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2º Centenário das Invasões Francesas A Corte Portuguesa no Brasil

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<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong><br />

A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> (1808 – 1821) – 1ª Parte -A<br />

Por<br />

Carlos Jaca<br />

(Historiador – Braga, Julho – 2008)<br />

[Com a colaboração de Jorge Freitas]<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

Diário do Minho, 9 e 16 de Julho de 2008<br />

O presente trabalho, intitulado «A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>», vem na<br />

sequência dos já publicados neste mesmo Suplemento de Cultura entre Outubro de<br />

2007 e Janeiro de 2008, («A neutralidade portuguesa <strong>no</strong> conflito franco – inglês») e<br />

integra-se nas comemorações do <strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong> a que o «Diário<br />

do Minho» se tem vindo a associar através do referido Suplemento.<br />

Convém, antes de iniciar a narração referente à presença da <strong>Corte</strong> portuguesa<br />

<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, recordar, e até acrescentar mais alguns porme<strong>no</strong>res, acerca <strong>das</strong> razões que<br />

levaram D. João VI a tomar a decisão de se retirar, e permanecer, durante alguns a<strong>no</strong>s,<br />

na <strong>no</strong>ssa antiga colónia do continente america<strong>no</strong>, bem como a odisseia da viagem.<br />

A ameaça napoleónica.<br />

Em Outubro de 1807, as tropas associa<strong>das</strong> em Baiona, comanda<strong>das</strong> pelo exembaixador<br />

em Lisboa, o general Ju<strong>no</strong>t, começaram a dirigir-se para a fronteira<br />

portuguesa, onde a vanguarda, os primeiros destacamentos, entraram, pela Beira Baixa,<br />

a 18 de Novembro.<br />

Dois dias antes aportava ao Tejo uma armada inglesa, comandada por Sir<br />

Sidney Smith, transportando uma força de 7.000 homens de desembarque, preparada<br />

para escoltar a Família Real para o <strong>Brasil</strong>, ou bloquear o porto, tentando evitar, deste<br />

modo, que os navios mercantes ou de guerra de Portugal fossem tomados pelos<br />

franceses. Com efeito, o almirante Smith e o embaixador Strangford decidiram-se pelo<br />

bloqueamento, comunicando ao Gabinete lisbonense que os despachos do Foreign<br />

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Office, só admitiam que o bloqueio fosse levantado mediante a pronta entrega da frota<br />

portuguesa ou a sua partida para o <strong>Brasil</strong> transportando a Família Real.<br />

Foi nestas circunstâncias que chegou a Lisboa um correio extraordinário<br />

remetido pelo <strong>no</strong>sso embaixador em Londres, Domingos de Sousa Coutinho. O correio<br />

era portador de uma <strong>no</strong>tícia bem preocupante. Trazia a cópia de um artigo de fundo<br />

publicado, a 11 de Novembro, <strong>no</strong> «Moniteur», órgão oficioso do gover<strong>no</strong> francês.<br />

Referindo-se à situação em que a Inglaterra deixava Portugal, declarava, abertamente,<br />

que o Imperador resolvera eliminar a Casa de Bragança: «…O príncipe Regente deste<br />

rei<strong>no</strong> perde o seu tro<strong>no</strong>, e perde-o influenciado pelas intrigas dos ingleses; perde-o por<br />

não ter querido apreender as mercadorias inglesas que estão em Lisboa. Que faz,<br />

portanto, a Inglaterra, esta sua aliada tão poderosa? Ela olha com indiferença para o<br />

que se passa em Portugal. Que fará ela, quando<br />

for tomado este rei<strong>no</strong>? Ir-se-á assenhorear do<br />

<strong>Brasil</strong>? Não: se os ingleses fizerem esta tentativa,<br />

os católicos os expulsarão. A queda da Casa de<br />

Bragança ficará portanto sendo uma <strong>no</strong>va prova<br />

de que é inevitável a perda de qualquer que se<br />

ligar aos ingleses». Reproduzia, ainda, o Tratado<br />

de Fontainebleau e, obviamente, a intenção do<br />

Imperador de proceder ao desmembramento do<br />

território nacional «em função <strong>das</strong> conveniências<br />

da sua política europeia».<br />

Pelo me<strong>no</strong>s, desde 21 de Novembro que<br />

Com Ju<strong>no</strong>t já em Abrantes, Araújo de<br />

se sabia em Lisboa qual a posição e progressão Azevedo (Ministro dos Estrangeiros)<br />

sugere ao Príncipe Regente que<br />

acerca do exército de Ju<strong>no</strong>t que, por essa altura, convoque sem demora o Conselho de<br />

Estado (que viria a reunir-se da 24 de<br />

estava em marcha entre Vila Velha de Ródão e Novembro, <strong>no</strong> Palácio da Ajuda.<br />

Abrantes. Precisamente naquele mesmo dia,<br />

perante o perigo que se avizinhava, Araújo de Azevedo, Ministro dos Estrangeiros e<br />

Guerra, dirige uma carta a D. João a sugerir que convocasse, sem demora, o Conselho<br />

de Estado.<br />

Desde logo, o Príncipe Regente incumbiu o Ministro de convocar o referido<br />

Conselho, sendo já com inteiro conhecimento dos termos do Tratado de Fontainebleau<br />

e da presença do exército francês em Abrantes, que os conselheiros se reuniram, pela<br />

última vez, na manhã de 24 de Novembro, <strong>no</strong> Palácio da Ajuda.<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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Depois dos conselheiros terem tomado conhecimento de uma <strong>no</strong>ta do<br />

embaixador Strangford solicitando uma audiência a S. A. R. e de um ofício de Sir<br />

Sidney Smith, comandante da esquadra que bloqueava o porto, anunciando o<br />

tratamento hostil que praticaria se as disposições de Portugal não fossem amigáveis,<br />

deliberou-se que:<br />

«Pareceu aos Conselheiros de Estado que havendo-se esgotado todos os meios<br />

de negociação e não havendo esperança alguma discreta que por tais expedientes se<br />

removesse o perigo iminente que ameaça a existência da Monarquia, soberania e<br />

independência de S. A. R., achando-se entra<strong>das</strong> nelas tropas francesas, se não devia<br />

perder um só instante em acelerar o embarque de S. A. R. o Príncipe Regente Nosso<br />

Senhor e de toda a Real Família para o <strong>Brasil</strong>;<br />

Que em tais circunstâncias se devia responder a Lord Strangford participandolhe<br />

a conferência que S. A. R. lhe concedia;<br />

Que ao ofício de Sir Sidney Smith haja de se responder significando-lhe as<br />

disposições de Sua Alteza Real a receber a esquadra inglesa <strong>no</strong>s seus portos e os seus<br />

desejos de que lhe haja de entrar quanto antes;<br />

Que as tropas que se acham actualmente guarnecendo as margens, fortalezas e<br />

baterias do Tejo hajam de se retirar daquelas posições e passarem a ocupar os sítios<br />

que S. A. R. lhes destinar, expedindo-se ordens aos governadores <strong>das</strong> torres e<br />

fortalezas para que hajam de franquear a entrada do porto, a todos os navios ingleses,<br />

assim de guerra como mercantes.<br />

Que resolvendo-se S. A. R. a passar para o <strong>Brasil</strong> deverá estabelecer-se um<br />

Conselho de Regência na forma que se tem praticado em ocorrências tais e nas<br />

ocasiões em que este Rei<strong>no</strong> se tem achado sem legítimo sobera<strong>no</strong>, devendo esta<br />

Regência, com os poderes régios que lhe forem delegados por S. A. R., ser composta<br />

<strong>das</strong> principais e de altas graduações militares que S. A. R. houver de eleger.<br />

Palácio de Nª. Sª da Ajuda, 24 de Novembro de 1807».<br />

Seguem-se as assinaturas dos conselheiros.<br />

A ideia não surgiu apenas a 24 de Novembro, quando o Conselho de Estado<br />

sancio<strong>no</strong>u a transferência, era um processo que tinha vindo a amadurecer. Desde<br />

Agosto que os trabalhos <strong>no</strong>s estaleiros e <strong>no</strong> Arsenal estavam em intensa laboração,<br />

suscitando a curiosidade popular e alimentando rumores cada vez mais insistentes<br />

sobre a iminente partida. O facto de terem decorrido, somente, três dias entre a<br />

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deliberação do Conselho de Estado e a saída da <strong>Corte</strong>, parece provar que a partir de<br />

determinado momento a situação se tor<strong>no</strong>u irreversível. E mais, Araújo de Azevedo já<br />

tinha considerado, perspicaz como era, o «alcance proveitoso da ida do Príncipe da<br />

Beira, D. Pedro, para o <strong>Brasil</strong>, ainda antes da mudança dos restantes membros da<br />

Família Real, ida essa que factos ponderosos detiveram».<br />

Como já se referiu, os rumores sobre a próxima partida do Príncipe Regente<br />

circulavam há muito entre o povo de Lisboa, a movimentação atarefada na cidade,<br />

particularmente junto ao porto, onde era <strong>no</strong>tória a acumulação de fardos e caixotes<br />

pertencentes à <strong>Corte</strong> e aos particulares que se preparavam para partir, não podia deixar<br />

de causar algum constrangimento. Não deixaria de ser algo dolorosa, particularmente<br />

num regime paternalista, como foi o <strong>no</strong>sso até ao advento do “miguelismo”, a<br />

separação do Príncipe, «amado por seus súbditos, do povo que o ama e o venera». Com<br />

efeito, a preocupação do Príncipe Regente não seria propriamente pela segurança do<br />

embarque que a progressão de Ju<strong>no</strong>t poderia pôr em perigo, mas antes as eventuais<br />

dificuldades que poderiam resultar dum amotinamento da população de Lisboa, tanto<br />

assim que a Família Real se manteve em Mafra até ao dia 27, tendo aproveitado os dias<br />

24, 25 e 26 para preparar o seu embarque e de todos os elementos da <strong>Corte</strong> que a<br />

acompanhavam.<br />

Foi precisamente a 26 de Novembro, véspera do embarque, que o Príncipe<br />

Regente dava a conhecer, através da publicação do real decreto, a sua intenção de<br />

transferir a sede do Gover<strong>no</strong> para o Rio de Janeiro:<br />

«Tendo procurado por todos os meios possíveis conservar a neutralidade, de<br />

que até agora têm gozado os meus fieis e amados vassalos, e apesar de exaurido o meu<br />

Real Erário, e de todos os mais sacrifícios, a que me tenho sujeitado, chegando ao<br />

excesso de fechar os portos dos meus rei<strong>no</strong>s aos vassalos do meu amigo e leal aliado, o<br />

rei da Grã-Bretanha, expondo o comércio dos meus vassalos à total ruína, e a sofrer<br />

por este motivo grave prejuízo <strong>no</strong>s rendimentos da minha Coroa, vejo que pelo interior<br />

do meu rei<strong>no</strong> marcham tropas do Imperador dos franceses e rei de Itália, a quem eu<br />

me havia unido <strong>no</strong> continente, na persuasão de não ser mais inquietado, e que as<br />

mesmas se dirigem a esta capital; e querendo eu evitar as funestas consequências, que<br />

se podem seguir de uma defesa, que seria mais <strong>no</strong>civa que proveitosa, servindo só de<br />

derramar sangue em prejuízo da humanidade, e capaz de acender mais a dissenção de<br />

umas tropas, que têm transitado por este rei<strong>no</strong>, com o anúncio e promessa de não<br />

cometerem a me<strong>no</strong>r hostilidade; conhecendo igualmente que elas se dirigem muito<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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particularmente contra a minha Real Pessoa, e que os meus leais vassalos serão me<strong>no</strong>s<br />

inquietados, ausentando-me eu deste rei<strong>no</strong>...».<br />

“Fuga”, ou transmigração da <strong>Corte</strong> para o <strong>Brasil</strong>?<br />

Desde já, pode afirmar-se, e peremptoriamente, que não se tratou de uma<br />

retirada precipitada e muito me<strong>no</strong>s de uma “fuga”, como a historiografia liberal em<br />

peso pretendeu divulgar, desde Alexandre Hercula<strong>no</strong>, a Luz Soria<strong>no</strong> e, sobretudo<br />

Oliveira Martins, condenando a política de conciliação e «apresentando-a como uma<br />

consequência da fraqueza do Príncipe D. João, típica da hesitação de um espírito<br />

fraco, que não sabia o que queria e balançou até ao último momento, sem rumo e<br />

sempre sujeito à opinião do último com quem falava». De facto, alguns críticos, por<br />

estarem, talvez, muito próximos dos acontecimentos, interpretaram de forma negativa a<br />

atitude corajosa, decidida e decisiva tomada pelo Príncipe Regente.<br />

Oliveira Martins escrevia: «Três séculos antes, Portugal embarcara, cheio de<br />

esperanças e cobiça para a Índia; em 1807 (Novembro, 29) embarcava um préstito<br />

fúnebre para o <strong>Brasil</strong>… Tudo o mais era vergonha calada, passiva inépcia, confessada<br />

fraqueza. O Príncipe decidira que o embarque se fizesse de <strong>no</strong>ite, por ter a consciência<br />

da sua fuga…».<br />

Neste aspecto, mais expressivo, ainda, terá sido o capitão – tenente Alexandre<br />

Lucas Boiteaux:<br />

Ao ver as forças inimigas talando o território pátrio, o lendário patriotismo<br />

luso não mais explodiu como <strong>no</strong>s heróicos tempos de Nu<strong>no</strong> Álvares; mas, entorpecido<br />

por letal e crimi<strong>no</strong>sa indiferença, degenerou em terror vergonhoso. A Família Real,<br />

compartilhando desta fraqueza, foi a primeira a dar o exemplo, embarcando para o<br />

<strong>Brasil</strong> a 27 de Novembro, <strong>no</strong> maior desespero e confusão e levando na sua cauda um<br />

exército de poltrões, enfatuados, fidalgos e parasitas de toda a casta, degenerada<br />

progénie de um passado heróico…». Neste alinhamento, e na primeira metade do<br />

século passado, podemos ainda incluir alguns brasileiros, como é o caso de Rocha<br />

Pombo, Tobias Monteiro e Jónatas Serra<strong>no</strong>.<br />

Já <strong>no</strong> <strong>no</strong>sso tempo, parece-me de todo estranho o facto de alguns historiógrafos<br />

continuarem a insistir <strong>no</strong> tema da fuga. Muito recentemente, o brasileiro Laurenti<strong>no</strong><br />

Gomes na sua publicação «1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do<br />

<strong>Brasil</strong>», escrevia: «Com a fuga do rei, (Príncipe Regente) Portugal deixava de ser<br />

Portugal, um país independente, com gover<strong>no</strong> próprio. Passava a ser um território<br />

vazio e sem identidade. Os seus habitantes ficavam entregues aos interesses e à cobiça<br />

de qualquer aventureiro que tivesse força para invadir as suas cidades e assumir o<br />

tro<strong>no</strong>. Por que fugia o rei?...».<br />

Igualmente, Lília Moritz Schwarcz, numa obra de grande fôlego, «A Longa<br />

Viagem da Biblioteca dos Reis», intitula o 6º capítulo de «Hora de sair de casa: a<br />

difícil neutralidade e a fuga para o <strong>Brasil</strong>», acrescentando, pouco depois, em subtítulo<br />

