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Edição 35 - Memorial da América Latina

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GOVERNADOR<br />

JOSÉ SERRA<br />

VICE-GOVERNADOR<br />

ALBERTO GOLDMAN<br />

SECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS<br />

JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO<br />

FUNDAÇÃO MEMORIAL<br />

DA AMÉRICA LATINA<br />

CONSELHO CURADOR<br />

PRESIDENTE<br />

JOSÉ HENRIQUE REIS LOBO<br />

SECRETÁRIO DE CULTURA<br />

JOÃO SAYAD<br />

SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO<br />

GERALDO ALCKMIN<br />

REITORA DA USP<br />

SUELY VILELA<br />

REITOR DA UNICAMP<br />

FERNANDO FERREIRA COSTA<br />

REITOR DA UNESP<br />

HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD<br />

PRESIDENTE DA FAPESP<br />

CELSO LAFER<br />

ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO<br />

DIRETORIA EXECUTIVA<br />

DIRETOR PRESIDENTE<br />

FERNANDO LEÇA<br />

DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO<br />

DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA<br />

ADOLPHO JOSÉ MELFI<br />

DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS<br />

FERNANDO CALVOZO<br />

DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO<br />

SÉRGIO JACOMINI<br />

CHEFE DE GABINETE<br />

JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO<br />

DIRETOR PRESIDENTE<br />

HUBERT ALQUÉRES<br />

DIRETOR INDUSTRIAL<br />

TEIJI TOMIOKA<br />

DIRETOR FINANCEIRO<br />

CLODOALDO PELISSIONI<br />

DIRETOR DE GESTÃO DE NEGÓCIOS<br />

LUCIA MARIA DAL MEDICO<br />

Número 34<br />

ISSN 0103-6777<br />

REVISTA NOSSA AMÉRICA<br />

DIRETOR<br />

FERNANDO LEÇA<br />

EDITORA EXECUTIVA / DIREÇÃO DE ARTE<br />

LEONOR AMARANTE<br />

COLABORADORA DE EDIÇÃO<br />

ANA CANDIDA VESPUCCI<br />

TRADUÇÃO<br />

CLAUDIA SCHILLING<br />

PRODUÇÃO<br />

HENRIQUE DE ARAUJO<br />

DIAGRAMAÇÃO E ARTE - ESTAGIÁRIOS<br />

FELIPE DE OLIVEIRA<br />

DOUGLAS MALUTA<br />

LUANA DE ALMEIDA<br />

COLABORARAM NESTE NÚMERO<br />

Benedito Braga, Carlos Eduardo Lins <strong>da</strong> Silva,<br />

Celso S. Machado, Eduardo Milan, Florencia Battiti,<br />

Hernan Chaimovich, Ives Gandra Martins, Maria<br />

Ligia Prado, Nelson Pereira dos Santos, Orlando<br />

Azevedo, Reynaldo Damazio.<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso<br />

Lafer, Davi Arrigucci Jr, Eduardo Galeano, Luis<br />

Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis<br />

Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar<br />

Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto<br />

Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa,<br />

Ulpiano Bezerra de Menezes.<br />

NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral<br />

<strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Re<strong>da</strong>ção: Aveni<strong>da</strong> Auro Soares de Moura Andrade,<br />

664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil.<br />

Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.<br />

Internet: http://www.memorial.sp.gov.br<br />

Email: publicacoes@fmal.com.br.<br />

Os textos são de inteira responsabli<strong>da</strong>de<br />

dos autores, não refletindo o pensamento<br />

<strong>da</strong> revista. É expressamente proibi<strong>da</strong> a<br />

reprodução, por qualquer meio, do conteúdo<br />

<strong>da</strong> revista.<br />

CAPA<br />

Foto: Orlando Azevedo<br />

EDITORIAL<br />

04<br />

POLÍTICA<br />

06<br />

DEMOCRACIA<br />

13<br />

ECOLOGIA<br />

18<br />

PATRIMÔNIO<br />

24<br />

LITERATURA<br />

31<br />

HOMENAGEM<br />

38<br />

OLHAR<br />

42<br />

CÁTEDRA<br />

50<br />

ANÁLISE<br />

54<br />

CINEMA<br />

58<br />

AGENDA<br />

64<br />

LIVROS<br />

65<br />

POESIA<br />

66<br />

3<br />

FERNANDO LEÇA<br />

CELSO S. MACHADO<br />

IVES GANDRA<br />

BENEDITO BRAGA<br />

FLORENCIA BATTITI<br />

MARIA LIGIA PRADO<br />

LEONOR AMARANTE<br />

ORLANDO AZEVEDO<br />

HERNAN CHAIMOVICH<br />

CARLOS E. LINS DA SILVA<br />

NELSON P. DOS SANTOS<br />

REYNALDO DAMAZIO<br />

EDUARDO MILÁN


EDITORIAL<br />

Privatizar ou estatizar? A dicotomia<br />

entre regimes capitalistas e<br />

socialistas ficou menos clara com o<br />

término <strong>da</strong> Guerra Fria, como observa<br />

Celso de Souza Machado, cientista<br />

político <strong>da</strong> PUC de São Paulo, em uma<br />

<strong>da</strong>s reflexões que integram esta edição,<br />

apontando exemplos de governos<br />

pró-capitalismo em países socialistas e<br />

governos de esquer<strong>da</strong> em países capitalistas.<br />

A situação merece amplo debate<br />

e Machado analisa vantagens e desvantagens<br />

de ca<strong>da</strong> modelo.<br />

Outro tema importante para<br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> é o teor de suas Constituições.<br />

O jurista Ives Gandra Martins<br />

faz um contraponto entre algumas<br />

<strong>da</strong>s que vigoram em países <strong>da</strong><br />

região, para concluir que a brasileira<br />

se mostra a mais ajusta<strong>da</strong> aos princípios<br />

democráticos, simplesmente por<br />

conferir equilíbrio de poderes a Executivo,<br />

Legislativo e Judiciário.<br />

Assunto também atual, e que vem<br />

ensejando oportunas abor<strong>da</strong>gens, é o<br />

4<br />

compartilhamento de bacias hidrográficas,<br />

muito comum em todo o mundo,<br />

mas que exige racionali<strong>da</strong>de e planejamento.<br />

Benedito Braga, diretor <strong>da</strong> Agência<br />

Nacional de Águas - ANA, defende<br />

a cooperação entre países e exemplifica<br />

com a Hidroelétrica de Itaipu, a maior<br />

do mundo em geração de energia.<br />

Uma figura mitológica, Robinson<br />

Crusoe, cria<strong>da</strong> pelo escritor Daniel Defoe<br />

e inspira<strong>da</strong> em um personagem real,<br />

é o tema de um exame acurado de Maria<br />

Lígia Prado, historiadora <strong>da</strong> USP. A aventura<br />

desse náufrago, lança<strong>da</strong> em 1719, esconde<br />

algumas peculiari<strong>da</strong>des que as investigações<br />

<strong>da</strong> pesquisadora desven<strong>da</strong>m<br />

para o leitor. Outro nome lendário, este<br />

no meio cinematográfico <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong>de,<br />

é Nelson Pereira dos Santos, que participou<br />

do Festival Latino-Americano de<br />

Cinema realizado no <strong>Memorial</strong>. Na ocasião,<br />

ele falou de sua vi<strong>da</strong> e obra e, evidentemente,<br />

de cinema em geral. Parte<br />

de seu depoimento está agora publicado<br />

nesta edição <strong>da</strong> Nossa <strong>América</strong>.<br />

FOTO: reprOduçãO


Rubem Grilo é o homenageado<br />

desta edição, ain<strong>da</strong> dentro <strong>da</strong>s comemorações<br />

dos 20 anos do <strong>Memorial</strong>,<br />

uma vez que uma personagem sua é<br />

o ícone de uma <strong>da</strong>s coleções de publicações<br />

<strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção. Mais um artista<br />

ganha as páginas de Nossa <strong>América</strong>: é o<br />

fotógrafo curitibano Orlando Azevedo,<br />

que percorreu o país para registrar suas<br />

múltiplas faces. Dele consta um ensaio<br />

sobre personagens <strong>da</strong> região Sul do País<br />

que, longe <strong>da</strong>s metrópoles, conservam<br />

hábitos e costumes trazidos de muito<br />

longe, como Ucrânia e Polônia.<br />

Da área acadêmica, vale ressaltar<br />

a Cátedra <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />

que chega a seu quarto módulo tratando<br />

do papel <strong>da</strong> Ciência e <strong>da</strong> Tecnologia no<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Seu<br />

catedrático, o professor Hernan Chaimovich,<br />

discorre sobre a importância<br />

do tema, já que conhecimento, no seu<br />

entender, será fun<strong>da</strong>mental na superação<br />

<strong>da</strong> crise econômica gera<strong>da</strong> em 2008.<br />

Mais uma questão que deman<strong>da</strong> debates<br />

é a gestão de Barack Obama e sua política<br />

externa. O jornalista Eduardo Lins<br />

<strong>da</strong> Silva comenta como está o governo<br />

do presidente americano aos olhos de<br />

seu povo e do mundo, depois de seis<br />

meses e muitas expectativas quanto a<br />

seu desempenho.<br />

Na seção destina<strong>da</strong> aos livros, uma<br />

resenha sobre O Crime do Restaurante Chinês,<br />

em que o historiador Boris Fausto<br />

monta um relato surpreendente de um<br />

fato real. Em Agen<strong>da</strong>, como sempre um<br />

resumo dos melhores momentos <strong>da</strong> programação<br />

do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />

que continua repleta de shows, exposições,<br />

palestras e cursos de quali<strong>da</strong>de.<br />

E para encerrar, um poema do uruguaio<br />

Eduardo Milán, um dos grandes nomes<br />

<strong>da</strong> literatura latino-americana.<br />

Ótima leitura!<br />

Fernando Leça<br />

Presidente do <strong>Memorial</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

