PEDRAS NIA BOTINA - Nosso Tempo Digital
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idades que, ao invés de mortos para enterrar,<br />
havia uma gravíssima situação a resolver,<br />
profundamente ligada ao fiasco completo<br />
do sistema penitenciário.<br />
Talvez porque fosse inédito em casos<br />
semelhantes, o procedimento do dr. Saulo<br />
foi sendo cercado de pressões partidos do<br />
setor mais radical da PM e vasadas através<br />
da imprensa, de modo a confundir a opinião<br />
pública. Por omissão, ou incompetência,<br />
inclusive de entidades sociais, os problemas<br />
não foram examinados e debatidos<br />
na necessária profundidade e, enfim, o<br />
espaço ficou aberto para a barbárie que devolveu<br />
à autoridade o controle interno da<br />
PCE, no dia 16.<br />
ÚLTIMOS CARTUCHOS<br />
Evidentemente, os erros profundos e<br />
clirnorosos do sistema penitenciário não<br />
poderiam ser solucinados num rompante,<br />
ao sabor de uma rebelião de presos<br />
em especial quando se sabe que a PCE<br />
constitui, como um todo, um só e grosso<br />
erro. Entretanto, para proteger a sociedade,<br />
tornava-se necessário e urgente o controle<br />
da penitenciária pelas autoridades policiais<br />
e carcerárias.<br />
Os presos estavam desarmados havendo<br />
todos os meios para subordiná-los de modo<br />
racional, comedido, sem violência ou condescendência<br />
excessiva.<br />
O Estado gastou uma pequena fortuna<br />
em quase um mês de operação policial-militar,<br />
para chegar ao fim sepultando de vez<br />
o bom senso. A incompetência revelou-se<br />
por inteiro antes através da falta de autoridade,<br />
depois por uma conduta cruel e sadi<br />
c da repressão.<br />
Nesse tempo todo, a munição gasta pela<br />
PM na contenção de sucessivos motins e<br />
fugas seria suficiente para manter uma pequena<br />
guerra. Mas tudo foi inútil, às vezes<br />
esportivo. Mais um pouco e os presos conquistariam<br />
a liberdade em massa e a sociedade<br />
entraria em pânico. Enquanto a PM<br />
dava tiros e as autoridades declaravam à imprensa<br />
que tudo estava sob controle, os presos<br />
cavavam túneis (mais de 10) e trancavam<br />
"terezas" (cordas e escadas para pular<br />
os muros).<br />
A direção da PCE estava nas mãos do<br />
senhor Adalberto Arns, também impotente<br />
diante da situação.<br />
Sexta-feira, 14 de janeiro de 1.983. Sob<br />
intenso tiroteio da PM, houve fuga de presos,<br />
sendo um deles recapturado e literalmente<br />
estraçalhado pela tortura policial.<br />
Coronhadas, bofetões, e ponta-pés o deixaram<br />
um trapo humano, devendo ser agora<br />
um dos mortos nessa batalha. "Os policiais<br />
despiram o preso e saíram com os coturnos<br />
brilhando de tanto ponta-pé que deram<br />
no infeliz" - contava um sargento depois.<br />
Sábado, dia 15. A noite, as mesmas cenas,<br />
no mesmo campo de guerra e a conclusão<br />
definitiva do fracasso total do esquema<br />
de segurança da PCE. O que estava além<br />
dos limites da resistência a essas alturas era<br />
a fúria da PM.<br />
Domingo, 16. Aos domingos, a imprensa<br />
e a sociedade estão distraídos. Tinha que<br />
ser naquele dia, concluiu o comando. A PM<br />
preparou-se para impor o desfecho macabro<br />
à maior rebelião de presos da história<br />
do Paraná e, seguramente, a mais prolongada<br />
da história do País. Os presos da PCE<br />
mandavam na casa há quase um mês. A PM<br />
resolve aliviar sua sensação de impotência<br />
numa operação marcada pela mais irada<br />
vingança contra seus subordinados rebeldes.<br />
O dia era cinzento em Piraquara. As visitas<br />
aos presos estavam suspensas. No interior<br />
da penitenciária os líderes da rebelião<br />
faziam planos. Equipes de presos trabalhavam<br />
na escavação de túneis e outros perambulavam<br />
pelos pátios - ninguém suspeitando<br />
do que se tramava além dos muros. Horas<br />
depois, um assalto selvagem, os tomaria<br />
de surpresa.<br />
O comando da PM trocara o fim de semana<br />
nas praias por aquela que seria uma<br />
das páginas mais negras da história da instituicão.<br />
Pela manhã, a arregimentação das<br />
forcas, a elaboração de planos e instruções<br />
à tropa. À tarde, a execução do empreendimento<br />
-- com raiva.<br />
Às 3 da tarde, tudo a postos: Polícia de<br />
Guarda, Cavalaria, Corpo de Bombeiros,<br />
armas de todos os calibres, gases e cães<br />
nas mãos de cerca de 300 homens. Não escaparia<br />
um mosquito.<br />
À imprensa, nem uma festa. Sob o pretexto<br />
de que a imprensa atrapalharia e que<br />
não haveria segurança para os jornalistas,<br />
tudo o que acontecesse de bárbaro ficaria<br />
escondido à opinião pública. Ao final, algumas<br />
declarações dizendo que "tudo foi<br />
resolvido sem violência, na mais perfeita ordem<br />
e tranqüilidade", aliviariam a todos e a<br />
sociedade bateria palmas à corajosa ação<br />
