podemos acreditar que o discurso é uma<br />

ferramenta de poder.<br />

Em seu discurso proferido na aula inaugural no Collège de France em 2 de dezembro de 1970,<br />

intitulado ―A Ordem do Discurso‖, Foucault questiona sobre o que haveria de tão perigoso no fato<br />

do discurso das pessoas proliferarem indefinidamente (FOUCAULT, 1996). E esse questionamento<br />

nos remete novamente à problemática sociopolítica da linguagem que discute Rajagopalan, fazendonos<br />

refletir a respeito dos discursos que escutamos a cada dia. O perigo, acreditamos, está em<br />

ouvirmos, aceitarmos e repetirmos os discursos que ouvimos, sem que haja alguma adequação aos<br />

nossos próprios interesses idiossincráticos. O perigo, insiste o pensador que sistematicamente<br />

rejeita verdades universais, estaria na normatização do discurso (FOUCAULT, 1996), que embute<br />

um elemento de poder.<br />

A posição de Rajagopalan com relação à noção de discurso tomada como<br />

ferramenta de colonização parece ter sido abordada anteriormente por Foucault:<br />

―O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de<br />

dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos<br />

apoderar‖ (FOUCAULT, 1996, p. 10).<br />

Através dessa noção de discurso problematizada por Foucault e questionada por<br />

Rajagopalan, o sujeito passa a ser entendido como tendo uma identidade provisória, pois é<br />

constantemente assediado pelos discursos alheios, que, por sua vez, também são passageiros, e<br />

utilizados pelo sujeito em detrimento do momento político-histórico em que vive, buscando, dessa<br />

forma, defender seus próprios interesses. Em ―A Escritura e a Diferença‖, Derrida já havia<br />

mencionado que ―a partir do momento que falo, as palavras que encontrei, a partir do momento<br />

que são palavras, já não me pertencem, são originalmente repetidas” (DERRIDA, 1971, p. 119).<br />

Essa visão de sujeito que parte de tal problematização sobre o discurso parece harmonizarse<br />

com a noção Bakhtiniana de sujeito assujeitado. De acordo com o pensamento Bakhtiniano, o<br />

sujeito emerge do outro e é dialógico, sendo que seu conhecimento é fundamentado no discurso<br />

que ele produz.<br />

Assim como Bakhtin, Rajagopalan acredita que o eu seja permeado pelos outros: ―Eu não<br />

sou, eu estou sendo‖ (RAJAGOPALAN, 1999, p. 1). Para Bakhtin o eu existe a partir do diálogo<br />

com os outros eus. Dessa forma, o estou sendo de Rajagopalan é reconstruído a cada interação com os<br />

outros estou sendo:<br />

Nossas personalidades estão ficando cada vez mais complexas, você não é mais<br />

um ser pronto e acabado, nunca foi aliás, e hoje, então, não há mais como<br />

provar isso, nós ―estamos sendo‖ a toda hora, [...] eu não ―sou‖ mais, eu ―estou<br />

sendo‖ alguma coisa (RAJAGOPALAN, 1999, p. 2).<br />

A tradução se insere nesse contexto por ser ferramenta que une o discurso do autor do<br />

texto-fonte a esse estou sendo, podendo, a depender do tradutor - quarto componente de uma relação<br />

quaternária confluente constituída por autor, texto, leitor e tradutor –, e de sua atitude perante o<br />

texto-fonte, transformar-se em outro tipo de ferramenta: um instrumento de colonização poderoso,<br />

fazendo, dessa forma, a manutenção dos contextos de poder, repetindo o discurso de determinadas<br />

nações e seus regimes de verdade (Foucault, 1996). Esse pressuposto é também discutido por<br />

Niranjana:<br />

Repensar a tradução torna-se uma atitude importante num contexto onde ela<br />

tem sido usada, desde o Iluminismo Europeu, para subscrever práticas de<br />

assujeitamento, especialmente para os povos colonizados. Tal atitude – um<br />

exercício de grande urgência para uma perspectiva pós-colonial que busca<br />

compreender ―sujeitos‖ já inseridos ―em tradução‖, apresentados e


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reapresentados a partir da visão colonialista – busca reclamar a noção de<br />

tradução através de sua desconstrução e recolocar seu potencial como uma<br />

estratégia de resistência (NIRANJANA, 1992, p. 6, tradução nossa).<br />

Sob tal perspectiva, deveria ser de extremo interesse da lingüística crítica 73 preocupar-se<br />