5


6<br />

POLÍTICA<br />

x<br />

ESTATIZAR<br />

pRIvATIZAR<br />

AS VANTAGENS<br />

E DESVANTAGENS<br />

CELSO DE S. MACHADO<br />

O<br />

término <strong>da</strong> Guerra Fria<br />

significou não somente a<br />

possibili<strong>da</strong>de crescente de<br />

governos de direita (pró-capitalismo)<br />

dentro dos países<br />

socialistas; significou também<br />

o contrário: a possibili<strong>da</strong>de crescente de governos<br />

de esquer<strong>da</strong> (pró-socialismo) dentro dos países<br />

capitalistas, uma possibili<strong>da</strong>de que antes não ocorria<br />

ou só ocorria excepcionalmente. E a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

tem sido rica em experiências de partidos ou frentes<br />

políticas de esquer<strong>da</strong> vencendo eleições e exercendo<br />

o Poder Executivo: já em meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 80<br />

em governos municipais (como em Lima, no Peru,<br />

e em Diadema e Fortaleza, no Brasil) e depois também<br />

em governos estaduais – e governos federais.


inTervençãO sObre FOTO<br />

?<br />

7


Nossa <strong>América</strong> já em 2004 era<br />

considera<strong>da</strong> a “região com a maior<br />

concentração de governos de esquer<strong>da</strong><br />

do mundo”. Ditaduras sangrentas não<br />

conseguiram impedir que a esquer<strong>da</strong><br />

mundial conquistasse o direito não só<br />

de existir legalmente, mas também de<br />

se eleger e exercer efetivamente o Poder<br />

Executivo. Mesmo nos países comunistas<br />

ou ex-comunistas que se democratizaram,<br />

abriu-se a possibili<strong>da</strong>de de governos<br />

de esquer<strong>da</strong> comprometidos com a<br />

correção de eventuais deformações ou<br />

retrocessos do projeto socialista.<br />

Um partido ou frente política de<br />

esquer<strong>da</strong> no comando de um governo<br />

dentro <strong>da</strong> ordem constitucional capitalista<br />

e sob um regime democrático<br />

está em situação radicalmente nova – e<br />

não prevista pelos teóricos <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong><br />

(Marx, Lênin, Gramsci, etc.): como<br />

combater os problemas econômicos<br />

(recessão, crise econômica, crise energética,<br />

falta de investimentos, inflação,<br />

falta de matérias-primas, caos nos<br />

transportes, etc.) e como combater os<br />

problemas sociais (desemprego, previdência,<br />

fome, falta de água, de hospitais,<br />

de habitações, de escolas, etc.)<br />

dentro <strong>da</strong>s regras do jogo de uma socie<strong>da</strong>de<br />

capitalista democrática ? Não<br />

em condições pré-revolucionárias ou<br />

pós-revolucionárias, mas sim tendo de<br />

respeitar (estado de direito) a legislação<br />

em vigor – inclusive para as eventuais<br />

mu<strong>da</strong>nças nessa legislação. E se não<br />

combater os problemas econômicos<br />

e sociais com resultados convincentes<br />

para o eleitorado, poderá ser derrotado<br />

nas próximas eleições.<br />

Assim, por quase um século, a<br />

economia de mercado é que foi considera<strong>da</strong><br />

responsável pela desorganização<br />

<strong>da</strong> economia, pela ineficiência<br />

do sistema econômico, pelos problemas<br />

econômicos e sociais, e pela explosão<br />

periódica de crises econômicas<br />

(que podiam desembocar em guerras,<br />

8<br />

inclusive mundiais). A forte presença<br />

do Estado na economia era de modo<br />

geral considera<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mental para<br />

corrigir e evitar essas ineficiências.<br />

Políticas privatizantes ou que pretendessem<br />

diminuir a presença do Estado<br />

na economia eram então considera<strong>da</strong>s<br />

como historicamente supera<strong>da</strong>s.<br />

A situação se inverteu na déca<strong>da</strong><br />

de 80 e, principalmente, na déca<strong>da</strong> de<br />

90: a presença do Estado na economia<br />

é que passou a ser considera<strong>da</strong> responsável<br />

pela ineficiência do sistema<br />

econômico, pelas crises e pelos problemas<br />

econômicos e sociais. As políticas<br />

estatizantes é que passaram a ser<br />

considera<strong>da</strong>s como coisa do passado.<br />

Em quase todos os países, os problemas<br />

econômicos e sociais passaram<br />

a ser combatidos por meio <strong>da</strong> diminuição<br />

<strong>da</strong> intervenção do Estado na<br />

economia. E não somente no sentido<br />

de os governos reduzirem fortemente<br />

sua ação reguladora e indutora sobre<br />

a economia, mas principalmente, no<br />

sentido de os governos promoverem<br />

a privatização de suas empresas. A privatização,<br />

ao gerar a competição entre<br />

os empresários privados, ao promover<br />

uma economia de mercado, ain<strong>da</strong> que<br />

inicialmente agravasse alguns problemas,<br />

acabaria por desenvolver a eficiência do<br />

sistema como um todo – e, dessa maneira,<br />

iriam sendo combatidos os problemas<br />

econômicos e sociais e evita<strong>da</strong>s<br />

as crises.<br />

Com a multiplicação de crises,<br />

inicialmente na periferia do sistema internacional<br />

(como as crises do México<br />

em l994 e <strong>da</strong> Coréia do Sul em l997) e,<br />

em 2008 e 2009, no próprio epicentro<br />

<strong>da</strong> economia mundial (EUA, Europa e<br />

Japão), a situação começa a se inverter<br />

novamente. Como tem ocorrido em<br />

to<strong>da</strong> a história contemporânea, governos<br />

de diferentes orientações ideológicas<br />

– espremidos entre o agravamento<br />

dos problemas econômicos e sociais, e a


FOTO: reprOduçãO<br />

pressão do eleitorado ou do povo – são<br />

obrigados a tomar uma atitude – o que<br />

significa aumentar sua intervenção na<br />

economia. Já estão ocorrendo estatizações<br />

ou reestatizaçãoes tanto nos países<br />

pobres quanto nos países ricos, inclusive<br />

nos Estados Unidos e na Inglaterra.<br />

Não obstante os vaivéns <strong>da</strong>s<br />

políticas econômicas e sociais, houve<br />

um processo de cristalização de<br />

dois métodos básicos – embora com<br />

nuanças – de os governos combaterem<br />

os problemas <strong>da</strong> economia e os<br />

problemas <strong>da</strong> população. Diante, por<br />

exemplo, de um problema econômico<br />

como a recessão ou um problema<br />

social como o desemprego, ou<br />

eles próprios começam a produzir e,<br />

assim, a gerar produção e empregos<br />

em suas próprias empresas, ou se limitam<br />

a induzir a economia (isenções<br />

de impostos, subsídios, empréstimos,<br />

etc.) e prestar assistência à população<br />

(auxílio-desemprego, etc.). Diante do<br />

problema dos transportes coletivos,<br />

ou o governo desenvolve empresas<br />

próprias para esse fim (ônibus, metrô,<br />

trem) ou privatiza suas empresas<br />

e se limita a monitorar as empresas<br />

priva<strong>da</strong>s de transporte coletivo e a<br />

subsidiar o preço <strong>da</strong>s passagens para<br />

a população carente. Todo problema<br />

econômico e social pode – levando<br />

em conta obviamente as particulari<strong>da</strong>des<br />

de ca<strong>da</strong> problema – ser combatido<br />

pelo método estatizante ou pelo método<br />

privatizante. Em outras palavras,<br />

ou os governos combatem os problemas<br />

econômicos e sociais entrando<br />

no jogo, ou saindo dele. Embora seja<br />

difícil – diante <strong>da</strong>s limitações de ca<strong>da</strong><br />

governo e <strong>da</strong> própria complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> democrática – um governo adotar<br />