«A fuga precipitada: homens ao mar». Porém, são muitos os autores de re<strong>no</strong>me<br />

internacional a sustentarem, e provam-<strong>no</strong>, que a acção do Príncipe Regente,<br />

considerada por monarcas portugueses anteriores como estratégia alternativa desde a<br />

descoberta do <strong>Brasil</strong> foi, de facto, uma “jogada” brilhante.<br />

D. João não «fugiu» para o <strong>Brasil</strong>: «…Tenho resolvido, em benefício dos<br />

mesmos meus vassalos, passar com a Rainha Minha Senhora e Mãe, e com toda a Real<br />

Família para os Estados da América, e estabelecer-me na cidade do Rio de Janeiro até<br />

à paz geral».<br />

O Príncipe Regente, enquanto pôde, negociou e cedeu, esgotando todos os<br />

meios que evitassem a ocupação do País, já que a resistência militar, por todos os<br />

motivos, se revelava impossível.<br />

A mudança de capital aparecia como medida de recurso, de emergência e<br />

temporária, sendo <strong>no</strong> caso presente a solução mais aconselhável, prudente e mais de<br />

acordo com o interesse nacional; terá sido o meio mais eficaz de preservar a dignidade<br />

da Coroa e com ela a liberdade política conservando-se, assim, o direito de intervenção<br />

<strong>no</strong>s sucessos internacionais.<br />

Efectivamente, perante os factos, a tese da fuga nem sequer é frágil, não tem é<br />

qualquer consistência. Embora correndo o risco da repetição, não deixarei de apresentar<br />

aqui algumas <strong>das</strong> mais abaliza<strong>das</strong> opiniões, que deitam por terra a tese da “fuga”.<br />

Vejamos:<br />

Oliveira Lima, referência incontornável da cultura brasileira, homem de letras,<br />

historiador e académico de <strong>no</strong>tável mérito, quando <strong>das</strong> comemorações do 1º centenário<br />

da chegada da Família Real <strong>Portuguesa</strong> ao Rio de Janeiro, ao publicar a reabilitadora<br />

obra, «D. João VI <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>», declarava que «Retirando-se para América, o Príncipe<br />

Regente, sem afinal perder mais do que o que possuía na Europa, escapava a to<strong>das</strong> as<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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humilhações sofri<strong>das</strong> por seus parentes castelha<strong>no</strong>s, depostos à força, e além de dispor<br />

de to<strong>das</strong> as probabilidades para arredondar à custa da França e da Espanha inimigas<br />

o seu território ultramari<strong>no</strong>, mantinha-se na plenitude dos seus direitos, pretensões e<br />

esperanças. Era como que uma ameaça viva e constante à manutenção da integridade<br />

do sistema napoleónico. Qualquer negligência, qualquer desagregação seria logo<br />

aproveitada. Por isto é muito mais justo considerar a trasladação da corte para o Rio<br />

de Janeiro como uma inteligente e feliz ma<strong>no</strong>bra política do que como uma deserção<br />

cobarde. De resto não foi ela adoptada repentinamente como um recurso extremo e<br />

irreflectido…».<br />

Igualmente, o brasileiro João Pandiá Calógeras, na sua «Formação Histórica do<br />

<strong>Brasil</strong>», afirmava que «Em tor<strong>no</strong> desses acontecimentos se formou uma lenda de fuga<br />

pura e simples, vergonhosa e covarde. E, entretanto, tratava-se de executar um pla<strong>no</strong><br />

madura e politicamente delineado, o mais acertado nas condições peculiares de<br />

Portugal». Depois de o expor minuciosamente, conclui: «Nada é mais mister<br />

acrescentar para tornar evidente quão superficial é o conceito dos que opinam ser<br />

mera evasão ou pânico, tal acto de importância capital para ambos os países».<br />

Afonso Zúquete, na sua obra «Nobreza de Portugal e do <strong>Brasil</strong>», também faz o<br />

elogio da estratégia do Príncipe Regente: «(…) a retirada para o <strong>Brasil</strong> com que se<br />

argumentou nesse sentido, com total inépcia, foi um acto habilíssimo, que salvou a<br />

Realeza e que garantiu a independência de Portugal (…)».<br />

Dos quatro países envolvidos, Portugal, <strong>Brasil</strong>, Grã – Bretanha e França, seria<br />

apenas este último a lamentar o acontecimento. Óbvio! Alguns historiadores têm como<br />

certo, Napoleão admitir que a sua queda começou quando invadiu Portugal, e<br />

pretendendo acabar com a dinastia de Bragança, a Família Real embarcou para o <strong>Brasil</strong>.<br />

Tal certeza, julgo ter sido colhida <strong>no</strong> «Mémorial», já escrito <strong>no</strong> seu exílio de Santa<br />

Helena: «A Inglaterra, desde então, poderia continuar a guerra; as portas da América<br />

do Sul (<strong>Brasil</strong>) foram abertas; criou uma armada na Península, e desde aqui, tor<strong>no</strong>u-se<br />

o agente vitorioso, o nó redutível, de to<strong>das</strong> as intrigas que se puderam formar <strong>no</strong><br />

Continente…Foi isto que me perdeu!».<br />

Robert Southey, eminente historiador inglês, dá conta na sua «História do<br />

<strong>Brasil</strong>» que mais de uma vez a Casa de Bragança havia encarado a possibilidade de ser<br />

expulsa do seu Rei<strong>no</strong> por um inimigo superior em forças e, assim, embarcando ainda<br />

em tempo, salvou a monarquia e determi<strong>no</strong>u o fecho da história colonial do <strong>Brasil</strong>.<br />

Joaquim Romero de Magalhães, em «Palavras Prévias» do catálogo da<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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exposição «D. JoãoVI e o Seu Tempo», <strong>no</strong> Palácio da Ajuda, referiu a necessidade de<br />

«subtrair a Rainha demente D. Maria I, o Príncipe D. João e os demais familiares à<br />

iminência de uma captura que viesse desembocar numa abdicação forçada a favor do<br />

Imperador Napoleão». Deste modo, a partida da Família Real para o <strong>Brasil</strong> manteve o<br />

poder <strong>no</strong> Rei, «de forma legítima e inquestionada», tanto em Portugal como <strong>no</strong><br />

estrangeiro.<br />

Também o escritor português Luis Norton, «A <strong>Corte</strong> de Portugal <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>»,<br />

assegurou que «O Príncipe Regente D. João, transferindo voluntariamente a sua <strong>Corte</strong><br />

para os domínios portugueses da América, salvara a monarquia com to<strong>das</strong> as suas<br />

colónias ultramarinas, evitando uma expatriação ig<strong>no</strong>miniosa, com prisão <strong>no</strong> lugar do<br />

desterro, como aquele que Napoleão impusera aos Reis de Espanha».<br />

Aconteceu, de facto, quando tarde e a “más horas” o rei Carlos IV de Espanha<br />

quis seguir o exemplo de D. João, e transferir-se para o México, foi desencadeado o<br />

motim de Aranjuez em 17 de Março de 1808, em que os Guar<strong>das</strong> do Corpo se<br />

ufanavam «de ter mais coragem que o povo de Lisboa». Os sobera<strong>no</strong>s espanhóis<br />

acabaram humilhados e aprisionados por Napoleão. Quanto a D. João, demarcando-se<br />

dos émigrés franceses de 1791, diria sempre: «Eu não emigrei; transferi a minha <strong>Corte</strong><br />

e uma parte do meu rei<strong>no</strong> para outra».<br />

A transmigração – um antigo pla<strong>no</strong> dos estadistas portugueses.<br />

Com efeito, D. João não se ausentou do País para <strong>no</strong> exílio pedir protecção de<br />

qualquer sobera<strong>no</strong> amigo, não saiu dos seus domínios. Deslocou-se dentro desses<br />

domínios, conservando o seu poder sobera<strong>no</strong> intacto e dando, assim, continuidade à<br />

governação do Estado. O Príncipe Regente além de manter a independência e a unidade<br />

nacionais, conseguiu com a sua política que o <strong>Brasil</strong> viesse a ter o processo autonómico<br />

me<strong>no</strong>s perturbado de toda a América do Sul.<br />

Além de significar «uma conversão de instintiva defesa contra o poder<br />

invencível do furor napoleónico», a transferência da <strong>Corte</strong> de Lisboa para o Rio de<br />

Janeiro, não tinha apenas um interesse nacional, uma vez que essa transmigração<br />

política interessava à Europa inteira: assegurava a continuidade dos princípios unitários<br />

<strong>das</strong> monarquias continentais europeias, defendendo-lhes, afinal, «os ideais de<br />

auto<strong>no</strong>mia contra a concepção autocrática de um só imperialismo francês; salvava o<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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sistema monárquico europeu da subversão dos Estados, cujos sobera<strong>no</strong>s eram<br />

prisioneiros ou reféns de Napoleão e cujas fronteiras eram por ele e para ele traça<strong>das</strong>,<br />

amplia<strong>das</strong> ou suprimi<strong>das</strong>, <strong>no</strong> sonho da Monarquia universal que visionara».<br />

Com alguma frequência, a crítica histórica tem demonstrado que a transferência<br />

da <strong>Corte</strong> para o <strong>Brasil</strong> fora o resultado inteligente de um pla<strong>no</strong> preconcebido. Seria,<br />

sem dúvida, o único meio de fazer subsistir a monarquia portuguesa, impedindo o seu<br />

fatal desaparecimento. A mudança da <strong>Corte</strong> para o <strong>Brasil</strong> não aparecia agora pela<br />

primeira vez, era uma ideia antiga e sempre re<strong>no</strong>vada em épocas de crise política e de<br />

gravidade para a independência nacional.<br />

A este propósito, parece que a primeira sugestão conhecida se deve ao donatário<br />

da capitania de S. Vicente, Martim Afonso de Sousa, organizador da colonização<br />

sistemática.<br />

Conta-se («Anais de D. João III», de Frei Luis de Sousa), que em conversação<br />

com D. João III, acerca «da bondade e largueza da terra do <strong>Brasil</strong>», perguntou-lhe o<br />

Rei o seu parecer, quanto à passagem da <strong>Corte</strong> para a colónia. O antigo navegador,<br />

profeticamente, respondeu-lhe que «doidice seria viver um Rei na dependência de seus<br />

vizinhos, podendo ser monarca de outro mundo maior», revelando a D. João III a<br />

extensão dos seus domínios <strong>no</strong> continente america<strong>no</strong> e o «valor prodigioso <strong>das</strong> suas<br />

riquezas que nele se encontravam profusamente distribuí<strong>das</strong>».<br />

Alguns a<strong>no</strong>s depois, quando da crise dinástica da sucessão do Cardeal D.<br />

Henrique, este teria aconselhado a mais legítima pretendente ao tro<strong>no</strong>, a Infanta D.<br />

Catarina, Duquesa de Bragança, a que aceitasse as propostas que outro candidato, o Rei<br />

Filipe II de Espanha, lhe havia feito. O monarca castelha<strong>no</strong> prometia elevar, a favor da<br />

Infanta, a colónia do <strong>Brasil</strong> à categoria de rei<strong>no</strong> independente e que poderia o Duque,<br />

seu marido, tomar o título de Rei.<br />

Após a Restauração (1640), sucederam-se, naturalmente, momentos difíceis. D.<br />

João IV receando pela independência, admitia, como propusera o Padre António Vieira<br />

(«uma retirada segura») a transferência da <strong>Corte</strong> para o Rio de Janeiro. Malogrado este<br />

projecto, nem por isso D. João IV desistiu de considerar a colónia americana como<br />

refúgio possível da sua dinastia, porquanto, foi encontrado <strong>no</strong> segredo do seu Gabinete<br />

um papel assinado por ele, com três cruzes, <strong>no</strong> qual manifestava o desejo, em caso de<br />

perigo, a sua viúva ser transportada com os filhos para o <strong>Brasil</strong>. Mais tarde, durante a<br />

me<strong>no</strong>ridade de D. Afonso VI, a Regente, D. Luísa de Gusmão, quando a sorte <strong>das</strong><br />

armas lhe foi adversa, na guerra com a Espanha, igualmente, pensou em fazer passar<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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para a colónia americana o herdeiro da Coroa.<br />

Já <strong>no</strong> século XVIII, foi outro estadista português, D. Luis da Cunha, a lembrar a<br />

conveniência da mudança de D. João V para o <strong>Brasil</strong>, fazendo-o da forma seguinte:<br />

«Considerei talvez visionariamente que S. M. se achava em idade de ver potentíssimo<br />

aquele imenso continente do <strong>Brasil</strong>; e nele tomasse o título de Imperador do Ocidente;<br />

que viesse estabelecer a sua <strong>Corte</strong> levando consigo as pessoas que de ambos os sexos o<br />

quisessem acompanhar, que não seriam poucas, com infinitos estrangeiros, e na minha<br />

opinião o lugar mais próprio da sua residência seria a cidade do Rio de Janeiro».<br />

O mesmo pla<strong>no</strong> foi equacionado <strong>no</strong> tempo do Ministério Pombali<strong>no</strong>, por<br />

ocasião do Terramoto e, também, em 1762, quando <strong>no</strong>vamente a capital do Rei<strong>no</strong><br />

esteve ameaçada de uma invasão espanhola, Carvalho e Melo orde<strong>no</strong>u que algumas<br />

naus fundeassem em frente do Paço para conduzirem a Família Real ao <strong>Brasil</strong>, <strong>no</strong> caso<br />

de Lisboa ser conquistada pelo inimigo.<br />

Com todos estes antecedentes, não causa espanto, pois seria perfeitamente<br />

natural, uma re<strong>no</strong>vação do pla<strong>no</strong>, ou proposta, quando ao iniciar-se o século XIX, outra<br />

guerra com a Espanha, embora provocada por Napoleão, colocava <strong>no</strong>vamente em<br />

perigo o território e a independência nacional. Nesta conjuntura, não faltou quem<br />

aconselhasse o Príncipe Regente a tomar a resolução que, meia dúzia de a<strong>no</strong>s depois,<br />

levou à prática. Fê-lo D. Pedro de Almeida Portugal, 3º Marquês de Alorna, em<br />

expressivo documento de 1801, <strong>no</strong> qual salientou a conveniência da transmigração para<br />

«o grande Império» de que dispunha a Coroa portuguesa <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>:<br />

«…A balança da Europa está tão mudada que os cálculos de há 10 a<strong>no</strong>s saem<br />

todos errados na era presente. Em todo o caso o que é preciso é que Vossa Alteza Real<br />

continue a reinar, e que não suceda à sua coroa, o que sucedeu à da Sardenha, à de<br />

Nápoles e o que talvez entra <strong>no</strong> projecto <strong>das</strong> grandes Potências que suceda a to<strong>das</strong> as<br />

coroas de segunda ordem na Europa. V. A. R. tem um grande Império <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, e o<br />

mesmo inimigo que ataca agora com tanta vantagem, talvez que trema, e mude de<br />

projecto, se V. A. R. o ameaçar de que se dispõe a ir ser Imperador naquele vasto<br />

território donde pode facilmente conquistar as Colónias Espanholas e aterrar em<br />

pouco tempo as de to<strong>das</strong> as Potências da Europa. Portanto é preciso que V. A. R.<br />

mande armar com toda a pressa todos os seus navios de guerra, e todos os de<br />

transporte, que se acharem na Praça de Lisboa – que meta neles a Princesa, os seus<br />

Filhos, e os seus Tesouros, e que ponha tudo isto pronto a partir sobre a Barra de<br />