com a forma como são cunhadas as traduções pois, segundo Rajagopalan, o processo de<br />

referenciação está no âmago dessa discussão. Em seu livro de grande repercussão intitulado ―Por<br />

uma lingüística Crítica‖, Rajagopalan aborda a referenciação da seguinte forma: ―É inegável o<br />

importante papel desempenhado pelos termos cuidadosamente escolhidos a fim de designar<br />

indivíduos, acontecimentos, lugares etc. na formação de opinião pública‖ (RAJAGOPALAN, 2003,<br />

p. 85), pois, segundo ele haveria ―um julgamento de valores, disfarçado de um ato de referência<br />

neutra‖ (RAJAGOPALAN, 2003, p. 87).<br />

No importante artigo ―Pós-Modernidade e a tradução como subversão‖, Rajagopalan<br />

afirma, que [...] traduzir é antes de mais nada interpretar, e toda interpretação envolve<br />

representação‖ (RAJAGOPALAN, 2000, p. 3). Além disso, ―é preciso lembrar que a atividade de<br />

tradução sempre foi, sempre é, e sempre será um gesto de reescrever, de recriar, de reinventar o<br />

original‖ (RAJAGOPALAN, 2000, p. 3).<br />

A partir da premissa da existência de uma polissemia de múltiplos significados, segundo a<br />

visão desconstrutivista – e isso implica uma certa flexibilidade no ato de traduzir –, e que a tradução<br />

seria, antes de qualquer coisa, um processo de interpretação que levaria, necessariamente ao ato de<br />

reescritura, de reinvenção, pressupomos que o produto de um processo de tradução se<br />

transformaria em um novo original para o qual novos significados seriam atribuídos através da<br />

leitura, da interpretação e da representação do leitor, verdadeiro mantenedor do ―significado<br />

original‖.<br />

Conclusão<br />

Após analisarmos a tradução através de lentes multifocais, percebemos que o processo de<br />

tradução não pode ser considerado um processo de simples transporte de significados, como<br />

preconizam os defensores do logocentrismo. A tradução mostra-se um processo dinâmico de<br />

recriação, reinvenção, um processo intertextual e interdisciplinar, que exige do tradutor todo o seu<br />

conhecimento prévio e sua capacidade de transmitir a mensagem do texto fonte da forma mais<br />

original. O texto traduzido passa a ser considerado uma peça original, construída a partir de uma<br />

leitura única, pessoal, uma interpretação íntima do tradutor.<br />

Referências<br />

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73 Lingüística crítica - ―abordagem desenvolvida por um grupo da Universidade de East Anglia na década de<br />

1970. Eles tentaram casar um método de análise lingüística textual com uma teoria social do funcionamento<br />

da linguagem em processos políticos e ideológicos, recorrendo à teoria lingüística funcionalista associada com<br />

Michael Halliday (1978, 1985) e conhecida como lingüística sistêmica‖ (FAIRCLOUGH, 2001, p. 46-47).


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São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.<br />

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SANTIAGO, Silviano (Sup.). Glossário de Derrida. Trabalho realizado pelo Departamento de<br />

Letras da PUC/RJ. Rio de Janeiro: Edições F. Alves, 1976.<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011


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FERREIRA, José Sebastião. Ventre de Minas: poesia. Mariana: Aldrava Letras e Artes,<br />

2009, 124p.<br />

José Luiz Foureaux de Souza Júnior, Ph.D.<br />

UFOP<br />

O trocadilho é a segunda arte mais antiga da humanidade, ficando atrás (no bom sentido)<br />

apenas da boa e velha prostituição. Registros de trocadilhos podem ser encontrados ao longo de<br />

toda a história humana. O seu nome mais ―erudito‖ é Paranomásia ou paronomásia: figura de estilo<br />

que consiste no emprego de palavras parônimas (com sonoridade semelhante) numa mesma frase:<br />

espécie de jogo de palavras que apresentam sons semelhantes ou iguais, mas que possuem<br />

significados diferentes, de que resultam equívocos por vezes engraçados. No discurso, pode ser<br />

reconhecido como o uso de expressão que dá margem a diversas interpretações./ A etimologia<br />

ensina que a palavra é formada da seguinte maneira: trocado + -ilho. A língua espanhola cunhou<br />

expressão curiosa: a la trocadilla, que significa ―às avessas‖.<br />

Os trocadilhos constituem um dos recursos retóricos mais utilizados em discursos<br />

