ENTREVISTA - Ibase
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E N T R E<br />
V I S T A<br />
62 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9<br />
<strong>ENTREVISTA</strong><br />
AnaCris Bittencourt
Irineu Guimarães<br />
Aos 77 anos, liderança tradicional da fave-<br />
la do Jacarezinho, no Rio de Janeiro – onde<br />
viveu por mais de 50 anos e ajudou a fun-<br />
dar sua primeira associação de moradores<br />
– Irineu tem muito para contar. Presidente<br />
da Federação de Favelas do Estado do Rio<br />
de Janeiro (Faferj) por três mandatos, inte-<br />
grante do Movimento Revolucionário Oito<br />
de Outubro (MR-8), aliou com maestria mo-<br />
bilização comunitária e formação política<br />
em plena ditadura militar. Comunista por<br />
convicção, sindicalista por vocação, fave-<br />
lado com muito orgulho, é pai de quatro<br />
filhos, avô nove vezes e bisavô cinco. Sua<br />
trajetória se confunde com a do próprio<br />
movimento de favelas no Brasil. A seguir,<br />
um pouco dessa história de lutas e, certa-<br />
mente, de muitas vitórias.<br />
JUN 2007 63
<strong>ENTREVISTA</strong><br />
64 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9<br />
Democracia Viva<br />
(DV) – Quando e<br />
onde você nasceu<br />
e passou sua<br />
infância?<br />
Irineu Guimarães –<br />
Sou mineiro, nasci na<br />
divisa com o Espírito<br />
Santo, no Vale do Rio<br />
Doce. Na época que eu<br />
era criança, a estrada<br />
de ferro que, hoje, carrega<br />
todo nosso minério,<br />
da companhia Vale<br />
do Rio Doce, chamavase<br />
Vitória–Minas, porque<br />
começava em Vitória<br />
e ia até Minas.<br />
Nasci no dia 18 de junho<br />
de 1930, na cidade<br />
Aimorés. Por isso,<br />
tenho uma aparência<br />
de índio.<br />
DV – Sua<br />
família<br />
trabalhava<br />
em quê?<br />
Irineu Guimarães –<br />
Eram todos camponeses.<br />
Meu pai mexia com terra e na época do<br />
plantio de café, chegou a ter uma espécie de<br />
fazenda. Naquele tempo era mole, era igual<br />
ocupar terra aqui no Rio de Janeiro há 50, 60<br />
anos. Depois, ele veio para a cidade de<br />
Aimorés, onde nasci. Sou o 11º filho! Ali vivemos<br />
por um bom tempo. Mas ele brigou<br />
com a família e foi morar em Itapina, no Espírito<br />
Santo. Minha mãe ficou em Aimorés<br />
conosco. Tivemos uma época de pobreza muito<br />
grande. Aos poucos, minha mãe foi se reabilitando.<br />
Depois de um tempo, a família se<br />
dividiu: minhas irmãs foram morar com meu<br />
pai no Espírito Santo; minha mãe ficou comigo<br />
e com meus irmãos. De vez em quando, a<br />
gente fazia um intercâmbio, ia lá e tal. Minha<br />
vida toda foi por ali.<br />
DV – Também chegou a trabalhar<br />
com terra?<br />
Irineu Guimarães – Não, nunca trabalhei<br />
na lavoura, não sei mexer com planta,<br />
não sei plantar nada. Meu contato direto<br />
com a terra acontecia quando eu passava uns<br />
dias em um sítio de amigos lá de Aimorés.<br />
Meu primeiro trabalho foi como oleiro, com<br />
13 anos. Queria defender um dinheirinho e<br />
fazia um serviço mais leve na olaria. Assim,<br />
acabei aprendendo praticamente todo o trabalho<br />
de uma cerâmica. Foi esse o meu trabalho<br />
até os 17 anos.<br />
DV – Foi quando começou sua<br />
liderança como sindicalista?<br />
Irineu Guimarães – Podemos dizer que<br />
sim, pois, tive ali meu primeiro arranca-rabo<br />
com os proprietários. Foi quando surgiu aquela<br />
lei para assinar carteira e eles não queriam<br />
assinar. Nessa época, ouvia falar muito sobre<br />
o Rio de Janeiro e eu queria sair, voar. Minha<br />
mãe era contra porque eu era muito novo.<br />
Procurei um camarada na cidade, o seu Benedito,<br />
que representava o Ministério do Trabalho.<br />
Disse a ele: ‘Estou saindo, mas nunca assinaram<br />
minha carteira’. Seu Benedito fez uma<br />
visita à olaria e os proprietários ficaram<br />
bronqueados. E, apesar de ser o mais novo,<br />
fui eu que espalhei para todo mundo da cerâmica<br />
que tínhamos esse direito e criei uma<br />
confusão generalizada lá dentro. Depois, fui<br />
morar no Espírito Santo, atrás de dois irmãos<br />
mais velhos que tinham ido para Colatina trabalhar<br />
numa cerâmica.<br />
Comecei a trabalhar lá também, mas como<br />
entendia de cerâmica (meus irmãos não eram<br />
tão curiosos como eu), percebi que o trabalho<br />
estava sendo feito de forma errada. Conversei<br />
com seu Prestes, dono do negócio, explicando<br />
que tinha que haver modificações para os<br />
tijolos saírem certos. Com isso, passei a ser o<br />
encarregado da cerâmica. Seu Prestes gostava<br />
muito de mim, mas tive problemas com meu<br />
irmão mais velho, que não gostou. Ele era nervoso,<br />
coitado, brigava por tudo. Disse que ia<br />
quebrar a minha cara e seu Prestes quis mandálo<br />
embora. Aí, tive que contornar a situação.<br />
Não quis sair logo da empresa por causa do<br />
meu irmão, deixei assentar a poeira e um dia<br />
saí, sem falar nada para seu Prestes. Simplesmente<br />
desapareci, voltei para Aimorés.<br />
DV – Mas você não queria mais<br />
viver lá. Foi assim que acabou<br />
indo para o Rio de Janeiro?<br />
Irineu Guimarães – Fiz um tour até chegar<br />
ao Rio. Em Aimorés, reencontrei um amigo,<br />
que também tinha vontade de voar mais<br />
alto, e fomos para Governador Valadares. Ele<br />
era um ótimo marceneiro, mas não encontrou<br />
emprego lá. Fomos, então, para outra cidade,<br />
Acesita, e também não conseguimos emprego.<br />
Acabamos indo parar em Belo Horizonte.<br />
Todo mundo sem dinheiro, duro. Ficamos lá<br />
uns dias, fazendo uns biscates. Em Valadares,<br />
já tinha trabalhado numa empresa americana,<br />
no negócio de tirar curva das linhas para o
trem de minério andar mais rápido. Fiquei sabendo<br />
que essa empresa estava construindo<br />
uma casa de força em Barra do Piraí, no Rio de<br />
Janeiro. Aí, fomos para lá. Mas o único emprego<br />