um dos dois métodos para todos<br />

os problemas econômicos e sociais, é<br />

igualmente difícil pretender, no con-<br />

9


junto <strong>da</strong> sua política, ficar em posição<br />

intermediária: é mais ou menos como<br />

pretender ficar numa posição intermediária<br />

entre monarquia e república,<br />

entre feu<strong>da</strong>lismo e capitalismo.<br />

Numa análise comparativa, qual<br />

dos dois métodos – o estatizante e o<br />

privatizante – deu mais certo ?<br />

Como vimos acima, a resposta a<br />

essa questão tem seguido mais ou menos<br />

os ciclos de predomínio de um e<br />

outro método. Numa maré de predomínio<br />

do método estatizante, predominam<br />

avaliações no sentido de que o<br />

crescimento do parque empresarial dos<br />

governos tem <strong>da</strong>do mais estabili<strong>da</strong>de,<br />

desenvolvimento e eficiência às economias<br />

(embora divirjam as correntes<br />

quanto ao tamanho e à permanência<br />

desse parque empresarial). Numa maré<br />

de predomínio do método privatizante,<br />

predominam avaliações inversas: no<br />

sentido de que a diminuição do parque<br />

empresarial dos governos é que tem<br />

<strong>da</strong>do mais estabili<strong>da</strong>de, desenvolvimento<br />

e eficiência às economias. Contudo,<br />

um debate objetivo, rigoroso e metodologicamente<br />

orientado sobre os prós<br />

e os contras, as vantagens e as desvantagens,<br />

as virtudes e os defeitos de ca<strong>da</strong><br />

tipo de política (e, no limite, de ca<strong>da</strong><br />

tipo de economia: a socialista e a capitalista)<br />

– parece que nunca chegou a ser<br />

realizado: as restrições impostas pela<br />

extrema tensão do período <strong>da</strong> Guerra<br />

Fria e, no período pós-Guerra Fria, a<br />

histeria mundial de políticas privatistas<br />

impediram que esse debate fosse realizado<br />

– ou comprometeram a objetivi<strong>da</strong>de<br />

do debate. No entanto, com a<br />

crise do neoliberalismo e a nova on<strong>da</strong><br />

de estatizações e reestatizações, e isso<br />

tudo num cenário de conquista democrática<br />

pós-Guerra Fria, com to<strong>da</strong>s as<br />

correntes podendo disputar e exercer<br />

o Poder Executivo – esse debate terá<br />

agora de ser travado, tanto nas disputas<br />

eleitorais quanto no mundo acadêmico,<br />

10<br />

tanto entre economistas e entre administradores<br />

públicos quanto nos partidos<br />

e nos sindicatos. E será um debate<br />

de extraordinário valor para a educação<br />

ideológica e política do eleitorado de<br />

todos os países.<br />

Por outro lado, quais as dificul<strong>da</strong>des<br />

e quais as facili<strong>da</strong>des para a execução<br />

de ca<strong>da</strong> um dos dois métodos ?<br />

Embora seja mais fácil fazer<br />

um governo privatizante (basta o governo<br />

vender suas empresas e utilizar<br />

o dinheiro – até que o dinheiro acabe...),<br />

é também mais constrangedor<br />

e limitado: o governo mais ou menos<br />

reconhece que não é ele quem vai resolver<br />

os problemas econômicos e sociais,<br />

mas sim a economia priva<strong>da</strong> – o<br />

governo vai apenas regular o jogo <strong>da</strong><br />

economia e prestar socorro à população.<br />

Embora seja mais difícil fazer<br />

um governo estatizante, é também<br />

mais corajoso e arrojado: o governo<br />

começa a ter em suas próprias mãos<br />

um arsenal crescente de ferramentas<br />

(empresas) com as quais terá um poder<br />

crescente para imprimir uma linha<br />

à economia e assim equacionar efetivamente<br />

os problemas econômicos e<br />

sociais.Contudo, ao lado <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des,<br />

o Poder Executivo – conforme<br />

ca<strong>da</strong> nível de governo (federal,<br />

estadual e municipal) – dispõe, legalmente,<br />

<strong>da</strong>s facili<strong>da</strong>des de uma série<br />

de instrumentos e prerrogativas que<br />

o setor privado não tem e que capacitam<br />

os governos para a execução do<br />

método estatizante.<br />

No entanto, combater os problemas<br />

econômicos e sociais pelo método<br />

estatizante tem para um governo de direita<br />

(pró-capitalismo) um significado<br />

diferente do que tem para um governo<br />

de esquer<strong>da</strong> (pró-socialismo).<br />

Para um governo de direita –<br />

que defende a supremacia do sistema<br />

empresarial privado na economia -, o<br />

método estatizante tem sempre o ob-


FOTO: reprOduçãO<br />

jetivo de prestar socorro, prestar assistência,<br />

prestar aju<strong>da</strong> a esse sistema.<br />

Como vimos acima, trata-se de socorrer<br />

a população e de socorrer a economia.<br />

Não se trata, portanto, de tornar<br />

as empresas públicas ou estatais<br />

atores-jogadores efetivos na economia,<br />

mas sim de apenas infraestruturar<br />

e subsidiar o jogo. – Daí deverem,<br />

principalmente as empresas estatais<br />

de bens, ser – na ótica de um governo<br />

pró-capitalismo – privatiza<strong>da</strong>s sempre<br />

que as condições o permitirem.<br />

Para um governo de esquer<strong>da</strong>,<br />

o método estatizante tem um outro<br />

significado. Embora haja várias correntes<br />

no interior <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>, to<strong>da</strong>s<br />

concor<strong>da</strong>m ou devem concor<strong>da</strong>r que,<br />

para uma perspectiva de esquer<strong>da</strong>,<br />

não é possível resolver os problemas<br />

econômicos e sociais dentro do sistema<br />

empresarial privado (capitalismo).<br />

Enquanto a lógica desse sistema<br />

– mesmo que modernizado – for<br />

a lógica dominante na economia, só<br />

excepcionalmente, e em geral à custa<br />

de uma brutal exploração sobre outros<br />

países, uma economia conseguirá,<br />

não resolver, mas abafar ou congelar<br />

seus problemas econômicos e sociais.<br />

Assim, para uma posição de esquer<strong>da</strong>,<br />

só um outro tipo de sistema empresarial<br />

– em que as grandes empresas<br />

sejam proprie<strong>da</strong>de de to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de<br />

– conseguirá livrar a humani<strong>da</strong>de<br />

do horror do desemprego, <strong>da</strong>s várias<br />

formas de miséria, <strong>da</strong>s violentas crises<br />

econômicas (e do genocídio que<br />

provocam), <strong>da</strong> anarquia nas economias<br />

internacional e nacionais, <strong>da</strong>s desigual<strong>da</strong>des<br />

sociais, etc. Embora haja<br />

correntes de esquer<strong>da</strong> que se mostrem<br />

vacilantes quanto à centrali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

estatização (uma “esquer<strong>da</strong>-que-temmedo-<strong>da</strong>--estatização”),<br />

a história tem<br />

sinalizado que o modo de apropriação<br />

de to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de sobre o seu<br />

sistema empresarial é a estatização, é<br />

a empresa estatal ou pública: não só<br />

as revoluções vitoriosas de esquer<strong>da</strong><br />

como também o próprio movimento<br />

espontâneo <strong>da</strong> economia capitalista<br />

têm conduzido ao gigantesco avanço<br />

do sistema empresarial estatal. Por outro<br />

lado, o próprio jogo de forças a<br />

que está submetido um governo de esquer<strong>da</strong>,<br />

os compromissos que esse go-<br />

11


verno encarna, sua postura ideológica<br />

e a pressão crescente do eleitorado e<br />

dos problemas econômicos e sociais<br />

tendem a ir evidenciando a alternativa<br />

estatizante como a mais sensata, plausível<br />

e, de certa forma, inevitável.<br />

Dessa forma, um governo de esquer<strong>da</strong><br />

estará sempre colocado na situação<br />

de ter de escolher entre combater os problemas<br />

econômicos e sociais mais como<br />

enfermeiro ou mais como parteiro, mais<br />

como bombeiro (apagando o incêndio no<br />

edifício) ou mais como arquiteto (arquitetando<br />

a construção de um outro edifício),<br />

mais como Robin Hood (tirar dos ricos e<br />

<strong>da</strong>r aos pobres) ou mais como Che Guevara<br />

(construir um outro sistema, em que<br />

não haja ricos nem pobres) – mais como<br />

pronto-socorro ou mais como materni<strong>da</strong>de.<br />

Em outras palavras, combater os problemas<br />

econômicos e sociais aprofun<strong>da</strong>ndo<br />

o distributivismo e a regulação (estratégia<br />

de posição) ou aprofun<strong>da</strong>ndo a estatização<br />

(estratégia de ocupação). Se isso ain<strong>da</strong><br />

não se tornou claro, é porque a esquer<strong>da</strong><br />

começou a exercer o Poder Executivo no<br />

meio de uma pandemia mundial pró-privatização<br />

(neoliberalismo).<br />

Por outro lado, para a classe dos<br />

trabalhadores assalariados (desprovidos<br />

de empresas) – classe a que a esquer<strong>da</strong><br />

pretende representar –, é melhor<br />

trabalhar no setor estatal ou no<br />

setor privado ? Ao trabalhar no setor<br />

público, o trabalhador conquista a estabili<strong>da</strong>de<br />

de emprego (algo impensável<br />

no setor privado) e, como o ingresso é<br />

por concurso público, não há discriminação<br />

por i<strong>da</strong>de, sexo, etc. Mesmo sem<br />

proclamar que statal is beautiful, o trabalhador<br />

sabe ou sente que conquistar<br />

um emprego no setor público equivale<br />

a conquistar alforria.<br />

Se a esquer<strong>da</strong> já conquistou o direito<br />

não só de existir legalmente, mas também<br />

de ocupar e exercer o Poder Executivo,<br />

e a direita não tem mais força para<br />

<strong>da</strong>r um golpe – então a relação de forças<br />

12<br />

mudou radicalmente ! (Ou será que é preciso<br />

tocar o despertador ?) A gravi<strong>da</strong>de<br />

e a profundi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> atual crise econômica<br />

mundial e de outras crises que deverão<br />

ocorrer tendem a colocar, para o eleitorado<br />

de todos os países, a plausibili<strong>da</strong>de do<br />

método privatizante e do método estatizante<br />

em condições de igual<strong>da</strong>de, se não<br />

com superiori<strong>da</strong>de deste último. Contudo,<br />

combater os problemas econômicos e sociais<br />

com políticas estatizantes hoje exige<br />

que se leve em conta to<strong>da</strong> a experiência de<br />

quase um século com esse tipo de política<br />

– levar em conta no sentido de evitar seus<br />

erros e omissões, aproveitar seus acertos<br />

e, assim, extrair as lições de to<strong>da</strong> essa experiência.<br />

A importância de se construir<br />

um Estado ca<strong>da</strong> vez mais eficiente, mais<br />

ético e mais democrático é uma lição com<br />

a qual tanto governos de esquer<strong>da</strong> quanto<br />

governos de direita parecem concor<strong>da</strong>r.<br />

Para os governos de esquer<strong>da</strong>, no entanto,<br />

que defendem a supremacia do sistema<br />

empresarial público ou estatal na economia,<br />

essa construção é quase uma questão<br />

de vi<strong>da</strong> ou morte.<br />

As dificul<strong>da</strong>des de construção desse<br />

Estado ca<strong>da</strong> vez mais eficiente, mais ético<br />

e mais democrático são obviamente muito<br />

grandes. Mas são dificul<strong>da</strong>des normais<br />

no complexo processo de construção de<br />

qualquer alternativa de política econômica.<br />

São mais ou menos como as dificul<strong>da</strong>des<br />

de construção <strong>da</strong> república (na superação<br />

<strong>da</strong> monarquia), ou <strong>da</strong> construção <strong>da</strong><br />

democracia (na superação <strong>da</strong> ditadura).<br />

São dificul<strong>da</strong>des benignas e benéficas.<br />

Por outro lado, ciclos de avanços e<br />

retrocessos também são normais no conhecido<br />

ritmo <strong>da</strong> história: dois passos pra<br />

frente, um passo pra trás.<br />

Celso de Souza Machado é licenciado e bacharel<br />

em Ciências Sociais (USP) e em Filosofia<br />

(USP). Especialização em Ciência Política<br />

(PUC/SP/Bolsista CNPq). Exerce<br />

o cargo de Executivo Público no governo do<br />

Estado de São Paulo.


