Contadores de Histórias - Histórias Interativas
Contadores de Histórias - Histórias Interativas
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organização<br />
Benita Prieto<br />
1ª edição<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />
Prieto Produções Artísticas<br />
2011
© 2011 Organizadora Benita Prieto<br />
© Direitos <strong>de</strong> publicação<br />
prieto produções artísticas<br />
www.benitaprieto.com.br<br />
Coor<strong>de</strong>nação editorial: Benita Prieto<br />
Assistente editorial: Priscila da Cruz Vieira<br />
Revisão: Ana Letícia Leal<br />
Design <strong>de</strong> capa e projeto gráfico: Marcos Corrêa<br />
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE<br />
BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL-LÚCIA FIDALGO-CRB7/4439<br />
C759 <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes/<br />
Organização Benita Prieto. - Rio <strong>de</strong> Janeiro: s. ed, 2011.<br />
240p.<br />
ISBN 978-85-65126-00-7<br />
1. A arte <strong>de</strong> Contar <strong>Histórias</strong>. 2. <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>.<br />
I. Prieto, Benita, org. II. Título<br />
CDD: 808.068543<br />
22. ed.
“<br />
Assim <strong>de</strong>finido, o narrador figura entre os mestres e os sábios.<br />
Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio,<br />
mas para muitos casos, como o sábio. Pois po<strong>de</strong> recorrer ao<br />
acervo <strong>de</strong> toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a<br />
própria experiência, mas em gran<strong>de</strong> parte a experiência alheia.<br />
O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que<br />
sabe por ouvir dizer). Seu dom é po<strong>de</strong>r contar sua vida; sua dignida<strong>de</strong><br />
é contá-la inteira. O narrador é o homem que po<strong>de</strong>ria<br />
<strong>de</strong>ixar a luz tênue <strong>de</strong> sua narração consumir completamente a<br />
mecha <strong>de</strong> sua vida.<br />
O Narrador. Walter Benjamin.<br />
”
prosas<br />
....................................................................prosa <strong>de</strong> abertura<br />
13 Contação <strong>de</strong> estória: vida e realida<strong>de</strong><br />
Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna<br />
............................................................................................ )<br />
19 Contar histórias é alimentar a humanida<strong>de</strong> da humanida<strong>de</strong><br />
Carlos Al<strong>de</strong>mir Farias<br />
25 Contos indígenas: uma experiência com narrativas dos primeiros povos brasileiros<br />
Daniele Ramalho<br />
31 Negras histórias (a valorização da cultura oral afro-brasileira)<br />
Rogério Andra<strong>de</strong> Barbosa<br />
37 DeusNumDé: dom da visão<br />
Edmilson Santini<br />
............................................................................................ (<br />
45 Vozes, corpos e textos nos vãos da cida<strong>de</strong><br />
Júlio Diniz<br />
49 Muitas vidas, muitas vozes, muitas histórias<br />
Júlio Diniz & Morandubetá<br />
59 Impressões <strong>de</strong> uma contadora <strong>de</strong> histórias – meu encontro com a arte narrativa<br />
Bia Bedran<br />
67 A terceira margem da cena<br />
José Mauro Brant<br />
73 A voz quente do coração do rádio<br />
Gilka Girar<strong>de</strong>llo<br />
79 Contando na telinha<br />
Augusto Pessôa
85 Cinema: um griot cuja argila é o tempo e a estátua são os atores na fogueira da<br />
sala escura<br />
Paulo Siqueira<br />
95 Blog, uma janela para o mundo<br />
Marcio Allemand<br />
101 Paiquerê Piquiri Fiietó, um experimento com as linguagens<br />
Cléo Busatto<br />
105 Duas histórias contadas nos múltiplos caminhos dos Role-Playing Games (RPG)<br />
Carlos Eduardo Klimick Pereira & Eliane Bettocchi Godinho<br />
115 Como as histórias foram entrando na minha vida...<br />
Ana Luísa Lacombe<br />
121 Da boca da noite para a acolhida na escola<br />
Almir Mota<br />
127 Bibliotecas: vozes silenciadas?<br />
Nanci Gonçalves da Nóbrega<br />
137 A contação <strong>de</strong> histórias vivenciada no chão da universida<strong>de</strong>: um quase relato<br />
<strong>de</strong> experiência<br />
Edvânia Braz Teixeira Rodrigues<br />
143 Por on<strong>de</strong> passo, levo comigo os contadores <strong>de</strong> histórias<br />
Maria Helena Ribeiro<br />
151 Narrativas na empresa<br />
Fernando Goldman<br />
157 Fagulhas habitam multidões<br />
Célia Linhares
163 Nos caminhos da Maré<br />
Lene Nunes<br />
169 Entre hospitais gerais e psiquiátricos: histórias humanas e literárias como um rio <strong>de</strong><br />
caudaloso fio, tecendo re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> encontros na diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afluências do viver saudável<br />
Kika Freyre<br />
177 Contos na prisão: um espaço chamado liberda<strong>de</strong><br />
Rosana Mont’Alverne<br />
185 <strong>Histórias</strong> em sinais<br />
Lo<strong>de</strong>nir Karnopp<br />
191 Palavras táteis<br />
AnaLu Palma<br />
............................................................................................ *<br />
196 E eles foram felizes para sempre.<br />
Regina Machado<br />
203 O ofício <strong>de</strong> viver contando histórias<br />
Cristiano Mota Men<strong>de</strong>s<br />
209 O paciente como contador <strong>de</strong> sua própria história: o olhar <strong>de</strong> um médico homeopata<br />
Conrado Mariano<br />
...............................................................................prosa final<br />
215 As águas da memória e os guardadores da corrente <strong>de</strong> histórias<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Soares<br />
............................................................................................ &<br />
225 De quem são essas vozes
:prosa <strong>de</strong> abertura
Contação <strong>de</strong> estória:<br />
vida e realida<strong>de</strong><br />
o
[Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna]<br />
Vou arriscar uma <strong>de</strong>finição.<br />
VMais uma.<br />
Já tentaram <strong>de</strong> várias maneiras dizer o que é que <strong>de</strong>fine essencialmente o ser humano.<br />
Uns dizem, “homo faber”, porque ele sabe produzir instrumentos industriais <strong>de</strong><br />
trabalho ou <strong>de</strong> guerra;<br />
outros dizem – “homo economicus”, porque conseguimos estabelecer uma socieda<strong>de</strong><br />
baseada na economia, na qual viramos objeto <strong>de</strong> consumo;<br />
outros dizem – “homo lu<strong>de</strong>ns”, como Huizinga, e assim estudam o “jogo” presente<br />
na guerra, na poesia, no direito, etc.<br />
E assim continuam as intermináveis classificações que vêm <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o “homo sapiens”<br />
até aquilo que levou Cassirer a dizer que o homem é “animal simbólico” (“homo<br />
simbolicus”), ou seja, nossa habilida<strong>de</strong> em forjar símbolos exprime nossas perplexida<strong>de</strong>s<br />
e faz nossa história.<br />
Outro dia li um texto que falava do “homo aca<strong>de</strong>micus”, referindo-se a esses indivíduos<br />
com a cabeça ilhada <strong>de</strong>ntro das universida<strong>de</strong>s, falando um “trobar clus” mo<strong>de</strong>rno.<br />
Todas essas características são verda<strong>de</strong>iras. E cada uma é uma maneira <strong>de</strong> entrar<br />
no mistério da natureza humana. Penso se nessa sequência se po<strong>de</strong>ria introduzir um<br />
outro traço que nos caracteriza e que não é <strong>de</strong>sprezível. Não vou mais usar a seródia<br />
palavra “homo”, isto já prescreveu <strong>de</strong>pois que o feminismo botou por terra muitos<br />
preconceitos. Não dá para repetir aquela frase que, dizem, é <strong>de</strong> Monteiro Lobato: “um<br />
país se faz com homens e livros”. Bota mulher nisto.<br />
13
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
14<br />
Portanto, falemos <strong>de</strong> pessoas e <strong>de</strong> indivíduos incluindo aí necessariamente as mulheres.<br />
Então, digo: somos seres que contam e ouvem histórias. E nisto as mulheres, até mais que<br />
os homens, são as gran<strong>de</strong>s contadoras <strong>de</strong> história: mães, babás, tias, avós, madrinhas...<br />
Po<strong>de</strong>mos avançar um pouco mais e dizer: o ser humano é não apenas um ser que<br />
conta histórias e ouve histórias, mas sobretudo é um ser que faz história. Fazer história<br />
é a suprema audácia dos humanos. Os romancistas, os cineastas e os lí<strong>de</strong>res sociais,<br />
por exemplo, operam isto mais claramente. Não se contentam em ser atores, querem<br />
também ser autores, protagonistas <strong>de</strong> seu tempo.<br />
Portanto, somos seres irremediavelmente históricos.<br />
Digo isto e penso: eis uma observação banal. Qualquer pessoa sabe disto, não é<br />
necessário ser um erudito para chegar a essa conclusão. Aliás, até os analfabetos, que<br />
alimentam seu imaginário <strong>de</strong> contações <strong>de</strong> estórias, sabem disto. Então, por que fazer<br />
essa observação?<br />
Primeiro por uma razão, digamos pleonasticamente, “histórica”. Ou seja, a contação<br />
<strong>de</strong> estórias passou a ser revalorizada <strong>de</strong> maneira notável nas últimas décadas, sobretudo<br />
a partir dos anos 1980. Uma diversificada bibliografia que permeia diversos ramos do<br />
conhecimento nos dá conta <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira re<strong>de</strong>scoberta da arte <strong>de</strong> contar histórias.<br />
Isto está até mesmo nos consultórios psicanalíticos, que utilizam a “narrativida<strong>de</strong>” dos<br />
clientes como estratégia <strong>de</strong> tratamento, aperfeiçoando o que Freud há uns cem anos<br />
já praticara quando adotou “a cura pela palavra”, revalorizando assim a palavra falada<br />
capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>stravar neuroses e traumas.<br />
E isto se tornou tão visível e notável que as universida<strong>de</strong>s se voltaram para este fenômeno<br />
estudando o renascimento da contação <strong>de</strong> estórias em nossa cultura. Cursos <strong>de</strong><br />
contadores <strong>de</strong> história se espalham por todas as partes, ao mesmo tempo em que, paralelamente,<br />
cursos sobre leitura, casas <strong>de</strong> leitura, secretarias <strong>de</strong> leitura e até mesmo Cátedras<br />
<strong>de</strong> Leitura (a exemplo da PUC–Rio) começam a ser criados nas universida<strong>de</strong>s.<br />
Quer dizer, a leitura e a contação <strong>de</strong> estórias não apenas estão na moda, mas estão<br />
irremediavelmente geminadas.<br />
E isto, surpreen<strong>de</strong>ntemente, ocorre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> televisiva altamente
tecnológica, em que o cinema, a TV, a internet e os novos suportes ocupam espaços<br />
imensos no nosso cotidiano. Isto suce<strong>de</strong> numa socieda<strong>de</strong> que, segundo alguns, rejubilando-se<br />
<strong>de</strong> cultuar a imagem, <strong>de</strong>sprezaria a oralida<strong>de</strong> como se ela fosse um suporte<br />
primitivo e ultrapassado. Nesse sentido, assim como nos últimos cem anos alar<strong>de</strong>aram<br />
tantas mortes em nossa cultura – morte do autor, morte da arte, morte do homem, etc.<br />
– seria <strong>de</strong> se esperar que tivesse ocorrido a “morte” da arte <strong>de</strong> contar estórias.<br />
Não ocorreu. Ocorreu o contrário.<br />
Anotemos que uma das falácias <strong>de</strong> nosso tempo, seduzido pela visualida<strong>de</strong>, foi<br />
dizer que uma imagem vale mais que mil palavras. Será? Ou se po<strong>de</strong>ria dizer o contrário:<br />
uma metáfora, um hai-kai, uma estória valem mais que mil imagens? De qualquer<br />
forma, são afirmativas radicais que não ajudam muito a enten<strong>de</strong>r a riqueza do<br />
nosso contexto cultural.<br />
Penso, para efeito <strong>de</strong> raciocínio, nuns exemplos concretos, <strong>de</strong>ntro da própria arte da<br />
visualida<strong>de</strong>: o cinema, por exemplo. Po<strong>de</strong>ria citar o caso <strong>de</strong> um filme nacional, Narradores<br />
<strong>de</strong> Javé, <strong>de</strong> Eliane Caffé: aí toda uma comunida<strong>de</strong> recorre à narração para salvar-se<br />
do naufrágio no tempo e espaço, quando uma projetada represa expandisse suas águas<br />
sobre as casas da comunida<strong>de</strong>. A estória, a narrativida<strong>de</strong> e a memória passaram a ser<br />
a barragem imaginária contra a <strong>de</strong>struição, a ilha <strong>de</strong> salvação do imaginário humano.<br />
A filmografia sobre o valor das estórias orais tornou-se mais rica nos últimos tempos.<br />
E isto é sintomático do que estou dizendo. Penso num outro filme: Balzac e a costureirinha<br />
chinesa, tirado do romance homônimo <strong>de</strong> Dai Sigie. De novo estão o cinema<br />
e o romance nos dizendo da importância da narrativa oral. Mais do que isto, <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>ste filme/romance há algo fascinante: uma personagem confessa gostar mais da narrativa<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado filme do que do filme propriamente dito. Eis o cinema prestando<br />
homenagem à contação <strong>de</strong> estórias como uma pre<strong>de</strong>cessora da arte <strong>de</strong> narrar. E<br />
assim po<strong>de</strong>ríamos lembrar mais um filme, A camareira do Titanic, película que repousa<br />
sobre a inventiva capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um personagem <strong>de</strong> ir incrementando sua estória falsa<br />
& verda<strong>de</strong>ira e assim aumentando cada vez mais sua plateia até transformar a sua<br />
estória num espetáculo à parte.<br />
Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna<br />
15
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
16<br />
Anteriormente à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, foram os românticos os responsáveis pela revalori-<br />
zação da memória oral das comunida<strong>de</strong>s. Os romances foram uma recriação das nar-<br />
rativas orais. Por outro lado, os irmãos Grimm na Alemanha, o dinamarquês Hans<br />
Christian An<strong>de</strong>rsen e os romancistas, como Alexandre Dumas, Walter Scott e José <strong>de</strong><br />
Alencar, foram buscar nas lendas, na história, no folclore, o imaginário coletivo.<br />
E, na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, ocorrem insólitas revalorizações da palavra. A arte contemporânea,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter chegado ao abstracionismo, <strong>de</strong>u uma meia-volta em direção à<br />
palavra e institucionalizou a “arte conceitual” como uma das mais nítidas tendências<br />
do século XX. E isto se <strong>de</strong>u <strong>de</strong> tal forma que o “discurso” sobre os quadros ou obras<br />
passou a ser mais relevante que as próprias obras e a terem em relação a elas certa<br />
in<strong>de</strong>pendência. (Tratei disto no livro O enigma vazio, editado pela Rocco).<br />
A indústria das novelas <strong>de</strong> televisão, o cinema, o teatro, as estórias em quadrinho e<br />
os romances continuam mais fortes que nunca. A publicida<strong>de</strong> tornou-se uma forma <strong>de</strong><br />
narrar e <strong>de</strong> seduzir. Uma cida<strong>de</strong> é um livro, cheia <strong>de</strong> letras, como para o índio é a floresta.<br />
Disto tudo sobressai a palavra – narrativida<strong>de</strong>. Narramos sem saber que narramos<br />
e somos lidos até sem nos darmos conta <strong>de</strong> que nos estão lendo. Mais do que nunca<br />
torna-se urgente que as pessoas tenham consciência <strong>de</strong> que ler o mundo é uma tarefa<br />
contínua, <strong>de</strong>safiadora e propiciadora do sucesso pessoal e social.<br />
Somos estórias em movimento. Parábolas vivas. E quem conta estórias vive várias<br />
vidas numa só.
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Contar histórias é alimentar a<br />
humanida<strong>de</strong> da humanida<strong>de</strong><br />
o
[Carlos Al<strong>de</strong>mir Farias]<br />
Se o ato <strong>de</strong> sonhar não é uma exclusivida<strong>de</strong> dos humanos, contar histórias é<br />
Suma arte milenar exclusiva das socieda<strong>de</strong>s humanas. Foi graças à tradição oral que<br />
muitas histórias se perpetuaram, sendo transmitidas <strong>de</strong> uma geração para outra. Tudo<br />
começou em uma caverna, quando os primeiros caçadores e coletores se reuniram em<br />
volta das chamas da fogueira para contar histórias uns aos outros, sobre suas aventuras<br />
na luta pela sobrevivência, para dar voz à percepção fenomenológica dos eventos<br />
naturais e sobrenaturais, e, assim, entrar em conformida<strong>de</strong> com a or<strong>de</strong>m social e<br />
cósmica. Algumas <strong>de</strong>ssas histórias ficaram registradas nas pare<strong>de</strong>s das cavernas e ainda<br />
resistem às intempéries acontecidas durante os milhares <strong>de</strong> anos.<br />
As conquistas <strong>de</strong> uns povos por outros, a passagem da caça à agricultura, as migrações<br />
e as guerras foram difundindo e transformando as histórias das diferentes tradições<br />
culturais em elementos reconhecidos pelo corpo social, no qual o contador <strong>de</strong> histórias<br />
exercia o papel <strong>de</strong> guardião da memória e as narrativas formavam a enciclopédia do<br />
saber coletivo das socieda<strong>de</strong>s.<br />
Até hoje, em diferentes grupos sociais espalhados pelo planeta, por exemplo, indígenas,<br />
comunida<strong>de</strong>s rurais, ribeirinhas e remanescentes <strong>de</strong> quilombos, predominam<br />
as formas orais <strong>de</strong> comunicação; a cultura é transmitida por meio da oralida<strong>de</strong>. Essas<br />
socieda<strong>de</strong>s têm um conhecimento espetacular, pois <strong>de</strong>senvolveram um tipo <strong>de</strong> discurso<br />
argumentativo por meio das narrativas.<br />
No <strong>de</strong>curso do processo histórico, as histórias ancestrais, somadas a tantas outras,<br />
foram recriadas em função das circunstâncias e passaram a ser contadas pelas amas,<br />
19
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
20<br />
pelos avôs e pais, no calor da família. Séculos <strong>de</strong>pois, a invenção da imprensa salvou<br />
do esquecimento muitas <strong>de</strong>ssas histórias tradicionais que continuam sendo recontadas<br />
em diferentes espaços sociais, como escolas, universida<strong>de</strong>s, teatros e encontros <strong>de</strong><br />
contadores. Outras se per<strong>de</strong>ram, talvez para sempre ou, quem sabe, as carreguemos<br />
adormecidas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós sem saber.<br />
Narrar uma história é um modo <strong>de</strong> estruturar o mundo em função das nossas<br />
ações individuais. Implica um trabalho <strong>de</strong> organização da memória individual, feito a<br />
partir da acumulação e organização <strong>de</strong> dados <strong>de</strong> uma experiência não necessariamente<br />
vivida, visto que a memória é uma reorganização <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, impressões, subjetivida<strong>de</strong>s,<br />
afetos e conhecimentos adquiridos no vivido, na leitura, no imaginado.<br />
O ato <strong>de</strong> narrar requer um domínio do tempo narrativo, que correspon<strong>de</strong> a<br />
uma enunciação verbal do passado. Todos os contadores mantêm, por meio <strong>de</strong> suas<br />
histórias, um elo entre passado e presente, real e sobrenatural, possível e impossível,<br />
razão e imaginação.<br />
Por que é importante contar e ouvir histórias? Porque quando fazemos isso alimentamos<br />
duas das mais importantes características dos seres humanos: a imaginação criativa<br />
e a oratória. Somente os humanos dizem era uma vez... Somente nós fazemos isso: contamos<br />
a nossa história, a dos outros, escrevemos histórias, acrescentamos <strong>de</strong>talhes, criamos<br />
situações que não aconteceram <strong>de</strong> fato, imaginamos outros mundos, outros seres,<br />
outras paisagens, outras formas <strong>de</strong> ver e viver neste e em outros mundos imaginados.<br />
Os outros animais vivem e experimentam alegrias e dores, mas não sabem contar<br />
o que sentem. Não criam nem imaginam situações, não contam para os outros o seu<br />
passado. O mais fascinante é que usamos o recurso do antropomorfismo, ou seja,<br />
atribuímos formas e características humanas aos entes naturais e sobrenaturais. Nesse<br />
mundo mágico, as plantas, os animais e os humanos dialogam; as fábulas são bons<br />
exemplos disso.<br />
Mas há, também, outras razões para ouvir e contar histórias. A primeira é que,<br />
quando as ouvimos, <strong>de</strong>spertamos para situações que não tínhamos pensado antes.<br />
Dessa forma, ampliamos nossos conhecimentos, o que nos permite rever e reelaborar
alguns valores. A segunda é que as histórias mantêm sempre aceso o farol da imaginação,<br />
da criativida<strong>de</strong>, da curiosida<strong>de</strong>, da ludicida<strong>de</strong>. Elas <strong>de</strong>spertam o espírito juvenil<br />
que existe em qualquer pessoa, seja criança ou adulto. Quem sabe muitas histórias,<br />
certamente é porque ouviu, leu ou contou. Assim, dispõe <strong>de</strong> mais conhecimentos<br />
para enfrentar situações novas durante o seu percurso <strong>de</strong> vida, uma vez que, ao contrário<br />
da maioria das formulações científicas, as histórias rejeitam verda<strong>de</strong>s unívocas<br />
e permitem soluções múltiplas.<br />
É bom lembrar que, embora nenhum <strong>de</strong> nós vá viver para sempre, as histórias<br />
conseguem, pois enquanto restar uma única pessoa que saiba contá-las, elas não morrerão.<br />
Na condição <strong>de</strong> animais gregários, atualizamos dia após dia o ato <strong>de</strong> narrar.<br />
Talvez para enten<strong>de</strong>r quem somos ou para tomar consciência <strong>de</strong> que existimos. Para<br />
Clarissa Pinkola Estés, “as histórias que as pessoas contam entre si criam um tecido<br />
forte que po<strong>de</strong> aquecer as noites espirituais e emocionais mais frias” 1 . Somente elas<br />
revelam a aptidão peculiar e preciosa que os humanos possuem em obter êxito nas<br />
tarefas mais árduas. Fornecem, também, as instruções essenciais que precisamos para<br />
ter uma vida útil, necessária, irrestrita, significativa.<br />
Segundo Joseph Campbell, contamos histórias para entrar em acordo com o mundo,<br />
para harmonizar nossas vidas com a realida<strong>de</strong>2 . Sempre que me perguntam porque<br />
gosto tanto <strong>de</strong> histórias, costumo afirmar que o meu interesse por essas narrativas<br />
ancestrais nasceu na infância, pois cresci à sombra <strong>de</strong>ssa tradição dos meus antepassados<br />
no litoral sul do estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, nor<strong>de</strong>ste do Brasil. Des<strong>de</strong> cedo<br />
fui marcado na alma por uma heráldica narrativa que permanece até hoje. As histórias<br />
sempre estiveram presentes na minha vida, seja por meio dos contos narrados pelos<br />
contadores tradicionais do lugar on<strong>de</strong> nasci ou pelos vários livros <strong>de</strong> literatura lidos e<br />
relidos por mim ao longo dos anos.<br />
Hoje, nos momentos em que olho para trás, relembro o quanto as histórias<br />
permaneceram na minha memória, alimentaram a minha imaginação <strong>de</strong> emoções<br />
extraordinárias e tiveram uma ressonância na minha formação pessoal e profissional.<br />
Na minha tenra ida<strong>de</strong> nunca achei necessário dizer obrigado por aquelas porções <strong>de</strong><br />
1. O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1998, p. 38-39.<br />
2. O po<strong>de</strong>r do mito. Palas Athena, 1998<br />
Carlos Al<strong>de</strong>mir Farias<br />
21
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
22<br />
afetos literários emanados dos sábios contadores, que <strong>de</strong>dicaram parte <strong>de</strong> seu precioso<br />
tempo às crianças. Consi<strong>de</strong>ro um privilégio ouvir histórias, essa sensação <strong>de</strong> maravilhamento<br />
diante do espetáculo da imaginação humana. Para mim não existe um<br />
afeto poético maior. Se pu<strong>de</strong>sse voltar no tempo não teria palavras para agra<strong>de</strong>cer por<br />
aqueles momentos mágicos. Sou grato a todos os contadores que, com suas legiões <strong>de</strong><br />
personagens, iluminaram a minha vida.
Contos indígenas:<br />
uma experiência com narrativas<br />
dos primeiros povos brasileiros<br />
o
[Daniele Ramalho]<br />
Ninguém respeita aquilo que não conhece. 1<br />
Wabuá Xavante<br />
No ano <strong>de</strong> 1500 os europeus chegaram ao território que hoje chamamos <strong>de</strong><br />
NBrasil. Havia aqui cerca <strong>de</strong> mil povos indígenas cuja população foi drasticamente<br />
reduzida e que hoje se concentra em cerca <strong>de</strong> 280 etnias, que falam 160 línguas – um<br />
Brasil que certamente precisamos conhecer.<br />
No ano <strong>de</strong> 2000 comecei a contar histórias indígenas. Havia alguns anos da primeira<br />
visita ao Museu do Índio do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Ficava admirada com a riqueza<br />
da cultura daqueles que foram os primeiros habitantes <strong>de</strong> nossa terra e perplexa com<br />
nosso <strong>de</strong>sconhecimento sobre sua realida<strong>de</strong> – apesar <strong>de</strong> terem se passado mais <strong>de</strong><br />
quinhentos anos do primeiro contato.<br />
Yawanawá, Xavante, Enawenê-Nawê, Fulni-ô, Apurinã, Kuikuro, Mehinaku.<br />
Pesquisei diversas histórias e escolhi para estarem em “Contos indígenas” – aquele<br />
que seria meu primeiro espetáculo com este tema – narrativas das etnias bororo<br />
(“Subida para o céu”), kaxinawá (“A lenda da lua cheia”) e nambikwara (“O menino<br />
e a flauta”). A primeira conta a origem dos animais e das estrelas, a segunda mostra a<br />
origem da lua e da menstruação das mulheres e a terceira narra a origem dos alimentos<br />
e da flauta sagrada Wairu, que só po<strong>de</strong> ser vista pelos homens.<br />
As perguntas eram muitas: – Por que contar histórias indígenas em nossa socieda<strong>de</strong>?<br />
Como colaborar para difundir a tradição <strong>de</strong>stes povos? Como utilizar versões<br />
dos mitos tradicionais e fazer com que alguns <strong>de</strong> seus símbolos possam ser apreendidos<br />
por pessoas <strong>de</strong> outra formação cultural? Como abordar temas como sexualida<strong>de</strong> e<br />
morte, que para nossa socieda<strong>de</strong> são tabus, e que nas histórias indígenas são tratadas<br />
com naturalida<strong>de</strong>? De que modo eu <strong>de</strong>veria contá-las?<br />
1. Frase que norteia o trabalho do Instituto das Tradições Indígenas, para o qual trabalhei no projeto Rito <strong>de</strong> Passagem.<br />
25
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
26<br />
Divido com você “que me escuta” algumas reflexões após 11 anos <strong>de</strong> trabalho com<br />
a cultura indígena brasileira.<br />
Meu primeiro passo foi perceber que não há uma cultura indígena no Brasil, mas<br />
muitas, já que há gran<strong>de</strong>s diferenças entre o modo <strong>de</strong> vida das etnias encontradas<br />
em nosso território. Como sugeriu Lévi-Strauss, para que haja uma compreensão dos<br />
mitos indígenas o melhor é entendê-los em seus próprios termos, ou seja, compreen<strong>de</strong>ndo<br />
o pensamento <strong>de</strong> quem os produz2 .<br />
Fui buscar então maiores informações sobre as etnias e mitos que escolhi. Procurei<br />
referências que indicassem a que rituais se referiam, a que se <strong>de</strong>stinavam e com<br />
que finalida<strong>de</strong>. Dois <strong>de</strong>les preparavam os jovens para a iniciação ritual que marcava<br />
sua passagem para a vida adulta. Esta pesquisa foi fundamental para guiar algumas<br />
escolhas na construção do trabalho.<br />
Citarei um exemplo. No mito kaxinawá “O menino e a flauta” conto a origem da<br />
flauta wairu, que apenas aos homens é permitido ver. Como na historia o menino e<br />
seu pai escutam o som da flauta, po<strong>de</strong>ria ter sido o meu primeiro impulso usar uma<br />
flauta durante a narração. Com a pesquisa compreendi que, se a história trata exatamente<br />
da flauta wairu como um tabu para as mulheres, nada mais coerente do que eu,<br />
como mulher, não usar o instrumento na contação. Resolvi a questão reproduzindo<br />
o som da música ritual com minha voz. Mais que preciosismo, para mim este é um<br />
exemplo claro <strong>de</strong> como a pesquisa é importante no respeito às tradições do povo cuja<br />
história <strong>de</strong>sejamos apresentar.<br />
Durante o longo período em que coletei versões dos mitos, encontrei muitas diferenças<br />
nas adaptações. Achei preciosida<strong>de</strong>s como a coleção Morená, da escritora e<br />
ilustradora Ciça Fittipaldi, cujas versões uso no espetáculo.<br />
As narrativas dos mitos nos chegam normalmente em livros <strong>de</strong> antropólogos, escritores<br />
e pesquisadores que conviveram com povos indígenas. Há casos em que são narradas<br />
em português pelos indígenas – on<strong>de</strong> costumam se per<strong>de</strong>r <strong>de</strong>talhes importantes<br />
em função das histórias não serem recolhidas na língua <strong>de</strong> origem do narrador. Há<br />
casos também em que os mitos são gravados ou escritos na língua indígena, e, posteri-<br />
2. Clau<strong>de</strong> Lévi-Strauss revolucionou a antropologia através do estruturalismo, com importantes estudos sobre a análise<br />
<strong>de</strong> ritos e mitos
ormente, traduzidos – o que costuma apresentar melhores resultados.<br />
A importância <strong>de</strong> encontrar várias versões <strong>de</strong> uma mesma história é a possibili-<br />
da<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber o quanto foi preservado da essência daquela narrativa e o quanto<br />
há <strong>de</strong> adaptação do autor, que muitas vezes “adultera” ou “corrige” o conteúdo do<br />
mito para que o seu teor “primitivo” não entre em atrito com as normas sociais <strong>de</strong><br />
conduta <strong>de</strong> nossa cultura.<br />
Após o contato <strong>de</strong> nossa socieda<strong>de</strong> com os povos indígenas, foram criados projetos<br />
que visam registrar sua história mítica como, por exemplo, nas publicações utilizadas<br />
nas escolas indígenas ou em livros publicados por escritores indígenas – que, em<br />
diversos estilos literários, revelam a tradição ancestral. É a palavra dos antigos – que<br />
fala do tempo em que o mundo foi criado – apresentada pela nova geração, que<br />
mesmo após incorporar à sua cultura inovações como o uso da internet, luta para<br />
manter vivo o pensamento e o modo <strong>de</strong> vida harmônico <strong>de</strong> seu povo. Assim, apesar<br />
<strong>de</strong> terem sofrido mudanças significativas em seu imaginário, eles encontram meios <strong>de</strong><br />
manter a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e reverenciar a sabedoria ancestral.<br />
Voltando a “Contos indígenas”: optei por trabalhar no espetáculo com a corporalida<strong>de</strong><br />
como um meio <strong>de</strong> contar as histórias. Sempre me saltava aos olhos a maneira<br />
como os indígenas narram seus mitos. Um exemplo: na época em que trabalhei no<br />
projeto Rito <strong>de</strong> Passagem, do Instituto das Tradições Indígenas /IDETI, durante uma<br />
conversa com “Seu” Joaquim Yawanawá, ouvi-o narrando em pano (sua língua <strong>de</strong><br />
origem) o trecho <strong>de</strong> uma história. Eu não entendia o significado do que ele dizia,<br />
mas era impressionante o vigor e intensida<strong>de</strong> com que me contava os fatos; os gestos<br />
que fazia. Era como se revivesse na frente <strong>de</strong> sua ouvinte cada personagem e acontecimento.<br />
Sei que há outras possibilida<strong>de</strong>s, mas neste trabalho optei por uma forte<br />
presença da corporalida<strong>de</strong> para, <strong>de</strong> algum modo, trazer ao imaginário do público um<br />
encantamento e uma espécie <strong>de</strong> sentido ritual que consi<strong>de</strong>ro bastante a<strong>de</strong>quados para<br />
uma narração mítica.<br />
Como abordava três etnias diferentes, acabei optando por uma pesquisa mais<br />
genérica sobre referências corporais dos povos, encontrando uma corporalida<strong>de</strong><br />
Daniele Ramalho<br />
27
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
28<br />
única, que permeasse todo o espetáculo. No começo da construção do espetáculo<br />
“Contos indígenas”, eu e André Masseno, diretor do trabalho, utilizamos fotografias<br />
<strong>de</strong> pessoas dos povos abordados em ações físicas cotidianas. Reproduzimos estas<br />
ações num treinamento corporal, codificadas em partituras físicas, que <strong>de</strong>pois foram<br />
<strong>de</strong>vidamente esquecidas. Posteriormente, na composição das narrativas propriamente<br />
ditas, os gestos e movimentos foram reaparecendo. E o corpo encontrado se refletiu<br />
também na sonorida<strong>de</strong>. Aprendi palavras e cantos das etnias cujas histórias escolhi<br />
em sua língua original, aprendi sons que os indígenas fazem em seu cotidiano – e, aos<br />
poucos, codifiquei um modo diferenciado <strong>de</strong> abordar o som nas narrativas.<br />
E qual é a importância <strong>de</strong> contar mitos indígenas hoje? Sabemos que as narrativas<br />
míticas ajudam a compreen<strong>de</strong>r uma socieda<strong>de</strong>, trazendo sua visão sobre a or<strong>de</strong>m do<br />
mundo, suas regras <strong>de</strong> convívio – o que não só fortalece seu sentido <strong>de</strong> grupo, como<br />
carrega a sua memória. As histórias também preparam os indígenas para rituais <strong>de</strong><br />
passagem. Trazem a conexão entre mundo material e espiritual e falam <strong>de</strong> um encantamento<br />
que po<strong>de</strong> nos conectar novamente com a magia da vida gerando uma nova<br />
compreensão <strong>de</strong> nossa existência através <strong>de</strong> uma ancestralida<strong>de</strong> viva. Gosto muito <strong>de</strong><br />
Joseph Campbell quando ele diz que os mitos “...ensinam a se voltar para <strong>de</strong>ntro...” e<br />
“...nos permitem uma leitura das mensagens que o mundo nos emite”. As narrativas<br />
indígenas po<strong>de</strong>m, portanto, nos conectar para “além da internet” e gerar uma real<br />
ligação com o outro e com a socieda<strong>de</strong>.<br />
Sabemos que os mitos se referem a questões arquetípicas, tratando <strong>de</strong> símbolos<br />
que acessam emoções e imagens simbólicas que constituem a condição humana – o<br />
que nos leva a pensar que somos todos iguais! O africano Amadou Hampátê Bâ disse<br />
– referindo-se à tradição dos mitos <strong>de</strong> iniciação peuls – que “Um conto é um espelho<br />
on<strong>de</strong> qualquer um po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir a sua própria imagem.” 3<br />
Por outro lado, o mito traz um caráter específico da cultura a que pertence – ou<br />
seja, trata da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um povo; aquilo que o faz único – o que sugere que somos<br />
todos diferentes! Acredito que esta dicotomia presente nas narrativas míticas é que<br />
po<strong>de</strong> gerar reflexões que nos levem a ter maior tolerância com a diversida<strong>de</strong> cultural e<br />
3. Amadou Hampátê Ba foi escritor, historiador, poeta e contador <strong>de</strong> histórias nascido no Mali; um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>fensor da<br />
tradição oral africana.
fazer com que encontremos modos <strong>de</strong> convívio mais harmônicos com outras pessoas<br />
e culturas na gran<strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia global em que nos encontramos. É preciso, então, ver a<br />
oralida<strong>de</strong> como uma atitu<strong>de</strong> diante da realida<strong>de</strong>, ligada a uma visão <strong>de</strong> mundo e à<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação com o outro.<br />
Espero, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, que possamos dar voz à tradição indígena <strong>de</strong> nosso país;<br />
que as histórias <strong>de</strong>stes povos possam gerar respeito à riqueza da diversida<strong>de</strong> cultural<br />
brasileira e que elas sejam, cada vez mais, contadas e escutadas por todos e para todos,<br />
gerando mais compreensão e interação entre os povos.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u O po<strong>de</strong>r do mito. Joseph Campbell. Pallas Athena, 1990.<br />
u Subida pro céu. Ciça Fittipaldi. Melhoramentos, 1986.<br />
u O menino e a flauta. Ciça Fittipaldi. Melhoramentos, 1986.<br />
u Memória e construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s. Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos e Nilson<br />
Alves <strong>de</strong> Moraes (Orgs.). 7 Letras, 2000.<br />
u Mito e significado. Lévi-Strauss. Edições 70, 1985.<br />
Daniele Ramalho<br />
29
Negras histórias<br />
(a valorização da cultura<br />
oral afro-brasileira)<br />
o
[Rogério Andra<strong>de</strong> Barbosa]<br />
Eu me lembro muito bem... Tanto o meu pai quanto a minha mãe me contavam<br />
Ehistórias antes <strong>de</strong> eu dormir. As narrativas <strong>de</strong> meu pai, que era escritor, tinham<br />
um sabor especial, pois eram em capítulos inventados por ele mesmo, recheados <strong>de</strong><br />
aventuras mirabolantes, que se sucediam a cada noite. Foi assim que iniciei meus<br />
primeiros passos pelo fantástico mundo da contação <strong>de</strong> histórias.<br />
Depois vieram os livros que <strong>de</strong>spertaram em mim, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viajar.<br />
Mais tar<strong>de</strong>, trabalhei durante dois anos como professor-voluntário a serviço das<br />
Nações Unidas na Guiné-Bissau, África. Ali, me encantei com as apresentações dos<br />
griots e com a diversida<strong>de</strong> dos contos tradicionais africanos, tema <strong>de</strong> inspiração para<br />
muitos <strong>de</strong> meus livros.<br />
Essa experiência foi também importante para minha atuação como contador <strong>de</strong><br />
histórias e pesquisador da cultura oral afro-brasileira e africana.<br />
Nos últimos anos, graças aos movimentos organizados e, sobretudo, <strong>de</strong>pois da<br />
lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africanas e<br />
afro-brasileiras nas escolas <strong>de</strong> ensino fundamental e médio, público e particular, a<br />
literatura <strong>de</strong> raízes negras, nem sempre valorizada anteriormente, tem sido <strong>de</strong>staque<br />
em nosso panorama editorial.<br />
Também, pu<strong>de</strong>ra! Nós, brasileiros, somos frutos da união entre diversos povos e<br />
crescemos convivendo com uma rica pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> culturas.<br />
Os versos da canção <strong>de</strong> um violeiro das barrancas do Rio São Francisco, em Minas<br />
Gerais, resumem a questão:<br />
31
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
32<br />
Sou índio, sou branco, sou negro.<br />
Eu sou brasileiro.<br />
Portanto, as diferenças culturais <strong>de</strong>vem ser reconhecidas e, não, ignoradas, ou<br />
alvo <strong>de</strong> discriminação.<br />
O negro brasileiro, cujos ancestrais foram trazidos a ferro e fogo do continente<br />
africano, amontoados nos porões dos navios tumbeiros, trouxeram com eles um <strong>de</strong><br />
seus bens mais preciosos, que ninguém lhes tiraria: as suas histórias.<br />
E nesse “baú fabuloso” vieram os contos, lendas e fábulas transmitidas <strong>de</strong> pais<br />
para filhos, há várias gerações.<br />
Um dos aspectos mais relevantes da cultura oral africana talvez seja a maneira<br />
como os contadores interpretam as histórias usando apenas o corpo, os gestos e a voz<br />
para cativar os ouvintes. Esses mestres da palavra, verda<strong>de</strong>iras “bibliotecas vivas”, que<br />
mantêm um elo entre o presente e o passado, persistem até hoje.<br />
A presença <strong>de</strong> personagens negras contadoras <strong>de</strong> histórias é marcante na obra<br />
<strong>de</strong> vários escritores brasileiros. José Lins do Rego em Menino <strong>de</strong> engenho, <strong>de</strong>screve em<br />
<strong>de</strong>talhes uma <strong>de</strong>las, que nunca se apagou <strong>de</strong> sua memória:<br />
A velha Totonha <strong>de</strong> quando em vez batia no engenho. E era um acontecimento para a meninada.<br />
Ela vivia <strong>de</strong> contar histórias... Que talento ela possuía para contar suas histórias, com<br />
um jeito admirável <strong>de</strong> falar em nome <strong>de</strong> todos os personagens! Sem nem um <strong>de</strong>nte na boca, e<br />
com uma voz que dava todos os tons às palavras.... A velha Totonha era uma gran<strong>de</strong> artista<br />
para dramatizar.... Tinha uma memória <strong>de</strong> prodígio”<br />
Já Viriato Corrêa, em Cazuza, evoca outra <strong>de</strong>ssas contadoras geniais:<br />
Vovó Candinha é outra figura que nunca se apagou <strong>de</strong> minha recordação.... É que ninguém<br />
no mundo contava melhor histórias <strong>de</strong> fadas do que ela. Devia ter seus setenta anos: rija,<br />
gorda, preta, bem preta e a cabeça branca como algodão em pasta... Não sei se é impressão<br />
<strong>de</strong> meninice, mas a verda<strong>de</strong> é que, até hoje, não encontrei ninguém que tivesse mais jeito<br />
para contar histórias infantis...<br />
Monteiro Lobato, em <strong>Histórias</strong> <strong>de</strong> Tia Nastácia, emprega a voz <strong>de</strong> Pedrinho para<br />
exaltar uma <strong>de</strong> suas personagens mais conhecidas e que tem sido alvo <strong>de</strong> tantas<br />
polêmicas e releituras:
... Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando <strong>de</strong> um para outro, ela <strong>de</strong>ve<br />
saber.... – As negras velhas – disse Pedrinho – são sempre muito sabidas. Mamãe conta <strong>de</strong><br />
uma que era um verda<strong>de</strong>iro dicionário <strong>de</strong> histórias folclóricas... Todas as noites ela sentavase<br />
na varanda e <strong>de</strong>sfiava histórias e mais histórias. Quem sabe se Tia Nastácia não é uma<br />
segunda tia Esmeréria?<br />
Já em O Saci, Tio Barnabé, outra das inúmeras criações <strong>de</strong> Monteiro Lobato, é o<br />
típico Pai João: “Negro <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 80 anos, <strong>de</strong>scalço...”<br />
Embora estereotipado, ele é o gran<strong>de</strong> conhecedor dos segredos da mata que<br />
envolve o sítio do Picapau Amarelo. A sua longevida<strong>de</strong>, no melhor estilo africano, é<br />
a fonte <strong>de</strong> sua sabedoria. É a ele que Pedrinho vai recorrer quando quer saber se Saci<br />
existe mesmo: “– Como não hei <strong>de</strong> saber tudo, menino, se já tenho mais <strong>de</strong> 80 anos? Quem muito<br />
veve, muito sabe...”<br />
<strong>Contadores</strong> e contadoras <strong>de</strong> histórias tradicionais ainda são encontrados, principalmente<br />
em comunida<strong>de</strong>s afastadas dos gran<strong>de</strong>s centros urbanos. Em 2008, em<br />
minhas andanças pelo Brasil, tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrevistar uma senhora negra<br />
<strong>de</strong> 93 anos na ilha <strong>de</strong> Itaparica, Bahia, dona <strong>de</strong> memória invejável, que me contou<br />
histórias do seu tempo <strong>de</strong> criança, cantando e imitando as vozes <strong>de</strong> diferentes personagens<br />
<strong>de</strong> uma forma emocionante.<br />
Nossas histórias, danças, canções e saberes tradicionais têm uma gran<strong>de</strong> influência<br />
da Mãe-África. Nesse aspecto, os livros <strong>de</strong>stinados aos mais jovens têm um papel<br />
fundamental: o <strong>de</strong> contribuir para que a criança sinta-se orgulhosa <strong>de</strong> pertencer a<br />
uma cultura, seja ela qual for, e <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a respeitar às diferenças, contribuições e<br />
valores <strong>de</strong> sua própria comunida<strong>de</strong> e também <strong>de</strong> outros povos.<br />
A valorização passa pelo reconhecimento. As palavras e as ilustrações <strong>de</strong> um livro<br />
são como um espelho. E se a pessoa não vê a sua imagem refletida, po<strong>de</strong> se sentir<br />
<strong>de</strong>sinteressada e <strong>de</strong>smotivada. A sua autoestima é afetada.<br />
Aos autores <strong>de</strong> livros para crianças e jovens, aos contadores <strong>de</strong> histórias e aos<br />
educadores cabe preservar, valorizar e divulgar as tradições orais. As histórias são<br />
importante fator <strong>de</strong> enriquecimento e afirmação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social, especialmente<br />
em um país plural como o nosso.<br />
Rogério Andra<strong>de</strong> Barbosa<br />
33
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
34<br />
E não se esqueçam: as histórias foram feitas para serem contadas e recontadas.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Cazuza. Viriato Corrêa. Companhia Editora Nacional, 1976.<br />
u <strong>Histórias</strong> <strong>de</strong> Tia Nastácia. Monteiro Lobato. Brasiliense, 1947.<br />
u Viagem ao céu e O Saci. Monteiro Lobato. Brasiliense, 1960.<br />
u Menino <strong>de</strong> engenho. José Lins do Rego. José Olympio, 1960.
DeusNumDé:<br />
dom da visão<br />
o
[Edmilson Santini]<br />
Eis que a cadência da roda, no compasso da ciranda, dava o tom <strong>de</strong> todas as vozes,<br />
Eque em coro cantavam: “Até pro ano, se eu vivo for”. Era o encerramento do Circuito<br />
Estadual das Artes, realizado numa das praças da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caxias-RJ. Fazendo jus à<br />
tradição que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> séculos aos dias atuais, acompanha a trajetória <strong>de</strong> artistas populares,<br />
em praças, ruas... o chapéu logo é mostrado... Feito pedra <strong>de</strong> anel, <strong>de</strong> mão em mão é<br />
passado, quando vê, está enriquecido em notas e moedas. O que não significa que ali<br />
está a paga pela função apresentada ao respeitável público. No andar das contações <strong>de</strong><br />
histórias – vozes das praças – rodar o chapéu, no <strong>de</strong>sfecho <strong>de</strong> cada função, é hábito que<br />
se mantém mais como um complemento brincante, eu diria. Dito isso, a presença <strong>de</strong><br />
espírito, em carne, osso e voz, do contador <strong>de</strong> história, perante a socieda<strong>de</strong> atual (loucamente<br />
urbanizada, até certo ponto) se dá como proposta <strong>de</strong> lazer, educação, cultura...<br />
aos ouvidos <strong>de</strong> um público volante (sempre passando), personagem carente <strong>de</strong> um pouco<br />
<strong>de</strong> poesia nos fins-<strong>de</strong>-tar<strong>de</strong>-cair-da-noite <strong>de</strong> seus dias, em gran<strong>de</strong> parte estressantes.<br />
Caía <strong>de</strong> vez a noite sobre o viaduto, quando os participantes do recém-encerrado<br />
espetáculo foram <strong>de</strong>ixando a Praça, cada qual pegando seus a<strong>de</strong>reços <strong>de</strong> cena e<br />
rumando em <strong>de</strong>stino ao Lar, Doce Lar. Eu, apesar <strong>de</strong> já ter tomado parte em inúmeras<br />
apresentações <strong>de</strong> rua, com semelhante dimensão humana povoando a roda, vi ali um<br />
dos mais iluminados Pontos <strong>de</strong> Encontro Marcado com a Poética do Circo, por meio<br />
dos Pernas-<strong>de</strong>-Pau, que encenavam Ditos Populares, do Homem que fazia fogo jorrar<br />
por sua Boca <strong>de</strong> Palhaço... Enfim, tantas foram as provas do Po<strong>de</strong>r Poético nas Vozes<br />
e Voos daquela Praça que, ao sair <strong>de</strong> lá, no intento <strong>de</strong> ir também pra casa, no meio<br />
37
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
38<br />
do caminho <strong>de</strong>i com Outra Praça, e dá-lhe gente em volta <strong>de</strong> uma figura que cantava,<br />
ao meu ver, <strong>de</strong> forma encantadora. Eu po<strong>de</strong>ria muito bem fazer “ouvidos-<strong>de</strong>-tô-compressa”,<br />
passar, literalmente, ao largo da dita praça, mas, em vez disso, me vi atraído<br />
<strong>de</strong> tal maneira pelo entoo da Cantiga (era uma Cantiga <strong>de</strong> Roda em tom <strong>de</strong> peditório,<br />
acreditem), que pra lá fui levado a correr.<br />
Quando me <strong>de</strong>i conta, estava <strong>de</strong> cabeça, juízo e tudo, enfiado no meio daquela<br />
plateia que, mesmo compacta, me parecia uma imensidão humana, tamanha a simbologia<br />
do acontecido no meio daquele círculo <strong>de</strong> expressões atentas: Um Cego-Trovador.<br />
No impulso <strong>de</strong> quem tem a vivência <strong>de</strong> “rodar o chapéu, a cada função, perante o<br />
respeitável público (no meu caso, rodo sempre o Folheto <strong>de</strong> Literatura <strong>de</strong> Cor<strong>de</strong>l), fiz<br />
zunir uma moeda no ar, que tilintou no miolo <strong>de</strong> um chapéu, que figurava no Centro<br />
da Roda. No boca a boca <strong>de</strong> todos ali presentes, ouvi um “Viva! Viva a moeda da<br />
sorte, que <strong>de</strong> longe acertou a boca do ganha-pão...”. Num gesto-meio-passe-<strong>de</strong>-mágica,<br />
o cego fez calar o vozerio e suspen<strong>de</strong>u a cantoria. Cada um ali em volta fazia vez <strong>de</strong><br />
quem tinha uma história pra contar. Vendo no Cego uma História Viva em Pessoa,<br />
não hesitei em dimensionar a importância do que ali chamei – lá entre meus botões<br />
e pensamento – Teatro <strong>de</strong> Circunstância: aconteceu, virou diálogo. E um diálogo<br />
comecei – meio prosa, meio verso –, perguntando como o Cego se chamava:<br />
“Deusnumdé”! Respon<strong>de</strong>u ele. “Deus num quê”!? Saiu a exclamação, num coro<br />
<strong>de</strong> muitas vozes. “Deus num <strong>de</strong>u olhos pra ver, mas <strong>de</strong>u o dom da visão”. O Cego<br />
assim respon<strong>de</strong>u, em tom <strong>de</strong> improvisação. Em torno ouviu-se o estalar <strong>de</strong> mãos,<br />
como se a praça inteira o aplaudisse <strong>de</strong> pé. No Centro da Roda – boca para o céu virada<br />
– o chapéu num instante havia multiplicado os valores. Levado por certo encantamento,<br />
no Cego quase me encostei. Olhando em seus olhos, vi que o Cego “me via<br />
por <strong>de</strong>ntro”. Situação <strong>de</strong> um sonho enriquecedor, da qual eu dou testemunho: ele era<br />
eu, eu era ele e a Roda já era Outra. Um Mar <strong>de</strong> Encantaria fez vulto em meu pensamento.<br />
E na Cadência do Verso <strong>de</strong> DeusNumDé tive a prova: o danado do Cego em<br />
seu Universo Popular, nos abre os olhos para o lugar que ocupa, muitas vezes invisível,<br />
nesta Ciranda <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>, no dia a dia a rodar...