que tinha era trabalhar com cimento. Troço<br />
pesado, difícil, eu era magrinho, sofri que só<br />
trabalhando naquilo. Conversando com o pessoal,<br />
descobrimos que a empresa tinha um time<br />
de futebol. Isso salvou a gente, fomos aprovados<br />
no treino e fui promovido a apontador. Eu<br />
batia uma bola direitinho.<br />
DV – Foi ser apontador do time<br />
de futebol da empresa?<br />
Irineu Guimarães – Não, apontador dos<br />
trabalhadores na empresa. Mesmo assim, por<br />
causa do meu amigo, não ficamos lá muito<br />
tempo, só uns dois meses. Tinha outro irmão<br />
mais velho que trabalhava para a Aeronáutica.<br />
Ele encontrou um emprego bom na profissão<br />
dele, ganhava bem. Fomos morar, temporariamente,<br />
na empresa onde ele trabalhava. Foi aí<br />
que conheci o Jacarezinho, a empresa era<br />
numa rua lá. Mas minha primeira morada no<br />
Rio foi em Nilópolis. Eu consegui um emprego<br />
na fábrica de garrafas e copos Cisper. Isso foi<br />
em 1951, estava com 20 anos. Tínhamos que<br />
pegar o trem todo dia de madrugada, era um<br />
sufoco desgraçado. Aí, mudamos para a rua<br />
Dois de Fevereiro, no Engenho de Dentro.<br />
DV – Antes de começar a<br />
trabalhar, como foi o Irineu<br />
estudante?<br />
Irineu Guimarães – Fui um péssimo estudante,<br />
já fui até expulso da escola. Tinha<br />
um cunhado que gostava muito de mim, me<br />
dava toda cobertura, mas não estudei, não<br />
gostava de estudar. Fui estudar à noite e continuei<br />
sendo um péssimo estudante, brincava,<br />
namorava, mas não estudava. Aí, resolvi<br />
trabalhar. Trabalhei em vários setores, em serviços<br />
braçais, porque não tinha uma profissão.<br />
Assumo que não parava em emprego<br />
nenhum porque sempre criava muito problema.<br />
Gostava muito de política, mas não tinha<br />
nenhuma ideologia revolucionária.<br />
DV – E quando passou a ter?<br />
Irineu Guimarães – Quando conheci o<br />
marxismo, ainda muito mal, em 1955. Tinha<br />
um concunhado comunista, mas era um comunista<br />
devagar, não lia muito, não fazia nada.<br />
A gente vivia conversando sobre futebol e assim<br />
ficamos amigos. Depois, ele acabou se tornando<br />
meu concunhado. Eu namorava a irmã<br />
da mulher dele. Um dia, ele me disse: ‘Você<br />
está perdendo seu tempo conversando só sobre<br />
futebol, falando do Vasco’. Sempre fui<br />
vascaíno, desde a infância. Até porque, na minha<br />
cidade morava um cara que jogava no<br />
Vasco e todo mundo, nessa época, virou<br />
vascaíno lá. Depois dessa conversa, decidi ler,<br />
conversar com outros companheiros e fazer<br />
movimentos políticos, comecei a participar<br />
mesmo. Cheguei em um ponto que entrei numa<br />
base política no Jacarezinho.<br />
DV – Base política do Partido<br />
Comunista?<br />
Irineu Guimarães – Sim, do PCB. Depois,<br />
fui membro do regional da Leopoldina e, aí,<br />
minha atividade política passou a ser no Jacaré<br />
e na Leopoldina.<br />
Era bastante ativo e,<br />
em pouco tempo,<br />
passei a ser o secretário<br />
político da<br />
base. Na época do<br />
golpe militar, estava<br />
trabalhando numa<br />
fábrica de escovas.<br />
Trabalhei duas vezes<br />
nessa fábrica, um<br />
ano e meio de cada<br />
vez. Da segunda<br />
vez, depois que me<br />
tornei socialista,<br />
comunista, fiz um<br />
movimento na fábrica.<br />
Na verdade,<br />
eu mandava lá. Tinha<br />
cento e poucos<br />
empregados e alguns<br />
companheiros<br />
eram estabilizados,<br />
naquele tempo ainda<br />
havia estabilidade<br />
no emprego. Eu,<br />
que não era estabilizado,<br />
botava esse<br />
pessoal para falar<br />
em nome da classe<br />
operária, reivindicar.<br />
Com o movimento<br />
político que criamos ali dentro, a gente<br />
parava a fábrica a hora que queria. Paramos<br />
várias vezes.<br />
DV – Qual a sua visão sobre<br />
aquele momento político<br />
do Brasil?<br />
Irineu Guimarães – Nunca me conformei<br />
muito com Getúlio, apesar de o pessoal falar<br />
muito. Até hoje, tenho divergência com pessoas<br />
que defendem que o Prestes fez bem<br />
quando fez aquela aliança com Getúlio. Eu não<br />
IRINEU GUIMARÃES<br />
Trabalhei em vários<br />
setores, em serviços<br />
braçais, porque<br />
não tinha<br />
profissão. Assumo<br />
que não parava em<br />
emprego porque<br />
sempre criava<br />
problema. Gostava<br />
muito de política,<br />
mas não tinha<br />
nenhuma ideologia<br />
revolucionária<br />
OUTUBRO/2000 JUN 2007 65
<strong>ENTREVISTA</strong><br />
A cúpula do Partido<br />
Comunista estava<br />
toda no Sindicato<br />
dos Metalúrgicos.<br />
Olha a nossa visão<br />
de resistência:<br />
enchemos a frente<br />
do sindicato de<br />
sacos de areia,<br />
fizemos a maior<br />
barricada. Mas lá<br />
dentro não tinha<br />
um canivete<br />
66 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9<br />
penso assim, achei que aquela aliança não<br />
merecia nenhum tipo de consideração por<br />
parte dos comunistas. Não podia ter. Getúlio<br />
entregou a mulher dele para os nazistas matarem.<br />
Que negócio é esse? Como apoiar um<br />
cara desse? É um cara que traiu, matou muito<br />
comunista, matou muito operário. Bastava não<br />
ser getulista, ser oposição para ele tachar de<br />
comunista e mandar matar o cara.<br />
O Jango não era um socialista, mas era<br />
bem-intencionado. Em um ano e sete meses<br />
que esteve no governo, fez mais do que todos<br />
os outros governos<br />
que se diziam progressistas.<br />
E ele saiu<br />
do governo exatamente<br />
por isso. Foi<br />
autor do salário mínimo,<br />
brigou pela<br />
reforma agrária na<br />
beira de estradas,<br />
porque não adianta<br />
fazer reforma agrária<br />
lá dentro da Amazônia,<br />
tem que fazer<br />
nas áreas com escoamento.<br />
Ele também<br />
deu o primeiro salto<br />
para controlar a remessa<br />