Lisboa…».<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

10


Considerando a impossibilidade da manutenção da neutralidade portuguesa<br />

perante os conflitos suscitados na Europa pela política napoleónica, igualmente se<br />

dirigiram a D. João dois dos seus futuros ministros <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, D. Rodrigo de Sousa<br />

Coutinho, depois Conde de Linhares, e Silvestre Pinheiro Ferreira.<br />

Sublinhe-se que Sousa Coutinho já em 1798 apresentara uma exposição à <strong>Corte</strong>,<br />

onde afirmava que os domínios na Europa<br />

tinham deixado de constituir a capital e o centro<br />

do Império Português, defendendo a ideia de<br />

transferir a sede da <strong>Corte</strong> para o <strong>Brasil</strong>,<br />

entendendo que, reduzido a si mesmo, Portugal<br />

não tardaria a tornar-se uma província da<br />

Espanha. O futuro Conde de Linhares, parecia<br />

saber bem do que falava: propunha a abolição<br />

do regime colonial <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> e voltou a insistir<br />

com o Príncipe Regente a transferir a <strong>Corte</strong> para<br />

o Rio, quando as tropas espanholas, em 1801,<br />

D. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro<br />

Conde de Linhares, foi um dos que<br />

recomendou ao príncipe Regente a<br />

partida para o Rio de Janeiro<br />

(recomendação, aliás, com que já havia<br />

avançado em 1801, quando as tropas<br />

espanholas invadiram Olivença…)<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

invadiram a praça de Olivença.<br />

Dois a<strong>no</strong>s depois, em 1803, voltava à<br />

carga, dirigindo uma memória ao futuro D. João<br />

VI:<br />

«…Quando se considera que Portugal<br />

por si mesmo muito defensável, não é a melhor, e mais essencial parte da Monarquia;<br />

que depois de devastado por uma longa e sangrenta guerra, ainda resta ao seu<br />

Sobera<strong>no</strong>, aos seus povos o irem criar um poderoso império <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, donde se volte a<br />

reconquistar, o que se possa ter perdido na Europa, e donde se continue uma guerra<br />

eterna contra o fero inimigo, que recusa reconhecer a neutralidade de uma Potência,<br />

que mostra desejar conservá-la…Quaisquer que sejam os perigos que acompanhem<br />

uma tão <strong>no</strong>bre e resoluta determinação, os mesmos são sempre muito inferiores aos<br />

que certamente hão-de seguir-se da entrada dos franceses <strong>no</strong>s portos do rei<strong>no</strong>, e que<br />

ou hão-de trazer a abdicação de V. A. R. à sua Real Coroa, a abolição da Monarquia,<br />

ou uma opressão fatal, qual a que geralmente se diz, que experimentam os napolita<strong>no</strong>s<br />

e a dilaceração dos vastos domínios da Coroa de V. A. R. …».<br />

De facto, a resistência militar parecia loucura. Defendia o Dr. Silvestre Pinheiro<br />

Ferreira, homem de grande prestígio junto do Príncipe Regente, «que a resistência era<br />

11


impossível, de que estavam bem persuadidos os que a aconselharam antes do<br />

embarque, porque nunca Portugal pôde, nem poderá defender-se <strong>das</strong> forças coliga<strong>das</strong><br />

da França e da Espanha, a não ser apoiado por todo o poder da Inglaterra; mas esta<br />

nação estava em 1807 bem longe de se querer medir <strong>no</strong> continente com o exército<br />

francês, que acabava de aterrar as formidáveis legiões russas, ao mesmo tempo que<br />

Napoleão havia feito entrar Alexandre na liga contra aquela potência, e obtido o<br />

consenso do autócrata para a anexação de Espanha e Portugal ao Império francês».<br />

Igualmente, numa minuta de representação a Sua Majestade sobre o Estado da<br />

Causa Pública e Providências Necessárias, redigida em 1814, a pedido de D. João, pelo<br />

mesmo Silvestre Pinheiro Ferreira, este acentuava que «…já <strong>no</strong> a<strong>no</strong> de 1803 me<br />

abalancei a representar, perante o régio tro<strong>no</strong>, em competente ofício pela respectiva<br />

repartição, que à lusitana monarquia nenhum outro recurso restava, senão o de<br />

procurar quanto antes nas suas colónias um asilo contra a hidra então nascente, que<br />

jurava a inteira destruição <strong>das</strong> antigas dinastias da Europa».<br />

Em 1807, quando Napoleão intimou Portugal a aderir ao Bloqueio, ameaçando<br />

ocupar-lhe o território, e o general Ju<strong>no</strong>t iniciava a concentração de tropas em Baiona,<br />

cidade da fronteira de Espanha, o Conde da Ega,<br />

embaixador em Madrid, transmitia uma <strong>no</strong>ta para<br />

Lisboa alertando o Príncipe Regente: «Ou Portugal<br />

há-de fechar os seus portos aos ingleses e correr o<br />

risco de perder por algum tempo a posse <strong>das</strong> suas<br />

colónias, ou o Príncipe, Nosso Senhor, abandonando o<br />

seu rei<strong>no</strong> na Europa, ganhado e conservado pelo suor<br />

de seus antepassados, irá estabelecer <strong>no</strong> Novo Mundo<br />

uma <strong>no</strong>va monarquia que, bem que possa vir a ser um<br />

império da maior consideração, produzirá uma<br />

Em Outubro de 1807, as tropas semelhante medida a maior de to<strong>das</strong> as revoluções <strong>no</strong><br />

associa<strong>das</strong> em Baiona,<br />

comanda<strong>das</strong> pelo ex-embaixador sistema geral político».<br />

em Lisboa, o general Ju<strong>no</strong>t,<br />

Efectivamente, em tal conjuntura, a<br />

começaram a dirigir-se para a<br />

fronteira portuguesa, onde a dependência económica de Portugal em relação ao<br />

vanguarda, os primeiros<br />

destacamentos, entraram pela <strong>Brasil</strong> não permitia ao Príncipe Regente alternativa,<br />

Beira Baixa, a 18 de Novembro<br />

senão a que o <strong>no</strong>sso embaixador em Madrid propusera:<br />

transferir a <strong>Corte</strong> para a América do Sul, com to<strong>das</strong> as consequências políticas que daí<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

12


pudessem advir.<br />

Em 8 de Setembro de 1807, Strangford, ministro inglês em Portugal, comunicou<br />

ao Foreign Office que Araújo de Azevedo lhe dissera que, uma vez <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, D. João<br />

estabeleceria «um grande e poderoso império, que protegido, em uma primeira<br />

infância, pela superioridade naval da Inglaterra, poderia com o tempo rivalizar com<br />

qualquer outro estabelecimento político do universo».<br />

Em conclusão: se olharmos para a <strong>no</strong>ssa história, e em face do que ficou dito,<br />

verifica-se que a transferência da <strong>Corte</strong> para o Rio de Janeiro, em situação de<br />

emergência, fora encarada, por mais de uma vez, constituindo «um ponto assente na<br />

<strong>no</strong>ssa política».<br />

A operação <strong>Brasil</strong>.<br />

Entretanto, os rumores da viagem em projecto, confirmada pelos constantes<br />

preparativos da esquadra portuguesa, chegaram naturalmente à Espanha e à França,<br />

cujos gover<strong>no</strong>s tentaram convencer os <strong>no</strong>ssos diplomatas, acreditados nas respectivas<br />

capitais, que semelhante resolução era desnecessária, tendo sido mesmo propalada, <strong>no</strong>s<br />

primeiros dias de Novembro, a <strong>no</strong>tícia de que não haveria invasão. Só que esta<br />

esperança foi-se desvanecendo.<br />

Os conturbados acontecimentos em Espanha com a prisão do Príncipe <strong>das</strong><br />

Astúrias e a deslocação <strong>das</strong> tropas espanholas para Madrid, bem como de forças<br />

francesas dirigindo-se para a <strong>no</strong>ssa fronteira, demonstravam plenamente que a invasão<br />

de Portugal seria irreversível. Acrescente-se, ainda, o autêntico turbilhão político que<br />

pairava sobre a Europa de 1807:<br />

O rei de Espanha mendigava em solo francês a protecção de Napoleão; o rei<br />

da Prússia andava foragido por via da sua capital estar ocupada pelos soldados<br />

franceses; o Stathouder, quase rei da Holanda, refugiava-se em Londres; o rei <strong>das</strong> Duas<br />

Sicílias exilado em Nápoles; as dinastias da Toscana e Parma não tinham “poiso” certo;<br />

o rei do Piemonte estava reduzido à <strong>Corte</strong> de Cagliari; o Doge e os 10 “enxotados” da<br />

cena política; o Czar solicitando entrevistas e protestando a sua amizade e fidelidade<br />

para se manter em Petersburgo; a Escandinávia próxima de aceitar um herdeiro dentre<br />

os marechais de Bonaparte; o Imperador do Sacro Império e o próprio Pontífice<br />

Roma<strong>no</strong> obrigados, de quando em vez, a abandonar os seus tro<strong>no</strong>s que se consideravam<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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eter<strong>no</strong>s e intangíveis.<br />

Perante tal quadro, isto é, olhando ao que estava a acontecer às casas reinantes<br />

europeias, os Braganças não podiam, certamente, esperar melhor sorte; por<br />

conseguinte, havia necessidade imperiosa de adoptar medi<strong>das</strong> adequa<strong>das</strong> e tratar,<br />

friamente, com tempo da sua execução, para não se cuidar de tudo à última hora e com<br />

precipitações prejudiciais.<br />

Praticamente, de todos os quadrantes se insistia para que se preparasse a<br />

solução mais indicada, porquanto as <strong>no</strong>tícias <strong>das</strong> últimas vitórias de Napoleão e do<br />

poder militar dos exércitos franceses, coligados com as forças <strong>das</strong> nações venci<strong>das</strong>,<br />

teriam feito mudar de opinião aqueles que não desejavam a mudança da capital do<br />

Rei<strong>no</strong> para o Rio de Janeiro.<br />

De facto, uma vez que a debilidade do País, em contraste com a robustez<br />

militar do inimigo impossibilitaria, em caso de guerra, um desfecho favorável a<br />

Portugal, e com a agravante de se desenrolar <strong>no</strong> <strong>no</strong>sso território, não era vergonha<br />

alguma ausentar-se um sobera<strong>no</strong>, temporariamente, dos seus Estados.<br />

Já em Agosto de 1807, o Conselho de<br />

Estado recomendava a D. João que fosse<br />

preparada, com alguma urgência, uma esquadra<br />

para partir, embora tivesse surgido alguma<br />

discussão sobre quem devia partir e quando.<br />

Inicialmente, prevaleceu a tese de que só o<br />

príncipe herdeiro, D. Pedro, devia embarcar para o<br />

<strong>Brasil</strong>, medida considerada suficiente para garantir<br />

a continuidade do Sobera<strong>no</strong>. Porém, pouco tempo<br />

depois, entendia-se que, estando a resistência fora<br />

de causa, não faria sentido manter D. João em<br />

Em 8 de Setembro de 1807,<br />

Strangford, ministro inglês em Portugal, onde, facilmente, seria aprisionado pelos<br />

Portugal, comunicou ao Foreign<br />

Office que Araújo Azevedo lhe franceses. Sem dúvida, permanecendo em Lisboa,<br />

dissera que, uma vez <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, D.<br />

João estabeleceria “um grande e disposto a resistir, seria prisioneiro, refém e joguete<br />

poderoso império, que protegido,<br />

em uma primeira instância, pela do Imperador, sujeito à humilhação, à farsa de uma<br />

superioridade naval da Inglaterra,<br />

aliança com os vencedores, à guerra com a Grã –<br />

poderia com o tempo rivalizar com<br />

qualquer outro estabelecimento do Bretanha e à perda do império colonial. O exemplo<br />

universo”.<br />

do sogro e do cunhado devem tê-lo posto de<br />

sobreaviso.<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

14


Desde Setembro que Lord Strangford, ministro britânico em Lisboa,<br />

pressionava insistentemente a <strong>Corte</strong> para se transferir de imediato para o <strong>Brasil</strong>. O<br />

Príncipe Regente dizia concordar «em princípio», mas a decisão definitiva só seria<br />

tomada quando a invasão espanhola entrasse em território nacional. De qualquer modo<br />

a operação <strong>Brasil</strong> não era descurada, pois começou a proceder-se à rápida concentração<br />

em Lisboa de todos os navios em condições de navegar.<br />

Ao mesmo tempo, a <strong>Corte</strong> de Lisboa procurava afincadamente ganhar tempo,<br />

através de múltiplas concessões e cedências de última hora; inclusivamente ainda<br />

procurou serenar os ímpetos de Napoleão com a oferta de régios presentes, como é o<br />

caso seguinte: em meados de Novembro, o Marquês de Marialva partia de Portugal<br />

com uma quantidade não revelada de diamantes, mas que foi avaliada em cerca de um<br />

milhão de dólares e uma espada de ouro guarnecida de brilhantes. O Marquês levava,<br />

igualmente, instruções de D. João para negociar o casamento de D. Pedro, quando este<br />

chegasse à idade, com a sobrinha de Bonaparte, filha de sua irmã Carolina e do General<br />

Murat. Na sua missão, devia também informar o Imperador de que as exigências feitas<br />

por ele tinham sido cumpri<strong>das</strong> e que, portanto «não havia razão para agir contra<br />

Portugal». É que o tempo era preciosíssimo, mais umas semanas, ou até alguns dias,<br />

«representavam mais velas que se conseguiam aprontar, mais instituições que era<br />

possível embarcar, mais portugueses ilustres que escapavam à ocupação; havia mesmo<br />

a esperança de que, com alguma sorte, a chegada do Inver<strong>no</strong> levasse a França a adiar<br />

a invasão para a Primavera seguinte». Contudo, mesmo ponderando esta hipótese, D.<br />

João não se iludia e jogava pelo seguro, assinando um acordo secreto com o Gover<strong>no</strong><br />

Londri<strong>no</strong>, concordando na retirada da <strong>Corte</strong> para o <strong>Brasil</strong> em caso de invasão e<br />

comprometendo-se a abrir os portos da <strong>no</strong>ssa colónia americana em troca do apoio da<br />

Royal Navy.<br />

O primeiro grande sinal de que a invasão seria uma realidade tem a ver com a<br />

entrada da esquadra russa <strong>no</strong> porto de Lisboa e que, dizia-se, aqueles navios traziam a<br />

bordo quatro mil soldados para desembarcarem na cidade quando se aproximassem os<br />

exércitos franceses. Com efeito, um documento da época, de autor anónimo, refere que<br />

«<strong>no</strong> dia 11 de Novembro de 1807 entrou <strong>no</strong> Tejo a esquadra russa do Almirante<br />

Seniavine com cinco embarcações de guerra, devendo entrar mais quatro <strong>no</strong>s dias<br />

seguintes; como era contra os tratados entrarem mais de seis, recusou-se isto, porém,<br />

o Almirante declarou que sempre entraria, quis também conservar a pólvora a bordo,<br />

e tudo se lhe consentiu…». Julga-se que esta chegada a Lisboa da esquadra russa não<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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seria mais que o efeito da <strong>no</strong>va aliança de Tilsit e, consequentemente, trazia intenções<br />

hostis. Obviamente, a missão da esquadra russa era de guerra mas, o certo é que se<br />

manteve como mera observadora e é o próprio Ju<strong>no</strong>t, mais tarde, a queixar-se a<br />