Por meio do inconsciente – ciente do encanto ali vivido – me vi inteiro tomado pelo<br />
zumbir sem fronteira da Tradição Oral. Logo, em vez <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> guia, me vi guiado pela<br />
voz <strong>de</strong> DeusNumDé, numa Viagem, eu diria, <strong>de</strong> Retorno ao Mundo do Maravilhoso.<br />
Bem, na real, mesmo, àquela hora, encerrado o espetáculo acima citado, eu me<br />
encaminhei foi direto pra casa, como o mais comum dos mortais. Foi assim que<br />
me vi na Concreta Travessia da Avenida Brasil, à mercê <strong>de</strong> um trânsito emperrado,<br />
repleto <strong>de</strong> arruídos, que meu pensamento voou, ligando o itinerário da Via Expressa<br />
ao imaginário poético-viajante do Cego DeusNumDé. Estou ciente <strong>de</strong> que meu testemunho,<br />
a essa altura, vai tomando ares <strong>de</strong> metáfora errante, mas foi por meio <strong>de</strong>ssa<br />
errância que eu pu<strong>de</strong> ver, em tempo real, por irreal que pareça, a entrada <strong>de</strong> Deus-<br />
NumDé, agora, na Praça do Reino Encantado: Lugar dos Contos Populares. Lá vi<br />
DeusNumDé ser recebido ao som do Canto e Dança do Pastoril, Boi da Ressurreição,<br />
Maracatu do Baque Virado, com baque solto na festa. Isso me abriu uma Terceira<br />
Visão nos Sentidos, pois logo vi Meu Avô; que era ali um Velho Guardião <strong>de</strong> Muitas<br />
Vozes, mantendo em constante renovação (narrador <strong>de</strong> bom guardado), entre outras,<br />
as <strong>Histórias</strong> <strong>de</strong> Exemplos e Trancoso. Com DeusNumDé bem à vista, vi Meu Avô<br />
trancando e abrindo as feições, lá <strong>de</strong> seu rosto – sorrindo ou enfezado – conforme<br />
pedia o clima da história que estava contando, à beira do fogo, na Praça do Reino.<br />
Velho narrador <strong>de</strong> ontem, como hoje, <strong>de</strong>sempenhando seu papel sagrado.<br />
A essa altura da viagem (concreta e imaginária) me ocorre dizer que, nos dias <strong>de</strong><br />
hoje, o contador <strong>de</strong> histórias, seja sua atuação por meio do verso ou da prosa, é um ser<br />
essencial a uma socieda<strong>de</strong> que se vê necessitada em “dar um tempo ao tempo da poesia”.<br />
Cruzando, enfim, um Terceiro Sinal Ver<strong>de</strong>, antes <strong>de</strong> chegar em casa, vi Deus-<br />
NumDé já transitando entre a Praça do Reino e a Praça da Pedra Medieval.<br />
Assim que entrei em casa, liguei a televisão, direto no programa Narradores do<br />
Tempo – Canal da Voz do Futuro. Quem eu vejo aparecer? DeusNumDé, lá <strong>de</strong>safiando<br />
Homero. Não estando eu maluco – assim espero –, juro que isso eu vi suce<strong>de</strong>r.<br />
Coisa do mundo da tevê.<br />
Partindo <strong>de</strong> um plano que se fechava nos dois, a tevê foi revelando uma gran<strong>de</strong><br />
Edmilson Santini<br />
39
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
40<br />
arena, on<strong>de</strong> se viam <strong>de</strong> gente antiga a mo<strong>de</strong>rnosa... Ambiente <strong>de</strong> Encontro Celebrativo.<br />
De repente, em plano médio, eu vi e reconheci: um Médium, ao seu lado uma<br />
Alma Viva do Teatro. Se não me falha a imagem, o Espírito Dionísius também vi. Vi<br />
um Poeta mais atrás, só pela rima do olhar. Olha quantos entes da Criação Humana...<br />
Logo ao lado vi um senhor que tinha pinta <strong>de</strong> palhaço. Era uma Praça povoada <strong>de</strong><br />
Porta-Vozes dos Saberes Populares. Vi a tevê fechar o plano <strong>de</strong> novo em Homero e<br />
DeusNumDé. A peleja entre ambos alcançava seu clímax. Desenrolando o <strong>de</strong>sfecho,<br />
Homero <strong>de</strong>sfiava lá um fuminho <strong>de</strong> rolo. A figura <strong>de</strong> seu rosto agora, do meu ponto<br />
<strong>de</strong> vista, era, escrito, a <strong>de</strong> meu Avô.<br />
Tevê voltou ao plano médio, e o poeta – reconhecido por mim – emendou contando<br />
um Conto dos Dias <strong>de</strong> Hoje. Aí eu tive a certeza: espaço <strong>de</strong> contador <strong>de</strong> história é<br />
espaço <strong>de</strong> precisão: vai on<strong>de</strong> é preciso ir. Nesse preciso momento, o cansaço se insinuando,<br />
me dominou as pestanas, meus olhos foram <strong>de</strong>ixando os Narradores no Ar...<br />
Dia seguinte, as tantas vozes <strong>de</strong> um homem davam vez ao Teatro De Bonecos:<br />
Era o início do Festival Nacional <strong>de</strong> Teatro, nas Ruas <strong>de</strong> Angra dos Reis, on<strong>de</strong> a Cia.<br />
Chegança, do Maranhão foi chegando, já cantou pra guarnicê; e em pé sobre seu<br />
Banquinho, entre ruas e sinais, vestido só <strong>de</strong> jornais, Dalmo Saraiva fazia vez <strong>de</strong> “O<br />
Homem De Papel: Coberto <strong>de</strong> Notícia, sem Ler um Terço da Missa”. Num rito <strong>de</strong><br />
itinerância, prossegui ouvindo e vendo, entre tantas semelhanças <strong>de</strong> fala, as diferenças<br />
na prosódia, nos sotaques... Seguindo minha abordagem, <strong>de</strong>i com a performance<br />
da “Mulher Que Roda e Cai”. Entre a Mulher e o Cais, outras histórias ouvi. À Beira<br />
do Mar <strong>de</strong> Angra, portanto a Praça do Porto, foi bonito <strong>de</strong> se ver: a Poética <strong>de</strong> Cor<strong>de</strong>l<br />
(Teatro <strong>de</strong> Precisão, Indo On<strong>de</strong> é Preciso Ir, como eu já disse) fez a Ponte entre o Narrado,<br />
o Vivido e o Cantado.<br />
No rastro <strong>de</strong>sse convívio da arte <strong>de</strong> contar-encenar com outras artes afins, <strong>de</strong>i<br />
uma espichada <strong>de</strong> pernas, fui a becos e recantos, – que pareciam invisíveis aos olhos<br />
programação oficial –, até me achar num pica<strong>de</strong>iro, bem na frente da igreja. Pensei:<br />
Profano e Sagrado, numa alegre interação: Circo inteiro e ativo, compartilhando<br />
acrobacias com as preces do sacristão. Mal pensei, fui avistando, lá noutra esquina
um caboclo. Vi logo que era cria do lugar: um pescador <strong>de</strong> palavras. Sua voz estava na<br />
praça, mas apenas sussurrava uma história-para-dois. “Quem cochicha, o rabo espicha”.<br />
Pensando assim, espichei o meu pescoço, meti o nariz entre os três (narrador e<br />
seu público <strong>de</strong> dois): “Sou Seu Cochicha-Língua-Espicha!“ Ele a mim se apresentou.<br />
E continuou contando sua história agora pra três. Pensei nessa modalida<strong>de</strong>: Públicomicro<br />
em meio à macro-visão <strong>de</strong> gente. I<strong>de</strong>ia só <strong>de</strong>le ou não, foi um jeito encontrado<br />
<strong>de</strong> ser ouvido com atenção, valorizando, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, cada palavra então falada. É nessas<br />
pequenas gran<strong>de</strong>s nuances, por entre ouvidos e praças, que se percebe: espaço do<br />
contador <strong>de</strong> histórias nos dias atuais não se me<strong>de</strong> apenas pelo volume <strong>de</strong> público à<br />
sua volta, mas também pelo conteúdo e boa qualida<strong>de</strong> que se imprime em seu contar.<br />
Já em pleno pôr do sol, um céu <strong>de</strong> plasticida<strong>de</strong>: Azul, vermelho, amarelo, suavemente<br />
mandou a estrela-guia alumiar a cida<strong>de</strong>, pro Cortejo das Linguagens. Assim<br />
sendo: Do Homem <strong>de</strong> Papel ao Mímico, passando pelo Narrador-Para-Três, Mamulengos,<br />
Ciran<strong>de</strong>iros... Até Mestre Vitalino, com Bonecos <strong>de</strong> Lampião e Maria Bonita,<br />
acrescentaram pontos diversos na interação <strong>de</strong> contadores com outras artes. Desse<br />
ponto <strong>de</strong> partida, ao som <strong>de</strong> tambores, cantos, danças, contos, etc. – por ruas, praças<br />
e beira-mar o Cortejo circulou. Sendo o Ponto-<strong>de</strong>-Chegança o mesmo <strong>de</strong> on<strong>de</strong> partira:<br />
Frente à igreja: lugar do Circo Armado. Cortejo chegou, fez-se a Roda, rodou-se,<br />
então, o chapéu. Era o mesmo chapéu do começo <strong>de</strong>ssa Jornada <strong>de</strong> Palavras.<br />
Sem mais o que dizer, peço licença a Guimarães Rosa pra indagar: “Aqui, a<br />
história acabada?”. Acaba é nada! A história é dada a se verter, virar outras, conforme<br />
muda <strong>de</strong> voz ou <strong>de</strong> lugar. Toda história que se preza ser contada, guarda em si outras<br />
versões. Falando nisso...<br />
Lá Não vi foi DeusNumDé,<br />
mas ele segue no ar,<br />
contando, pra quem quiser<br />
em seu mundo navegar<br />
e contar, como pu<strong>de</strong>r,<br />
a história que imaginar.<br />
Edmilson Santini<br />
41
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
42<br />
Meu Avô também não vi.<br />
Não quis ele aparecer<br />
em Angra, mas eu ouvi,<br />
– caro leitor po<strong>de</strong> ver, –<br />
suas palavras, dizendo:<br />
“Estou escutando, estou vendo,<br />
em Angra a Ema Gemer”.<br />
Este artigo foi pedido,<br />
pra ser em prosa, eu sei,<br />
mas me vi tão dividido,<br />
que um jeito no fim eu <strong>de</strong>i.<br />
Assim, versejado eu <strong>de</strong>ixo,<br />
registrado este <strong>de</strong>sfecho<br />
da história que contei.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Gran<strong>de</strong> sertão: veredas. João Guimarães Rosa. Nova Fronteira.<br />
u Cantadores. Leonardo Mota. Itatiaia.<br />
u Zé Limeira, poeta do absurdo. Orlando Tejo. A União.<br />
u Patativa do Assaré, a trajetória <strong>de</strong> um canto. Luiz Ta<strong>de</strong>u Feitosa. Escrituras.
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Vozes, corpos e textos<br />
nos vãos da cida<strong>de</strong><br />
o
[Júlio Diniz]<br />
Aliberda<strong>de</strong>, segundo o senso comum, é um direito inalienável <strong>de</strong> todo ser<br />
A humano. Mas a luta para que ela seja valor imprescindível nas relações sociais,<br />
políticas e econômicas é um exercício que se perpetua na contemporaneida<strong>de</strong>. É<br />
impossível para o (e)leitor <strong>de</strong> nosso momento histórico conceber a arte submetida<br />
a regimes estéticos, mercadológicos e i<strong>de</strong>ológicos autoritários. A liberda<strong>de</strong>, além <strong>de</strong><br />
ser um segredo, como diz Clarice Lispector, tem uma <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> uma oitava acima <strong>de</strong><br />
qualquer tom.<br />
Contar uma história, para mim, é sempre um exercício em liberda<strong>de</strong>. Não consigo<br />
enten<strong>de</strong>r como, diante dos impasses do presente, as narrativas individuais e coletivas<br />
possam ser controladas e/ou orientadas por forças externas a sua fundação como discurso.<br />
Estar diante do outro e falar para o outro do outro que habita em si é o gran<strong>de</strong><br />
gesto político, artístico e ético que um contador <strong>de</strong> histórias po<strong>de</strong> fazer num mundo<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scasos e banalizações.<br />
Há quem ainda acredite e perpetue a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o autor morreu. Parece que<br />
alguns proto-pós-mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> plantão não leram bem ou passaram apressadamente os<br />
olhos pelos textos <strong>de</strong> Foucault e Barthes que discutem essa questão. Como falar <strong>de</strong><br />
morte do autor num momento <strong>de</strong> histeria coletiva diante do conceito <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong><br />
e da proliferação das narrativas do eu, das autobiografias e das autoficções?<br />
As narrativas urbanas que moldam o corpo textual e sonoro do contador formam<br />
um contínuo e caudaloso rio que contempla margens e penetra territórios que vão da<br />
família à rua, da solidão ao encantamento, da loucura à memória. Infância, paixões, pre-<br />
45
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
46<br />
conceitos, violência, espanto, <strong>de</strong>sejo e dor são tratados em liberda<strong>de</strong> por vozes que nar-<br />
ram vozes em trânsito, corpos em suspensão, discursos entortados pela potência da vida.<br />
Toda essa discussão nos remete a uma luta contra a liberda<strong>de</strong> aprisionante do<br />
espaço branco do papel, da imobilida<strong>de</strong> do corpo como máquina <strong>de</strong>sejante, do silêncio<br />
imposto à voz. Potentes em suas articulações e no diálogo com o contemporâneo,<br />
os contadores <strong>de</strong> história, diluídos na polifonia urbana, irmanam forças que resultam<br />
num <strong>de</strong>licado jogo <strong>de</strong> tensões.<br />
Se o contador se dispuser a embaralhar a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> performatização dos textos e<br />
construir a sua própria escolha, encontrará no vão do sentido a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exercitar<br />
seus dons <strong>de</strong> bricoleur. Esse convite à trapaça, à invenção <strong>de</strong> um outro, tem um<br />
forte aliado nos cenários imagéticos da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nosso tempo. Imagens, textos e vozes<br />
em dialogia e em rotação contínua. A liberda<strong>de</strong>, antes <strong>de</strong> tudo, é um jogo <strong>de</strong> seduções.<br />
Acredito muito na potência da figura e da ação dos contadores diante da amnésia<br />
imposta pelo capitalismo cognitivo para ven<strong>de</strong>r a memória como mercadoria. Há nos<br />
contadores que erram pelas cida<strong>de</strong>s um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> trazer do subsolo das reminiscências<br />
das ruas, bairros e espaços públicos a força erótica da invenção. São griots e griotes<br />
que resistem na contemporaneida<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>scaso com a história dos afetos e das narrativas<br />
que a liberda<strong>de</strong> nos provoca.<br />
Como tentar revelar as múltiplas faces da liberda<strong>de</strong> até agora? Como a contação<br />
<strong>de</strong> histórias po<strong>de</strong> se transformar no lugar da resistência e <strong>de</strong> afirmação da precarieda<strong>de</strong><br />
humana? Como os (e)leitores <strong>de</strong> nosso tempo lidam com a vonta<strong>de</strong> que potencializa<br />
o sim diante do controle e da vigia que os tempos pós-utópícos nos reservam?<br />
Muito mais que certezas, estas questões estão impregnadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos e dúvidas. Ler<br />
em liberda<strong>de</strong> é o dispositivo possível <strong>de</strong> sua apreensão e entendimento.
c<br />
Muitas vidas,<br />
muitas vozes,<br />
muitas histórias<br />
o
[Júlio Diniz & Morandubetá]<br />
Júlio Diniz – A palavra Morandubetá, o que significa?<br />
Morandubetá – É uma palavra Tupi que significa “muitas histórias”.<br />
Júlio Diniz – Como o grupo surgiu? Qual é a formação original? Houve pessoas que<br />
entraram, ficaram um tempo e saíram?<br />
Morandubetá – Em 1989 aconteceu no Rio <strong>de</strong> Janeiro um curso <strong>de</strong> contadores<br />
<strong>de</strong> histórias com o grupo da Venezuela “En Cuentos y Encantos”, formado pela<br />
venezuelana Isabel <strong>de</strong> los Ríos e o brasileiro Luiz Carlos Neves. Foram convidados<br />
por Eliana Yunes que era Diretora da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro<br />
Infantil e Juvenil, on<strong>de</strong> trabalhavam também Lúcia Fidalgo, Maraney Freire e Inês<br />
Rocha. As quatro fizeram o curso e foram a semente do futuro grupo, mas ainda<br />
não era o Morandubetá. Nesse meio tempo o Celso Sisto entrou para a FNLIJ,<br />
como especialista da área <strong>de</strong> literatura, e se juntou ao grupo. Começamos a nos<br />
reunir e contar histórias no Instituto Nazareth, um colégio dirigido por Regina<br />
Yolanda que ficava na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras. Eliana participava da<br />
equipe pedagógica e nos levou para lá. Ali nasceu o Morandubetá. Pouco <strong>de</strong>pois<br />
a Inês foi viver na França. E o grupo ficou composto por Eliana Yunes, Celso<br />
Sisto, Maraney Freire e Lúcia Fidalgo. Então a Maraney saiu e chegou a Benita.<br />
A formação que existe até hoje – Benita Prieto, Celso Sisto, Eliana Yunes e Lúcia<br />
Fidalgo – começou em 1991. E o nome do grupo foi escolhido por causa do livro<br />
Morandubetá, <strong>de</strong> Heitor Luiz Murat, da Editora Lê, uma colheita <strong>de</strong> diversas fábulas<br />
indígenas. Quando vimos o nome, falamos quase que ao mesmo tempo: mas<br />
49
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
50<br />
que nome interessante, Morandubetá! Uma palavra diferente. Que remete ao que<br />
a gente quer... Homenagear os povos indígenas.<br />
Júlio Diniz – Iluminar o Brasil pouco iluminado, <strong>de</strong>ixá-lo vazar e brilhar, não é?<br />
Morandubetá – Isso! É, tudo nasceu daí e assim! Foi muito... Bonito e mágico!<br />
Júlio Diniz – E aí vocês começaram a fazer o quê em 91/92?<br />
Morandubetá – Contávamos no projeto “Meu livro, meu companheiro”, da FNLIJ,<br />
que acontecia no INCA – Instituto Nacional <strong>de</strong> Câncer, on<strong>de</strong> foi montada uma<br />
sala com uma biblioteca chamada Bibliolândia, nome escolhido pelos frequentadores.<br />
Nesse momento começamos também a viajar pelo Brasil para formar<br />
contadores pelo Proler.<br />
Júlio Diniz – Qual era o repertório? Era só para pacientes, para adultos e crianças?<br />
Morandubetá – A sala e o repertório eram voltados para a literatura infantil e<br />
juvenil, mas acabou virando um espaço <strong>de</strong> convivência <strong>de</strong> todos, porque nesse<br />
momento também nascia no INCA um grupo <strong>de</strong> voluntários que estava sendo<br />
formado para trabalhar com as crianças. Daí surgiu a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que, além <strong>de</strong> contar,<br />
po<strong>de</strong>ríamos ministrar um curso <strong>de</strong> contador <strong>de</strong> histórias para esse grupo que teria<br />
a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> difundir essa ação nas suas ativida<strong>de</strong>s. Nós também íamos às<br />
enfermarias para contar, quando o paciente não podia se <strong>de</strong>slocar.<br />
Júlio Diniz – Po<strong>de</strong>mos dizer que antes dos doutores da alegria chegarem ao Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro vocês já estavam lá e faziam esse trabalho?<br />
Morandubetá – Sim! Com certeza! Nessa época inclusive começamos a pensar em<br />
fazer essa ação num trabalho voluntário, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> contar histórias para os enfermos.<br />
Em 1995 fomos convidados para participar do projeto da Secretaria Municipal<br />
<strong>de</strong> Cultura Teatro é Vida, que era só com atores. Quando eles perceberam<br />
que já havíamos feito isso no INCA, resolveram nos chamar. Então tivemos a<br />
i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> criar o projeto voluntário Cesta <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> que foi feito com o nosso<br />
dinheiro em seis hospitais da re<strong>de</strong> pública. Compramos as cestas <strong>de</strong> vime, doamos<br />
os livros, <strong>de</strong>mos formação <strong>de</strong> contadores <strong>de</strong> histórias. Acabamos ganhando<br />
uma Moção <strong>de</strong> apoio da Câmara dos Vereadores do Rio <strong>de</strong> Janeiro por essa ação.<br />
Foi uma bela surpresa!
Júlio Diniz – Como era ser um contador <strong>de</strong> histórias no início dos anos 90? Havia<br />
já essa importância? Esse lugar? Esse reconhecimento? Vocês tiveram que respirar<br />
fundo e <strong>de</strong>sbravar essa floresta selvagem?<br />
Morandubetá – A narração <strong>de</strong> histórias é algo milenar, ninguém inaugurou nada.<br />
O que aconteceu refere-se ao surgimento e crescimento da narração urbana, que<br />
efetivamente se reintroduziu na prática social do brasileiro. Começamos muito<br />
timidamente, com muitos cuidados. Nós não saíamos dando oficina por aí,<br />
não. Assumimos que contar histórias fazia parte <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> formação<br />
<strong>de</strong> leitores, que ouvir narrativas organizava a cabeça das pessoas. Então quando<br />
surgiu o Proler – Programa Nacional <strong>de</strong> Incentivo à Leitura, da Fundação Biblioteca<br />
Nacional, fomos pelo Brasil. O Proler é que disseminou o nosso trabalho,<br />
mas nós somos os pioneiros na contação <strong>de</strong> histórias numa perspectiva contemporânea.<br />
Fomos também os precursores nessa história <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> contadores<br />
<strong>de</strong> histórias e <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> outras coisas: começamos as oficinas <strong>de</strong> contadores<br />
<strong>de</strong> histórias, começamos a organizar as sessões <strong>de</strong> contos como se fosse um espetáculo,<br />
<strong>de</strong>mos os primeiros passos para o aparecimento <strong>de</strong> encontros <strong>de</strong> contadores<br />
<strong>de</strong> histórias, transferimos nossas experiências da prática para livros. E tudo isso<br />
começou numa época em que as pessoas não sabiam direito o que faziam os contadores<br />
<strong>de</strong> histórias. Em muitos lugares as pessoas achavam que os contadores <strong>de</strong><br />
histórias liam histórias para crianças. Também creditamos ao Morandubetá essa<br />
ampliação <strong>de</strong> público, uma vez que também fomos nós que começamos a gestar<br />
apresentações para um público adulto, exatamente para fugirmos <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ia<br />
<strong>de</strong> que contar história é só para crianças. E po<strong>de</strong>mos dizer, seguramente, que a<br />
experiência com o teatro do Celso e da Benita também abriu as portas para que<br />
outros atores <strong>de</strong>scobrissem a “contação <strong>de</strong> histórias” como caminho. Abrimos,<br />
inclusive, a possibilida<strong>de</strong> dos contadores <strong>de</strong> histórias trabalharem em feiras <strong>de</strong><br />
livros (via Bienal do Rio), que <strong>de</strong>pois se espalhou para todo o país. Outra coisa: o<br />
Morandubetá sempre investiu em apresentações <strong>de</strong> histórias literárias, sendo precursor<br />
<strong>de</strong>ssa prática <strong>de</strong> levar para a oralida<strong>de</strong> os textos escritos <strong>de</strong> vários autores,<br />
quando o comum era as pessoas contarem contos populares!<br />
Júlio Diniz & Morandubetá<br />
51
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
52<br />
Júlio Diniz – De on<strong>de</strong> vem essa palavra, “contação”?<br />
Morandubetá – Essa palavra é do gran<strong>de</strong> contador Gregório Filho. Primeiro ficávamos<br />
cheios <strong>de</strong> receios <strong>de</strong> usar, pois a palavra não existia. Mas Gregório nos<br />
convenceu. É melhor falar <strong>de</strong> um jeito que todo mundo entenda. A língua portuguesa<br />
aguenta tudo isso. Ele <strong>de</strong>fine assim contação, ação <strong>de</strong> contar.<br />
Júlio Diniz – Quando é que vocês <strong>de</strong>ram um salto, ou seja, modificaram um pouco<br />
o trajeto, se profissionalizaram e foram para o teatro? Já tive oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver<br />
o trabalho <strong>de</strong> vocês em vários esquemas diferentes. Até no palco do CCBB – Centro<br />
Cultural Banco do Brasil – aqui no Rio<br />
Morandubetá – Fomos evoluindo sem perceber. A gente não tinha um plano.<br />
Ocupávamos os espaços. Houve um fato importante que marcou o início <strong>de</strong> nossa<br />
trajetória – o trabalho no Museu Histórico Nacional. A revista Veja fez uma matéria<br />
e aí <strong>de</strong>spertamos o interesse do público, da imprensa e dos gestores <strong>de</strong> cultura.<br />
Passamos a ser chamados para projetos em várias instituições, nós fazíamos tudo<br />
ao mesmo tempo.<br />
Júlio Diniz – A partir daí, o que aconteceu?<br />
Morandubetá – Naquele momento veio uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> profissionalização. Decidimos<br />
ter um logotipo, assessoria <strong>de</strong> imprensa, pensar em ter produtos, virar uma<br />
microempresa. E <strong>de</strong>cidimos sair da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil,<br />
para não parecer que pertencíamos à FNLIJ. Despedimo-nos com uma linda carta<br />
que está lá nos arquivos da Fundação.<br />
Júlio Diniz – A partir das vivências no Proler e no Leia Brasil, vocês formaram contadores<br />
<strong>de</strong> história, é isso? Eu queria que vocês falassem um pouco sobre esse assunto.<br />
Morandubetá – Percebemos que não daríamos conta <strong>de</strong> tudo, já que o Proler e o<br />
Leia Brasil estavam crescendo por todos os cantos do país. Nessa época também<br />
surge a Casa da Leitura em Laranjeiras que abre espaço para os contadores. A<br />
Casa começa com a gente contando histórias porque ainda não havia a formação<br />
continuada <strong>de</strong> grupos. Ministramos também cursos na PUC-Rio, Ler UERJ, universida<strong>de</strong>s,<br />
SESC, SESI. Era tanto lugar, uma loucura saudável.<br />
Júlio Diniz – Vou adaptar a frase do Millôr Fernan<strong>de</strong>s que é muito boa para falar
<strong>de</strong>sse aspecto. O Rio <strong>de</strong> Janeiro estava irreconhecivelmente inteligente naquele<br />
momento. É isso?<br />
Morandubetá – É isso mesmo! No início não havia muito público. Tudo acontecia<br />
numa salinha. Levávamos nossos parentes e amigos para encher a sala. Depois o<br />
público foi crescendo, tinha disputa... Tinha senha. Às vezes fazíamos duas sessões<br />
no mesmo espaço. Todo o processo foi muito lindo. Tanto no CCBB quanto<br />
na Casa da Leitura.<br />
Júlio Diniz – Vocês se tornaram multiplicadores e formadores <strong>de</strong> novos contadores<br />
<strong>de</strong> história e <strong>de</strong> grupos, não é mesmo?<br />
Morandubetá – Há vários grupos e contadores que são importantes no Brasil hoje<br />
que foram formados por nós. Praticamente <strong>de</strong>ixamos um grupo em cada cida<strong>de</strong><br />
por on<strong>de</strong> passamos. O Morandubetá possibilitou, junto com essas andanças,<br />
junto a esses projetos <strong>de</strong> que estamos falando, não só formar contadores como<br />
<strong>de</strong>scobrir contadores, porque essa é a nossa missão também.<br />
Júlio Diniz – Agora falem um pouco do repertório.<br />
Morandubetá – A história <strong>de</strong> repertório é a seguinte. Como as nossas sessões tinham<br />
sempre um tema, precisávamos pesquisar muito. Começamos com literatura infantil,<br />
<strong>de</strong>pois passamos para literatura adulta, <strong>de</strong>ntro da Biblioteca Nacional. A i<strong>de</strong>ia<br />
foi sumamente rejeitada. As críticas eram pesadas. Alguns achavam um absurdo<br />
funcionários ouvindo histórias, fazendo círculo <strong>de</strong> leitura. Achavam que era loucura<br />
contar histórias para gente que não sabia ler.<br />
Júlio Diniz – O pessoal da limpeza?<br />
Morandubetá – É, porque só sobrou o pessoal da limpeza, porque ninguém, funcionário<br />
nenhum queria efetivamente participar. Quando passamos a fazer para o<br />
público em geral, escolhíamos histórias <strong>de</strong> acordo com a época, segundo o calendário.<br />
Tivemos que literalmente caçar nossas leituras, consultar outras pessoas<br />
e mergulhávamos na biblioteca para ver os acervos. Foi aí que a Lúcia e o Celso<br />
viraram escritores. Na medida em que não encontrávamos um repertório do que<br />
queríamos, tínhamos que criar. Chegamos a ter um repertório <strong>de</strong> cem contos<br />
cada um <strong>de</strong> nós. E também nos encontrávamos para estudar. Fazíamos reuniões<br />
Júlio Diniz & Morandubetá<br />
53
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
54<br />
semanais para ensaiar. Toda essa pesquisa nos <strong>de</strong>u segurança para trabalhar com<br />
a literatura oral e a autoral.<br />
Júlio Diniz – Vocês começaram localmente, <strong>de</strong>pois ganharam uma importância<br />
regional, projeção nacional e agora o <strong>de</strong>safio é dialogar com grupos no exterior.<br />
Eu gostaria que vocês falassem sobre isso.<br />
Morandubetá – Na verda<strong>de</strong> já temos um ótimo diálogo com os contadores dos<br />
países <strong>de</strong> fala hispânica e portuguesa principalmente. Através dos encontros que<br />
participamos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1996 com a viagem da Benita para fora do Brasil e dos que<br />
produzimos por aqui <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1999 construímos uma re<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosa <strong>de</strong> ação.<br />
Júlio Diniz – Como é que vocês explicam o fato <strong>de</strong> estarem há mais <strong>de</strong> vinte anos<br />
juntos, sem se separarem, sem rachas, discordâncias maiores, essas coisas? O que<br />
une essas quatro pessoas <strong>de</strong> uma forma tão forte, além da amiza<strong>de</strong>?<br />
Morandubetá – O compromisso que temos com a promoção da leitura. Isso é um<br />
compromisso <strong>de</strong> vida. Não contamos por contar.<br />
Júlio Diniz – E o plano <strong>de</strong> vocês daqui pra frente? Tem alguma coisa mais imediata?<br />
Fazer um livro, fazer outro espetáculo?<br />
Morandubetá – O grupo teve que apren<strong>de</strong>r a trabalhar <strong>de</strong> forma dividida. Os projetos<br />
individuais foram ganhando espaço também, junto com as ativida<strong>de</strong>s do<br />
grupo. E fomos investir na nossa formação profissional, qualificando-nos mais<br />
ainda. Mas o nome do Morandubetá sempre acompanha nossos trabalhos, mesmo<br />
os individuais. Temos muitas coisas a fazer, como divulgar a coleção <strong>Histórias</strong><br />
das terras daqui e <strong>de</strong> lá, da Editora Zeus. A Lúcia fez a coor<strong>de</strong>nação editorial e cada<br />
um <strong>de</strong> nós escreveu um livro em parceria com um contador estrangeiro. Tentar<br />
que o grupo se reúna duas vezes por ano para contar junto, porque a gente está<br />
muito disperso. Ter o nosso repertório registrado em CDs, pois gravávamos todas<br />
as nossas sessões <strong>de</strong> histórias, na Casa da Leitura, no início <strong>de</strong>sse trajeto. Temos<br />
um livro pronto com contos indígenas, mas ainda sem editora. E também o No<br />
coração da palavra, que é um livro todo teórico e sobre nossas experiências. Queremos<br />
fazer um livro <strong>de</strong> contos autorais. Depois <strong>de</strong> tantos anos na estrada temos<br />
importantes contribuições a dar.
Júlio Diniz – A última pergunta para cada um <strong>de</strong> vocês. Quais são as expectativas da<br />
contação <strong>de</strong> histórias?<br />
Benita Prieto – Estamos construindo uma bela história. Mas precisamos mapear o<br />
Brasil para ampliar as nossas bases nacionais. E solidificar as relações que mantemos<br />
com outros contadores no mundo construindo uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> cooperação que<br />
possibilite cada vez mais a troca <strong>de</strong> experiências e os intercâmbios. E algo que me<br />
aflige é a renovação. Há extrema necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> jovens contadores <strong>de</strong> histórias,<br />
para que todo esse trabalho não <strong>de</strong>sapareça. Afinal e infelizmente eternas são<br />
somente as histórias.<br />
Celso Sisto – A contação <strong>de</strong> histórias no Brasil <strong>de</strong> hoje está bem difundida. Mas<br />
falta mais, falta muito mais. Primeiro é preciso investir enormemente na formação<br />
<strong>de</strong> grupos. Eu acredito nisso. Contar histórias coletivamente tem uma força<br />
incalculável, e o que a gente vê com mais frequência é o surgimento <strong>de</strong> contadores<br />
individuais (é mais fácil contar sozinho! ser dono <strong>de</strong> tudo!). Mas sou a favor dos<br />
grupos, <strong>de</strong>ssa experiência coletiva e socializante, inclusive como maneira <strong>de</strong> “barrar”<br />
os estrelismos. O que importa é a literatura, o compromisso com as obras <strong>de</strong><br />
qualida<strong>de</strong>. O que assistimos hoje é o que chamo <strong>de</strong> “pasteurização” da arte <strong>de</strong><br />
contar histórias. Explico: o contador <strong>de</strong> histórias tem que se a<strong>de</strong>quar à história<br />
que ele conta, e não o contrário. A história é quem <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>terminar a forma, a<br />
maneira, o estilo requerido por ela, para ser contada, e não o contrário. O que<br />
se vê são contadores <strong>de</strong> histórias usando as histórias para ressaltarem suas qualida<strong>de</strong>s<br />
artísticas e não “iluminarem” as histórias que contam. Toda e qualquer<br />
habilida<strong>de</strong> individual <strong>de</strong>ve estar a serviço da história, para engran<strong>de</strong>cimento da<br />
história que se conta, e não do contador.<br />
Eliana Yunes – A contação <strong>de</strong> história sempre foi uma fórmula <strong>de</strong> abertura para<br />
ler o mundo. Pensando assim, como o mundo chega organizado às cabeças das<br />
pessoas, elas não sabem mais quais são as relações com as coisas. Que o mundo<br />
é o mundo da cultura, não é? As histórias fizeram esse papel. A oralida<strong>de</strong> sobrevive<br />
porque ela dá para organizar as socieda<strong>de</strong>s, mesmo quando essas formas são<br />
muito sofisticadas como o caso das formas gregas. Elas prevalecem, permanecem<br />
Júlio Diniz & Morandubetá<br />
55
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
56<br />
porque a oralida<strong>de</strong> dá a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter um sentido para a compreensão do<br />
mundo e das coisas. Eu acho que a gente po<strong>de</strong> ter um caminho todo da escrita<br />
digital, da escrita eletrônica, mas ouvir uma história <strong>de</strong> viva voz, com a respiração<br />
do contador, com o olhar do contador, é algo imbatível porque aproxima as pessoas.<br />
E as pessoas estão na verda<strong>de</strong> carentes <strong>de</strong> aproximação, <strong>de</strong> trocas pessoais.<br />
Penso que precisamos investir não como uma forma <strong>de</strong> institucionalizar ou <strong>de</strong><br />
criar certas cerquinhas, em aspectos como a performática do contador <strong>de</strong> história,<br />
a questão da voz, do corpo, que não tem que se confundir com o palco, com o<br />
teatro. Como é que a gente transborda, transpira uma história? Isso merece um<br />
estudo mais sistemático.<br />
Lúcia Fidalgo – Há um problema hoje com a questão do repertório. A escolha dos<br />
textos tem que ser ampliada porque os contadores infelizmente começaram nessa<br />
onda <strong>de</strong> cópia, cópia, cópia, usando sempre as mesmas histórias. Devemos nos<br />
preocupar bastante com isso. Estamos numa socieda<strong>de</strong> da informação. A gente<br />
não tem que ter somente competência informacional para trabalhar com ela.<br />
Eu acho que temos que ter competência informacional e emocional. Creio que<br />
o papel do contador nisso funciona muito bem. Me preocupo muito com essa<br />
questão do repertório, <strong>de</strong> formar repertórios novos pra gente não ficar repetidor,<br />
como um papagaio. Então, só sendo leitor, não é?
Esta conversa com os participantes do grupo Morandubetá ocorreu na Cátedra<br />
UNESCO <strong>de</strong> Leitura da PUC-Rio. Era uma segunda-feira ensolarada, e a vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> compartilhar experiências, relatos, sentimentos e lembranças nos aproximou<br />
naquela manhã <strong>de</strong> céu azul e luz na alma. Eu <strong>de</strong>sempenhei o difícil e ao mesmo<br />
tempo prazeroso papel <strong>de</strong> mediador da conversa que contou com a presença <strong>de</strong><br />
Benita Prieto, Lúcia Fidalgo e Eliana Yunes. Como o Celso Sisto estava no sul do<br />
Brasil, enviei por e-mail as questões para ele comentar. Suas observações foram<br />
incorporadas a este bate-papo.
Impressões <strong>de</strong> uma<br />
contadora <strong>de</strong> histórias<br />
– meu encontro com<br />
a arte narrativa<br />
o
[Bia Bedran]<br />
“Embora<br />
nenhum <strong>de</strong> nós vá viver para sempre, as histórias conseguem...”<br />
EAssim a autora Clarissa Pinkola Estés encerra seu livro escrito no início dos anos<br />
1990, O dom da história. Nesta obra ela preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>svelar a amplitu<strong>de</strong> do alcance das<br />
narrativas orais através dos tempos e seu efeito <strong>de</strong> longa duração. Os componentes do<br />
mundo mítico associados ao “feitiço libertador dos contos <strong>de</strong> fadas”, que se <strong>de</strong>stina<br />
a provocar uma sensação <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, e ao acolhimento do conselho, têm a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> perdurar e coexistir num mundo técnico que corre cada dia mais em busca<br />
do sentido para a vida. E do mesmo modo Walter Benjamin cita os elementos constitutivos<br />
dos contos <strong>de</strong> fadas: “E se não morreram, vivem até hoje...”.<br />
O estudo acerca do valor <strong>de</strong> longa duração dos contos oriundos das tradições<br />
orais é tema recorrente na obra <strong>de</strong> Câmara Cascudo (1898-1986) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong><br />
1930. Especialmente em Literatura oral no Brasil, escrito entre 1945 e 1949, o autor nos<br />
fornece dados relevantes sobre a atmosfera sagrada que envolve a prosa do narrador<br />
e suas situações simbólicas apresentadas. Segundo ele, alguns segredos constituem as<br />
técnicas da narrativa popular:<br />
Os velhos irlan<strong>de</strong>ses têm repugnância <strong>de</strong> contar estórias <strong>de</strong> dia porque traz infelicida<strong>de</strong>.<br />
Os Bassutos africanos crêem que lhes cairá uma cabaça ao nariz ou a mãe do narrador<br />
transformar-se-á numa zebra selvagem. Os Sulcas da Nova Guiné acreditam que seriam<br />
fulminados por um raio. Os Tenas, do Alasca, contam histórias <strong>de</strong> dia, mas o local <strong>de</strong>ve<br />
estar na mais profunda obscurida<strong>de</strong>. Essa interdição é a mesma em Portugal e Espanha,<br />
<strong>de</strong>correntemente para o continente americano. Quem conta estórias <strong>de</strong> dia cria rabo <strong>de</strong><br />
cotia. (CASCUDO, 1984, p. 228).<br />
59
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
60<br />
De fato, se recorrermos à memória <strong>de</strong> nossa infância, verificamos que talvez tenha<br />
sido <strong>de</strong>ntro da noite, na penumbra <strong>de</strong> um quarto, na proximida<strong>de</strong> aconchegante da<br />
presença <strong>de</strong> um narrador primeiro, que gran<strong>de</strong> parte das situações simbólicas em<br />
nossas vidas pu<strong>de</strong>ram se apresentar. Assim foi o meu encontro com a arte narrativa e<br />
o canto, entremeando o enredo dos contos. Aconteceu muito cedo, na infância ainda<br />
não alfabetizada, quando a forma <strong>de</strong> ler o mundo se apresentava através das histórias<br />
contadas e cantadas por minha mãe. A exemplo do que Câmara Cascudo mostra ser<br />
o que acontecia no Brasil-Colônia, com as amas contando histórias e acalentando<br />
as suas crianças e as das sinhás, o material que me era passado por minha mãe foi o<br />
meu primeiro “leite intelectual” recebido. O pesquisador trabalha com o conceito <strong>de</strong><br />
literatura oral no Brasil e o estudo por ele realizado é uma eterna fonte <strong>de</strong> inspiração<br />
para meu próprio trabalho criativo. A partir do vasto material <strong>de</strong> sua pesquisa escrevi<br />
livros infantis com adaptações <strong>de</strong> temas <strong>de</strong> contos tradicionais, compus centenas <strong>de</strong><br />
canções também para crianças e gravei boa parte <strong>de</strong>sta obra em CDs, por acreditar<br />
que, na ausência <strong>de</strong> um narrador tradicional, seja possível reinstalar aqueles momentos<br />
mágicos e encantadores por intermédio <strong>de</strong> suportes contemporâneos.<br />
Penso o quanto aquele rico e <strong>de</strong>scompromissado momento proporcionado por<br />
minha mãe, era recheado <strong>de</strong> uma memória cultural <strong>de</strong> sua infância nos anos 1920,<br />
e o quanto esta memória transferiu-se para o meu imaginário, contribuindo para a<br />
construção do potencial imaginativo e criador que tenho hoje comigo. Logo em 1960,<br />
eu então com cinco anos, tive a chance e o privilégio <strong>de</strong> escutar as maravilhosas narrativas<br />
da Coleção Disquinho criadas por Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha<br />
para os amigos, e o João <strong>de</strong> Barro, para o mundo artístico. Aquelas encantadoras<br />
narrações <strong>de</strong> contos populares do Brasil e também clássicos da literatura infantojuvenil<br />
do mundo, eram entremeadas por músicas igualmente belas que pontuavam<br />
os momentos das histórias e as traziam mais oníricas e lúdicas para <strong>de</strong>ntro do coração.<br />
A partir daí, não somente minha infância se enriqueceu e se encantou com a arte<br />
<strong>de</strong> cantar e contar histórias, como também esta arte sinalizou o caminho profissional<br />
que eu seguiria posteriormente. Prossegui ouvindo e inventando histórias e canções
na minha meninice e, mesmo antes <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a escrever, lembro-me <strong>de</strong> meus pais<br />
registrando poemas e músicas que eu criava e não sabia ainda colocar no papel...<br />
Costumo dizer como se fosse um lema do meu trabalho artístico enquanto criadora<br />
musical e contadora <strong>de</strong> histórias para crianças, que o ato <strong>de</strong> ler e escrever histórias é fazer<br />
um bem; ouvi-las e contá-las, também. Assim como repito sempre: Era uma vez, era uma<br />
outra vez, era sempre uma vez. Ou quando canto: É bom cantar, é bom ouvir, é bom pensar, é<br />
bom sentir, procuro <strong>de</strong>monstrar o quão perto habitam a palavra que se canta e a palavra<br />
que se fala, pois elas <strong>de</strong>svelam sentidos múltiplos para cada pessoa que as recebe.<br />
Consi<strong>de</strong>ro o contador <strong>de</strong> histórias o <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> uma arte não exclusiva ao mundo<br />
dos artistas profissionais. As narrativas orais sempre estiveram ao lado do homem<br />
e <strong>de</strong> suas conquistas <strong>de</strong>ntro da arte <strong>de</strong> viver, então concordaremos que a arte <strong>de</strong><br />
narrar faz parte <strong>de</strong> sua própria história no mundo e traz imbricados os conceitos <strong>de</strong><br />
ancestralida<strong>de</strong> e contemporaneida<strong>de</strong>. Portanto sempre haverá encantamento quando<br />
alguém conta ou canta uma história, seja esta pessoa letrada ou não. A arte narrativa<br />
se manifesta tanto no contador tradicional, cujas histórias foram criadas e recriadas<br />
ao longo do tempo através da narração <strong>de</strong> sua experiência e <strong>de</strong> sua memória, quanto<br />
no contador contemporâneo, que se instrumentaliza através da pesquisa, da leitura<br />
e a insere na prática pedagógica. O professor contador <strong>de</strong> histórias promove em seu<br />
cotidiano o fazer artístico das crianças, que passam a construir obras criativas a partir<br />
da repercussão que as imagens poéticas das narrativas promovem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>las.<br />
Um simples <strong>de</strong>senho ou uma pintura que transpõe através <strong>de</strong> formas, cores ou<br />
texturas o que foi percebido <strong>de</strong> um momento específico narrado do conto, po<strong>de</strong> tornar-se<br />
uma experiência significativa <strong>de</strong> aprendizagem, pois ali estão expressas a leitura<br />
particular <strong>de</strong> cada indivíduo do mesmo fato objetivo da narrativa. A forma plástica<br />
escolhida, pela criança ou pelo adulto, ao <strong>de</strong>senhar uma narrativa é uma apropriação<br />
sua do significado objetivo do conto e sua consequente tradução subjetiva.<br />
Esta leitura singular <strong>de</strong> cada um, expressa em <strong>de</strong>senhos tão diferentes entre si,<br />
nos comprova a existência daquele “cinema mental” proposto por Ítalo Calvino,<br />
que afirma ser impossível que os cenários imaginados pelos ouvintes <strong>de</strong> uma mesma<br />
Bia Bedran<br />
61
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
62<br />
história possam ser semelhantes... E seguimos na esteira do conceito <strong>de</strong> Bachelard<br />
acerca da relação íntima da imagem poética com o <strong>de</strong>vaneio, pois o ouvinte <strong>de</strong> uma<br />
história entra no estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>vaneio ao escutá-la e engendra em sua imaginação criadora<br />
um mundo sonhado, que dialoga com a função do real, ao mesmo tempo que o<br />
liberta <strong>de</strong>la. A imaginação modifica certos aspectos da narrativa e é capaz <strong>de</strong> ampliá-los<br />
enquanto os assimila, portanto talvez possamos alçar que o conto ajuda a memória a<br />
lembrar e a imaginação a imaginar...<br />
Quando uma vez me perguntaram numa entrevista porque seria importante para<br />
as crianças entrarem em contato com qualquer forma <strong>de</strong> expressão da arte, respondi<br />
que preferia inverter a questão e dizer que é a arte que nos proporciona entradas no<br />
mundo. A arte nos dá um olhar diferenciado ao que se nos apresenta em bombar<strong>de</strong>io<br />
diário pelos meios <strong>de</strong> comunicação. Ela nos propicia um olhar crítico para esse mundo<br />
mo<strong>de</strong>rno impregnado das necessida<strong>de</strong>s fabricadas pela socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo e<br />
distantes das necessida<strong>de</strong>s essenciais do indivíduo.<br />
Eu diria que a arte <strong>de</strong> contar histórias se faz hoje mais do que nunca necessária<br />
exatamente porque quando ela se dá, seja num contexto pedagógico, numa roda<br />
informal <strong>de</strong> contos ou mesmo no contexto do que chamamos <strong>de</strong> indústria do espetáculo,<br />
o maravilhoso se instala. O maravilhoso contém elementos e valores ancestrais<br />
que vêm caminhando ao lado da existência humana em suas mais diversas culturas e<br />
quando um conto é narrado, as imagens saltam diretamente para a imaginação criadora<br />
do ouvinte, seja ele criança ou adulto. É nesse momento que o indivíduo realiza<br />
sua mais importante operação: a <strong>de</strong> significar sua relação com o mundo.<br />
Diz Herbert Read que a arte é um contágio, e se transmite como fogo, <strong>de</strong> espírito<br />
para espírito. Permito-me apropriar <strong>de</strong> sua colocação e dizer que a arte <strong>de</strong> contar<br />
histórias é uma transmissão que contagia por ser imanente à capacida<strong>de</strong> do homem<br />
<strong>de</strong> intercambiar experiências e produzir sentido para a vida. Quando a criança percebe<br />
que a história contada pelo professor po<strong>de</strong> continuar nela habitando, repercutindo,<br />
produzindo sentidos, cores, formas, texturas, e até “recriando memória”,<br />
expressão cunhada por Clarissa Pinkola Esthés, ela adquire po<strong>de</strong>r para enfrentar a
difícil tarefa <strong>de</strong> viver e conviver. A narrativa é dirigida ao olhar do outro, é frontal. O<br />
contador entrega, oferece um texto oral, uma i<strong>de</strong>ia, uma imagem poética, e as pessoas<br />
a recebem como se fosse uma bola que é <strong>de</strong>volvida com reflexão, expressão e criação.<br />
Os contos da tradição oral vieram através dos tempos instigando os sonhos, colocando<br />
à prova seus personagens diante da vida e da morte, revelando e <strong>de</strong>rrubando<br />
valores, <strong>de</strong>scobrindo mistérios, sortilégios, <strong>de</strong>sventuras, alegrias e esperanças, e nos<br />
falam <strong>de</strong>sta gran<strong>de</strong> experiência compartilhada por todos nós, que é a aventura <strong>de</strong> viver.<br />
É também compartilhada por Walter Benjamin e Ítalo Calvino a afirmação <strong>de</strong> que a<br />
característica principal das melhores narrativas é a <strong>de</strong> evitar explicações psicológicas<br />
para as situações contidas na história. A presença do maravilhoso e o elemento capaz<br />
<strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r estão incrustados na natureza dos contos tradicionais e são eles que<br />
provocam encantamento e suscitam novas criações. O extraordinário e o miraculoso<br />
são narrados sem que o contexto psicológico seja imposto ao leitor ou ouvinte.<br />
A imagem mais contun<strong>de</strong>nte que traduz a força ancestral que têm as narrativas<br />
orais é cunhada por Benjamin:<br />
Uma história do antigo Egito ainda é capaz, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> milênios, <strong>de</strong> suscitar espanto e<br />
reflexão. Ela se assemelha a essas sementes <strong>de</strong> trigo que durante milhares <strong>de</strong> anos ficaram<br />
fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmi<strong>de</strong>s e que conservam até hoje suas forças<br />
germinativas”. (BENJAMIN, 1994, p. 204).<br />
Há meio século minha própria história está imbricada com a arte narrativa: num<br />
primeiro e <strong>de</strong>finitivo momento, como ouvinte <strong>de</strong> uma contadora, canta<strong>de</strong>ira e encantadora<br />
mãe, e num período seguinte e até hoje, como uma amante das palavras contadas<br />
e cantadas propagadas pela estrada afora. Braguinha criou, na década <strong>de</strong> 1950, ao<br />
adaptar a história <strong>de</strong> Chapeuzinho Vermelho <strong>de</strong> Charles Perrault em música e versos:<br />
“Pela estrada afora eu vou bem sozinha levar esses doces para a vovozinha...”. E <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
então eu sigo cantando e contando.<br />
Mas eu não estou sozinha nesta estrada, on<strong>de</strong> as histórias são vaga-lumes que<br />
sina-lizam com poesia, mistério e sabedoria os caminhos <strong>de</strong> todas as gentes e contam,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, a história <strong>de</strong> nossa história no mundo. Muitos escritores, poetas, filóso-<br />
Bia Bedran<br />
63
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
64<br />
fos, teóricos e artistas populares me ajudam a pensar o valor <strong>de</strong>sta antiga arte milenar,<br />
on<strong>de</strong> a palavra é indicadora <strong>de</strong> rumos passados, presentes e futuros, são unânimes em<br />
relacionar a arte narrativa com a arte <strong>de</strong> viver. E todos eles precisam dos contadores <strong>de</strong><br />
histórias e dos cantadores para que a palavra se dirija alma a<strong>de</strong>ntro e possa repercutir<br />
profundamente na forma <strong>de</strong> imagem poética. Letrados e não letrados leem o mundo e<br />
contam suas histórias. É preciso contá-las para que o mundo possa ouvi-las. On<strong>de</strong> <strong>de</strong>saparece<br />
a arte <strong>de</strong> narrar, também <strong>de</strong>saparece o dom <strong>de</strong> ouvir, já dizia Benjamin:<br />
A narrativa mergulha a coisa na vida no narrador para em seguida retirá-la <strong>de</strong>le. Assim<br />
se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do barro.<br />
(BENJAMIN, 1994, p. 205)<br />
Aí está a relevância das narrativas orais que se mantiveram vivas e germinativas<br />
antes mesmo dos suportes que as pu<strong>de</strong>ssem registrar: a narrativa é uma forma artesanal<br />
<strong>de</strong> comunicação que se prolonga e repercute, ao contrário da informação que<br />
se esgota rapidamente. As narrativas estão imbricadas com a arte <strong>de</strong> viver. Portanto a<br />
arte <strong>de</strong> narrar e o dom <strong>de</strong> ouvir se entrelaçam para que a maior aventura do homem<br />
possa acontecer.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u A poética do <strong>de</strong>vaneio. Gastón Bachelard. Martins Fontes, 2006.<br />
u Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.<br />
Walter Benjamin. Brasiliense, 1994. (obras escolhidas I)<br />
u Memória e socieda<strong>de</strong> – Lembrança <strong>de</strong> velhos. Ecléa Bosi. Cia. Das Letras, 1994.<br />
u A arte <strong>de</strong> contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço. Cléo Busatto.<br />
Vozes, 2007.<br />
u Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Ítalo Calvino. Companhia<br />
das Letras, 1990.<br />
u Literatura oral no Brasil. Luis da Câmara Cascudo. Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1984.