DEMOCRACIA<br />

Em nOmE dA lEI<br />

E dA ORdEm<br />

CONSTITUIÇÕES<br />

EQUILÍBRIO DE PODERES<br />

IVES GANDRA MARTINS<br />

A<br />

Constituição Brasileira, com 250<br />

artigos de disposições permanentes,<br />

95 de disposições transitórias<br />

e 62 emen<strong>da</strong>s - <strong>da</strong>s quais<br />

56 originárias de processo ordinário<br />

e 6 <strong>da</strong> revisão de 1993<br />

- tem sido considera<strong>da</strong> uma Constituição demasia<strong>da</strong>mente<br />

pormenoriza<strong>da</strong>, com inúmeros artigos<br />

que não mereceriam encontrar-se num texto<br />

supremo - como, por exemplo, o artigo 242 § 2º,<br />

que impõe a permanência do Colégio D. Pedro<br />

II, no Rio de Janeiro, na órbita federal. Apesar de<br />

prenhe de defeitos, seu mérito maior, to<strong>da</strong>via, em<br />

face <strong>da</strong> absoluta liber<strong>da</strong>de que os constituintes tiveram<br />

para a discussão de um modelo de lei fun<strong>da</strong>mental,<br />

foi o de ter criado um sistema em que o<br />

13


equilíbrio de Poderes é inequívoco. Em<br />

nenhum texto anterior (1824, 1831,<br />

1934, 1937, 1946 e 1967, com suas<br />

emen<strong>da</strong>s) tal reali<strong>da</strong>de revelou-se de<br />

maneira tão níti<strong>da</strong> como no de 1998.<br />

Nem mesmo Estados Unidos, pátria<br />

do presidencialismo, segue a teoria <strong>da</strong><br />

tripartição dos poderes de Montesquieu,<br />

- que a própria França não hospe<strong>da</strong> -<br />

com separação tão níti<strong>da</strong> como no Brasil,<br />

na<strong>da</strong> obstante o instituto <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s<br />

provisórias ofertar impressão diversa.<br />

Deve-se tal equilíbrio ao fato<br />

de que to<strong>da</strong> a formatação <strong>da</strong> nossa lei<br />

maior tem sido para um sistema parlamentar<br />

de governo, ideal frustrado nas<br />

discussões finais do texto, em plenário<br />

<strong>da</strong> Constituinte, com o que alguns dos<br />

mecanismos de controle dos poderes,<br />

próprios do parlamentarismo, remanesceram<br />

no texto brasileiro. A própria medi<strong>da</strong><br />

provisória, cujo teor foi, quase por<br />

inteiro, cópia <strong>da</strong> Constituição de um país<br />

parlamentarista (a italiana), demonstra<br />

que a mu<strong>da</strong>nça do “rumo dos ventos”,<br />

no plenário <strong>da</strong> Constituinte, não foi capaz<br />

de alterar o espírito que norteara as<br />

discussões nas Comissões, até então.<br />

Creio que a solução não foi ruim.<br />

Criou-se um Poder Judiciário, como guardião<br />

<strong>da</strong> Constituição (artigo 102), que<br />

tem exercido com plenitude tal função,<br />

evitando distorções exegéticas que poderiam<br />

pôr em risco a democracia no País;<br />

um Poder Legislativo, com poderes reais<br />

de legislar, não poucas vezes tendo rejeitado<br />

medi<strong>da</strong>s provisórias do Executivo; e<br />

um Poder Executivo, organizado dentro<br />

de parâmetros constitucionais, que lhe<br />

permitem adotar as medi<strong>da</strong>s administrativas<br />

necessárias para que o País cresça<br />

e viva plenamente o regime democrático,<br />

sem tentações caudilhescas por parte de<br />

seus presidentes.<br />

Por esta razão, nestes vinte anos,<br />

O Brasil conheceu um impeachment presidencial,<br />

superinflação –não hiperinflação,<br />

que sempre desorganiza as eco-<br />

14<br />

nomias- escân<strong>da</strong>los como dos anões<br />

do congresso e do mensalão, alternância<br />

do poder e jamais, aqui, se falou em<br />

ruptura institucional, numa demonstração<br />

de que as instituições funcionam<br />

bem. Os três Poderes, nos termos do<br />

art. 2º <strong>da</strong> lei suprema, são “independentes<br />

e harmônicos”.<br />

Este equilíbrio inexiste em nossos<br />

vizinhos. A Constituição Venezuelana,<br />

com seus <strong>35</strong>0 artigos e 18 disposições<br />

transitórias, além de uma disposição final,<br />

de rigor, apesar de mencionar cinco<br />

Poderes, hospe<strong>da</strong> um apenas, visto que<br />

o poder judiciário, o ministério público<br />

e o poder legislativo são poderes acólitos<br />

do Executivo e o quinto poder, o<br />

povo, manipulável pelo Executivo.<br />

Assim é que, no seu artigo 236,<br />

admite, pelo inciso 22, que não só pode<br />

o presidente convocar “referenduns”,<br />

como, pelo inciso 21, dissolver a Assembléia<br />

Nacional, sobre ter, pelo inciso 8,<br />

o direito de governar, sem a Assembléia<br />

Nacional, por meio de leis habilitantes.<br />

No Brasil, o plebiscito e o referendo<br />

são convocados pelo congresso<br />

nacional (art. 14 incisos II e III) e o<br />

presidente de República, não tem, entre<br />

suas competências (art. 84), o poder de<br />

dissolver o congresso.<br />

Ao contrário, o presidente <strong>da</strong> república<br />

pode sofrer o impeachment (arts. 85 e<br />

86) do congresso nacional, sendo, neste<br />

particular, uma Constituição em que o Legislativo<br />

tem força para afastar o presidente<br />

<strong>da</strong> República, mas o presidente não tem<br />

forças para dissolver o congresso.<br />

Como se percebe, o modelo venezuelano<br />

é de um poder só, o presidencial,<br />

o que tem levado o caudilho Hugo Chávez<br />

a abusos crescentes, mediante cerceamento<br />

<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de expressão, com<br />

fechamento de emissoras de TV e redes<br />

<strong>da</strong> oposição, convocações de referendos,<br />

que manipula a ponto de não permitir,<br />

nos mesmos lugares em que faz comícios<br />

para defender seus pontos de vista, que a


inTervençãO em FOTO<br />

oposição se utilize <strong>da</strong>queles mesmos espaços<br />

para expor as suas idéias.<br />

O modelo venezuelano de um só<br />

poder, o que vale dizer, de um Executivo<br />

forte e legislativo e judiciário subordinados,<br />

lastreia-se nas lições de um<br />

grupo de professores socialistas <strong>da</strong> Espanha<br />

(CEPES) segundo o qual apenas<br />

dois poderes são democráticos: o povo<br />

e o seu representante no executivo. Por<br />

isto, reduz os outros poderes à função<br />

servil e sugere consultas populares permanentes<br />

- altamente manipuláveis por<br />

quem está no comando - a guisa de <strong>da</strong>r<br />

legitimi<strong>da</strong>de ao único poder efetivo, que<br />

é o do presidente executivo.<br />

O modelo socialista, que Chávez<br />

chama de “bolivariano”, foi seguido também<br />

pelo Equador, na sua Constituição<br />

de 444 artigos, 30 disposições transitórias,<br />

30 de um regime de transição com uma<br />

disposição final. Por ela, pode o presidente<br />

<strong>da</strong> República dissolver a Assembléia<br />

Nacional, se ela atrapalhar o Plano Nacional<br />

de Desenvolvimento do presidente<br />

ou se houver uma grave crise política ou<br />

comoção interna (art. 148), passando o<br />

Presidente <strong>da</strong> República a dirigir sozinho<br />

o país, convocando novas eleições.<br />

Poderá a Assembléia Nacional<br />

(art. 130) destituir o Presidente <strong>da</strong> República,<br />

mas neste caso, também se<br />

dissolverá, convocando-se, no prazo<br />

máximo de sete dias, eleições gerais<br />

presidenciais e legislativas.<br />

Em outras palavras, o presidente<br />

<strong>da</strong> República pode dissolver a Assembléia<br />

Nacional, sem perder o cargo, mas<br />

a Assembléia Nacional, se destituir o presidente,<br />

também estará se destituindo!!!<br />

Não é diferente a Constituição boliviana,<br />

com 411 artigos e dez disposições<br />

transitórias, com uma disposição derrogatória<br />

e outra final. Aqui, o artigo 182 torna<br />

o regime mais perigoso, pois o Tribunal<br />

Superior de Justiça terá seus magistrados<br />

eleitos por sufrágio universal por seis anos.<br />

Vale dizer: o poder judiciário, que é um<br />

Poder Técnico, passa a ter seus integrantes<br />

eleitos pelo povo e sem as garantias mínimas<br />

necessárias para exercer suas funções<br />

com imparciali<strong>da</strong>de!!! E o pior, com man<strong>da</strong>to<br />