Napoleão que, após ter chegado a Lisboa ainda não vira um único oficial russo! Teria<br />

sido pelo facto de, mal esquadra russa ter entrado a barra do Tejo, surgir, ao largo, uma<br />

esquadra inglesa comandada pelo Almirante William Sidney Smith, constituída por<br />

cinco navios e que ficou a bloquear a costa portuguesa? Assim parece.<br />

A 21 de Novembro, a fragata inglesa<br />

«Confiance» ao aportar a Lisboa era portadora de<br />

um exemplar do jornal francês «Moniteur», datado<br />

do dia 11, que continha o decreto de 27 de Outubro<br />

de 1807 (já anteriormente referido), pelo qual<br />

Napoleão decidira que «a Casa de Bragança<br />

deixara de reinar em Portugal».<br />

Face a este documento não havia outra<br />

alternativa. A solução que mais interessava a A 16 de Novembro, aportava ao<br />

Tejo uma armada inglesa<br />

Portugal e a única que nesta ocasião se impunha, e<br />

comandada por Sir Sidney Smith,<br />

que tinha de ser tomada de imediato e de maneira transportando uma força de 7000<br />

homens de desembarque, preparada<br />

nenhuma podia ser protelada, era a saída da <strong>Corte</strong> para escoltar a Família Real para o<br />

<strong>Brasil</strong>, ou bloquear o porto, tentando<br />

para o <strong>Brasil</strong>. Por maior que fosse o esforço evitar, deste modo, que os navios<br />

mercantes ou de guerra de Portugal<br />

defensivo desenvolvido pelas <strong>no</strong>ssas tropas, pouco fossem tomados pelos franceses.<br />

tempo poderiam resistir às forças francesas e<br />

espanholas e, neste caso, seria em ple<strong>no</strong> Inver<strong>no</strong>, época em que as tempestades<br />

assolando a <strong>no</strong>ssa costa impediriam a saída de qualquer embarcação. Assim, seria<br />

contraproducente a veleidade de oferecer resistência ao que parecia irresistível e, por<br />

conseguinte, a Família Real ficaria à mercê dos invasores o que era um dos grandes<br />

objectivos de Napoleão.<br />

Perante tais perspectivas, em 24 de Novembro, reuniu-se o Conselho de<br />

Estado. Tomás António de Vila Nova Portugal, valido de S. M., apresenta a proposta<br />

do embarque da Família Real e de todos que a quisessem acompanhar. Não foi difícil<br />

reconhecer que a situação era tal que to<strong>das</strong> as alternativas estavam esgota<strong>das</strong> e, sendo<br />

assim, a Família Real devia partir para o <strong>Brasil</strong>, servindo-se da esquadra que se tinha<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

16


aparelhado para o Príncipe da Beira (D. Pedro) e de todos os navios ancorados <strong>no</strong> Tejo,<br />

de guerra ou mercantes, que ainda se pudessem aprontar. Ficou também decidido que,<br />

na ausência de D. João, e enquanto fosse conveniente permanecer <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, seria<br />

<strong>no</strong>meado um Conselho de Regência com poderes delegados por S. M.<br />

Embora tivessem fracassado to<strong>das</strong> as diligências diplomáticas do Gabinete<br />

Lisbonense junto <strong>das</strong> <strong>Corte</strong>s<br />

europeias, os seus processos<br />

dilatórios, muitas vezes<br />

“adormecendo” Napoleão e a sua<br />

“entourage”, ainda que à custa de<br />

e<strong>no</strong>rmes sacrifícios pecuniários,<br />

ouro e diamantes, deram-lhe tempo<br />

para estudar a situação internacional,<br />

A 24 de Novembro de 1807, o Conselho de Estado conceber e executar um <strong>no</strong>tável<br />

reúne-se <strong>no</strong> Palácio da Ajuda e propõe ao Príncipe<br />

Regente que parta para o <strong>Brasil</strong> e que <strong>no</strong>meie um pla<strong>no</strong> de salvação.<br />

Conselho de Regência<br />

Com efeito, a transferência<br />

da sede do Gover<strong>no</strong> para o Rio de Janeiro correspondia a um acto político de grande<br />

alcance, percursor de factos a que o decorrer do tempo se encarregaria de dar a devida<br />

relevância.<br />

Pedro Calmon, eminente figura da cultura brasileira, afirma que «Nenhum rei<br />

europeu pensara em mudar-se, com a <strong>Corte</strong>, o Tesouro, os arquivos, o séquito, dezenas<br />

de milhares de pessoas, para o outro lado do ocea<strong>no</strong>. A resolução do Príncipe Regente<br />

foi espantosa – e os gover<strong>no</strong>s continentais só se aperceberam dela quando já a<br />

esquadra luso - inglesa velejava para o ocidente abarrotada com as bagagens de uma<br />

monarquia. O golpe foi magistral…nenhum dos parceiros que jogaram com Napoleão<br />

os desti<strong>no</strong>s do mundo vibrara tão inesperada cartada. Pela segunda vez – depois de<br />

Trafalgar – o ocea<strong>no</strong> venceu o Imperador».<br />

Não há dúvida que o Príncipe Regente teve a coragem e a perspicácia de fazer<br />

precisamente o que devia, tanto mais que a ocupação francesa não era suficiente para a<br />

posse de Portugal, porquanto a legitimidade nacional era inerente ao futuro D. João VI<br />

que a levava consigo para o <strong>Brasil</strong>.<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

17


O embarque.<br />

Embora a saída do Príncipe Regente e da Família Real para o <strong>Brasil</strong> tivesse<br />

sido ponderada cuidadosamente, pelo me<strong>no</strong>s desde a reunião em Mafra do Conselho de<br />

Estado, em 19 de Agosto de 1807, parece não haver dúvida que o embarque terá sido<br />

apressado pela invasão, que até à ultima hora se procurou evitar, ou adiar, tanto mais<br />

que só pouco antes da partida se transportou a Família Real de Mafra para Lisboa com<br />

parte do pessoal dependente<br />

da <strong>Corte</strong>.<br />

De facto, o<br />

embarque pode ter sido<br />

efectuado à pressa,<br />

desorganizado e na maior<br />

<strong>das</strong> confusões, mas a<br />

preparação da esquadra e até<br />

o carregamento dos caixotes<br />

com o recheio <strong>das</strong> principais<br />

instituições tinha começado muito antes; nem de outra forma se explicaria que tivesse<br />

havido tempo, «numa terra clássica de imprevidência e morosidade», para depois de se<br />

estar ao corrente do anúncio da entrada <strong>das</strong> tropas francesas <strong>no</strong> território nacional,<br />

embarcar numa esquadra formada por quinze navios da Armada Real e duas ou três<br />

dezenas de navios mercantes.<br />

A partida só aconteceu <strong>no</strong> “último momento” pelo facto de estar dependente<br />

<strong>das</strong> resoluções (quase sempre fulminantes) de Napoleão Bonaparte.<br />

Foi precisamente <strong>no</strong> dia seguinte à decisão do Conselho de Estado que o<br />

<strong>no</strong>sso Gover<strong>no</strong> teve conhecimento concreto que as tropas comanda<strong>das</strong> por Ju<strong>no</strong>t já se<br />

encontravam em Abrantes, julgando, até então, que o General se encontrava em<br />

Salamanca. Certificando-se de que a invasão progredia, e estando ainda muito por<br />

ultimar, e não havendo tempo a perder, D. João convocou Joaquim José de Azevedo,<br />

tesoureiro da Casa Real, <strong>no</strong>meando-o superintendente-geral do embarque, que se havia<br />

de executar, impreterivelmente, na tarde de 27. O mordomo-mor, o administrador da<br />

Real Ucharia (depósito de géneros alimentícios), o guarda-jóias e o guarda tapeçarias<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

18


foram, igualmente, incumbidos de providenciar <strong>no</strong> que dizia respeito às necessidades<br />

da Família Real, <strong>no</strong>meadamente apetrechos domésticos e alimentos a transportar para o<br />

<strong>Brasil</strong>. O almirante Manuel da Cunha Sottomayor, comandante da esquadra-geral<br />

portuguesa era encarregado de apresentar mapas <strong>das</strong> disposições dos navios. Foram<br />

ainda toma<strong>das</strong> providências <strong>no</strong> sentido de transferir os tesouros régios (Palácio <strong>das</strong><br />

Necessidades e Patriarcal), para bordo dos navios, devendo o superintendente dirigir-se<br />

para o cais de Belém, onde, munido dos mapas entregues pelo almirante mandou armar<br />

uma barraca «para ali repartir as famílias pelas embarcações, segundo a escala de<br />

seus cómodos, assim como para enviar todos os volumes do Tesouro que chegavam,<br />

lida que continuou até ao momento do embarque de D. João».<br />

Porém, a pressa impedia que os procedimentos ocorressem de modo<br />

organizado, tanto mais que as autorizações, licenças, <strong>no</strong>meações e ordens de embarque<br />

vinham de várias fontes. Para agravar a situação, Lisboa estava a ser fustigada por forte<br />

ventania e chuvas torrenciais que transformavam as ruas e caminhos em autênticos<br />

lamaçais, dificultando as i<strong>das</strong> e vin<strong>das</strong> até ao cais de Belém para o transporte da imensa<br />

e volumosa bagagem. E mais, «o temor de que o mau tempo impedisse a partida antes<br />

da invasão <strong>das</strong> tropas francesas tumultuava o já complicado trâmite».<br />

A precipitação dos últimos preparativos, a ansiedade, perante o avanço <strong>das</strong><br />

tropas francesas em território nacional e a autorização dada pelo Príncipe Regente a<br />

todos aqueles que desejassem acompanhar a <strong>Corte</strong>, «desde que encontrassem<br />

transporte em navio mercante», não deixava de causar e<strong>no</strong>rmes dificuldades à<br />

organização do embarque.<br />

Efectivamente, com a vanguarda do exército de Ju<strong>no</strong>t «à vista», a confusão e<br />

a desordem instalaram-se <strong>no</strong> cais de partida. Segundo um dos Conselheiros Régios, <strong>no</strong>s<br />

dias 24, 25 e 26 foram «três dias de tormenta que hoje são difíceis de descrevê-los» e<br />

para um autor contemporâneo nesses dias «o terror desvairou a <strong>Corte</strong>».<br />

O embarque realizou-se a 27 de Novembro. Porém, as condições<br />

meteorológicas desfavoráveis não favoreciam a saída da barra à esquadra, causando<br />

natural ansiedade a bordo, temendo que os franceses chegassem de um momento para o<br />

outro e, apoderando-se <strong>das</strong> fortalezas que defendiam a barra, impedissem a<br />

«transmigração». Terá sido nestas circunstâncias que o Príncipe Regente se dirigiu ao<br />

Almirante Sottomayor, dizendo: «Preferia perecer num naufrágio a cair nas mãos de<br />

Bonaparte; porque esta desgraça seria pior para mim, do que aquela que sucedeu a<br />

Francisco I, prisioneiro de Carlos V».<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

19


A fim de salvaguardar o futuro da monarquia, e como aconselhava a prudência,<br />

considerou-se, ajuizadamente, evitar que todos os herdeiros embarcassem num mesmo<br />

navio, uma vez que a travessia do atlântico era uma viajem longa e perigosa. No<br />

entanto, na precipitação da partida essa precaução foi ig<strong>no</strong>rada, o que «um eventual<br />

naufrágio desse navio levaria para o fundo do ocea<strong>no</strong> três gerações da dinastia de<br />

Bragança».<br />

Assim, a esquadra régia, conforme comunicação dirigida pelo comando<br />

português, Cunha Sottomayor, ao almirante britânico, Sidney Smith, era constituída<br />

pelas naus «Príncipe Real», levando a bordo D. João com a Rainha-Mãe, D. Maria I, os<br />

Infantes D. Pedro e D. Miguel (herdeiros do tro<strong>no</strong>) e o Infante de Espanha D. Pedro<br />

Carlos, que depois foi seu genro; a «Afonso de Albuquerque» transportava a bordo a<br />

Princesa D. Carlota Joaquina, com suas filhas, Infantas D. Maria Isabel Francisca, D.<br />

Maria da Assunção, D. Ana de Jesus e Princesa da Beira, Infanta D. Maria Teresa; na<br />

«Príncipe do <strong>Brasil</strong>», a Princesa viúva, D. Maria Francisca Benedita e a Infanta D.<br />

Maria Ana, ambas irmãs de D. Maria I; na «Rainha de Portugal», viajavam as Infantas<br />

D. Maria Francisca de Assis e D. Isabel Maria, também filhas de Carlota Joaquina.<br />

Além da Família Real embarcaram os seguintes membros da <strong>Corte</strong> com as suas<br />

famílias: os Duques de Cadaval, os Marqueses de Angeja, Vagos, Lavradio, Alegrete,<br />

Torres Novas, Pombal (o filho primogénito de Carvalho e Melo) e Belas; os Condes de<br />

Redondo, Caparica, Belmonte, Calvário; o Visconde de Anadia; o Ministro e Secretário<br />

de Estado dos Negócios Ultramari<strong>no</strong>s, D. Rodrigo de Sousa Coutinho; D. João de<br />

Almeida, António de Araújo de Azevedo, Ministro dos Negócios Estrangeiros e da<br />

Guerra, D. Fernando José de Portugal, Tomás António de Vila Nova Portugal;<br />

Monsenhores Valadares, Almeida, Cunha e Nóbrega; Cónegos Pizarro e Menezes e<br />

vários outros, viajando a bordo <strong>das</strong> diferentes naus, que eram a «Conde D. Henrique»,<br />

a «Medusa», «D. João de Castro» e a «Martim de Freitas». Quatro fragatas, três<br />

brigues (peque<strong>no</strong> navio de guerra de dois mastros), uma escuna (embarcação de dois<br />

mastros com vela latina <strong>no</strong> da popa) e duas ou três dezenas de navios mercantes<br />

completavam a frota.<br />

Segundo o historiador Kenneth Light, especialista da história naval desse<br />

período, estimou que terão embarcado entre 12 a 15 mil pessoas e baseado em<br />

consultas <strong>no</strong>s livros de bordo dos navios ingleses que acompanharam a esquadra<br />

portuguesa, afirma que o navio «Príncipe Real» transportava 1054 pessoas.<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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Entre as pessoas que acompanharam o Príncipe D. João na viagem para o <strong>Brasil</strong><br />

incluíam-se pessoas da <strong>no</strong>breza, conselheiros reais e militares, juízes, advogados,<br />

comerciantes e suas famílias, médicos, bispos padres, damas de companhia,<br />

camareiros, pajens, cozinheiros e moços de estrebaria. Ao fim e ao cabo era a sede do<br />

Estado português que mudava de continente, com o seu aparelho administrativo e<br />

burocrático, o seu Tesouro, as suas repartições, secretarias, tribunais, os seus arquivos e<br />

funcionários.<br />

Por via da pressa do embarque a grande maioria dos viajantes não foi registada<br />

ou catalogada. Uma multidão heterogénea procurava alojamento na esquadra e <strong>no</strong>s<br />

cerca de trinta navios da Marinha<br />

nacional, precipitando-se sobre to<strong>das</strong><br />

as embarcações e transportando para<br />

elas tudo o que pudera salvar,<br />

havendo barcos que levavam a<br />

bordo, com os porões abarrotados,<br />

três vezes o número de pessoas<br />

permitido numa navegação <strong>no</strong>rmal.<br />

Muitas pessoas importantes<br />

tiveram de regressar a casa depois de<br />

tentar baldadamente chegar aos<br />

navios, como foi o caso do Núncio<br />

Apostólico, D. Lourenço de Caleppi,<br />

de 67 a<strong>no</strong>s, convidado por D. João a<br />

acompanhá-lo na viagem,<br />

reservando-lhe as naus «Martim de Freitas» ou «Medusa». Numa ou <strong>no</strong>utra, Caleppi<br />

deveria viajar acompanhado do seu secretário particular Camilo Rossi. Porém, <strong>no</strong> dia<br />

combinado, compareceram <strong>no</strong> cais e não encontraram vaga em nenhuma <strong>das</strong> naus, uma<br />

vez que já estavam completamente lota<strong>das</strong>, pelo que o Núncio só chegaria ao <strong>Brasil</strong> em<br />