u O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Clarissa Pinkola Estés.<br />
Rocco, 1998.<br />
u A renovação do conto. Emergência <strong>de</strong> uma prática oral. Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s<br />
Patrini. Cortez, 2005.<br />
u A re<strong>de</strong>nção do robô: meu encontro com a educação através da arte. Herbert<br />
Read. Summus, 1986.<br />
Bia Bedran<br />
65
A terceira margem da cena<br />
o
[José Mauro Brant]<br />
A voz é querer dizer e vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> existência.<br />
Zumthor.<br />
Hoje, o interesse do teatro contemporâneo pela encenação <strong>de</strong> textos literários<br />
Hsem transposição <strong>de</strong> gênero é crescente. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer viver no palco o texto narrativo<br />
sem adaptações teatrais fez ressurgir na cena contemporânea a presença do atornarrador,<br />
O Ator Rapsodo. O titulo aqui alu<strong>de</strong> à própria gênese do ator, a figura dos<br />
poetas rapsodos, contadores <strong>de</strong> histórias da Grécia antiga, <strong>de</strong>tentores da poesia oral que<br />
estiveram em cena em vários momentos históricos do teatro. Neste teatro “narrativo”<br />
o Ator Rapsodo preserva a voz autoral, sendo o responsável direto pela comunicação.<br />
Ele quebra a quarta pare<strong>de</strong> e se projeta do espaço dramático; se distanciando da obra<br />
e encontrando o público e, <strong>de</strong>sse espaço <strong>de</strong> cumplicida<strong>de</strong>, ele po<strong>de</strong> narrar, comentar,<br />
<strong>de</strong>screver e até viver os personagens da obra que está encenando.<br />
O diretor A<strong>de</strong>rbal Freire filho, um dos gran<strong>de</strong>s praticantes <strong>de</strong>sse gênero e criador<br />
do Romance em cena <strong>de</strong>fine: “(...) o ator rapsodo é títere e titeriteiro. Ele representa em<br />
primeira pessoa mas narra em terceira. Se no cinema o ator faz e a câmera mostra, no<br />
‘romance em cena’ o ator faz e mostra.” O trânsito livre entre o narrado e o vivido<br />
cria um jogo franco com o público, sem ilusões, resultando numa teatralida<strong>de</strong> viva e<br />
instigante na qual o espectador é convocado como leitor, embarcando num exercício<br />
criativo <strong>de</strong> imaginação on<strong>de</strong> ele completa as imagens e os sentidos do texto.<br />
Mesmo dispondo das mesmas ferramentas e oferecendo ao público um mesmo<br />
exercício <strong>de</strong> recepção, o ator rapsodo parece distante do que hoje chamamos <strong>de</strong> Contador<br />
<strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> – na realida<strong>de</strong>, os pontos <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> ambos são diferentes. O<br />
Ator Rapsodo tem os pés fincados no palco e, da cena, abre uma janela pra vida real,<br />
67
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
68<br />
interagindo com o público. Apesar <strong>de</strong> se alimentar da linguagem do seu ancestral em<br />
comum, o ator rapsodo hoje costuma ser apenas uma importante peça <strong>de</strong> uma engrenagem<br />
na qual o gran<strong>de</strong> contador <strong>de</strong> histórias é o próprio encenador. O Contador <strong>de</strong><br />
<strong>Histórias</strong>, por sua vez, tem os pés na vida, e dali, do mesmo lugar que o público, abre<br />
uma janela pra fantasia.<br />
A faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar histórias é um dom <strong>de</strong> todos os seres humanos e os atores<br />
hoje são minoria no mundo dos narradores. Os contadores <strong>de</strong> histórias contemporâneos<br />
são escritores, educadores, leitores, pesquisadores, promotores <strong>de</strong> leitura e também<br />
atores, são indivíduos que possuem em comum um “impulso rapsódico”. Mais<br />
do que intérprete <strong>de</strong> um texto narrativo, o contador é também uma autorida<strong>de</strong> sobre<br />
o que está contando. Seu repertório é resultado <strong>de</strong> uma experiência individual com a<br />
literatura, com o seu universo mais íntimo <strong>de</strong> significações, com sua história <strong>de</strong> amor<br />
com a linguagem; ele tem o dom <strong>de</strong> trazer para a voz a palavra autoral por meio <strong>de</strong><br />
um processo <strong>de</strong> apropriação que faz seu texto se transformar em oralida<strong>de</strong>. A questão<br />
que se coloca, a partir daí, é: seria essa prática, que é <strong>de</strong> todos, uma linguagem cênica?<br />
Polêmico narrador e teórico das artes cênicas, o cubano, radicado na Espanha,<br />
Francisco Garzon Céspe<strong>de</strong>s, cunhou o termo: narração oral cênica para <strong>de</strong>signar a<br />
prática dos contadores <strong>de</strong> histórias do nosso tempo. No seu livro El arte escénico <strong>de</strong><br />
contar cuentos [A arte cênica da contação <strong>de</strong> histórias] ele afirma: a arte <strong>de</strong> contar oral e<br />
cenicamente é uma arte cênica. Mas para Céspe<strong>de</strong>s dizer cena não é dizer teatro, e é na<br />
oposição: teatro versus narração <strong>de</strong> histórias, que ele busca os paradigmas que vão<br />
apontar as direções <strong>de</strong>ssa nova linguagem. “O teatro é ação. A narração oral cênica é<br />
sugestão. (...) O teatro é representação. A narração oral cênica é apresentação.”<br />
Meu mestre Fernando Lébeis dizia: “O ator bota máscaras, o contador <strong>de</strong> histórias<br />
tira as máscaras.” Diga-me o que contas e te direi quem és! Despido <strong>de</strong> personagens,<br />
<strong>de</strong>scolado <strong>de</strong> qualquer “encenação”, o contador <strong>de</strong> histórias está pronto para, em<br />
qualquer espaço sob as condições mais adversas, fazer acontecer o seu “teatro”.<br />
Oriundo <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> em que a oralida<strong>de</strong> tem papel secundário, o contador<br />
<strong>de</strong> histórias urbano elege seu acervo a partir das muitas possibilida<strong>de</strong>s que sua
história <strong>de</strong> leituras oferece, textos autorais, poesias, crônicas e também as histórias<br />
da tradição oral que reencontramos nos livros. Afinal ler é sempre escutar uma voz.<br />
Ao escolher um texto para contar o narrador vira dono <strong>de</strong>sta voz. Ele tem o dom <strong>de</strong><br />
saber escutar e sentir os movimentos subjacentes ao texto. As leis da cena ajudam<br />
no processo artístico, administrando essas reverberações e as transformando em algo<br />
expressivo. A memória (e não só a memorização) age como cocriadora do texto que<br />
é incorporado pelo narrador. Assim o conto vira carne, sangue, gesto, olhar, escuta,<br />
suor, respiração; ou seja, corpo; e especialmente, voz, sua principal emanação.<br />
Essa conquista se <strong>de</strong>ve à sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver e ouvir a sua audiência e se entregar<br />
para um jogo on<strong>de</strong> o público não é mero espectador e sim interlocutor, tudo isso sem<br />
per<strong>de</strong>r o fio da história. Sua autorida<strong>de</strong> cênica é absoluta e vem do seu compromisso<br />
quase sagrado com o texto e com a sua transmissão.<br />
Um dos maiores encenadores e pensadores do teatro contemporâneo, Peter<br />
Brook, conta no livro A Porta Aberta suas experiências observando a prática dos contadores<br />
<strong>de</strong> histórias tradicionais da Índia, Irã e Afeganistão, que mantém vivos os<br />
mitos ancestrais. Com um misto <strong>de</strong> alegria e gravida<strong>de</strong> os velhos narradores não per<strong>de</strong>m<br />
nunca a relação com seus ouvintes, não para agradá-los, mas para partilhar com<br />
eles as qualida<strong>de</strong>s sagradas do texto. Os gran<strong>de</strong>s narradores nunca per<strong>de</strong>m o contato<br />
com a gran<strong>de</strong>za do mito que estão fazendo viver: “Tem um ouvido voltado para o seu<br />
interior e outro para fora.” Assim Brook sintetiza a maior lição dos velhos narradores:<br />
estar em dois mundos ao mesmo tempo.<br />
O narrador artístico sabe transitar por esses dois mundos e sabe também que<br />
ele é responsável por criar um terceiro mundo, imaginário. O espaço <strong>de</strong> construção<br />
conjunta da história, espaço <strong>de</strong> comunhão com os indivíduos da plateia on<strong>de</strong> <strong>de</strong> fato<br />
toda ação do conto acontece. A terceira margem da cena.<br />
Um dos mais frequentes colaboradores <strong>de</strong> Peter Brook, o ator japonês Yoshi Oida<br />
(que traz na sua história a prática do gidaiyu, tradicional estilo <strong>de</strong> narração que tem<br />
seu lugar nas encenações do teatro Kabuqui), conta em um <strong>de</strong> seus livros que certa vez<br />
um talentoso ator interpretou um gesto que no Kabuqui indica “Olhar para Lua”. Ao<br />
José Mauro Brant<br />
69
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
70<br />
ver o ator apontando com o indicador para o céu, com elegância, todos admiraram<br />
a beleza do seu movimento e o virtuosismo técnico com que ele realizava a tarefa.<br />
Outro ator fez o mesmo gesto; apontou para a lua. O público não percebeu se ele<br />
tinha realizado ou não um movimento elegante; simplesmente viu a lua. O nome do<br />
livro? O ator invisível. Sonho contar uma história em que eu, ao final, <strong>de</strong>sapareça e só<br />
reste, para o público, as imagens do conto.<br />
Foi a paixão por essa generosa arte <strong>de</strong> fazer visível o invisível e meu amor pela palavra<br />
dita, cantada, escrita que me fez ser contador <strong>de</strong> histórias. Contar histórias libertou<br />
a minha voz das armadilhas do teatro e hoje ela está por aí, em bibliotecas, salas<br />
<strong>de</strong> aula, hospitais, livros, CDs, e, é claro, e sempre, no meu lugar <strong>de</strong> origem, o palco.<br />
Sonho com um teatro que volte a nascer <strong>de</strong> um impulso rapsódico. Do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> contar.<br />
Contar histórias, pra mim, é sentir na pele a verda<strong>de</strong>ira função do oficio do ator.<br />
É tocar a essência do próprio teatro.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u A porta aberta. Peter Brook. Civilização Brasileira, 2008.<br />
u <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: Oralida<strong>de</strong>, Narração Oral e Narração oral cênica. Francisco<br />
Garzón Céspe<strong>de</strong>s. In: O teatro dito infantil. Maria Helena Kühner (Org.). Cultura<br />
em Movimento, 2003.<br />
u O ator invisível. Yoshi Oida. Via Lettera, 2007.<br />
u Introdução à poesia oral. Paul Zumthor. UFMG, 2010.<br />
u Performance, recepção, leitura. Paul Zumthor. Cosac Naify, 2007.<br />
u Do livro para o palco: formas <strong>de</strong> interação entre o épico literário e o teatral. Luiz Arthur<br />
Nunes. In: O Percevejo – Revista <strong>de</strong> teatro, crítica e estética. Ano 8, Número 9.<br />
u O lugar das histórias(ví<strong>de</strong>o) In: Coleção Teatro. Volume 1. Fundação Joaquim Nabuco,<br />
2010.
A voz quente do<br />
coração do rádio<br />
o
[Gilka Girar<strong>de</strong>llo]<br />
Com a novela <strong>de</strong> rádio apren<strong>de</strong>mos a ansiar pela continuação <strong>de</strong> uma história:<br />
Cpara muitas gerações <strong>de</strong> brasileiros, a radionovela foi a primeira Scheraza<strong>de</strong>.<br />
Na minha vida, por exemplo, o primeiro rádio foi um Telefunken grandão,<br />
encaixado num móvel <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> um estilo que naqueles anos 1960 chamávamos<br />
<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rno. Esse móvel era o centro da sala do nosso apartamento em Porto Alegre:<br />
tinha toca-discos, um nicho espelhado para guardar bebidas… e o rádio.<br />
Depois do almoço, lavada a louça, minha mãe sentava conosco no tapete junto ao<br />
rádio – éramos quatro crianças – e amontoados escutávamos os acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> abertura<br />
da novela. O rádio era quente, e quentes eram as vozes da mocinha, do galã, da vilã.<br />
Choros, soluços, suspiros, sussurros, batidas <strong>de</strong> portas, passos pelo chão, acor<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
violino e sustos <strong>de</strong> tambor: como era quente tudo o que ouvíamos com o ouvido<br />
colado numa novela <strong>de</strong> rádio!<br />
De on<strong>de</strong> vinha aquele calor todo? – fico pensando. Um pouco vinha das válvulas<br />
aquecidas do corpo físico do radião, claro. Outro pouco do aconchego das famílias<br />
que se embolavam em colo, café e cafuné na moleza das tar<strong>de</strong>s daquele tempo mais<br />
lento. Mas muito vinha mesmo <strong>de</strong> uma linguagem íntima, <strong>de</strong> vozes que falavam coladas<br />
no microfone, a ouvidos que as escutavam colados na tela palpitante do rádio.<br />
Essa intimida<strong>de</strong> tinha a ver também com o espaço doméstico: não havia cenas<br />
externas nas radionovelas daquele tempo. O vento e os ruídos da cida<strong>de</strong> certamente<br />
atrapalhariam gravações <strong>de</strong> rua, e além disso os enredos em si eram intimistas: segredos<br />
atrás da porta, confissões no leito <strong>de</strong> morte, cartas encontradas em gavetas, promessas<br />
e maldições ao pé do ouvido.<br />
73
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
74<br />
Anos <strong>de</strong>pois, já quase mocinha, ganhei um rádio <strong>de</strong> pilha <strong>de</strong> aniversário. Ia<br />
dormir com ele grudado no ouvido, o volume no mínimo e ainda por cima abafado<br />
pelo cobertor, pra não incomodar as irmãs nas camas ao lado. Caçava as vozes dos<br />
locutores dos primeiros programas <strong>de</strong> rock, ainda marginais naqueles tempos, pressentindo<br />
as emoções que a cultura dos jovens guardava pra quem a fosse <strong>de</strong>scobrindo.<br />
Era revigorante a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> buscar e encontrar sozinha aqueles mundos, ao<br />
sabor das excursões pelo dial. Intuir que milhares <strong>de</strong> outras meninas e meninos da<br />
minha ida<strong>de</strong> estavam ao mesmo tempo sozinhos em seus quartos, <strong>de</strong> ouvido nos<br />
radinhos, escutando a mesma coisa, dava um arrepio na espinha, como o prenúncio<br />
<strong>de</strong> uma revolução.<br />
O rádio permite uma intimida<strong>de</strong>, uma presença tátil, um tipo <strong>de</strong> conspiração<br />
narrativa entre quem fala e quem ouve. Ele envia pra longe a palavra encarnada e ao<br />
mesmo tempo preserva a proximida<strong>de</strong> que a voz humana instaura, em sua condição<br />
<strong>de</strong> corpo vivo. Afinal, “toda voz emana <strong>de</strong> um corpo, que permanece visível e palpável<br />
enquanto ela é audível”, como diz Paul Zumthor. Por isso, o rádio faz com que cada<br />
um dos milhares <strong>de</strong> ouvintes se sinta único, capaz <strong>de</strong> criar um rio <strong>de</strong> imagens mentais<br />
para acompanhar o fluxo da fala do parceiro, aquele locutor que está no estúdio.<br />
Que o rádio tem gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> animar a imaginação, é coisa já dita e redita. Em<br />
uma pesquisa feita há alguns anos com centenas <strong>de</strong> crianças, por exemplo, pediram que<br />
elas fizessem <strong>de</strong>senhos a partir <strong>de</strong> histórias ouvidas no rádio e na televisão. A versão<br />
em rádio estimulou <strong>de</strong>senhos mais imaginativos: as crianças escolheram uma varieda<strong>de</strong><br />
maior <strong>de</strong> conteúdos da história para representar graficamente, e incorporaram mais<br />
conteúdos exteriores à história em seus <strong>de</strong>senhos1 .<br />
O apreço pelo rádio fez parte também da vida <strong>de</strong> um dos pensadores mo<strong>de</strong>rnos<br />
mais apaixonados pela imaginação e pela narrativa oral, Walter Benjamin. Entre 1929<br />
e 1933, o gran<strong>de</strong> teórico cultural escreveu e apresentou programas semanais <strong>de</strong> rádio<br />
para crianças, em Berlim e Frankfurt. Nesses programas <strong>de</strong> vinte minutos, ele contava,<br />
como se estivesse conversando ao pé da lareira, casos como o da <strong>de</strong>struição <strong>de</strong><br />
1. Pesquisa relatada em Patricia Marx Greenfield, Mind and Media: The effects of television, vi<strong>de</strong>o games, and computers.<br />
Harvard University Press, Cambridge, MA, 1984.
Pompeia pelo Vesúvio, o do terremoto <strong>de</strong> Lisboa, e muitas anedotas surpreen<strong>de</strong>ntes<br />
como esta, que se passa em Nova Orleans, no tempo da Lei Seca:<br />
Dois rapazes negros andam pelo corredor <strong>de</strong> um trem que acaba <strong>de</strong> parar, escon<strong>de</strong>ndo sob a<br />
roupa frascos <strong>de</strong> diferentes formatos, on<strong>de</strong> se lê em letras graúdas: “chá gelado”. Um viajante<br />
faz sinal a um dos ven<strong>de</strong>dores e compra um dos frascos, pelo preço <strong>de</strong> um terno, escon<strong>de</strong>ndoo<br />
em seguida. Outro faz a mesma coisa, <strong>de</strong>pois mais <strong>de</strong>z, vinte ou cinquenta. “Senhoras e<br />
senhores”, imploram os rapazes, “esperem que o trem volte a andar antes <strong>de</strong> beberem seu<br />
chá”. Todos piscam o olho em cumplicida<strong>de</strong>... O apito soa, o trem parte, e os passageiros<br />
levam os frascos aos lábios. Mas o <strong>de</strong>sapontamento logo nubla seus rostos, pois o que estão<br />
bebendo é mesmo chá gelado 2 .<br />
Nem a TV nem a internet acabaram com o rádio, que se acomodou à primeira e<br />
se acoplou à segunda, passando hoje muito bem, obrigado. No Brasil inteiro existem<br />
hoje rádios nas escolas e comunida<strong>de</strong>s, rádios <strong>de</strong> curto e longo alcance, rádios feitas<br />
por crianças, por jovens, por velhos, rádios que falam todas as línguas que se fala no<br />
Brasil, muito além do português. Tanto existem emissoras interativas on-line, quanto<br />
emissoras captadas pela antena do radinho <strong>de</strong> pilha que o pedreiro escuta na obra, a<br />
professora enquanto corrige provas em casa, e o motorista, no táxi.<br />
Nem só <strong>de</strong> música, esporte e notícias se faz a programação <strong>de</strong>ssas rádios. Em<br />
muitos projetos, nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s e vilarejos do interior, as vozes no rádio contam<br />
histórias <strong>de</strong> vida, contos, poemas, fazem teatro com a textura da voz, experimentam<br />
linguagens e temas contemporâneos. As histórias que o rádio conta abastecem <strong>de</strong><br />
emoções, arte e companhia os dias e noites das mulheres e dos homens em seus<br />
momentos <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> ou solidão, falam aos românticos, aos visionários, e a todos<br />
os que simplesmente buscam sintonizar seus semelhantes. O coração quente do rádio,<br />
nos cantos das casas brasileiras, aquece o cotidiano <strong>de</strong> milhões, e é um dos nossos<br />
gran<strong>de</strong>s e nem sempre reconhecidos parceiros na aventura <strong>de</strong> povoar o cotidiano com<br />
histórias contadas, e portanto com mais sentido na vida.<br />
2 Em MEHLMAN, Jeffrey: Walter Benjamin for children: an essay on his radio years. Chicago: University of Chicago<br />
Press, 1984, p. 8.<br />
Gilka Girar<strong>de</strong>llo<br />
75
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
76<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Voz, presença, imaginação: a narração <strong>de</strong> histórias para crianças pequenas. Gilka<br />
Girar<strong>de</strong>llo. In: Infância: imaginação e educação em <strong>de</strong>bate. Celdon Fritzen e Gladir<br />
Cabral. Papirus, 2007.<br />
u Teorias do Rádio – Textos e Contextos. Eduardo Meditsch (org.). Insular, 2005.<br />
u O corpo tornado voz: a experiência pedagógica da peça radiofônica. Mirna<br />
Spritzer. Tese <strong>de</strong> doutorado em educação. UFRGS, 2005.
Contando na telinha<br />
o
[Augusto Pessôa]<br />
Acho que contar histórias é um exercício <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>. Uma relação pro-<br />
Afunda entre o narrador, a história e o ouvinte. Tendo como elemento principal<br />
a narrativa, o texto que é dito. A contação <strong>de</strong> histórias não necessita <strong>de</strong> imagens, <strong>de</strong><br />
encenações ou outros subterfúgios. Eles po<strong>de</strong>m até fazer parte do trabalho, mas esses<br />
elementos <strong>de</strong>vem servir ao texto e somente a ele. O gran<strong>de</strong> trabalho do contador é<br />
dizer o texto <strong>de</strong> forma clara para que ele seja elaborado na imaginação do ouvinte.<br />
Sou contador <strong>de</strong> histórias há muito tempo. Descobri recentemente que já tenho<br />
18 anos <strong>de</strong> contação. Pra mim, parece que foi ontem. Mas já vivi várias experiências<br />
interessantes durante esse tempo. Uma realmente interessante é a relação da contação<br />
<strong>de</strong> histórias com a televisão. É curioso porque supostamente são linguagens que não<br />
combinam: a televisão vive <strong>de</strong> imagem. Uma imagem que é mostrada. Não há muito<br />
espaço para imaginação. O telespectador precisa ver e acreditar naquilo que é mostrado.<br />
Uma vez li uma entrevista do autor <strong>de</strong> novelas Silvio <strong>de</strong> Abreu on<strong>de</strong> ele dizia<br />
mais ou menos isso: “A realida<strong>de</strong> não precisa ser real, mas a teledramaturgia sim”. Na<br />
minha opinião essa frase é bastante significativa do trabalho realizado nas emissoras.<br />
Além disso, a televisão também precisa <strong>de</strong> dinamismo. As imagens não po<strong>de</strong>m ficar<br />
mais <strong>de</strong> dois minutos no ar. Os cortes são rápidos. As informações aceleradas.<br />
Já a contação <strong>de</strong> histórias necessita exatamente do contrário. Precisa do tempo,<br />
do olho no olho, da intimida<strong>de</strong>. As informações são lentas, não precisam ser “reais”<br />
e necessitam da imaginação do ouvinte.<br />
As emissoras <strong>de</strong> televisão <strong>de</strong>sejam essa intimida<strong>de</strong> com o telespectador e tentam<br />
colocar <strong>de</strong>ntro do seu formato uma ativida<strong>de</strong> que aparentemente não cabe nele.<br />
79
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
80<br />
Dentro <strong>de</strong>ssas tentativas <strong>de</strong> aproximação, participei <strong>de</strong> algumas reuniões com a<br />
intenção <strong>de</strong> afinar os formatos. Certa vez tivemos uma reunião na Casa da Leitura no<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro com um diretor e produtores <strong>de</strong> uma emissora <strong>de</strong> televisão. Tínhamos<br />
gravado algumas histórias num estúdio e esse trabalho foi apresentado aos senhores<br />
da emissora. Por coincidência, uma história que eu conto até hoje foi a primeira a<br />
ser apresentada: “Uma aposta”. Uma narrativa cheia <strong>de</strong> lirismo e romance <strong>de</strong> Artur<br />
Azevedo. A história tem aproximadamente oito minutos o que levou o diretor da<br />
emissora à loucura. O tal senhor ficou extremamente exaltado. Elogiou a história e a<br />
contação (para minha alegria), mas ficou espantado com a duração da história. Disse<br />
que seria impossível realizar o trabalho com narrativas <strong>de</strong>sse tamanho. A discussão<br />
ficou acalorada e o projeto subiu no telhado.<br />
Numa outra tentativa, fomos para um estúdio gravar pilotos <strong>de</strong> um possível programa<br />
sobre contação <strong>de</strong> histórias. O diretor pediu para que eu contasse uma história<br />
para crianças. Escolhi “A rã e o boi”, uma <strong>de</strong>liciosa fábula. Conto essa história<br />
utilizando uma bola <strong>de</strong> encher, soprando até ela explodir. Por já ter vivido outras<br />
experiências frustradas com o veículo, contei a história <strong>de</strong> uma forma bem contida<br />
numa tentativa <strong>de</strong> enquadrá-la no formato televisivo. Não <strong>de</strong>u certo. O diretor me<br />
perguntou se era assim que eu contava normalmente. Respondi que não. Quando<br />
conto, me movimento muito. Os gestos são largos e gran<strong>de</strong>s. Tentei explicar que, da<br />
forma que faço normalmente, não caberia na telinha. Mas o homem insistiu. E fiz.<br />
Confesso que até exagerei um pouquinho. E, como eu já <strong>de</strong>sconfiava, o diretor ficou<br />
espantado e o projeto subiu no telhado também.<br />
Depois <strong>de</strong> muitas tentativas, surgiu um convite <strong>de</strong> uma emissora estatal. Fiquei<br />
mais animado principalmente porque, por ser estatal, a emissora não teria uma gran<strong>de</strong><br />
preocupação com a parte comercial. Mas foi só ilusão minha. A proposta era gravar<br />
vinte histórias que seriam apresentadas durante o mês <strong>de</strong> outubro numa homenagem<br />
as crianças. As narrativas teriam no máximo três minutos e uma animação gráfica. Eu<br />
faria a adaptação e a contação das histórias.<br />
E aí, começaram os problemas: como adaptar as narrativas para o tamanho pro-
posto? Optei por adaptar histórias curtas e fragmentos <strong>de</strong> histórias. Entreguei os textos<br />
e eles me pediram para diminuir o tempo para dois minutos. Fiz as novas adaptações<br />
e... pediram para diminuir para um minuto. Um minuto?! Agora fui eu que tive<br />
um espanto: Impossível!! Não conseguiria contar uma história em um minuto por<br />
mais curta que ela fosse. Pensei em recusar e apresentei minhas alegações. Para minha<br />
alegria, voltaram aos dois minutos, mas eu tinha que cronometrar as histórias para<br />
que tivessem realmente o tempo exigido. Fiz.<br />
Na época eu estava produzindo um espetáculo teatral baseado no conto popular<br />
“O rei doente do mal <strong>de</strong> amores”. Como eram vinte histórias e eu estava enrolado<br />
com a produção do espetáculo, pedi para que os textos adaptados fossem colocados<br />
num teleprompter. Eles aceitaram, mas aí veio a surpresa: seriam três câmeras!<br />
Não tenho muito experiência com o veículo. Não sei bem como agir na frente <strong>de</strong><br />
uma câmera. Como ator, estou mais acostumado com o teatro. No teatro o gesto é<br />
gran<strong>de</strong>, a voz é empostada e precisa atingir a famosa velhinha surda que está sentada<br />
na última fila. Como contador <strong>de</strong> histórias, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do público, o processo é<br />
semelhante ao do teatro. Com o diferencial que na contação <strong>de</strong> histórias o texto é<br />
transmitido exclusivamente para o público.<br />
E ainda tinha o problema das tais três câmeras. O tempo <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> uma<br />
câmera para outra não tinha sido cronometrado. Resumindo: todas as adaptações<br />
ultrapassaram o limite <strong>de</strong> dois minutos. Para meu alívio, eles gostaram do resultado<br />
e não pediram para refazer as adaptações. Mas ainda tinha um problema: o olhar.<br />
Quando você vira <strong>de</strong> uma câmera para a outra, o seu olho vai antes do que seu<br />
rosto. Já imaginou? Nunca tinha pensado nisso! Precisava controlar meu olhar que,<br />
teimoso, insistia em ir antes do meu rosto. E também tinha que imaginar algumas<br />
figuras que seriam colocadas posteriormente pela computação gráfica. Como se eu<br />
interagisse com essas figuras. Foi difícil. Principalmente porque não tinha um único<br />
olhar para aquecer a contação. Somente o frio olho da câmera. Gravei em três dias.<br />
Três manhãs para ser mais preciso. Não podia me mexer muito e tinha que estar com<br />
uma “cara boa”. Essa era a pior parte. Como estava produzindo um espetáculo, tinha<br />
Augusto Pessôa<br />
81
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
82<br />
muito trabalho. Várias vezes o diretor chamou a maquiagem para escon<strong>de</strong>r minhas<br />
olheiras. Realizei o trabalho e fiquei esperando o resultado final com os <strong>de</strong>senhos da<br />
computação gráfica. Não tinha muita certeza <strong>de</strong> como ficaria. Vi alguns trechos, mas<br />
não o resultado completo. Sinceramente, <strong>de</strong>sconfiava <strong>de</strong> que não iria dar certo.<br />
No início <strong>de</strong> outubro, quando já imaginava que os programas nem iam mais<br />
passar, realizei um trabalho no estado da Bahia, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Feira <strong>de</strong> Santana. Um<br />
dia estava no hotel e liguei a televisão. Por uma feliz coincidência o aparelho estava<br />
ligado exatamente na tal emissora e... vi o programa! Era um tipo <strong>de</strong> trabalho que<br />
eles chamam <strong>de</strong> “interprograma”. Não tinha um horário certo para passar. Era transmitido<br />
durante a programação, entre os programas fixos. Tive a sorte <strong>de</strong> ligar e dar<br />
<strong>de</strong> cara comigo na televisão contando uma história. Lembro da narrativa: João mais<br />
Maria. Era um fragmento do conto popular. Terminada a transmissão a sensação foi<br />
boa. Boa e estranha.<br />
Diferente do que eu <strong>de</strong>sconfiava, o trabalho funcionou. Mas <strong>de</strong> repente me <strong>de</strong>i<br />
conta <strong>de</strong> que o programa seria transmitido para o Brasil todo. Durante um mês eu<br />
entraria, sem pedir licença, na casa das pessoas, para contar uma história. Mas tive<br />
uma satisfação: a história estava ali! Não plena, pois faltava, no momento em que o<br />
trabalho foi gravado, a figura do ouvinte. O espectador viria <strong>de</strong>pois e eu não podia<br />
me relacionar com ele. Mas mesmo assim, <strong>de</strong> alguma forma, a história alcançou o<br />
seu objetivo. A animação não era excessiva e estava ali para realçar o que era dito. A<br />
estrela continuava a ser a narrativa.<br />
O trabalho, que <strong>de</strong>veria durar apenas o mês <strong>de</strong> outubro, foi estendido. Um dia<br />
recebi uma ligação da produção da emissora falando do sucesso do programa e perguntando<br />
se eu me incomodava que ele se esten<strong>de</strong>sse por mais um mês. Aceitei. No<br />
final <strong>de</strong> novembro nova ligação com pedido para esten<strong>de</strong>r o trabalho e assim foi. Os<br />
programas ficaram no ar por quase cinco anos. Por causa <strong>de</strong> problemas financeiros<br />
(a televisão era estatal, lembra?) dos vinte programas, só treze foram finalizados. Mas<br />
foi um sucesso. Mesmo com o fim das transmissões, até hoje sou parado na rua por<br />
<strong>de</strong>sconhecidos que perguntam sobre o programa e quando ele vai retornar. Tive outras
experiências com a telinha contando ou lendo histórias. Mas, com certeza, a mais<br />
bem sucedida até agora foi a dos “interprogramas”. Atribuo esse sucesso às histórias.<br />
Ao po<strong>de</strong>r que essas narrativas exercem e sempre exerceram sobre o ser humano. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />
do formato, a história ainda consegue sobreviver e encantar.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Contos populares do Brasil. Silvio Romero. Itatiaia.<br />
u Contos tradicionais do Brasil. Luis da Câmara Cascudo. Ediouro.<br />
u O folclore no Brasil. Basílio <strong>de</strong> Magalhães. Imprensa Nacional.<br />
u Guardados do coração – memorial para contadores <strong>de</strong> histórias. Francisco<br />
Gregório Filho. Amais.<br />
u Literatura oral para a infância e a juventu<strong>de</strong>. Henriqueta Lisboa. Peirópolis.<br />
u Como um romance. Daniel Pennac. Rocco.<br />
u Gramática da fantasia. Gianni Rodari. Summus.<br />
u As raízes históricas do conto maravilhoso. Vladímir Propp. Martins Fontes.<br />
u A arte <strong>de</strong> ler e contar histórias. Malba Tahan. Conquista.<br />
Augusto Pessôa<br />
83
Cinema: um griot cuja argila é o<br />
tempo e a estátua são os atores na<br />
fogueira da sala escura<br />
o
[Paulo Siqueira]<br />
Meus avós eram da roça e eu passava todos os finais <strong>de</strong> semana ou férias lá. Me<br />
Mlembro bem que minha avó realmente acreditava no Saci, assim como as pessoas<br />
da região. Vejam bem, não era um folclore, as pessoas tinham visto, tinham tido ou<br />
conheciam quem tivesse vivido alguma experiência com o Saci. É diferente dos a<strong>de</strong>sivos<br />
em carros do “eu acredito em duen<strong>de</strong>s”. Não era uma questão <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>, mas<br />
uma realida<strong>de</strong> próxima. Meu avô nasceu em 1905, ele viu a cerca chegar ao nor<strong>de</strong>ste,<br />
e meus pais, que são <strong>de</strong> 1934, nasceram num país rural e participaram do processo<br />
<strong>de</strong> urbanização do país. Hoje temos um Saci domesticado e tratado <strong>de</strong> forma lúdica,<br />
não po<strong>de</strong>ria ser diferente, vivemos num país mo<strong>de</strong>rno, urbano, virtual, digital e globalizado.<br />
Para meus avós a escuridão do campo à noite, o som do vento, das corujas<br />
piando no escuro, os insetos, as formas das árvores sob a lua, tudo isso possibilitava<br />
uma sensação <strong>de</strong> obscurida<strong>de</strong> com relação à noite e aos entes que por ela corriam. A<br />
noite urbana é diferente, cheia <strong>de</strong> luzes, sons <strong>de</strong> pessoas, carros, música, etc. Mas se<br />
o Saci nos parece uma fantasia distante, por outro lado o E.T. <strong>de</strong> Varginha existe, ah<br />
existe, sim! Existe porque eu conheço gente que viu o hospital cercado pelos soldados<br />
da aeronáutica e que conhecem as meninas que os viram, lembra o segredo <strong>de</strong> Fátima,<br />
né? Ou seja, tirando à parte a existência ou não <strong>de</strong>sses mitos, a necessida<strong>de</strong> humana<br />
<strong>de</strong> vivenciá-los ainda persiste. Graças a Deus! Por isso mantenho meu emprego. Mas<br />
como se diz em física: na natureza nada se cria, nada se per<strong>de</strong>, o mito se transforma!<br />
Se meu avô contava suas histórias <strong>de</strong> caçada <strong>de</strong> onça, se minha avó contava sobre o<br />
cangaço e Sinhô Pereira, ou Neco Valõe, Lampião, Luiz Padre, Corisco... hoje, quan-<br />
85
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
86<br />
do vou às favelas fazer algum documentário, os meninos me contam das histórias<br />
do Caveirão, do Bon<strong>de</strong> que invadiu tal comunida<strong>de</strong>, do traficante que enfrentou o<br />
helicóptero Águia da polícia, do Bope, da CORE... Ou seja, persiste a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
contar e ouvir histórias.<br />
Epa! Aí eu posso ganhar dinheiro! O cinema é hoje um griot universal, a relação<br />
candidato/vaga no vestibular das faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cinema se aproxima das <strong>de</strong> medicina.<br />
As pessoas querem <strong>de</strong>ixar alguma coisa para o mundo, querem <strong>de</strong>ixar histórias e seus<br />
pensamentos. Se meu avô andava a cavalo, meu pai anda <strong>de</strong> carro, eu uso a internet.<br />
Se meu avô contava histórias na fogueira com a viola, meu pai lê e vê televisão,<br />
eu uso a internet. Minha geração (tenho 37) ainda foi alfabetizada antes da gran<strong>de</strong><br />
re<strong>de</strong>. Vejo minha sobrinha <strong>de</strong> cinco anos, que nem sabe ler, mas já sabe navegar, e<br />
imagino on<strong>de</strong> isso vai dar. Quer dizer: fizeram estradas, alguém um dia inventou o<br />
carro, fizeram o projetor <strong>de</strong> imagens em movimento, alguém inventou o cinema. Taí<br />
a internet... Eu ainda tive a referência rural, minha sobrinha só terá a audiovisual.<br />
A minha relação com o tempo, que já é totalmente diferente da dos meus avós, será<br />
muito mais complexa com minha sobrinha. A velocida<strong>de</strong> com que minha sobrinha<br />
absorverá informação e portanto a velocida<strong>de</strong> contra a qual eu tenho que manter<br />
sua atenção, são os fatores X da equação. Para o homem rural, o tempo se apresenta<br />
cíclico, com as colheitas se repetindo, as estações, etc. Para o urbano do século XX,<br />
o tempo industrial-linear, como a linha <strong>de</strong> montagem <strong>de</strong> uma fábrica, on<strong>de</strong> o metal<br />
entra e sofre o processamento, até sair um carro do outro lado (assim foram escritos<br />
os roteiros da gran<strong>de</strong> maioria dos filmes ao longo do século). Pra minha sobrinha<br />
virtual, o tempo digital é elíptico/polifônico, ou seja, ela po<strong>de</strong> estar pesquisando um<br />
assunto numa wikipedia e se <strong>de</strong>parar com um hiperlink que a levará para universos <strong>de</strong><br />
interesse totalmente diferentes, e ela po<strong>de</strong> voltar ao assunto original ou seguir em suas<br />
aventuras virtuais. Pior! (ou melhor), são várias páginas da internet abertas ao mesmo<br />
tempo, junto com os sites <strong>de</strong> relacionamento, os messengers, a TV ligada, ouvindo<br />
música... Tudo isso reestrutura em sua cabecinha digital-multimídia a relação com os<br />
personagens ou heróis que iremos apresentar.
O cinema é uma indústria cara, são investimentos <strong>de</strong> milhões para a realização<br />
<strong>de</strong> um filme. Quando se chega a estas cifras, o objetivo econômico é um fator prepon<strong>de</strong>rante,<br />
sim! Não po<strong>de</strong>mos nos enganar em achar que os filmes (claro que em<br />
regras gerais) são regidos somente por princípios artísticos. Um filme tem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong><br />
gerar lucro, ou seja, produtores tentam minimizar os riscos <strong>de</strong> um fracasso <strong>de</strong> bilheteria.<br />
Opiniões i<strong>de</strong>ológicas à parte (afinal é muito fácil pedir coragem com o pescoço<br />
alheio), ao longo <strong>de</strong>ste século cinematográfico, foram estudadas regras <strong>de</strong> construção<br />
<strong>de</strong> roteiros que potencializam o prazer em se assistir a um filme. O cinema não possui<br />
o recurso presencial simultâneo. Com os recursos <strong>de</strong> que se dispõe hoje em dia<br />
(internet, TV digital, TV por celular, jogos digitais), po<strong>de</strong>-se trabalhar uma interativida<strong>de</strong><br />
muito interessante, mas provavelmente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um processo individual,<br />
dificilmente numa experiência coletiva num futuro próximo. Porém, temos recursos,<br />
como apresentação do primeiro corte para uma plateia experimental, etc. Mas até se<br />
chegar ao primeiro corte, já foram gastos milhões, portanto na compilação do roteiro,<br />
on<strong>de</strong> os gastos são ainda pequenos, precisamos garantir o máximo <strong>de</strong> eficiência.<br />
Os produtores <strong>de</strong> cinema procuram ficar antenados às necessida<strong>de</strong>s da plateia em<br />
potencial. Hoje em dia os filmes americanos sobre a guerra ao terrorismo, superam<br />
em muito os sobre a guerra do Vietnã. No processo <strong>de</strong> elaboração do roteiro se buscam<br />
bússolas em pensadores como Aristóteles, Syd Field, Gabriel García Márquez,<br />
Christopher Vogler (o preferido dos roteiristas <strong>de</strong> hoje em dia, que na verda<strong>de</strong> adapta<br />
Joseph Campbell para o cinema e que trabalha não somente a estrutura macrodramatúrgica<br />
temporal do roteiro, mas principalmente os arquétipos dos personagens e<br />
da jornada mítica).<br />
A partir do momento em que se inventa o trem, a questão do tempo para o<br />
homem se torna fundamental. Percebe-se a importância do fuso horário, por exemplo.<br />
A velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> locomoção humana vai evoluindo e hoje, com a internet, temos<br />
tempos simultâneos, on<strong>de</strong> um acionista da bolsa <strong>de</strong> valores no Brasil investe na bolsa<br />
<strong>de</strong> Tókio on-line.<br />
Segundo Hitchcock, que além do gran<strong>de</strong> cineasta, foi um pensador teórico do<br />
Paulo Siqueira<br />
87
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
88<br />
cinema, a “argila” (sua matéria-prima) do cineasta é o tempo. Para ele, todo o processo<br />
<strong>de</strong> montagem <strong>de</strong> um filme molda o tempo. Por exemplo, uma bomba-relógio cujo<br />
contador conta regressivamente cinco segundos, os cortes para o rosto tenso do <strong>de</strong>smontador<br />
da bomba, do mostrador <strong>de</strong> tempo, das vítimas, o som... estes cinco segundos<br />
po<strong>de</strong>m durar mais <strong>de</strong> um minuto na tela. Por outro lado, uma passagem <strong>de</strong> tempo<br />
<strong>de</strong> anos, se faz através <strong>de</strong> um corte <strong>de</strong> uma cena pra outra, numa fração <strong>de</strong> segundos.<br />
Juntando todos estes pensadores, <strong>de</strong> Aristóteles a Vogler, muito me encanta o<br />
conflito, os personagens (arquétipos) e sua relação temporal, afinal isso elabora psicologias<br />
dos personagens e do espectador.<br />
Hoje o cinema se encontra em crise, não somente pela pirataria, mas tanto o<br />
cinema quanto a televisão, rádio ou jornais. São mo<strong>de</strong>los que irradiam, em mão<br />
única, o conteúdo ao espectador que só tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> canal, ou sair da<br />
sala, mas não po<strong>de</strong> interagir diretamente. A televisão tem buscado através do uso <strong>de</strong><br />
telefones, votações, criar alternativas. Mas ainda tateamos no escuro. Por falar no<br />
escuro, me lembrei daquele contador, ao redor da fogueira (engraçado como ela nos<br />
hipnotiza, né?), contando e ouvindo histórias, on<strong>de</strong> a via <strong>de</strong> interlocução é <strong>de</strong> mão<br />
dupla. Ali o espectador interage diretamente, seja <strong>de</strong> maneira mais agressiva, interferindo,<br />
emendando, contando também, ou <strong>de</strong> maneira mais sutil, com seu olhar,<br />
sua reação ou sua concentração.<br />
Quando fui realizar o filme <strong>Histórias</strong> me <strong>de</strong>parei com o seguinte problema: Como<br />
fazer um documentário sobre este assunto (contar histórias) que é subjetivo e imaterial?<br />
Porque num documentário sobre uma cida<strong>de</strong>, uma fábrica, ou uma pessoa, há o<br />
objeto do documentário ali presente, seja por imagens que produzamos, ou por fotos,<br />
pinturas, etc. A representação pura e simples das histórias contadas não seria correto,<br />
pois há diferença entre a narração e a interpretação, que se dá no jogo <strong>de</strong> imaginação<br />
proposto. Uma peça <strong>de</strong> teatro apresenta a princesa, enquanto a narração da princesa<br />
dá ao ouvinte o papel criador <strong>de</strong> imaginar esta princesa. Mais, não sou um conhecedor<br />
teórico do assunto, afinal sou diretor <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o/cinema, o que sabia sobre contar<br />
histórias e seus contadores eram as referências familiares, da escola, etc. Nunca podia
imaginar que alguém vivesse disso, ou estudasse o assunto com tanta profundida<strong>de</strong>.<br />
Mãos à obra. Fui contratado, tinha que me virar. Primeira conclusão óbvia: eu<br />
não estava realizando uma narrativa oral, eu estava realizando um filme. Graças a<br />
Deus! Isso muda tudo. Era um filme sobre a narrativa oral, mas era um filme, com<br />
suas regras próprias da cinegrafia, seus códigos e truques. Ah sim, não acreditem os<br />
contadores que nós do cinema, só porque não temos o recurso presencial simultâneo<br />
– o que permite ao ator teatral ou ao contador sentir a plateia e assim utilizar interjeições,<br />
mis-en-scènes, improvisações, olhares e até (e por que não?) modificar a história<br />
– não somos capazes <strong>de</strong> manipular (no bom sentido, né gente?) o nosso público.<br />
Senti-lo e com ele interagir.<br />
O meu primeiro privilégio enquanto diretor é justamente o <strong>de</strong> ser o espectador<br />
número um do meu trabalho. Enquanto estou editando o filme, eu sou também<br />
plateia. Gente, não esqueçamos que o meu objeto é totalmente diferente do <strong>de</strong> um<br />
narrador oral. A minha matéria-prima são o tempo, as imagens e os sons que eu<br />
produzo. Imagens captadas por uma câmera, on<strong>de</strong> eu escolho o enquadramento, o<br />
que significa que são imagens <strong>de</strong>scritivas mas também críticas da cena. É como se<br />
eu escrevesse um livro, on<strong>de</strong> eu leio e releio o quanto for necessário ou possível (há<br />
um fator econômico limitador envolvido no processo) a minha obra. Mas se a escrita<br />
é um ato individual (como conclui Boniface Ofogo) no filme <strong>Histórias</strong>, o cinema é<br />
uma experiência coletiva, o que o difere em muito da televisão, do computador, da<br />
leitura (se alguém lê em voz alta para uma plateia, o livro <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser o veículo <strong>de</strong><br />
interlocução, este papel cabe ao leitor, sendo o livro ali, sua matéria-prima). O cinema<br />
contém em si um processo ritualístico e também da oferta do mito. Uma plateia cinematográfica<br />
respira junto, criam-se laços <strong>de</strong> sintonia, on<strong>de</strong>, quando um ri, contagia<br />
os outros, é como num berçário, on<strong>de</strong> um bebê dispara o choro coletivo. A sala <strong>de</strong><br />
cinema remete às fogueiras do passado, toda escura, as chamas bruxuleiam da tela,<br />
pra on<strong>de</strong> se voltam todas as atenções. Esse elemento é fundamental na compilação <strong>de</strong><br />
um roteiro que vai pro cinema ou pra televisão. Nesta última, a atenção é disputada<br />
com a tensão do <strong>de</strong>do sobre o controle remoto, o parente na cozinha, o vizinho na<br />
Paulo Siqueira<br />
89
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
90<br />
janela, o telefone que toca, a criança que brinca, o cachorro que late, etc.<br />
Portanto, o cinema retoma o ritual da fogueira, (Opa! Olha um ponto <strong>de</strong> conexão<br />
aí.) o ritual <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>. Quando vamos ao cinema, geralmente buscamos no<br />
jornal o filme que nos chame a atenção, telefonamos para alguém, amigo, namoro,<br />
paquera, etc. Combinamos o encontro. Antes <strong>de</strong> sairmos, tomamos banho, colocamos<br />
uma roupa melhorzinha, compramos o ingresso. Compramos a pipoca, conversamos<br />
até que comecem os trailers, e logo nos calamos para a vivência do filme.<br />
Após este, vamos a algum bar ou restaurante e completamos nossa experiência social.<br />
Hoje em dia, quando as ofertas <strong>de</strong> mídias são cada vez mais individuais, como TVs<br />
por celular, internet, etc. O cinema exerce seu papel <strong>de</strong> oferecer histórias através <strong>de</strong>ssa<br />
experiência social.<br />
Por tudo isto, o cinema potencializa o chamado processo <strong>de</strong> “Desligamento Voluntário<br />
da Descrença” (vamos chamar <strong>de</strong> D.V.D.?), este é um acordo tácito entre o<br />
espectador e o produtor da obra, on<strong>de</strong> o espectador se dispõe a mergulhar na vivência<br />
do filme, esquecendo que aquilo é uma representação e realmente acredita no que vê.<br />
Portanto se fazem ridículos certos questionamentos como, por exemplo, alguém que<br />
contesta a inverossimilhança do super-homem não ser reconhecido quando coloca os<br />
óculos e se disfarça <strong>de</strong> Clark Kent. Ora, se nós acreditamos que o sujeito voa, as balas<br />
não penetram seu corpo, tem visão laser, ficarmos nos questionando com relação aos<br />
óculos?!! Assistir ao super-homem só é possível por conta do D.V.D. A partir disto o<br />
cinema nos proporciona algo fundamental, o mito e seus arquétipos. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
entrarmos no mundo do fantástico. É <strong>de</strong> um valor inestimável.<br />
Nem todo contador tem à mão o recurso da fogueira, mas eu, através da sala <strong>de</strong><br />
cinema, tenho. Voltando ao “<strong>Histórias</strong>”, fui buscar <strong>de</strong>ntro das várias culturas que<br />
se apresentaram pra mim, os diferentes mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> tempo, trabalhei numa macroestrutura<br />
<strong>de</strong> roteiro linear, partindo no início do filme das culturas pré-orais, até<br />
os dias atuais, nesta cultura pós-mo<strong>de</strong>rna-virtual-multimídia-digital, mas usando o<br />
tempo cíclico e elíptico ao longo dos vários momentos do filme. E mais, o tempo<br />
do narrador é totalmente diferente no cinema, portanto editei as histórias narradas,
cortando partes, dando dinâmicas a outras, no meu direito <strong>de</strong> diretor do filme. Fui<br />
em busca dos personagens com seus arquétipos. Estes últimos me eram narrados e<br />
eu não queria apresentá-los, mas manter o direito do meu espectador <strong>de</strong> imaginá-los.<br />
Então, bruxuleei as imagens dos contadores em suas narrativas (afinal sua presença é<br />
o cerne da narração) por entre imagens que não <strong>de</strong>screviam o que se contava, mas que<br />
criticavam o conto (no sentido <strong>de</strong> construírem junto, ou <strong>de</strong>sconstruírem, afirmarem,<br />
potencializarem ou contestarem). Procurei trabalhar através dos recursos <strong>de</strong> edição,<br />
sonorização e pictóricos, a interação com a plateia, trabalhando suas emoções ou<br />
abstrações, <strong>de</strong> acordo com o objetivo <strong>de</strong> cada cena ou assunto abordado. Procurei que<br />
o filme contasse sua história <strong>de</strong>ntro das histórias contadas e das teorias levantadas,<br />
assim como as experiências <strong>de</strong> vida relatadas.<br />
Assim procurei que o filme <strong>Histórias</strong> cumprisse os seus papéis: o papel <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>,<br />
levando gente ao cinema, o papel <strong>de</strong> trazer o mito e os arquétipos através dos<br />
personagens narrados, o papel <strong>de</strong> discutir o tema do contar histórias, seja através da<br />
narração, da literatura, <strong>de</strong> educar ao esclarecer sobre o assunto, o papel <strong>de</strong> divulgar o<br />
assunto, <strong>de</strong> seduzir para “a causa”, <strong>de</strong> divertir e entreter.<br />
Cheguei à seguinte bela e triste conclusão: a tradição oral tem sua maior força<br />
on<strong>de</strong> é sua maior fraqueza, pois quando uma pessoa morre, leva consigo seu universo<br />
<strong>de</strong> imaginação e uma biblioteca se queima aqui na Terra. Aí, não há livro que registre,<br />
ví<strong>de</strong>o, filme... Talvez, a partir da captação audiovisual eu consiga reter um pouco mais<br />
<strong>de</strong> seu jeito ou interpretação do que através da escrita, mas seu universo interior,<br />
ainda não há técnica capaz <strong>de</strong> preservar.<br />
Paulo Siqueira<br />
91
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
92<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Documentário “<strong>Histórias</strong>”. Paulo Siqueira. Ópera Prima.<br />
u A poética. Aristóteles. Nova Cultural.<br />
u Hitchcock / Truffaut: entrevistas. François Truffaut. Companhia das Letras.<br />
u Esculpindo o tempo. Andreai Tarkovsky. Martins Fontes.<br />
u A jornada do escritor. Christopher Vogler. Ampersand.