de lucro. Porque<br />
os gringos fazem<br />
o que querem<br />
aqui, dominam tudo<br />
e levam o lucro todo<br />
para fora. Essas medidas<br />
contrariaram<br />
enormemente o imperialismoamericano.<br />
Foi essa a razão<br />
dele ter sido deposto.<br />
Na minha opinião,<br />
foi também<br />
um erro muito grande<br />
do Partido Comunista,<br />
que botava<br />
muita lenha na fogueira, sem nenhuma preparação<br />
de base para a revolução. Falava em<br />
revolução sem estar preparado para isso. Isso<br />
foi um dos grandes erros que cometemos.<br />
DV – Que tipo de preparação<br />
deveria ter sido feita?<br />
Irineu Guimarães – Não se pode falar em<br />
revolução sem ter um militante que saiba o<br />
que é uma guerrilha no campo ou urbana. Os<br />
caras não sabiam nem dar um tiro, como é<br />
que se vai falar em revolução? Um outro grave<br />
erro foi cometido pelo próprio Prestes. No último<br />
aniversário antes do golpe de 1935, assisti<br />
ao discurso que ele fez. Dizia o seguinte:<br />
no Brasil, não há clima para haver golpe de<br />
direita. Se houver golpe, só poderá ser de esquerda.<br />
Ele acreditava nos generais. Dali a dois<br />
meses, aconteceu o golpe. Não foi de direita<br />
não, foi de ultradireita.<br />
DV – Onde estava durante<br />
o golpe de 64?<br />
Irineu Guimarães – No Sindicato dos<br />
Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Depois que<br />
me tornei sindicalista, meu assistente sindical<br />
era o Roberto Morena, um dirigente de<br />
confiança do Partido Comunista no Brasil.<br />
Toda a cúpula do partido freqüentava o sindicato,<br />
vários atos foram feitos ali. O Roberto<br />
Morena me orientava porque eu pertencia a<br />
um sindicato deste tamanhozinho, onde toda<br />
a diretoria era pelega junto com o patrão e<br />
eu queria derrubá-los.<br />
DV – Qual era o sindicato?<br />
Irineu Guimarães – Sindicato de Escova,<br />
Junco e Vime, pequenininho. Enfim, a cúpula<br />
do Partido Comunista estava toda ali no Sindicato<br />
dos Metalúrgicos. Agora, veja o que<br />
fazíamos, olha a nossa visão de resistência:<br />
enchemos a frente do sindicato de sacos de<br />
areia, fizemos a maior barricada. Mas lá dentro<br />
não tinha um canivete. Com isso, despertamos<br />
a ira da reação, que dizia: ‘Os homens<br />
estão com tudo lá dentro’. Levaram até carro<br />
de combate. Aí, foi cada um por si, nunca<br />
mais encontrei as pessoas que estavam ali comigo.<br />
O deputado João Macena, por exemplo,<br />
que ajudamos a eleger, estava lá. Nos<br />
despedimos na porta do sindicato, ele disse:<br />
‘Temos que sacudir a poeira e dar a volta por<br />
cima. Eu saio por aqui, você sai por lá’. Fui<br />
embora a pé, não sei para onde ele foi, ninguém<br />
nunca mais viu João Macena. Pegaram<br />
e mataram.<br />
DV – Então, vocês fizeram a<br />
barricada e a ordem foi se mandar<br />
porque não tinha mais jeito?<br />
Irineu Guimarães – Que nada, o que estávamos<br />
discutindo era como iríamos organizar<br />
a festa da vitória. Era o Movimento de Favelas<br />
reunido ali para discutir como faríamos a<br />
festa da vitória do Jango. Dali a pouco, veio<br />
um cara e disse: ‘Ih, rapaz, acabaram de tirar<br />
nossa emissora do ar, entrou o Lacerda falando<br />
do golpe’. Aí, começamos a correr. Fui para<br />
o Jacarezinho, organizamos nosso pessoal.<br />
Ficamos de plantão três noites e três dias esperando,<br />
porque o Brizola estava fazendo a
esistência no Sul, e pensamos: ‘Devem vir armas<br />
por parte do Brizola’. Mas cadê? Depois,<br />
desmobilizamos, fazer o quê?<br />
DV – Como o Jacarezinho recebeu<br />
esse impacto?<br />
Irineu Guimarães – A favela não participava<br />
muito disso. Lá, todo mundo sabia que eu<br />
era comunista porque eu fazia isso abertamente.<br />
A gente estava praticamente na legalidade.<br />
Minha casa era uma sapataria que tinha um<br />
cômodo na parte de cima. O pessoal da favela<br />
falava: ‘Aquele prediozinho ali deve ter uma rádio<br />
que fala diretamente com Moscou’. Eu era<br />
tachado de comunista mesmo. Depois, o padre<br />
Nelson, da paróquia local, começou a me perseguir.<br />
Mais tarde, ficamos amigos, mas fui preso<br />
várias vezes a pedido dele. Às vezes, estava<br />
tudo tranqüilo e de repente chegava alguém<br />
do Dops [Departamento de Ordem Política e<br />
Social] e me levava para perguntar alguma coisa,<br />
dormia lá. Já fui preso também por fazer<br />
várias pichações, em Botafogo, no centro da<br />
cidade. Fomos levando, mas para voltar à normalidade<br />
era difícil.<br />
DV – E o trabalho de mobilização<br />
das bases, continuou?<br />
Irineu Guimarães – Nunca deixamos de<br />
fazer o trabalho comunista no Jacarezinho,<br />
mesmo durante a ditadura. Só que o padre Nelson<br />
incomodava muito a gente. Por exemplo,<br />
ele cismou de mudar o nome do Jacarezinho<br />
para bairro Dom Bosco e nós fomos contra. Começamos<br />
a organizar o pessoal para o contra,<br />
tínhamos uma boa aceitação na comunidade.<br />
No Jacarezinho, tudo o que existe de melhoria,<br />
água, luz, canalização de rios, fomos nós que<br />
participamos de tudo, por isso somos bem-conceituados.<br />
Isso tudo aconteceu em 1964.<br />
Nossa primeira associação, o Centro Social<br />
do Jacarezinho, foi fechada. Eu era diretor junto<br />
com mais dois lacerdistas, meus amigos. O<br />
presidente também era lacerdista, mas cismou<br />
de dar uma de ditador, dedurava os outros,<br />
pintava o caneco, tinha que ser o que ele queria.<br />
Aí, os próprios lacerdistas brigaram com<br />
ele. Conclusão: a associação morreu. Ficamos<br />
sem associação por dois anos.<br />
DV – Foi difícil fundar outra?<br />
Irineu Guimarães – Sim, fizemos um grande<br />
movimento para fundar a outra associação,<br />
que saiu em 1966. Foi quando houve a briga,<br />
porque o padre entrou na disputa da associação<br />