Setembro de 1808, quase um a<strong>no</strong> depois da partida da Família Real.<br />

A bordo a confusão era indescritível, ninguém encontrava o que era seu. As<br />

últimas horas que antecederam a partida terão sido vivi<strong>das</strong> num estado de verdadeiro<br />

pandemónio.<br />

A confusão dos últimos momentos foi tal, que as ordens do Príncipe Regente,<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

21


data<strong>das</strong> de 28 de Novembro, já a bordo do «Príncipe Real», autorizando os gastos<br />

indispensáveis para completar a aguada, os «stocks» de lenha e outras necessidades, só<br />

foram entregues ao Visconde de Anadia um a<strong>no</strong> depois, em 11 de Dezembro de 1808!<br />

Existem várias narrativas do embarque e to<strong>das</strong> elas descrevendo, com grau<br />

variável a total confusão. Eusébio Gomes, almoxarife do Palácio de Mafra, registou <strong>no</strong><br />

seu diário:<br />

«É impossível descrever o que se passou <strong>no</strong> cais de Belém na ocasião do<br />

embarque da Real Família que saiu de Mafra a toda a pressa para embarcar, porque à<br />

mesma hora se soube que os franceses estavam a chegar a Lisboa. Que grande<br />

confusão houve então <strong>no</strong> cais de Belém! Todos a quererem embarcar, o cais<br />

amontoado de caixas, caixotes, baús, malas, malotões e trinta mil coisas, que muitas<br />

ficaram <strong>no</strong> cais tendo os seus do<strong>no</strong>s embarcado, outras foram para bordo e seus do<strong>no</strong>s<br />

não puderam ir. Que desordem e que confusão; a Rainha sem querer embarcar por<br />

forma alguma, o Príncipe aflito por este motivo!!! Foi o Laranja (Francisco Laranja,<br />

capitão de fragata e patrão mor <strong>das</strong> galeotas reais) quem fez com que a Rainha<br />

embarcasse. E então o Príncipe deu beija-mão às pessoas que ali estavam e entre<br />

lágrimas e suspiros começaram a embarcar, e não se pode descrever o que aqui se<br />

passou».<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

22


A partida. Ju<strong>no</strong>t… a “ver navios”.<br />

Na época em que a <strong>Corte</strong> decidiu transferir-se para o <strong>Brasil</strong>, <strong>no</strong> início do século<br />

XIX, as viagens, <strong>no</strong>meadamente as de longo curso, eram uma aventura extremamente<br />

arriscada, exigindo um rigoroso planeamento e uma preparação minuciosa e demorada.<br />

O trajecto Lisboa – Rio de Janeiro, calculado em cerca de dois meses e meio, estava<br />

sujeito às tempestades, calmarias, aos ataques inesperados da pirataria frequente <strong>no</strong><br />

Atlântico e, até, muitas vezes, ao mau estado <strong>das</strong> embarcações, atendendo à duração<br />

dessas viagens. A possibilidade de retor<strong>no</strong> era escassa, por isso os que partiam<br />

preocupavam-se em deixar minimamente organizada a sua vida e despedir-se dos<br />

parentes e amigos.<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

23


Os perigos eram de tal ordem que a Marinha de Sua Majestade Britânica, à<br />

época a mais experiente, organizada e bem equipada força naval do mundo,<br />

considerava «aceitável<br />

a média de uma morte<br />

para cada trinta<br />

tripulantes nas viagens<br />

de longo curso».<br />

Antigas e mal<br />

equipa<strong>das</strong>, as naus e<br />

fragatas portuguesas<br />

que viajaram para o<br />

<strong>Brasil</strong> há duzentos<br />

a<strong>no</strong>s eram «cápsulas<br />

Entrada em Lisboa do exército francês (mas ficou a ver navios,<br />

porque a Família Real já havia zarpado do cais…)<br />

de madeira<br />

hermeticamente lacra<strong>das</strong>». As pequenas escotilhas, que se mantinham fecha<strong>das</strong> a<br />

maior parte do tempo, tornavam o ambiente interior asfixiante, sem ventilação; durante<br />

o dia, sob o sol equatorial, transformavam-se em verdadeiras “saunas flutuantes” e,<br />

para mais, com as embarcações navegando apinha<strong>das</strong> de gente.<br />

Como não havia água corrente (e a que havia era racionada) nem casas de banho<br />

para satisfazer as necessidades fisiológicas, eram usa<strong>das</strong> as latrinas, ou “cabeças”,<br />

plataformas amarra<strong>das</strong> ao bojo da ré suspensas sob a amurada dos navios, por onde os<br />

dejectos eram laçados directamente ao mar.<br />

A alimentação a bordo era composta de biscoitos, lentilhas, azeite, carne de<br />

porco salgada e bacalhau. Porém, quando se navegava sob o calor sufocante <strong>das</strong> zonas<br />

tropicais, os ratos, baratas e carunchos invadiam os depósitos de alimentos; a água<br />

deteriorava-se facilmente contaminada por fungos e bactérias, motivo pelo qual os<br />

ingleses bebiam cerveja com regularidade, e os portugueses e espanhóis vinho de má<br />

qualidade.<br />

Uma <strong>das</strong> situações mais temi<strong>das</strong> durante as longas travessias oceânicas era o<br />

escorbuto, doença provocada pela falta de frutas e alimentos frescos originando a<br />

ausência de vitamina C, o que levava ao enfraquecimento do doente, febres altíssimas e<br />

dores insuportáveis. A gengivas gangrenavam e os dentes caiam ao mínimo toque.<br />

A fim de evitar ou diminuir as doenças e o surto de outras pragas, determinavase<br />

que as roupas e as dependências dos navios estivessem sempre limpas, sob pena de<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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igorosos castigos, o que neste aspecto a Marinha britânica servia de exemplo.<br />

Após dois dias de ansiedade e incertezas devido às condições meteorológicas<br />

adversas, o tempo mudou e o vento também estava de feição. Assim, às 7 horas da<br />

manhã do dia 29 de Novembro o Príncipe Regente dava ordem de partida e a esquadra<br />

portuguesa zarpava do porto de Lisboa, que <strong>no</strong> dia seguinte seria ocupado pelas tropas<br />

francesas.<br />

Efectivamente, às oito horas da manhã, Ju<strong>no</strong>t surgia em Lisboa comandando a<br />

vanguarda <strong>das</strong> tropas francesas «que ainda terão podido vê-los afastando-se <strong>no</strong><br />

horizonte», tendo o general expressado ao Imperador a sua pena por não ter podido<br />

cumprir a missão de impedir a partida do Príncipe e, certamente, a sua prisão, conforme<br />

consta de uma longa carta, cuja cópia se encontra <strong>no</strong> «Copiador de Correspondência de<br />

Ju<strong>no</strong>t», na Biblioteca do Palácio da Ajuda. Ao mesmo tempo mostrava estar bem<br />

informado do que se tinha passado em Lisboa antes da sua chegada:<br />

«Há muito tempo que a esquadra portuguesa se teria posto em estado de<br />

sair…a minha intenção era apenas que se soubesse que eu estava bem perto da cidade,<br />

e que isso pudesse levar o povo a impedir a saída da Esquadra.<br />

No dia 28 o vento era contrário, e o Príncipe não pôde sair. No dia 29 pela<br />

manhã, apesar do vento não ser bom, a esquadra portuguesa saiu com a maré…<br />

…(os) navios estão carregados de gente duma maneira horrível, há mais de<br />

duas mil pessoas <strong>no</strong> «Príncipe Real», e uma tal confusão, que, <strong>no</strong> dia seguinte ao seu<br />

embarque, uma Princesa Real pôde apenas obter uma porção de arroz. Estão<br />

acumulados leitos e carruagens, e a água estava já corrompida <strong>no</strong> segundo dia,<br />

porque fora posta em tonéis <strong>no</strong>vos, visto terem-se vendido os que pertenciam à<br />

Marinha.<br />

Sire, V. M. deve pensar quanto desgosto eu tive por ver escapar-se, tão perto de<br />

mim, o fim de tantas fadigas e privações de todo o género…».<br />

Nunca, como neste caso, relativo a Ju<strong>no</strong>t e às suas tropas, se poderá dizer com<br />

tanta propriedade que ficaram a ver navios! Napoleão estava «burlado», escreveu<br />

Oliveira Martins numa passagem me<strong>no</strong>s negativa do seu estudo sobre D. João VI.<br />

Apesar da confirmação da protecção da esquadra britânica ter sido obtida <strong>no</strong> dia<br />

28 de Novembro, durante a audiência que D. João concedeu, na nau «Príncipe Real»,<br />

ao embaixador Lord Strangford, informações colhi<strong>das</strong> a partir dos diários de bordo dos<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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navios ingleses revelam que, <strong>no</strong>s momentos imediatos à saída de Lisboa, o clima entre<br />

os dois aliados não correspondia ao tom amistoso que algumas fontes quiseram fazer<br />

crer. O clima era de expectativa, tensão e desconfiança. Efectivamente, todos os<br />

comandantes britânicos, sem excepção, registaram <strong>no</strong>s seus diários que, «ao avistar as<br />

embarcações portuguesas a sair do porto de Lisboa, entre as oito e as <strong>no</strong>ve da manhã<br />

do dia 29 de Novembro, ordenaram que os seus navios se preparassem para a acção,<br />

formando uma linha de combate». O que parece, pelo me<strong>no</strong>s aparentemente, é que<br />

todos eles se precaviam contra a hipótese de que Portugal se tivesse rendido às<br />

exigências de Napoleão e tentasse à força romper o bloqueio naval britânico.<br />

Porém, esses breves momentos de incerteza e desconfiança, diluíram-se, de<br />

imediato, quando a frota portuguesa cruzou a barra do Tejo e a nau «Príncipe Real»,<br />

onde viajava D. João, se aproximou da nau capitania da esquadra britânica, «HMS<br />

Hibernia», para reafirmar as intenções de paz, seguindo-se entre os dois aliados as<br />

saudações da praxe: uma salva de 21 tiros.<br />

A bordo da nau «Hibernia», Lord Strangford enviava para o primeiro ministro<br />

britânico, Lord Canning, a seguinte mensagem: «Tenho a honra de comunicar que o<br />

Príncipe Regente de Portugal se decidiu pelo <strong>no</strong>bre e magnânimo pla<strong>no</strong> de se retirar<br />

de um rei<strong>no</strong> em que mais não pode manter-se a não ser como vassalo da França; e que<br />

Sua Alteza Real e a Família, acompanhados pela maior parte dos navios de guerra e<br />

por multidão de fiéis defensores e súbditos solidários, partiu hoje de Lisboa, estando<br />

agora em viagem para o <strong>Brasil</strong> sob a guarda da armada inglesa».<br />

Na tarde do primeiro dia de viagem, a esquadra laçou âncora nas proximidades<br />

do litoral português, juntando-se à esquadra britânica a fim de se proceder a inspecções<br />

de última hora, antes da travessia do Atlântico.<br />

Pouco depois, pelas quatro horas, Lord Strangford e o Almirante Sidney Smith<br />

foram a bordo do «Príncipe Real» apresentar os seus respeitos a D. João, constatando<br />

que as acomodações da embarcação portuguesa estavam muito aquém <strong>das</strong> necessidades<br />

de Sua Alteza. O ambiente a bordo era sombrio e depressivo, como regista o ministro<br />

britânico, num dos seus despachos para Londres: «É impossível descrever a situação<br />

dessas pessoas ilustres, o seu desconforto, a paciência e a resignação com que elas têm<br />

suportado as privações e dificuldades decorrentes da mudança». Perante tal situação, o<br />

Almirante Smith sugeriu a D. João que passasse para bordo de um dos navios ingleses,<br />

mais <strong>no</strong>vo e confortável. O Príncipe recusou, talvez, consciente que a atitude cairia mal<br />

<strong>no</strong>s companheiros de viagem e, provavelmente, também porque a <strong>Corte</strong> portuguesa já<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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se sentia, de algum, modo, refém e dependente da Inglaterra; viajar como hóspede do<br />

comandante britânico poderia ser… «politicamente incorrecto».<br />

Depois, durante algum tempo, conferenciaram e discutiram acerca dos últimos<br />

detalhes da viagem.<br />

O pla<strong>no</strong> previa que todos os navios deveriam navegar em conserva (em<br />

conjunto) e, caso alguns fossem separados por qualquer imprevisto durante a travessia,<br />

far-se-ia o “ponto de encontro” na ilha de Santiago, em Cabo Verde, onde a esquadra se<br />

reagruparia antes de seguir para o Rio de Janeiro. Só a nau «Medusa», que levava a<br />

bordo os ministros Araújo de Azevedo, José Egídio e Tomás António Vila Nova,<br />

deveria seguir directamente para a Baía, a fim de levar o “aviso” da ida da Família<br />

Real.<br />

Quatro vasos de guerra britânicos – «HMS Marlborough», «Bedford»,<br />

«London» e «Monarch» - escoltariam a frota portuguesa; os restantes, após a<br />

acompanharem até meio do percurso para a Madeira, regressariam a Portugal e<br />

reintegrariam o bloqueio de Lisboa.<br />

A viagem. Fragilidade da frota Real. Um “infer<strong>no</strong>” vivido entre o céu<br />

e o mar.<br />

O tempo bonançoso que permitiu a saída de Lisboa foi sol de pouca dura, a<br />

travessia cedo começou a enfrentar dificuldades de toda a ordem.<br />

Logo que termi<strong>no</strong>u a reunião a bordo do «Príncipe Real», a armada foi<br />

surpreendida por violenta e inesperada tempestade que provocou o pânico,<br />

<strong>no</strong>meadamente na maioria não acostumada, temendo que a aventura terminasse a<br />

qualquer momento. Ao a<strong>no</strong>itecer, o vento, que até então corria favorável ao rumo<br />

planeado, inverteu a direcção e soprando de través, em raja<strong>das</strong> fortíssimas, ameaçava<br />

empurrar a frota de volta à costa portuguesa, já ocupada pelas tropas francesas.<br />

Após alguns momentos de angústia e tensão, em que grupos de <strong>no</strong>bres e<br />

cortesãos aterrorizados se amontoavam <strong>no</strong> convés <strong>das</strong> embarcações, «pálidos de<br />

ansiedade e enjoo», os comandantes decidiram tirar partido da força da ventania e<br />

rumar na direcção <strong>no</strong>roeste, como se estivessem a dirigir-se para o Canadá, em vez do<br />