Blog, uma janela para o mundo<br />
o
[Marcio Allemand]<br />
Eu conto histórias <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito moleque, se bem que custei a me dar conta disto.<br />
ELembro que costumava <strong>de</strong>ixar minha prima Mônica intrigada e <strong>de</strong> boca aberta<br />
com tantas invencionices que saíam da minha mente pra lá <strong>de</strong> fértil. Afinal eu era o<br />
primo mais novo, mas nestas horas a diferença <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> pouco importava. Na verda<strong>de</strong><br />
eu era só uma criança que não parava <strong>de</strong> pensar um segundo sequer, observava tudo<br />
e a todos, criava as situações mais absurdas e tinha sempre uma i<strong>de</strong>ia nova na cabeça.<br />
Minhas tias diziam que eu gostava <strong>de</strong> inventar moda. Concordo. Por outro lado, tenho<br />
um amigo que diz que eu tenho a mente voltada para o mal. Discordo totalmente.<br />
Com os amigos da rua em que eu morava, no Méier, subúrbio do Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />
não era diferente. Eu era o que se po<strong>de</strong> chamar <strong>de</strong> arteiro. Não que eu fosse um<br />
moleque levado, agitado, daqueles que não parava quieto. Muito pelo contrário. Mas<br />
eu gostava <strong>de</strong> inventar arte e volta e meia <strong>de</strong>ixava a vizinhança <strong>de</strong> cabelo em pé.<br />
Até hoje nunca <strong>de</strong>scobriram quem realmente jogava ovos na casa da vila ao lado do<br />
meu prédio. Se <strong>de</strong>sconfiarem <strong>de</strong> mim, continuarei negando. Já o caso do açougue,<br />
este todos souberam. Houve também uma época em que as meninas da minha rua<br />
começaram a receber cartas anônimas. Eram cartas on<strong>de</strong> eu me <strong>de</strong>clarava apaixonado,<br />
cheias <strong>de</strong> versinhos simples e rimas baratas. Eu me divertia mesmo era vendo<br />
a cara das mães das meninas que, ao receberem as tais cartas, <strong>de</strong>sciam para tentar<br />
adivinhar quem seria o autor <strong>de</strong>sta ou daquela. Muito provavelmente eu fui o responsável<br />
pela maioria <strong>de</strong>las. Ou <strong>de</strong> todas, sei lá. Mas eu era precavido. Em meio aos versos<br />
e rimas, escrevia um “apaichonado“, assim com ch mesmo, e todas as vítimas acaba-<br />
95
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
96<br />
vam <strong>de</strong>sconfiando <strong>de</strong> um outro vizinho, que não me cabe aqui revelar o nome, mas<br />
carregava a má fama <strong>de</strong> ter uma certa dificulda<strong>de</strong> com a nossa ortografia. As meninas<br />
nunca quiseram namorar com ele, entre outras coisas, porque ele escrevia errado. Eu<br />
não. Eu escrevia correto. Mas elas também não queriam nada comigo.<br />
Anos mais tar<strong>de</strong>, quando eu cursava o segundo grau – atual ensino médio –<br />
cobrava para escrever cartas <strong>de</strong> amor para as namoradas <strong>de</strong> alguns amigos meus. Não<br />
cobrava caro não. Um lanche na cantina do colégio bastava. Na verda<strong>de</strong> eu nem<br />
gostava <strong>de</strong> escrever tais cartas, mas atendia aos apelos dos amigos mais chegados. O<br />
engraçado foi quando uma das namoradas <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stes amigos foi estudar no mesmo<br />
colégio que eu. Na mesma turma, aliás. O camarada ficou enciumado. Passou a sentar<br />
no fundo da sala. Não <strong>de</strong>ixava a menina se relacionar com ninguém e parou <strong>de</strong> falar<br />
comigo. Quase um Cyrano <strong>de</strong> Bergerac.<br />
Ao mesmo tempo que escrevia cartas <strong>de</strong> amor para a minha namorada ou para as<br />
namoradas dos amigos, eu também gostava <strong>de</strong> escrever poesias e pequenas histórias.<br />
Até hoje guardo com carinho um ca<strong>de</strong>rno com meus primeiros escritos. Ganhei da<br />
Verinha, uma prima do meu pai, quando fiz 12 anos. Talvez ela nunca tenha se dado<br />
conta da importância que aquele presente teve na minha vida. De capa dura, cor <strong>de</strong><br />
laranja, pautado, grosso. Bonito mesmo. Este ca<strong>de</strong>rno acompanhou toda a minha<br />
trajetória na tentativa <strong>de</strong> me tornar escritor e aprendiz <strong>de</strong> poeta. Ainda não existia<br />
internet e os computadores eram máquinas enormes, complicadíssimas e <strong>de</strong> difícil<br />
acesso. Hoje está tudo diferente. Tudo mais rápido. Vivemos conectados numa vida<br />
cada vez mais segmentada, única. E é realmente preciso surfar nesta onda para acompanharmos<br />
a evolução humana e tudo o que envolve este processo. Porque como<br />
disse o poeta, “o tempo não para” e, com ele, os meios <strong>de</strong> comunicação, a linguagem,<br />
a oralida<strong>de</strong>, as palavras, as rimas, as histórias. Talvez por isso eu ainda me surpreenda<br />
quando eu leio o que eu escrevia no meu antigo ca<strong>de</strong>rno.<br />
Durante muitos anos este ca<strong>de</strong>rno foi o meu melhor amigo. Ninguém sabia da<br />
sua existência. Ficava escondido. Só na faculda<strong>de</strong> resolvi revelar que ele existia e tudo<br />
o que estava ali escrito virou material <strong>de</strong> um trabalho que tive <strong>de</strong> entregar num dos
primeiros períodos. Tirei <strong>de</strong>z e minha autoestima foi às alturas. Meus amigos também<br />
gostaram e para muitos <strong>de</strong>les foi uma surpresa saber que eu escrevia poesias. E escrevia<br />
no meu ca<strong>de</strong>rno. Computadores ainda eram raros.<br />
Lá se vão quase duas décadas e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então eu perdi a conta das poesias e das<br />
histórias que escrevi em todos estes anos. Formado em jornalismo, já fiz <strong>de</strong> tudo na<br />
área da comunicação social. Hoje sou repórter <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> jornal, mas já experimentei<br />
o audiovisual, fiz uma centena <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os institucionais, alguns curtas-metragens,<br />
sabe-se lá quantos roteiros e um documentário que me levou a Cuba. Foi com<br />
este documentário, por sinal, que pu<strong>de</strong> conhecer mais <strong>de</strong> perto o universo dos contadores<br />
<strong>de</strong> histórias e pu<strong>de</strong> me dar conta da importância da tradição oral para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
da humanida<strong>de</strong>. Entre as poucas certezas que eu tenho nesta vida, uma é<br />
que é primordial preservar nossas histórias. E contá-las a quem quer que seja. Porque<br />
uma boa história faz bem para todo mundo.<br />
Atualmente mantenho um blog chamado “Eu sei cozinhar” (www.euseicozinhar.<br />
blogspot.com), on<strong>de</strong> as minhas poesias, memórias e os fatos do cotidiano servem <strong>de</strong><br />
ingredientes para incrementar a receita do que eu escrevo. Se a cozinha é lugar <strong>de</strong><br />
experimentar novas receitas, o meu blog é meu lugar <strong>de</strong> experimentação. Eu tenho<br />
a sorte <strong>de</strong> ter alguns leitores fiéis, ou seguidores, como são conhecidos os leitores <strong>de</strong><br />
blog, que fazem lá seus comentários, sejam críticas ou elogios. É uma ferramenta que<br />
me <strong>de</strong>u novo fôlego e estímulo para continuar a escrever. Se antes o meu ca<strong>de</strong>rno<br />
ficava escondido, fechado numa gaveta, meu blog é literalmente um livro aberto.<br />
Qualquer um po<strong>de</strong> ler, esteja on<strong>de</strong> estiver.<br />
E isso me fascina na comunicação virtual. É um terreno fértil e promissor, pois<br />
nada mais estimulante do que saber que seus textos, suas poesias, suas histórias, estão<br />
na re<strong>de</strong> e que qualquer pessoa <strong>de</strong> qualquer parte do mundo po<strong>de</strong> ter acesso a elas. E<br />
me fascina mais ainda po<strong>de</strong>r interagir com estas pessoas, trocar i<strong>de</strong>ias, fazer amigos<br />
do outro lado do mundo e então perceber que esta é a verda<strong>de</strong>ira globalização, a globalização<br />
das palavras e da perpetuação das histórias.<br />
Nestas horas eu volto ao ca<strong>de</strong>rno laranja <strong>de</strong> capa dura que ficava escondido. Era o<br />
Marcio Allemand<br />
97
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
98<br />
meu maior segredo e só eu sabia o que nele estava escrito. Eu era o meu único leitor<br />
e foi assim durante muitos anos. Até que a tal professora mandasse que seus alunos<br />
escrevessem um livro. O meu já estava pronto. Do fundo da gaveta surgia um ca<strong>de</strong>rno<br />
com as poesias <strong>de</strong> um menino. Este menino cresceu e nunca mais parou <strong>de</strong> escrever.<br />
Hoje, com mais <strong>de</strong> 40 anos, não para <strong>de</strong> ter i<strong>de</strong>ias e continua pensando no que vai<br />
fazer quando o futuro chegar.<br />
E se o futuro só chegar quando eu tiver 80 anos, eu vou querer acompanhar as<br />
novida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> perto. Quiçá estar à frente <strong>de</strong>las. Seja plugado na internet ou no que<br />
mais inventarem até lá. Por ora sigo falando a mesma língua que meus filhos – e daqui<br />
a pouco meu neto – e transito muito bem nas tais re<strong>de</strong>s sociais mais conhecidas atualmente.<br />
É engraçado e muito interessante ver como as novas gerações têm facilida<strong>de</strong><br />
com a linguagem da web. Tenho a impressão <strong>de</strong> que daqui a pouco os bebês já sairão<br />
das maternida<strong>de</strong>s com um tablet nas mãos. Se isto é bom ou ruim, eu não sei. O fato<br />
é que estamos on-line, ligados no mundo via fibra ótica, escrevendo, lendo, buscando<br />
informação e diversão. Tudo ao mesmo tempo agora. Num mundo que parece estar<br />
a cada dia mais veloz, on<strong>de</strong> o que acontece lá do outro lado do planeta em poucos<br />
minutos vira notícia do lado <strong>de</strong> cá.<br />
E eu adoro fazer parte <strong>de</strong> um mundo que vem <strong>de</strong>rrubando suas barreiras na<br />
mesma velocida<strong>de</strong> em que a comunicação se fragmenta. É neste tipo <strong>de</strong> futuro que<br />
acredito. Enquanto este mundo corre, minha imaginação voa e eu escrevo tudo. Esta<br />
é a história que eu conto.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u We’ve got blog: how weblogs are changing our culture. Rebecca Blood. Perseus<br />
Publishing.<br />
u Blog: un<strong>de</strong>rstanding the information reformation that’s changing your world.<br />
Hugh Hewitt. Paperback.
Paiquerê Piquiri Fiietó,<br />
um experimento com<br />
as linguagens<br />
o
[Cléo Busatto]<br />
Eu me lembro do fogo. Eu me lembro das histórias ao redor da fogueira. Lembro-me<br />
Edas histórias que falavam do fogo. Imagem que salta da memória – fogo crepitando.<br />
Eu me lembro da água, me lembro <strong>de</strong> histórias contadas à beira do rio. Vejo<br />
mulheres lavando roupa e cantando histórias. A memória traz a imagem <strong>de</strong> águas<br />
rolando, cachoeira, rio com pedras.<br />
Eu me lembro das histórias ao pé da cama, preparando o sono. Eram histórias<br />
<strong>de</strong> amor. Não lembro muito bem o nome. Ah! É tão bom dormir <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ouvir<br />
histórias. Imagem mítica – noite bem escura com lua estreita pendurada no céu.<br />
Estrelas <strong>de</strong>spencando sobre a terra.<br />
Eu me lembro das histórias no computador. Tem <strong>de</strong>ssas também. Clica, arrasta, minimiza,<br />
maximiza, e <strong>de</strong> repente surge outra forma <strong>de</strong> se contar histórias. Imagem no tempo<br />
presente – multimídia colorindo a tela anuncia a chegada <strong>de</strong> uma contadora virtual.<br />
Assim começava o espetáculo Paiquerê Piquiri Fiietó que apresentei no teatro do<br />
Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, durante o outono <strong>de</strong> 2009. Quase 7 mil pessoas,<br />
80% <strong>de</strong> crianças passaram por lá. Resultado da investigação sobre as possibilida<strong>de</strong>s<br />
da narração oral <strong>de</strong> histórias no século XXI. Antes disso, já vinha pesquisando<br />
como as histórias po<strong>de</strong>m se apresentar no meio digital. Esse trabalho originou quatro<br />
CD-ROMs: Contos e encantos dos 4 cantos do mundo; Lendas brasileiras; Nos campos do<br />
Paiquerê (a referência para o espetáculo) e Formosos monstros, um game, um livro virtual<br />
que revisita os monstrengos da literatura universal.<br />
São tantos os cenários, tantos suportes para um texto literário se materializar.<br />
101
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
102<br />
Do primeiro movimento, ao redor da fogueira, on<strong>de</strong> soou pela primeira vez a voz <strong>de</strong><br />
um contador <strong>de</strong> histórias, até a imersão no ciberespaço, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> soar a voz <strong>de</strong> um<br />
contador do tempo <strong>de</strong> agora, se passaram séculos. Porém, o que sustenta essas ações é<br />
a história que, enquanto sujeito, engendra o encantamento necessário para nos emocionar.<br />
E na essência, a palavra que <strong>de</strong>sperta a memória, reaviva lembranças e afetos,<br />
propõe, instiga, efetiva vivências.<br />
O século XXI é assim. Sugere a hibri<strong>de</strong>z das linguagens. Em Paiquerê Piquiri Fiietó<br />
foi assim. O presencial se fundia ao digital e nos mostrava como duas linguagens<br />
distantes no tempo podiam gerar uma terceira, que trazia consigo a marca da contemporaneida<strong>de</strong>.<br />
Atuei na interface entre a arte e as novas tecnologias. Ao mesmo tempo<br />
em que me utilizei <strong>de</strong> sofisticados recursos digitais, me apropriei da velha arte <strong>de</strong> contar<br />
histórias, técnica ancestral que chega ao século XXI agregada a valores estéticos,<br />
significados e significantes distintos. É <strong>de</strong>ssa forma que em cena ocorreu um diálogo,<br />
em tempo real, entre o narrador presencial e o narrador virtual.<br />
Ora, se durante a contação presencial, o espectador se vê envolvido pelos sentimentos<br />
suscitados pelo sujeito-contador, na contação digital há um distanciamento<br />
que permite ao sujeito-ouvinte comentar a ação e senti-la sob outro ângulo, não<br />
menos envolvente, apenas distinto. Pensar a narração oral <strong>de</strong> histórias no século XXI<br />
é pensar nos meios disponíveis para que se dê a fruição <strong>de</strong>sse conto. Supõe a reflexão<br />
sobre novas mídias e sobre o conceito <strong>de</strong> arte interativa. É <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar que a criança<br />
da atualida<strong>de</strong> encontra-se envolvida num imaginário construído por produções<br />
que utilizam tecnologia <strong>de</strong> ponta e que chegam até ela através da internet, softwares,<br />
blogs, games, re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> bate-papo. São os novos códigos geradores <strong>de</strong> poéticas. Novas<br />
leituras e outros tantos sentidos. A hibri<strong>de</strong>z do meio e dos processos expondo diferentes<br />
significações.<br />
E no Paiquerê Piquiri Fiietó o espetáculo foi se fazendo, <strong>de</strong>vagarinho, apresentando<br />
um personagem aqui, uma ação cênica acolá, revelando como a linguagem teatral<br />
po<strong>de</strong> dialogar com a digital. A atriz cedia lugar à contadora <strong>de</strong> histórias que, <strong>de</strong><br />
posse da palavra, apenas sugeria e apresentava os personagens e as ações. Não mais
epresentava um outro. Enquanto isso, nos espaços <strong>de</strong> projeções (três bolas <strong>de</strong> diferentes<br />
tamanhos e dispostas numa diagonal direção frente-fundo do palco) surgiam<br />
imagens, como se fossem faíscas da memória ficcional dos personagens que falavam<br />
no palco: a narradora, o xamã, a criança, a velha, a gralha branca. As imagens interagiam<br />
com a narradora, as mãos que ocupavam o primeiro plano na tela era um corpo<br />
expressivo em cena. Num exercício lúdico, eu, autora, atriz-narradora, me permitia<br />
viver essas criaturas e oferecia meu corpo e minha voz para que os personagens se<br />
materializassem, consciente <strong>de</strong> que, estivesse a contadora no palco ou na tela do computador,<br />
era ela, a palavra falada, a palavra querida, a palavra revelada que criava a<br />
história, fundava a magia e fazia um outro mundo acontecer.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u O livro <strong>de</strong>pois do livro. Giselle Beiguelman. Peirópolis, 2003.<br />
u A arte <strong>de</strong> contar histórias no século XXI – tradição e ciberespaço. Cléo Busatto.<br />
Vozes, 2008.<br />
u Contar e encantar – pequenos segredos da narrativa. Cléo Busatto. Vozes, 2007.<br />
u Cibercultura. André Lemos. Sulina, 2002.<br />
u Máquina e imaginário. Arlindo Machado. Edusp, 2001.<br />
u Hamlet no holo<strong>de</strong>ck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Janet H. Murray. Itaú<br />
Cultural: Unesp, 2003.<br />
u Cultura das mídias. Lúcia Santaella. Experimento, 1996.<br />
Cléo Busatto<br />
103
Duas histórias contadas nos<br />
múltiplos caminhos dos<br />
Role-Playing Games (RPG)<br />
o
[Carlos Eduardo Klimick Pereira<br />
& Eliane Bettocchi Godinho]<br />
Aristóteles ensina em sua POÉTICA que uma história tem início, meio e fim. Todas as par-<br />
Ates igualmente importantes para a representação da ação. Devemos lembrar, porém,<br />
que todo ponto <strong>de</strong> chegada é novo ponto <strong>de</strong> partida. E nos caminhos da vida, histórias<br />
se entrelaçam, como neste texto, escrito a quatro mãos. Quem começa é o Carlos.<br />
Em minha jornada, a estrada acadêmica que percorri foi talvez pouco usual,<br />
com uma graduação em Administração, um mestrado em Design e um doutorado<br />
em Letras (Literatura). Há, porém, um elemento em comum, são todas áreas que se<br />
propõe a serem interdisciplinares, da prática administrativa à práxis estética educativa<br />
do Design Didático ao saber com sabor da Literatura. É, pois, um sujeito mestiço que<br />
vos fala pela escrita. Biologicamente, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ndo pela mãe <strong>de</strong> russos e pelo pai <strong>de</strong><br />
negros e índios. Culturalmente, carioca <strong>de</strong> nascimento e criação, filho <strong>de</strong> pai paulista<br />
do interior e <strong>de</strong> mãe americana, mas sem inglês do berço <strong>de</strong>vido à influência da avó<br />
paterna, a língua materna da mãe foi aprendida fora do lar para ao lar retornar. A mestiçagem<br />
é então assumida como posição, mais que condição, nesta vivência escrita.<br />
Ao viver acadêmico, soma-se um viver prático <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1992 escrevendo, publicando<br />
e divulgando os Role-Playing Games (RPG) como livros <strong>de</strong> narrativa para o entretenimento,<br />
tendo como primeira obra o RPG Desafio dos ban<strong>de</strong>irantes, primeiro RPG a<br />
abordar a história, cultura e folclore do Brasil. Em 1998, comecei a jornada <strong>de</strong> aplicação<br />
do RPG à educação em escolas <strong>de</strong> Ensino Fundamental, principalmente para<br />
História e Geografia. O retorno à aca<strong>de</strong>mia se <strong>de</strong>u em 2002 e 2003 com o mestrado<br />
105
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
106<br />
em Design, utilizando histórias interativas para auxiliar crianças surdas a adquirir por-<br />
tuguês oral e escrito, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolverem criativida<strong>de</strong>. O doutorado em Literatura<br />
trouxe o aprofundamento da pesquisa, na busca <strong>de</strong> se verificar se as histórias interativas<br />
po<strong>de</strong>m contribuir para a formação <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura e escritura críticas em<br />
adolescentes do Ensino Médio.<br />
Eu conheci as histórias dos Role-Playing Games com amigos, vivenciando aventuras<br />
em tar<strong>de</strong>s divertidas. Como observou o autor <strong>de</strong> RPGs estaduni<strong>de</strong>nse Ed Greenwood,<br />
as sessões <strong>de</strong> RPGs são basicamente sobre criar memórias <strong>de</strong> momentos divertidos<br />
com seus amigos. Divertir-se criando histórias interativamente, cooperativamente,<br />
compartilhando fantasias.<br />
Basicamente, no RPG, os praticantes criam suas personagens que participam <strong>de</strong><br />
histórias parcialmente contadas por um Narrador (também chamado <strong>de</strong> Mestre). No<br />
livro (ou qualquer que seja o suporte) <strong>de</strong> RPG se encontra parcialmente <strong>de</strong>scrito um<br />
cenário, no qual se passarão as histórias. As personagens criadas pelos “jogadores”<br />
e pelo Narrador serão coerentes com o cenário: ban<strong>de</strong>irantes e índios num cenário<br />
<strong>de</strong> Brasil colonial; cavaleiros e alquimistas num cenário <strong>de</strong> Europa Medieval, etc. A<br />
história começa a ser contada pelo Narrador, mas os “jogadores” são livres para <strong>de</strong>cidir<br />
o que suas personagens falam e fazem na história. Assim, os rumos da história são<br />
frequentemente alterados pelas ações das personagens, sendo na verda<strong>de</strong> uma história<br />
contada em conjunto pelas interações <strong>de</strong> seus praticantes, Narrador e “jogadores”.<br />
Um dos temas mais usuais em RPG, <strong>de</strong>vido a seu público ser majoritariamente<br />
formado por adolescentes do sexo masculino e sua origem estaduni<strong>de</strong>nse, é o da<br />
fantasia medieval. Este é um jargão do meio do RPG. Refere-se a um cenário em que<br />
existem povos <strong>de</strong> diferentes “raças” (normalmente humanos, elfos, anões e hobbits/<br />
halflings/pequeninos) em que heróis, como cavaleiros, magos, sacerdotes, bardos e<br />
ladinos, enfrentam monstros e outros seres malignos. A magia e os seres sobrenaturais<br />
são presentes. O ambiente costuma ser inspirado no imaginário da Ida<strong>de</strong><br />
Média europeia, com castelos, tavernas, vilarejos, nobres, dragões, etc. Foi o primeiro<br />
tipo <strong>de</strong> cenário dos RPGs e até hoje é um dos mais populares. Atualmente há uma
gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cenários (fantasia; terror; histórico; aventura etc.) e o RPG passou<br />
a ser aplicado para outros fins além do entretenimento. Surgiram outros termos<br />
como “Narrador”; “História”; “Crônica”; etc., em clara “contaminação” do gênero<br />
por reflexos da Teoria da Literatura.<br />
Depois <strong>de</strong> jogar, vivenciar, as histórias interativas, nós quisemos criar um cenário<br />
e, atrevimento juvenil, publicá-lo para compartilhá-lo com pessoas que nem conhecíamos.<br />
Buscando valorizar nossa brasilida<strong>de</strong>, criamos o RPG Desafio dos ban<strong>de</strong>irantes,<br />
apresentando a fantasiosa “Terra <strong>de</strong> Santa Cruz” inspirada no Brasil <strong>de</strong> meados do<br />
século XVII, on<strong>de</strong> os jogadores po<strong>de</strong>riam vivenciar personagens, como jesuítas, ban<strong>de</strong>irantes,<br />
pajés, quilombolas, feiticeiros e lidar com seres mágicos, como iaras, curupiras,<br />
sacis, lobisomens, boiúnas, boitatás, <strong>de</strong>ntre outros. Nesse processo, conheci a<br />
ilustradora, artista plástica, <strong>de</strong>signer gráfica, pesquisadora, que viria a se tornar minha<br />
esposa: Eliane Bettocchi. Iniciou-se uma parceria <strong>de</strong> 14 anos, cada vez mais profunda<br />
e apaixonada.<br />
A experiência com o RPG Desafio dos ban<strong>de</strong>irantes nos <strong>de</strong>spertou para o potencial<br />
do RPG como interface didática, pois não foram poucas as pessoas que nos disseram<br />
que passaram a se interessar por História do Brasil <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> jogarem num cenário nela<br />
inspirado. Parti então para as experiências com alunos do Ensino Fundamental.<br />
Em 2002 tive a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar com crianças surdas em meu mestrado,<br />
nele as histórias interativas foram usadas para auxiliar as crianças a adquirir linguagem<br />
escrita e oral em português e auxiliá-las a fixar a Libras (Língua Brasileira <strong>de</strong><br />
Sinais). Uma história interativa foi roteirizada e criada em dois suportes: um website,<br />
para as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fonoaudiologia, e um flanelógrafo para a Educação Infantil.<br />
O website po<strong>de</strong> ser visitado em http://www.historias.interativas.nom.br/zoo<br />
O flanelógrafo se constituiu em uma flanela presa ao quadro negro, as figuras<br />
eram feitas <strong>de</strong> papelão com velcro colado no verso. A ativida<strong>de</strong> era dinamizada por<br />
um contador <strong>de</strong> histórias e as crianças manipulavam as figuras manualmente. Foi<br />
interessante observar que em alguns momentos a interativida<strong>de</strong> alcançada era maior<br />
no flanelógrafo porque as crianças tinham maior espaço para cocriarem a história<br />
Carlos Eduardo Klimick Pereira &<br />
Eliane Bettocchi Godinho<br />
107
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
108<br />
com o contador <strong>de</strong> histórias, em vez <strong>de</strong> se limitarem a escolher entre as opções <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senrolar <strong>de</strong> história apresentadas no website.<br />
Em 2004, a oportunida<strong>de</strong> no doutorado foi atacar o problema do baixo <strong>de</strong>sempenho<br />
na leitura e escrita <strong>de</strong> adolescentes alunos da re<strong>de</strong> pública. Educadores e escritores<br />
veem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “explicadores do escrito” em postos <strong>de</strong> atendimento público<br />
e o fracasso <strong>de</strong> estudantes nas universida<strong>de</strong>s tanto na leitura quanto na elaboração<br />
<strong>de</strong> textos como tendo uma origem em comum: um contato infeliz, mal realizado, com<br />
a leitura que a transformou <strong>de</strong> portal para um universo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas em abismo <strong>de</strong><br />
pesa<strong>de</strong>los. Isso numa realida<strong>de</strong> que efetivamente ampliou as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leitura!<br />
(Yunes, 2002).<br />
O <strong>de</strong>safio é buscar um caminho para resgatar leitores <strong>de</strong>sse trauma, <strong>de</strong>sse encontro<br />
mal-sucedido.<br />
Cabe observar que enquanto professores reclamam que seus alunos leem e<br />
escrevem cada vez menos e pior, no altamente interativo meio da internet cresce o<br />
volume <strong>de</strong> e-mails e o número <strong>de</strong> blogs, diários virtuais que dão a cada um que o<br />
<strong>de</strong>sejar uma voz na gran<strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> informática.<br />
Portanto, parece plausível que trazer um nível mais evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> interativida<strong>de</strong> na<br />
relação do leitor com a obra e os colegas e dar-lhe voz seria um caminho para <strong>de</strong>spertar<br />
o gosto pela leitura e escrita.<br />
Esta foi a proposta da pesquisa <strong>de</strong> campo feita com alunos do Ensino Médio <strong>de</strong><br />
um colégio da re<strong>de</strong> pública no Rio <strong>de</strong> Janeiro. O cenário escolhido foi a obra Capitães<br />
da Areia, <strong>de</strong> Jorge Amado, tendo como suportes um website e um livro impresso<br />
interativo, em que se podiam acrescentar páginas criadas pelos alunos e os elementos<br />
que eles quisessem adicionar. As personagens dos alunos e alunas eram membros do<br />
bando dos capitães da areia que interagiam com as personagens <strong>de</strong> Amado, que eram<br />
interpretadas pelos narradores.<br />
A produção dos alunos teve duas etapas, uma livre e outra obrigatória. Os resultados<br />
obtidos foram encorajadores com alunos produzindo criativamente e <strong>de</strong>monstrando<br />
terem apreendido as questões <strong>de</strong> Jorge Amado na obra, bem como seu entorno. Um
elemento importante foi que os jogadores eram alunos do primeiro ano do Ensino<br />
Médio e os narradores foram alunos voluntários do terceiro ano do Ensino Médio.<br />
Maiores <strong>de</strong>talhes sobre a pesquisa po<strong>de</strong>m ser encontrados em http://www.historias.<br />
interativas.nom.br/incorporais/cpareia/in<strong>de</strong>x.html<br />
A pesquisadora Janet Murray aponta que as narrativas tem um papel fundamental<br />
na formação das comunida<strong>de</strong>s e em nós como indivíduos, criamos nossas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
muito em função das histórias que compartilhamos. Não é à toa que os jesuítas usavam<br />
o teatro como forma <strong>de</strong> educar e moralizar as pessoas já há séculos em nosso país.<br />
Os RPGs por agirem <strong>de</strong> forma interativa, abrindo espaço para a criação cooperativa,<br />
estimulando o trabalho <strong>de</strong> equipe e compartilhando fantasias, têm forte capacida<strong>de</strong><br />
socializante, motivando e facilitando uma produção criativa. Em qualquer uma <strong>de</strong><br />
suas formas, RPG <strong>de</strong> mesa com as pessoas sentadas ao redor da mesa e <strong>de</strong>screvendo as<br />
ações <strong>de</strong> suas personagens, live-action RPG com os jogadores dramatizando as ações <strong>de</strong><br />
suas personagens em um teatro <strong>de</strong> improviso, ou através das ferramentas virtuais dos<br />
Massive Multiplayer Online RPG (MMORPG), esses valores <strong>de</strong> cooperação, socialização<br />
e criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem ser mantidos para que o RPG possa alcançar todo seu potencial<br />
na criação <strong>de</strong> histórias ludicamente ou lúdico-pedagogicamente. As novas tecnologias<br />
trazem efetivamente gran<strong>de</strong>s avanços quando vêm acompanhadas <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong><br />
pensar, do contrário apenas “passam a limpo”, como usar o computador para <strong>de</strong>corar<br />
tabuada, em vez <strong>de</strong> inovar. Um filme <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> sucesso entre os fãs <strong>de</strong> RPG é Conan, o<br />
bárbaro, em que o vilão Tulsa Doom diz para Conan: “o que é uma espada comparada<br />
com o braço que a empunha?”. Parodiando, po<strong>de</strong>mos dizer que se uma arma só é<br />
tão forte quanto o braço que a empunha, uma interface educacional/narrativa só é<br />
tão benéfica quanto a mente que a manipula. Interativida<strong>de</strong> implica ouvir e respeitar<br />
o outro. As histórias interativas então não po<strong>de</strong>m ser vistas apenas como meios <strong>de</strong><br />
transmitir conteúdos para os alunos e alunas, e sim como meios para que eles criem<br />
a partir do que vivenciaram.<br />
Passo a bola agora para a Eliane.<br />
Carlos Eduardo Klimick Pereira &<br />
Eliane Bettocchi Godinho<br />
109
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
110<br />
O RPG apareceu na minha vida durante a graduação na UFRJ, quando um colega<br />
percebeu meus <strong>de</strong>senhos nas folhas dos ca<strong>de</strong>rnos. Entre mitocôndrias, ciclos bioquímicos<br />
e cortes histológicos, surgiam guerreiras <strong>de</strong> espada em punho, dragões e castelos.<br />
Conforme minhas personagens ganhavam pontos <strong>de</strong> experiência, eu fui migrando,<br />
suavemente, mas não sem algum sofrimento, da Biologia para o Design: da anatomia<br />
vegetal para a ilustração botânica e <strong>de</strong>sta para a ilustração fantástica, que <strong>de</strong>u frutos na<br />
editora GSA, responsável pelo lançamento do primeiro RPG feito no Brasil (Tagmar),<br />
e do primeiro RPG com temática brasileira, o já mencionado Desafio dos ban<strong>de</strong>irantes.<br />
Depois da pós-graduação lato sensu em Teoria da Arte pela Universida<strong>de</strong> do Estado<br />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro, levei minhas questões <strong>de</strong> arte e <strong>de</strong>sign para o mestrado em<br />
Design da Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica do Rio <strong>de</strong> Janeiro e mergulhei <strong>de</strong> cabeça<br />
nestas questões no doutorado em Design na PUC-Rio, concluído em 2008.<br />
Assim, a arte me levou <strong>de</strong> volta para o método científico, agora na área humana.<br />
E, por conta <strong>de</strong>stas navegações, a motivação para minhas pesquisas visuais emerge justamente<br />
<strong>de</strong>stas fronteiras pouco nítidas entre arte e <strong>de</strong>sign, entre comercial e poético,<br />
entre lúdico e crítico, e procura sempre focalizar um olhar <strong>de</strong>sejante sobre a indústria<br />
cultural, com seus estereótipos cristalizados e suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>slizamento. E,<br />
<strong>de</strong>ntro da indústria cultural, o meu laboratório científico e artístico é o mundo dos<br />
games, mais precisamente, o do Role-Playing Game, ou RPG.<br />
Mesmo sendo um conteúdo interativo e hipermidiático, o RPG continua sendo<br />
massivamente veiculado em suporte impresso, sob a forma <strong>de</strong> livros e revistas, sem<br />
abrir espaço para uma intervenção mais direta dos usuários cada vez mais acostumados<br />
à flexibilida<strong>de</strong> dos suportes eletrônicos. Um problema que parece extrapolar o<br />
universo restrito do RPG para um universo muito mais abrangente: o do próprio livro<br />
como objeto, preocupação <strong>de</strong> Roger Chartier e do Núcleo <strong>de</strong> Estudos do Design na<br />
Leitura (NEL – Cátedra UNESCO <strong>de</strong> Leitura PUC-Rio), on<strong>de</strong> o projeto encontra-se<br />
atualmente inserido. Os suportes impressos <strong>de</strong> RPG continuam seguindo o aspecto<br />
mais tradicional do <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> um livro na forma <strong>de</strong> códice: a linearida<strong>de</strong>.<br />
Roland Barthes fala <strong>de</strong> uma “responsabilida<strong>de</strong> da forma” no processo <strong>de</strong> signifi-
cação: certas preferências históricas sobre a maneira como se profere uma mensagem,<br />
não sobre a mensagem em si. Se <strong>de</strong> início estas preferências são importantes para constituir<br />
e caracterizar um repertório, chega uma hora em que elas se esvaziam, sobretudo<br />
quando se per<strong>de</strong>m suas referências. O que era antes parte <strong>de</strong> um contexto histórico<br />
torna-se “inquestionavelmente natural”, não aquele natural “orgânico e fluido”, mas<br />
aquele que, também remetendo à natureza, cristaliza e endurece. Assim, a forma que<br />
vira fôrma fecha os links do código, limitando suas possibilida<strong>de</strong>s e imprevisibilida<strong>de</strong>s.<br />
Mas é pela própria forma que se po<strong>de</strong> reabrir as janelas, “trapaceando a linguagem”.<br />
Deste modo, a abertura po<strong>de</strong> permitir novos significados, que segundo Roland<br />
Barthes, consiste na escritura, ou em um fazer poético no sentido aristotélico <strong>de</strong><br />
recriação, como propõem Paul Ricoeur e Julio Plaza e o próprio Barthes na sua ativida<strong>de</strong><br />
estruturalista.<br />
Na pesquisa <strong>de</strong> doutorado, <strong>de</strong>senvolvi um método <strong>de</strong>nominado Design Poético<br />
para concepção <strong>de</strong> um suporte que <strong>de</strong>sse conta do RPG como uma obra aberta, em<br />
que se permitam associações sígnicas <strong>de</strong> caráter crítico e questionador, como propõe<br />
Barthes, tanto na sua construção quanto na sua fruição (Bettocchi, 2006).<br />
O filho mais novo da parceria com Carlos Klimick nasceu em 2008 (a mais velha<br />
nasceu em 2005 e se chama Alice), com auxílio da Faperj, como ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formação<br />
continuada para professores do Colégio Estadual Vicente Januzzi, no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Chama-se TNI, ou Técnicas para Narrativas <strong>Interativas</strong>, que compõem um método<br />
<strong>de</strong> utilização <strong>de</strong> histórias interativas do tipo Role-Playing Game (RPG) para construção<br />
coletiva <strong>de</strong> histórias, expressão criativa e construção <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />
pedagogia construtivista, cujas principais ações são a geração <strong>de</strong> suportes impressos,<br />
projetados via Design Poético, para veiculação dos cenários, adaptados para a situação<br />
<strong>de</strong> jogo para estimular e incorporar a produção dos jogadores; e a capacitação dos<br />
jogadores, por meio <strong>de</strong> oficinas presenciais, na utilização <strong>de</strong>stes suportes impressos<br />
e da TNI para expansão do cenário jogado ou para aplicação da TNI a seus projetos<br />
particulares, qualificando novos participantes, num efeito multiplicador.<br />
Assim como meu primeiro trabalho publicado foi no RPG Tagmar, também no<br />
Carlos Eduardo Klimick Pereira &<br />
Eliane Bettocchi Godinho<br />
111
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
112<br />
cenário <strong>de</strong>ste RPG nasceu uma personagem guerreira, até hoje em jogo, durante um<br />
evento em Juiz <strong>de</strong> Fora, Minas Gerais. E para as Gerais então retorno, agora, como<br />
professora do Instituto <strong>de</strong> Artes e Design da UFJF, espaço <strong>de</strong> acolhimento para muitas<br />
aventuras hipertextuais e poéticas ainda por vir.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Design poético: intersemiose e abertura no projeto gráfico <strong>de</strong> um RPG. Eliane Bettocchi.<br />
In: Design, arte e tecnologia: espaço <strong>de</strong> trocas. Universida<strong>de</strong> Anhembi Morumbi,<br />
PUC-Rio & Rosari, 2006. (CD-Rom/PC Windows).<br />
u A imagem como link: autonomia, crítica e criativida<strong>de</strong> na aquisição <strong>de</strong> linguagem.<br />
Eliane Bettocchi & Carlos Klimick. Espaço (INES), v. 18/19, p. 76-82, 2003.<br />
u Escrita e leitura através <strong>de</strong> narrativas e livros interativos. Eliane Bettocchi &<br />
Carlos Klimick. In: Os lugares do Design na leitura. Luiz Antônio Coelho et all. Novas<br />
Idéias, 2008.<br />
u RPG & Educação: jogando e apren<strong>de</strong>ndo; diálogos possíveis; um intertexto; a<br />
construção do conhecimento através do lúdico. Jane Maria Braga Silva. Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora.<br />
u A leitura na escola: problemas e soluções. Jane Maria Braga Silva. In: Anais do I<br />
Simpósio RPG & Educação. Devir, 2004. [2002] pg. 256-266.<br />
u RPG: o resgate da história e do narrador. Kazuko Kojima Higuchi. In: Novas linguagens<br />
na escola. Adilson Citelli. Cortez, 2001.<br />
u Brincando <strong>de</strong> matar monstros: por que as crianças precisam <strong>de</strong> fantasia, vi<strong>de</strong>ogames<br />
e violência <strong>de</strong> faz-<strong>de</strong>-conta. Gerard Jones. Conrad, 2004.<br />
u RPG & Educação. Carlos Klimick. http://www.historias.interativas.nom.br/educ<br />
u Construção <strong>de</strong> personagem & aquisição <strong>de</strong> linguagem: o <strong>de</strong>safio do RPG no INES.<br />
Carlos Klimick. Dissertação <strong>de</strong> mestrado, Depto. <strong>de</strong> Artes e Design - PUC-Rio. 2003.<br />
u RPG & educação: metodologia para o uso paradidático dos role playing games. Carlos<br />
Klimick. In: Design Método. Luiz Antônio Coelho (organizador). PUC-Rio, Novas<br />
Idéias, 2006. pp. 143-161.
u TNI (Técnicas para Narrativas <strong>Interativas</strong>). Carlos Klimick. Boletim Técnico do<br />
SENAC, v. 33, p. 72-85, 2008.<br />
u Uma ponte pela escrita – <strong>Histórias</strong> interativas como apoio à inclusão social e<br />
estímulo a escrita. Carlos Klimick. Tese <strong>de</strong> doutorado. Depto. <strong>de</strong> Letras, PUC-Rio.<br />
2008.<br />
u Mini Gurps: O resgate <strong>de</strong> “retirantes”: uma aventura <strong>de</strong> RPG pela vida <strong>de</strong> Cândido<br />
Portinari. Carlos Eduardo Lourenço. Devir, 2003.<br />
Carlos Eduardo Klimick Pereira &<br />
Eliane Bettocchi Godinho<br />
113
Como as histórias foram<br />
entrando na minha vida...<br />
o
[Ana Luísa Lacombe]<br />
Na verda<strong>de</strong>, elas estavam lá o tempo todo, era só prestar atenção.<br />
NNas férias, meu irmão e eu íamos para o sítio dos meus avós maternos. De manhã<br />
vivíamos histórias <strong>de</strong> aventura que inventávamos nas nossas brinca<strong>de</strong>iras: encarapitados<br />
no alto das árvores, fazendo acampamentos, pintando nosso corpo com urucum.<br />
Na hora do lanche, sentados em torno da enorme mesa <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira rústica da<br />
cozinha, ouvíamos as histórias <strong>de</strong> quando minha mãe e meus tios eram crianças e<br />
passavam as férias naquele sítio. Minha mãe narrava as brinca<strong>de</strong>iras que faziam, as<br />
brigas, as tristezas e as histórias que sua avó contava para ela. Eram contos dos Irmãos<br />
Grimm, vindos pela oralida<strong>de</strong> brasileira.<br />
À noite, minha mãe lia para nós Monteiro Lobato, Con<strong>de</strong>ssa <strong>de</strong> Ségur, Coleção<br />
Menina e Moça, A Ilha do Tesouro... Essa tinha sido a leitura <strong>de</strong> sua infância, e foi<br />
também a minha iniciação aos livros.<br />
Minha avó Lucia, mãe da minha mãe, me ensinou a bordar, a fazer tricô, tapeçaria<br />
e um pouquinho <strong>de</strong> costura. Bem pequena, já me interessei pelo assunto e ela pacientemente<br />
me ensinou. Nessas horas conversávamos bastante e ela me contava um<br />
pouco das histórias da família, um pouco <strong>de</strong> como eram os vestidos, sobre a moda...<br />
Meu avô materno era briga<strong>de</strong>iro da aeronáutica e adorava política. Comprava<br />
TODOS os jornais, que lia <strong>de</strong> cabo a rabo. Com ele as histórias eram dos acontecimentos<br />
do momento em discussões inflamadas on<strong>de</strong> <strong>de</strong>fendia suas i<strong>de</strong>ias.<br />
Em casa, minha mãe sempre nos contava histórias na hora <strong>de</strong> dormir. A nossa preferida<br />
“O anjinho que tinha medo do escuro”, criada por ela, hoje faz parte do meu repertório.<br />
115
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
116<br />
Meu pai tocava piano e tínhamos uma conexão pela música. Não me esqueço <strong>de</strong><br />
estar sentada em seu colo e ele me contando a história da suíte dos Pescadores <strong>de</strong> Dorival<br />
Caymmi. Ouvíamos o disco e ele explicava. Lembro-me da tristeza poética daquele<br />
momento quando <strong>de</strong>scobri que o homem morria no mar. Tristeza boa <strong>de</strong> sentir.<br />
O pai <strong>de</strong> meu pai era o rei das histórias, só que com H maiúsculo. Era um gran<strong>de</strong><br />
historiador e contava para nós a história do nosso país. Mas não era <strong>de</strong> um jeito chato<br />
ou didático, nada disso! Aos domingos os netos reuniam-se na casa <strong>de</strong>sses avós. Era<br />
uma casa <strong>de</strong> três andares. No último ficava a biblioteca do Vovô Meco. Tinha mais <strong>de</strong><br />
não sei quantos mil livros. Uma <strong>de</strong>lícia aquele cheiro! Meu avô mandava enca<strong>de</strong>rnar<br />
todos os livros e colocar o seu Ex Libris. Às vezes as histórias vinham no meio da conversa,<br />
às vezes na dúvida <strong>de</strong> algum primo que estava estudando <strong>de</strong>terminado assunto.<br />
O vovô contava os episódios <strong>de</strong> nossa História como se tivesse participado <strong>de</strong> todos<br />
os fatos. Era um ótimo contador <strong>de</strong> histórias!<br />
Minha avó Gilda, mãe do meu pai, me ensinou a fazer crochê. Era muito carinhosa<br />
e seu talento eram os doces. Que eu adorava comer, mas fazer... Este já não era<br />
meu forte. Ela me apresentou Agatha Christie e seu in<strong>de</strong>fectível Monsieur Hercule<br />
Poirot, <strong>de</strong> quem eu fiquei fã. Vovó tinha a coleção completa. Minha adolescência foi<br />
recheada <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> literatura, adorava Arsène Lupin, um personagem tipo ladrão<br />
<strong>de</strong> casacas. Este foi meu pai que me apresentou.<br />
Em casa, almoçávamos e jantávamos quase sempre juntos e nesses momentos conversávamos<br />
bastante. Não havia TV na sala e tínhamos tempo <strong>de</strong> trocar i<strong>de</strong>ias.<br />
Tornei-me uma boa leitora. Com nove anos elegi como meu preferido Os colegas,<br />
da Lygia Bojunga Nunes, que li nove vezes seguidas... Chegava ao fim, virava para a<br />
primeira página e começava <strong>de</strong> novo. (Coincidência os nove anos e as nove vezes...)<br />
Depois me apaixonei pela A fada que tinha idéias, da Fernanda Lopes <strong>de</strong> Almeida! Eu<br />
queria ser a Clara Luz!<br />
Meus pais sempre nos levaram para ver peças <strong>de</strong> teatro. Vi todas as montagens do<br />
Tablado, do Grupo Navegando, do Ilo Krugli... Fui aluna do Ilo aos sete anos, numa<br />
escola que ele tinha no Rio <strong>de</strong> Janeiro, chamada NAC (Núcleo <strong>de</strong> Artes Criativas),
<strong>de</strong>pois, na minha adolescência, fui aluna da Maria Clara Machado, no Tablado. Já<br />
querendo fazer teatro como profissão.<br />
Meu mundo simbólico foi incessantemente alimentado e eu aproveitei cada gota disso.<br />
Hoje, quando dou aulas sobre “como contar histórias”, costumo conversar com os<br />
alunos e pergunto sobre suas experiências.<br />
Constato que é uma benção que <strong>de</strong> vez em quando falte energia elétrica, pois na<br />
maioria das vezes os <strong>de</strong>poimentos se referem às historias contadas nesses momentos.<br />
A família se reúne em volta <strong>de</strong> uma vela e pronto! Que maravilha! Conversam, contam<br />
fatos, histórias, memórias...<br />
Hoje são olhos grudados em telas.<br />
Muitas vezes constato também que as pessoas esquecem as referências do seu passado<br />
e quando começamos a conversar sobre as lembranças e as narrativas do passado...<br />
Rememoram e se emocionam. Às vezes têm um mundo simbólico enorme,<br />
cheio <strong>de</strong> experiências profundas, mas abandonam estas histórias, guardam-nas tão<br />
fechadas e tão escondidas que se esquecem que elas existem e <strong>de</strong> como são importantes<br />
para a construção do ser que somos.<br />
Com uma produção <strong>de</strong> livros infantis cada vez maior e mais rica nas livrarias, os<br />
pais às vezes se contentam em oferecer belas publicações a seus filhos. Muitas vezes<br />
a escolha é feita pela beleza e não pelo conteúdo. Per<strong>de</strong>-se a chance <strong>de</strong> compartilhar<br />
com o filho o momento mágico <strong>de</strong> uma história que po<strong>de</strong> ser significativa para ambos.<br />
Conversar, contar histórias faz com que a gente reflita sobre nós, sobre o mundo,<br />
sobre as relações humanas. Assim, nos tornamos seres críticos e comprometidos com<br />
a nossa vida e com a vida dos outros.<br />
É com grata satisfação que vejo o crescimento dos contadores <strong>de</strong> histórias pelas<br />
cida<strong>de</strong>s e o interesse das pessoas em assistir a estas apresentações. É como se esse universo<br />
das histórias e da memória tivesse rompido as pare<strong>de</strong>s das casas e invadido os espaços<br />
da cida<strong>de</strong>. Surgiram contadores <strong>de</strong> histórias urbanos, que fazem cursos, misturam<br />
linguagens, usam objetos, músicas, figurinos... A narração vira performance e entra em<br />
espaços culturais. Os pais levam seus filhos e experimentam juntos o papel <strong>de</strong> ouvintes.<br />
Ana Luísa Lacombe<br />
117
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
118<br />
Os contadores <strong>de</strong> histórias, que percebem o po<strong>de</strong>r da palavra e a utilizam com<br />
maestria, encantam crianças e adultos e mobilizam memórias e símbolos. Semeiam o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> compartilhar narrativas...<br />
Os pais que percebem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sua emoção e envolvimento ao narrar para seus<br />
filhos histórias e episódios <strong>de</strong> suas vidas mobilizam o afeto e significados profundos<br />
no seu coração e no <strong>de</strong> seus filhos...<br />
A socieda<strong>de</strong> que percebe que sua História, suas memórias, seus símbolos, seus<br />
mitos é que tornam a vida e as relações significativas mobilizam seus cidadãos a uma<br />
vida mais generosa e harmônica.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Fiando palha tecendo ouro. Joan Gould. Rocco.<br />
u Lin e o outro lado do bambuzal. Lucia Hiratsuka. SM.<br />
u A fada que tinha idéias. Fernanda Lopes <strong>de</strong> Almeida. Ática.<br />
u Os colegas. Lygia Bojunga. Casa Lygia Bojunga.
119
Da boca da noite para a<br />
acolhida na escola<br />
o
[Almir Mota]<br />
Quando eu era criança, na casa da minha avó, tínhamos o hábito <strong>de</strong> sentar na<br />
Qcalçada na “boca da noite”, para ouvir histórias. Era assim todos os dias, ali se<br />
reuniam meus tios, tias, meus pais e minha avó paterna. E se preparavam <strong>de</strong>pois do<br />
jantar, sentados em ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> couro <strong>de</strong> bo<strong>de</strong>, para ouvir uma boa prosa. O terreiro<br />
era <strong>de</strong> barro batido branco e, em noite <strong>de</strong> lua, tudo ficava claro ao redor da casa.<br />
Ali surgia um novo mundo na minha cabeça. Distante daquela realida<strong>de</strong> difícil do<br />
sertão, da falta <strong>de</strong> inverno e muita carestia. A roda <strong>de</strong> histórias na casa da minha avó,<br />
a Dona Canela, era o momento <strong>de</strong> lazer <strong>de</strong> toda a família.<br />
Chegado o meu tempo <strong>de</strong> escola, não me lembro <strong>de</strong> ter ouvido histórias na sala<br />
<strong>de</strong> aula, acho que histórias a gente já tinha em casa, então a professora se preocupava<br />
com outros conteúdos pedagógicos, além <strong>de</strong> ensinar a ler, escrever e fazer somas.<br />
Reconheço que se tratava <strong>de</strong> uma escola pequenina, mas o rosto gordo da mestra eu<br />
ainda lembro.<br />
Observo que nos últimos vinte anos as histórias foram saindo dos lares e aos poucos<br />
foram invadindo as escolas, ganhando a voz do professor. Hoje reconheço vozes<br />
que tecem o imaginário, o lúdico e o literário na sala <strong>de</strong> aula. São as novas metas<br />
educacionais. As promoções do livro, da leitura e da literatura fazem parte <strong>de</strong> novos<br />
parâmetros, e na escola surge o professor encantador, aquele que prepara histórias <strong>de</strong>liciosas<br />
para os seus alunos como se fossem biscoitos. O forno <strong>de</strong>sta nova educação é<br />
a memória do professor, a imaginação on<strong>de</strong> cada vez mais crianças e adolescentes são<br />
convidados a sonharem os mundos que moram nos livros.<br />
121
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
122<br />
Nós, educadores e pais, sabemos que tem histórias <strong>de</strong> todo tipo e para qualquer<br />
momento, com personagens e enredos diferentes. Tem aquelas para dormir, e se cenário<br />
é um pai contando um conto para uma menina <strong>de</strong> oito anos na cabeceira <strong>de</strong> sua cama,<br />
po<strong>de</strong> ser um conto <strong>de</strong> fadas; se um outro pai está com o filho na esteira na al<strong>de</strong>ia po<strong>de</strong><br />
ser uma lenda, mas se o cenário for <strong>de</strong> uma mãe sertaneja balançando o filho na re<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ve ser um causo <strong>de</strong> boi assombrado, <strong>de</strong>ve ser assim ainda em alguns <strong>de</strong>stes lares.<br />
E qual é a voz da escola?<br />
Os contos <strong>de</strong> fadas me parecem ainda favoritos, pois muitos professores foram<br />
alimentados com eles, e na verda<strong>de</strong> são contos maravilhosos. Mas chega aquela hora<br />
que o professor encantador <strong>de</strong> crianças, <strong>de</strong> tanto trabalhar com as mesmas histórias e<br />
livros, cansa um pouco das princesas e príncipes, olhando com bons olhos para novas<br />
histórias <strong>de</strong> autores bem vivinhos e até próximos da escola e da realida<strong>de</strong> brasileira.<br />
Atualmente a contação <strong>de</strong> histórias na sala <strong>de</strong> aula é igualmente literária como<br />
no passado, mas hoje utilizamos textos autorais. Antes no lar contavam-se histórias<br />
populares, “causos” <strong>de</strong> domínio público on<strong>de</strong> ninguém lembrava quem era o autor.<br />
Hoje os contos na escola, nos quais se propõe trabalhar a leitura, têm autores que são<br />
bem conhecidos e isto é muito bom.<br />
Aquelas vozes da professora impregnadas <strong>de</strong> literatura começam a apren<strong>de</strong>r muitos<br />
outros contos, às vezes um livro por semana, criamos assim a mulher-livro, ou<br />
homem-livro, como queiram. Há entre os professores um esforço em preparar boas<br />
histórias e colocar o universo do livro e da literatura, obras da literatura infantojuvenil<br />
<strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> na escola.<br />
É claro que estamos falando da prática da professora narradora, aquela que dá voz<br />
às histórias e toda a escola a reconhece.<br />
Mas temos práticas ditas <strong>de</strong> contação <strong>de</strong> histórias como a manipulação <strong>de</strong> bonecos<br />
em tendas, ou <strong>de</strong>trás da mesa, às vezes uma televisão artesanal para passar uma<br />
história, isto é arte sim, mas não acredito que seja realmente o que se propõem. É<br />
preciso dizer que o contador <strong>de</strong> histórias po<strong>de</strong> até usar alguns elementos para contar<br />
um conto, música, outras interferências, ou nada, mas é bom lembrar que o mais
importante é o que está <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, guardado na sua memória, as histórias.<br />
Veja o caso on<strong>de</strong> apresento uma professora e ela tem uma colega vizinha da sua<br />
sala que não conta histórias para sua turma <strong>de</strong> educação infantil, é uma professora<br />
<strong>de</strong>dicada, brinca, canta e assobia, mas não conta histórias para suas crianças <strong>de</strong><br />
quatro e cinco anos. Quando chega a meta<strong>de</strong> da tar<strong>de</strong> os seus alunos olham para a<br />
sala em frente que às vezes dá até para ver a professora que eles chamam <strong>de</strong> Kaka, e<br />
ficam apontando e balbuciando − história. É para a sala ao lado que sua professora e<br />
outras levam suas crianças para ouvir uma professora enfeitiçadora.<br />
Outra professora relatou-me que <strong>de</strong> tanto contar histórias na sala e <strong>de</strong>vido a seu<br />
<strong>de</strong>sempenho é convidada para abrir eventos para toda a escola. O gosto pelas histórias<br />
dos seus trinta alunos <strong>de</strong> quatro e cinco anos é o bastante para os mesmos ficarem<br />
tentando encontrar, no cesto <strong>de</strong> livros do canto da sala, novas ou velhas histórias para<br />
que ela as conte. E se ela ocultar a palavra, <strong>de</strong>sandam a contarem tudo <strong>de</strong> novo.<br />
Nota-se que em salas <strong>de</strong> aula on<strong>de</strong> as crianças estão sempre ouvindo histórias,<br />
elas são também, frequentemente as mais expressivas, falantes. Claro que existem as<br />
salas <strong>de</strong> aula on<strong>de</strong> não tem sessões <strong>de</strong> contos, mas sim <strong>de</strong> leituras, isto não é ruim.<br />
Leitura e contação <strong>de</strong> histórias contribuem juntas para o mesmo objetivo <strong>de</strong> educar<br />
e entreter, criando mundos para pequenos seres que no geral só conhecem a sala <strong>de</strong><br />
aula e a sua casa. Cada Floresta, fadas ou piratas, na voz da professora são pedaços <strong>de</strong><br />
mundos e muita aventura.<br />
É verda<strong>de</strong>, às vezes fazemos ativida<strong>de</strong>s que não sabemos ao certo como realizamos,<br />
mas, no fundo, sabemos que dá certo, pois i<strong>de</strong>ntificamos resultados felizes nas crianças,<br />
que “acham” os contos bem contados em livros coloridos, cheio <strong>de</strong> imagens, do<br />
qual se apossam e não largam por nada, até ser contado novamente ou surgir uma<br />
nova história contada pela professora.<br />
No projeto que coor<strong>de</strong>no no Ceará, uma professora disse o seguinte sobre uma<br />
criança que estava contando histórias para outras crianças, se apresentando na sua<br />
escola e outras do seu bairro e vizinhança: “Ele é outro menino, realiza as tarefas<br />
com mais entusiasmo e participa <strong>de</strong> tudo na sala.” A professora estava falando <strong>de</strong> um<br />
Almir Mota<br />
123
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
124<br />
menino tímido, com problemas <strong>de</strong> fala, era assim, pois agora não erra mais as palavras<br />
e nem troca mais.<br />
Qual a mágica disto? Por que a voz da professora encanta tanto as crianças?<br />
Seria alguma semelhança com a voz da mãe. A voz que escutamos antes <strong>de</strong> dormir?<br />
Realmente eu não sei. Como pai, sempre contei histórias para o meu filho e ele<br />
era muito pequeno quando conheceu certos contos. Atualmente engajado no mesmo<br />
projeto cultural citado acima, Casa do Conto, ele busca livros que já tinha ouvido,<br />
talvez sem lembrar daquelas histórias e ele conta para outras crianças, é como se uma<br />
história que ouvimos carregássemos para sempre, vamos dizer que seja assim. Então é<br />
melhor capricharmos em boas narrativas, pois nós seguiremos, e eles ficam.<br />
Há muitas vozes na escola e precisamos primar para a realização <strong>de</strong> nossa intenção,<br />
ou seja, vamos narrar contos e só isto. Os gran<strong>de</strong>s enfeites musicais e produções vamos<br />
<strong>de</strong>ixar para os outros contadores que não têm plateia como você, que tem seus alunos<br />
que lhe adoram e seguem seus passos. Os outros contadores <strong>de</strong> fora da escola têm que se<br />
matar <strong>de</strong> estudar, ensaiar e esperar o público para realizar sua tarefa, mas isto para você,<br />
professora contadora <strong>de</strong> histórias é moleza, faz parte do seu cotidiano escolar.<br />
A sua voz, professora, e aqui faço questão <strong>de</strong> escrever professora, para fazer justiça<br />
à gran<strong>de</strong> maioria <strong>de</strong> mulheres que educam neste Brasil, sua voz faz a diferença para<br />
estes meninos e meninas que buscam nela nada mais que um aconchego, às vezes não<br />
encontrado no lar.<br />
Aqui a nossa intenção, acredito, não é oferecer métodos para quem já pega no<br />
batente todo dia como vocês, <strong>de</strong>vo lembrar que é muito bom contar histórias quando:<br />
‘ O livro que lemos, gostamos tanto que po<strong>de</strong>ríamos contar na mesma hora;<br />
‘ É um autor novo na sala <strong>de</strong> aula, e as crianças ainda não o conhecem;<br />
‘ Crie dias diferentes na escola, on<strong>de</strong> seus alunos e os <strong>de</strong>mais realizem uma maratona<br />
<strong>de</strong> histórias;<br />
‘ Se você gosta, fantasie-se, receba as crianças com um figurino <strong>de</strong> bruxa ou fada;<br />
‘ Ou não realize nenhuma das alternativas anteriores e narre ótimas histórias.<br />
O resto você sabe fazer. Como diz um conto dinamarquês: “Tudo que você faz é<br />
sempre bem feito”.