humorísticos e publicitários. Resulta sempre da semelhança fonética ou sintática de dois enunciados<br />

cuja conjunção, comparação ou subentendido (enunciado elíptico, não referido diretamente) cria<br />

um efeito inesperado, intencional ou não, aproveitando a sonoridade similar e o efeito de surpresa<br />

sobre o ouvinte ou o leitor da junção de significados díspares num mesmo contexto. Os trocadilhos<br />

mais frequentes são cacofonias em que uma determinada palavra é pronunciada de forma a parecer<br />

outra, geralmente com intenção humorística, maliciosa, obscena e/ou grosseira.<br />

De uma forma ou de outra, penso que o trocadilho pode ser um curioso e interessante<br />

instrumento de abordagem do fenômeno poético. Inventa, tanta coisa, codificam inúmeras regras,<br />

estipulam tantos critérios... Penso que mais um vai fazer diferença mínima. A placidez da superfície<br />

da crítica autorizada não há de se abalar. Por isso, penso que o trocadilho é a feliz chave de leitura<br />

do volume em epígrafe. Livro de poesia, essa matéria inconsútil, fruto de trabalho de urdiduras<br />

múltiplas e infinitas: fenômeno cultural. Explico-me.<br />

Em 2009, o prêmio Vivaleitura – Iniciativa do Ministério da Educação (MEC), do<br />

Ministério da Cultura (MinC) e da Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação,<br />

Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), com<br />

realização e patrocínio da Fundação Santillana. O apoio do Conselho Nacional de Secretários de<br />

Educação (Consed) e da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). O Prêmio<br />

Vivaleitura faz parte do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) – foi vencido por ANDRÉIA<br />

Donadon Leal, coordenadora de projetos da Associação Aldrava Letras e Artes, com sede em<br />

Mariana-MG. Ela apresnetou o projeto ―Poesia viva – a poesia bate a sua porta‖. Um grupo d<br />

epoetas aldravistas percorre as ruas da primaz de Minas Gerais, lendo poemas, distribuindo livros,<br />

incentivando a leitura, promovendo cultura, no mais elevado dos sentidos. Parte da produção<br />

poética desse grupo está reunida no livro Ventre de Minas.<br />

Esta associação congrega, entre outros, os quatro autores do livro aqui resenhado: Andreia<br />

Donadon Leal, Gabriel Bicalho, José Benedito Donadon Leal, e José Sebastião Ferreira – para<br />

seguir a ordem alfabética dos primeiros nomes. Poetas aldravistas, eles colaboraram na composição<br />

do volume, consolidando produção de quilate inqualificável, porque os pressupostos ―canônicos‖<br />

ainda parecem não se dar conta de que a flexibilidade e a criatividade são – estes sim! – critérios<br />

irrecorríveis para ler poesia, ler e interpretar, interpretar e criticar, se é que me entendem!<br />

Pois bem, a ideia do trocadilho, para mim, nasce no próprio título do volume – Ventre de<br />

Minas. Pensem comigo. A expressão pode significar um local que gera minas, como minas de ouro e<br />

prata, minas de ideias, minas de palavras. Por outro lado, pode também significar o ventre mesmo


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de Minas, onde Minas Gerais nasceu. De certa forma, o segundo sentido fica mais explícito dada a<br />

origem do movimento aldravista, a mesma da origem dos poemas. Na História da Literatura<br />

Brasileira, Minas Gerais comparece, repetidas vezes como fonte de inovações, renovações,<br />

protestos: dinamismo da criação literária, herdada, como as demais mundo afora, da antiguidade do<br />

próprio homem. Desde os árcades, esta tradição se consolida. Em vários momentos, a ribalta foi<br />

ocupada por nomes mineiros, radicados ou não nas alterosas. De um e/ou de outro modo, Minas<br />

Gerais sempre pontuou a poesia com centelhas de beleza e criatividade.<br />

O movimento aldravista, nessas quatro vozes poéticas, que passaram à fase da gestação<br />

nesse Ventre de Minas é um exemplo. Mais um e outromais: o aldravismo, metonimicamente bate à<br />

porta do cânone, clamando por atenção – devida e merecida – em acordes poéticos concertados<br />

por memórias, releituras, visadas e retornos poéticos. São os quatro cavaleiros de um novo<br />

apocalipse, em nada e por nada destruidor e ou temeroso. Carinhosamente os trato assim, daqui por<br />

diante. A poesia deles harmoniza uma proposta de poesia para ser debatida, degustada, desvendada,<br />

ao sabor da História de vida de cada leitor. Quatro livros em um. Cada um deles é ―um continente<br />

metonímico de uma possível particularidade de Minas‖.<br />

Gabriel Bicalho cria, em palavras as metonimizações das aldravas, símbolos de uma cultura<br />

social – tricentenária em Minas – chamando a atenção de quem está ―fechado‖, dentro de casa. José<br />