de 6 anos, muito embora não possam<br />

ser reeleitos seus juízes.<br />

Normalmente, os poderes políticos,<br />

numa real democracia –e não na<br />

simulação de democracia dos três países<br />

analisados- são o Poder Executivo e o<br />

15


Legislativo. Suas forças se equivalem, não<br />

existindo apenas um poder forte, o Executivo,<br />

e um fraco o Legislativo. O Poder<br />

Judiciário é sempre um poder técnico,<br />

vale dizer, um poder cuja função é a preservação<br />

<strong>da</strong> lei produzi<strong>da</strong> pelo legislativo.<br />

Por esta razão, é que, nas ver<strong>da</strong>deiras democracias,<br />

o povo não participa diretamente<br />

na sua escolha e de seus membros.<br />

Transformar o poder Judiciário em poder<br />

eletivo é tirar-lhe a individuali<strong>da</strong>de e<br />

neutrali<strong>da</strong>de, levar o magistrado a ter que<br />

fazer campanha política para ter o seu<br />

nome sufragado universalmente!<br />

Perde, pois, o país a serie<strong>da</strong>de<br />

que deveria ter a Suprema Corte, nas<br />

suas decisões, para amalgamar os três<br />

poderes num só, em prol de uma força<br />

maior outorga<strong>da</strong> ao Executivo, à semelhança<br />

<strong>da</strong>s Constituições Venezuelana<br />

e Equatoriana (art. 172), com o direito<br />

de ditar decretos supremos e resolu-<br />

16<br />

ções (inciso 8) e convocar sessões extraordinárias<br />

<strong>da</strong> Assembléia Nacional<br />

(inciso 6).<br />

Como se percebe, há um profundo<br />

abismo entre a Constituição Brasileira,<br />

de três Poderes harmônicos e independentes,<br />

e as Constituições dos três países<br />

mencionados, em que, de rigor, apenas<br />

um poder existe (o Executivo), os demais<br />

são acólitos. O chamado “poder popular”,<br />

permanentemente convocado, é de<br />

fácil manipulação pelo presidente, visto<br />

que, nas consultas populares, jamais poderia<br />

o povo examinar em profundi<strong>da</strong>de<br />

a complexi<strong>da</strong>de legislativa <strong>da</strong> consulta,<br />

como, por exemplo, discutir uma Constituição<br />

de algumas centenas de artigos!!!<br />

O modelo espanhol adotado – e<br />

de níti<strong>da</strong> conformação socialista- objetiva<br />

apenas legitimar, por consultas<br />

manipuláveis do povo, o regime ditatorial,<br />

que parece começar a implan-


tar-se na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, com sucessivas<br />

buscas de perpetuação no poder<br />

por parte dos dirigentes destes países,<br />

com reeleições ilimita<strong>da</strong>s.<br />

O próprio presidente Ortega, <strong>da</strong><br />

Nicarágua, pretende o direito à reeleição,<br />

em consulta popular que está buscando<br />

concretizar.<br />

E a influência dos países que afagam<br />

aspirantes à perpetui<strong>da</strong>de no poder<br />

parece ter contaminado a OEA, pois,<br />

no episódio de Honduras, de rigor, a<br />

expressão “golpista” só poderia ser aplica<strong>da</strong><br />

ao presidente deposto.<br />

Com efeito, o artigo 239 <strong>da</strong> Constituição<br />

hondurenha permite o afastamento<br />

do presidente, se descumprir a lei,<br />

a ordem e desrespeitar os poderes constituídos.<br />

Honduras não tem o instituto do<br />

impeachment que o Brasil consagrou, nos<br />

artigos 85 e 86 <strong>da</strong> lei suprema.<br />

Ora, o presidente Zelaya pretendeu<br />

desrespeitar a Constituição hondurenha,<br />

respondendo às advertências do<br />

Poder Legislativo e do Poder Judiciário<br />

no sentido de que não respeitaria a<br />

“cláusula pétrea” <strong>da</strong> lei suprema do país<br />

- que não permite reeleições - e que faria<br />

um plebiscito para conseguir a aprovação<br />

de seu intento.<br />

No momento em que desobedeceu<br />

a decisão do Poder Judiciário, que declarou<br />

inconstitucional a consulta popular, à<br />

evidência, o desrespeito à lei e à ordem se<br />

caracterizaram, e seu afastamento se deu,<br />

nos termos <strong>da</strong> Constituição.<br />

É interessante que dispositivo<br />

semelhante temos na Constituição<br />

brasileira, estando o artigo 142 assim<br />

redigido: “Art. 142. As Forças Arma<strong>da</strong>s,<br />

constituí<strong>da</strong>s pela Marinha, pelo<br />

Exército e pela Aeronáutica, são instituições<br />

nacionais permanentes e regulares,<br />

organiza<strong>da</strong>s com base na hierarquia<br />

e na disciplina, sob a autori<strong>da</strong>de<br />

suprema do Presidente <strong>da</strong> República,<br />

e destinam-se à defesa <strong>da</strong> Pátria, à garantia<br />

dos poderes constitucionais e,<br />

por iniciativa de qualquer destes, <strong>da</strong> lei<br />

e <strong>da</strong> ordem” (grifos meus).<br />

Qualquer dos Poderes constituídos<br />

brasileiros (Executivo, Legislativo<br />

e Judiciário) pode chamar as forças<br />

arma<strong>da</strong>s para restabelecimento <strong>da</strong><br />

ordem e <strong>da</strong> lei.<br />

Apesar <strong>da</strong> disposição do artigo 142<br />

<strong>da</strong> C.F., o equilíbrio de poderes existente<br />

na democracia brasileira de tal ordem,<br />

que jamais passaria pela idéia de qualquer<br />

ci<strong>da</strong>dão ou de qualquer autori<strong>da</strong>de não<br />

acatar a decisão do poder judiciário, ou<br />

de qualquer governante não cumprir as<br />

leis produzi<strong>da</strong>s pelo Poder Legislativo.<br />

É inconcebível, no Brasil, que o<br />

Presidente Lula ou qualquer presidente<br />

possa declarar que não cumprirá decisões<br />

do Supremo Tribunal Federal, por<br />

considerar-se acima de qualquer outro<br />

poder. No Brasil, só mesmo, na Constituição<br />

de 1937, escrita pelo gênio de<br />

Francisco Campos - de quem se dizia<br />

que “quando as luzes de sua inteligência<br />

acendiam geravam curto circuito em todos<br />

os fusíveis <strong>da</strong> democracia” - o Presidente<br />

<strong>da</strong> República tinha o direito de<br />

não acatar decisões <strong>da</strong> Suprema Corte.<br />

Concluindo este breve artigo, estou<br />

convencido de que há um processo<br />

inverso à democracia, que começa a invadir<br />

diversas nações <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />

nas quais o equilíbrio dos poderes deixa<br />

de existir, para a criação de um caudilhismo<br />

do século XIX e utilizando-se a<br />

manipulação do povo, no mesmo estilo<br />

de Hitler, Mussolini e Stalin.<br />

Felizmente, o Brasil, graças a<br />

Constituição de 1988, não corre o risco<br />

que os nossos vizinhos estão vivendo.<br />

Ives Gandra Martins é advogado atuante nos<br />

ramos de direito constitucional, tributário e<br />

econômico.<br />

17


18<br />

ECOLOGIA<br />

mAR<br />

dE ÁGUA dOCE<br />

RIQUEZA<br />

COMPARTILHADA<br />

BENEDITO BRAGA<br />

Existem no mundo 261 bacias hidrográficas<br />

cujos rios fluem através<br />

de dois ou mais países. São<br />

as chama<strong>da</strong>s bacias hidrográficas<br />

transfronteiriças. Essas bacias<br />

cobrem 45,3% <strong>da</strong> superfície<br />

do globo (Wolf et al., 1999). Nelas os limites<br />

físico-geográficos não coincidem com os limites<br />

políticos dos países envolvidos. Em alguns<br />

casos, como do rio Nilo, a bacia hidrográfica<br />

engloba na<strong>da</strong> menos do que 10 países. A racionali<strong>da</strong>de<br />

sugere o uso dos limites físicos <strong>da</strong>s bacias<br />

hidrográficas para promover o planejamento<br />

e a gestão de seus recursos hídricos. No âmbito<br />

brasileiro é o que determina a lei federal nº<br />

9433/97 também conheci<strong>da</strong> por Lei <strong>da</strong>s Águas.


FOTO: OrlandO azevedO<br />

Entretanto, como os países detêm<br />

soberania sobre seus territórios e as<br />

ações sobre o território têm impacto<br />

direto nos córregos, rios e lagos <strong>da</strong><br />

bacia hidrográfica, impõe-se o grande<br />

desafio <strong>da</strong> cooperação multilateral<br />

para alcançar a gestão adequa<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

água neste âmbito.<br />

Em algumas regiões do mundo<br />

onde a água é escassa esta cooperação<br />

multilateral é uma necessi<strong>da</strong>de vital.<br />

Entretanto, a cooperação multilateral<br />

não pode tomar a feição de tradicionais<br />

acordos e tratados assinados em<br />

reuniões internacionais que em geral não<br />

têm consequência prática. Como exemplo<br />

de um desses acordos, pode-se citar a<br />

Convenção <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s sobre a<br />

Lei de usos não-navegáveis de rios internacionais<br />

que levou 27 anos para sua<br />

aprovação pela Assembléia Geral em<br />

1997. Hoje, passados 12 anos somente<br />

16 países ratificaram a Convenção que<br />

não foi implementa<strong>da</strong>. A prática indica<br />

que os países adotam uma postura<br />

de cooperação não em função de uma<br />

A Bacia do Prata estende-se por três milhões de quilômetros quadrados<br />

compartilha<strong>da</strong> por Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai.<br />