Leituras Inspiradoras<br />
u A pedagogia Waldorf – caminho para um ensino mais humano. Rudolf Lanz.<br />
Antroposófica, 1998.<br />
u Da manhã ao anoitecer – jardim <strong>de</strong> infância cantando e brincando. Leonor von<br />
Osterroht. Diagrama, 2008.<br />
Almir Mota<br />
125
Bibliotecas:<br />
vozes silenciadas?<br />
o
[Nanci Gonçalves da Nóbrega]<br />
Ao conversar sobre bibliotecas, costumo iniciar falando sobre a etimologia do seu<br />
Anome: o histórico da palavra ensina que ela é biblion e théke, ou seja, compartimento<br />
<strong>de</strong> guarda. Sendo assim, muitos fazem <strong>de</strong>sta herança – a da preservação – a única possível.<br />
E, então, muitas bibliotecas reforçam a imagem <strong>de</strong> lugar inóspito, <strong>de</strong> penumbra,<br />
<strong>de</strong> aprisionamento, on<strong>de</strong> é impossível estar sem medo, sem fastio, sem tristeza. Nessas,<br />
impera o paradigma do silêncio. Ou, para ser mais exata, do silenciamento.<br />
Quantas histórias já ouvi, principalmente sendo professora <strong>de</strong> Biblioteconomia<br />
e Documentação! <strong>Histórias</strong> contadas por estudantes que, até mesmo fazendo essa<br />
Graduação, confessam num murmúrio que não frequentam o tal espaço. Estão lá as<br />
histórias <strong>de</strong> impedimentos, <strong>de</strong> recusas, <strong>de</strong> inacessibilida<strong>de</strong> às informações produzidas<br />
e registradas, seja em que suporte informacional for.<br />
Desta forma, se há algumas décadas os padrões informacionais eram baseados<br />
em premissas <strong>de</strong> estocagem, guarda, provisão e distribuição, hoje, esses paradigmas<br />
não alcançariam o vital po<strong>de</strong>r interpretativo para os fenômenos comunicacionais da<br />
socieda<strong>de</strong> contemporânea, cujo ambiente é o das re<strong>de</strong>s e das novas tecnologias; ambiente<br />
on<strong>de</strong> a troca <strong>de</strong> saberes é fundamental para a polifonia das múltiplas vozes que<br />
querem, precisam e se fazem ouvir.<br />
Minha conversa, então, passa a girar na contramão do persistente imaginário<br />
social a respeito <strong>de</strong> bibliotecas. Em oposição a uma imagem <strong>de</strong> acervos como espaços<br />
que estocam informação, como lugares <strong>de</strong> memória petrificada, discuto uma ação<br />
para transformá-los em territórios <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> sentidos. Em vez <strong>de</strong> espaço <strong>de</strong> morte,<br />
127
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
128<br />
tento implementar sua potência <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong> mudança, <strong>de</strong> movimento.<br />
Rebelo-me contra a acepção das bibliotecas como estruturas <strong>de</strong> consagração somente,<br />
on<strong>de</strong> é <strong>de</strong>snecessária a comunicação, a provocação, ou seja, on<strong>de</strong> há a manutenção do<br />
apagamento, do silenciamento. Procuro eliminar a representação monumentalista que as<br />
i<strong>de</strong>ntificam como palácios da memória ou templos do Saber (assim, com inicial maiúscula<br />
e no singular, <strong>de</strong>monstrando uma árida elitização). Insisto em trazer à tona sua face <strong>de</strong><br />
forum, <strong>de</strong> território <strong>de</strong> discussão semeadora. Potencializo em minhas conversas sobre<br />
bibliotecas a conscientização acerca das algemas que po<strong>de</strong>m significar sua etimologia e<br />
buscando imaginar muito mais para nossos acervos – qualquer que seja sua tipologia<br />
(acervo bibliográfico, acervo museológico, acervo arquivístico) –, a comparação com<br />
uma cristaleira, on<strong>de</strong> tudo po<strong>de</strong> ser visto, escolhido, tocado, usado, pois cristaleira se<br />
diferencia <strong>de</strong> um baú, uma caixa fechada a sete chaves. Tal qual a cristaleira que atrai<br />
recordações – lembranças representadas, por exemplo, pela última xícara do jogo <strong>de</strong><br />
porcelana da avó, ou a vela enfeitada com laço <strong>de</strong> fita <strong>de</strong> cetim com a qual se dançou<br />
a valsa dos 15 anos –, nossas bibliotecas precisam ser também lugares <strong>de</strong> convívio, que<br />
permitam a troca, a interlocução; on<strong>de</strong> a ambiência convi<strong>de</strong> e, não, empurre o leitor<br />
para fora, para o nunca mais. Um lugar <strong>de</strong> muitas e variadas vozes.<br />
Neste sentido, quero aqui tramar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um paradigma<br />
outro para nossas bibliotecas: constituir nelas um território on<strong>de</strong>, sem o abandono à<br />
necessária preservação dos tesouros da humanida<strong>de</strong> – acervos que foram elaborados<br />
como representações da potência humana –, trabalhe-se muito mais com uma ação.<br />
Nossas práxis com acervos <strong>de</strong>verão estar, então, sedimentadas numa ação cultural<br />
e pedagógica com um viés tríplice: o da recepção/apropriação/expressão criadora a<br />
fim <strong>de</strong> configurá-los como territórios <strong>de</strong> (re) significação para os sujeitos sociais, na<br />
medida em que, servindo-lhes tanto como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apropriação e produção,<br />
quanto <strong>de</strong> organização, oportunize construção <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong>s, transformação <strong>de</strong><br />
realida<strong>de</strong>s. Sendo assim, este é um trabalho em torno do sentido. E, pois, aquilo que<br />
costumo chamar <strong>de</strong> uma pedagogia da transformação; uma pedagogia do imaginário.<br />
Em resumo, trata-se <strong>de</strong>, partindo <strong>de</strong> nossa reserva simbólica, construída com os
fragmentos <strong>de</strong> nossas interpretações singulares e coletivas, alimentar o imaginário dos<br />
leitores das bibliotecas no <strong>de</strong>senvolvimento da função simbólica por meio <strong>de</strong> textos,<br />
<strong>de</strong> imagens, <strong>de</strong> sons, das vozes que narram, conferindo uma dimensão universal aos<br />
seus sentimentos. Já que temos <strong>de</strong>senvolvido muito mais a função lógica do educar, é<br />
preciso reencantar a Educação, dando relevo à sua função simbólica, mágica.<br />
Para isto, o trabalho primordial com as narrativas da tradição, com as vozes que<br />
nos chegam do mais profundo <strong>de</strong> nós mesmos e das nossas coletivida<strong>de</strong>s. As narrativas<br />
da tradição são tesouros do repertório humano arquitetado ao longo do tempo<br />
e simbolizam a jornada da alma rumo às transformações pessoais. Reserva simbólica<br />
da humanida<strong>de</strong>, portanto, estão repletas <strong>de</strong> figuras significativas que representam<br />
estágios <strong>de</strong> evolução subjetiva e coletiva. Nelas, as imagens nos fazem apreen<strong>de</strong>r o<br />
universo <strong>de</strong> modo instantâneo e as figuras significativas das narrativas da tradição – os<br />
arquétipos – enquanto projeções da alma dos sujeitos, são resíduos psíquicos acumulados<br />
no inconsciente da humanida<strong>de</strong>, são imagens primordiais, conteúdo eternamente<br />
presente no inconsciente coletivo e, assim, projeções do espírito <strong>de</strong> uma época.<br />
Nos contos tradicionais, as vozes encantadas que dizem <strong>de</strong> Bruxas, Velhos e Velhas<br />
Sábios, Heróis etc., potencializam este reencantamento mencionado.<br />
Quem são? O que significam? Quais suas características principais, seus atributos?<br />
Nossas tentativas <strong>de</strong> respostas a essas indagações promovem o necessário olhar sobre<br />
o duelo entre estar inserido no imaginário cristalizadamente insalubre da contemporaneida<strong>de</strong><br />
ou pôr em movimento constante o pensar sobre outros possíveis significados.<br />
Para tanto, minha práxis nas bibliotecas é a tessitura <strong>de</strong> suas múltiplas vozes na<br />
laçada fundamental possibilitada pelas narrativas e suas figuras <strong>de</strong> significação; é um<br />
reviver da reverberação que tiveram em nossas almas.<br />
Alguns se perguntam: será possível o resgate hoje? Haverá interesse, nesses tempos<br />
fragmentados e fragmentadores, pelos contos da tradição? E outros trabalham, sim,<br />
com o significado profundo <strong>de</strong>ssas narrativas fundantes, incentivando o mergulho em<br />
sua atmosfera para melhor compreen<strong>de</strong>r suas próprias lembranças, ressimbolizando o<br />
passado, a fim <strong>de</strong> reescrevê-lo e à própria vida. Nesse sentido, enquanto Darnton nos<br />
Nanci Gonçalves da Nóbrega<br />
129
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
130<br />
ensina que essas narrativas da tradição são histórias que se pren<strong>de</strong>m a um imaginário<br />
coletivo, a uma memória <strong>de</strong> todos, Benjamin impulsiona em nós a necessida<strong>de</strong> do<br />
resgate da própria arte <strong>de</strong> narrar. Traz à tona a potência das histórias que se pren<strong>de</strong>m<br />
ao imaginário popular, à memória coletiva; narrativas que constituem/são constituídas<br />
(como) nossa reserva simbólica. As que são insumo e produção <strong>de</strong> nossos acervos<br />
pessoais e coletivos.<br />
Assim, neste novo olhar, mais ampliado, a temática do imaginário nos auxilia a<br />
compreen<strong>de</strong>r sobre a existência <strong>de</strong> uma base poética da mente, como nos ensina Hillman,<br />
assim como sobre a dimensão fantástica da vida cotidiana, recriada pelas palavras <strong>de</strong><br />
Certeau, e é evidência do repertório simbólico <strong>de</strong> toda socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a tradicional,<br />
até as socieda<strong>de</strong>s complexas da atualida<strong>de</strong>, conforme Durand. Nada mais incentivador<br />
para o homem contemporâneo, “oco <strong>de</strong> sentidos” no dizer <strong>de</strong> Fernando Pessoa.<br />
Nesta era homogeneizante, a Arte acontece como ponto <strong>de</strong> mutação, como ato<br />
micropolítico <strong>de</strong> transformação. Assim, dispositivos ou artefatos artísticos, se assim me<br />
posso expressar, em oposição a dispositivos <strong>de</strong> armazenamento será o mote para uma<br />
ação relacionada aos acervos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma dinamização que é anima ação (ação <strong>de</strong><br />
alma). Dioniso integrado a Apolo, se me faço enten<strong>de</strong>r. Pois afinal somos homo sapiens,<br />
homo faber e homo lu<strong>de</strong>ns, todos ao mesmo tempo.<br />
Nesse sentido, valorizar as imagens significativas, singularizá-las enquanto movimentos<br />
singulares e coletivos possuidores <strong>de</strong> valores para a alma, diz <strong>de</strong> uma dimensão<br />
psíquica e planetária e cósmica para este novo espírito pedagógico veiculado/<br />
veiculador das imagens, do imaginário, pois nele compreendo a ética como fundamento<br />
capital. O primordial aqui é <strong>de</strong>senvolver uma metodologia da invenção, do<br />
reencantamento, pois precisamos estar grávidos para po<strong>de</strong>r criar. Assim, penso ser o<br />
papel da Biblioteca emprenhar os leitores <strong>de</strong> poemas, <strong>de</strong> filmes, <strong>de</strong> sonhos, <strong>de</strong>sejos,<br />
risos, dores, imagens significativas, <strong>de</strong> vozes que ressoam no mais profundo <strong>de</strong> cada<br />
um. Povoar o imaginário, mas não para a domesticação da imagem – as simplificações<br />
<strong>de</strong>formantes das imagens, das narrativas; a preocupação em “dosar” a Fantasia; a<br />
subnutrição do imaginário seria exatamente o contrário <strong>de</strong>sta didática da invenção.
O que aqui se diz é da Arte como ato ético-político <strong>de</strong> transformação. Ética e Estética<br />
juntas no quefazer com os acervos.<br />
Desta maneira, em nossos acervos, cada vez mais espaço às narrativas como estratégias<br />
<strong>de</strong> autocriação. As narrativas que (se) compõem (a partir <strong>de</strong>) imagens singularizadas,<br />
num movimento constante <strong>de</strong> (re) construção. Formas estéticas e vitais <strong>de</strong><br />
organização, são potência, elas próprias, para a provocação e o conhecimento. São<br />
como instrumentos, ou brechas, para nossos universos interno e externo. Pois com<br />
elas somos conduzidos ao terreno das subjetivida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nossos leitores, on<strong>de</strong> são realizadas<br />
as leituras próprias e singulares sobre os conteúdos todos do mundo, da vida.<br />
Nesse sentido, proporcionar concretamente ambiências <strong>de</strong> leitura para a criação <strong>de</strong><br />
espaços <strong>de</strong> convivência; inserir a práxis com os acervos pessoais e coletivos utilizando<br />
álbuns <strong>de</strong> retratos, objetos biográficos, relatos, histórias <strong>de</strong> vida, compondo mapas afetivos;<br />
inserir a práxis com os acervos literários para a construção <strong>de</strong> conhecimento e a<br />
fruição; possibilitar espaço para a criação, as várias formas <strong>de</strong> manifestação criadora: o<br />
escrever, o <strong>de</strong>senhar, o cantar, o esculpir, o dançar, o inventar, o apren<strong>de</strong>r; criar acervos<br />
possíveis com almofadas, plantas, obras <strong>de</strong> arte, brinquedos e brinca<strong>de</strong>iras, sonhos e<br />
<strong>de</strong>sejos, contos, mitos, causos, águas, algodão doce, caixas <strong>de</strong> maquilagem, caixinhas <strong>de</strong><br />
música, anjos <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, ou não, latinhas <strong>de</strong> pó <strong>de</strong> mico, fantasmas, bicho carpinteiro,<br />
livros e mais livros, etc. e coisa e tal. E as vozes das histórias que nos construiram e constroem<br />
esses que somos, enfatizando o trabalho com a oralida<strong>de</strong> e a escuta, experiências<br />
comunicativas fundamentais – o contar e ouvir histórias, o fazer com os falares, os cantares<br />
diversos, as conversas (as artes orais, como as <strong>de</strong>nomina Havelock).<br />
É preciso, entretanto, primeiro compreen<strong>de</strong>r este plano <strong>de</strong> ação como um palimpsesto1<br />
, pois que não <strong>de</strong>ve haver receitas ou fórmulas, e há que se ter cuidado em não<br />
cair na armadilha <strong>de</strong> um aporte funcionalista, se me faço enten<strong>de</strong>r. Ver a questão<br />
em seu caráter dinâmico, não normativo, já que precisa ser uma práxis sempre em<br />
andamento, construindo-se ela própria como narrativida<strong>de</strong>, em que se possibilitam<br />
estratégias <strong>de</strong> apropriação, produção e comunicação dos sentidos, que são sempre<br />
moventes. Como as interpretações, como o mundo e a vida. Depois, po<strong>de</strong>-se elencar<br />
1. Nos palimpsestos, a reescrita era feita por medida <strong>de</strong> economia: raspava-se no couro, no pergaminho as marcas <strong>de</strong>ixadas<br />
do texto primeiro, para usar <strong>de</strong> novo o suporte on<strong>de</strong> estivera a escrita anterior. Aqui não me refiro ao objetivo<br />
econômico, mas ao fazer e refazer necessário, constante.<br />
Nanci Gonçalves da Nóbrega<br />
131
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
132<br />
como possíveis itens <strong>de</strong> elaboração alguns pontos-chave, tais como aqueles que utilizo<br />
em minha vivência com as bibliotecas e seus leitores: a) um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> transformação;<br />
b) a leitura <strong>de</strong> múltiplas linguagens como propulsora e facilitadora dos encontros<br />
– e a linguagem da Arte, aí, como fundamental; c) o trabalho com a singularização<br />
das imagens; d) a inserção do que <strong>de</strong>nomino <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s afetivas – mais do que com<br />
as comunida<strong>de</strong>s interpretativas; re<strong>de</strong>s cuja comunicação é, no meu enten<strong>de</strong>r, uma<br />
comum ação, uma comunhão; e) a constituição <strong>de</strong> um olhar indagador; f) o movimento<br />
da Informação, instrumental das bibliotecas, ser percebido como recurso simbólico, e<br />
a cultura ser compreendida como um reservatório, ou repertório <strong>de</strong> práticas e referentes<br />
internos/externos; g) teoria e prática <strong>de</strong>vem imbricar-se num quefazer que envolva<br />
espaços teóricos <strong>de</strong> discussão e <strong>de</strong> prática com abordagem prazerosa da relação textosujeito-contexto;<br />
h) uma ressignificação dos conteúdos muitas vezes dilacerantes da<br />
realida<strong>de</strong> empreendida por grupos solidários entre si, por meio da ressignificação das<br />
práticas informacionais das comunida<strong>de</strong>s a que pertencem.<br />
E, mais que tudo, compreen<strong>de</strong>r que um dos seus aspectos mais importantes é o<br />
da significação, e que, portanto, perguntar-se sobre seu valor também é da or<strong>de</strong>m<br />
das questões capitais.<br />
O mito da busca do sentido, para Maffesoli, porque estamos vivendo momento <strong>de</strong><br />
profunda entropia, fragmentação, <strong>de</strong>sintegração, é um mito que <strong>de</strong>vemos buscar juntos.<br />
Assim o autor <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, em sua obra mais conhecida, uma tribalização do mundo. E<br />
é este o sentido contemporâneo <strong>de</strong> Estética para o autor: ela tem, agora, um sentido <strong>de</strong><br />
comunhão. Esta consciência estética se opõe a uma consciência racionalista; ela gira em<br />
torno <strong>de</strong> uma compreensão da Totalida<strong>de</strong>, valendo-se da virtualida<strong>de</strong> que já existe em<br />
nós (Forma/Força). Como ainda não compreen<strong>de</strong>mos, pois nossa percepção ainda está<br />
na linha da causalida<strong>de</strong> (causa/efeito), será necessária uma transfiguração – sair do que<br />
nossos olhos percebem (a figura) e ir para o ícone (imagem com sentido).<br />
O que implica numa metodologia <strong>de</strong> ruptura com os padrões até então vigentes.<br />
Uma ruptura no modo corriqueiro <strong>de</strong> ver a Biblioteca, para uma ampliação do olhar<br />
sobre ela; uma ruptura para um religare do homem consigo mesmo, com o contexto
que o envolve e com o próprio Mistério.<br />
Fácil não é. Por isso gosto <strong>de</strong> lembrar o conceito fantástico <strong>de</strong> equilíbrio precário,<br />
<strong>de</strong> Eugenio Barba. Corpo/alma no mais extremo <strong>de</strong> si; o gesto intenso para o voo,<br />
se assim posso me expressar. Conscientemente atento à intensida<strong>de</strong> do gesto, o ator<br />
(estamos falando da antropologia teatral <strong>de</strong> Barba, mas também estamos falando do<br />
ator que somos todos nós no teatro da vida) busca superar(-se), transformar. O equilibrista<br />
no fio, na difícil e escolhida tarefa <strong>de</strong> dar o próximo passo. Ação sonhada e<br />
possível, mas que requer <strong>de</strong>sejo, este elemento vital a uma política.<br />
E por isso há sempre um projeto político em potência nos acervos, numa biblioteca.<br />
Por isso, nós, os que lidamos com acervos (e todos nós o fazemos, não é?)<br />
precisamos ser guardiães <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zas e tesouros. Guardiães e hermeneutas.<br />
Porque precisamos também perturbar o conforto institucional, conforme o nomeia Silviano<br />
Santiago, que um acervo po<strong>de</strong> representar. Buscar brechas, janelas, possibilida<strong>de</strong>s<br />
para, por exemplo, compreen<strong>de</strong>r o acervo como uma aventura (no seu sentido<br />
mais profundo ad ventura, aquilo que vai acontecer). Tomar consciência a respeito<br />
da potência <strong>de</strong>ssas estratégias do fazer. Pois: o que eu quero dizer com o acervo que<br />
elaboro, com o qual trabalho? O que estou preten<strong>de</strong>ndo narrar? O que narram nossos<br />
acervos? O que comunicam?<br />
Uma ação político-pedagógica que traz à tona nossa clareza política e nossa competência<br />
científica, ao nos perguntarmos – Bibliotecas: vozes silenciadas?<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Reencantar a educação. Hugo Assmann. Vozes, 2004.<br />
u Poética do <strong>de</strong>vaneio. Gastón Bachelard. Martins Fontes, 2006.<br />
u A canoa <strong>de</strong> papel: tratado <strong>de</strong> Antropologia Teatral. Eugenio Barba. HUCITEC,<br />
1986.<br />
u O narrador: consi<strong>de</strong>rações sobre a obra <strong>de</strong> Nikolai Leskov. Walter Benjamin. In: Obras<br />
Nanci Gonçalves da Nóbrega<br />
133
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
134<br />
escolhidas / 1. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história<br />
da cultura. Brasiliense, 1994. p. 197-221.<br />
u A invenção do cotidiano/ 1. Artes <strong>de</strong> fazer. Michel <strong>de</strong> Certeau. Vozes, 2004.<br />
u História da Leitura. Robert Darnton. In: A escrita da História: novas perspectivas.<br />
Peter Burke (Org.). UNESP, 1992. p. 199-236.<br />
u As estruturas antropológicas do imaginário. Gilbert Durand. Martins Fontes, 2002.<br />
u Oralida<strong>de</strong>. Eric Havelock. In: Cultura escrita e oralida<strong>de</strong>. David Olson e Nancy Torrance<br />
(Orgs.). Ática, 1995.<br />
u Psicologia arquetípica: um breve relato. James Hillman. Cultrix, 1983.<br />
u A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Michel Maffesoli. Sulina, 1997.<br />
u Cultura, Informação e Educação <strong>de</strong> profissionais <strong>de</strong> informação nos países em <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
Michel Menou. Ci. Inf., Brasília, v. 25, n. 3, 1996. Disponível em www.ibict.br/cionline<br />
u A caverna, o monstro, o medo. Nanci Gonçalves da Nóbrega. FBN-Proler, 1995.<br />
u De livros e bibliotecas como memória do mundo: dinamização <strong>de</strong> acervos. Nanci Gonçalves<br />
da Nóbrega. In: Pensar a leitura: complexida<strong>de</strong>. Eliana Yunes (Org.). PUC-<br />
Rio; Loyola, 2002. p. 120-135.
135
A contação <strong>de</strong> histórias<br />
vivenciada no chão da<br />
universida<strong>de</strong>: um quase<br />
relato <strong>de</strong> experiência<br />
o
[Edvânia Braz Teixeira Rodrigues]<br />
Era uma vez, nos tempos das andanças do Morandubetá pelo Brasil afora, no<br />
Efinal do século XX, mais precisamente no ano <strong>de</strong> 1993, conduzidos pela nave mãe<br />
do Módulo Zero, comandada pelo Proler, no meio <strong>de</strong> suas inúmeras manobras fantásticas,<br />
fantasiosas, intrigantes e sedutoras <strong>de</strong> leitores, esta nave maravilhosa acabou<br />
por aterrizar nas terras do Cerrado Goiano, atraindo professores, atores e agentes culturais<br />
vinculados a várias instituições e <strong>de</strong>ntre eles três professoras da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás, das quais duas eram vinculadas ao Centro <strong>de</strong> Ensino e Pesquisa<br />
Aplicada a Educação (CEPAE/UFG).<br />
É importante dizer que durante o contato imediato estabelecido entre estas três<br />
professoras e os tripulantes da nave mãe módulo zero, as duas professoras do CEPAE/<br />
UFG foram contaminadas por um micro-organismo po<strong>de</strong>rosíssimo que as tomou e as<br />
transformou <strong>de</strong> tal forma que nunca mais elas foram as mesmas, haja vista que passaram<br />
a ler compulsivamente e a contar histórias em suas salas <strong>de</strong> aula, <strong>de</strong> forma tão<br />
constante e <strong>de</strong>liciosamente envolvente, que foram disseminando este hábito, numa<br />
rapi<strong>de</strong>z tal, que as pessoas foram sendo seduzidas a compartilhar leituras.<br />
Aí... Alguns apaixonados por esta nova mania que havia se instalado, no âmbito<br />
da Universida<strong>de</strong> começaram a se preocupar com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que algum cientista<br />
<strong>de</strong>svairado se <strong>de</strong>dicasse a <strong>de</strong>scobrir a cura para aquela <strong>de</strong>liciosa contaminação.<br />
Então, <strong>de</strong>mandaram, daquelas professoras, a fórmula para disseminarem aquela febril<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ler e com ela aquela contagiante necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar as histórias lidas.<br />
Ah! Aquelas professoras pioneiras se sentiam como Naftali, personagem do livro<br />
137
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
138<br />
Coração <strong>de</strong> Tinta, <strong>de</strong> Cornélia Funke, em seu diálogo <strong>de</strong> preocupação com as crianças<br />
<strong>de</strong>sprovidas do acesso ao livro “– Mas como fazem essas crianças sem livros <strong>de</strong><br />
histórias? – perguntou Naftali. E Reb Zebelun respon<strong>de</strong>u: – Elas têm que se conformar.<br />
Livros <strong>de</strong> histórias não são como pão. Po<strong>de</strong>-se viver sem eles. – Eu não po<strong>de</strong>ria<br />
viver sem eles. – disse Naftali.”<br />
Eu não po<strong>de</strong>ria viver sem livros. Este foi o princípio básico da contação <strong>de</strong> história<br />
que se vivenciava nas salas <strong>de</strong> aula do Colégio <strong>de</strong> Aplicação da UFG, naquele tempo...<br />
contavam-se histórias para <strong>de</strong>spertar o <strong>de</strong>sejo pelo texto escrito e, para contá-las, era<br />
necessário gostar muito <strong>de</strong>las, outro princípio básico.<br />
Aquelas duas professoras, agora acompanhadas <strong>de</strong> outros colegas <strong>de</strong> trabalho,<br />
então, fundaram um grupo <strong>de</strong> contadores <strong>de</strong> histórias, Grupo Gwaya <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Histórias</strong>, da UFG. Este grupo institucionalmente era um projeto <strong>de</strong> extensão e cultura,<br />
que propiciou a elas o tempo necessário para saírem por aí em escolas, hospitais,<br />
festas, seminários e eventos, contando muitas histórias. E, com isso, se <strong>de</strong>pararam<br />
com uma nova <strong>de</strong>manda, muitos e muitos professores que <strong>de</strong>sejavam apren<strong>de</strong>r a<br />
contar histórias.<br />
o ato <strong>de</strong> ler guarda sempre significados que estão além <strong>de</strong>le, transforma-se em metáfora que<br />
alimenta <strong>de</strong>sejos ancestrais que a humanida<strong>de</strong> sempre perseguiu, mesmo se em vão. Em<br />
várias culturas, em várias épocas, ele foi promessa <strong>de</strong> revelação, <strong>de</strong> superação final da precarieda<strong>de</strong><br />
imposta como condição (PERROTI: 1990, p.39)<br />
Eu buscava estes significados no trato com a leitura e com a escola básica e coletivamente<br />
o grupo passou a construir o seu projeto <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> novos contadores. Os<br />
livros lidos, as discussões realizadas, as histórias contadas, o contato com o universo<br />
da literatura e da arte cênica essencial para contar história foi me mostrando que o<br />
livro tem um po<strong>de</strong>r que se estabelece em duas perspectivas, na primeira ele se coloca<br />
como objeto histórico que narra a história refletindo, difundindo, permitindo, testemunhado<br />
e me colocando como partícipe do tempo, dos costumes, dos valores, do<br />
imaginário, do contexto e da época que ele me narra; na segunda o livro é constitutivo,<br />
nele mesmo, <strong>de</strong> um imaginário <strong>de</strong> sua significação e, em meio a estas constatações me
vi diante <strong>de</strong> questionamentos sobre o sentido das políticas <strong>de</strong> acesso ao livro que em<br />
última instância estão atreladas às questões da construção da cidadania e da emancipação<br />
humana, não me afastando, também, da percepção primeira que vivenciei em<br />
minha vida <strong>de</strong> leitora, a do livro como momento <strong>de</strong> lazer, sonho, doação, aventura...<br />
sempre trazido à minha presença pelas carinhosas mãos ora <strong>de</strong> minha mãe, ora <strong>de</strong><br />
minha avó materna.<br />
É importante ressaltar o quanto po<strong>de</strong> ser significativo que os pais leiam histórias para seus<br />
filhos, ou folheiem alguma literatura infantil, levando-os a dizerem o que imaginam o que<br />
irá acontecer na página seguinte (JOLIBERT, 1994. p. 129)<br />
Mas também sentia necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refletir, construir, socializar as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> forma<br />
fundamentada e sistematizada, assim, várias leituras, vários textos, vários projetos e<br />
um livro foi produzido e publicado – Contação <strong>de</strong> HISTÓRIAS: uma METODOLO-<br />
GIA <strong>de</strong> incentivo à LEITURA. Daqueles cursos foram surgindo outras ações em outros<br />
espaços educativos: escolas, clubes, igrejas... e também a outros grupos, os integrantes<br />
do Grupo Gwaya inicial iam e vinham, porém os princípios, os objetivos do trabalho<br />
permaneciam, se ampliavam, se aprofundavam, se verticalizavam.<br />
Hoje o Grupo Gwaya <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>/UFG é constituído por 15 integrantes,<br />
dos quais a mais “antiga” sou eu, mas temos também integrantes que apren<strong>de</strong>ram<br />
a contar histórias, quando estavam no terceiro ano do Ensino Fundamental<br />
e, hoje, estão na faculda<strong>de</strong>.... Professores que conheceram o trabalho quando ainda<br />
estavam na ativa e, hoje, já aposentadas continuam na ativa, contando histórias...<br />
Professores <strong>de</strong> Física.... Estudantes <strong>de</strong> Engenharia... Não importa a área <strong>de</strong> conhecimento,<br />
todos querem ler e compartilhar histórias... Enfim, as pessoas passam pelo<br />
grupo... o grupo se renova... mas o amor pela leitura... o trabalho <strong>de</strong> formação <strong>de</strong><br />
novos leitores... a <strong>de</strong>dicação ao incentivo à leitura... ESTES PERMANECEM!<br />
Atualmente, vivendo entre os livros <strong>de</strong> literatura infantojuvenil, os livros que<br />
refletem sobre a educação, os livros que nos mostram dados, imagens, i<strong>de</strong>ias... a cada<br />
dia me convenço do árduo caminho a ser percorrido na luta pelo incentivo à leitura<br />
<strong>de</strong> “textos <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>” que sejam prenhes da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação <strong>de</strong><br />
Edvânia Braz Teixeira Rodrigues<br />
139
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
140<br />
dogmas, <strong>de</strong> crenças, <strong>de</strong> preconceitos. Ah!!! Esse po<strong>de</strong>r ilimitado dos livros, estampado<br />
e construído <strong>de</strong>ntro das possibilida<strong>de</strong>s e limites do seu construtor, do seu leitor... Ele<br />
é fonte <strong>de</strong> renovação e transformação do conhecimento, do mundo!<br />
E a professora que existe <strong>de</strong>ntro da contadora <strong>de</strong> histórias me diz para estar atenta,<br />
para buscar sustentação teórico-prática, pois assim po<strong>de</strong>rei contribuir melhor com<br />
o processo <strong>de</strong> superação das barreiras encontradas pelos que nos procuram, no início<br />
<strong>de</strong> seu processo <strong>de</strong> formação como novos contadores <strong>de</strong> histórias. A preocupação<br />
com a formação <strong>de</strong> novos contadores fez com que professores integrantes do Grupo<br />
Gwaya, associados a outros professores da UFG propusessem a realização <strong>de</strong> um<br />
curso <strong>de</strong> especialização lato sensu em Metodologia da Arte <strong>de</strong> Contar <strong>Histórias</strong> Aplicada<br />
à Educação – este curso, presencial, teve sua primeira turma no ano <strong>de</strong> 2005.<br />
Nosso projeto <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores aten<strong>de</strong> a Re<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong><br />
Goiás, trabalhando com os Dinamizadores <strong>de</strong> Biblioteca e tem, como proposição,<br />
tornar o espaço da biblioteca escolar mais dinâmico com o objetivo precípuo <strong>de</strong><br />
chegar aos estudantes <strong>de</strong> forma mais lúdica, participativa e cênica. Mas, também, o<br />
grupo publica histórias: Iluminando histórias (Cleidna Landivar ) e Haja Fôlego! (Nilton<br />
Murce), ambos pela Editora RHJ, temos ainda: Tem contação <strong>de</strong> histórias no céu! (Edvânia<br />
Braz Teixeira Rodrigues), pela CEGRAF/UFG edição comemorativa 40 anos da<br />
UFG e, temos ainda: Deu queimada no cerrado (Diane Val<strong>de</strong>z), Deu macaco na cabeça<br />
(Maria <strong>de</strong> Fátima Teixeira Barreto) e Bocó: um lobo muito bobo (Edvânia Braz Teixeira<br />
Rodrigues) que compõem a coleção Coisas <strong>de</strong> bicho – Editora Gwaya. Sendo que, a<br />
coleção Coisas <strong>de</strong> bicho foi especialmente preparada para ser distribuída nas escolas da<br />
Re<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Ensino <strong>de</strong> Goiás e para os Colégios <strong>de</strong> Aplicação das Universida<strong>de</strong>s<br />
Fe<strong>de</strong>rais.<br />
A editoria <strong>de</strong>stes livros da coleção foi mais uma experiência extremamente gratificante,<br />
pois pu<strong>de</strong> experienciar o processo <strong>de</strong> produção do objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo “livro” em<br />
sua completu<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua i<strong>de</strong>alização, o processo <strong>de</strong> escritura, a revisão, a ilustração,<br />
a <strong>de</strong>finição do formato, o acompanhamento da editoração, impressão, pensar o<br />
lançamento, acompanhar a distribuição... mas, posso afirmar com toda a certeza que
nenhuma emoção bateu mais forte que a do brilho do olhar das crianças e adolescentes<br />
ao lerem ou ouvirem a narrativa daquelas histórias!<br />
“O prazer <strong>de</strong> ser transportado <strong>de</strong> forma benevolente e cuidadosa, ao universo das palavras<br />
que possuem corpo, das histórias que se tornam tangíveis, daquilo que nos humaniza”<br />
(SISTO: 2001, p. 32)<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Cenas <strong>de</strong> leitura. Verbena Maria Rocha Cor<strong>de</strong>iro. In: Leitor formado, leitor em<br />
formação: a leitura literária em questão. M. Z Turchi e V. M. T. Silva (orgs). ANEP,<br />
2006.<br />
u Formando crianças leitoras. Josette Jolibert e colaboradores. Artes Médicas, 1994.<br />
u Textos e pretextos sobre a arte <strong>de</strong> contar histórias. Celso Sisto. Argos, 2001.<br />
u Confinamento cultural, infância e leitura. Edmir Perrotti. Summus, 1990.<br />
u Coração <strong>de</strong> tinta. Cornélia Funke. Cia. Das Letras, 2006.<br />
Edvânia Braz Teixeira Rodrigues<br />
141
Por on<strong>de</strong> passo,<br />
levo comigo os<br />
contadores <strong>de</strong> histórias<br />
o
[Maria Helena Ribeiro]<br />
Contar histórias, apesar <strong>de</strong> ser uma arte milenar, para mim foi tomando uma<br />
Cnova dimensão a partir <strong>de</strong> 1989, quando trabalhava no setor <strong>de</strong> projetos da Fundação<br />
Nacional do Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ. Havia um burburinho, algo <strong>de</strong> novo,<br />
um frisson em torno <strong>de</strong> um tal curso, ministrado por um grupo estrangeiro, que algumas<br />
pessoas fizeram, criando alma nova para a questão do livro, da biblioteca e da<br />
formação do leitor. Esta foi a primeira notícia que me chegou.<br />
Continuava sem saber bem o que era, mas via a movimentação das pessoas, um<br />
entusiasmo no ar, um falatório nos corredores, até que a minha curiosida<strong>de</strong> chegou<br />
ao máximo e me forcei a saber exatamente o que estava se passando.<br />
O assunto girava em torno <strong>de</strong> algumas pessoas da Fundação que haviam feito um<br />
curso <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>. Esse curso mudou as suas vidas e, por tabela, as<br />
nossas também, que não fizemos o curso. Houve uma contaminação <strong>de</strong> entusiasmo.<br />
Era como se a narração <strong>de</strong> histórias precisasse <strong>de</strong> um empurrãozinho para se firmar<br />
como a melhor estratégia <strong>de</strong> encantamento no processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um leitor.<br />
Esse empurrãozinho foi dado, pois <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou uma nova história na promoção da<br />
leitura, pelo menos por aqui.<br />
Todos nós sabíamos da importância <strong>de</strong> contar histórias, porque como professores<br />
e promotores <strong>de</strong> leitura já nos utilizávamos <strong>de</strong>ssa ferramenta para incentivar a leitura.<br />
Mas, parece que esse curso foi um marco na história da Contação <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> no<br />
Brasil, inclusive originando, logo em seguida, o Grupo Morandubetá <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>, que foi a primeira escola para a formação <strong>de</strong> outros contadores.<br />
143
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
144<br />
Fiquei impressionada com a rapi<strong>de</strong>z com que esse movimento se disseminou. As<br />
pessoas ficavam encantadas com a nova forma <strong>de</strong> contar histórias, com os segredos<br />
para fazê-las mais atraentes, com as novas técnicas <strong>de</strong> apresentar os textos dos livros,<br />
seduzindo a plateia.<br />
Aí, contavam-se histórias em todos os lugares, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os corredores da Biblioteca<br />
Nacional, para os funcionários, até em praças públicas e espaços culturais.<br />
Um curso <strong>de</strong>sses, eu nunca fiz, mas, naquele momento, fui contagiada pelos contadores<br />
<strong>de</strong> histórias que começavam a se formar com essa nova orientação. Acreditei<br />
neles e nunca mais os abandonei. Em todas as instituições que trabalhei, daí pra<br />
frente, levei essa ban<strong>de</strong>ira comigo, contribuindo assim, um pouco, para a concretização<br />
<strong>de</strong>ssa arte no Brasil<br />
Migramos da Fundação do Livro para o Proler – Programa Nacional <strong>de</strong> Incentivo à<br />
Leitura da Biblioteca Nacional, on<strong>de</strong> assumi a coor<strong>de</strong>nação pedagógica do Leia Brasil<br />
– Programa <strong>de</strong> Leitura da Petrobras, um programa <strong>de</strong> Bibliotecas Volantes em escolas<br />
públicas, com capacitação <strong>de</strong> professores para a questão da leitura.<br />
Levando comigo esse entusiasmo e a certeza da importância das histórias contadas<br />
na formação do leitor, para que ele tomasse o impulso que precisava, logo acrescentei<br />
ao Programa um curso <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> para os professores<br />
do programa e apresentações <strong>de</strong> contadores nas escolas, nos dias das visitas do<br />
caminhão-biblioteca.<br />
Enquanto isso, na Casa da Leitura – se<strong>de</strong> do Proler e do Leia Brasil – a comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Laranjeiras e especialistas em Leitura e Literatura <strong>de</strong>scobriam o encantamento<br />
das histórias contadas pelos novos contadores. De todas as ativida<strong>de</strong>s que a<br />
casa oferecia, o Curso <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong> era o mais procurado. Artistas, atores principalmente,<br />
produtores culturais, educadores, psicólogos, leitores e até donas <strong>de</strong> casa iam<br />
buscar algo que lhes trouxesse prazer.<br />
Eliana Yunes, nossa diretora, e Francisco Gregório Filho, nosso querido chefe,<br />
planejaram um curso <strong>de</strong> excelência por on<strong>de</strong> se formaram os hoje mais renomados<br />
contadores <strong>de</strong> histórias e grupos <strong>de</strong> contação. Começou com esse curso uma com-
pulsão pela leitura. Falava-se todo o tempo <strong>de</strong> textos, <strong>de</strong> escritores, <strong>de</strong> lançamentos<br />
<strong>de</strong> livros, <strong>de</strong> temas interessantes para se contar, <strong>de</strong> cultura popular, contos da carochinha,<br />
e, assim, circulavam os livros, trocavam-se experiências, formavam-se grupos,<br />
pesquisava-se sobre a leitura da literatura.<br />
O mais interessante é que os cursos não tinham exclusivamente o objetivo <strong>de</strong><br />
ensinar a contar histórias, pois isso já é quase inerente ao ser humano. Basicamente<br />
visavam o incentivo à leitura pelo viés da arte, da literatura. Mas os alunos, além <strong>de</strong> se<br />
<strong>de</strong>scobrirem leitores, <strong>de</strong>scobriam-se também contadores <strong>de</strong> histórias. Até hoje encontramos<br />
nos cursos <strong>de</strong> Letras, ou já formados nas Universida<strong>de</strong>s, pessoas que, a partir<br />
dos cursos da Casa da Leitura, <strong>de</strong>scobriram sua vocação e hoje são profissionais <strong>de</strong>ssa<br />
área; meu filho José Mauro Brant e minha neta Alluana Ribeiro são alguns exemplos.<br />
O Leia Brasil, que chegou a ter, em 1998, 16 Bibliotecas Volantes em 89 cida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> seis estados do Brasil, teve a contação <strong>de</strong> histórias como seu carro-chefe. Não havia<br />
uma ativida<strong>de</strong> do Leia que não iniciasse e acabasse com uma história contada pelos<br />
novos contadores. Além disso, oferecíamos cursos <strong>de</strong> contadores <strong>de</strong> histórias para<br />
todos os professores, o que tornava o Programa cada vez mais respeitado e querido<br />
pelas Secretarias <strong>de</strong> Educação dos Municípios conveniados.<br />
Nas cida<strong>de</strong>s, muitos professores tornaram-se contadores, ou individualmente, ou<br />
em grupos e, por essa ativida<strong>de</strong> se apaixonaram também pela leitura e pela literatura<br />
a ponto <strong>de</strong> mudar suas vidas. Não é exagero não, pois quem conta a história do Leia<br />
Brasil sabe a influência que as histórias autorais e as populares, apresentadas daquele<br />
jeito <strong>de</strong> contar, tiveram na formação <strong>de</strong> professores leitores, na sua atuação como<br />
promotores da leitura e nas suas histórias pessoais. Houve uma melhoria significativa<br />
na relação da escola com a leitura, dos professores com a leitura dos seus alunos e dos<br />
professores entre si. Foi a questão do encantamento. Foram todos encantados pelos<br />
contadores <strong>de</strong> histórias e trabalhar com leitura passou a ser um prazer.<br />
Após quase sete anos no Leia Brasil, fui para o Sesc Rio, levando comigo essa bagagem<br />
<strong>de</strong> experiências bem sucedidas com a contação <strong>de</strong> histórias. No programa <strong>de</strong> leitura<br />
que implantamos no Sesc, chamado Tecendo o Amanhã – Programa <strong>de</strong> Leitura do Sesc<br />
Maria Helena Ribeiro<br />
145
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
146<br />
Rio, pu<strong>de</strong> continuar abrindo espaços para a disseminação <strong>de</strong>ssa arte e <strong>de</strong>ssa prática.<br />
Como o programa tinha como objetivos estimular a leitura, dinamizar os acervos<br />
das Bibliotecas e promover, nas unida<strong>de</strong>s do Sesc, eventos e ativida<strong>de</strong>s culturais em<br />
torno da leitura, encontrei nele a melhor oportunida<strong>de</strong> para divulgar o trabalho dos<br />
<strong>Contadores</strong> nas unida<strong>de</strong>s do Sesc.<br />
Nesse momento, o trabalho <strong>de</strong> contar histórias nas Unida<strong>de</strong>s do Sesc Rio foi tão<br />
bem aceito, que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ampliá-lo, para além dos espaços das bibliotecas, foi crescendo,<br />
crescendo tanto, que <strong>de</strong>u origem à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> se criar uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> contadores e<br />
juntá-los num só evento, aberto ao público em geral.<br />
Benita Prieto, do Grupo Morandubetá, havia feito, em 1999, pelo Leia Brasil, o<br />
Encontro <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> com o maior sucesso. Eu participei <strong>de</strong>sse processo<br />
e achei que seria o evento <strong>de</strong> que necessitávamos.<br />
E assim, em 2002, realizamos o Simpósio Internacional <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Histórias</strong>, primeiro realizado no Brasil. Convidamos a participar os maiores nomes<br />
nessa área, brasileiros e estrangeiros. Tanto sucesso fez, que até hoje, 2009, fica na<br />
nossa memória o evento em si e o que ele representou para o nosso país, tornando-o a<br />
referência mundial na contação <strong>de</strong> histórias e na questão da leitura e da oralida<strong>de</strong>. Foi<br />
muito gratificante participar do início da história dos <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> no país.<br />
Levar os contadores comigo pelas instituições por on<strong>de</strong> passava era como se tivesse<br />
levando o Proler – Programa <strong>de</strong> Incentivo à Leitura da Biblioteca Nacional para <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>las. No Sesc Rio não foi diferente. Levei o Proler para <strong>de</strong>ntro das unida<strong>de</strong>s, agreguei<br />
o valor da contação <strong>de</strong> histórias à formação das bibliotecárias, transformei as bibliotecas<br />
em ambientes bonitos, prazerosos para ler, ouvir e contar histórias. Eram crianças,<br />
idosos, jovens, todos encantados pelas histórias que habitavam o interior das unida<strong>de</strong>s.<br />
As bibliotecas do Sesc nunca foram tão cheias <strong>de</strong> jovens como nas sessões <strong>de</strong><br />
histórias. Os livros saíam mais das prateleiras, e os velhos livros <strong>de</strong> gramática, que<br />
eram vítimas das máquinas <strong>de</strong> Xerox, foram substituídos por novos livros <strong>de</strong> literatura<br />
<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, lidos na própria biblioteca ou emprestados para serem lidos em casa.<br />
O movimento precioso <strong>de</strong> leitura que vivia o Sesc gerou um outro projeto Jornada
<strong>de</strong> Leitura Sesc Rio: Formação <strong>de</strong> Jovens Agentes <strong>de</strong> Leitura, que talvez tenha sido o<br />
melhor projeto social que realizei em toda a minha vida. Acreditei que os jovens podiam<br />
ser leitores apaixonados e promotores <strong>de</strong> leitura nas suas comunida<strong>de</strong>s, contrariando<br />
todo o estigma <strong>de</strong> que jovem não gosta <strong>de</strong> ler. Devo mais essa aos contadores <strong>de</strong><br />
histórias que, como eu, acreditaram nos jovens e enfrentaram essa jornada <strong>de</strong> trabalho<br />
comigo. Quando saí do Sesc, foram eles que <strong>de</strong>ram continuida<strong>de</strong> a esse nosso projeto.<br />
As instituições, que no início estranhavam a minha insistência na utilização da contação<br />
<strong>de</strong> histórias para tudo, logo se rendiam e concordavam em usar essa prática como<br />
“panaceia para todos os males”: abrir e fechar reuniões, criar ânimo nas pessoas, para<br />
relaxar, sensibilizar, entrosar equipes, minimizar conflitos, aumentar a autoestima.<br />
Sempre foi muito importante a atuação dos contadores na vida da cida<strong>de</strong>, tanto<br />
nas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> entretenimento, como nos projetos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância sociocultural,<br />
como nos hospitais, favelas, creches, com jovens e idosos, com crianças com<br />
dificulda<strong>de</strong>s e comprometimentos <strong>de</strong> aprendizagem.<br />
Convicta <strong>de</strong> que a contação <strong>de</strong> histórias se enquadrava em qualquer circunstância<br />
educacional, cultural ou social, e que os contadores <strong>de</strong> histórias eram sempre excelentes<br />
parceiros das instituições, levei, mais uma vez, esse trabalho comigo para a Obra Social<br />
da Cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, em um projeto <strong>de</strong> inclusão social em casas <strong>de</strong> convivência<br />
e lazer para idosos. Os idosos, assim como crianças e jovens, haviam <strong>de</strong> precisar <strong>de</strong>ssa<br />
prática para ter uma vida melhor, com mais qualida<strong>de</strong>. Não sabia o quanto!<br />
Melhorar a autoestima, minimizar os efeitos das perdas e promover a sua integração<br />
social, <strong>de</strong>senvolvendo o imaginário dos idosos, recuperando as suas memórias<br />
afetivas, <strong>de</strong>spertando seus talentos e habilida<strong>de</strong>s, resgatando seus <strong>de</strong>sejos reprimidos<br />
e satisfazendo-os na medida do possível era a nossa meta. Para isso, começamos nas<br />
Casas como se elas fossem a Casa da Leitura. Era uma volta ao passado. E os contadores<br />
sempre comigo.<br />
Por meio das oficinas <strong>de</strong> contação <strong>de</strong> histórias, <strong>de</strong>i início à concretização <strong>de</strong>sses<br />
objetivos. Nessas casas, os idosos recuperaram suas lembranças, suas histórias, seus<br />
afetos, as histórias das suas famílias, suas ruas e cida<strong>de</strong>s, as brinca<strong>de</strong>iras da infân-<br />
Maria Helena Ribeiro<br />
147
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
148<br />
cia, das músicas e poesias preferidas. Nelas também cantaram, leram, recitaram,<br />
recortaram, pintaram, contaram histórias, riram, choraram, fizeram pipas, bonecos,<br />
escreveram cartas, montaram álbuns <strong>de</strong> memórias, murais <strong>de</strong> fotos.... E foram felizes<br />
durante os cinco anos que conviveram com os contadores <strong>de</strong> histórias.<br />
Hoje os idosos que tiveram essa oportunida<strong>de</strong> contam histórias em creches, escolas,<br />
em grupos sociais, e alguns até dão oficinas <strong>de</strong> leitura e histórias, contribuindo<br />
com esse rendimento para o aumento da sua renda familiar ou pessoal.<br />
Os contadores <strong>de</strong> histórias que me acompanharam na Obra Social fizeram <strong>de</strong>ssas<br />
casas um espaço social <strong>de</strong> relevância no cenário cultural da cida<strong>de</strong> do Rio. É<br />
sempre assim: por on<strong>de</strong> passam, <strong>de</strong>ixam um rastro <strong>de</strong> benfeitorias. Vão passando e<br />
carregando com eles pessoas que se tornam mais leitoras, mais esperançosas, mais<br />
participantes e mais felizes.<br />
Em qualquer instituição, seja ela educacional, social, cultural; seja em hospitais,<br />
creches, escolas, empresas, teatros, bibliotecas; seja em oficinas, aulas, apresentações,<br />
rodas <strong>de</strong> leitura... eles serão sempre os arautos da boa-nova.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Os cem melhores contos brasileiros do século. Seleção Ítalo Moriconi. Objetiva,<br />
2000.<br />
u O livro dos medos. Organização Heloísa Prieto. Companhia das Letras,1998.<br />
u Mil histórias sem fim: contos orientais. Malba Tahan. Record, 2001.<br />
u O livro dos abraços. Eduardo Galeano. L&PM, 2007.<br />
u Uma idéia toda azul. Marina Colasanti. Global, 1999.<br />
u Lendas do céu e da terra. Malba Tahan. Conquista,1960.