com a gente e ganhou. A gente achou que<br />
o momento não era propício para nós. Aí, tiramos<br />
outra posição: ‘Não vamos ganhar mais a<br />
associação, vamos dirigir’. Conclusão: o padre<br />
cismou de mudar o nome do bairro e aí ganhamos<br />
aquele pessoal, o pessoal ama o<br />
Jacarezinho, é tradicional, ficou fácil ganhar.<br />
Também ganhamos o presidente da escola<br />
de samba, um amigo nosso que era policial aposentado,<br />
o Ney, que já morreu. Depois, na grande<br />
assembléia que tivemos, o presidente fui eu,<br />
eleito por aclamação. Botei minha banca dentro<br />
da igreja, aquilo virou uma praça de guerra,<br />
e chamaram os policiais de choque. Wilmar<br />
Pales, um direitão, era nosso amigo e tinha interesse<br />
político no Jacarezinho, era administrador<br />
regional. Ele ficou do nosso lado. Isso nos<br />
deu um cacife maior, saímos por cima. Mas a<br />
perseguição do padre aumentou. Estava sempre<br />
em cana por causa dele. Fomos levando até<br />
tomar a decisão política de não participar mais<br />
da associação. A última vez que assumimos, já<br />
foi com outro caráter.<br />
DV – Qual era a nova meta?<br />
Irineu Guimarães – Nosso trabalho era<br />
unificar a comissão de luz. Deu certo. Elegemos<br />
nossa chapa, depois elegemos a diretoria<br />
da associação, a diretoria da comissão de<br />
luz e unificamos. Era proibido entrar luz da<br />
Light em comunidade, em favela. Fazíamos<br />
um trabalho tipo Robin Hood, roubávamos<br />
luz da Light e repassávamos. Mesmo assim,<br />
um morador denunciou a gente e deu uma<br />
confusão. A gente negou. A luz só entrou<br />
porque já tínhamos essa reivindicação. Como<br />
a ditadura estava muito desgastada e estavam<br />
querendo eleger o pessoal da Arena,<br />
houve um acordo para eles entrarem e botarem<br />
luz direto na favela.<br />
IRINEU GUIMARÃES<br />
OUTUBRO/2000 JUN 2007 67
<strong>ENTREVISTA</strong><br />
68 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9<br />
DV – No período da ditadura, você<br />
tinha que ficar escondido?<br />
Irineu Guimarães – Não, andava por aí<br />
tudo. A classe média não acreditava na nossa<br />
capacidade, não ligava muito para a gente.<br />
Nunca fui hostilizado, eles nunca acreditaram<br />
que tivéssemos capacidade de incomodá-los.<br />
Acredito nisso porque outras pessoas foram<br />
muito perseguidas, não é? O único lugar onde<br />
havia eleição nessa época, no Brasil, era nas<br />
favelas. Levamos até o Tribunal Regional Eleitoral<br />
para o Jacarezinho. Foi uma troca de interesses,<br />
eles precisavam de votos, mas nós fazíamos<br />
eleição. Até usávamos isso no discurso:<br />
‘Aqui é uma democracia. Mas lá fora não é’.<br />
DV – Continuou vinculado ao PCB?<br />
Irineu Guimarães – Sim, mas eu fiquei<br />
mesmo foi no Movimento Revolucionário<br />
Oito de Outubro (MR-8). Em 1981, fizemos<br />
o primeiro grande encontro dos metalúrgicos.<br />
Em 1979, foi meu segundo mandato no<br />
Jacaré, fui eleito de 77 a 79, depois de 79 a<br />
82. No primeiro mandato, fizemos um trabalho<br />
muito grande, compramos caminhãocaçamba,<br />
betoneira. Chegamos a ter dez mil<br />
sócios na associação, tinha grupos jovens,<br />
políticos, tinha tudo. Cheguei a acumular<br />
Jacarezinho e Faferj.<br />
DV – Como foi seu envolvimento<br />
com a Faferj?<br />
Irineu Guimarães – Foi, na verdade, um<br />
movimento de retomada, e não fui eu, foi um<br />
grupo político, porque ninguém faz nada só.<br />
Tenho a honra de ter sido o cara que falava<br />
mais em nome dessas pessoas, mas, na verdade,<br />
não fiz nada. Vou dizer mais: a Faferj era<br />
uma antes de nós e se tornou outra depois.<br />
Antes, tinha um trabalho incipiente, não encarava<br />
as coisas. Botamos muita banca por esse<br />
Rio de Janeiro afora.<br />
DV – Qual o objetivo dessa<br />
retomada?<br />
Irineu Guimarães – Só fui para a associação<br />
de moradores e para a Faferj porque sou<br />
comunista, fui fazer trabalho político. Transformávamos<br />
trabalho comunitário em político.<br />
Retomamos a Faferj com a intenção de revolucionar<br />
os favelados. Com o golpe militar,<br />
a Faferj ficou acéfala. Ficou com três diretores<br />
muito ruins. Só em 77, treze anos após, começamos<br />
a retomada. Junto conosco estava a Pastoral<br />
de Favelas, a Pastoral Operária. A Igreja<br />
ajudou muito. Acho que o grande lance desse<br />
momento foi a articulação entre as igrejas,<br />
pastorais e as organizações de esquerda para<br />
poder enfrentar e retomar a Faferj. Mas tenho<br />
um arrependimento profundo porque fundamos<br />
mais de cem associações, e não fizemos<br />
base política em nenhuma. Esse foi o grande<br />
erro, tinha que ter base em todo lugar e fazer<br />
um trabalho político.<br />
DV – Como era a relação entre<br />
o MR-8 e a o trabalho de<br />
mobilização de favelas?<br />
Irineu Guimarães – Ligação total! No movimento<br />
de favelas, tínhamos a nossa política<br />
clandestina, mas a gente discutia tudo no MR-8.<br />
Só consegui fazer esse trabalho todo na favela<br />
graças ao MR-8 e também à Igreja,<br />
que ajudou em certo período. Sozinho,<br />
jamais faria isso, de jeito<br />
nenhum. Esse mérito que o pessoal<br />
atribui a mim é muito mais do coletivo,<br />
fui só o porta-voz.<br />
DV – Nessa época, vocês já<br />
lutavam contra as remoções?<br />
Irineu Guimarães – Sim, encaramos<br />
várias remoções, desapropriamos,<br />
ocupamos terras, entraram na justiça<br />
contra nós, mas, com ajuda da<br />
Igreja, fizemos um movimento tão<br />
grande que desapropriamos essas<br />
áreas por 99 anos. A gente lutava<br />
muito, fazia passeata, pegava esse<br />
pessoal todo e enfiava no Palácio da<br />
Justiça, com criança mijando lá dentro.<br />
Eles ficavam doidos com a gente.<br />
Como tínhamos apoio da Igreja,<br />
eles não podiam baixar o pau na<br />
gente, e isso em plena ditadura.