ética de cooperação, mas, e principalmente,<br />

em função de benefícios advindos<br />

<strong>da</strong> cooperação. Talvez por isso<br />

persistam ain<strong>da</strong> impasses em bacias de<br />

rios transfronteiriços no Oriente - Médio<br />

onde se costuma dizer que as guerras<br />

do futuro não serão pelo petróleo<br />

e sim pela água. Ao contrário, como<br />

será mostrado mais adiante, a história<br />

de sucesso em cooperação na bacia do<br />

Prata baseia-se em desenvolvimento de<br />

infra-estrutura hidráulica compartilha<strong>da</strong><br />

entre os países <strong>da</strong> bacia.<br />

A bacia do Prata desenvolve-se<br />

por uma extensão de 3,1 milhões de km2<br />

sendo compartilha<strong>da</strong> por Brasil, Argentina,<br />

Bolívia, Paraguai e Uruguai. Com<br />

uma população aproxima<strong>da</strong> de 100 milhões<br />

de habitantes as ativi<strong>da</strong>des econômicas<br />

nesta bacia são responsáveis por<br />

70% do PIB destes cinco países. A água<br />

é um elemento crucial neste resultado<br />

uma vez que na<strong>da</strong> menos que 75 hidroelétricas<br />

de grande porte encontram-se<br />

localiza<strong>da</strong>s em rios <strong>da</strong> bacia. Destaca-se<br />

a maior hidroelétrica do mundo em gera-<br />

19


Além do uso hidrelétrico, outros usos <strong>da</strong><br />

água estão presentes em rios <strong>da</strong> bacia,<br />

ção de energia, Itaipu no rio Paraná, com<br />

desde a navegação à irrigação.<br />

potência instala<strong>da</strong> de 12.600 MW chega<br />

a produzir 92 TWh de energia por ano<br />

(95% <strong>da</strong> deman<strong>da</strong> por energia elétrica no<br />

Paraguai e 24% no Brasil).<br />

Além do uso hidrelétrico, outros<br />

importantes usos <strong>da</strong> água estão<br />

presentes nesta bacia. Desde longa<br />

<strong>da</strong>ta a navegação é um dos usos mais<br />

tradicionais com seus 3.442 km de extensão.<br />

Esta hidrovia está associa<strong>da</strong> à<br />

própria história dos países que dela se<br />

servem. A decisão dos governos dos<br />

cinco países ribeirinhos de coordenar<br />

ações com vistas a aprimorar a eficiência,<br />

a segurança e a confiabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

navegação nos rios Paraguai e Paraná<br />

<strong>da</strong>ta de 1987, quando o desenvolvimento<br />

do sistema fluvial formado pelos<br />

rios Paraguai e Paraná foi declara-<br />

20<br />

do de interesse prioritário pelos cinco<br />

países signatários do Tratado <strong>da</strong> Bacia<br />

do Prata, em vigor desde agosto de<br />

1970, que estabelece o enquadramento<br />

político-diplomático para a integração<br />

física <strong>da</strong> Bacia do Prata. A irrigação é<br />

utiliza<strong>da</strong> em todos os cinco países que<br />

compartilham a bacia sendo muito<br />

importante na sub-bacia do Uruguai<br />

onde a irrigação de arroz no Rio Grande<br />

do Sul ocupa posição privilegia<strong>da</strong><br />

com mais de 1 milhão de ha irrigados<br />

no sistema de inun<strong>da</strong>ção. Na Argentina<br />

cerca de 90% <strong>da</strong> pesca continental<br />

se desenvolve na bacia utilizando-se<br />

de 40 portos. Da mesma forma uma<br />

importante ativi<strong>da</strong>de econômica é o<br />

turismo fluvial e ambiental. No Brasil<br />

a pesca continental representou cerca<br />

de 24,8 % <strong>da</strong> produção pesqueira bra-


FOTO: OrlandO azevedO<br />

sileira, com parte significativa dentro<br />

<strong>da</strong> bacia do rio <strong>da</strong> Prata.<br />

Subjacente a esta bacia hidrográfica<br />

encontra-se o aqüífero Guarani com<br />

seus quase 1,1 milhões de km2 esse reservatório<br />

de proporções gigantescas de<br />

água subterrânea é formado por derrames<br />

de basalto ocorridos nos Períodos<br />

Triássico, Jurássico e Cretáceo Inferior<br />

(entre 200 e 132 milhões de anos). É<br />

constituído pelos sedimentos arenosos<br />

<strong>da</strong> Formação Pirambóia na Base<br />

(Formação Buena Vista na Argentina e<br />

Uruguai) e arenitos Botucatu no topo<br />

(Missiones no Paraguai, Tacuarembó<br />

no Uruguai e na Argentina). Compartilhado<br />

por Brasil (68%), Argentina<br />

(21%), Paraguai (8%) e Uruguai (3%),<br />

este aqüífero é confinado em quase to<strong>da</strong><br />

sua extensão e representa uma reserva<br />

estratégica de água de boa quali<strong>da</strong>de<br />

para abastecimento doméstico e industrial.<br />

Considerando-se uma espessura<br />

média aqüífera de 250 metros e porosi<strong>da</strong>de<br />

efetiva de 15%, estima-se que as<br />

reservas permanentes do aqüífero (água<br />

acumula<strong>da</strong> ao longo do tempo) sejam <strong>da</strong><br />

ordem de 45.000 Km³ (DAEE, 2009).<br />

Entretanto, cui<strong>da</strong>dos importantes<br />

devem ser exercidos em função <strong>da</strong><br />

fragili<strong>da</strong>de de suas áreas de recarga. Em<br />

função <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de de reversão de<br />

processos de poluição em aqüíferos desta<br />

natureza, o uso do solo na região de<br />

recarga (principalmente no Estado de<br />

São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraguai)<br />

deve ser preservado <strong>da</strong> utilização<br />

de agrotóxicos e excesso de fertilizantes.<br />

A disposição de resíduos sólidos<br />

domésticos e industriais nessas regiões<br />

21


Irrigação de arroz no<br />

Rio Grande do Sul.<br />

deve seguir a melhor técnica de impermeabilização<br />

para evitar que o chorume<br />

(líquido gerado no aterro sanitário) percole<br />

e atinja desta maneira o aqüífero.<br />

A gestão de recursos hídricos no<br />

âmbito desta grande bacia hidrográfica<br />

se dá internamente aos países que dela fazem<br />

parte. O Brasil desde 1997 dispõe de<br />

uma legislação de recursos hídricos muito<br />

moderna que impõe como uni<strong>da</strong>de de<br />

gestão a bacia hidrográfica. Entretanto, a<br />

nossa constituição federal inclui entre os<br />

bens dos estados os rios que nele fluem e<br />

atribui à União aqueles cursos d’água que<br />

servem de fronteira entre estados ou que<br />

fluem através de dois ou mais estados. A<br />

natureza federativa de nosso país garante<br />

aos estados autonomia para gerir seus<br />

rios e lagos. Assim, apesar de não haver<br />

nenhum acordo específico para a gestão<br />

de bacias hidrográficas entre os países,<br />

o Brasil, em função de sua legislação dá<br />

um primeiro passo na direção de um potencial<br />

acordo transfronteiriço de gestão<br />

desta bacia do Prata.<br />

22<br />

A Hidroelétrica de Itaipu, no Rio Paraná, a maior do mundo.<br />

Entretanto apesar desta evolução<br />

no sistema de gestão brasileiro, nele ain<strong>da</strong><br />

persiste a dissociação <strong>da</strong> gestão de<br />

água superficial <strong>da</strong> água subterrânea.<br />

Apesar do ciclo hidrológico não reconhecer<br />

diferenças entre água superficial<br />

e subterrânea (é a mesma água fluindo<br />

com veloci<strong>da</strong>des diferentes), não se<br />

tem noticia de um sistema de gestão<br />

que incorpore estes dois domínios <strong>da</strong><br />

água. No Brasil, por exemplo, não existe<br />

água subterrânea de domínio <strong>da</strong> União.<br />

Mesmo um aqüífero <strong>da</strong> importância do<br />

Guarani, que se estende por sete estados<br />

<strong>da</strong> federação, tem sua administração<br />

autônoma em ca<strong>da</strong> parcela estadual.<br />

Mesmo não havendo acordo específico<br />

para gestão de águas, diversos<br />

acordos multilaterais relacionados com<br />

o uso dos rios desta bacia já foram assinados<br />

desde o século 19. Destaca-se a<br />

Tratado de Amizade, Comércio e Navegação<br />

entre Brasil e Argentina de 1856;<br />

o acordo sobre e o Rio Jaguarão de 1926<br />

entre Brasil e Uruguai,o acordo tripartite


FOTOs: reprOduçãO<br />

de 1979 entre Brasil, Argentina e Paraguai<br />

sobre a usina hidrelétrica de Itaipu<br />

e a utilização <strong>da</strong>s águas do Rio Paraná.<br />

Este último foi necessário em função de<br />

um acordo anterior entre Brasil e Paraguai<br />

em 1973 para construção <strong>da</strong> hidrelétrica<br />

de Itaipu. As oportuni<strong>da</strong>des de diálogo<br />

intenso à partir destes acordos foi<br />

que levou à uma sóli<strong>da</strong> aliança política e<br />

à iniciativa de integração que levaram ao<br />

processo de criação do Mercosul.<br />

Nota-se assim que água desempenha<br />

um papel importantíssimo nesta<br />

região <strong>da</strong> <strong>América</strong> do Sul. De um lado<br />

possibilitando o desenvolvimento eco-<br />

nômico e social dos países através <strong>da</strong><br />

infra-estrutura hidráulica para energia,<br />

produção de alimentos e navegação.<br />

De outro, os acordos para o desenvolvimento<br />

destes recursos hídricos tornou<br />

possível uma aproximação maior<br />

que desaguou na aproximação política<br />

e na união maior de seus povos.<br />

Benedito Braga é professor titular <strong>da</strong> Escola<br />

Politécnica <strong>da</strong> USP, vice-presidente do World<br />

Water Council e Diretor <strong>da</strong> Agencia Nacional<br />

de Águas - ANA.<br />

23


24<br />

PATRIMÔNIO CULTURAL<br />

mAlBA<br />

REFERÊnCIA nO CEnÁRIO ARTÍSTICO<br />

COLEÇÃO EXEMPLAR<br />

FLORENCIA BATTITI<br />

Atualmente é difícil imaginar o<br />

cenário artístico <strong>da</strong> Argentina<br />

sem a presença do Museu<br />

de Arte Latino-Americana de<br />

Buenos Aires. A partir de sua<br />

abertura em setembro de 2001,<br />

o Malba tem construído programaticamente<br />

uma identi<strong>da</strong>de institucional que o posiciona<br />

como um dos protagonistas do circuito de museus<br />

e centros culturais do país. Sua inauguração<br />

ocorreu no final de 2001 em um contexto<br />

sumamente convulsionado, tanto em nível internacional<br />

quanto local. Agustín de Arteaga,<br />

seu primeiro diretor, de nacionali<strong>da</strong>de mexicana,<br />

abandonou o país poucos meses depois de<br />

assumir o cargo para cedê-lo a quem até hoje


FOTOs: reprOduçãO<br />

Fri<strong>da</strong> Kahlo - Autorretrato<br />

con chango y loro.<br />

Diego Rivera - Retrato de Ramón<br />

Gómez de la Serna.<br />

Tarsila do Amaral - Abaporu.