<strong>Brasil</strong>, ma<strong>no</strong>bra efectuada com o objectivo de manter os navios em alto mar, evitando,<br />

assim, o seu arrastamento para o litoral. Só <strong>no</strong> quarto dia, a 1 de Dezembro, a<br />

tempestade amai<strong>no</strong>u, podendo então corrigir as velas e rumar para sudoeste, em<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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direcção ao <strong>Brasil</strong>, quando já tinha percorrido mais de 160 milhas náuticas, isto é, o<br />

equivalente a cerca de 300 quilómetros.<br />

Neste ponto, já bem afastados da costa portuguesa, houve necessidade de<br />

proceder a uma <strong>no</strong>va inspecção, em consequência da qual um peque<strong>no</strong> barco de guerra,<br />

considerado incapaz de fazer a travessia foi despachado de volta para Lisboa. Todos os<br />

outros, embora sem as condições ideais, acabaram por seguir viagem depois de terem<br />

sido executados os consertos indispensáveis e possíveis. Conquanto nenhuma<br />

embarcação naufragasse, algumas chegaram ao <strong>Brasil</strong> em estado lastimável.<br />

Em 5 de Dezembro, sensivelmente a<br />

meio caminho entre Lisboa e Funchal, na Ilha<br />

da Madeira, o Almirante Sidney Smith decidiu<br />

que o perigo de encontrar navios inimigos<br />

tinha diminuído e que, conforme o planeado, a<br />

frota dividir-se-ia em duas: uma parte sob o seu<br />

comando retornava ao bloqueio de Lisboa,<br />

ocupada pelas tropas francesas; a outra,<br />

composta, como já se referiu, pelos navios<br />

«Marlborough», «London», «Bedford» e<br />

«Monarch», sob o comando do capitão<br />

Graham Moore, continuaria a escoltar a esquadra portuguesa até ao <strong>Brasil</strong>.<br />

D. Manuel Sottomayor, a bordo do «Príncipe Real», decidiu acerca do ponto de<br />

encontro: «A primeira coisa, a qual eu estava ansioso que ficasse perfeitamente<br />

entendida entre o vice-almirante português e eu era o ponto de reunião, o qual foi<br />

fixado por ele primeiramente ao largo da extremidade oeste da Madeira,<br />

posteriormente ao largo da Ilha de Palma, e finalmente em Praia, na Ilha de S. Tiago».<br />

Três dias depois, a 8 de Dezembro, quando se aproximavam do arquipélago da<br />

Madeira o estado do mar voltou a alterar-se e um denso nevoeiro caiu sobre a frota:<br />

«estava tão carregado que não conseguíamos ver além da distância equivalente a três<br />

vezes o comprimento do navio», escreveu o capitão James Walker a bordo do «HMS<br />

Bedford».<br />

A situação agrava-se quando, ao a<strong>no</strong>itecer, uma violenta tempestade começou a<br />

assolar os navios com as vagas a lançarem, de tempos a tempos, água gelada sobre o<br />

convés cheio de gente e ventos fortíssimos fustigando as velas apodreci<strong>das</strong>.<br />

Como se isso não bastasse, havia, ainda, um perigo maior a rondar a armada – a<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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zona conhecida por «Oito Pedras». Localizada a <strong>no</strong>rte de Porto Santo, era um conjunto<br />

de rochedos, parcialmente submersos, constituindo uma armadilha já causadora de<br />

inúmeros naufrágios e, neste caso, de alto risco, por via da escuridão da <strong>no</strong>ite e<br />

cobertos pelo nevoeiro. Assim, para não correr esse risco, que poderia ser fatal, os<br />

comandantes decidiram parar, esperando que o tempo amainasse. Surpreendentemente,<br />

ao romper do dia, uma parte dos navios tinha desaparecido. A esquadra, sem que os<br />

marinheiros se apercebessem, tinha sido dispersada, durante a <strong>no</strong>ite, pela força dos<br />

ventos.<br />

Como era natural, os estragos foram maiores <strong>no</strong>s navios portugueses. Alguns<br />

deles punham a nu o péssimo estado em que se encontravam e que as apressa<strong>das</strong><br />

reparações da última hora não tinham podido corrigir: metiam água abundantemente, o<br />

cordame era velho e os mastros e vergas estavam meio podres.<br />

Entre outras embarcações força<strong>das</strong> a realizar reparações por alturas da Madeira,<br />

é <strong>no</strong>tório o caso da nau «Medusa», onde se passaram momentos de grande aflição<br />

quando o mastro principal se despedaçou e veio abaixo, deixando-a à deriva <strong>no</strong> meio<br />

do ocea<strong>no</strong>. O ministro Araújo de Azevedo, que viajava na referida nau, não deixou de<br />

apresentar um relatório esclarecedor que <strong>no</strong>s remete para a forma deficiente como fora<br />

preparada a frota Real:<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

«O mastro principal partiu-se…porque<br />

estava completamente podre; os cabos estavam<br />

num estado lamentável; tudo conspirava para pôr<br />

as <strong>no</strong>ssas vi<strong>das</strong> em perigo, devido à conduta e às<br />

decisões toma<strong>das</strong> pelo comandante e alguns<br />

oficiais. Para que Vossa Majestade tenha uma<br />

ideia do estado miserável em que este barco está,<br />

basta dizer que se, por acaso, os criados de José<br />

Egídio não tivessem trazido algumas sacas de fio<br />

para fazer uma peça de tecido, não teríamos com<br />

que coser as velas».<br />

Dispersada pelos ventos a esquadra seguiu rumos diferentes. Metade dos navios,<br />

incluindo o «Príncipe Real» e o «Afonso de Albuquerque», <strong>no</strong>s quais viajava o núcleo<br />

da Família Real, navegaram na direcção <strong>no</strong>roeste, enquanto a restante frota se dirigiu<br />

para o local combinado, a Ilha de Santiago, <strong>no</strong> arquipélago de Cabo Verde.<br />

29


Como as condições tivessem melhorado, em águas calmas e em ple<strong>no</strong> ocea<strong>no</strong>,<br />

D. Carlota e as filhas desceram <strong>das</strong> naus que as transportavam e, tomando lugar numa<br />

galeota, resolveram fazer uma visita à Rainha, ao Príncipe e aos Infantes D. Pedro e D.<br />

Miguel, regressando depois ao «Afonso de Albuquerque». Foi precisamente neste ponto<br />

que D. João decidiu rumar à Baía, em vez de navegar para o Rio de Janeiro como<br />

estava planeado à partida de Lisboa. No tempo total da viagem, estavam apenas a meio<br />

caminho – umas cinco semanas de mar encapelado e sujeitos ainda a outros<br />

contratempos.<br />

Atendendo à má organização dos preparativos, à e<strong>no</strong>rme confusão da partida e à<br />

odisseia de toda a viagem, bem se pode aceitar ter sido uma aventura que poderia ter<br />

redundado para Portugal num e<strong>no</strong>rme desaire, de consequências trágicas difíceis de<br />

imaginar.<br />

Nos primeiros dias de viagem, enquanto ainda navegavam <strong>no</strong> hemisfério <strong>no</strong>rte,<br />

a forte ondulação projectava água gelada sobre o convés sobrelotado, onde a tripulação<br />

trabalhava com dificuldades por via do nevoeiro e <strong>das</strong> raja<strong>das</strong> de vento frio. Com o<br />

casco a meter água frequentemente, muitas embarcações tinham as velas e as cor<strong>das</strong><br />

apodreci<strong>das</strong>, o madeirame gemendo sob a força <strong>das</strong> on<strong>das</strong> e dos ventos, o pânico<br />

espalhava-se entre aqueles passageiros que não estavam habituados a tais andanças.<br />

De facto, os ventos e as tempestades tornavam a viagem muito desagradável<br />

para os passageiros, naturalmente assustados com a fúria <strong>das</strong> vagas, contudo o medo, as<br />

náuseas colectivas e a agitação do mar revolto constituíam apenas uma parte <strong>das</strong> razões<br />

que tornavam quase insuportável a vida quotidiana a bordo dos navios. A sobrelotação<br />

era a principal causa dessa situação desconfortável.<br />

O navio almirante da frota portuguesa, o «Príncipe Real», calcula-se que<br />

transportava para cima de 1000 pessoas (possivelmente 1600, segundo as estimativas<br />

mais eleva<strong>das</strong>) e mesmo com três convés de armas e um espaçoso porão, nem assim<br />

havia espaço livre; o «Minerva» fez-se ao mar com mais de700 passageiros; o «Martim<br />

de Freitas» ia a abarrotar com um número sensivelmente igual de passageiros,<br />

misturados com carga que já não cabia <strong>no</strong>s porões. Mesmos os mais ilustres viajavam,<br />

e dormiam, amontoados <strong>no</strong>s tombadilhos.<br />

À medida que o tempo decorria, começava a fazer sentir-se a escassez de água e<br />

outros mantimentos, tendo sido necessário reduzir o consumo tomando medi<strong>das</strong> de<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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acionamento, queixando-se os passageiros da qualidade e quantidade <strong>das</strong> provisões.<br />

Aliás, esta situação foi detectada logo à partida, e é o próprio Lord Strangford quem o<br />

denuncia: «A frota deixou o Tejo com tamanha pressa que pouquíssimos dos navios<br />

mercantes têm víveres ou água para mais de três semanas a um mês. Muitos navios de<br />

guerra encontram-se <strong>no</strong> mesmo estado, e Sir Sidney Smith «é de opinião que a maior<br />

parte do comboio deve rumar para Inglaterra a fim de completar as suas provisões».<br />

Porém, tal não foi possível e os navios seguiram para o <strong>Brasil</strong> com as deficiências que<br />

um relatório, publicado na véspera, registava:<br />

«Rainha de Portugal» – precisa de 27 tonéis de água, pois os tem vazios;<br />

Fragata «Minerva» – tem só 60 tonéis de água; «Conde D. Henrique» - tem seis tonéis<br />

vazios, precisa de medicamentos; «Golphinho» – tem seis tonéis vazios, faltam<br />

medicamentos, galinhas e lenha; «Urânia» – falta lenha; «Vingança» - falta água e<br />

lenha; - «Príncipe Real» – precisa de uma farmácia, galinhas, cabo, cera, 20 tonéis de<br />

água, marlim e linha de barca, e lenha; «Voador» - faltam três tonéis de água;<br />

«Príncipe do <strong>Brasil</strong>» - faltam azeite, cera, cabo,30 tonéis de água, lenha e linha de<br />

barca».<br />

As carências e outras dificuldades agudizavam-se à medida que a esquadra ia<br />

avançando. Quando já navegava por alturas do Equador, o frio do Inver<strong>no</strong> europeu deu<br />

lugar a um calor insuportável, em que as temperaturas em Dezembro chegam a 35<br />

graus centígrados, situação agravada pela ausência de ventos. Um outro aspecto<br />

desagradável <strong>das</strong> calmarias, com o andamento muito vagaroso dos navios, era o<br />

problema dos detritos, dos dejectos que tendiam a acumular-se <strong>no</strong> mar, em tor<strong>no</strong> do<br />

navio, dando origem a uma «massa nauseante e malcheirosa que ficava pior à medida<br />

que o tempo esquentava».<br />

Por outro lado, o excesso de passageiros, a falta de higiene e o facto de a<br />

maioria <strong>das</strong> mulheres não ter levado consigo mais do que a roupa que trazia <strong>no</strong> corpo<br />

<strong>no</strong> dia do embarque, porque na precipitação da partida não conseguiram preparar a<br />

bagagem, favoreceram a proliferação de pragas. No «Afonso de Albuquerque», onde<br />

viajava a princesa Carlota Joaquina, uma infestação de piolhos espalhou-se pelo convés<br />

a abarrotar, obrigando as mulheres a lançar ao mar as suas perucas, a rapar os cabelos,<br />

sendo as carecas unta<strong>das</strong> com banha de porco e pulveriza<strong>das</strong> com pó anti-séptico. A<br />

este propósito, parece-me interessante transcrever o comentário de Tobias Monteiro na<br />

sua «História do Império» editada <strong>no</strong> Rio de Janeiro em 1927: «Tamanha foi a invasão<br />

de piolhos, que to<strong>das</strong> elas, inclusive a Princesa Real, tiveram de cortar os cabelos para<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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atacar eficazmente os parasitas com banha e pós de Joanna. Quando as vissem chegar<br />

tonsura<strong>das</strong>, todo o belo sexo do Rio de Janeiro haveria de tomar a operação como<br />

requinte da moda e, dentro de pouco tempo, as fartas cabeleiras <strong>das</strong> cariocas cairiam,<br />

uma a uma, devasta<strong>das</strong> à tesoura».<br />

Sobre a vida do dia a dia, a bordo da frota, na longa e atribulada viagem da<br />

Família Real para o <strong>Brasil</strong>, os testemunhos nem sempre merecem inteiramente crédito.<br />

Refiro, apenas, o caso do cronista de meados do século passado, Luiz Edmundo, que<br />

apresenta alguns retratos românticos, onde homens e mulheres aparecem a cantar ao<br />

som <strong>das</strong> guitarras e a jogar cartas em convés iluminados pelo luar, o que, de facto,<br />

parece de todo improvável, num ambiente quase sempre dramático e sem condições<br />

para que tal acontecesse. E mais, também pouco ou nada convincente, é a história em<br />

que descreve o herdeiro do tro<strong>no</strong>, D. Pedro, de <strong>no</strong>ve a<strong>no</strong>s, «encantado com a<br />

experiência», em correrias pela ponte do navio e colaborando com a tripulação a<br />

calcular a longitude.<br />

De facto,<br />

para que tenhamos<br />

uma visão mais<br />

realista da travessia<br />

do ocea<strong>no</strong>, temos<br />

que recorrer às<br />

fontes primárias<br />

que chegaram até<br />

aos <strong>no</strong>ssos dias,<br />

como é o ocaso do<br />

depoimento de um<br />

oficial português<br />

que acompanhou parte da esquadra rumo ao <strong>Brasil</strong>:<br />

«Tão grande foi o número de pessoas (…) e tão apinhados estavam todos os<br />

navios, que mal havia espaço para que elas se deitassem <strong>no</strong>s conveses. As damas (…)<br />

desprovi<strong>das</strong> de qualquer traje, à excepção do que estavam a usar. Como os navios<br />

tinham apenas pequenas provisões, logo se tor<strong>no</strong>u necessário solicitar ao almirante<br />

britânico que acolhesse a bordo da sua esquadra uma grande quantidade de<br />

passageiros. E (para esses) foi uma e<strong>no</strong>rme sorte, pois os que permaneceram foram<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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ealmente objecto de piedade de Lisboa à Baía. A maior parte dormia <strong>no</strong> tombadilho,<br />

sem cama nem cobertas. A água era o artigo principal a reclamar a <strong>no</strong>ssa atenção; a<br />

porção que recebíamos dela era mínima e a comida, da pior qualidade e deficiente de<br />

tal forma que a própria vida se tor<strong>no</strong>u um fardo. A <strong>no</strong>ssa situação era tão horrível que<br />

a ninguém desejo que a chegue um dia a experimentar ou mesmo testemunhar.<br />

Homens, mulheres e crianças formavam juntos o mais desolador dos quadros».<br />

A bordo de um dos navios da esquadra («HMS London») viajava Thomas<br />

O’Neill (primeiro tenente irlandês), uma personagem considerada muito influente <strong>no</strong><br />

processo da mudança da Família Real para o <strong>Brasil</strong>. Como oficial do referido navio<br />

testemunhou o embarque da <strong>Corte</strong> portuguesa e os acontecimentos que marcaram a<br />

viagem até à <strong>no</strong>ssa antiga colónia da América. Os seus relatos são vivos, ple<strong>no</strong>s de<br />

emoção e porme<strong>no</strong>res dramáticos, como é o exemplo do trecho em que descreve o<br />

desconforto <strong>das</strong> mulheres da <strong>no</strong>breza que viajavam a bordo <strong>das</strong> embarcações<br />

portuguesas: «Mulheres de sangue real e <strong>das</strong> mais altas estirpes, cria<strong>das</strong> <strong>no</strong> seio da<br />

aristocracia e da abundância (…) to<strong>das</strong> obriga<strong>das</strong> a enfrentar os frios e as<br />

tempestades de Novembro através de mares desconhecidos, priva<strong>das</strong> de qualquer<br />

conforto e até mesmo <strong>das</strong> coisas mais necessárias da vida, sem uma peça de roupa<br />

para trocar ou camas para dormir – constrangi<strong>das</strong> a amontoarem-se, na maior<br />

promiscuidade, a bordo de navios que não estavam em absoluto preparados para<br />

recebê-las».<br />

Um outro depoimento que merece o maior crédito é o do arquivista Luiz<br />

Joaquim dos Santos Marrocos. Trabalhava na Biblioteca Real portuguesa, uma <strong>das</strong><br />

mais <strong>no</strong>táveis da Europa, situada num pavilhão do Palácio da Ajuda.<br />