149
Narrativas na<br />
empresa<br />
o
[Fernando Goldman]<br />
Quando comecei minhas pesquisas sobre a Gestão do Conhecimento Organizacio-<br />
Qnal, confesso que – engenheiro <strong>de</strong> formação que sou, por isso mesmo mais ligado<br />
às ciências exatas, às coisas objetivas do mundo, com um pensamento mais cartesiano<br />
– estranhava a frequência com que esbarrava em referências às narrativas.<br />
Era perturbador notar que quanto mais eu me aprofundava em áreas tão especializadas<br />
como Administração Estratégica, Aprendizado Organizacional, Gestão da Inovação,<br />
Gestão da Mudança, Instituições, Teoria da Firma, Teoria Evolucionária das Mudanças<br />
Econômicas, etc., mais evi<strong>de</strong>nte ficava o importante papel representado pela contação <strong>de</strong><br />
histórias (storytelling) na formação do capital social das empresas realmente <strong>de</strong> sucesso, ou<br />
seja, naquelas que têm a característica da longevida<strong>de</strong> e não nas <strong>de</strong> sucesso efêmero.<br />
Justamente quando po<strong>de</strong>ria parecer que os rápidos <strong>de</strong>senvolvimentos tecnológicos<br />
dos tempos da globalização – tanto da informação, como das comunicações – tornariam<br />
aquela antiga arte uma coisa obsoleta, eu ia me apercebendo da importância<br />
crescente das narrativas.<br />
Dentro <strong>de</strong>sta ótica, eram claros os indícios <strong>de</strong> que é no melhor entendimento dos<br />
fatos <strong>de</strong> suas histórias que as empresas constroem aquilo que os especialistas apontam<br />
como fundamental para sua sobrevivência nos dias <strong>de</strong> rápidas mudanças que<br />
vivemos: sua capacitação para inovar.<br />
Confesso que relutei em aceitar que as dificulda<strong>de</strong>s vividas em fases iniciais pela<br />
empresa, suas crises importantes do passado, seus eventos marcantes, seus executivos<br />
anteriores, seus mitos e seus heróis moldassem e restringissem seu comportamento<br />
151
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
152<br />
atual e futuro. Era difícil estabelecer uma conexão entre os aspectos mais tecnológicos<br />
das empresas e esta sua <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> trajetória.<br />
Hoje noto que há algo <strong>de</strong> novo sobre a arte <strong>de</strong> contar histórias em ambientes organizacionais.<br />
Não se trata mais apenas do seu uso proposital para alcançar resultados<br />
práticos em questionáveis e antiquadas práticas <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança.<br />
Em minhas pesquisas venho <strong>de</strong>scobrindo que empresas longevas (as que se caracterizam<br />
como verda<strong>de</strong>iras comunida<strong>de</strong>s) têm como principal característica aquela<br />
especial capacitação para se adaptar constantemente às mudanças em seus ambientes<br />
<strong>de</strong> negócios, com mais rapi<strong>de</strong>z do que seus concorrentes.<br />
Mas a inovação não é apenas uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>clarada. Ela exige a prática regular e<br />
constante <strong>de</strong> uma humilda<strong>de</strong> em busca do que precisa ser aperfeiçoado na empresa,<br />
<strong>de</strong> um ambiente com abertura suficiente para tal, caracterizando que os verda<strong>de</strong>iros<br />
proprietários do capital social não <strong>de</strong>veriam ser pequenos grupos – que po<strong>de</strong>m facilmente<br />
ser tornar obsoletos – mas a empresa que, vista como uma comunida<strong>de</strong>, se<br />
mostra muito mais apta a dar respostas.<br />
Para aten<strong>de</strong>r aos atuais <strong>de</strong>safios <strong>de</strong> adaptação, contínuos e necessários, sempre<br />
com maior rapi<strong>de</strong>z, diversos autores <strong>de</strong> diferentes áreas <strong>de</strong> estudos vêm chamando<br />
atenção para o fato <strong>de</strong> que as estruturas burocráticas e hierárquicas baseadas em<br />
mecanismos <strong>de</strong> comando e controle, que se mostraram tão eficientes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início<br />
do taylorismo, já não funcionam a<strong>de</strong>quadamente e funcionarão cada vez menos. Há<br />
assim a necessida<strong>de</strong> da troca da ênfase em simples e objetivas relações <strong>de</strong> causa e efeito<br />
pelo foco em aspectos menos explícitos, menos objetivos, digamos mais tácitos.<br />
Esse novo mundo organizacional, <strong>de</strong> valores, significados e experiências, com<br />
atenção às interações humanas, precisa i<strong>de</strong>ntificar o conhecimento, entendido como<br />
a união <strong>de</strong> saberes e habilida<strong>de</strong>s para uma capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação eficaz, como novo e<br />
mais importante fator <strong>de</strong> produção.<br />
Sendo o conhecimento contextual e só existindo nas pessoas que compõem uma<br />
empresa, me chama atenção a importância da palavra “contexto” e a forma como ela<br />
é negligenciada nas empresas que não conseguem se ver como comunida<strong>de</strong>s.
É o contexto que faz com que, embora construído pela análise da informação e<br />
que possa algumas vezes ser transformado em informação para ser disseminado, o<br />
conhecimento não seja apenas um tipo especial estático <strong>de</strong> informação, como muitos<br />
creem. Isto porque diariamente importantes elementos <strong>de</strong> contexto são incorporados<br />
ao conhecimento nas mentes e corpos das pessoas, nas rotinas das empresas e, principalmente,<br />
no relacionamento entre as pessoas e entre elas e suas empresas.<br />
As empresas e suas pessoas em um <strong>de</strong>terminado momento são apenas um instantâneo<br />
<strong>de</strong> um quadro dinâmico em que pessoas vão e vêm, influenciam e são influenciadas<br />
por aquilo a que nos referimos simplificadamente como organização.<br />
É fácil dizer que a empresa é uma organização. Mais fácil ainda é alar<strong>de</strong>ar que a<br />
organização é uma comunida<strong>de</strong>, mas na prática criar um ambiente propício ao florescimento<br />
do conhecimento exige muito mais do que simples slogans.<br />
Uma pessoa para expressar aquilo que conhece ou pelo menos aquilo que tem<br />
consciência que conhece não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazê-lo senão emitindo algum tipo <strong>de</strong><br />
informação (conteúdos), na forma <strong>de</strong> mensagens, sejam orais, escritas, sinalizadas,<br />
gráficas, gestuais, dançadas, corporais ou qualquer outra forma que um ser humano<br />
tenha para se comunicar.<br />
É preciso conectar os conteúdos disponibilizados, representados por dados e<br />
informações, aos contextos, para que outras pessoas possam criar novos conhecimentos<br />
capazes <strong>de</strong> possibilitar à empresa se modificar <strong>de</strong> modo a se adaptar às mudanças<br />
<strong>de</strong> seus ambientes <strong>de</strong> negócios.<br />
Fui assim começando a enten<strong>de</strong>r que o elo, entre os conteúdos e os contextos, são<br />
as narrativas, que sendo a forma como as pessoas constroem um mundo <strong>de</strong> significados,<br />
se tornam um tipo <strong>de</strong> código, útil em ambientes dinâmicos, <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> limitada<br />
e <strong>de</strong> incerteza, como os enfrentados pelas empresas na atual era <strong>de</strong> globalização, pois<br />
transformam a incerteza da mudança em algo compreensível e com significado.<br />
Seguindo as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Argyris e Schoen sobre toda empresa ter uma teoria “proclamada”<br />
e uma “aplicada”, são as narrativas que nos informam sobre as regras informais,<br />
quando chegamos a uma empresa.<br />
Fernando Goldman<br />
153
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
154<br />
No meu enten<strong>de</strong>r as narrativas organizacionais, além <strong>de</strong> proverem meios funda-<br />
mentais para se compreen<strong>de</strong>r os processos do cotidiano organizacional, são elementos<br />
fundamentais na construção retrospectiva da realida<strong>de</strong> em que a empresa se encontra<br />
– o chamado sensemaking.<br />
Para mim, as narrativas representam os modos <strong>de</strong> falar sobre a empresa e, assim,<br />
refletem a disseminação e o compartilhamento <strong>de</strong> percepções. Dessa forma, as narrativas<br />
tratam das políticas <strong>de</strong> significados, isto é, como são selecionados os significados,<br />
codificados, legitimados e institucionalizados na empresa. O aprendizado e a<br />
criação <strong>de</strong> conhecimento, tendo características progressivas e implícitas no processo<br />
organizacional, se beneficiam sobremaneira <strong>de</strong> um ambiente propício às narrativas.<br />
Se é cada vez mais verda<strong>de</strong> que as empresas precisam adaptar-se rapidamente a<br />
mercados em constante mudança e às novas tecnologias, porém sem negligenciar os<br />
aspectos humanos, então as narrativas como aliadas das metáforas e analogias po<strong>de</strong>m<br />
exercer um papel muito importante nos aspectos mais tácitos do conhecimento.<br />
Além disso, o futuro da empresa só po<strong>de</strong> ser construído consi<strong>de</strong>rando seu passado,<br />
pois os eventos <strong>de</strong> ontem <strong>de</strong>lineiam o comportamento <strong>de</strong> hoje. Dessa forma, a<br />
mudança só po<strong>de</strong> ser entendida numa perspectiva <strong>de</strong> histórias, pois para romper com<br />
o passado é preciso antes <strong>de</strong> tudo, entendê-lo.<br />
Assim, consi<strong>de</strong>rando a empresa como uma cultura, as narrativas - tendo como<br />
principal objeto a construção <strong>de</strong> significados – são uma po<strong>de</strong>rosa ferramenta para<br />
viabilizar a compreensão dos processos <strong>de</strong> mudança e aprendizado, possibilitando<br />
mudanças <strong>de</strong> percepção e a aquisição <strong>de</strong> novos significados.<br />
Foi assim, aos poucos, que <strong>de</strong>scobri que a velha arte da contação <strong>de</strong> histórias po<strong>de</strong><br />
fazer toda a diferença em ambientes tão atuais e complexos como as gran<strong>de</strong>s empresas.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u O po<strong>de</strong>r das narrativas nas organizações. Stephen Denning. Campus - Elsevier, 2006.
u The concept of “Ba”: building foundation for knowledge creation. I. Nonaka e<br />
N. Konno. California Management Review, v. 40, n. 3, Spring 1998.<br />
u Criação <strong>de</strong> conhecimento na empresa: como as empresas japonesas geram a<br />
dinâmica da inovação. I. Nonaka e H. Takeuchi. Campus, 1997.<br />
Fernando Goldman<br />
155
Fagulhas habitam multidões<br />
o
[Célia Linhares]<br />
Logo que fiz nove anos, perdi meu pai. Voltei para o Maranhão e encontrei uma<br />
Lpaisagem já conhecida pelas conversas familiares e que, <strong>de</strong> vez em quando, ganhavam<br />
um tom nostálgico, próximo <strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong> exílio. Ah! Como o Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro ficava longe <strong>de</strong> São Luís!<br />
O re-encontro com minha cida<strong>de</strong>, me fez <strong>de</strong>scobrir que ao construí-la, imaginariamente,<br />
nela havia reservado lugares <strong>de</strong> relevo para os primos e os tios, as alvoradas<br />
com suas brisas, os sabores e os batuques das festas populares. Então, me surpreendi<br />
com tantas la<strong>de</strong>iras (difíceis <strong>de</strong> subir), com as travas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res estagnados, enfim,<br />
com as noites e suas tormentas...<br />
Sei que num <strong>de</strong>sses dias em que os bon<strong>de</strong>s pareciam saltar dos trilhos para trafegar<br />
em meu coração, me assombrei com a intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perguntas que nem sabia formular.<br />
Acreditei que não ia dar conta da vida. Pedi a Deus que me ajudasse, mandando<br />
um anjo me buscar <strong>de</strong> forma veloz, se possível, fulminante.<br />
De repente, ao entrar numa das alcovas do sobrado, on<strong>de</strong> vivíamos, no Canto da<br />
Viração, <strong>de</strong>parei com uma imagem trêmula, estranha, assustadora, que se associou a um<br />
conjunto <strong>de</strong> vozes que cantavam, com <strong>de</strong>terminação, se encontrando em <strong>de</strong>sencontros.<br />
— Os céus me ouviram? Resolveram me aten<strong>de</strong>r? Estes eram os sinais não <strong>de</strong> um, mas <strong>de</strong> uma<br />
legião <strong>de</strong> anjos? Como po<strong>de</strong>ria eu recuar <strong>de</strong> minhas súplicas, diante <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão celestial?<br />
— Não, não queria ir pro céu. Era urgente, urgentíssimo <strong>de</strong>clinar da viagem com os anjos.<br />
Pedi, com o coração aos saltos, uma prorrogação.<br />
Corri pra janela, arriscando um canto <strong>de</strong> olho e <strong>de</strong>cifrando o mistério da figura<br />
157
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
158<br />
vacilante: era uma calça comprida <strong>de</strong> meu irmão, pendurada pelo suspensório, numa<br />
coluna <strong>de</strong> cama antiga!<br />
Em compensação, presenciei nas ruas uma passeata potente, contra a posse <strong>de</strong><br />
um governo que o povo não aceitava pela usurpação e iniquida<strong>de</strong> do processamento<br />
eleitoral. Nunca tinha visto uma multidão tão <strong>de</strong>cidida e tão vibrante em sua marcha.<br />
Por isso, a cada instante se encorpava mais.<br />
Ali, naquele momento que coube um fluxo <strong>de</strong> uma existência, entendi a dor e a beleza<br />
<strong>de</strong> sermos porosos, inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes uns dos outros, unindo os humanos aos viventes,<br />
às coisas, mas também ao cosmos, tecendo-nos com milhões <strong>de</strong> fios, que nos <strong>de</strong>safiam<br />
com enigmas que não se fecham em nós, pedindo conjunções, compartilhamentos.<br />
— Ah! Então são esses os movimentos sociais, em que nos per<strong>de</strong>mos e nos achamos, entrando<br />
e saindo <strong>de</strong> nós e, assim, nos constituindo nesses entre nós?<br />
Os anos rolaram e acompanhei as esperanças <strong>de</strong> minha geração, com a UNE, a<br />
JUC que se articulava com a JOC, a JEC e tantos outros movimentos estudantis, mas<br />
também com o MEB, os CPCs, a campanha pelo Petróleo é nosso...<br />
A Petrobrás foi a nossa vitória,<br />
Nossa primeira vitória,<br />
De vitória em vitória...<br />
Se escreve a história...<br />
Mas, todo esse entusiasmo coletivo foi interrompido com uma prolongada noite<br />
<strong>de</strong> chumbo que mostrou o quanto os estados <strong>de</strong> exceção, com suas tiranias e barbáries<br />
nos rondam e nos ameaçam permanentemente, comprometendo os projetos<br />
<strong>de</strong>mocráticos, exigindo repensá-los a contrapelo. (Benjamin, 1993, Agamben, 2004).<br />
E esses riscos se mostram e se agudizam quando os movimentos sociais se intensificam,<br />
se renovam, se reinventam, atualizando suas potências ao afirmar tradições<br />
inquietas e tenazes, com sonhos <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> existencial, política, que nunca morrem.<br />
Por tudo isso, não só nos fortalecemos, mas também nos alertamos contra tantos<br />
elitismos que também nos impregnam, compondo <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s que nos mo<strong>de</strong>lam<br />
historicamente. Ressoa em nós Darcy Ribeiro, lembrando como permanece em nós
essa convivência ambígua e paradoxal entre as cicatrizes <strong>de</strong> escravos e oprimidos, que<br />
se polarizam com a arrogância <strong>de</strong> senhores.<br />
De toda maneira, com a ditadura, os espaços dos movimentos sociais foram fechados,<br />
vigiados e punidos. Mas não interrompidos. Como rios nos <strong>de</strong>sertos, os fluxos <strong>de</strong><br />
tantas águas, irromperam por outros caminhos, manifestando-se <strong>de</strong> diferentes formas<br />
em oásis, pedindo novas formas <strong>de</strong> invenção e captação.<br />
A ditadura se enrijecia, recriando-se com outros níveis <strong>de</strong> selvageria e ferocida<strong>de</strong>,<br />
com sequestros e prisões, com torturas e assassinatos e inovando com a ocultação<br />
dos corpos dos opositores <strong>de</strong>ssa barbárie instalada. Foi nesse período trágico que Rui<br />
Frazão Soares, estudante <strong>de</strong> engenharia foi preso e <strong>de</strong>sapareceu no cárcere em 1974.<br />
Se o medo era imenso, toda essa generosida<strong>de</strong> dos que discordavam abriam<br />
caminhos para a liberda<strong>de</strong> que nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> fagulhar... Assim, os movimentos<br />
sociais se <strong>de</strong>slocaram para espaços que antes pareciam <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> política. As<br />
associações <strong>de</strong> moradores insurgiram em toda parte, nas comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> base, nas<br />
práticas da Teologia da Libertação, com os mutuários <strong>de</strong> casa própria, das donas <strong>de</strong><br />
casa, dos aposentados, das mulheres, negros, indígenas e gays que se organizaram e<br />
tornaram mais abertas, compartilhadas e visíveis suas lutas.<br />
A realida<strong>de</strong> mudava e nossos instrumentos <strong>de</strong> apropriação dos movimentos sociais<br />
também precisavam ser refeitos (Evers, 1984). Os novos sujeitos coletivos instalavam outro<br />
tempo-espaço e requeriam uma outra inteligibilida<strong>de</strong> (Sa<strong>de</strong>r, 1988). Os movimentos <strong>de</strong><br />
1968 mostraram que as relações políticas não estão distanciadas das tensões cotidianas.<br />
Se Foucault (1984) tematizou a mobilida<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r, que não se concentra nos<br />
palácios, nem se fixa nos gabinetes e nem, muito menos, se reduz a impor e negar<br />
condutas, potencializando ferramentas para intervirmos nos funcionamentos sociais,<br />
Paulo Freire (1992) também, por outros contornos, trabalhou o alargamento da<br />
política, discutindo uma processualística responsável pela manutenção dos mecanismos<br />
que fortalecem opressores e oprimidos.<br />
Ressaltou as relações entre políticas, culturas e existências sócio-humanas, sustentando<br />
po<strong>de</strong>res arbitrários e opressores, que ao invés <strong>de</strong> se instalarem exclusiva-<br />
Célia Linhares<br />
159
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
160<br />
mente, numa entida<strong>de</strong> externa, se alojam com tensões e complacências, nos sentimentos<br />
e afetos do oprimido, subjugando-o.<br />
De toda forma, para romper essa submissão, não po<strong>de</strong> ser dispensado nem o<br />
<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, nem as condições concretas <strong>de</strong> libertação, que precisam ser criadas<br />
e mobilizadas. Por isso, Paulo Freire valorizou a educação para a liberda<strong>de</strong>, como<br />
um exercício <strong>de</strong> autonomia, sempre inconcluso, em que os oprimidos se apropriam<br />
da vida, do mundo, para refazê-lo.<br />
Esses novos tipos <strong>de</strong> movimentos sociais, mesmo sob silenciamentos e suspeitas<br />
acadêmicas, foram construindo outras formas <strong>de</strong> ações políticas, intensificando solidarieda<strong>de</strong>s<br />
em circuitos crescentes, capilarizando-se e encontrando-se com aqueles até então<br />
banidos da fruição dos bens materiais e imateriais que a socieda<strong>de</strong> vinha produzindo.<br />
O avanço do capitalismo com suas forças necrófilas, foi <strong>de</strong>rrubando fronteiras<br />
(como entre as Alemanhas) para reduzir a criação <strong>de</strong> mundos possíveis, proclamando a<br />
urgência <strong>de</strong> sofisticar, globalizando um mundo único; mundo que as políticas neoconservadoras<br />
e neoliberais preten<strong>de</strong>m infligir a tudo e a todos, como o Império irrecusável.<br />
Mas o preço da participação nesse império é não somente alto, muito alto, mas<br />
impagável, pois atinge <strong>de</strong> muitos modos a vida, o planeta, os corpos, enfim, toda uma<br />
múltipla realida<strong>de</strong>, enredando-os em relações agenciadoras em que nem faltam coerções<br />
cruéis e explícitas, nem tão pouco manipulações sutis e sedutoras.<br />
Assim, apesar das ca<strong>de</strong>ias relacionais que se instalam e se apresentam como re<strong>de</strong>s<br />
inescapáveis, emerge <strong>de</strong>sse cerceamento formas múltiplas <strong>de</strong> afirmações <strong>de</strong> vida que<br />
vão instituindo fagulhas com que se constroem possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> outros mundos mais<br />
solidários, em que as multiplicida<strong>de</strong>s se dispersam e confluem diferindo e singularizando<br />
sujeitos coletivos e individuais, pelas inter<strong>de</strong>pendências entre objetos e sujeitos,<br />
rompendo com as formas <strong>de</strong> organização binária da vida (Lazaratto, 2006).<br />
Portanto, escapando <strong>de</strong> concepções e práticas endurecidas pela imutabilida<strong>de</strong> das<br />
utopias, Negri e Hardt (2001) vão ressignificar a concepção e a prática <strong>de</strong> multidão,<br />
tomando-a como resistência, multiplicida<strong>de</strong> e potência, atualizando-a pela apropriação<br />
dos circuitos cibernéticos.
É bom observar o comportamento das multidões em suas iniciativas que tomam<br />
celulares para mobilização social que se dispersa, atuando <strong>de</strong> modo livre, mas confluindo<br />
na causa comum <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa da vida, da liberda<strong>de</strong>. Por isso, valorizam a pluralida<strong>de</strong><br />
dos sujeitos e instrumentos reinventando, em sintonia com nosso tempo,<br />
militâncias interativas.<br />
Vale concluir lembrando a analogia que Negri (2001) faz entre as multidões e<br />
Francisco <strong>de</strong> Assis: “(...) encontramo-nos na situação <strong>de</strong> Francisco, propondo contra<br />
a miséria do po<strong>de</strong>r a alegria do ser. Esta é a revolução que nenhum po<strong>de</strong>r controlará”.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
Para minha mãe Alice e minha irmã Anna Maria<br />
que, em meio a labirintos, me fizeram encontrar movimentos sociais,<br />
que se recriam e com os quais me reinvento sem parar.<br />
u Estado <strong>de</strong> exceção. Giorgio Agamben. Boitempo, 2004.<br />
u Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Walter Benjamin. Brasiliense, 1993.<br />
u I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: a face oculta dos novos movimentos sociais. Tilman Evers. In: Revista<br />
Novos Estudos CEBRAP, vol.2, nº 4, Abril <strong>de</strong> 1984.<br />
u Microfísica do po<strong>de</strong>r. Michel Foucault. Organização e Tradução <strong>de</strong> Roberto Machado.<br />
Edições Graal, 1984.<br />
u Educação como prática da liberda<strong>de</strong>. Paulo Freire. Paz e Terra, 1992.<br />
u Império. Michael Hardt & Antonio Negri. Record, 2001.<br />
u As revoluções do capitalismo. Maurizio Lazzarato. Civilização Brasileira, 2006.<br />
u Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos<br />
trabalhadores da Gran<strong>de</strong> São Paulo, 1970-80. E<strong>de</strong>r Sa<strong>de</strong>r. Paz e Terra, 1988.<br />
Célia Linhares<br />
161
Nos caminhos da Maré<br />
o
[Lene Nunes]<br />
Meu nome é Marilene Nunes, nasci numa cida<strong>de</strong>zinha do Espírito Santo chama-<br />
Mda Mimoso do Sul. A minha vinda para o Rio <strong>de</strong> Janeiro aconteceu quando<br />
ainda era criança. Como toda criança que mora no interior, sempre ouvi muitas<br />
histórias contadas por minha mãe, lembro que ficava horas sentada na porta <strong>de</strong> casa<br />
ao anoitecer, ouvindo mamãe contar contos <strong>de</strong> assombração, <strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iros, histórias<br />
<strong>de</strong> vida, etc.<br />
O tempo foi passando, me mu<strong>de</strong>i e ainda era pré-adolescente quando cheguei à<br />
Maré, vinda <strong>de</strong> Del Castilho, removida da avenida Suburbana. Assim que cheguei,<br />
achei tudo muito estranho, a casa era chamada <strong>de</strong> “Dúplex”, porque tinha dois<br />
andares (embaixo ficava sala, cozinha, banheiro e em cima dois quartos), havia uma<br />
caixa d’água instalada, mas não tinha água encanada. A minha casa ficava numa parte<br />
já aterrada da Maré, na comunida<strong>de</strong> Nova Holanda, eu visitava várias colegas que<br />
moravam nas palafitas, era divertido e ao mesmo tempo perigoso quando andava nas<br />
pontes sobre as águas e no calor era gostoso, porque sempre molhava meus pés. Outra<br />
diversão era carregar água com o “rola-rola” ou “lata na cabeça” para encher a caixa<br />
d’água. (Era difícil conseguir água, porque tinha que sair pedindo nas casas distantes.)<br />
A minha entrada nesse universo <strong>de</strong> contar histórias aconteceu através <strong>de</strong> uma amiga<br />
que me informou que haveria uma Oficina <strong>de</strong> Contação <strong>de</strong> História no CEASM<br />
(Centro <strong>de</strong> Estudos e Ações Solidárias da Maré), logo me interessei, pois sempre gostei<br />
<strong>de</strong> ouvir e contar histórias para os meus filhos. Fiz a inscrição e fui entrevistada, mas<br />
saí <strong>de</strong> lá com a certeza <strong>de</strong> que não seria selecionada, pois a faixa etária exigida era <strong>de</strong><br />
163
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
164<br />
16 a 21 anos. Até então, só conhecia a ONG através <strong>de</strong> comentários dos moradores.<br />
A ONG CEASM foi fundado em 1997, por alguns moradores universitários que,<br />
a partir <strong>de</strong> suas ações <strong>de</strong> militância <strong>de</strong>ntro da comunida<strong>de</strong>, viram a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
proporcionar à comunida<strong>de</strong> o acesso à universida<strong>de</strong> através do “pré-vestibular comunitário”,<br />
o primeiro projeto da instituição. O CEASM atua nas áreas <strong>de</strong> educação, comunicação<br />
e cultura. Como moradora, acho muito importante participar <strong>de</strong>sse resgate e<br />
valorização da história local, passar para os jovens <strong>de</strong> hoje toda essa luta e resistência,<br />
mostrar que seus pais e avós foram agentes importantes nesse processo <strong>de</strong> construção<br />
do Bairro, é apresentar a Maré <strong>de</strong> uma forma diferente do que é mostrado na mídia.<br />
Ao saber que fui selecionada, <strong>de</strong>i um grito <strong>de</strong> alegria. O primeiro encontro logo<br />
foi marcado e, então, foi iniciada a oficina. Fui até o encontro feliz da vida, pensando<br />
já no que ia contar caso pedissem, pensei comigo: Acho que vão nos ensinar a contar<br />
histórias para crianças, literatura infantil, era uma vez a princesa... Porém, fiquei<br />
surpresa com o andamento da oficina, foi muito além do que imaginava, trabalhei<br />
com dinâmicas, música, som, expressão corporal, leituras e durante uma ativida<strong>de</strong><br />
diária, on<strong>de</strong> os participantes contavam suas histórias <strong>de</strong> vida, foi confeccionado, em<br />
pequenas costuras, um gran<strong>de</strong> tapete colorido que até hoje é utilizado nas contações.<br />
O que mais me atraiu foi saber que ia contar as histórias do bairro da Maré, pesquisar<br />
e entrevistar antigos moradores e a partir disso formular um repertório <strong>de</strong> histórias,<br />
causos e lendas da região da Maré.<br />
A partir da oficina surgiu o grupo Maré <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>, com jovens e adultos do Bairro<br />
da Maré. Demos início ao trabalho com a proposta <strong>de</strong> atuação nas áreas da cultura e<br />
educação <strong>de</strong>ntro da comunida<strong>de</strong>, oferecendo às escolas da região oficinas <strong>de</strong> histórias<br />
com o intuito <strong>de</strong> divulgação e valorização da memória local. Juntamente com o grupo<br />
foi iniciado o primeiro trabalho, duas vezes por semana, na Escola Municipal IV<br />
Centenário, Maré. O encontro com as turmas era realizado no pátio, embaixo <strong>de</strong> uma<br />
árvore on<strong>de</strong> era estendido o imenso tapete colorido. Nos encontros, eram realizadas<br />
ativida<strong>de</strong>s e brinca<strong>de</strong>iras lúdicas, como jogos <strong>de</strong> memória e quebra-cabeça com fotos da<br />
Maré antiga, assim os alunos pu<strong>de</strong>ram conhecer um pouco mais o local on<strong>de</strong> moram e
suas transformações ao longo do tempo. A partir do trabalho feito com o livro “Contos<br />
e Lendas da Maré”, os alunos eram estimulados a ler, conhecer, criar e contar outras<br />
histórias. O mais interessante é que a partir da imaginação <strong>de</strong> cada um, iam surgindo<br />
através <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos e escritos novas maneiras <strong>de</strong> recontar os contos do livro. Percebi<br />
que, a partir do livro, criou-se um diálogo entre os jovens e seus pais, uma vez que<br />
estes pais vivenciaram e conheceram personagens vivos <strong>de</strong> alguns causos, surge uma<br />
importância maior e um sentimento <strong>de</strong> pertencimento <strong>de</strong>ssas histórias, fazendo com<br />
que assim busquem ainda mais informações sobre esses fatos, cada local on<strong>de</strong> possivelmente<br />
aconteceram esses causos passaram a ser uma referência <strong>de</strong>ntro da Comunida<strong>de</strong>.<br />
Com a construção do Museu da Maré, em maio <strong>de</strong> 2006, minhas ações e as do<br />
grupo foram ampliadas para também aten<strong>de</strong>r o público diversificado, recebendo grupos<br />
agendados uma vez por semana com contação <strong>de</strong> histórias. Uns dos contos é o<br />
Casamento na palafita, que eu conto na varanda do Tempo da Casa, segundo tempo<br />
do museu (uma vez que a concepção o divi<strong>de</strong> em doze partes chamadas Tempos). E<br />
é <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa réplica que as pessoas recordam, choram e resgatam, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si,<br />
toda a memória aterrada, adormecida, <strong>de</strong> uma época vivida ali. Numa <strong>de</strong>ssas visitas<br />
que eu acompanhei, tive uma experiência com uma senhora que, ao entrar na réplica<br />
<strong>de</strong> uma palafita, construída <strong>de</strong>ntro do Museu, chorou pelas lembranças que vieram<br />
à tona, ao ver expostos ali vários objetos e pertences que fizeram parte <strong>de</strong> sua vida.<br />
Quando a levei até o velho fogão Cosmopolita 1 e falei do “pente-quente” 2 , foi uma<br />
emoção ainda maior, pois choramos juntas e lembrei-me da época em que minha mãe<br />
alisava meus cabelos com esse objeto.<br />
Outra experiência que vivi foi no Tempo do Medo. Em uma visita, a filha reconheceu<br />
a mãe, os irmãos e o primo numa foto, sentados na ponte, exposta ali, e<br />
contou para a mãe. Na semana seguinte, a mãe veio conhecer o Museu e ficou muito<br />
emocionada com tudo que viu, percebi que ela tinha pressa em chegar on<strong>de</strong> estava a<br />
tal foto, e, quando chegou perto, apontou um por um <strong>de</strong> seus familiares e disse: “O<br />
tempo passou, pois nesse retrato aqui, os meus cabelos eram pretos e agora estou com<br />
a cabeça branca. Ah, minha filha, meus meninos caíam muito <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa maré. E<br />
1. Marca <strong>de</strong> um fogão.<br />
2. Objeto que se esquentava ao fogo para alisar o cabelo (seria a prancha <strong>de</strong> hoje).<br />
Lene Nunes<br />
165
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
166<br />
eu mesma presenciei muita gente caindo <strong>de</strong>ssas pontes e alguns até morreram.”<br />
Minha atuação como contadora <strong>de</strong> história me possibilitou um envolvimento<br />
maior com um povo que lutou e resistiu à força do tempo, esse trabalho mexeu com<br />
meu passado. Em minha opinião, a arte <strong>de</strong> contar histórias é viajar, interpretar, viver,<br />
passear pelos caminhos por on<strong>de</strong> passam cada personagem, e contar as da Maré, é<br />
uma questão <strong>de</strong> honra, <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> e pertencimento.<br />
Como eu sempre digo: “Quem não tem passado não tem história.”<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Livro <strong>de</strong> contos e lendas da Maré. Vários autores. CEASM, Núcleo <strong>de</strong> produção<br />
editorial Maré das Letras, INFRAERO.<br />
u Guilherme Augusto Araújo Fernan<strong>de</strong>s. Mem Fox. Brinque-Book.<br />
u Contos tradicionais do Brasil. Luis da Câmara Cascudo. Global.<br />
u Maré, vida na favela. Ivaldo Bertazzo, Drauzio Varella, Paola Berenstein Jacques. Casa<br />
da Palavra.
167
Entre hospitais gerais<br />
e psiquiátricos:<br />
histórias humanas e literárias<br />
como um rio <strong>de</strong> caudaloso fio,<br />
tecendo re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> encontros<br />
na diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afluências<br />
do viver saudável<br />
o
[Kika Freyre]<br />
Uma Contadora e um livro <strong>de</strong> histórias. Uma enfermaria e várias crianças. Foi<br />
Uassim que os contos chegaram ao Hospital Universitário Oswaldo Cruz, no Recife<br />
(Brasil), para que pu<strong>de</strong>ssem construir laços <strong>de</strong> parceria com o tratamento quimioterapêutico<br />
e cardiológico <strong>de</strong> crianças.<br />
Vieram fazer parte do Programa A Arte na Medicina às vezes cura, <strong>de</strong> vez em quando<br />
alivia, mas sempre consola, da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Médicas da UPE (Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Pernambuco), que já contava com oficinas <strong>de</strong> artes plásticas, fotografia e vários<br />
instrumentos musicais. Para estas aulas, as crianças precisavam ir até a Escolinha<br />
<strong>de</strong> Artes e Iniciação Musical, no próprio hospital. Mas e aí? e quando estas crianças<br />
estavam em processo <strong>de</strong> quimioterapia? E quando as suas <strong>de</strong>fesas, <strong>de</strong> tão baixas não as<br />
<strong>de</strong>ixavam sair da enfermaria? Que fariam elas? Daí a i<strong>de</strong>ia da Oficina <strong>de</strong> Contos, para<br />
levar as histórias ao pé da cama, ao pé do ouvido, sobretudo às crianças que, cheias <strong>de</strong><br />
achaques e cateteres, mal podiam ficar <strong>de</strong> pé.<br />
As histórias foram chegando comigo e logo se propagavam por todo aquele andar.<br />
As crianças pediam e a médica prescrevia: amor todos os dias, remédios tal e tal hora<br />
e ao menos uma história por semana. E assim, se cumpria a rotina terapêutica, sempre<br />
quebrada pela chegada <strong>de</strong> gente nova ou pela alta <strong>de</strong> quem lá estava – às vezes<br />
também se quebrava pela morte, mas isso é uma outra história. E rápido, como efeito<br />
<strong>de</strong> medicação intravenosa, os contos passaram a fazer parte do tratamento e, uma vez<br />
por semana, cada criança recebia a sua dose <strong>de</strong> fantasia.<br />
Mas não era só <strong>de</strong> fantasia que a Oficina <strong>de</strong> Contos vivia. Porque as histórias<br />
169
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
170<br />
literárias, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> contadas, acabavam por convidar histórias humanas a fazerem<br />
parte daquele cenário. Como numa trança. Como num encontro <strong>de</strong> águas <strong>de</strong> rios<br />
diferentes, <strong>de</strong>saguando num mesmo mar. É isso! E assim, com o fechar do livro, era<br />
passado o fio da palavra às crianças, on<strong>de</strong> se partilhava alegrias e <strong>de</strong>sassossegos, medos<br />
e surpresas, encontros, dúvidas, <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>zas. A vida e a morte caminhavam juntas,<br />
lado a lado, e não em sentidos opostos como se costuma pensar. As crianças falavam<br />
da sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> casa, dos irmãos, da escola, dos animais <strong>de</strong> estimação, da comida<br />
feita pela sua mãe e também falavam <strong>de</strong> outras crianças que, com o seu mesmo diagnóstico,<br />
encerravam ali suas histórias, quando elas pareciam estar apenas começando.<br />
A palavra guardava para nós um prestígio <strong>de</strong> nobreza. E a estas histórias humanas,<br />
começamos a dar-lhes fisionomia <strong>de</strong> contos, criando um mundo on<strong>de</strong> morassem<br />
para sempre todas as possibilida<strong>de</strong>s, já que, ali, elas eram tão tolhidas pelas rotineiras<br />
normas do tratamento. E, neste mundo, entre o papel e a minha caneta, leite puro<br />
po<strong>de</strong>ria ter gosto <strong>de</strong> leite com café pra agradar menino, uma vaca podia morrer <strong>de</strong><br />
olhos abertos porque foi assim que menino viu sua avó morrer, as injeções podiam se<br />
abraçar <strong>de</strong>ntro da gela<strong>de</strong>ira pra curar solidão <strong>de</strong> menina, mãe-pomba podia dar cuscuz<br />
na boca do filhote pra agradar outro menino, e menina podia entrar até na fogueira<br />
pra abraçar a mãe sem se queimar, <strong>de</strong> tanta sauda<strong>de</strong> que ela tinha.<br />
E em reverência a estas histórias, criadas ali na Oncologia, cortejadas pela dificulda<strong>de</strong>,<br />
editamos um primeiro livro cheio <strong>de</strong> histórias e, logo, o segundo. E a palavra<br />
continuava a ser levada pela correnteza da Oficina <strong>de</strong> Contos, que foi então <strong>de</strong>saguar<br />
também na Enfermaria da Cardiologia Pediátrica. O processo continuou seguindo o<br />
mesmo fio, reverenciando histórias humanas a ofertar-lhes histórias literárias. E editamos<br />
o terceiro e o quarto livros. Depois uma coletânea <strong>de</strong>les todos com livro e CD.<br />
As histórias humanas passaram a inspirar a criação <strong>de</strong> histórias literárias e, quando<br />
eu chegava, as crianças já anunciavam ter histórias inteirinhas morando em suas<br />
cabeças para me contar. Compomos um movimento bonito, uma sintonia mesmo,<br />
como as ondas e a areia, <strong>de</strong> ir e vir, <strong>de</strong> esperar pelo que se sabe chegar e chegar com<br />
maciez, com maciez <strong>de</strong> se estar tocando em sonhos infantis, uma imensa coleção <strong>de</strong><br />
tesouros, rara, sensível, <strong>de</strong>sigual.
E se os contos nos encantam tanto, nos inspiram tanto e neles nos reconhecemos<br />
tanto, é porque eles trazem expressas em metáforas as nossas necessida<strong>de</strong>s primordiais<br />
<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com a vida, <strong>de</strong> viver as suas aventuras, e o fio da história vem como um<br />
rio, nos carregando na sua correnteza para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la, e estar em uma enfermaria<br />
<strong>de</strong> hospital, <strong>de</strong>finitivamente, não nos impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> nada. Porque através da partilha da<br />
palavra neste cenário montado entre Contador, criança, história e hospital, o Contador<br />
que também escuta a história da criança busca dosificar (e também dulcificar)<br />
a carga pesada <strong>de</strong> suas histórias humanas, a aproximação com a morte, com o medo,<br />
com a solidão, com a dúvida, com a dor. É diferente <strong>de</strong> fingir que elas não existem,<br />
atenção! Mas é tentar buscar um equilíbrio, subjetivo, claro, sem receitas, entre toda<br />
a mazela emocional que a aflige e a promessa <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> perpétua que encerra as<br />
histórias literárias. E assim, as histórias acabam por às vezes ajudar a curar, n’outras a<br />
aliviar e n’outras ainda a consolar crianças e pais em situação <strong>de</strong> longo internamento.<br />
Os pais se aproximam mais dos filhos, e o diálogo flui mais transparente, brando, feito<br />
água <strong>de</strong> nascente. E cada vez mais os pais escolhem participar e partilhar histórias<br />
ouvidas, vividas e inventadas.<br />
Porque cada vez mais as pessoas buscam voltar ao tempo <strong>de</strong>ste contato perdido,<br />
<strong>de</strong> partilhar o olhar, o gesto terno, a graça, a verda<strong>de</strong> das palavras. E o Contador <strong>de</strong><br />
<strong>Histórias</strong> ganha força neste cenário, porque, para além da história que amortece o<br />
correr dos batimentos cardíacos, amacia a velocida<strong>de</strong> da pressão arterial, ele, o Contador,<br />
oferece no hospital este ambiente <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s. Traz um viver feliz para<br />
sempre provável e a cada encontro, perpetua esta probabilida<strong>de</strong>. E acreditar nesta<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cura po<strong>de</strong> inverter muitos papéis <strong>de</strong> doenças. Porque esta crença<br />
acaricia a autoestima, passa um bálsamo na imunida<strong>de</strong>, elevando os números das<br />
<strong>de</strong>fesas orgânicas. Fisiologicamente as histórias mexem conosco também. Elas entram<br />
pelos nossos poros, pelos nossos olhos, pelas janelas da nossa alma e se alojam ali,<br />
lá <strong>de</strong>ntro, no sótão do nosso coração e a gente sabe que o sangue que passa, carrega<br />
tudo, inclusive os sonhos <strong>de</strong> cura que as histórias plantam lá naquele cantinho tão<br />
‘<strong>de</strong>savistado’ <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós.<br />
...<br />
Kika Freyre<br />
171
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
172<br />
Mais uma vez, uma Contadora e um livro <strong>de</strong> histórias. Uma Casa para tratamento<br />
psiquiátrico <strong>de</strong> adultos no Recife/Brasil (NAPPE) e outra em Braga/Portugal (Casa<br />
<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> do Bom Jesus).<br />
Também aqui os contos chegavam como fios, tentando alinhavar o emaranhado <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sintegrações que faziam sofrer a alma das pessoas que ali buscavam cura, alívio, consolo.<br />
As pessoas com esquizofrenia vivem um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegração <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong><br />
e os contos ajudam a montar este mosaico <strong>de</strong>sconectado a partir do reconhecimento<br />
<strong>de</strong> traços próprios nas características dos personagens. Por alguns momentos,<br />
uma história que pertence a toda a humanida<strong>de</strong> passa a pertencer a uma só pessoa,<br />
como se falasse <strong>de</strong>la, como se houvesse sido escrita pra ela, tamanha a empatia com seus<br />
feitos e personagens.<br />
Os contos são oferecidos como acalantos, como uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> embalar<br />
sonhos reais, que estavam perdidos ou <strong>de</strong>sacreditados. Eles carregam o cheiro da esperança<br />
um dia vivida, sobretudo da esperança <strong>de</strong> se viver um final feliz em seu próprio<br />
conto real, em sua história <strong>de</strong> vida.<br />
A estrutura literária dos contos possibilita a reestruturação do pensamento esquizofrênico:<br />
quando escuta um conto, a pessoa segue o seu fio, seu trajeto e assim começa<br />
a or<strong>de</strong>nar seus pensamentos quebrados, <strong>de</strong>sconectados a partir <strong>de</strong> uma mesma or<strong>de</strong>m<br />
e então é possível se compreen<strong>de</strong>r muitas <strong>de</strong> suas atitu<strong>de</strong>s, dos seus <strong>de</strong>lírios, das suas<br />
ausências, das suas <strong>de</strong>sintegrações com a ‘vida comum’.<br />
A<strong>de</strong>mais dos contos, também é rico se trabalhar com as imagens que estes contos<br />
suscitam nas pessoas. Com estas imagens, propomos a conexão entre a história<br />
literária e a história <strong>de</strong> vida, história humana. Uma conexão com o que há <strong>de</strong> saudável<br />
nesta pessoa que sofre e buscar fazer com que esta salubrida<strong>de</strong> se manifeste frente<br />
à doença. É um duelo difícil, mas possível. Ao escutar, escrever, ler e contar esta<br />
história ao longo do seu tratamento, a pessoa que está doente começa a tomar posse<br />
da sua própria história, vai juntando as linhas para tecer-se como o croché <strong>de</strong> um novo<br />
sujeito que agora se reconhece e conhece o seu entorno e po<strong>de</strong> ir voltando a tomar as<br />
suas próprias <strong>de</strong>cisões e voltar a funcionar <strong>de</strong> forma ativa em sua vida; po<strong>de</strong>ndo falar
<strong>de</strong> si e conhecendo os seus limites, po<strong>de</strong> fazer com que as novas histórias os ampliem<br />
cada vez mais.<br />
Este é o objetivo <strong>de</strong> se trazer as histórias, do popular para o individual, do plural<br />
para o singular, e cuidar <strong>de</strong> feridas emocionais tão particulares e tão comuns. E nesta<br />
teia <strong>de</strong> diversida<strong>de</strong>s, tínhamos a pluralida<strong>de</strong> humana, a constantemente enriquecer<br />
o nosso enredo:<br />
Esta menina aqui é Contadora <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>. Contou-nos uma história tão linda e tão interessante<br />
na passada quinta-feira, que eu pedi a cópia para reler todas as vezes que a coragem me<br />
faltar para resolver a minha vida. Eu nunca vi um lugar com Contadora <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>, mas<br />
aqui é assim. E foi a melhor coisa que me aconteceu aí <strong>de</strong>ntro. Eu quero esquecer que adoeci<br />
e tive que me internar estes <strong>de</strong>z dias por causa do meu marido, quero esquecer! Mas quero<br />
lembrar sempre <strong>de</strong>sta história porque ela me ajudou a resolver como a tecelã resolveu. E <strong>de</strong>pois<br />
eu percebi o que eu quero e percebi que não quero esta vida para mim, <strong>de</strong> trabalhar por quem<br />
só me quer para serviçal. Eu nunca vou esquecer esta história. Parece que a menina adivinhou<br />
e a trouxe mesmo para mim. Obrigada! Joca, 53 anos<br />
Para este trabalho com histórias, o diagnóstico pouco importa. O rótulo mais<br />
importante é o nome <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>stas pessoas – que também escolhem alcunhas<br />
para quando as suas frases aparecerem citadas. E sempre começamos a trabalhar em<br />
busca <strong>de</strong> se conhecer a história <strong>de</strong>ste nome que se carrega por toda biografia, que,<br />
para tanta gente, traz uma força <strong>de</strong>sigual. E, a partir daí, partilhamos enredos on<strong>de</strong> as<br />
pessoas traduzem capítulos das suas vidas... e das suas tantas mortes.<br />
São importantes as histórias para uma pessoa ouvir e vir a pensar sobre o que está a fazer<br />
da sua vida. Vico, 38 anos<br />
E cavando os alicerces dos seus trajetos, encontramos pessoas que foram se construindo<br />
enchidas <strong>de</strong> nada, carentes, carentes <strong>de</strong> tudo, inclusive <strong>de</strong> ouvidos para suas<br />
próprias histórias. E diante <strong>de</strong>ste manancial, fazemos juntas um trabalho arqueológico<br />
mesmo. Trabalhamos com memória, com acervo, com patrimônio imaterial. Trabalhamos<br />
com a leitura e a constante proposta <strong>de</strong> releitura dos fatos vividos em busca<br />
<strong>de</strong> um sentido para esta vida.<br />
Kika Freyre<br />
173
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
174<br />
Há histórias que trazem mistérios. Eu gosto do mistério das histórias. As nossas vidas também<br />
trazem mistérios. As histórias são as nossas vidas contadas aos poucos, <strong>de</strong> mistério em<br />
mistério. Carlota, 39 anos<br />
Trabalhamos com o que está guardado. Trabalhamos com o mistério e com os<br />
tantos vazios que às vezes passamos a vida inteira em busca <strong>de</strong> conseguir preencher.<br />
Trabalhamos com o que ficou retido daquele ‘eu’ que, com receio do mundo, encontrou<br />
no adoecer a única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conseguir sobreviver. Trabalhamos com a<br />
verda<strong>de</strong>. Não a verda<strong>de</strong> que se cria para se apresentar ao mundo, a verda<strong>de</strong> social, mas<br />
a verda<strong>de</strong> íntima, profunda, <strong>de</strong>sigual. Aquela que existia antes do mundo imprimir<br />
a nossa imagem em nós. Daí a importância da posse da nossa história. Da história<br />
legitimamente nossa, genuína. Construída com as linhas que contornam nosso semblante,<br />
que tatuam a nossa alma e nos acompanham por toda a caminhada; para que<br />
saibamos reconhecer quando aquele enredo ou aqueles personagens não fazem parte<br />
dos nossos capítulos e, assim, possamos construir e <strong>de</strong>marcar nossos parágrafos com<br />
os nossos próprios pontos finais.<br />
E peneirando os tesouros brotados entre histórias humanas e literárias, editamos<br />
dois livros com contos criados na partilha <strong>de</strong> olhares, palavras e silêncios.<br />
‘ A lenda das sementes e outras histórias bonitas (FREYRE, Kika [Org.], Ed. Livro<br />
Rápido, Olinda, 2006)<br />
‘ À margem <strong>de</strong> um sol poente… histórias <strong>de</strong> vários caminhos (FREYRE, Kika [Org.], Ed.<br />
Novo Estilo, Recife, 2007)<br />
E assim, seguimos buscando e partilhando o que há <strong>de</strong> saudável, nobre e rico,<br />
o que ainda está guardado no sótão do coração da alma, on<strong>de</strong> a doença po<strong>de</strong> até<br />
tentar chegar, mas não alcança. On<strong>de</strong> as metáforas da vida e os <strong>de</strong>sassossegos diários<br />
propõem novas esperanças a cada nascer do sol.