Benedito Donadon-Leal, discursivamente, também metonimiza as batidas das aldravas – sons que<br />

se misturam a sentimentos e ideias, provocando as retinas – por vezes cansadas – de leitores<br />

possíveis: uma provocação que clama por horizontes mais amplos. Andreia Donadon Leal e seus<br />

frutos, frutos de mulher e da terra, frutos verbo-visuais que alimentam a imaginação metonímica de<br />

quem se aventura por seu jogo de sedução pela palavra que visualiza o desejo. José Sebastião<br />

Ferreira, como um bebê carinhoso, clama pela maternidade de Minas – aventura existencial que não<br />

perde jovialidade, numa indisfarçada infância que se eterniza nas minerais palavras que suscitam<br />

memórias, igualmente eternas, porque vividas. São ―provocações para leitores disponíveis a<br />

descobertas‖.<br />

ponta de barriga<br />

ventre oco<br />

estufado<br />

de frutos outonais<br />

Andréia, sem se furtar à expressão da proverbial sensibilidade feminina, não cai na<br />

mesmice. Seus delicados versos remontam ao próprio título do volume, neste pequeno excerto. Do<br />

conjunto, destacam-se os versos que ecoam a maternidade – talvez perdida, sabe-se lá por que<br />

circunstância – na estação d ávida que, geral e popularmente dizem da fragilidade, do fim, da<br />

conclusão. Paradoxalmente, seu ―ventre‖ estufa a expressão poética do eterno feminino que, no<br />

embate dos gêneros, identifica, se assemelha, se aproxima, sem margens, nem cadeias, como o eco<br />

da voz alterosa que revoa sobre as montanhas da primaz.<br />

Coroação<br />

os anjos descem<br />

voando<br />

ladeira abaixo,<br />

no maior escarcéu,<br />

enquanto Nossa Senhora<br />

os espera<br />

pacientemente<br />

na Catedral,<br />

para ser coroada<br />

Rainha do céu.


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A infância e a inocência da criança permanecem nos versos de José Sebastião Ferreira. O<br />

sentido parece ser o de eternizar a magia da tradição que sobe e desce as ladeiras de Minas. O<br />

movimento, agitado como todos os que pontuam a infância, é volátil, mas permanece cristalizado<br />

na religiosidade que anima o caráter mais popular dessas mesmas tradições: a fé. Narrativa<br />

microscopia que se desenrola em versos, o poeta revive a memória, colorindo o devaneio com a<br />

delicadeza da criança e a grandiosidade da fé.<br />

duas faces<br />

a porta mesma<br />

intransponível<br />

obstáculo<br />

entre<br />

a casa<br />

e<br />

o<br />

caos<br />

Há quem diga que poesia é a mais pura expressão icônica da linguagem. Há quem duvide.<br />

Há quem discuta. Pode haver que não aceite. José Benedito Donadon Leal aposta na livre<br />

expressão da palavra poética, sem fugir aos torneios intrínsecos a um fazer – icônico, por que não?<br />

– poético que, metonimicamente desafia o olhar mais experimentado. A sombra, em tudo e por<br />

tudo refrescante dos hai kai, pontifica leve e transparente nos versos do poeta que, renovando o<br />

título do livro, abre espaço para experiências poéticas que não se dizem: objeto de tentativas<br />

retroalimentadas pelo desejo de... dizer.<br />

Da pedra II<br />

/<br />

limo<br />

ou lesma<br />

//<br />

visco ou palavra<br />

///<br />

sentir<br />

:<br />

toda<br />

pedra<br />

sabe<br />

a poesia do musgo<br />

que a torna macia<br />

e<br />

a dura escritura<br />

da vida sombria<br />

:<br />

deixem-na<br />

polida<br />

!<br />

Os versos de Gabriel Bicalho criam atmosfera úmida serra que envolve Mariana. A<br />

reverberação de sensações táteis e visuais provoca o espírito atento e sensível para a voz que clama<br />

por permanência e cuidado. O grito de protesto pelo desperdício e o descuido, ecoa implícito nas<br />

rimas internas que repetem sons, na melodia suave enevoada do poema. Resulta do trabalho de<br />

escavar sentidos, como no percurso desse pequeno poema a fragilidade sólida do verbo poético<br />

que, virilmente, suaviza arestas para expor beleza e sensibilidade.