Edifício especialmente concebido<br />

para o museu.<br />

é o curador-chefe do museu: o historiador<br />

<strong>da</strong> arte argentina Marcelo<br />

Pacheco. Esta passagem de gestão –<br />

além <strong>da</strong>s razões conjunturais que a<br />

geraram – sem dúvi<strong>da</strong> deu origem a<br />

uma política de curadoria diferente <strong>da</strong><br />

traça<strong>da</strong> originalmente, isto é, orienta<strong>da</strong><br />

principalmente para a produção<br />

de exposições de artistas argentinos.<br />

Reconhecendo que a crise econômica<br />

não era alheia ao futuro do museu em<br />

termos de conteúdos, Pacheco delineava<br />

sua estratégia com as seguintes<br />

palavras: “Não vim para o Malba<br />

26<br />

para pensar em exposições de um milhão<br />

de dólares (…) A ideia é realizar<br />

quatro mostras temporárias por ano,<br />

<strong>da</strong>s quais uma ou duas serão de artistas<br />

argentinos. Não se trata apenas de<br />

uma questão de custos, mas porque<br />

o Malba é um museu de arte latinoamericana<br />

em Buenos Aires. Nossos<br />

artistas têm muito a dizer”.<br />

De alguma maneira, esta estratégia<br />

está relaciona<strong>da</strong> com o modo em<br />

que foi formado o núcleo fun<strong>da</strong>mental<br />

do museu: a coleção do empresário<br />

argentino Eduardo F. Costantini,


presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção que leva seu<br />

nome e <strong>da</strong> qual o Malba depende. O<br />

ponto de parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> coleção foi a arte<br />

moderna argentina, núcleo que foi<br />

se ampliando rapi<strong>da</strong>mente nos anos<br />

80 para abranger as vanguar<strong>da</strong>s e a<br />

moderni<strong>da</strong>de do rio <strong>da</strong> Prata (com<br />

a aquisição de obras de Xul Solar,<br />

Emilio Pettoruti, Antonio Berni, Alfredo<br />

Guttero, Joaquín Torres García,<br />

Pedro Figari, José Cúneo e Rafael<br />

Barra<strong>da</strong>s) para mais tarde incorporar<br />

artistas fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> arte latinoamericana,<br />

como Fri<strong>da</strong> Khalo, Diego<br />

Rivera, Wifredo Lam, Roberto Matta<br />

e Tarsila do Amaral. No final dos<br />

anos 90, a implementação dos “Prêmios<br />

Costantini” – que concediam<br />

um primeiro e um segundo prêmios,<br />

de 30.000 e 15.000 dólares, respectivamente<br />

– transformou-se em uma<br />

estratégia eficaz para a incorporação<br />

de obras de artistas argentinos contemporâneos,<br />

como León Ferrari,<br />

Nicola Costantino, Pablo Suárez e<br />

Marcia Schvartz, entre outros.<br />

Assim, a partir <strong>da</strong> exibição de sua<br />

coleção permanente de arte argentina<br />

e latino-americana, iniciou-se um<br />

programa de exposições temporárias<br />

de grande formato (entre as quais se<br />

destacam as de Guillermo Kuitca, Jorge<br />

de la Vega, Víctor Grippo, Antonio<br />

Berni, Gego e Félix González-Torres);<br />

ain<strong>da</strong> foi criado o programa Contemporâneo,<br />

de 2002 a 2008 destinou uma<br />

sala para a difusão de artistas jovens<br />

ativos na região; o programa Intervenções,<br />

que comissiona e financia<br />

um projeto especial para o museu,<br />

em que a palavra de ordem “intervir”<br />

em seu espaço físico e/ou simbólico,<br />

e as obras que temporariamente são<br />

exibi<strong>da</strong>s na “esplana<strong>da</strong>” de acesso ao<br />

museu (Jesús Soto, Penetrable, Artur<br />

Lescher, Teus olhos, e Sergio Avello<br />

Volumen, entre outros), o Malba não<br />

só se posicionou como referencial de<br />

legitimação no cenário artístico local,<br />

mas também implementou como nenhum<br />

outro espaço cultural na ci<strong>da</strong>de<br />

a museografia como forma visual<br />

do discurso de curadoria e não como<br />

mero acompanhamento ou “decoração”<br />

<strong>da</strong> sala de exibição.<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, a quali<strong>da</strong>de de gestão<br />

do Malba (que se traduz visivelmente<br />

na produção de exposições e catálogos)<br />

deve-se em grande parte à verba<br />

que é administra<strong>da</strong> por uma instituição<br />

de caráter privado. Situação que<br />

contrasta, por vezes brutalmente,<br />

com as gestões implementa<strong>da</strong>s em<br />

nosso país a partir <strong>da</strong>s instituições<br />

públicas. Este fato foi (e continua<br />

sendo) evidente para o público em<br />

geral, mas também soube captar a<br />

atenção <strong>da</strong> crítica especializa<strong>da</strong>. Neste<br />

sentido, a historiadora <strong>da</strong> arte Andrea<br />

Giunta frisava que a “abertura<br />

do Malba coloca uma coleção priva<strong>da</strong><br />

no espaço público por meio de um<br />

projeto que reúne as condições que<br />

gostaríamos que todos os museus <strong>da</strong><br />

Argentina tivessem”4. No entanto,<br />

advertia que era inadequado considerar<br />

que “tudo o que não pode ser<br />

feito no espaço público pode se fazer<br />

no privado, (já que) apesar <strong>da</strong> falta de<br />

verba (razão sempre apresenta<strong>da</strong> para<br />

justificar o estado de muitos museus<br />

que contêm coleções públicas), não<br />

são feitas muitas coisas que poderiam<br />

ser feitas, e não por falta de recursos,<br />

mas pela mais absoluta negligência.”5<br />

É interessante ler essas reflexões<br />

levando em consideração outro museu<br />

recentemente inaugurado em Buenos<br />

Aires a partir de uma coleção priva<strong>da</strong>:<br />

a coleção de Amalia Lacroze de Fortabat.<br />

Nesse caso, embora o prédio<br />

tenha sido construído, assim como o<br />

do Malba, com essa finali<strong>da</strong>de e com<br />

padrões museológicos de nível internacional,<br />

sua contribuição com o<br />

cenário artístico local em termos de


28<br />

À esquer<strong>da</strong>, de cima para baixo:<br />

Miguel Covarrubias,<br />

Fernando Botero,<br />

Wifredo Lam, Xul Solar,<br />

José Cuneo. Ao lado,<br />

Joaquín Torre-García,<br />

Emilio Pettoruti, Agustín Lazo<br />

(à direita), Diego Rivera (abaixo).


Estrutura metálica e vidro garantem a iluminação.<br />

29


Museu sensível às mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong>s práticas artísticas.<br />

conteúdos é notavelmente menor que<br />

o de muitas instituições públicas.<br />

Portanto, e em função do que<br />

foi exposto, é inegável reconhecer o<br />

aporte do Malba à dinâmica cultural<br />

de nosso país. Como destacam Isabel<br />

Plante e Talía Bermejo, “este museu<br />

parece sensível às mu<strong>da</strong>nças nas práticas<br />

artísticas (que) se concentram<br />

mais na ação que nas formas e atendem<br />

mais à ética de certas práticas que<br />

à aplicação de novas tecnologias”6. E,<br />

embora seja certo que o Malba exerce<br />

um poderoso polo de atração para<br />

os artistas contemporâneos devido às<br />

suas condições de máxima visibili<strong>da</strong>de,<br />

a dinâmica dos espaços alternativos<br />

e independentes (que muitas vezes<br />

são auto-geridos por artistas) se configura<br />

e ordena em campos de ação nos<br />

quais sempre houve e haverá instituições<br />

priva<strong>da</strong>s de “caráter forte”, como<br />

o Malba ou Fun<strong>da</strong>ção PROA.<br />

Por último, é provável que o maior<br />

aporte do Malba, tanto para a Argen-<br />

30<br />

tina quanto para a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />

seja a apresentação de um relato <strong>da</strong><br />

arte latino-americana construí<strong>da</strong> a<br />

partir <strong>da</strong> especifici<strong>da</strong>de dos projetos<br />

artísticos regionais, denotando claras<br />

diferenças com as versões <strong>da</strong> arte latino-americana<br />

desenvolvi<strong>da</strong>s tanto a<br />

partir <strong>da</strong> Europa quanto dos Estados<br />

Unidos. Em sintonia com recentes<br />

pesquisas acadêmicas, a política <strong>da</strong><br />

curadoria do Malba centra o relato<br />

<strong>da</strong> arte latino-americana no contexto<br />

<strong>da</strong> conjuntura sóciocultural de nossa<br />

região, <strong>da</strong>ndo às obras de artistas<br />

argentinos como Berni ou Xul Solar<br />

uma nova perspectiva de leitura que<br />

destaca as contribuições próprias e<br />

particulares em torno do debate <strong>da</strong><br />

moderni<strong>da</strong>de latino-americana.<br />

Florencia Battiti é pesquisadora, professora e<br />

crítica de arte argentina.