Ser mulher com doença mental é o nosso <strong>de</strong>sassossego dia-após-dia. É preciso ter força <strong>de</strong><br />
vonta<strong>de</strong> para que sejamos gran<strong>de</strong>s pessoas na socieda<strong>de</strong> e no meio em que estamos a viver.<br />
As histórias ajudam-nos a buscar esta força <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós, on<strong>de</strong> ela existe <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. As<br />
histórias ajudam-nos a não per<strong>de</strong>rmos a fé em nós. LaraLinda, 49 anos<br />
E isto é tudo.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u A Psicanálise dos contos <strong>de</strong> fadas. Bruno Bettelheim. Paz e Terra, 1980.<br />
u O que conta o conto? Jette Bonaventure. Paulus, 1992.<br />
u No terreno das histórias… sementes <strong>de</strong> uma medicina humanizada – histórias<br />
para acordar os homens e celebrar a vida. Kika Freyre & Paulo F. B. C .Mello.<br />
EDUPE, 2009.<br />
Kika Freyre<br />
175
Contos na prisão:<br />
um espaço<br />
chamado liberda<strong>de</strong><br />
o
[Rosana Mont’Alverne]<br />
Se tens um coração <strong>de</strong> ferro, bom proveito.<br />
O meu, fizeram-no <strong>de</strong> carne, e sangra todo dia.<br />
José Saramago<br />
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> sempre me fascinaram. Que magia era aquela, capaz <strong>de</strong><br />
Ctransportar, encantar, transformar, emocionar, divertir, unir, confortar? Qual seria<br />
a motivação <strong>de</strong>ssa gente portadora <strong>de</strong> histórias tão po<strong>de</strong>rosas? De on<strong>de</strong> vinha tamanha<br />
generosida<strong>de</strong>, para entregá-las nas horas mais necessárias? E o talento para transformar<br />
em arte o singelo ato <strong>de</strong> narrar? Com as histórias aprendi a fazer perguntas e a buscar<br />
respostas diretamente na fonte. Aprendi também que contamos as nossas próprias<br />
experiências. Não nos apaixonamos por um conto <strong>de</strong> fadas em vão. A partir <strong>de</strong>ssa<br />
reflexão, percebi <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha a minha própria vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar: da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
me expressar no mundo, <strong>de</strong> repartir minhas experiências <strong>de</strong> uma maneira lúdica e interessante,<br />
<strong>de</strong> ajudar o outro através da palavra do conto, do mesmo modo como sempre<br />
me senti confortada ao ouvir histórias. O discurso direto, as exortações e explanações<br />
meramente racionais, não possuem a força e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> tocar os corações, como uma<br />
história bem contada possui. O tempo do “era uma vez” é mágico; é um tempo verbal<br />
que só existe no faz <strong>de</strong> conta, terreno on<strong>de</strong> temos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolver nossas<br />
angústias por meio das aventuras e <strong>de</strong>sventuras dos heróis. Descobri que não estava sozinha,<br />
que mais alguém viveu os mesmos medos e inseguranças que eu. E isso fez pressão<br />
no meu peito: eu precisava compartilhar isso com os outros.<br />
Comecei contando para a família e os amigos. Na medida em que fui me profissionalizando,<br />
passei a me apresentar em associações, espaços culturais, escolas e<br />
empresas. Até que em 1998 propus ao Tribunal <strong>de</strong> Justiça, on<strong>de</strong> sou funcionária<br />
concursada, o Projeto Conto Sete em Ponto, constituído por espetáculos mensais <strong>de</strong><br />
177
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
178<br />
narração <strong>de</strong> histórias, sempre na última quinta-feira do mês, no melhor estilo Mushkil<br />
Gusha (se você ainda não conhece a história <strong>de</strong> Mushkil Gusha, não perca tempo,<br />
existem versões na internet). Durante os <strong>de</strong>z anos em que o projeto foi realizado nos<br />
auditórios daquela instituição, fizemos dois concursos, que revelaram novos talentos<br />
da arte narrativa e que resultaram em dois livros: Uma história para contar (2004) e<br />
<strong>Histórias</strong> que ouvi, histórias que vivi: o lado inusitado e pitoresco da Justiça Mineira (2005).<br />
O Conto Sete em Ponto hoje é realizado também em Ouro Preto e, em Belo Horizonte,<br />
os espetáculos acontecem mensalmente no Palácio das Artes.<br />
Os contos tradicionais e a literatura escrita, por possuírem ensinamentos que<br />
ultrapassaram séculos e regiões do mundo inteiro, têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> nos apontar<br />
direções, <strong>de</strong> produzir insights e <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> um longo sono. Alguns têm verda<strong>de</strong>iro<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> cura e parecem chegar na hora certa para nos auxiliar em momentos<br />
<strong>de</strong> escolhas difíceis, mudanças <strong>de</strong> fases <strong>de</strong> vida e início <strong>de</strong> novos projetos. Além do<br />
mais, uma roda <strong>de</strong> histórias é sempre uma diversão e um momento <strong>de</strong> religação com<br />
o que temos <strong>de</strong> mais humano: nossa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nos percebermos como seres em<br />
movimento; partes <strong>de</strong> um elo ancestral que nos une e nos lembra <strong>de</strong> nossa verda<strong>de</strong>ira<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Em um mundo cheio <strong>de</strong> padrões e mo<strong>de</strong>los a seguir e a consumir (roupas,<br />
comida, música, modo <strong>de</strong> vida etc.), as histórias nos ajudam a nos lembrar quem<br />
somos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> viemos e para on<strong>de</strong> vamos. Nesse trajeto, sem dúvida, estaremos mais<br />
seguros se acompanhados <strong>de</strong> uma boa história.<br />
Em setembro <strong>de</strong> 2004, recebi uma carta inusitada. O Juiz da Vara <strong>de</strong> Execuções<br />
Penais <strong>de</strong> Itaúna, Dr. Paulo Antônio <strong>de</strong> Carvalho, que conhecia o meu trabalho com<br />
a arte <strong>de</strong> contar histórias, convidou-me a ministrar oficinas semanais <strong>de</strong> contos para<br />
os presos da APAC <strong>de</strong> Itaúna — MG (Associação <strong>de</strong> Proteção e Assistência aos Con<strong>de</strong>nados).<br />
Arrematou o convite com um verso <strong>de</strong> Cecília Meireles: “Não faças <strong>de</strong> ti um<br />
sonho a realizar. Vai”. Confesso que dúvidas e medos me cercaram. Estaria pronta<br />
para a tarefa? Senti que chegava a hora <strong>de</strong> experimentar o po<strong>de</strong>r da palavra do contador<br />
<strong>de</strong> histórias no espaço da coerção, da punição, da privação da liberda<strong>de</strong>: a prisão.<br />
Lembrei-me da situação carcerária no Brasil, que, diga-se <strong>de</strong> passagem, é ampla-
mente conhecida <strong>de</strong> todos os brasileiros minimamente informados. O sistema penal<br />
brasileiro vem sofrendo modificações legislativas, muitas vezes por pressão da socieda<strong>de</strong>,<br />
que vê no recru<strong>de</strong>scimento das penas e do aparato penitenciário a solução<br />
para a questão da segurança pública e da <strong>de</strong>fesa social. Porém, cresce o número <strong>de</strong><br />
encarcerados e cresce também a criminalida<strong>de</strong>. Não é mais possível e nem útil nos<br />
negarmos a reconhecer que os criminosos são parte do mesmo tecido social do qual<br />
também fazemos parte.<br />
Nesse tecido, eles tanto influenciam quanto são influenciados. Trabalhar pela<br />
recuperação real <strong>de</strong>ssas pessoas, a fim <strong>de</strong> que possam se reintegrar <strong>de</strong> forma harmoniosa<br />
na comunida<strong>de</strong>, oferecer-lhes a oportunida<strong>de</strong> da socialização em lugar <strong>de</strong> excluílas<br />
parece ser a melhor alternativa, senão a única, na busca <strong>de</strong> uma solução <strong>de</strong>finitiva<br />
do problema. Essa não é uma tarefa só do aparato estatal, mas <strong>de</strong> toda a socieda<strong>de</strong>.<br />
Mas é preciso esclarecer que a APAC <strong>de</strong> Itaúna é um estabelecimento prisional<br />
diferente, uma associação civil juridicamente constituída, sem fins lucrativos e tem<br />
apoio dos Po<strong>de</strong>res Judiciário e Executivo do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais. Sua filosofia <strong>de</strong><br />
trabalho é a <strong>de</strong> que um bandido recuperado é um bandido a menos nas ruas. Lá não<br />
há policiais nem agentes carcerários. Voluntários atuam em diversas áreas e os presos<br />
tomam conta dos presos. A APAC <strong>de</strong> Itaúna é referência mundial em recuperação <strong>de</strong><br />
presos e foi o solo fértil para o <strong>de</strong>senvolvimento do trabalho com os contos.<br />
Nem é preciso dizer que aceitei o convite. Quantas portas se abrem quando nos<br />
permitimos entrar na aventura e nos lançamos com paixão em nosso ofício!<br />
Os participantes – todos con<strong>de</strong>nados cumprindo pena em regime fechado –<br />
começaram a escutar histórias, contar, recontar, ler e criar, além <strong>de</strong> ter aulas sobre<br />
postura corporal, técnica vocal, expressão oral, gestual e visual e outros segredos que<br />
formam o bom contador <strong>de</strong> histórias. Nas improvisações, a criativida<strong>de</strong> e a memória<br />
são estimuladas; surgem belíssimas histórias, transcritas e incorporadas ao repertório<br />
do grupo. Antigos contos <strong>de</strong> fadas são recontados e discutidos, gerando reflexão e<br />
aprendizagem. Os contos surgem como opção <strong>de</strong> resignificação <strong>de</strong> vidas, <strong>de</strong> encantamento<br />
da própria história, que passa a ter valor. Esse é o principal objetivo do projeto:<br />
Rosana Mont’Alverne<br />
179
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
180<br />
enriquecer o imaginário dos presos, trazendo-lhes novas representações, situações<br />
semelhantes às suas, mas tratadas <strong>de</strong> outra maneira. Trata-se <strong>de</strong> oferecer-lhes a chance<br />
<strong>de</strong> se recriarem em uma nova história on<strong>de</strong> a queda seja um aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> percurso e<br />
não um <strong>de</strong>stino irrefutável. Um aci<strong>de</strong>nte com o qual se apren<strong>de</strong> o que tiver para ser<br />
aprendido e se avança no caminho.<br />
Como resultado <strong>de</strong>sse trabalho, foi formado um Grupo – os Encantadores <strong>de</strong><br />
<strong>Histórias</strong> – que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004 vem representando a APAC <strong>de</strong> Itaúna em outras cida<strong>de</strong>s,<br />
sensibilizando as comunida<strong>de</strong>s para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outro olhar e novas atitu<strong>de</strong>s<br />
quanto à recuperação <strong>de</strong> presos. O Grupo já se apresentou também em diversas universida<strong>de</strong>s,<br />
Encontros Internacionais <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> no Rio e em São<br />
Paulo, presídios, Centros <strong>de</strong> Internação <strong>de</strong> Menores Infratores, Encontros <strong>de</strong> Magistrados,<br />
escolas, creches e teatros. Também já foi publicado o primeiro livro <strong>de</strong> autoria<br />
coletiva do Grupo: O segredo da caixa (2006). A escolha do nome do Grupo, sugerida<br />
pelos próprios presos, foi uma grata revelação: Encantadores <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>. A beleza do<br />
nome reflete um po<strong>de</strong>roso <strong>de</strong>sejo se não apenas contar, mas encantar, o que, segundo<br />
os dicionários, significa: “exercer encantamento em; tornar-se encantado”. Não esperava<br />
o nível <strong>de</strong> envolvimento do grupo com a proposta nem o quanto apren<strong>de</strong>ria<br />
com eles. Durante as primeiras oficinas, lembrava-me recorrentemente das palavras<br />
<strong>de</strong> Guimarães Rosa: “mestre é aquele que <strong>de</strong> repente apren<strong>de</strong>”.<br />
Falar <strong>de</strong> arte-educação e contos <strong>de</strong> fadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>ia como possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> recuperação po<strong>de</strong> parecer, à primeira vista, mais uma utopia. Será que contadores<br />
<strong>de</strong> histórias e esses teóricos da arte-educação já entraram em uma penitenciária pelo<br />
menos uma vez na vida? Será que eles acham que contando histórias ou ouvindo as<br />
histórias dos presos, estes vão sair <strong>de</strong> lá bonzinhos e nunca mais voltarão ao crime?<br />
Certo é que por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> cada vez mais armada, on<strong>de</strong> as empresas <strong>de</strong><br />
segurança proliferam e auferem lucros exorbitantes, on<strong>de</strong> crescem os condomínios<br />
fechados, on<strong>de</strong> impera a truculência policial, a violência urbana, os morros ocupados<br />
por traficantes e on<strong>de</strong> os altos índices <strong>de</strong> morte violenta causam indignação a poucos,<br />
há um sentimento: o MEDO.
Como disse o então Presi<strong>de</strong>nte da APAC <strong>de</strong> Itaúna, atual Presi<strong>de</strong>nte da FBAC<br />
(Fraternida<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Assistência aos Con<strong>de</strong>nados), Val<strong>de</strong>ci Antônio Ferreira:<br />
A socieda<strong>de</strong> vive hoje o drama do medo. É como se ninguém mais pu<strong>de</strong>sse se sentir seguro.<br />
Medo do terrorismo. Medo do tráfico <strong>de</strong> drogas. Medo da violência e da poluição. Medo<br />
do <strong>de</strong>semprego e da solidão. Medo da guerra e do abandono. Medo da doença e da velhice.<br />
Medo das balas perdidas e das balas não encontradas. Medo <strong>de</strong> que chova muito e leve as<br />
casas. Medo <strong>de</strong> que não chova e aumente a fome. Medo da frau<strong>de</strong> e da corrupção. Medo da<br />
verda<strong>de</strong> que dói e da mentira que mata.<br />
Os presidiários também vivem nesse constante estado <strong>de</strong> medo. Temem as fugas,<br />
as rebeliões, a doença, a morte na calada da noite, além <strong>de</strong> temerem o que está além<br />
do seu controle, no mundo exterior: a reação da família, a infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> do cônjuge, o<br />
rigor do julgamento e a (não) assistência do advogado. O medo funciona como uma<br />
doença, afetando o nosso bem-estar e disseminando insegurança. A cura, ou seja, a<br />
restauração da tranquilida<strong>de</strong>, é uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos nós. Val<strong>de</strong>ci Antônio Ferreira<br />
também percebeu esses sentimentos e concluiu:<br />
Nesse momento, me vem à memória as minhas avós já falecidas, minha mãe e meu pai em<br />
volta do fogão à lenha, comendo biscoito frito e tomando café. Recordo-me, com sauda<strong>de</strong>s,<br />
das histórias contadas e recontadas para afastar o nosso medo <strong>de</strong> criança. (...) Tem gente<br />
que conta histórias para afastar o medo; e essas histórias contadas e recontadas possuem o<br />
dom <strong>de</strong> encantar a vida.<br />
Contra o medo – nosso e dos presos – acredito na contribuição da força da palavra<br />
do conto ou da palavra encantada ou, ainda, na força na “boa palavra”, que carrega<br />
consigo a sabedoria e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar nova interpretação a fatos do passado<br />
que não po<strong>de</strong>m ser mudados. A palavra do contador <strong>de</strong> histórias, trabalhada artisticamente,<br />
ganha o atrativo estético, que cativa e encanta o ouvinte, conduzindo-o até<br />
a sabedoria e aos ensinamentos guardados no conto. A arte permite que o ouvinte se<br />
integre ao que é sublime, enriquecendo a experiência.<br />
Na atualida<strong>de</strong>, o retorno da prática da narração <strong>de</strong> histórias obe<strong>de</strong>ce a uma necessida<strong>de</strong><br />
que extrapola a intenção profissional do artista, mas favorece a função social da<br />
Rosana Mont’Alverne<br />
181
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
182<br />
prática e o bem-estar individual. A integração <strong>de</strong> um indivíduo mais equilibrado com o<br />
mundo ao seu redor é um dos efeitos que se <strong>de</strong>staca a partir do diálogo com os contos.<br />
Um presidiário é duplamente con<strong>de</strong>nado. Primeiro pela Justiça e, nesse caso,<br />
cumpre pena pelos seus próprios <strong>de</strong>litos praticados. Não é o caso <strong>de</strong>, aqui, entrar<br />
nesse mérito. Quanto à segunda con<strong>de</strong>nação, sim. A segunda con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> um<br />
presidiário é pela linguagem. Esta o aprisiona num estado <strong>de</strong> pouca mobilida<strong>de</strong>, pois,<br />
muitas vezes, é pobre em imagens e vazia <strong>de</strong> sentidos; e, ainda que não o seja, a<br />
repetição incessante <strong>de</strong> um mesmo “trecho” da própria história – esse que o levou à<br />
condição <strong>de</strong> presidiário – ten<strong>de</strong> a fixá-lo num estranho curriculum repetido como uma<br />
litania que, aos poucos, o caracteriza como lenda viva, que fascina e atrai a curiosida<strong>de</strong><br />
mórbida em seu entorno.<br />
Muitos po<strong>de</strong>m sugerir que a superpopulação carcerária, as condições <strong>de</strong>ficientes<br />
<strong>de</strong> trabalho dos presos ou o ócio completo, a falta <strong>de</strong> higiene, a promiscuida<strong>de</strong> sexual,<br />
a assistência psicológica <strong>de</strong>ficiente ou inexistente e problemas como corrupção e violência<br />
são fatores que precisam ser enfrentados prioritariamente. E estão certos. É<br />
preciso uma conjugação <strong>de</strong> forças, trabalho e método a fim <strong>de</strong> que se obtenha o ambiente<br />
propício para o plantio <strong>de</strong> sementes como, por exemplo, iniciativas no campo da<br />
arte-educação. No caso, as sementes das histórias. Mas é bom lembrar que, no Brasil<br />
ou em qualquer lugar do mundo, nem sempre po<strong>de</strong>mos contar com as condições<br />
i<strong>de</strong>ais para começar um empreendimento. Às vezes, é preciso simplesmente começar.<br />
Muito cedo aprendi que nada nessa vida vem <strong>de</strong> graça, tudo é fruto <strong>de</strong> esforço e muito<br />
trabalho, como dizia minha mãe. Também meu avô, com sua sabedoria <strong>de</strong> matuto,<br />
ensinava a evitar os atalhos nos longos caminhos a percorrer na construção dos sonhos:<br />
se atalho fosse bom, não existiriam os arredores, dizia, entre uma baforada e outra do<br />
cigarrinho <strong>de</strong> palha. Aprendi, mais tar<strong>de</strong>, que Gaston Bachelard lhes daria razão ao<br />
afirmar, na sua obra O direito <strong>de</strong> sonhar, que nada é dado, tudo é construído. Se é assim,<br />
tudo é possível, até transformar presidiários em cativantes contadores <strong>de</strong> histórias.<br />
Por que não?
Leituras Inspiradoras<br />
u As prisões da miséria. Loïc Wacquant. Jorge Zahar Editor, 2001.<br />
u Mulheres que correm com os lobos. Clarissa P. Estés. Rocco, 1992.<br />
u Le droit <strong>de</strong> rêver. Gastón Bachelard. PUF, 1970.<br />
u Correspondências do cárcere: um estudo sobre a linguagem <strong>de</strong> prisioneiros.<br />
Rosana <strong>de</strong> Mont’Alverne Neto. Dissertação <strong>de</strong> Mestrado em Educação. UFMG, 2009,<br />
disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/FAEC-<br />
84PJD5<br />
Rosana Mont’Alverne<br />
183
<strong>Histórias</strong> em sinais<br />
o
[Lo<strong>de</strong>nir Karnopp]<br />
Aprimeira aproximação que tive com pessoas surdas e a língua <strong>de</strong> sinais foi<br />
A através <strong>de</strong> Cursos <strong>de</strong> Libras e, posteriormente, como professora <strong>de</strong> português em<br />
uma escola <strong>de</strong> surdos. Aproximação que trouxe e traz rupturas, possibilida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>slocamentos.<br />
Estranhamento diante da língua e da cultura surda. Fala suspensa, sinais<br />
que emergem, sinais que capturam o olhar e a atenção. Sinais que contam histórias.<br />
“Atenção aos sinais!” foram os enunciados propositivos nos cursos <strong>de</strong> Libras e nos<br />
diálogos com os surdos! Olhares atentos, histórias em sinais trouxeram-me experiências<br />
com a língua <strong>de</strong> sinais, uma língua que flui através <strong>de</strong> mãos que vão combinando<br />
movimentos, configurações <strong>de</strong> mão, pontos <strong>de</strong> articulação, expressões faciais<br />
e corporais, posicionando o sujeito discursivamente. Visual-gestual, modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
uma língua <strong>de</strong> sinais, que alavanca uma diferença na forma como tradicionalmente<br />
concebemos as línguas. Línguas <strong>de</strong> sinais que nos posicionam e nos jogam para outra<br />
experiência: aquela em que o logofonocentrismo é <strong>de</strong>slocado.<br />
Olhares atentos, mãos ágeis e a ressignificação dos enunciados – difícil, longo,<br />
constante, mas atraente aprendizado. A língua sendo tecida naquele espaço <strong>de</strong> enunciação<br />
em frente ao corpo, com sinais articulados em diferentes camadas linguísticas.<br />
Discursivamente nos posicionamos, as armas sonoras silenciam, possibilitando<br />
o cultivo <strong>de</strong> uma outra experiência, em uma comunida<strong>de</strong> que interpela nosso olhar,<br />
nossos sinais.<br />
Não é simplesmente um <strong>de</strong>slocamento da experiência linguística falada para<br />
outra, que é visual. Trata-se, antes <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar que há sinais que nos per-<br />
185
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
186<br />
mitem olhar e outros que nos ensinam a olhar. Olhar a cultura, o sujeito, a língua. A<br />
experiência, e aqui com referência à experiência <strong>de</strong> uma língua visual, é aquilo que<br />
“nos passa, que nos acontece, o que nos toca”. A experiência que estamos referindo<br />
consi<strong>de</strong>ra “aquilo que nos acontece, nos suce<strong>de</strong>” 1 .<br />
Fui paulatinamente me aproximando das histórias que são contadas em Libras<br />
através das mãos que contam histórias. No entanto, esse contato ocorreu após alguns<br />
anos <strong>de</strong> convívio com a comunida<strong>de</strong> surda. Como professora <strong>de</strong> português, meu<br />
olhar esteve muito centrado em ensinar português. Ao me aproximar da comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> surdos, conviver com amigos surdos e ler textos relacionados às experiências <strong>de</strong><br />
vida <strong>de</strong> pessoas surdas, tanto em narrativas sinalizadas quanto em textos acadêmicos,<br />
encontrei outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> diálogo, <strong>de</strong> trocas, <strong>de</strong> aprendizados. Aprendi, por<br />
exemplo, com Miranda (2001), pesquisador surdo, que a escrita na língua portuguesa<br />
continua sendo a camisa <strong>de</strong> força que limita e conforma o saber à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>cifração gráfica. Muitos dos programas <strong>de</strong> educação fracassam, também porque<br />
parte-se do princípio <strong>de</strong> que a língua portuguesa <strong>de</strong>ve ser igual para todos. E esses<br />
todos são pessoas tratadas como monolíngues, assexuadas, sem história ou ida<strong>de</strong>, sem<br />
raça, sem emprego, sem <strong>de</strong>sejos. O apagamento da diferença linguística e cultural<br />
tem historicamente posicionado o surdo como ‘<strong>de</strong>ficiente linguístico’, prevalecendo o<br />
acento em uma tradição que rejeita a existência <strong>de</strong> uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manifestações<br />
linguísticas.<br />
Presenciamos cenas em que não se reconhece a situação bilíngue do surdo e se<br />
rejeita <strong>de</strong> forma intolerante qualquer manifestação linguística diferente. Diante <strong>de</strong><br />
tais cenas, uma das maiores contribuições que contadores <strong>de</strong> histórias, pesquisadores<br />
e educadores <strong>de</strong> surdos po<strong>de</strong>m prestar hoje é varrer a ilusão da “<strong>de</strong>ficiência linguística”<br />
e trazer para o cenário outras histórias, outras imagens, outras narrativas, outras<br />
traduções, outras línguas, outros olhares.<br />
Apesar <strong>de</strong> mudanças significativas na legislação e <strong>de</strong> iniciativas <strong>de</strong> algumas instituições,<br />
o fato é que, há muito tempo, temos por parte dos surdos uma luta histórica<br />
tentando fazer valer a diferença linguística e cultural que lhes é <strong>de</strong>vida, não somente<br />
1. (Larrosa 2002, p. 24)
nos espaços escolares, mas também na mídia e nos diferentes artefatos culturais.<br />
Sabe-se que há a predominância <strong>de</strong> uma única forma linguística, silenciando as manifestações<br />
linguísticas tecidas em outras línguas, como é o caso, inclusive, da Libras.<br />
Desse modo, é “emu<strong>de</strong>cida a trova, são silenciadas as histórias antes contadas nas<br />
quermesses, põe-se para adormecer a memória popular, imobilizam-se as mãos e as<br />
narrativas que os sinais tecem.” (Souza 2000, p. 87)<br />
O <strong>de</strong>safio é, então, explorar as condições <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um olhar sobre a<br />
sur<strong>de</strong>z que não se limite à <strong>de</strong>ficiência, limitação, incapacida<strong>de</strong>. Que não se limite a<br />
uma “aceitação” ou tolerância da língua <strong>de</strong> sinais.<br />
Aproximei-me <strong>de</strong> narrativas, <strong>de</strong> poemas em Libras através <strong>de</strong> histórias contadas<br />
por surdos em diferentes momentos: nas associações <strong>de</strong> surdos, nos encontros anuais<br />
da Feira do Livro em Porto Alegre, em escolas <strong>de</strong> surdos. Épicos, poemas, anedotas<br />
e contos foram capturando meu olhar, minha atenção, tornando-se um dos temas<br />
<strong>de</strong> pesquisa que venho realizando. O encontro com a literatura surda, com histórias<br />
contadas em sinais e com traduções <strong>de</strong> diferentes histórias traduzidas para a Libras<br />
foram trazendo a articulação <strong>de</strong> olhares entre/culturas. Esse movimento poético/<br />
político evi<strong>de</strong>nciou que “Os surdos começam a se narrar <strong>de</strong> uma forma diferente, a<br />
serem representados por outros discursos, a <strong>de</strong>senvolverem novas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s surdas,<br />
fundamentadas na diferença (...)” (Skliar 1999, p. 12).<br />
Nas últimas três décadas, no Brasil, ocorreram importantes conquistas das comunida<strong>de</strong>s<br />
surdas, em diferentes espaços, especialmente, o reconhecimento da cultura<br />
surda e a oficialização da Língua <strong>de</strong> Sinais Brasileira. Produções culturais <strong>de</strong> surdos<br />
possibilitaram a elaboração <strong>de</strong> outras representações sobre os surdos.<br />
Atualmente <strong>de</strong>senvolvemos um projeto <strong>de</strong> pesquisa intitulado Literatura Surda.<br />
Buscamos histórias que são contadas por surdos contadores <strong>de</strong> histórias em diferentes<br />
regiões no Brasil, em Libras, seja presencialmente (em Associações <strong>de</strong> Surdos,<br />
Escolas <strong>de</strong> Surdos...) ou virtualmente (internet, youtube). Quando analisamos a Literatura<br />
Surda, a primeira observação que po<strong>de</strong>mos fazer é que ela tem uma tradição<br />
próxima a culturas que transmitem suas histórias oral e presencialmente. Manifesta-se<br />
Lo<strong>de</strong>nir Karnopp<br />
187
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
188<br />
nas histórias contadas em sinais; no entanto, o registro <strong>de</strong> histórias contadas no passado<br />
permanece na memória <strong>de</strong> algumas pessoas surdas ou foram esquecidas. Desse<br />
modo, quando analisamos as histórias contadas em sinais, percebemos formas visuais<br />
do registro <strong>de</strong>ssas histórias, por exemplo, através da filmagem <strong>de</strong> histórias (fitas VHS,<br />
CD, DVD), <strong>de</strong> textos impressos que apresentam imagens, fotos e/ou traduções para<br />
o português. O registro da literatura surda começou a ser possível principalmente a<br />
partir do reconhecimento da Libras e do acesso à tecnologia, que possibilitaram formas<br />
visuais <strong>de</strong> registro dos sinais.<br />
As histórias contadas por surdos em línguas <strong>de</strong> sinais marcam a cultura surda, são<br />
caracterizadas pela experiência visual, corporificadas em prosa e verso <strong>de</strong> um modo<br />
singular, em que o enredo, a trama, a linguagem utilizada e os sinais evi<strong>de</strong>nciam<br />
o caminho da autorepresentação dos surdos na luta pelo estabelecimento do que<br />
reconhecem como suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, legitimando sua língua, suas formas <strong>de</strong> narrar as<br />
histórias, suas formas <strong>de</strong> existência, suas formas <strong>de</strong> ler, traduzir, conceber e julgar os<br />
produtos culturais que consomem e que produzem.<br />
Para a análise das produções culturais em comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> surdos, <strong>de</strong>slocamo-nos<br />
entre a diferença linguística e cultural, entre fronteiras <strong>de</strong>finidas e limites porosos, entre<br />
pessoas que compartilham a experiência visual e o uso <strong>de</strong> uma língua <strong>de</strong> sinais. Como<br />
pesquisadores, preocupa-nos o fato <strong>de</strong> que o que aparentemente são “histórias que nos<br />
fazem rir” possam, no entanto, servir para nutrir caricaturas e estereótipos. Entramos<br />
em cena à procura <strong>de</strong> histórias e, às vezes, involuntariamente, caminhamos em direção<br />
ao campo das construções do “outro”, nutrindo uma política <strong>de</strong> representação que frequentemente<br />
contribui para uma caricatura das mulheres e dos homens surdos.<br />
Uma vez que coletamos histórias <strong>de</strong> nossos contadores, a próxima etapa a <strong>de</strong>monstrar<br />
dificulda<strong>de</strong> envolve a interpretação, a tradução e a intraduzibilida<strong>de</strong>. Quando<br />
analisamos e traduzimos histórias/narrativas produzidas em língua <strong>de</strong> sinais, nós –<br />
pesquisadores — estamos inclinados a sermos atraídos pelo exótico, pelo bizarro, pelo<br />
violento. À medida que fazemos uma reflexão sobre as narrativas em sinais, nos sentimos<br />
na obrigação <strong>de</strong> explorar meticulosamente a rotina, o cotidiano, a experiência
<strong>de</strong> ser surdo e usuário <strong>de</strong> uma língua minoritária, sinalizada.<br />
Reconhecemos que traduzir histórias po<strong>de</strong> apresentar diferentes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
análise. A convergência é improvável e, talvez, in<strong>de</strong>sejável. Enfim, suscetíveis à contradição,<br />
à heterogeneida<strong>de</strong> e à multiplicida<strong>de</strong>, produzimos uma colcha <strong>de</strong> histórias<br />
e uma tela <strong>de</strong> sinais que conversam entre si em tom <strong>de</strong> disputa, dissonância, apoio,<br />
diálogo, contenda e/ou contradição.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u O nome dos outros. Narrando a alterida<strong>de</strong> na cultura e na educação. Silvia Duschatzky<br />
e Carlos Skliar. In: Habitantes <strong>de</strong> Babel. Políticas e poéticas da diferença. Jorge<br />
Larrosa e Carlos Skliar. Autêntica, 2001, p. 119–138.<br />
u Notas sobre a experiência e o saber <strong>de</strong> experiência. Jorge Larrosa. Revista Brasileira<br />
<strong>de</strong> Educação. Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, n. 19,<br />
2002, p. 20-28.<br />
u Atualida<strong>de</strong> da educação bilíngüe para surdos. Carlos Skliar (org.). Mediação, 1999.<br />
(vol. 1 e 2)<br />
u Que palavra que te falta? Lingüística, educação e sur<strong>de</strong>z. Regina Maria <strong>de</strong> Souza.<br />
Martins Fontes, 1998.<br />
u Contando histórias sobre surdos(as) e sur<strong>de</strong>z. Rosa Silveira. In: Estudos Culturais em<br />
Educação. Marisa V. Costa. UFRGS, 2000.<br />
Lo<strong>de</strong>nir Karnopp<br />
189
Palavras táteis<br />
o
[AnaLu Palma]<br />
Entrei na sala e encontrei uma plateia barulhenta, sentada <strong>de</strong> forma muito<br />
E<strong>de</strong>sorganizada. Uma plateia que não se dispunha frontalmente ao palco, como é<br />
<strong>de</strong> hábito em apresentações. O espaço físico era preenchido por aqueles corpos numa<br />
composição incomum aos meus olhos necessitados <strong>de</strong> harmonia formal. Desejei criar<br />
frases em relevo no chão e em cada letra, dispor uma ca<strong>de</strong>ira, alinhando palavras e<br />
corpos. Palavras táteis que organizassem, conduzissem e distribuíssem aquelas pessoas<br />
no espaço. Mas isso foi só um lampejo, habituada que estou a me valer das palavras<br />
para dar conta do inusitado.<br />
Tenho por costume sorrir para cumprimentar e para chamar a atenção. É uma<br />
espécie <strong>de</strong> cartão <strong>de</strong> visitas que captura o olhar do outro e me coloca na zona privilegiada<br />
do foco. Sorrio com o corpo todo e sei o que meu sorriso provoca. Contudo,<br />
não adiantaria nada este recurso. A menos que eu esculpisse pelas pare<strong>de</strong>s meu rosto<br />
e convocasse todos ao toque. Imaginei diversas bocas escancaradas em alegria tátil,<br />
cumprindo sua função costumeira <strong>de</strong> simpatia. Isso era mais um raio <strong>de</strong> imaginação,<br />
buscando adaptar meios para resolver a realida<strong>de</strong> nova que se me apresentava.<br />
Inspirei fundo e escolhi a <strong>de</strong>do as palavras que trariam para mim a atenção <strong>de</strong><br />
todos. Pressenti que escolher a forma <strong>de</strong> dizer seria mais contun<strong>de</strong>nte do que as<br />
palavras em si. E como nos exercícios <strong>de</strong> leitura, imaginei uma mesma frase sendo<br />
dita com ternura, com veemência, com <strong>de</strong>sleixo, com pieda<strong>de</strong>, em tom <strong>de</strong> súplica.<br />
Ensaiei baixinho, só na minha cabeça. Quantas entradas diferentes eu po<strong>de</strong>ria ter<br />
nesta mesma sala, quantas impressões diferentes po<strong>de</strong>ria causar apenas pela maneira<br />
191
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
192<br />
diversa <strong>de</strong> me dirigir ao público. Escolhi as palavras sopradas do coração.<br />
Súbito silêncio. E eu, tão afeita a silêncios meditativos, gostaria <strong>de</strong> assim per-<br />
manecer. Procurar uma comunicação outra, cinestésica, sensorial, perceptiva, quando<br />
ondas calorosas e coloridas se comunicariam umas com as outras. E um turbilhão <strong>de</strong><br />
auras tomaria a sala, <strong>de</strong>slizando livres e expressivas, comunicando os estados emocionais<br />
mais escondidos na alma. Todos os sentimentos se revelariam. Um mar <strong>de</strong> luzes<br />
interagindo, se harmonizando, se fundindo... Até que uma voz perguntou:<br />
Vai começar?<br />
Imaginei o barulhento: Começa! Começa! Começa!<br />
Abri o livro. Recebi o vento da folha (<strong>de</strong>) no rosto. Minhas mãos <strong>de</strong>slizaram pela<br />
página. Eu queria tocar as palavras, mas palavra <strong>de</strong> vi<strong>de</strong>nte é chata, amassada, comprimida.<br />
Minhas letras não são <strong>de</strong> arquiteto, afeitas ao carinho da pele. Desejei a textura<br />
do A, me aproximar do G, tocar o Q. As palavras não estão ao alcance <strong>de</strong> minhas<br />
mãos: tenho <strong>de</strong>dos que não leem. Elas se dão aos meus olhos, vejo-as. Queria tatuar<br />
em minha pele um poema <strong>de</strong> Pessoa em relevo.<br />
As palavras inanimadas do livro tomaram a forma dos estados <strong>de</strong> alma propostos<br />
pelo autor. Busquei um contato com a plateia através dos sons que emitia. As palavras<br />
saíam <strong>de</strong> minha garganta e meus lábios como pedaços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias tridimensionais.<br />
Assim, iam sendo transportadas e arquivadas na lembrança dos ouvintes. Eram pedaços<br />
imateriais a repercutir no espírito daqueles que me emprestavam os ouvidos.<br />
Minha voz queria ir ao encontro do outro, aniquilar nossas solidões, fazer unas<br />
as dores, angústias, paixões, alegrias. Minha voz articulada em palavras criava pontes<br />
unificadoras e humanas.<br />
Contar histórias para pessoas cegas abriu minha imaginação, porque precisei lidar<br />
com uma realida<strong>de</strong> completamente diferente da minha. Fez com que eu saísse <strong>de</strong><br />
minha condição <strong>de</strong> quem enxerga para compreen<strong>de</strong>r o que era ser e estar no mundo<br />
sem po<strong>de</strong>r ver o pôr do sol ou sem enxergar o rosto do homem amado.<br />
No contato com esta realida<strong>de</strong> pu<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a escassez <strong>de</strong> livros disponíveis<br />
para os cegos e eu, tão afeita à literatura, <strong>de</strong>cidi trabalhar, criando um acervo <strong>de</strong> livros
gravados. Contudo, eu sozinha seria incapaz <strong>de</strong> dar conta do mercado editorial...<br />
passei a buscar aliados que ampliassem a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> livros acessíveis: muitas vozes<br />
contando muitas histórias, com o propósito único <strong>de</strong> distribuir livros.<br />
A importância <strong>de</strong> contar histórias para as pessoas com <strong>de</strong>ficiência visual é a mesma<br />
para aquelas que não o são, enriquece a vida, abastece a alma, dá profundida<strong>de</strong> à<br />
mente. Quando um novo livro se abre para que as palavras impressas se tornem som<br />
é o reencontro com o princípio: o verbo.<br />
Entretanto, esta estrada jamais foi <strong>de</strong> mão única. Quantas vezes sentei-me quieta<br />
enquanto alguma amiga não vi<strong>de</strong>nte abria seu volumoso livro feito <strong>de</strong> palavras em relevo,<br />
<strong>de</strong> palavras que não sei ler. Minha escuta perpassava várias dimensões humanas, até atingir<br />
a escuta interna <strong>de</strong> meu coração feliz, ritmado com as palavras tocadas e proferidas.<br />
Lindo foi ver crianças <strong>de</strong> uma escola diante <strong>de</strong> uma contadora <strong>de</strong> histórias cega1 .<br />
As crianças alvoroçadas, incrédulas, perguntando como era possível com o <strong>de</strong>slizar<br />
do <strong>de</strong>do construir frases. Elas queriam tocar também, não apenas as palavras, mas<br />
a contadora <strong>de</strong> história, para certificarem-se <strong>de</strong> que era real. Alguma coisa muito<br />
especial ficou gravada para sempre na memória daquelas crianças. Era a chance <strong>de</strong><br />
compreen<strong>de</strong>r a diferença naquilo em que é mais potente: a diversida<strong>de</strong> humana, tão<br />
rica, tão bela, tão facilmente integrável.<br />
Se hoje minha voz é capaz <strong>de</strong> modulações variadas, <strong>de</strong>vo aos ouvidos que precisei<br />
conquistar. Se hoje minha sensibilida<strong>de</strong> é aguçada, <strong>de</strong>vo à utilização dos sentidos. Se<br />
hoje componho história é para aproximar os que enxergam dos que não enxergam ou<br />
que enxergam <strong>de</strong> uma forma diferente.<br />
Assim, formou-se o acervo <strong>de</strong> quatrocentos livros. Hoje, oito países que falam esta<br />
Língua com a qual me comunico com vocês po<strong>de</strong>rão ouvir todos estes encantamentos.<br />
Do seu longínquo reino cor-<strong>de</strong>-rosa,<br />
Voando pela noite silenciosa,<br />
A fada das crianças vem, luzindo.<br />
Papoulas a coroam, e, cobrindo<br />
Seu corpo todo, a tornam misteriosa.<br />
1. Aconteceu na Biblioteca Infantil da UNIRIO em novembro <strong>de</strong> 2008.<br />
AnaLu Palma<br />
193
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
194<br />
À criança que dorme chega leve,<br />
E, pondo-lhe na fonte a mão <strong>de</strong> neve,<br />
Os seus cabelos <strong>de</strong> ouro acaricia –<br />
E sonhos lindos, como ninguém teve,<br />
A sentir a criança principia.<br />
E todos os brinquedos se transformam<br />
Em coisas vivas, e um cortejo formam:<br />
Cavalos e soldados e bonecas,<br />
Ursos e pretos, que vêm, que vão e tornam,<br />
E palhaços que tocam em rebecas...<br />
E há figuras pequenas em engraçadas<br />
Que brincam e dão saltos e passadas...<br />
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,<br />
Pé ante pé, volta a melhor das fadas<br />
Ao seu longínquo reino cor-<strong>de</strong>-rosa. 2<br />
(PESSOA, 1997: 562)<br />
Leitura Inspiradora<br />
u A Voz do Ator Vi<strong>de</strong>nte: O Caminho Sonoro para o Ator com Deficiência Visual. Ana<br />
Lúcia Palma Gonçalves. In: Temas em inclusão: saberes e práticas. Aliny Lamoglia<br />
(Org.). Synergia, 2009.<br />
2. PESSOA, Fernando. Obra Poética – Volume Único. In Poesias Coligidas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Nova Aguillar, 1997.
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E eles foram felizes para sempre.<br />
— disse a mãe fechando o livro.<br />
Demorou muito para eles chegarem lá?<br />
— perguntou o menino <strong>de</strong> quatro anos.<br />
Lá on<strong>de</strong>, meu filho?<br />
Eles não foram felizes para sempre?<br />
On<strong>de</strong> é que fica esse sempre?<br />
o
[Regina Machado]<br />
Não é uma pergunta absurda. Não é uma pergunta banal. SEMPRE po<strong>de</strong> não ser<br />
Num lugar para on<strong>de</strong> se vá, digamos, a pé ou a cavalo. Mas com certeza é um lugar<br />
on<strong>de</strong> se vive. On<strong>de</strong> moram os contos milenares, sementeiros ancestrais da palavra<br />
que se renova, a todo instante e em qualquer espaço, na voz <strong>de</strong> cada contador ou<br />
contadora <strong>de</strong> estórias.<br />
Guimarães Rosa disse uma vez numa célebre entrevista:<br />
“Para quem vive no Infinito, como eu...”<br />
Penso aqui com meus botões, que o SEMPRE é um lugar <strong>de</strong>ntro da gente, como<br />
outros que habitamos, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da circunstância.<br />
Há o lugar do “imediatamente” para on<strong>de</strong> queremos ir quando aquele chocolate<br />
nos acena da prateleira. O lugar do “nunca mais” on<strong>de</strong> muitas vezes nos grudamos<br />
feito chicletes <strong>de</strong> sofrimento e sauda<strong>de</strong>.E tantos outros lugares que compõem o quebra<br />
cabeças daquilo que acreditamos que somos nós.<br />
A imagem que me aparece do SEMPRE é a <strong>de</strong> um lugar vazio, que po<strong>de</strong> ser tudo<br />
e ter tudo. Não <strong>de</strong> qualquer jeito, <strong>de</strong>sarrumado, uma bagunça, mas numa or<strong>de</strong>m<br />
absolutamente mutável segundo a gramática da Fantasia.<br />
É o lugar em que, quando criança, a gente brincava <strong>de</strong> cabaninha. A gente se<br />
metia embaixo <strong>de</strong> lençóis e colchonetes muito bem arrumados pra gente caber lá<br />
<strong>de</strong>ntro com nossos travesseiros e o que mais <strong>de</strong>sse vonta<strong>de</strong>. Para viver o SEMPRE.<br />
O SEMPRE que nunca foi antes e nunca será outra vez, existindo só e apenas<br />
naquele instante, fora do tempo horizontal da História, da contingência.<br />
197
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
198<br />
Um lugar para experimentar mil combinações do que é possível, para apren<strong>de</strong>r o<br />
que po<strong>de</strong> vir a ser.<br />
Precisamente o que as estórias milenares nos convidam a fazer, num passeio pela<br />
paisagem mítica preservada humanida<strong>de</strong> afora. Que ecoa na nossa paisagem interior,<br />
aberta para nossa passagem quando estamos encantados.<br />
Sinto um pouco <strong>de</strong> pena das pessoas que confun<strong>de</strong>m alhos com bugalhos. Então,<br />
nesse caso, por exemplo:“Os contos <strong>de</strong> fadas foram ridicularizados pela arte mo<strong>de</strong>rna<br />
e pelos freudianos como instrumento <strong>de</strong> alienação” (frase tirada do artigo: Disney,<br />
vida e fantasia <strong>de</strong> luzes e sombras, <strong>de</strong> Daniel Piza para o Jornal O Estado <strong>de</strong> São Paulo<br />
em 17 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2009).<br />
O encantamento não é alienado e também não é infantil. E os contos <strong>de</strong> fadas<br />
são um ramo apenas recente <strong>de</strong> uma árvore que existe <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o mundo é mundo,<br />
enraizada no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> saber.<br />
E nem todos os freudianos concordariam com a afirmação acima, mas isso é uma<br />
outra conversa.<br />
O encantamento é um estado <strong>de</strong> conhecimento. A qualida<strong>de</strong> que acen<strong>de</strong> sua<br />
vivacida<strong>de</strong> é o movimento perene e flexível da imaginação criadora. Uma qualida<strong>de</strong><br />
forjada no SEMPRE que se manifesta nas mais variadas situações: nas formas da<br />
Natureza, nas brinca<strong>de</strong>iras das crianças (quando elas PODEM brincar), nas obras<br />
<strong>de</strong> artistas, <strong>de</strong> cientistas, nos mitos e nos ritos das culturas tradicionais, em todas as<br />
transgressões que transformam a História dos grupos humanos.<br />
Outro menino <strong>de</strong> quatro anos estava brincando com sua avó. De repente a corrente elétrica<br />
foi interrompida.<br />
No escuro, disse a avó: “Nossa, a luz caiu!”<br />
Logo em seguida tudo voltou ao normal. A avó outra vez: “Que bom, a luz voltou !”<br />
O menino, em silêncio por um certo tempo, abriu um ar <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta: “Sabe, vó, eu estava<br />
pensando. A luz caiu e <strong>de</strong>pois ela voltou. Deve ser porque tem uma cama elástica <strong>de</strong>ntro da<br />
pare<strong>de</strong>!” (Caso contado pela avó, Eliana)<br />
O SEMPRE é também um lugar <strong>de</strong> risco, da aventura <strong>de</strong> formular hipóteses, <strong>de</strong>
alargamento do espaço do conhecido, como um salto livre para o que ainda não sei,<br />
para o que tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber, ou até para o que sei, mas não sabia que sabia.<br />
Digamos que não é exatamente na escola, na igreja, na família ou no ambiente<br />
<strong>de</strong> trabalho que as pessoas do mundo <strong>de</strong> hoje são convidadas a esse tipo essencial <strong>de</strong><br />
busca <strong>de</strong> conhecimento.<br />
Mas é precisamente no SEMPRE da arte da Fantasia, on<strong>de</strong> os contos tradicionais<br />
milenares existem como expressão privilegiada e vigorosa, que esse convite é feito<br />
a qualquer um, criança ou adulto, sem cerimônia ou hierarquia, planejamentos ou<br />
dinâmicas <strong>de</strong> equipes <strong>de</strong> RH.<br />
É a própria estrutura narrativa, <strong>de</strong>senhada como uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações simbólicas,<br />
que pega cada um pela mão e a gente se vê num instante lá <strong>de</strong>ntro da estória brincando<br />
<strong>de</strong> cabaninha, enredando nossa própria história nas ações dos personagens.<br />
Na nossa vida, todos os dias <strong>de</strong> manhã acordamos para o <strong>de</strong>sconhecido, mas nós<br />
não nos lembramos disso.<br />
Nas culturas tradicionais os mitos, artefatos, cantos, danças e outras narrativas<br />
são documentos <strong>de</strong>ssa lembrança, são símbolos.<br />
Os contos tradicionais são uma substância que armazena, perpetua e difun<strong>de</strong><br />
conhecimento na forma <strong>de</strong> arte da Fantasia.<br />
Os contos dispõem uma situação que instiga nossa curiosida<strong>de</strong>, por meio <strong>de</strong> uma<br />
questão proposta logo no início da narrativa. E se a estória é boa, a gente se vê querendo<br />
saber “o que será que vai acontecer...<strong>de</strong>pois” . E pouco a pouco, como uma<br />
espécie <strong>de</strong> contrário da alienação, que nos fixa no limite e na impossibilida<strong>de</strong> (“eu<br />
sou assim, sabe, o que é que vou fazer...”), po<strong>de</strong>mos experimentar a liberda<strong>de</strong> do<br />
SEMPRE possível, num exercício <strong>de</strong> autonomia em que nos arriscamos a ficar horas<br />
<strong>de</strong>ntro do ventre <strong>de</strong> uma baleia, a voar nas costas <strong>de</strong> uma águia, a conversar com um<br />
cavalo que é um príncipe encantado por um bruxo.<br />
Visitar esse espaço do SEMPRE <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós, penso que é uma necessida<strong>de</strong>.<br />
Os contos tradicionais saco<strong>de</strong>m um lugar <strong>de</strong> confortável aparente certeza em que<br />
nos escoramos no dia a dia e <strong>de</strong>safiam em nós algum tipo <strong>de</strong> representação imaginária<br />
Regina Machado<br />
199
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
200<br />
<strong>de</strong> limite. Enquanto acompanhamos o trajeto <strong>de</strong> um príncipe, <strong>de</strong> uma árvore, <strong>de</strong> uma<br />
mulher serpente, <strong>de</strong> um peixe sonhador, vivendo junto o <strong>de</strong>snovelar da narrativa,<br />
po<strong>de</strong>mos experimentar possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sconhecidas:<br />
E se fosse possível que eu fosse capaz <strong>de</strong> viver um amor <strong>de</strong>sse tamanho, como o<br />
<strong>de</strong>sse príncipe por essa jovem camponesa?<br />
Que eu vivesse uma generosida<strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong>?<br />
Que eu pu<strong>de</strong>sse aguentar um medo, ou uma traição tão forte assim?<br />
E, <strong>de</strong> fato, quem sabe encontramos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós um espaço mais amplo, maior<br />
do que “imaginamos” que ele é.<br />
Pelo cômico, pelo trágico, pelo intrigante, pela experiência amorosa, pela aventura<br />
e risco, pelos obstáculos e ajudantes misteriosos, os contos surpreen<strong>de</strong>m nossa percepção,<br />
<strong>de</strong>ntro do SEMPRE, on<strong>de</strong> tudo é possível.<br />
E a gente que conta estórias sabe que não é só com as crianças que esse encantamento<br />
po<strong>de</strong> acontecer.<br />
Já cansei <strong>de</strong> ver adultos na plateia torcendo para o jovem herói acertar a flecha no<br />
ovo atirado para o alto pelo velho mestre, com gestos aflitos e OHS! <strong>de</strong> admiração,<br />
respiração suspensa e risos <strong>de</strong> alívio. Para aqueles que se esqueceram da maravilha<br />
<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> experiência, o “faz <strong>de</strong> conta” é cuidadosamente esquartejado com as<br />
armas da razão, que ilusoriamente o rotula <strong>de</strong> “infantil”, “pueril”, “fuga da realida<strong>de</strong>”<br />
e outros que tais.<br />
Bem, se não fossem essas as mesmas pessoas que expressam, ou escon<strong>de</strong>m, sonhos<br />
<strong>de</strong> se tornar um dia, quem sabe, o presi<strong>de</strong>nte da firma, a mo<strong>de</strong>lo famosa, o ator da<br />
Globo, o premiado não sei o quê, o próximo fenômeno do futebol.....<br />
Mais importante que tudo, penso que a Arte da Fantasia é a Arte do encontro<br />
entre pessoas.<br />
Eu não po<strong>de</strong>ria dizer que esse encontro é impossível quando alguém está sozinho<br />
diante do computador apertando um ratinho mecânico, até, po<strong>de</strong> ser, escrevendo e<br />
lendo histórias. Meios são meios “para alguma coisa” e po<strong>de</strong>m servir para encontros.<br />
Encontros no SEMPRE? Acho que não..
Gente, não dá pra brincar <strong>de</strong> roda no computador.<br />
Parece que o SEMPRE, para acontecer, precisa na maioria das vezes do calor<br />
dos corpos sentados uns ao lado dos outros, da voz plena e do olhar brilhante dos<br />
contadores <strong>de</strong> estórias mirando nossos olhos. Das risadas, suspiros, mãos na boca e<br />
variadas caretas que os computadores até po<strong>de</strong>m registrar, mas.......<br />
a respiração que anima todos esses gestos, eles não po<strong>de</strong>m transmitir. A mesma<br />
respiração que leva pessoas juntas guiadas pela cadência das palavras encantadas,<br />
para além do horizonte visível.<br />
Para SEMPRE possamos escolher boas estórias, bem contadas, quando possível, por...<br />
(ainda existem muitos)<br />
seres humanos, com terra sob nossos pés e céu acima <strong>de</strong> nossas cabeças.<br />
Dedico essas palavras à querida Mery Soucourouglou,<br />
nossa mama que se foi <strong>de</strong> vez viver no sempre<br />
Regina Machado<br />
201
O ofício <strong>de</strong> viver<br />
contando histórias<br />
o
[Cristiano Mota Men<strong>de</strong>s]<br />
Nasci num tempo e lugar on<strong>de</strong> contar histórias era tão comum quanto apanhar<br />
Nmanga madura em árvore ou caída na terra. Assim como frutos maduros jogavam<br />
no ar seus cheiros, atraindo crianças e pássaros, as histórias contadas pelos mais velhos<br />
nos atraíam para viagens no maravilhoso da imaginação.<br />
Minha mãe e meu pai eram contadores <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong> estilos bem diferentes.<br />
Benzinho, minha mãe, era eclética e sedutora em suas narrativas, que podiam<br />
começar em alguma versão ibérica <strong>de</strong> um conto <strong>de</strong> fadas e <strong>de</strong>sembocar no Axixá,<br />
litoral maranhense. Eram histórias e estórias misturadas aos personagens da família<br />
e às toadas <strong>de</strong> bumba-meu-boi. Esta <strong>de</strong>liciosa transgressão das estórias tradicionais<br />
em apropriação particular, íntima, povoou minha infância e meu interesse vida afora<br />
pelas coisas que se mestiçam.<br />
Benzinho era cantora e adorava cantar, imprimia às suas narrativas, quase sempre,<br />
comentários musicais, a tal ponto que música e história se invadiam e vadiavam livremente<br />
sem nenhum compromisso com os limites normais dos significados. Não é à<br />
toa que eu e um dos meus irmãos, Ronaldo, nos tornamos músicos.<br />
Já seu Raimundo, nosso pai, fazia mais a linha cartesiana, com começo, meio e fim.<br />
Seus contares falavam quase sempre <strong>de</strong> bichos, rios e pássaros, índios do Pindaré,<br />
<strong>de</strong> Barra-do-Corda. Seu Mundoca, como ele era conhecido no interior do Maranhão,<br />
por on<strong>de</strong> vivia viajando, era um ambientalista romântico, andarilho, apaixonado por<br />
sua terra. Trabalhou no antigo SPI, Serviço <strong>de</strong> Proteção ao Índio, precursor da Funai,<br />
como seu pai, irmãos, primos e sobrinhos.<br />
203
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
204<br />
Certa vez, contava ele, estava viajando no rio Mearim com um grupo <strong>de</strong> caça-<br />
dores, quando avistaram um bando <strong>de</strong> macacos-prego numa árvore gran<strong>de</strong>, perto da<br />
margem do rio. Um dos homens fez menção <strong>de</strong> apontar a arma para o bando. Imediatamente,<br />
uma das fêmeas mostrou para o grupo <strong>de</strong> caçadores o filhotinho que carregava<br />
às costas, como se dissesse: “não me matem, que tenho meu filhinho pra criar”.<br />
Esta história me marcou profundamente e creio que ela se mantém viva <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> mim até hoje na compaixão e ternura que sinto pelos animais silvestres ou<br />
domésticos. Uma pequena história, na narrativa <strong>de</strong> um bom contador, é capaz <strong>de</strong><br />
acompanhar e orientar um sentimento, contribuir <strong>de</strong>cisivamente para uma formação<br />
ética e humanista.<br />
O ofício <strong>de</strong> contar histórias é um brinquedo mágico, misterioso e infinito. O<br />
contador <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong>senha um caminho que vai dar no coração <strong>de</strong> quem o escuta.<br />
Se a tua Cigarra, contador, prenuncia a chuva ou se embriaga <strong>de</strong> néctar e jasmim,<br />
não importa. Se o coração do ouvinte, criança, adulto ou velho, não se hipnotiza<br />
por tua história é porque carece do sopro que acen<strong>de</strong> a chama antiga feita <strong>de</strong> alma e<br />
paixão. Eros e Psique.<br />
Nenhuma narrativa, mito, causo, lenda, estória, resiste se não se atualiza <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong> quem escuta ou lê.<br />
Escutei mais <strong>de</strong> uma vez, <strong>de</strong> uma moça que trabalhava na casa dos meus pais, uma<br />
história <strong>de</strong> sereia que nunca esqueci. A Sereia, contava Teresa, se banhava nas águas<br />
<strong>de</strong> um poço, no quintal <strong>de</strong> sua casa, em Caxias no Maranhão.<br />
Não era mãe d’água <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> rio ou do alto-mar. Ela apenas se banhava no<br />
poço e cantava na lua cheia com seus negros cabelos e nu<strong>de</strong>z.<br />
Cada casa do interior do mundo tem um poço com mãe d’água.<br />
E cada sereia tem o sonho <strong>de</strong> um menino a visitar.<br />
Muitos anos <strong>de</strong>pois leria histórias <strong>de</strong> um poeta cego que falava <strong>de</strong> sereias e <strong>de</strong><br />
homens que tinham <strong>de</strong> ser amarrados aos mastros dos navios para não serem arrastados<br />
por elas ao fundo do mar. Alguns dizem que o tal do poeta não existiu. Talvez seja<br />
a mistura <strong>de</strong> muitos poetas que caminhavam pelo mundo contando histórias.