Em Março de 1811, já com a <strong>Corte</strong> instalada <strong>no</strong> Rio, embarca para o <strong>Brasil</strong> a<br />

fim de zelar pela segunda remessa de livros da Biblioteca. Pouco depois da chegada,<br />

Luiz Joaquim Marrocos envia uma carta a seu pai onde dá uma ideia do tormento que<br />

era atravessar o Atlântico num navio à vela, sobrelotado, com muitas fragilidades e<br />

batido pelas on<strong>das</strong> de um lado para o outro:<br />

«Meu prezadíssimo pai e senhor do meu coração:<br />

É coisa muito de se ponderar o incómodo que sofre qualquer pessoa não<br />

acostumada a embarcar e muito principalmente que tenha moléstias de maior perigo e<br />

cuidado, a que é <strong>no</strong>civo o tossir, o espirrar, o assoar-se (…). É perniciosíssimo, e de<br />

toda a consequência, expõe-se ao enjoo marítimo que faz (parece) arrancar as<br />

entranhas e rebentar as veias do corpo, durando este tormento dias, semanas e muitas<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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vezes a viagem inteira. Além disto, o susto do mar, trovoa<strong>das</strong> e aguaceiros, balanços,<br />

submersões do navio não são coisas ridículas para quem não é grosseiro».<br />

Não será de estranhar que algumas <strong>das</strong> situações já referi<strong>das</strong>, não tivessem<br />

deixado de provocar um ambiente dominado pela insatisfação e pelo azedume,<br />

lamentando o que a pressa obrigara a deixar para trás: bens, parentes, a incerteza do<br />

futuro próximo e, até às vezes, as coisas mais simples. Um registo anónimo faz<br />

referências, ainda que breves, à carga emocional dos que iam a bordo: «Um deixara em<br />

Lisboa um bule que fazia o melhor chá do mundo; outro esquecera-se de trazer um<br />

cofre que continha muitos pertences importantíssimos». A partir destas pequenas<br />

lembranças que iam dando lugar a censuras vela<strong>das</strong>, começaram a transparecer as<br />

frustrações, «e chegou-se à conclusão de que a viagem fora muito mal planeada, de<br />

que deviam ter disposto de mais tempo e de que o grande número de embarcações que<br />

se encontrava <strong>no</strong> Tejo deveria ter sido preparado como navios de transporte».<br />

D. João manteve-se calmo, a sua consternação apenas foi revelada a dois ou três<br />

dos seus servidores mais fiéis.<br />

Porém, com o aumento da<br />

murmuração, e para lhe pôr cobro,<br />

o Príncipe que até aí se mantivera<br />

com grande serenidade e contenção,<br />

determi<strong>no</strong>u a «regra de silêncio,<br />

proibindo quaisquer queixas dos<br />

acertos e erros da decisão de<br />

deixar Lisboa». A partir de então,<br />

diz o cronista, (parece que<br />

ironicamente) o mar tornar-se-ia o<br />

único assunto de conversa.<br />

Presume-se que o cronista, apesar de anónimo, devia ser personalidade bem<br />

conhecida, só que… por razões óbvias, não se identificava, nem dizia o que pensava,<br />

mas pensava o que dizia. Mesmo sob a lei do silêncio, as questões políticas não podiam<br />

deixar de estar presentes; e, isto, porque, a bordo, as tensões não seriam apenas de<br />

ordem emocional, mas também de carácter político, pois à medida que a armada se<br />

aproximava do seu termo, muitos dos ilustres que nela seguiam, iam-se posicionando,<br />

pelo me<strong>no</strong>s em espírito, para ocupar o lugar que mais ambicionavam na <strong>no</strong>va<br />

administração.<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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O fim da odisseia. Chegada a S. Salvador da Baía. A recepção.<br />

Como já se referiu, a grande tempestade ocorrida ao largo da Madeira acabou<br />

por dispersar os navios. Alguns entre os quais o «Príncipe Real» e o «Afonso de<br />

Albuquerque» em que seguia a Família Real, e o «Bedford», que os escoltava,<br />

desviaram-se da rota previamente combinada e por decisão do Príncipe Regente<br />

tomaram rumo à Baía, não podendo, assim, juntar-se aos restantes, conforme estava<br />

determinado à partida de Lisboa, na Ilha de Santiago, velejando estes directamente para<br />

o Rio de Janeiro.<br />

A partir daí não houve mais contacto entre as duas frotas, julgando-se, até há<br />

pouco tempo, que uma se havia afastado da outra, perdendo-se completamente da vista.<br />

No entanto, os registos que constam <strong>no</strong>s diários de bordo britânicos testemunham que,<br />

desconhecendo-o, mutuamente, as duas frotas navegaram em «curso paralelo e bem<br />

próximos entre si até à altura da costa do <strong>Brasil</strong>».<br />

À medida que a esquadra real, em direcção à Baía, se aproximava do equador e<br />

entrava numa zona de calmaria – a mesma que assustava os navegadores portugueses<br />

de Quinhentos e que, oficialmente, obrigou Pedro Álvares Cabral a mudar o curso da<br />

viagem quando se dirigia para a Índia – a velocidade dos navios baixava de forma<br />

preocupante por via da falta de ventos. Relata o capitão Walker: «…Estávamos sendo<br />

detidos pelas calmarias, que mantinham os ventos e as chuvas pesa<strong>das</strong> do lado <strong>no</strong>rte, e<br />

levamos 10 dias para avançar 30 léguas…». Com um bom vento, um navio veloz<br />

cobriria esta em distância em cerca de 20 horas.<br />

Ultrapassado este obstáculo, o vento levantou-se de <strong>no</strong>vo e os passageiros<br />

animaram-se com a perspectiva da chegada a Terras de Santa Cruz, além de que um<br />

bergantim, proveniente do Recife transportava vários géneros bem necessários,<br />

sobretudo, frutos tropicais. Para os passageiros e tripulantes foi mais um alento, depois<br />

de quase dois meses sujeitos a uma alimentação à base de carne salgada, biscoitos<br />

secos, vinho avinagrado e água insalubre. O navio fora enviado pelo Governador de<br />

Pernambuco, Caeta<strong>no</strong> Pinto de Miranda Montenegro, após ter sido alertado para a<br />

provável posição da frota pelo comandante da «Medusa», já aportada ao Recife para as<br />

indispensáveis reparações.<br />

Dias depois, do convés, avistava-se ao longe um contor<strong>no</strong> rasteiro da costa. Já<br />

mais próximo do porto, divisava-se uma cidade colonial, com as suas telhas vermelhas,<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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paredes caia<strong>das</strong>, silhuetas de palmeiras <strong>no</strong> alto <strong>das</strong> colinas, campos de cana do açúcar,<br />

plantações de tabaco e pomares de citri<strong>no</strong>s.<br />

Efectivamente, vista à distância, na entrada da Baía de Todos-os-Santos, o<br />

pa<strong>no</strong>rama deslumbrava os visitantes estrangeiros, como se pode atestar pela descrição<br />

da inglesa Maria Graham, quando ali chegou em Outubro de 1821:<br />

«Esta manhã, ao raiar da aurora, os meus olhos abriram-se diante de um dos<br />

mais belos espectáculos que jamais contemplei. Uma cidade, magnífica de aspecto,<br />

vista do mar, está colocada ao longo da cumeeira e na declividade de uma alta e<br />

íngreme montanha. Uma vegetação riquíssima surge intercalada com as claras<br />

construções e além da cidade estende-se ao extremo da terra, onde ficam a pitoresca<br />

igreja e o convento de Santo António da Barra. Aqui e ali, o solo vermelho vivo<br />

harmoniza-se com o telhado <strong>das</strong> casas. O pitoresco dos fortes, o movimento do<br />

embarque, os morros que se esfumam à distância, e a própria forma da baía, com as<br />

suas ilhas e promontórios, tudo completa um pa<strong>no</strong>rama encantador; depois, há uma<br />

fresca brisa marítima que dá ânimo para apreciálo,<br />

não obstante o clima tropical».<br />

A odisseia chegara ao fim, e já com o litoral<br />

brasileiro à vista, e a nau «Príncipe Real» a poucas<br />

horas de aportar a S. Salvador da Baía, D.<br />

Domingos de Sousa Coutinho, <strong>no</strong>sso ministro em<br />

Londres, jubilosamente, oficiava a D. João<br />

congratulando-se com o feliz acontecimento:<br />

«Graças ao Altíssimo, – Está Vossa Alteza<br />

salvo! Salva a Real Família, a Monarquia e o<br />

Nome Português.<br />

Agora sim que recordando as palavras da<br />

Sagrada Escritura pode todo o Bom Português, olhando para o futuro que se lhe<br />

apresenta, morrer descansado! Está a Monarquia posta a salvo para sempre dos<br />

golpes da amizade como de inimizade de Bonaparte…»<br />

Com efeito, <strong>no</strong> dia 22 de Janeiro, uma sexta-feira, após 54 dias de mar e cerca<br />

de 6400 quilómetros percorridos, D João chegava finalmente à sua residência de alémmar,<br />

atracando numa <strong>das</strong> primeiras cidades que os portugueses fundaram <strong>no</strong> Novo<br />

Mundo, e que até 1763 fora a sede do gover<strong>no</strong> da América lusitana e a maior do Vice<br />

Rei<strong>no</strong>: Salvador, na Baía de Todos os Santos. O restante da esquadra, velejando<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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directamente de Cabo Verde, tinha chegado ao Rio <strong>no</strong> dia 17 de Janeiro.<br />

De terra, a esquadra tinha sido avistada e mensageiros foram alertados para<br />

alertar o governador em Salvador, o qual deixou escrito sobre a chegada:<br />

«No dia 22 de Janeiro deste a<strong>no</strong>, pelas duas horas da madrugada, me foi dada<br />

a <strong>no</strong>tícia de se terem avistado embarcações grandes na costa do <strong>no</strong>rte, <strong>no</strong> dia 21, pelas<br />

quatro horas da tarde; redobrei as vigias ordinárias, e sucessivamente, se me<br />

comunicou, aparecerem três naus, uma galera e dois bergantins, dando-se por certo<br />

serem embarcações inglesas; nesta certeza me conservei até ao meio dia, em que,<br />

diferençando-se as bandeiras, se reconheceu o pavilhão real; mandei logo tirar balas<br />

às peças <strong>das</strong> baterias para se darem as respectivas salvas».<br />

O Governador da capitania, João de Saldanha da Gama, 6º Conde da Ponte,<br />

embora tivesse conhecimento, havia mais de dez dias, da retirada da Família Real,<br />

ig<strong>no</strong>rava completamente que a cidade de Salvador seria o seu primeiro desti<strong>no</strong>. Daí,<br />

compreender-se, que o acontecimento não tivesse a pompa que se poderia imaginar,<br />

uma vez que parte da armada real chegara de surpresa, entrando na baía em ca<strong>no</strong>as, não<br />

havendo, pois, tempo, nem condições para receber, com brilho, a Rainha, o Príncipe<br />

Regente e os outros membros da <strong>Corte</strong> e da Casa Real que, naturalmente, se terão<br />

mostrado surpreendidos pelo facto de o cais se encontrar deserto.<br />

Logo que a <strong>no</strong>tícia chegou aos seus ouvidos, o Governador da Baía subiu a<br />

bordo do «Príncipe Real» para saudar D. João e os que o acompanhavam e, também,<br />

para acertar a forma que deveria ter a recepção, a qual foi adiada para o dia seguinte, a<br />

fim de dar tempo aos que chegavam de se recomporem de tão atribulada viagem e aos<br />

residentes preparar condignamente a recepção.<br />

No dia seguinte, pelas 4 horas da tarde, ao contrário do que sucedera na véspera,<br />

agora com o cais da ribeira apinhado de gente, a Família Real – excepto D. Maria, por<br />

óbvias razões de saúde – e demais <strong>no</strong>breza, pisavam solo brasileiro, deparando com<br />

uma calorosa recepção, debaixo de salvas de canhões dispara<strong>das</strong> <strong>das</strong> fortalezas e gritos<br />

de entusiasmo misturados com o badalar dos si<strong>no</strong>s <strong>das</strong> inúmeras igrejas da cidade.<br />

Por entre as saudações da multidão, entraram nas carruagens que os esperavam<br />

e seguiram «pela rua da Preguiça, tomaram a Ladeira da Gameleira até ao Largo do<br />

Teatro (…). Aí desceram <strong>das</strong> carruagens porque a Câmara Municipal os esperava com<br />

o pálio, e sob este, seguiram a pé (…) até à igreja da Sé, entre alas de soldados que<br />

lhes faziam as continências, repicando ao mesmo tempo to<strong>das</strong> as igrejas (…) em acção<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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de graças ao Omnipotente, não só pela feliz viagem dos sobera<strong>no</strong>s, como pela dita de<br />

ver o <strong>Brasil</strong> ser a sede da monarquia portuguesa». Na Igreja da Sé, o Arcebispo, D.<br />

Frei José de Santa Escolástica, celebrou um «Te Deum Laudamus» em acção de graças<br />

pelo êxito da travessia oceânica. Os si<strong>no</strong>s continuavam a repicar saudando a chegada<br />

do Príncipe Regente e da Família Real, hóspedes inesperados e que, agora, a população<br />

podia ver em “carne e osso”, facto único na história do colonialismo europeu, pois até<br />

àquele momento nenhum monarca havia viajado até ao continente america<strong>no</strong> nem<br />

sequer em visita e, muito me<strong>no</strong>s, para fixar lá a sua <strong>Corte</strong>.<br />

À <strong>no</strong>ite, depois <strong>das</strong> cerimónias de boas vin<strong>das</strong> terem terminado, D. João, D.<br />

Maria e o Infante D. Pedro ficaram alojados <strong>no</strong> Palácio do Governador, enquanto D.<br />

Carlota Joaquina ficou a bordo da nau «Afonso de Albuquerque» por mais cinco dias,<br />

antes de se instalar <strong>no</strong> edifício do palácio da Justiça, <strong>no</strong> centro da cidade.<br />