policial. A opinião pública não ficaria sabendo<br />
o preço (material e humano), mas ficaria<br />
tranqüila porque a rebelião estaria,<br />
enfim, dominada.<br />
SADISMO E COVARDIA<br />
Quando estourou a revolta em 20 de<br />
dezembro, a guerra parecia mais completa.<br />
O intenso pipocar de fuzilaria, os incêndios,<br />
o pânico e os gritos da massa enfurecida<br />
compunham um quadro aterrorizante num<br />
raio de centenas de metros. Na retomada<br />
do presídio pela PM sem incêndios, as depredações<br />
e os disparos, só a gritaria do pânico<br />
anunciava para além dos muros a bárbane<br />
em curso no interior da PCE.<br />
Cercados e imobilizados, os presos foram<br />
obrigados a despir-se completamente.<br />
Cães ferozes, poupando as pernas dos policiais,<br />
rasgando roupas e carnes encarregaram-se<br />
de render os que não queriam se entregar.<br />
"Nenhum preso ficou sem apanhar"<br />
- garantia depois um sargento. Os policiais<br />
formaram filas por onde passavam os prisioneiros<br />
para receber cada um sua dose de<br />
agressões. De acordo com sua periculosidade<br />
ou grau de liderança na rebelião, as presas<br />
do sadismo enlouquecido colhiam coronhadas,<br />
ponta-pés, bofetadas, e arrastavam<br />
para dentro das celas seus corpos arruinados,<br />
sangue vomitado, gemidos que aos<br />
poucos se abafaram até reinar o silêncio lúgubre<br />
imposto pelo terror.<br />
Os pobres-diabos passavam por onde se<br />
fazia urna triagem para distribuição de igno-<br />
ri<br />
1 II -<br />
h41<br />
i denúncia<br />
mínias. "Este é o Savagim" - apontavam<br />
um policial. E as feras pulavam em cima.<br />
"Este é o Riato" - berrava o outro. E as feras<br />
pulavam em cima, espancando sem escolher<br />
onde ou fazendo a vítima beijar os pés<br />
dos algozes.<br />
Nem todos os policiais aderiram à selvageria,<br />
mas quem quis saciar sua sede de<br />
sangue não deixou passar a oportunidade.<br />
Para fugir ou se refugiar, presos entraram<br />
nos túneis que havia cavado e lá receberam<br />
balaços e bombas de gás. Se há mortos<br />
naqueles subterrâneos, talvez nunca se<br />
venha a saber, mas dois dias depois, um policial<br />
saiu da penitenciária enojado com "o<br />
forte fedor de carne humana(?) em decomposição"<br />
e escarnecendo a desinformação<br />
da imprensa.<br />
"Depois dessa lição exemplar, esses vagabundos<br />
não voltarão tão cedo às fugas e<br />
desordens" - comentavam os policiais.<br />
Os líderes da rebelião e os mais arrogantes<br />
dentre os presidiários foram separados<br />
nos porões do setor de segurança máxima.<br />
Perto de 50 elementos foram distribuídos<br />
em número de dois ou três em cada uma<br />
das minúsculas, escuras, frias e úmidas celas,<br />
ainda que pequenas para abrigar uma<br />
única pessoa. Estraçalhados pela tortura,<br />
foram postos ali completamente nus, sem<br />
colchão, sem um trapo e assim ficaram por<br />
pelo menos dois ou três dias. "Se não receberem<br />
pronto atendimento médico disse<br />
um sargento - alguns deles vão morrer".<br />
O autor deste relato, condenado pela<br />
Lei de Segurança Nacional, não escreve por<br />
ouvir dizer, mas porque viu esses presos serem<br />
conduzidos, nus, de um lado para<br />
outro, de mãos à cabeça, cercados de metralhadoras,<br />
e para escárnio supremo, obrigados<br />
a desfilar gritando vivas à Polícia. Humilhação<br />
total. Seus corpos, pálidos e cadavéricos,<br />
levavam marcas e ferimentos visíveis<br />
a dezenas de metros.<br />
A noite, no andar de cima, na "prisão<br />
especial" do jornalista, dorme-se ao som de<br />
gemidos dessas pessoas reduzidas a vermes.<br />
A música se completa com a agitação<br />
e o sarcasmo entrecortando a sinfonia dos<br />
horrores que passam à opinião pública por<br />
"restabelecimento da ordem e da tranquilidade<br />
na PCE".<br />
Em frente ao prédio onde a orquestra<br />
toca sua música macabra, no centro de um<br />
jardim foi hasteada a Bandeira do Brasil.<br />
Não seria ultrajante se ao menos estivesse a<br />
meio-pau, mas está tremulando ao vento no<br />
topo do mastro.<br />
Ninguém queria que os presos fossem<br />
soltos ou que continuassem controlando a<br />
penitenciária, mas também não há argumentos<br />
que justifiquem a brutalidade da<br />
repressão, especialmente porque a violência<br />
não era, em absoluto, necessária para o<br />
êxito da tarefa policial.<br />
Esta revolta foi sufocada. Outras virão,<br />
ainda mais enfurecidas. Se o Governo não<br />
entender dai que é inaudível a transformação<br />
total do sistema penitenciário, não estará<br />
longe o tempo em que os próprios presos<br />
o farão voar pelos areas à força da única<br />
alternativa de realização que se lhes apresenta:<br />
o furor louco, fatalista e incontrolável<br />
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