Quando estava na Faferj e ocupávamos<br />
muita terra, um problema eram os aproveitadores.<br />
A gente ocupava as terras, eles iam<br />
junto com a gente, daqui a pouco estavam<br />
vendendo o terreno e a gente era obrigado<br />
a não criar muito problema para não enfraquecer<br />
o movimento. A gente tinha que engolir<br />
algumas coisas.<br />
DV – Dessas lutas, alguma<br />
marcou mais?<br />
Irineu Guimarães – Muitas marcaram, especialmente<br />
a primeira, da Charitas, em<br />
Niterói. Fomos para lá junto com a Pastoral.<br />
Mas a situação estava braba. O juiz tinha mandado<br />
remover e fomos tentar barrar a remoção.<br />
A advogada que estava nos acompanhando<br />
falava para o oficial de justiça: ‘O doutor<br />
juiz mandou que o senhor ouvisse minhas<br />
ponderações’. E ele: ‘Pode ponderar doutora’,<br />
e continuava derrubando tudo. Dava vontade<br />
de chorar. Foi a primeira que a gente encarou<br />
e lá nós perdemos.<br />
Já na Pedra Lisa, na Central, resistimos e<br />
ganhamos. Foi uma resistência grande, estavam<br />
lá donos de empresas de ônibus, foi uma<br />
briga danada, mas a favela permaneceu. Outra<br />
marcante foi a do Bosque da Barra, foi uma<br />
pedreira. Duzentos PMs e conseguimos barrar.<br />
Com a mobilização da comunidade, apoio da<br />
Pastoral, apoio de mais gente.<br />
DV – Esse movimento aconteceu<br />
simultaneamente em várias<br />
favelas, não é?<br />
Irineu Guimarães – Sim, fizemos três grandes<br />
encontros. Aquele dos metalúrgicos, com<br />
13 mil pessoas, e fizemos outros com 5 mil<br />
pessoas em outros lugares. Tínhamos uma mobilização<br />
muito grande e crédito nas favelas. A<br />
Faferj adquiriu isso, era uma coisa viva, tinha<br />
muita reunião, era uma disputa na eleição.<br />
DV – Nesse momento, também<br />
surge a Federação das Associações<br />
de Moradores do Estado do Rio de<br />
Janeiro (Famerj). Vocês tinham<br />
uma relação política?<br />
Irineu Guimarães – Eles não deram muita<br />
importância para nós. Achavam que já éramos<br />
da Faferj: ‘O que esses favelados vêm fazer<br />
aqui?’. Não deram aquele respeito de<br />
considerar que a gente era uma federação e<br />
eles seriam outra, mas fomos nós que orientamos<br />
os primeiros passos da Famerj, de certa<br />
forma, demos a luz para a fundação. Eu também<br />
nunca me interessei em participar da<br />
Famerj porque me orgulhava mais de ser favelado.<br />
Nem se me chamassem, não iria.<br />
Até hoje, me considero proletário da favela.<br />
Acho a favela brilhante, tem tudo ali. Desde o<br />
traficante até um grande profissional, o professor.<br />
Não tenho a menor dúvida, o marxismo<br />
também foi fundado pela classe média. O Lênin<br />
era de classe média, o Marx, muito mais. Para<br />
escrever O Capital, o que fez? Teve que ir para o<br />
seio da classe operária para entender esta contradição:<br />
a transformação da sociedade só interessa<br />
ao proletário, não interessa à classe média.<br />
A classe média quer ascendência, é burguesa<br />
e quer ser mais ainda.<br />
Já o proletário só<br />
tem a mão-de-obra,<br />
só tem a força de<br />
trabalho, então, é<br />
revolucionário por<br />
excelência.<br />
DV – Como<br />
vocês<br />
conciliavam<br />
o trabalho<br />
político e a<br />
sobrevivência?<br />
Irineu Guimarães<br />
– Passei a trabalhar<br />
por conta própria<br />
porque depois do<br />
golpe militar ficou difícil.<br />
E também já estava<br />
com uma idade<br />
mais avançada, já não<br />
estava muito a fim. Tinha<br />
uma pequena<br />
firma, tive vários negócios.<br />
Fui dono de<br />
aviário, de bar, tive<br />
barraca na rua e depois<br />
montei um fabrico<br />
de calçados com<br />
um companheiro que<br />
é sapateiro e comunista.<br />
Eu tinha a casa<br />
e ele tinha a sabedoria.<br />
A gente trabalhava<br />
artesanalmente. Só vendíamos em Copacabana.<br />
Ganhamos dinheiro pra caramba porque a<br />
gente via a moda nas revistas, fazia e vendia tudo.<br />
Aí, ganhei dinheiro e prejudiquei o pessoal do<br />
Jacaré que fabricava chinelo. Tinha uma porção<br />
de fábricas de chinelão lá. Quando montamos<br />
o fabrico de sapatos, pagávamos ao sapateiro<br />
todos os direitos que o empregado tinha que<br />
ter, aí o pessoal ficou com raiva porque todo<br />
mundo queria ter os mesmos direitos. Foi mais<br />
ou menos como aconteceu em Minas.<br />
IRINEU GUIMARÃES<br />
Orientamos os<br />
primeiros passos<br />
da Famerj, demos<br />
a luz para a<br />
fundação. Nunca<br />
me interessei em<br />
participar porque<br />
me orgulhava mais<br />
de ser favelado.<br />
Até hoje, me<br />
considero<br />
proletário da<br />
favela. Acho a<br />
favela brilhante<br />
OUTUBRO/2000 JUN 2007 69
<strong>ENTREVISTA</strong><br />
70 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9<br />
DV – A década de 1980 foi um<br />
período bastante conturbado para<br />
os partidos políticos. O que isso<br />
significou em sua trajetória<br />
comunista?<br />
Irineu Guimarães – Tive muita desilusão<br />
com partidos políticos. Fui de alguns partidos:<br />
do PMDB, do PCB... Isso atrapalha<br />
qualquer cidadão porque a gente começa a<br />
fazer o jogo político do partido. Se estou<br />
naquele partido e você chega lá vendendo<br />
seu peixe, não vou criticar porque seria falta<br />
de ética dentro do partido, assim vamos fazendo<br />
concessões adoidado. Foi o que sempre<br />