Nos dias em que a <strong>Corte</strong> permaneceu em Salvador, não faltaram cerimónias<br />

litúrgicas «repletas de ouro e jacarandá», música, espectáculos <strong>no</strong>ctur<strong>no</strong>s pelas ruas da<br />

cidade, cerimónias de beija-mão em que o Príncipe Regente recebia, incansavelmente,<br />

longas filas de súbditos: agricultores, comerciantes, padres, militares, funcionários<br />

públicos e pessoas humildes que lhe vinham prestar homenagem, bem como ouvir as<br />

suas preocupações e pretensões.<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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A abertura dos portos do <strong>Brasil</strong> – O fim do mo<strong>no</strong>pólio.<br />

Durante o mês que passou na Baía sendo alvo de frequentes manifestações de<br />

júbilo e numerosas festas e celebrações, o Príncipe Regente teve ensejo de promulgar<br />

uma série de medi<strong>das</strong> importantes que haveriam de mudar os desti<strong>no</strong>s do <strong>Brasil</strong>.<br />

Embora a capital da colónia tivesse sido transferida para o Rio de Janeiro em<br />

1763, por via da exploração aurífera e da consequente mudança para o Centro-Sul da<br />

actividade económica do <strong>Brasil</strong>, a região da Baía, com a cidade de S. Salvador à<br />

cabeça, continuava a ser um centro de fundamental importância para a agricultura<br />

mercantil colonial.<br />

O porto de S. Salvador da Baía encontrava-se situado num ponto fulcral em que<br />

a criação de gado, a produção de peles, açúcar e especialmente tabaco criavam<br />

excelentes oportunidades de exportação, proporcionando uma articulação entre alguns<br />

dos principais fluxos de comércio que animavam o império. Além disso, a grande<br />

necessidade de mão-de-obra tornava o seu porto num dos principais centros do tráfico<br />

negreiro, com a vantagem da sua relativa proximidade da costa africana e, assim, os<br />

traficantes baia<strong>no</strong>s controlavam um activo comércio directo com a costa da Guiné. E<br />

mais, como escala praticamente obrigatória na carreira da Índia, a Baía estava ligada ao<br />

comércio oriental, sendo o tabaco o principal produto exportado e importando pa<strong>no</strong>s de<br />

algodão da Índia, usados para consumo local e, também, como moeda de troca na<br />

aquisição de escravos.<br />

Acontece que, quando da chegada da <strong>Corte</strong> ao <strong>Brasil</strong>, havia já algum tempo que<br />

o comércio daquele Estado sofria as consequências do processo conjuntural europeu,<br />

<strong>no</strong>meadamente devido ao embargo posto à navegação do País e, posteriormente, pela<br />

ocupação <strong>das</strong> tropas de Ju<strong>no</strong>t. A aliança com a Inglaterra constituía o motivo para a<br />

França obstruir as <strong>no</strong>ssas relações comerciais com o <strong>Brasil</strong>, resultando de tal facto uma<br />

quebra do movimento portuário não só da Baia, mas também de Pernambuco, do Rio<br />

de Janeiro, do Maranhão e de outros portos de mar, com particular incidência em S.<br />

Salvador, onde se vivia um situação aflitiva.<br />

Com Portugal e o porto de Lisboa ocupados pelos franceses, o comércio do<br />

Rei<strong>no</strong> estava virtualmente paralisado e, assim, não era de estranhar que o Príncipe<br />

Regente ao chegar à Baía encontrasse o porto repleto de barcos à espera de largar o<br />

<strong>Brasil</strong>, transportando mercadorias para a Europa. Os armazéns abarrotavam de produtos<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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vindos do interior, muitos dos quais corriam o risco da deterioração; criadores de gado,<br />

senhores de engenho, produtores de cana e de tabaco, negociantes, tendeiros viviam<br />

numa situação preocupante que não podia deixar de reflectir-se na população.<br />

Acrescente-se, ainda, a carência, nas lojas e mercados, de artigos manufacturados e<br />

alguns géneros de origem europeia fornecidos pelo comércio português.<br />

Logo, após a chegada, D. João foi alertado para o que se estava a passar,<br />

podendo depreender-se, até, que nem sequer necessitava de ser informado; ele próprio<br />

o terá verificado, ou confirmado, porquanto, era sabedor que, por ordem do Visconde<br />

de Anadia, Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, fora proibida, em 7 de Outubro<br />

de 1807, a saída de navios dos portos brasileiros. De qualquer modo, este “statu quo”<br />

foi apresentado a D. João a quem foram pedi<strong>das</strong> urgentes providências e que, de<br />

imediato, foram atendi<strong>das</strong>. De facto, decidiu com surpreendente rapidez.<br />

Uma semana depois da sua chegada, a 28 de Janeiro, sem a presença dos seus<br />

principais ministros e conselheiros, e depois de mais uma cerimónia do «Te Deum», D.<br />

João outorgava ao <strong>Brasil</strong> uma verdadeira carta de alforria: a carta de abertura dos<br />

portos brasileiros às nações amigas.<br />

Um documento da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, redigido por Tomás<br />

António Vila Nova Portugal, esclarece o modo pelo qual foram abertos os portos<br />

brasileiros aos navios <strong>das</strong> nações amigas.<br />

Diz o referido documento que chegando o Príncipe Regente à Baía, era Ministro<br />

de Estado D. Fernando José de Portugal e Castro, depois Conde e Marquês de Aguiar,<br />

ex – Governador daquela capitania e ex – Vice-Rei do <strong>Brasil</strong>, o qual foi convencido por<br />

José da Silva Lisboa, deputado e secretário da Mesa da Inspecção da cidade do<br />

Salvador, <strong>no</strong> sentido de ser obtido de D. João a abertura dos portos do <strong>Brasil</strong> aos navios<br />

estrangeiros. Para isso, o Conde da Ponte, Governador da Baía, perante o Príncipe<br />

Regente, mostraria os inconvenientes da suspensão do comércio marítimo, em<br />

consequência da invasão de Portugal pelos franceses. Assim foi feito e, em resposta ao<br />

memorial recebido, ao seu signatário dirigiu D. João a seguinte carta régia:<br />

«Conde da Ponte, do meu Conselho, Governador e Capitão – General da Baía,<br />

Amigo. Eu, o Príncipe Regente, vos envio muito saudar, como àquele que amo.<br />

Atendendo à representação que fizestes subir à minha Real presença, sobre se<br />

achar interrompido o comércio desta Capitania, com grave prejuízo dos meus vassalos<br />

e da minha Real Fazenda, em razão <strong>das</strong> críticas e públicas circunstâncias da Europa;<br />

Carlos Jaca “<strong>2º</strong> <strong>Centenário</strong> <strong>das</strong> <strong>Invasões</strong> <strong>Francesas</strong>”- A <strong>Corte</strong> <strong>Portuguesa</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Parte A<br />

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e querendo dar sobre este importante objecto alguma providência pronta e capaz de<br />

melhorar o progresso de tais da<strong>no</strong>s: Sou servido ordenar interina e provisoriamente,<br />

enquanto não consolido um sistema geral, que efectivamente regule semelhantes<br />

matérias, o seguinte: Primo: que sejam admissíveis nas Alfândegas do <strong>Brasil</strong> todos e<br />

quaisquer géneros, fazen<strong>das</strong> e mercadorias, transporta<strong>das</strong> ou em navios estrangeiros<br />

<strong>das</strong> potências que se conservam em paz e harmonia com a minha Real Coroa, ou em<br />

navios dos meus vassalos, pagando por entrada 24 por cento; a saber, 20 de direitos<br />

grossos, e 4 do donativo já estabelecido, regulando-se a cobrança destes direitos pelas<br />

pautas ou aforamentos, por que até o presente se regulam cada uma <strong>das</strong> ditas<br />

Alfândegas, ficando os vinhos, águas ardentes e azeites doces, que se de<strong>no</strong>minam<br />

molhados, pagando o dobro dos direitos que até agora nelas satisfaziam. Secundo:<br />

Que não só os meus vassalos, mas também os sobreditos estrangeiros, possam exportar<br />

para os portos que bem lhes parecer, a benefício do comércio e agricultura, que tanto<br />

desejo promover, todos e quaisquer géneros e produções coloniais, à excepção do paubrasil<br />

ou outros <strong>no</strong>toriamente estancados, pagando por saída os mesmos direitos já<br />

estabelecidos nas respectivas Capitanias, ficando entretanto como em suspenso e sem<br />

vigor to<strong>das</strong> as leis, cartas – régias ou outras ordens, que até aqui proibiam neste<br />

Estado do <strong>Brasil</strong> o recíproco comércio e navegação entre os meus vassalos e<br />

estrangeiros. O que tudo assim fareis executar com o zelo e actividade que de vós<br />

espero.<br />

Escrita na Baía, aos 28 de Janeiro de 1808<br />

«Príncipe»<br />

Mais do que benevolência para com os seus anfitriões, o Príncipe Regente<br />

considerando o bom fundamento do parecer não hesitou em deferir a solicitação, o que<br />

correspondia ao interesse do comércio baia<strong>no</strong>, além de que a abertura dos portos era<br />

uma medida inevitável. A decisão, certamente, não deixou de ser condicionada pelas<br />

circunstâncias de isolamento em que se encontrava o <strong>Brasil</strong>, mas tinha muito a ver com<br />

a dívida que D. João tinha para com a Inglaterra, que era o preço a pagar pela protecção<br />

contra a França, devidamente acordado na convenção de Londres em Outubro de 1807,<br />

pelo <strong>no</strong>sso embaixador D. Domingos de Sousa Coutinho. Acrescente-se, ainda, que na<br />

véspera da partida, em Lisboa, Lord Strangford reunindo com Araújo de Azevedo<br />

preveniu que o Almirante Sidney Smith só levantaria o bloqueio naval e permitiria a<br />

saída da esquadra portuguesa mediante as seguintes condições: «A abertura dos portos<br />

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do <strong>Brasil</strong>, a concorrência livre e reservada para a Inglaterra, marcando-lhe logo uma<br />

tarifa de direitos insignificantes; e até que um dos portos do <strong>Brasil</strong> (o de Santa<br />

Catarina) fosse entregue à Inglaterra». Apesar da oposição do <strong>no</strong>sso ministro, o facto é<br />

que com excepção do porto exclusivo de Santa Catarina, to<strong>das</strong> as exigências tiveram<br />

cumprimento após a chegada ao <strong>Brasil</strong>.<br />

A carta régia de abertura dos portos «a to<strong>das</strong> as nações amigas» significava,<br />

nesse momento, a Inglaterra, pois era a única potência marítima que não era aliada de<br />

Napoleão. Efectivamente, a abertura ao comércio internacional queria dizer que, em<br />

relação à Europa, os portos estavam somente abertos aos britânicos e a ocasião era bem<br />

propícia, porquanto o comércio abria-se, precisamente, numa conjuntura em que a<br />

maioria dos mercados habituais estavam fechados para a Grã – Bretanha.<br />

Sublinhe-se que, e já se referiu, de Portugal, ocupado pela França, não saíam as<br />

mercadorias necessárias, e fundamentais, para a vida <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> onde, praticamente tudo<br />

era importado, por via do mo<strong>no</strong>pólio que vigorava desde o início do século XVI.<br />

Ora, é obvio que a Inglaterra beneficiando <strong>das</strong> vantagens da aliança, mas, e<br />

principalmente, <strong>das</strong> condições impostas e que tivemos de suportar, iria tirar partido de<br />

tal situação. Assim, logo de início, começaram a chegar ao <strong>Brasil</strong>, fazen<strong>das</strong> de algodão,<br />

lã e seda; peças de vestuário, alimentos, móveis, vidros, cristais, louças, porcelanas,<br />

panelas de ferro, cutelaria, quinquilharia, carruagens…<br />

Acontece que, os comerciantes ingleses, começaram a exportar uma quantidade<br />

e<strong>no</strong>rmíssima de mercadorias, muito para além da capacidade de absorção do mercado<br />

brasileiro, o qual, «tomado por numerosa população escrava – que em princípio não<br />

consumia –, e pelas elites, a recém – chegada e a da terra, mal-e-mal dava conta do<br />

seu cotidia<strong>no</strong>». Conquanto enviassem produtos apropriados para o mercado brasileiro e<br />

alguns géneros de boa qualidade mas pouco adequados às necessidades e hábitos de<br />

consumo na colónia, outros eram absolutamente impróprios, como a exportação de<br />

patins de gelo, espartilhos para senhoras (de uso desconhecido naquelas paragens),<br />

bacias de cobre para aquecimento de casas, grossos cobertores de lã, etc. Com um<br />

mercado restrito e pouco elástico, os referidos géneros tiveram que ser adaptados a<br />

outras situações e escoados em hasta pública ou em ven<strong>das</strong> facilita<strong>das</strong>.<br />

De qualquer modo, nada impediu que o comércio inglês conseguisse forte<br />

implantação e durante largo tempo controlasse em absoluto o mercado brasileiro,<br />

<strong>no</strong>meadamente depois do Tratado de Comércio e Navegação, assinado em 1810, e que<br />

privilegiou a taxação tarifária dos produtos ingleses exportados para o <strong>Brasil</strong>, tornando-<br />

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os mais competitivos que os dos restantes países, inclusive em relação a Portugal.<br />

A decisão do Príncipe Regente ao abrir os portos às “nações amigas”, leia-se<br />

Inglaterra, não deixou de ter a oposição dos agentes do comércio colonial português<br />

que, vendo o fim de uma era de proteccionismo marítimo, foram obrigados a abdicar de<br />

um privilégio, um mo<strong>no</strong>pólio, que nasceu, pode dizer-se, com a viagem de Cabral em<br />

1500. Ao fim e ao cabo, o <strong>Brasil</strong> do início de Oitocentos foi libertado de um<br />

administrador colonial (Portugal), para ficar dependente de outro (Inglaterra).<br />

Publicado o famoso decreto histórico, D. João ainda se demorou na Baía cerca<br />

de um mês. Sabendo da sua partida para o Rio, todos os baia<strong>no</strong>s tentaram, em vão, que<br />

permanecesse entre eles, considerando o bem que representava para a cidade a fixação<br />

ali da <strong>Corte</strong> portuguesa, porquanto, ainda tivera tempo de promulgar uma série de<br />

medi<strong>das</strong> que muito valorizaram a terra que o recebeu.<br />

Representantes da Câmara Municipal, em <strong>no</strong>me da população, tentaram<br />

demovê-lo da <strong>no</strong>va viagem, prometendo angariar fundos para a construção de um<br />

luxuoso palácio e sustentar as despesas da <strong>Corte</strong> na cidade. D. João, naturalmente,<br />

recusou a oferta, não só porque S. Salvador era mais vulnerável a um eventual ataque<br />

francês, mas também pelo facto de ter anunciado, solenemente, quando da sua<br />

despedida do Rei<strong>no</strong>, <strong>no</strong> decreto de 27 de Novembro, a intenção de vir a estabelecer-se<br />

<strong>no</strong> Rio de Janeiro e que, isso mesmo, havia sido comunicado aos gover<strong>no</strong>s estrangeiros.<br />

Assim, a 26 de Fevereiro, dia da partida, uma multidão juntava-se para dizer adeus à<br />

Família Real.<br />

Nota: os elementos bibliográficos relativos a esta 1ª Parte (A e B) serão incluídos numa 2ª fase<br />

deste tema, respeitante ao período de permanência da <strong>Corte</strong> <strong>no</strong> Rio de Janeiro, a publicar oportunamente.<br />

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