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das histórias e seus narradores, o mar sempre existiu e por volta dos<br />
16 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> me vi dono <strong>de</strong> um barco que se chamava Tucum. Seu cavername,<br />
espécie <strong>de</strong> esqueleto dos saveiros, foi trazido a reboque <strong>de</strong> Belém do Pará para São<br />
Luís do Maranhão pelo meu professor e sócio, Clemens Hilbert, um músico alemão<br />
aventureiro, que navegou por aqueles mares nos anos 1970 e 1980.<br />
A reconstrução do Tucum, num tosco estaleiro da Gamboa, bairro <strong>de</strong> São Luís,<br />
foi um acontecimento que não po<strong>de</strong>ria esquecer. Dois mestres artesãos, irmãos,<br />
foram recolocando a ma<strong>de</strong>ira do barco, meses a fio, num processo complicadíssimo<br />
<strong>de</strong> construção e reconstrução, até que ressurgiu grandioso e belo como um enorme<br />
animal ressuscitado.<br />
Clemens parecia um menino <strong>de</strong> tão feliz. Era bonito navegar na lua cheia do <strong>de</strong>lta<br />
do Parnaíba com um coração ávido por <strong>de</strong>scobrir o mundo.<br />
Mais <strong>de</strong> trinta anos <strong>de</strong>pois, uma outra história <strong>de</strong> barco me esperava.<br />
Foi no Etnodoc – Edital <strong>de</strong> apoio a documentários etnográficos sobre patrimônio<br />
cultural imaterial. Participei da gestão do projeto. Um dos filmes selecionados, O barco<br />
do mestre, do antropólogo e cineasta Gavin Andrews, documenta o ofício <strong>de</strong> fazer<br />
barcos na Região Norte e sua eminente extinção. Espero que isso nunca se confirme.<br />
Comecei a ler a obra <strong>de</strong> Guimarães Rosa mais ou menos na época que Tucum<br />
renascia das cinzas, ou melhor, das águas. Rosa disse certa vez ao crítico <strong>de</strong> literatura<br />
Günther Lorenz, que são as “estórias” que nos escrevem. No “Entremeio com o<br />
vaqueiro Mariano”, que consi<strong>de</strong>rava o maior vaqueiro do mundo porque conhecia a<br />
alma dos bois, escreveu que narrar é resistir.<br />
Encerro este artigo lembrando <strong>de</strong> amigos e colegas que estarão nessa hora contando<br />
histórias, no ofício mágico <strong>de</strong> viver contando histórias. Penso nesse tecido fino<br />
que vem <strong>de</strong> nossas almas. Penso nas histórias que nos fabricam o Ser e que nos fazem<br />
rir, chorar, encantar, refletir, educar e sonhar.<br />
A Benzinho e Raimundo<br />
Cristiano Mota Men<strong>de</strong>s<br />
205
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
206<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Entremeio: com o vaqueiro Mariano. Guimarães Rosa. In: Estas estórias.<br />
José Olympio.<br />
u Nas águas do tempo. Mia Couto. In: Estórias abensonhadas. Nova Fronteira.<br />
u O ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> passados. José Eduardo Agualusa. Gryphus.
207
O paciente como contador<br />
<strong>de</strong> sua própria história:<br />
o olhar <strong>de</strong> um<br />
médico homeopata<br />
o
[Conrado Mariano]<br />
Para toda história contada tem que existir um ouvinte, seja criança ou adulto,<br />
Paluno ou não, espectador ou não, no meu caso, um médico, ofício que exerço<br />
há pouco mais <strong>de</strong> trinta anos. Logo, ouço, por todo este tempo, histórias as mais<br />
diversas, engraçadas por vezes, comuns <strong>de</strong> outras, dolorosas em gran<strong>de</strong> parte. Seja<br />
do ponto vista apenas físico, seja da alma, e, o mais comum, <strong>de</strong> ambos. Afinal, como<br />
homeopata não dá para ouvir o que a alma tem para contar sem ouvir também o que<br />
o corpo está falando, não apenas através do gestual, das atitu<strong>de</strong>s, mas também, em<br />
boa parte das vezes, principalmente, dos sintomas físicos. Des<strong>de</strong> sempre fui consi<strong>de</strong>rado,<br />
por amigos e familiares, um bom ouvinte e admito que estão certos. Em todas<br />
as histórias ouvidas, a pouca interferência é necessária para que possamos ocupar o<br />
lugar do outro naquela história. É preciso que aquele que ouve, entenda a história<br />
pela perspectiva <strong>de</strong> quem conta. Muitas vezes histórias contadas por pessoas com<br />
outros hábitos, com outras culturas, outras maneiras <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a vida, são muito<br />
diferentes das daquele que ouve. Mas uma coisa é comum a todos e não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
nenhuma <strong>de</strong>stas categorias: a emoção. Esta, sim, é universal. Não há ser humano, <strong>de</strong><br />
qualquer parte do mundo, que viva sob seja qual for o regime político ou religioso,<br />
sob qualquer cultura, que não tenha emoções.<br />
Assim, fui treinando, durante a vida, esta arte <strong>de</strong> escutar, colocando-me sempre<br />
no lugar <strong>de</strong> quem conta. Sem julgar, sem avaliar, sem criticar, sem intervir, apenas<br />
ouvindo e buscando enten<strong>de</strong>r não apenas aquela história que me contam, mas o<br />
sujeito que a vive e a relata. Aprendi, com isso, que ouvir talvez seja a forma mais amo-<br />
209
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
210<br />
rosa <strong>de</strong> acolhimento, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não tomemos como nosso o direito <strong>de</strong> julgar, <strong>de</strong>ter-<br />
minar normas <strong>de</strong> vida, enfim, prescrever um estilo <strong>de</strong> vida para o outro. Temos que<br />
saber que quem conta sua história quer, antes <strong>de</strong> tudo, ser ouvido e compreendido.<br />
Só, mais nada. Só assim, penso eu, po<strong>de</strong>remos enten<strong>de</strong>r o que o outro está falando,<br />
na visão do outro, claro. Não adianta, neste caso, avaliarmos ou emitirmos qualquer<br />
julgamento, principalmente <strong>de</strong> valores. Importa sim, enten<strong>de</strong>r o outro. Não se trata<br />
<strong>de</strong> uma história arquetípica, ou que leve a uma reflexão ética, ou que nos traga uma<br />
mensagem que nos obrigue a pensar. Não é <strong>de</strong>stas histórias que eu falo, pois estas<br />
<strong>de</strong>vem ser contadas por profissionais experientes no ofício <strong>de</strong> contar histórias, por<br />
atores, atrizes, bailarinos e músicos, afinal as histórias não precisam ser contadas apenas<br />
oralmente. Falo não <strong>de</strong>stas histórias, mas <strong>de</strong> outra: das histórias que são contadas<br />
por aqueles que vivenciam experiências durante sua existência e com elas constroem<br />
suas vidas.<br />
Pelo tipo <strong>de</strong> trabalho que executo, ouvir histórias faz parte do cotidiano e se apren<strong>de</strong><br />
na faculda<strong>de</strong> – até hoje me lembro da aula sobre anamnese, estava no terceiro ano<br />
da faculda<strong>de</strong> — a “obter uma história” sempre a partir da anamnese que nada mais é<br />
do que uma investigação oral sobre os sintomas que o paciente nos relata. Assim, com<br />
<strong>de</strong>terminados sintomas relatados, algumas perguntas feitas, bem objetivas, para algumas<br />
caracterizações, temos uma história clinica que, com alguns exames solicitados,<br />
vão permitir um diagnóstico e tratamento a<strong>de</strong>quados. Não é da história clínica que eu<br />
falo, afinal esta é uma história guiada pelo médico, mas da história daquela pessoa que<br />
está ali com aqueles sintomas os quais, em si, falam da doença, mas não do doente.<br />
Para que eu possa ouvir e enten<strong>de</strong>r aquela pessoa sentada à minha frente, o relato<br />
tem que ser outro, acompanhado <strong>de</strong> sintomas clínicos muitas vezes, mas estes isoladamente<br />
são insuficientes para que eu possa lidar com o indivíduo que sente a dor.<br />
Diversas foram e são as histórias que ouvi. Dos mais diversos tipos <strong>de</strong> pessoas.<br />
Coisas que ouvi, as quais numa situação normal gerariam, inclusive, reações fortes,<br />
mas o papel <strong>de</strong> médico homeopata nos coloca <strong>de</strong> tal forma isento, visto que o mais<br />
importante no momento da consulta é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se enten<strong>de</strong>r o que o paci-
ente nos relata e a maneira pela qual, peculiarmente, ela a vivencia. Busca-se i<strong>de</strong>ntificar,<br />
nestes casos, a emoção que acompanha uma atitu<strong>de</strong>. A intencionalida<strong>de</strong> emotiva<br />
da ação faz transparecer uma particularida<strong>de</strong> que mostra a i<strong>de</strong>ntificação daquele ser:<br />
a sua essência. Certa vez ouvi dizer que ninguém é <strong>de</strong> todo mau nem <strong>de</strong> todo bom.<br />
Claro, não po<strong>de</strong>mos pensar no ser humano <strong>de</strong> forma maniqueísta, afinal o bom e o<br />
mau existem em todos nós. Só somos bons porque conhecemos valores que são maus.<br />
Isso aparece no paciente e o homeopata consegue perceber isso pelos conceitos que<br />
apren<strong>de</strong> <strong>de</strong> homem, doença e cura.<br />
Uma paciente, um dia, me contou: “... me <strong>de</strong>spedi do meu marido e saí, esqueci<br />
um documento e precisei voltar para casa e o ouvi ao telefone, pelo papo, <strong>de</strong>sconfiei<br />
e não <strong>de</strong>u outra: ele tinha uma amante. Me <strong>de</strong>scontrolei, estou neste estado que você<br />
vê. A forma como ele falou <strong>de</strong> mim para a outra me <strong>de</strong>struiu. Segui a mulher, cheguei<br />
a bater na casa <strong>de</strong>la, mas graças a Deus não havia ninguém em casa. Não sei o que<br />
eu faria. Entretanto, tenho que confessar: eu já o traí, com um amigo <strong>de</strong>le. Mas não<br />
suporto a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ter sido traída por ele. Sei que estou sendo injusta, eu também já<br />
fiz isso, mas não consigo fazer diferente”. Este é apenas um trecho do que ouvi da<br />
história <strong>de</strong> uma mulher asmática. A asma, em si, me diria o quê? O que eu po<strong>de</strong>ria<br />
fazer por uma pessoa com asma, além dos medicamentos específicos para o quadro?<br />
A asma, neste caso, é uma história, mas incompleta.<br />
Uma outra história mais ilustrativa disso se refere a uma paciente que me disse:<br />
“... tenho medo <strong>de</strong> mudanças, acabo <strong>de</strong>ixando as coisas ficarem como estão, mesmo<br />
que não me agra<strong>de</strong>m, mesmo que eu não esteja feliz, tenho medo <strong>de</strong> mudanças pois<br />
sempre acho que será para pior, não consigo me imaginar promovendo uma mudança<br />
na minha vida, mesmo pensando que seria para melhor e acabar sendo para pior,<br />
então fico nessa situação tão ruim tanto no trabalho quanto em casa”. Neste caso, o<br />
que a paciente apresentava era um quadro <strong>de</strong> mialgia, que se concentrava nas pernas.<br />
Pelas dores, era impedida <strong>de</strong> executar alguns movimentos, ou pelo menos os dificultava.<br />
Há um nexo entre o quadro emocional com o clínico, pois, para quem não<br />
consegue fazer movimentos <strong>de</strong> mudanças em sua vida, mesmo quando está infeliz,<br />
Conrado Mariano<br />
211
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
212<br />
po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r que os músculos não respon<strong>de</strong>rão <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>quada aos movimentos<br />
solicitados.<br />
O corpo fala! Este último relato mostra como se po<strong>de</strong> ouvir o que ele nos diz e o<br />
relato <strong>de</strong> quem conta sua história apenas confirma e modaliza aquilo que está sendo<br />
dito pelos sintomas. Contar uma história, para nós, não se restringe a algo pontual,<br />
a apenas um período <strong>de</strong> uma vida, mas ao que aquela <strong>de</strong>terminada pessoa teve <strong>de</strong><br />
experiências ao logo <strong>de</strong> todo o período <strong>de</strong> vida até aquele momento. As emoções se<br />
repetem ao logo <strong>de</strong> nossas vidas, são elas que refletem nossa essência, são elas que<br />
nos i<strong>de</strong>ntificam e são elas que permitem que tenhamos consciência <strong>de</strong> quem somos e<br />
como somos, do que gostamos, do que não gostamos, do que nos entristece, do que<br />
nos alegra. Do que nos dá raiva ou não. Enfim, são as nossas emoções que permitem<br />
que possamos nos conhecer. Elas permitem, assim, que possamos ser os atores principais<br />
<strong>de</strong> nossas vidas, que possamos ser, então, contadores <strong>de</strong> nossas próprias histórias.<br />
Leituras Inspiradoras<br />
u Éthique à Nicomaque. Aristóteles. Trad. et presentation par Richard Bodéüs. Flammarion,<br />
2004.<br />
u De l`âme. Aristóteles. Traduit par E. Barbotin. Belles Lettres, 2002.<br />
u La connaissance <strong>de</strong> la vie. George Canguilhem. Librarie Philosophique J. Vrin, 1975.<br />
u I<strong>de</strong>ologia e racionalida<strong>de</strong> nas ciências da vida. George Canguilhem. Edições 70, 1977.
:prosa final<br />
213
As águas da memória<br />
e os guardadores da<br />
corrente <strong>de</strong> histórias<br />
o
1. Memória <strong>de</strong> Mnemosyne<br />
[Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Soares]<br />
Musa ensina-me o canto / Venerável e antigo<br />
Sophia <strong>de</strong> Mello Breyner Andresen<br />
Palavras cantadas. Na mitologia grega, Mnemosyne, irmã <strong>de</strong> Cronos (Tempo) e<br />
Okeanós (Rio-Oceano), é a <strong>de</strong>usa da recordação vivificadora. São as Musas, filhas <strong>de</strong><br />
Mnemosyne e Zeus, que conce<strong>de</strong>m ao aedo (poeta-cantor) o dom <strong>de</strong> cantar a Verda<strong>de</strong><br />
(Aletheia, <strong>de</strong>svelamento), oposta ao Esquecimento (Lethe). Inflamado pelas Musas, o<br />
aedo transmite o conhecimento do que foi, é e será. Engendrando a memória coletiva<br />
através das gerações, as palavras cantadas (Musas) são, portanto, inseparáveis da<br />
memória (Mnemosyne).<br />
Por parte <strong>de</strong> Zeus pai, as Musas adquirem qualida<strong>de</strong>s que lhes permitem acordar<br />
nos homens certas proprieda<strong>de</strong>s da memória. Não a memória absoluta, como<br />
a do personagem <strong>de</strong> Jorge Luís Borges, do conto “Funes, o memorioso”: incapaz <strong>de</strong><br />
selecionar, pensar e esquecer, Funes acumula incessantemente memórias, “como um<br />
<strong>de</strong>spejadouro <strong>de</strong> lixo”. Não o esquecimento total, como, até certo ponto, o do protagonista<br />
<strong>de</strong> Amnésia (Memento, do latim “Lembra-te”, no significativo título original),<br />
filme <strong>de</strong> Cristopher Nolan: Leonard não consegue guardar acontecimentos recentes<br />
e por isso fotografa pessoas que consi<strong>de</strong>ra importantes e tatua em sua pele dados<br />
(faz-se corpo-livro com vários “memento”), na tentativa <strong>de</strong> posteriormente conseguir<br />
215
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
216<br />
estabelecer nexos e reconstituir sua história. Tanto a memória prodigiosa <strong>de</strong> Funes<br />
quanto a memória volátil <strong>de</strong> Leonard são distúrbios <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> forte traumatismo.<br />
Ambas as formas <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong> são igualmente funestas para a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do<br />
indivíduo e da socieda<strong>de</strong>.<br />
O pesa<strong>de</strong>lo da iminente amnésia coletiva po<strong>de</strong> ser gerado por imposição <strong>de</strong> governos<br />
totalitários, como em Fahrenheit 451, <strong>de</strong> François Truffaut (adaptação cinematográfica<br />
do romance homônimo, <strong>de</strong> Ray Bradbury), em que o pensamento crítico é proibido<br />
e os materiais escritos incinerados (o título refere-se à temperatura em que o<br />
papel entra em combustão). Guy Montag, um dos bombeiros encarregados <strong>de</strong> queimar<br />
livros, furta alguns para ler, e fica seduzido. Refugia-se, com outros dissi<strong>de</strong>ntes, na<br />
terra dos homens-livro, cada um <strong>de</strong>les i<strong>de</strong>ntificado com o nome do livro que conserva<br />
“tatuado” na memória.<br />
A memória-dom conferida por Mnemosyne através das Musas conjuga harmoniosamente<br />
memória e não-memória: é seletiva, reflexiva, capaz <strong>de</strong> discernir o que se<br />
<strong>de</strong>ve presentificar pela rememoração ou entregar ao esquecimento (lesmosyne), “para<br />
oblívio <strong>de</strong> males e pausa <strong>de</strong> aflições” (Hesíodo). A boa memória, portanto, implica<br />
seleção, esquecimento e pausa. Poesia e sabedoria bebem em Lethes e Mnemosyne,<br />
fontes <strong>de</strong> lembrar e esquecer. Nessa dialética, pulsa a vida.<br />
O Canto, a memória, o tempo. Ao invocarem a manifestação <strong>de</strong>ssas forças<br />
numinosas, Camões (século XVI) e Sophia (século XX) reafirmam que as Musas são<br />
o princípio do Canto, inaugurando e alentando o sopro poético. Camões invoca<br />
Calíope, Musa da epopeia, para cantar “aqueles que por obras valerosas / se vão da<br />
lei da Morte libertando”. Sophia reinventa e celebra na sua mo<strong>de</strong>rna lírica a memória<br />
fulgurante da Grécia antiga.<br />
Se na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna a memória não mais conserva o sentido originário,<br />
que permitia o conhecimento em êxtase e vidência, o poeta recita-a, recorda-a (recordar,<br />
trazer <strong>de</strong> novo ao coração) e, assim, preserva-a e lega-a ao futuro. Lançado<br />
num mundo <strong>de</strong>ssacralizado, o poeta-cantor <strong>de</strong> nosso tempo – “tempo <strong>de</strong> indigência”<br />
(Höl<strong>de</strong>rlin), “tempo dividido” (Sophia), <strong>de</strong> “homens partidos” (Drummond) – abre
passagens para o poético, luta contra a opressão e o adverso olvido, faz-se porta-voz<br />
dos “silenciosos lábios”: “eu vengo hablar por vuestra boca muerta” (Neruda). Mesmo<br />
vivendo em tempos não-heroicos, insiste em salvaguardar seu “sentimento do mundo”<br />
e repassar a outras mãos, para a plenitu<strong>de</strong> do que há-<strong>de</strong> vir, o fio da memória que<br />
atravessa a corrente <strong>de</strong> tempos: “Guar<strong>de</strong>i-me para a epopeia / que jamais escreverei<br />
(...) recolhei meu pobre acervo, / alongai meu sentimento” (Drummond).<br />
2. Guardiões da memória, cerzidores da túnica inconsútil<br />
Não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r, no <strong>de</strong>serto dos tempos,<br />
uma só gota da água irisada que, nôma<strong>de</strong>s,<br />
passamos do côncavo <strong>de</strong> uma para outra mão.<br />
Ecléa Bosi<br />
Gente da palavra. Antigos aedos e rapsodos gregos (rápthein áoidén, aqueles que<br />
sabem costurar cantos), assim como os griots da África <strong>de</strong> nossos dias, são garantes<br />
da permanência da memória em socieda<strong>de</strong>s fundadas sobre a tradição oral, em que<br />
contar histórias não é um evento à parte, mas algo constitutivo do próprio cotidiano.<br />
Com razão Alex Haley dirá: “quando um griot morre é como se toda uma biblioteca<br />
tivesse sido arrasada pelo fogo”.<br />
Guardiã das tradições orais, a cantadora-contadora Clarissa Pinkola Estés (autora<br />
<strong>de</strong> O dom das histórias e Mulheres que correm com os lobos) nasceu da confluência <strong>de</strong> duas<br />
linhagens: a das contadoras húngaras (mesenmondók) e a das latinas (cuentistas). Segundo<br />
o legado <strong>de</strong> que Clarissa <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>, “acredita-se que as histórias são escritas como<br />
uma leve tatuagem na pele <strong>de</strong> quem as viveu”. Essa espécie <strong>de</strong> “escrita levíssima” faz<br />
lembrar as tatuagens dos griots, pergaminhos <strong>de</strong> palavras andantes, <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia em al<strong>de</strong>ia.<br />
As arquetípicas narradoras velhas e sábias são transportadas para os textos impressos<br />
da cultura letrada (nas maternas figuras <strong>de</strong> criadas, amas ou avós, como a Mamãe<br />
Gansa), que ficcionam a voz carinhosa da contadora e a memória <strong>de</strong> uma origem<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Soares<br />
217
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
218<br />
ligada ao contexto da oralida<strong>de</strong>. Na verda<strong>de</strong>, relato oral e escrito se entrelaçam e retroalimentam:<br />
“a linguagem conduz da boca para a página e vice-versa, e a ‘oratura’, ou<br />
a literatura oral, no Oci<strong>de</strong>nte não existiu <strong>de</strong> modo isolado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos homéricos”<br />
(Marina Warner). Às duas categorias <strong>de</strong> narradores postuladas e associadas por<br />
Walter Benjamin – a do camponês se<strong>de</strong>ntário, que recolhe o saber do passado, e a do<br />
marinheiro comerciante, que traz o saber das terras distantes –, Marina Warner acrescenta<br />
a da fian<strong>de</strong>ira, “mulher madura com sua roca”, que se tornou “ícone genérico<br />
da narrativa nas capas <strong>de</strong> coleções <strong>de</strong> fadas a partir <strong>de</strong> Charles Perrault”.<br />
A esta linhagem pertencem também D. Benta e Tia Nastácia (Monteiro Lobato),<br />
inseparáveis repositórios do saber erudito e popular, respectivamente. Outra figura<br />
que remete às maternais contadoras <strong>de</strong> histórias e também às antigas <strong>de</strong>usas da fecundida<strong>de</strong><br />
é a mulher <strong>de</strong> saia imensa, toda cheia <strong>de</strong> bolsos, que canta e conta histórias,<br />
“espiando papeizinhos, como que lê a sorte <strong>de</strong> soslaio”: “dos bolsos vai tirando<br />
papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma boa história para ser contada,<br />
<strong>de</strong> fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer tornar a viver por<br />
arte <strong>de</strong> bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos e os mortos; e das profundida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>sta saia vão brotando as andanças e os amores do bicho humano, que<br />
vai vivendo, que dizendo vai” (Eduardo Galeano).<br />
<strong>Contadores</strong> conhecem bem o seu ofício e, não raro, também escrevem lindamente.<br />
O contador – afirma Galeano – é alguém prenhe, “grávido <strong>de</strong> gente. Gente que sai<br />
por seus poros. Assim mostram, em figuras <strong>de</strong> barro, os índios do Novo México: o<br />
narrador, o que conta a memória, coletiva, está todo brotado <strong>de</strong> pessoinhas”. Cada<br />
contador – lembra Clarissa – sabe que “contar ou ouvir histórias <strong>de</strong>riva da energia<br />
<strong>de</strong> uma altíssima coluna <strong>de</strong> seres humanos interligados através do tempo e do espaço,<br />
sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nu<strong>de</strong>z da sua época, e repletos<br />
a ponto <strong>de</strong> transbordarem <strong>de</strong> vida ainda sendo viva. Se existe uma única fonte das<br />
histórias e um espírito das histórias, ela está nessa longa corrente <strong>de</strong> seres humanos”.<br />
Narrar, tecer, curar. Walter Benjamin, no artigo “Narrar e curar”, a propósito<br />
da extraordinária força <strong>de</strong> cura das mãos e da voz <strong>de</strong> uma mulher que contava histó-
ias junto ao leito do filho enfermo, conjectura: “toda doença não seria curável, contanto<br />
que se <strong>de</strong>ixasse levar suficientemente longe – até a embocadura – pela corrente<br />
da narrativa?” E conclui: “O acaricial <strong>de</strong>senha um leito para essa corrente”.<br />
Por sua vez, como educador e terapeuta <strong>de</strong> crianças gravemente perturbadas, cuja<br />
tarefa principal foi restaurar um significado na vida <strong>de</strong>las, Bruno Betelheim <strong>de</strong>stacou,<br />
do conjunto da literatura infantil, os contos <strong>de</strong> fadas, por proporcionarem “as<br />
experiências na vida infantil mais a<strong>de</strong>quadas para promover sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar<br />
sentido na vida”, ajudando a criança a lidar com a “perplexida<strong>de</strong> existencial”.<br />
Segundo o psicanalista, “o prazer que experimentamos quando nos permitimos ser<br />
susceptíveis a um conto <strong>de</strong> fadas, o encantamento que sentimos não vêm do significado<br />
psicológico <strong>de</strong> um conto (embora isto contribua para tal), mas das suas qualida<strong>de</strong>s<br />
literárias – o próprio conto como uma obra <strong>de</strong> arte”, “uma forma artística única”.<br />
Nesse sentido, parafraseando Walter Benjamin, a arte po<strong>de</strong> ser terapêutica (ou revolucionária,<br />
pedagógica etc.) mas, enquanto arte, sem jamais abrir mão do valor estético.<br />
Clarissa Estés, contadora/cantadora e terapeuta junguiana, consi<strong>de</strong>ra que as histórias<br />
“são bálsamos medicinais”, medicamentos que “fortificam o indivíduo e a comunida<strong>de</strong>”,<br />
amenizam “velhas cicatrizes” e dão “alívio a antigas feridas”, conferindo “movimento<br />
à nossa vida interior”: “o ofício <strong>de</strong> contar histórias” e “o ofício <strong>de</strong> ocupar as<br />
mãos” possibilitam a “criação <strong>de</strong> algo, e esse algo é a alma. Sempre que alimentamos<br />
a alma, garantimos a expansão”.<br />
A tecelã das narrativas. Xeraza<strong>de</strong>, a célebre contadora <strong>de</strong> histórias que abre e<br />
fecha as Mil e uma noites, ao contar histórias para o sultão Xariar, cura-lhe a ferida interior,<br />
alimenta-lhe o espírito. Ao tecer, noite após noite, sua sedutora re<strong>de</strong> <strong>de</strong> histórias<br />
enca<strong>de</strong>adas, Xeraza<strong>de</strong> literal e simbolicamente vence a morte. Narra para não morrer.<br />
Narra para que as histórias não morram. Salva, assim, a sua história e as mil e uma que<br />
transporta e entretece, por encaixe, no fluxo da narrativa, sempre aberto a mais uma<br />
– bela e vertiginosa metáfora do infinito. A teia-tecido entrelaça passado e presente,<br />
memória e imaginação, e envolve a todos – a contadora, a irmã Dinazarda, as outras<br />
jovens do reino, o sultão, o povo –, criando um imaginário comum em expansão. Na<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Soares<br />
219
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
220<br />
voz e nos gestos da contadora dotada <strong>de</strong> prodigiosa – mas seletiva memória (na medida<br />
em que escolhe as histórias do seu imenso acervo, recorre a estratégias e organiza<br />
a estrutura segundo sofisticadas técnicas) – vibram e ecoam muitas outras vozes. Ao<br />
evocá-las, <strong>de</strong> viva voz, a tecelã das narrativas a elas acrescenta a própria voz. Vozes que<br />
repercutem nos nossos dias, graças às versões e traduções da obra (Antoine Galland,<br />
E. Lane, R. Burton, J. Mardrus, Ferreira Gullar, Mame<strong>de</strong> Jarouche...) e às ficções que<br />
revisitam essa bela tapeçaria, como Vozes do <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> Nélida Piñon.<br />
A astuciosa contadora – também excelente poeta e leitora, conforme a tradução <strong>de</strong><br />
Galland – oferece a Xariar a arte <strong>de</strong> contar histórias, o prazer do ficcional. E o sultão<br />
<strong>de</strong>ixa-se seduzir, acolhe esse dom, exercitando, noite a noite, a arte <strong>de</strong> ouvir. Como<br />
Xeraza<strong>de</strong>, o contador é também, em príncipio, um gran<strong>de</strong> ouvinte/leitor. Dotado<br />
<strong>de</strong> escuta atenta, precisa encontrar ouvidos disponíveis para acolher o legado <strong>de</strong> sua<br />
memória. Este é precisamente o humano <strong>de</strong>sejo do androi<strong>de</strong> Roy, lí<strong>de</strong>r dos Nexus<br />
6, em Bla<strong>de</strong> Runner <strong>de</strong> Ridley Scott. Com seu breve tempo <strong>de</strong> vida prestes a expirar,<br />
o último dos replicantes narra sua experiência a Deckard, seu caçador (também ele<br />
caça), a quem acabara <strong>de</strong> salvar da morte. Salva, assim, a sua narrativa e, através <strong>de</strong>la, a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> permanecer vivo na memória <strong>de</strong> Deckard e <strong>de</strong> seus futuros ouvintes:<br />
“Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam. Naves <strong>de</strong> ataques em chamas perto <strong>de</strong><br />
Orion. Vi a luz do sol cintilar no escuro, na Comporta Tannhausen. Todos estes<br />
momentos se per<strong>de</strong>rão no tempo como lágrimas na chuva”.<br />
Narrar, cerzir: um dos cognomes <strong>de</strong> Riobaldo, personagem-narrador <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong><br />
Sertão: Veredas <strong>de</strong> Guimarães Rosa é justamente Cerzidor, ao entretecer, por arte <strong>de</strong><br />
seu criador, diversos fios/vertentes que convergem para a caudalosa narrativa/rio<br />
<strong>de</strong> uma memória que transcen<strong>de</strong> a vivência particular e regional – a travessia do<br />
“homem humano”. As gran<strong>de</strong>s contadoras são hábeis fian<strong>de</strong>iras, cerzindo, através do<br />
fio das histórias, o corpo e a alma, em cuja cisão resi<strong>de</strong> a gran<strong>de</strong> ferida do humano.<br />
“Seremos incólumes se não separarmos o corpo e a alma”, afirma Maria Gabriela<br />
Llansol, escritora portuguesa que cerze imagens em seus textos, insistindo em refazer<br />
a túnica inconsútil, em buscar o fulgor que nos foi roubado.
A sageza do contador não consiste apenas em transmitir a sua experiência, nadan-<br />
do contra a corrente <strong>de</strong> “uma geral configuração traumática da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” que<br />
quase emu<strong>de</strong>ceu os narradores, mas também na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser um elo na milenar<br />
corrente <strong>de</strong> experiência humana formada pelas histórias. Em cada contador vive uma<br />
Xeraza<strong>de</strong>, “que imagina uma nova história em cada história que está contando” (Benjamin).<br />
Ou um Homero. No filme As asas do <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Wim Wen<strong>de</strong>rs “há um velho<br />
que se chama Homero e anda no mundo a contar histórias. Ele é o garante <strong>de</strong> uma<br />
experiência imemorial que se transmite. Num universo dominado pela celerida<strong>de</strong> da<br />
informação, é preciso recuperar o sentido da sageza e da experiência que apenas as<br />
histórias são capazes <strong>de</strong> dar. <strong>Histórias</strong> para adormecer, histórias para comer a sopa<br />
até o fim, histórias para seduzir. Alguma coisa <strong>de</strong>cisiva sobrevive em nós através <strong>de</strong>sse<br />
regresso do prazer do ficcional” (Eduardo Prado Coelho). Para que o círculo mágico<br />
da palavra se faça, refaça e propague. De mão em mão, <strong>de</strong> voz em voz, por dom e<br />
graça da arte <strong>de</strong> contar, ouvir e recontar. Na dialética entre tradição e inovação, permanência<br />
e mudança, sem a qual o templo das Musas (Museu) não será casa móvel,<br />
água viva, lugar <strong>de</strong> criação e disseminação, on<strong>de</strong> o conhecimento adquirido, ao ser<br />
rememorado, possibilite estabelecer nexos com o conhecimento novo. No canto alongado<br />
(Drummond). Na “continuação inventada” (Guimarães Rosa).<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Soares<br />
221
&<br />
o
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De quem são essas vozes<br />
o
Affonso Romano <strong>de</strong> Sant’Anna, poeta, ensaísta e cronis-<br />
ta com mais <strong>de</strong> cinquenta obras publicadas. Ministrou cursos na Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Köln (Alemanha), Universida<strong>de</strong> do Texas (EUA), Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aarhus<br />
(Dinamarca), Universida<strong>de</strong> Nova (Portugal) e Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aix-en-Provence<br />
(França). Dirigiu o <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> Letras da PUC-Rio. Presidiu a Biblioteca<br />
Nacional (1991-1996) possibilitando a criação do Sistema Nacional <strong>de</strong> Bibliotecas,<br />
do Programa Nacional <strong>de</strong> Incentivo à Leitura (Proler), exportando a literatura<br />
brasileira e mo<strong>de</strong>rnizando a instituição. Foi cronista do Jornal do Brasil e d’O<br />
Globo. Atualmente, escreve para O Estado <strong>de</strong> Minas e Correio Brasiliense.<br />
Almir Mota, contador <strong>de</strong> histórias e autor <strong>de</strong> 16 livros <strong>de</strong> literatura infan-<br />
til, incluindo temas ligados ao folclore e às paisagens históricas do Ceará. É i<strong>de</strong>alizador<br />
e coor<strong>de</strong>nador geral da Feira do Livro Infantil <strong>de</strong> Fortaleza. Ganhador<br />
do II Concurso Literatura para todos do MEC (2008). I<strong>de</strong>alizador do Bolsa <strong>de</strong><br />
Letrinhas selecionada pela Bolsa Funarte <strong>de</strong> Circulação Literária 2010.<br />
225
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
226<br />
Ana Luísa Lacombe, atriz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1980 e contadora <strong>de</strong> histórias <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
2002, pesquisa a linguagem da narração <strong>de</strong> histórias associando-a ao teatro. Ganhou<br />
vários prêmios com estes trabalhos. É curadora do projeto “Sipurim – Hora<br />
da História” e do Café literário do Centro da Cultura Judaica e uma das fundadoras<br />
do Centro <strong>de</strong> Referência do Teatro para Infância que promove encontros e<br />
eventos para refletir sobre esta arte.<br />
AnaLu Palma, mestre em Teatro pela UNI-RIO — Universida<strong>de</strong> do Rio<br />
<strong>de</strong> Janeiro. Pesquisa meios acessíveis e adaptações na literatura e no teatro para<br />
que pessoas com <strong>de</strong>ficiência visual estejam capacitadas a produzir e consumir<br />
estas artes. Coor<strong>de</strong>na o Projeto Livro Falado através da Oficina <strong>de</strong> Capacitação <strong>de</strong><br />
Ledores, da criação <strong>de</strong> audiotecas e da Coleção Voz da Aca<strong>de</strong>mia.<br />
Augusto Pessôa, ator, cenógrafo, figurinista, arte educador, escritor,<br />
dramaturgo e contador <strong>de</strong> histórias. Bacharelado em Artes Cênicas (Habilitação<br />
em Interpretação e Habilitação em Cenografia) pela UNI-RIO — Universida<strong>de</strong> do<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />
Bia Bedran, mestre em Ciência da Arte pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Flu-<br />
minense, professora da Universida<strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, graduada em<br />
Musicoterapia e Educação Artística, cantora, compositora, contadora <strong>de</strong> histórias
e escritora. Apresentou os programas “Canta-Conto” e o “Lá vem História”, na<br />
TVBrasil/RJ e na TVCultura/São Paulo. Escreveu <strong>de</strong>z livros, gravou oito CDs e<br />
lançou dois DVDs gravados ao vivo. Nos últimos anos, viaja pelo Brasil participando<br />
<strong>de</strong> eventos culturais e congressos, levando seus espetáculos para diversos<br />
palcos em teatros, escolas e praças públicas.<br />
Carlos Al<strong>de</strong>mir Farias, antropólogo e professor; mestre em<br />
Educação pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Norte; doutorando em<br />
Ciências Sociais pela PUC-SP; pesquisador permanente do Grupo <strong>de</strong> Estudos da<br />
Complexida<strong>de</strong> – Grecom/UFRN.<br />
Carlos Eduardo Klimick Pereira, doutor em Letras<br />
(PUC-Rio), mestre em Design (PUC-Rio). Possui 17 anos <strong>de</strong> experiência com a<br />
criação <strong>de</strong> RPGs, sendo um dos pioneiros no Brasil na sua aplicação para fins<br />
educacionais. Atualmente trabalha em diversos projetos educacionais e é consultor<br />
lúdico-pedagógico da Cátedra UNESCO <strong>de</strong> Leitura PUC-Rio.<br />
Célia Linhares, graduada pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Maranhão,<br />
on<strong>de</strong> iniciou a docência universitária. Obteve o mestrado em Filosofia e Sociologia<br />
da Educação em Michigan State University/USA, doutora em Filosofia<br />
da Educação pela Universida<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Buenos Aires e pós-doutorado em<br />
De quem são essas vozes<br />
227
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
228<br />
Política Educacional na Universida<strong>de</strong> Complutense <strong>de</strong> Madri e na Universida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Londres. Professora Emérita da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense.<br />
Cléo Busatto, escritora e narradora oral <strong>de</strong> histórias. Mestre em Teoria<br />
Literária pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina e pesquisadora transdisciplinar/Cetrans.<br />
Em 2002 publicou seu primeiro livro infantil, Dorminhoco e não<br />
parou mais. Seguiram-se Contos e encantos dos 4 cantos do mundo (2003); Coleção<br />
Criança Segura, 3 volumes (2004); Pedro e o Cruzeiro do Sul (2006); Paiquerê, o paraíso<br />
dos Kaingang (2009); O florista e a gata (2010); <strong>Histórias</strong> <strong>de</strong> quem conta histórias<br />
(2010). Suas obras fazem parte <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> leitura e catálogos internacionais<br />
como o Bologna Children’s Book Fair.<br />
Conrado Mariano formou-se em medicina em 1978, iniciou os estudos<br />
em Homeopatia em 1985, tem graduação e mestrado em Filosofia. Atualmente doutorando<br />
em História da Ciência na PUC-SP, <strong>de</strong>dica-se a estudar as Ciências da Vida.<br />
Cristiano Mota Men<strong>de</strong>s, músico e compositor. Trabalha com<br />
teatro e leituras dramatizadas. Coor<strong>de</strong>nador do Programa <strong>de</strong> Apoio à Produção<br />
<strong>de</strong> Documentários Etnográficos da Associação dos Amigos do Museu Edson Carneiro,<br />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro.
Daniele Ramalho, atriz, contadora <strong>de</strong> histórias, pesquisadora e produ-<br />
tora cultural. Formada em artes cênicas com bacharelado em interpretação pela<br />
UNI-RIO — Universida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Pesquisa literatura, cultura popular<br />
e indígena brasileiras, <strong>de</strong>senvolvendo programações e projetos sobre os temas,<br />
além <strong>de</strong> conteúdo para programas <strong>de</strong> televisão. Narrou mitos para o Canal Futura.<br />
Escreveu artigo sobre mitologia indígena e corporalida<strong>de</strong> para a revista do Instituto<br />
<strong>de</strong> Performance da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Iorque. Narrou mitos na programação<br />
do Ano do Brasil na França. Atualmente escreve roteiros com temas indígenas para<br />
programas veiculados nas TV Brasil e TV Cultura. É curadora do África Diversa:<br />
Encontro <strong>de</strong> Cultura Afro-Brasileira.<br />
Edmilson Santini, ator, autor, cor<strong>de</strong>lista, <strong>de</strong>senvolve, no Teatro Em<br />
Cor<strong>de</strong>l, um repertório <strong>de</strong> histórias, em que se abordam diversos temas. Paralelo<br />
a isso, toca o projeto Oficinas <strong>de</strong> Criação e Recriação <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> em Cor<strong>de</strong>l.<br />
Edvânia Braz Teixeira Rodrigues, licenciada e especia-<br />
lista em Educação Física, pela Escola Superior <strong>de</strong> Educação Física <strong>de</strong> Goiás (ESE-<br />
FEGO), mestre em Educação Escolar Brasileira pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás<br />
(UFG). Professora assistente do CEPAE/UFG, Integrante/Coor<strong>de</strong>nadora do Grupo<br />
Gwaya — <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> da UFG. Atualmente é Superinten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
e Avaliação da Secretaria <strong>de</strong> Estado da Educação <strong>de</strong> Goiás, também coor<strong>de</strong>na<br />
o Projeto <strong>de</strong> Incentivo à Leitura da Re<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Educação em Goiás.<br />
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<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>: um exercício para muitas vozes<br />
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Eliane Bettocchi Godinho, doutora em Design pela PUC-<br />
Rio, atua como consultora da Cátedra UNESCO <strong>de</strong> Leitura PUC-Rio e docente<br />
<strong>de</strong> pós-graduação lato sensu no Depto. <strong>de</strong> Artes e Design da PUC-Rio. Coor<strong>de</strong>na<br />
projeto <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> professores <strong>de</strong> Ensino Médio com apoio da Faperj. Realiza<br />
pesquisas teóricas e aplicadas em Design e Formação do Leitor. Professora da graduação<br />
em Design da UniFOA — Centro Universitário <strong>de</strong> Volta Redonda. Atua como<br />
profissional <strong>de</strong> Design Gráfico e Ilustração, com ênfase em jogos narrativos, comunicação<br />
e semiótica.<br />
Fernando Goldman, doutorando em Políticas Públicas, Estratégias<br />
e Desenvolvimento no IE/Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Engenheiro<br />
Eletricista pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro, mestre em Engenharia<br />
<strong>de</strong> Produção, pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense. Possui ainda Especialização<br />
em Gestão Empresarial pela Fundação Getulio Vargas. Des<strong>de</strong> 2007 é Presi<strong>de</strong>nte da<br />
Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Gestão do Conhecimento — RJ. É engenheiro <strong>de</strong> FURNAS<br />
Centrais Elétricas SA.<br />
Gilka Girar<strong>de</strong>llo, professora da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa<br />
Catarina, coor<strong>de</strong>nadora da Oficina Permanente <strong>de</strong> Narração <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> da<br />
UFSC e contadora <strong>de</strong> histórias da Biblioteca Barca dos Livros, em Florianópolis.
Grupo Morandubetá <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> tem a seguinte for-<br />
mação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1991:<br />
Benita Prieto, engenheira eletrônica, atriz, especialista em Literatura<br />
Infantil e Juvenil pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense e em Leitura: Teoria e<br />
Práticas pela UniverCida<strong>de</strong>. Contadora <strong>de</strong> histórias com mais <strong>de</strong> 2000 apresentações<br />
pelo Brasil e exterior. Escritora. Produtora cultural e i<strong>de</strong>alizadora <strong>de</strong> eventos<br />
<strong>de</strong> Literatura e Leitura, po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>stacar o Simpósio Internacional <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Histórias</strong>. É presi<strong>de</strong>nte da Prieto Produções Artísticas e do Instituto Conta<br />
Brasil. Coor<strong>de</strong>nadora da Red Internacional <strong>de</strong> Cuentacuentos.<br />
Celso Sisto, escritor, ilustrador, contador <strong>de</strong> histórias, crítico <strong>de</strong> Lit-<br />
eratura, especialista em Literatura Infantil e Juvenil pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
do Rio <strong>de</strong> Janeiro, mestre em Literatura Brasileira pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />
Santa Catarina e doutorando em Teoria da Literatura pela PUC-RS. Tem mais<br />
<strong>de</strong> cinquenta livros publicados para crianças e jovens e é responsável pela formação<br />
<strong>de</strong> inúmeros grupos <strong>de</strong> contadores <strong>de</strong> histórias espalhados pelo país. Já<br />
recebeu vários prêmios, <strong>de</strong>ntre eles o prêmio <strong>de</strong> autor revelação (1994) e ilustrador<br />
revelação (1999) da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.<br />
I<strong>de</strong>alizador, coor<strong>de</strong>nador e diretor artístico dos Seminários <strong>de</strong> <strong>Contadores</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Histórias</strong> da Feira do Livro <strong>de</strong> Porto Alegre e da Jornada Nacional <strong>de</strong> Literatura<br />
<strong>de</strong> Passo Fundo.<br />
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Eliana Yunes, criadora do Programa Nacional <strong>de</strong> Incentivo à Leitura<br />
(Proler) da Fundação Biblioteca Nacional. É uma das pesquisadoras mais renomadas<br />
sobre temas <strong>de</strong> Leitura na América Latina, on<strong>de</strong> seu discurso teve uma imensa<br />
recepção, principalmente no México e Colômbia. Doutorou-se em Letras e Linguística<br />
pela Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica, PUC-Rio, e pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Málaga, Espanha. Também é ensaísta, crítica e pesquisadora <strong>de</strong> temas relacionados<br />
com a Formação <strong>de</strong> Leitores, Infância e Cultura. É assessora da UNESCO para<br />
Políticas <strong>de</strong> Leitura, Coor<strong>de</strong>nadora adjunta da Cátedra UNESCO <strong>de</strong> Leitura PUC-<br />
Rio, Consultora do CERLALC e do PNLL. Tem artigos e livros publicados tanto no<br />
Brasil como em outras partes do mundo, com ênfase no tema Leitura, bem como<br />
em Teoria Literária, Literatura Comparada e trabalhos interdisciplinares.<br />
Lúcia Fidalgo, escritora, contadora <strong>de</strong> histórias, bibliotecária, profes-<br />
sora universitária e mestre em Educação pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense.<br />
Iniciou seu trabalho com a literatura infantil em 1989, na Fundação Nacional do<br />
Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). À convite <strong>de</strong> Eliana Yunes, passou a integrar a primeira<br />
equipe do Programa Nacional <strong>de</strong> Leitura (Proler), <strong>de</strong>senvolvendo oficinas<br />
<strong>de</strong> contadores <strong>de</strong> histórias em todo o país. Como autora, conquistou o prêmio<br />
<strong>de</strong> Autora Revelação pela FNLIJ, com o livro Menino bom. Publicou mais <strong>de</strong> vinte<br />
livros <strong>de</strong> literatura infantil e juvenil, além <strong>de</strong> artigos para revistas especializadas.<br />
José Mauro Brant, ator que participou em mais <strong>de</strong> setenta produções<br />
teatrais, <strong>de</strong>ntre elas O Púcaro Búlgaro — Romance em cena <strong>de</strong> A<strong>de</strong>rbal Freire Filho.<br />
Des<strong>de</strong> 1993 pesquisa a linguagem dos contadores <strong>de</strong> histórias. Criou e produziu
diversos espetáculos sobre temas literários como: Contos, Cantos e Acalantos (que<br />
lhe valeu os prêmios TIM <strong>de</strong> Música e Rival Petrobras pelo CD homônimo) e<br />
Fe<strong>de</strong>rico García Lorca – pequeno poema infinito que lhe valeu uma indicação para o<br />
prêmio Shell 2007 e teve o seu roteiro, parceria <strong>de</strong> Brant com o diretor Antonio<br />
Gilberto, publicado pela Imprensa Oficial, <strong>de</strong> São Paulo.<br />
Júlio Diniz, doutor em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, com Pós-Dou-<br />
torado em Literatura Comparada pela Universidad <strong>de</strong> Salamanca, Espanha. É<br />
diretor do Departamento <strong>de</strong> Letras da PUC-Rio e professor associado na Área <strong>de</strong><br />
Estudos <strong>de</strong> Literatura. Realiza consultorias e coor<strong>de</strong>na projetos para instituições<br />
públicas e privadas, ONGs e empresas (Ministério da Cultura, Ministério da Educação,<br />
Secretarias Estaduais e Municipais <strong>de</strong> Educação e <strong>de</strong> Cultura, Re<strong>de</strong> Globo,<br />
Petrobras, Ampla e Leia Brasil). Publicou inúmeros artigos, ensaios e livros no<br />
Brasil e no exterior. Foi membro do Conselho Estadual <strong>de</strong> Cultura do Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro (2004-2006) e é pesquisador do CNPq.<br />
Kika Freyre, contadora <strong>de</strong> histórias, psicóloga, arteterapeuta. Mestre em<br />
Sociologia da Saú<strong>de</strong> pela Universida<strong>de</strong> do Minho, Braga (Portugal) e doutoranda<br />
em Antropologia <strong>de</strong> Iberoamérica, na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salamanca (Espanha). Pesquisadora<br />
da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Médicas da UPE – Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pernambuco,<br />
no programa ‘A Arte na Medicina às vezes cura, <strong>de</strong> vez em quando alivia,<br />
mas sempre consola’.<br />
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Lene Nunes, estudou teatro no Tablado, fez curso <strong>de</strong> contadores <strong>de</strong> histórias<br />
com Gregório Filho, Miza Carvalho e Lorena Best. Tem gran<strong>de</strong> atuação no Bairro<br />
da Maré do Rio <strong>de</strong> Janeiro como contadora <strong>de</strong> histórias no Museu da Maré, instituição<br />
pioneira no Brasil na preservação <strong>de</strong> memória das comunida<strong>de</strong>s e na biblioteca<br />
municipal Jorge Amado da lona cultural Herbert Vianna. Coor<strong>de</strong>na projeto <strong>de</strong><br />
incentivo a leitura para crianças <strong>de</strong> seis a treze anos na biblioteca Elias José.<br />
Lo<strong>de</strong>nir Karnopp, professora adjunta da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio<br />
Gran<strong>de</strong> do Sul, no Departamento <strong>de</strong> Estudos Especializados e no Programa <strong>de</strong><br />
Pós-Graduação em Educação (FACED/ UFRGS). Possui graduação em Letras, mestrado<br />
e doutorado em Linguística e Letras (PUC - RS). Desenvolve pesquisas no<br />
campo dos Estudos Culturais em Educação e na área <strong>de</strong> Linguística, com ênfase<br />
em Línguas <strong>de</strong> Sinais e educação <strong>de</strong> surdos. É bolsista do Conselho Nacional <strong>de</strong><br />
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Produtivida<strong>de</strong> em Pesquisa 2, CNPq).<br />
Marcio Allemand, jornalista, roteirista, diretor <strong>de</strong> institucionais<br />
e documentários. Compartilha histórias, poesias e palavras no seu blog http://<br />
euseicozinhar.blogspot.com.<br />
Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Soares, mestre e doutora em Letras (PUC-<br />
RJ). Professora <strong>de</strong> Literatura Portuguesa e Literatura Infantil e Juvenil (Univer-
sida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro). Especialista em teoria e práticas da leitura.<br />
Colaborou no Proler. Autora <strong>de</strong> Descobertas e Encontros , B.I. das Fadas e Bruxas, B.I.<br />
do Saci , B. I. da Iara, do Boto e <strong>de</strong> Iemanjá, B. I. do Pão no Brasil e Livro dos Acalantos.<br />
Maria Helena Ribeiro, professora alfabetizadora durante 12 anos;<br />
gerente <strong>de</strong> projetos e programas educacionais e culturais; produtora cultural; consultora<br />
para implantação <strong>de</strong> programas e projetos. Pedagoga; especialista em educação<br />
da Prefeitura do Rio <strong>de</strong> Janeiro (aposentada); com especialização em Didática da<br />
Comunicação e em Técnicas <strong>de</strong> Projetos; promotora <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1989.<br />
Nanci Gonçalves da Nóbrega, pós-graduada em Literatu-<br />
ra Infantil, Arteterapia e doutora em Ciência da Informação. É professora adjunta<br />
da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense, atuando na Graduação e Pós-Graduação<br />
do Departamento <strong>de</strong> Ciência da Informação e na Pós-Graduação do Instituto <strong>de</strong><br />
Letras. Professora Visitante <strong>de</strong> inúmeras instituições, on<strong>de</strong> conversa sobre bibliotecas<br />
para crianças, narrativas e leitura – suas gran<strong>de</strong>s paixões.<br />
Paulo Siqueira, diretor artístico da Ópera Prima, dirigiu vários docu-<br />
mentários, entre os quais <strong>Histórias</strong> <strong>de</strong> 2006. Dirigiu também várias peças publicitárias.<br />
Autor <strong>de</strong> Cajuínas, um romance, é atualmente coor<strong>de</strong>nador da Óficina,<br />
oficina <strong>de</strong> cinema.<br />
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Regina Machado, graduada em Ciências Sociais pela USP, mestre em<br />
Educational Theatre na New York University, professora Livre Docente da Eca<br />
USP, escritora, pesquisadora <strong>de</strong> narrativas <strong>de</strong> tradição oral, artista educadora e<br />
contadora <strong>de</strong> histórias. Criadora e coor<strong>de</strong>nadora do Encontro Internacional <strong>de</strong><br />
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> BOCA DO CÉU.<br />
Rogério Andra<strong>de</strong> Barbosa, professor, escritor e contador<br />
<strong>de</strong> histórias. Publicou mais <strong>de</strong> setenta livros para crianças e jovens. Prêmio da<br />
Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras em Literatura Infanto-Juvenil em 2005.<br />
Rosana Mont’Alverne, mineira <strong>de</strong> Três Corações. Bacharela<br />
em Direito e mestre em Educação pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais. É<br />
fundadora do Instituto Cultural Aletria, em Belo Horizonte, MG, que é escola<br />
<strong>de</strong> formação e aperfeiçoamento <strong>de</strong> contadores <strong>de</strong> histórias, editora <strong>de</strong> literatura<br />
infantil e juvenil, produtora cultural e portal na internet www.aletria.com.br.
Deixe a sua voz no site www.simposio<strong>de</strong>contadores.com.br<br />
e se <strong>de</strong>sejar baixe gratuitamente a versão digitalizada do livro.<br />
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Esta obra — i<strong>de</strong>alizada e organizada por Benita Prieto e composta<br />
por Marcos Corrêa — foi impressa, durante a primavera <strong>de</strong> 2011,<br />
nas oficinas gráficas da Edigráfica, sobre papel Pólen Bold 120g<br />
para o miolo e Duo Design 250g para capa.<br />
As tipografias utilizadas foram Goudy Old Style T,<br />
Goudy catalog SC, Dalliance roman, Dalliance Flourishes &<br />
Hoefler Text Fleurons.<br />
A presente edição teve a tiragem limitada inicial <strong>de</strong> 1500<br />
exemplares dos quais os primeiros foram numerados <strong>de</strong> 001 a 500<br />
e presenteados aos participantes do Simpósio Internacional <strong>de</strong><br />
<strong>Contadores</strong> <strong>de</strong> <strong>Histórias</strong> nas comemorações <strong>de</strong> sua 10ª edição.
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