fiz muito: concessão eleitoral, não política.<br />
Por exemplo,<br />
hoje, na TV, aparece<br />
muita gente falando<br />
da grandeza<br />
do seu partido e<br />
elogiando o governo<br />
Lula. Na verdade,<br />
trata-se de um<br />
jogo de interesses.<br />
Eles só estão com<br />
Lula por interesse e<br />
não porque admiram<br />
a política que<br />
ele faz, porque ele<br />
é o presidente. São<br />
as tais concessões<br />
políticas.<br />
Todo mundo fez<br />
quando estávamos<br />
na Faferj. Tinhamos<br />
uma política eleitoral,<br />
eu era do PMDB,<br />
ainda sou filiado, e<br />
fazia muita concessão.<br />
Por exemplo,<br />
achava que Garotinho<br />
era uma boa<br />
pessoa e hoje reconheço<br />
que foi um<br />
erro. Garotinho é<br />
um aprendiz do<br />
Brizola, um cara que<br />
quer mandar sozinho.<br />
E mesmo que ele tivesse boa vontade,<br />
no sistema todos os partidos políticos são<br />
iguais. Ninguém consegue me apontar um<br />
partido que não tenha sido feito debaixo da<br />
ditadura militar. Todos foram. Tem partido de<br />
ultradireita com pontos no estatuto mais<br />
avançados do que nos partidos de esquerda,<br />
só que não aplica, não pratica. Quando o ne-<br />
Brizola foi um<br />
governador igual<br />
aos outros. Nunca<br />
foi um democrata.<br />
No governo dele,<br />
quem mandava era<br />
ele e mais alguns<br />
amigos a quem ele<br />
autorizava. Ele foi<br />
altamente<br />
autoritário, por<br />
isso, nunca fui<br />
brizolista<br />
oliberalismo começou também era assim, os<br />
neoliberais não diziam o que fariam de ruim,<br />
só falavam da parte boa.<br />
DV – Destacaria alguma mudança<br />
substantiva no movimento de<br />
favelas durante os dois mandatos<br />
de Brizola como governador do<br />
Rio de Janeiro?<br />
Irineu Guimarães – Não, Brizola foi um<br />
governador igual aos outros. Nunca foi um<br />
democrata. No governo dele, quem mandava<br />
era ele e mais alguns amigos a quem ele autorizava.<br />
Ele foi altamente autoritário, por isso<br />
nunca fui brizolista. Cheguei a conversar com<br />
Brizola umas duas horas quando ele voltou<br />
do exílio. Fui conversar com ele, em nome do<br />
MR-8, pedindo para ele não criar um partido,<br />
e sim entrar em um partido já existente, mas aí<br />
todo mundo já sabe o resultado. Em outro<br />
momento, Brizola me chamou para inaugurar<br />
um Ciep e eu recusei. Ele ficou danado comigo,<br />
nunca me perdoou.<br />
Brizola também lançou a campanha de<br />
um lote para cada família da favela. Aquilo<br />
só deu confusão. Na verdade, o político mais<br />
amigo dos favelados, por incrível que pareça,<br />
foi o Marcelo Allencar. Ele dava prestígio<br />
aos dirigentes comunitários, ajudava<br />
mesmo. Quem construiu a sede da Faferj<br />
foi ele, a gente reivindicou e ele atendeu.<br />
Tínhamos ótima relação com Marcelo<br />
Allencar porque tínhamos ideologia, e olha<br />
que nem votamos nele.<br />
DV – Chegou a se candidatar para<br />
algum cargo político?<br />
Irineu Guimarães– Sim, em algumas ocasiões,<br />
mas sempre fui indicado pelo MR-8.<br />
Muitas vezes, nem era para eu ser eleito, era<br />
para fazer denúncia.<br />
DV – Ainda está ligado ao<br />
movimento comunista?<br />
Irineu Guimarães – Não, mas ainda me<br />
considero comunista. Só acredito que vai haver<br />
justiça no dia em que o mundo for comunista.<br />
Na minha opinião, não tem outra<br />
forma. Enquanto houver a exploração do homem<br />
pelo próprio homem não pode haver<br />
justiça. Hoje, tenho muitas restrições aos partidos<br />
comunistas do mundo. Um partido não<br />
pode ser comandado por uma pessoa, tem<br />
que ter um comitê central e todo mundo tem<br />
que falar em nome do comitê. Sou admirador<br />
do Fidel, mas não concordo com a concentração<br />
de poder na mão dele. Amanhã,<br />
ele morre e fica igual ao Mao Tsé Tung, que<br />
morreu sem deixar um sucessor. Um partido
tem que ser construído na base da crítica e<br />
da autocrítica, seja para quem for, mas isso<br />
não ocorre muito. O cara acumula tanto poder<br />
que todo mundo fica com medo de falar<br />
com ele. Isso é um erro, partido não deve ter<br />
dono. Fui do comitê central do MR-8 e vi as<br />
mazelas que aconteciam, os erros que a gente<br />
cometeu. O movimento acabou por isso.<br />
Foi havendo uma série de divergências, todo<br />
mundo foi saindo. Só pode haver justiça se<br />
for realmente coletiva. É do ser humano ser<br />
um pouco ditador, a gente é vaidoso por excelência.<br />
E, às vezes, fica danado da vida com<br />
a crítica, sem compreender que a crítica é<br />
melhor que um elogio.<br />
DV – O estigma de morar em<br />
favela sempre foi forte, a ponto<br />
de começaram a usar a palavra<br />
comunidade em vez de favela.<br />
Mas você tem muito orgulho de<br />
ser favelado. Pode falar mais<br />
sobre essa identidade?<br />
Irineu Guimarães – Sei que ser favelado<br />
não tira o prestígio de ninguém, gosto de dizer<br />
que sou favelado em todo lugar que vou,<br />
nunca neguei. E quando alguém critica, converso,<br />
discuto: ‘Os desembargadores não são<br />
favelados e meteram a mão no dinheiro do<br />
povo, só que ninguém os chama de marginais’.<br />
Não sei se vocês já repararam nisso, nenhuma<br />
pessoa da classe média que tenha dado<br />
um desfalque é chamada de marginal, de fora<br />
da lei. O povo não está gostando desse negócio.<br />