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Assim que o movimento começou a dar mostras de sua pujança artística – isso faz mais de<br />

dez anos – escrevi um pequeno texto que serviu de apresentação ao volume em que os aldravistas<br />

de Mariana apresentavam seus primeiros ―manifestos‖. Superando a sua herança cultural de<br />

projeção e liberdade, eles marcaram uma etapa de renovação no fazer poético de Minas Gerais,<br />

expandindo seus horizontes de expectativas para muito além das alterosas. Reproduzo aqui um<br />

pequeno trecho do referido texto de minha autoria. A reprodução dialoga com minhas impressões<br />

acerca do volume aqui resenhado. O ensejo é o de reafirmar minha convicção na mais absoluta<br />

certeza de que o aldravismo veio para ficar.<br />

Na contramão da acepção dicionarizada de aprisionamento, a aldrava, aqui, abre caminhos<br />

para um exercício de experimentação que em nada se torna pejorativo, quando observado sob a<br />

perspectiva de uma manifestação ―regional‖ de cultura. Regional, sim, sem medo da palavra, pois é<br />

exatamente do que se trata, quando se fala do ―aldravismo‖. A proposição espraiada pelas páginas<br />

do volume atesta a fertilidade do pensamento local, sem demérito de seu perímetro cultural, pois,<br />

sem ele, nada do que se conhece como cultura haveria de permanecer consolidado ao longo do<br />

tempo. A discussão sobre o cânone, as referências à cultura popular – sem, necessariamente,<br />

subscrever qualquer das perspectivas dialéticas que esse binômio já suscitou em nosso meio –<br />

fazem jus ao caminho trilhado pelos autores que, em seu conjunto, ultrapassam qualquer<br />

―classificação‖, uma vez que se colocam de maneira aberta e consciente à leitura, num gesto rasgado<br />

de abnegação e disponibilidade, traços de generosidade intelectual, raro, em nossos dias.<br />

A antologia poética não deixa de acompanhar o mesmo tom e, em seu conjunto, justifica e<br />

exemplifica, ao mesmo tempo, os protestos de manifestação do aldravismo, enquanto uma via<br />

peculiar, marcada por uma subjetividade igualmente peculiar que se enuncia em cada verso. Sem<br />

entrar no mérito supostamente crítico, arrisco uma opinião pessoal: trata-se de manifestação<br />

poética de valor cultural inegável que intriga pela simplicidade e se destaca pela crueza com que<br />

desenha o perfil regional de Minas Gerais, de uma maneira, até, original. O trabalho em seu<br />

conjunto merece atenção, não apenas por seu conteúdo, o que já seria justificável, mas por sua<br />

contribuição a um exercício tão pouco praticado, principalmente, por aqueles que se dizem<br />

intelectuais. Assumir essa ―identidade‖ não é jamais manter uma pose, mas se fazer, concretamente,<br />

instrumento de explicitação de idéias e ideais, artísticos acima de tudo, com a convicção de se estar<br />

construindo algo que contribua para incentivar a leitura, em seu sentido mais elevado e amplo. Esse<br />

é, a meu ver, o propósito aqui, o que, por si só, já justifica a leitura dos textos apresentados no livro<br />

Ventre de Minas.<br />

O livro, desde seu lançamento, é distribuído gratuitamente, para quem os poetas autores<br />

encontram pelo caminho. Os curiosos também podem ser aquinhoados com esse presente, uma<br />

pepita incrustada nas terras mineiras, não silente, não adormecida, mas rica de um fulgor caro e<br />

intrínseco à poesia: canto que move a existência. Como mais um ponto de partida, este trabalho do<br />

grupo de aldravistas de Mariana inaugurou um canto apreendido no ventre das alterosas e rompeu<br />

forte de suas próprias entranhas minerais – mais um trocadilho! –ressoando pelo Brasil e pelas<br />

lonjuras da África, da Europa e da América do Sul. Parabéns ao grupo. Vamos à leitura!<br />

Recebido em 15/01/2011<br />

Avaliado em 15/02/2011

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