Como uma pessoa pode se aposentar ganhando<br />
R$ 25 mil por mês? O povo está vendo<br />
isso. Ora, a pessoa roubou e ainda vai se<br />
aposentar assim? Enquanto isso, a maioria não<br />
tem dinheiro, não consegue ganhar nem o<br />
salário mínimo porque não tem trabalho.<br />
O pessoal que mora em favela não tem ideologia,<br />
são trabalhadores que vieram, na maioria,<br />
do interior de Minas ou do Nordeste,<br />
onde não tinham participação política e não<br />
interagiam com a classe média ou com as autoridades<br />
de um modo geral. Todo mundo<br />
malha favelado, diz que favelado é ladrão, desonesto.<br />
Se tiver dez pessoas e um favelado<br />
em um local e sumir algo, vão culpar o favelado.<br />
Se, num grupo, a pessoa faz algo mal-educado,<br />
dizem: ‘Esse cara parece favelado’. Por<br />
isso, as pessoas têm vergonha de dizer que<br />
moram em favela, quando vão procurar emprego,<br />
por exemplo. Eu mesmo mudei da favela<br />
por causa da minha mulher, que também<br />
é da favela do Jacarezinho e não queria mais<br />
passar por isso.<br />
DV – E onde mora agora?<br />
Irineu Guimarães – Moro no bairro do<br />
Jacaré, não moro mais na favela. Morei na favela<br />
por mais de 50 anos, mudei para o bairro<br />
há uns quatro anos. Em julho, no mesmo dia<br />
do aniversário da Faferj, completo 50 anos de<br />
casamento, temos quatro filhos, nove netos e<br />
cinco bisnetos, o mais velho já está com 8 anos.<br />
Mas brigo com minha mulher por causa disso,<br />
eu gosto é de lá, onde tenho amigos, converso<br />
com todo mundo, apesar de já ter saído do<br />
movimento de favelas há algum tempo. Tem<br />
sempre alguém que me conhece por causa do<br />
trabalho que realizamos lá.<br />
DV – O que pensa sobre religião?<br />
Irineu Guimarães – Não sou religioso e<br />
não sou contra as religiões. Minha mulher é<br />
crente e converso com ela: ‘Aquilo lá é de vocês’.<br />
Tenho ótima relação com a Igreja Católica, fui<br />
criado na Igreja Católica. É aquele negócio: todo<br />
mundo que não é muito ligado em religião diz<br />
que é católico. Todo mundo deve ser o que<br />
quiser, mas, se pudesse, lutaria para que as pessoas<br />
fossem menos religiosas e mais políticas.<br />
Tudo é política, mas a religião exclui a política.<br />
IRINEU GUIMARÃES<br />
OUTUBRO/2000 JUN 2007 71
<strong>ENTREVISTA</strong><br />
O movimento<br />
político libertador<br />
tem que ser<br />
organizado.<br />
Sem organização,<br />
não adianta.<br />
Sem base,<br />
não há<br />
consistência,<br />
não há<br />
objetividade<br />
72 DEMOCRACIA VIVA Nº 35 9<br />
DV – E sobre o aborto?<br />
Irineu Guimarães – Se fosse liberado,<br />
eu não estaria aqui. Sou 11º filho! Sou a favor<br />
da vida. O aborto é um negócio ruim para<br />
a mulher, faz mal à saúde da mulher. Mas não<br />
sou contra preservativos, camisinha. Tem que<br />
haver uma solução porque ou nos organizamos<br />
para crescer muito ou para crescer pouco.<br />
Do jeito que está, fica difícil segurar. O<br />
Brasil que está aí tem uma concentração de<br />
renda fora do comum. É um dos mais ricos do<br />
mundo e tem também os pobres mais pobres<br />
do mundo. Não sei porque o ser humano tem<br />
esta idéia: se tem dinheiro,<br />
quer ganhar<br />
mais. Se já<br />
tem tudo, ainda<br />
briga, mata. O capitalismo<br />
é assim,<br />
não se pode ter<br />
pena de ninguém.<br />
DV – O que a<br />
associação de<br />
moradores do<br />
Jacarezinho<br />
guarda do<br />
tempo de<br />
mobilização?<br />
Irineu Guimarães<br />
– Nada, o presidente<br />
da associação<br />
hoje não faz<br />
um trabalho político.<br />
É uma pessoa<br />
com quem me dou,<br />
mas hoje nas favelas<br />
não existe mais<br />
aquele tipo de presidente<br />
que discutia<br />
uma série de<br />
medidas em benefício<br />
das comunidades. Quase não existe<br />
mais isso.<br />
DV – Então, qual é o papel<br />
da associação de moradores<br />
na favela hoje?<br />
Irineu Guimarães – Viver da associação<br />
de moradores, ser bem-enturmado,<br />
benquisto e levar a vida. É difícil encontrar<br />
hoje presidente de associação organizando<br />
o pessoal para fazer passeata. Esse tempo<br />
acabou. Naquele tempo, fazíamos mobilização<br />
para reivindicar água, luz e imaginávamos<br />
a construção de uma outra sociedade.<br />
Hoje, o governo pode tomar qualquer<br />
medida que não há protesto. Nem os depu-<br />
tados protestam. Esse presidente operário<br />
foi a melhor jogada para o imperialismo,<br />
porque nunca se fez no Brasil o que se faz<br />
agora. Juntaram-se todas as forças dentro<br />
do governo, não há contradição no país.<br />
Tem que haver um movimento para moralizar<br />
os hospitais, para o povo ter direito pelo<br />
menos a se tratar, ir ao médico. Não sei como<br />
se pode chamar a pessoa de cidadão se não<br />
tem emprego. Que cidadão é esse? Não tem<br />
emprego, não tem subsistência. E ninguém<br />
protesta, ninguém faz nada.<br />
DV – Tem alguma chance de o<br />
movimento de favelas inflamar<br />
novamente?<br />
Irineu Guimarães – Olhando assim, praticamente,<br />
não vejo saída, mas há fatos que<br />
acontecem alheios a nossa vontade. Tem<br />
uns políticos que nem são revolucionários,<br />
têm uma idéia, levantam um negócio e dali<br />
a pouco todo mundo começa a falar sobre<br />
aquilo, o próprio povo também. Só que<br />
acontece sempre do lado errado. O movimento<br />
político libertador tem que ser organizado.<br />
Sem organização, não adianta. Vamos<br />
subir e depois voltar para o mesmo<br />
lugar. Sem base, não há consistência, não<br />
há objetividade. Mas acredito que temos<br />
que recomeçar com pouco, um pouquinho<br />
no Jacarezinho, um pouquinho no Alemão,<br />
um pouquinho em outra favela. Temos que<br />
recomeçar por aí.<br />
DV – Tem acompanhado as<br />
polêmicas sobre os jogos do<br />
Pan? Acha que vai sobrar alguma<br />
coisa para as comunidades?<br />
Irineu Guimarães – Acho que não sobra<br />
nada. Fico imensamente triste de a gente<br />
aceitar isso assim, de mão beijada. Os<br />
deputados foram a favor, o prefeito foi a favor,<br />
o Lula também. Lá no Jacarezinho, o prefeito<br />
não manda nem os garis limparem os<br />
ralos para evitar enchentes, mas está gastando<br />
para o Pan. O estádio que foi<br />
construído para isso é moderníssimo, mas<br />
vamos ao hospital e não tem nem uma aspirina<br />
para o doente tomar. E ele quer remover<br />
todas as comunidades, para limpar aquilo<br />
ali, porque o pobre faz mal a ele.<br />
DV – E a falta de segurança<br />
pública no Rio de Janeiro,<br />
também tem a ver com<br />
mobilização?<br />
Irineu Guimarães – Sobre isso, nunca<br />
vi tanto cinismo como no discurso do Sérgio<br />
Cabral. Ele disse que acabaria com o
caveirão, que as favelas não iriam mais sofrer<br />
com isso, que a polícia passaria a respeitar<br />
os favelados. O maior desrespeito foi<br />
logo no começo do mandato. Ele foi em tudo<br />
quanto é lugar buscar reforço para acabar<br />
com a violência no Rio de Janeiro: Exército,<br />
Marinha. O governo dele não tomou nenhuma<br />
medida para beneficiar o povo nem<br />
na saúde, nem no social, nem na questão<br />
da infra-estrutura para consertar uma favela,<br />
nem nada. Quando ele fala do projeto<br />
de pegar dinheiro do PAC [Programa de Aceleração<br />
do Crescimento] para urbanizar a<br />
Rocinha, o Complexo do Alemão e Manguinhos,<br />
é balela também. Vila Cruzeiro é uma<br />
comunidade urbanizada. Não sei se vocês<br />
conhecem, não tem nenhuma rua de barro,<br />
em quase todas as ruas passa carro, na principal<br />
passa até ônibus. Quem disse que abrir<br />
ruas na Rocinha e no Alemão vai ajudar a<br />
acabar com a violência?<br />
DV – Qual é a grande diferença<br />
entre a favela de ontem e<br />
a de hoje?<br />
Irineu Guimarães – A diferença é que<br />
o movimento político social na favela hoje<br />
não existe. Os presidentes de associação<br />
não são preparados para isso. No nosso<br />
tempo, também influenciávamos na escolha<br />
do presidente. A gente observava nas<br />
assembléias o camarada mais progressista<br />
e influenciava, botava na cabeça dele que<br />
ele tinha que ser presidente da associação.<br />
Ajudamos a fazer muito presidente assim.<br />
Hoje, nós não participamos mais disso, até<br />
porque os presidentes não têm política para<br />
fazer isso. Quer força política maior do que<br />
a mulher? Mas elas quase não participam.<br />
Hoje, o movimento nas associações teria que<br />
ser diferente: um movimento para empregos,<br />
outro para construir creches para as<br />
mulheres poderem trabalhar. Tem muita tarefa<br />
para se fazer ainda.<br />
DV – Era mais fácil morar<br />
na favela no passado?<br />
Irineu Guimarães – Adoro morar na favela,<br />
lá a luz é baratinha, telefone, não precisa<br />
pedir licença para fazer nada, constrói<br />
um, dois, três andares sem falar com ninguém.<br />
Antes, era proibido fazer isso, fomos<br />
nós que levamos essa mudança para a favela.<br />
Quando entrei na favela era proibido fazer<br />
casa de alvenaria. Tinha um departamento<br />
na Fundação Leão XIII encarregado de<br />
fazer as remoções e tomar conta das favelas,<br />
por meio do Decreto 3.330, que disci-<br />
plinava as favelas. Fomos contra isso e vencemos.<br />
Fizemos um movimento: ‘quando vierem<br />
derrubar, a gente não deixa. Isso aqui<br />
é seu, é o lugar para criar sua família e seus<br />
filhos’. Fomos botando isso na cabeça do<br />
pessoal. Antes, ninguém podia ter muro,<br />
era proibido. Aos poucos, mudamos esse<br />
negócio todo.<br />
Quando fui eleito presidente da associação,<br />
em 77, uma pessoa da fundação me chamou<br />
para dizer quais normas eu tinha que<br />
obedecer. Mas também nessas normas diziam<br />
que quem mandava era o presidente da<br />
associação. Uma das grandes brigas que criei<br />
com a fundação foi essa. Fazíamos de outra<br />
maneira, não aceitávamos a fundação.<br />
DV – Você está envolvido em<br />
algum movimento agora?<br />
Irineu Guimarães – Não, às vezes me<br />
chamam para algum aniversário de uma associação,<br />
mas faço questão de dizer que<br />
não estou participando mais. Em reunião<br />
gosto de ir, quero fazer reunião nas favelas,<br />
mas é reunião política, não é comunitária.<br />
Não adianta começar trabalho com quem<br />
não tem ideologia.<br />
IRINEU GUIMARÃES<br />
Participaram desta<br />
entrevista:<br />
Convidados: Milton<br />
Gomes Pereira (Diquinho)<br />
e Gilson Cardoso.<br />
Do <strong>Ibase</strong>: AnaCris<br />
Bittencourt, Cândido<br />
Grzybowski, Dulce<br />
Pandolfi, Itamar Silva e<br />
Jamile Chequer.<br />
Fotos: Marcus Vini.<br />
Sonorização: Douglas<br />
Vieira e Gilberto<br />
Nascimento.<br />
OUTUBRO/2000 JUN 2007 73