LITERATURA<br />

AvEnTURA<br />

dE ROBInSOn CRUSOE<br />

COmEçA nA BAhIA<br />

PARTE OBSCURA<br />

DA HISTóRIA CONHECIDA<br />

MARIA LIGIA PRADO<br />

O<br />

romance de Daniel Defoe,<br />

Vi<strong>da</strong> e Aventuras de Robinson<br />

Crusoe, publicado em<br />

1719, consagrou seu autor e<br />

se transformou em enorme e<br />

imediato êxito editorial. Suas<br />

incontáveis edições atravessaram os séculos fazendo<br />

com que o título permanecesse nos catálogos<br />

<strong>da</strong>s editoras até o presente. O crítico Ian<br />

Watts o considerou o primeiro romance moderno<br />

em língua inglesa. O interesse por essa<br />

obra pode ser medido pela vasta e notável produção<br />

intelectual por ela suscita<strong>da</strong>, incluindo<br />

autores tão diversos quanto James Joyce e Karl<br />

Marx, cujos olhares circunscreveram aspectos<br />

específicos e produziram reflexões originais.<br />

31


Neste artigo, pretendo fazer um<br />

recorte particular, colocando a famosa<br />

narrativa do náufrago na ilha deserta em<br />

um lugar privilegiado dentro do universo<br />

dos diálogos culturais entre o Velho<br />

e o Novo Mundo.<br />

Defoe (1660-1731) se baseou na<br />

história real do marinheiro escocês, Alexandre<br />

Selkirk (1676-1721), cujo navio<br />

bucaneiro navegava pelo Atlântico sul<br />

em busca <strong>da</strong>s riquezas transporta<strong>da</strong>s<br />

por navios <strong>da</strong> Coroa espanhola. Depois<br />

de um ataque “bem sucedido”, do qual<br />

resultou um belo botim, o navio sofreu<br />

avarias. Selkirk desentendeu-se com seu<br />

coman<strong>da</strong>nte, que não queria consertar o<br />

navio antes de voltar à Europa pelo Cabo<br />

Horn. O episódio culminou com a decisão<br />

do capitão de castigá-lo, desembarcando-o<br />

na ilha Mas a Tierra, no arquipélago<br />

Juan Fernández, na costa do Chile.<br />

Isso ocorreu em 1704 e Selkirk lá viveu<br />

completamente sozinho por quatro anos<br />

até ser resgatado por outro navio britânico<br />

que o levou de volta à Europa. Têmse<br />

repetido que as aventura de Selkirk se<br />

constituem na principal inspiração para<br />

o romance do escritor inglês. Já maduro,<br />

quase aos sessenta anos, escreveu seu<br />

primeiro romance, Robinson Crusoe, que<br />

lhe deu notorie<strong>da</strong>de, mas não resolveu<br />

seus problemas financeiros.<br />

A história de Robinson Crusoe<br />

não interessou a diversos editores para<br />

os quais Defoe mostrou os originais.<br />

Finalmente, em maio de 1719, William<br />

Taylor, decidiu-se por sua publicação. O<br />

sucesso foi tão inesperado quanto impressionante,<br />

havendo seis impressões<br />

em apenas quat ro meses, num total<br />

aproximado de 80.000 exemplares vendidos.<br />

O livro também foi rapi<strong>da</strong>mente<br />

traduzido para diversas línguas. Para nos<br />

determos na França, a primeira tradução,<br />

à qual muitas se seguiram, é de 1720. Na<br />

França, houve outras a<strong>da</strong>ptações para<br />

a juventude com ênfase nas questões<br />

educativas e morais do texto, tendo até<br />

32<br />

mesmo sido incorporado como livro de<br />

texto nas escolas.<br />

Todos conhecem a história do náufrago<br />

Robinson Crusoe que viveu por 28<br />

anos numa ilha deserta, desenvolvendo<br />

suas potenciali<strong>da</strong>des individuais em confronto<br />

com a natureza e encontrando os<br />

meios para sobreviver a partir de suas habili<strong>da</strong>des<br />

e conhecimentos. Como afirma<br />

James Joyce, de náufrago na ilha, com uma<br />

faca e um cachimbo no bolso, Robinson<br />

se transforma em “arquiteto, carpinteiro,<br />

afiador de faca, astrônomo, padeiro, construtor<br />

de navios, oleiro, agricultor, alfaiate,<br />

fazedor de guar<strong>da</strong>-chuvas e clérigo”. Defoe<br />

constrói um modelo otimista <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des<br />

do domínio do homem sobre a<br />

natureza, através do conhecimento racional.<br />

Robinson planta, cria cabras, faz uma<br />

casa, levanta uma fortaleza para defenderse<br />

de supostos inimigos.<br />

Muitas vezes, entretanto, passa desapercebido<br />

ao leitor o fato de que a fatídica<br />

viagem de Crusoe inicia-se no Brasil<br />

– onde, depois de muitas aventuras, ele<br />

chegara trazido por um capitão português<br />

e onde vivia como proprietário de terras<br />

– com destino à África, tendo como objetivo<br />

determinado a compra de escravos.<br />

O naufrágio acontece no mar do Caribe,<br />

pois a desembocadura do rio Orenoco é a<br />

última referência geográfica indica<strong>da</strong> pelo<br />

autor antes do desastre. Como afirma Peter<br />

Hulme em seu Colonial Encounters, ain<strong>da</strong><br />

que a ilha de Crusoe esteja claramente<br />

localiza<strong>da</strong> e que os ameríndios citados<br />

por Defoe, incluindo Sexta-feira, sejam<br />

sempre apresentados como Caribes, o<br />

romance não é pensado como um livro<br />

caribenho. É uma fábula puritana, um romance<br />

sobre o individualismo econômico,<br />

ou simplesmente a história de um homem<br />

em uma ilha deserta perdi<strong>da</strong> no oceano,<br />

cuja localização carece de importância.<br />

Nesse sentido, as ilustrações <strong>da</strong>s<br />

primeiras edições de Crusoe não contêm<br />

qualquer evidência em termos <strong>da</strong> flora,<br />

fauna ou clima que identifique o lugar


FOTOs: reprOduçãO<br />

como uma ilha do Caribe. No frontispício<br />

<strong>da</strong> primeira edição inglesa de 1719, em<br />

desacordo com o clima quente, Robinson<br />

aparece descalço, mas vestido de pele de<br />

cabras cobrindo todo o corpo. De forma<br />

significativa, carrega uma espa<strong>da</strong> à cintura<br />

e segura duas armas de fogo. (fig.1) Essa<br />

imagem será repeti<strong>da</strong> à exaustão nas edições<br />

seguintes. Na primeira edição francesa<br />

de 1720, ele aparece vestido, com um<br />

guar<strong>da</strong>-sol, uma arma de fogo, um cesto<br />

às costas e um serrote à cintura. (fig.2)<br />

Mais de um século depois, na edição francesa<br />

de 1840, ele é desenhado de forma<br />

semelhante com os mesmos apetrechos,<br />

mas o guar<strong>da</strong>-sol desapareceu e ele ganhou<br />

umas sandálias. (fig.3) Um século à<br />

frente, na edição francesa de 1933, Robinson<br />

continua aparelhado com os mesmos<br />

emblemas do homem moderno: armas de<br />

fogo e ferramentas de trabalho e vestido<br />

de maneira inadequa<strong>da</strong> ao clima. (fig.4)<br />

Como afirmei anteriormente, muito<br />

se escreveu sobre Robinson Crusoe,<br />

propondo questões e interpretações que<br />

pretendem desven<strong>da</strong>r os múltiplos significados<br />

<strong>da</strong> obra. Referência obrigatória<br />

para nós historiadores é o artigo clássico<br />

de Christopher Hill, Robinson Crusoe,<br />

que pode ser entendido como uma entra<strong>da</strong><br />

principal para o universo de problemas<br />

debatidos referentes à personagem central<br />

do romance. O historiador inglês indica<br />

as ambigui<strong>da</strong>des do comportamento de<br />

Robinson na ilha em comparação a um<br />

modelo estrito do puritanismo inglês. Em<br />

primeiro lugar, Robinson não batiza Sexta-feira,<br />

ain<strong>da</strong> que o considere um cristão;<br />

não sabe o que responder a ele, quando<br />

este pergunta por que Deus permitiu a<br />

existência do demônio. Além disso, enquanto<br />

estava na ilha longe do mundo<br />

comercial, foram o católico capitão português<br />

e o convento brasileiro de agostinianos<br />

que cui<strong>da</strong>ram de suas terras e ren<strong>da</strong>s<br />

tão bem quanto a viúva protestante de<br />

Londres. Há uma perspectiva de tolerância<br />

religiosa, pois ele está bem confortável<br />

no Brasil, sob a ordem dos “papistas” e<br />

mantém boas relações com os espanhóis<br />

quando estes chegam à ilha.<br />

Por outro lado, Hill aponta também<br />

para os traços típicos de uma visão religiosa<br />

presbiteriana. O ascetismo, a auto-disciplina<br />

e o trabalho árduo guiam seu padrão<br />

de comportamento. Crusoe acredita que<br />

seus infortúnios foram um castigo por<br />

sua desobediência ao destino que seu prudente<br />

pai lhe havia traçado. Aceitando que<br />

Deus usa nossas próprias ações para nos<br />

punir, demonstra acreditar na predestinação,<br />

de acordo com a tradição calvinista na<br />

Inglaterra. Robinson guar<strong>da</strong> o sétimo dia<br />

<strong>da</strong> semana, como o dia do Senhor, seguin-<br />

33


1<br />

5<br />

9<br />

do o imaginado calendário por ele elaborado.<br />

Adquire o hábito de pedir a benção de<br />

Deus antes de comer e não pode suportar<br />

a idéia <strong>da</strong> nudez, mesmo estando sozinho<br />

na ilha; assim cobre o corpo inteiramente,<br />

como já vimos nas ilustrações iniciais.<br />

Na trilha <strong>da</strong> mesma tradição religiosa, escreve<br />

um diário no qual anota as coisas<br />

boas e as coisas más que lhe sucedem e<br />

que funciona como um balanço espiritual.<br />

Também marca seus “lucros” e suas “per<strong>da</strong>s”.<br />

Estas anotações são a prova de que a<br />

sobrevivência e o final enriquecimento de<br />

Crusoe se devem ao trabalho constante e<br />

à recusa <strong>da</strong> per<strong>da</strong> de tempo. Segundo Hill,<br />

no romance, o protestantismo tradicional<br />

está acompanhado por uma visão de morali<strong>da</strong>de<br />

nos negócios na perspectiva do<br />

espírito do capitalismo de Weber.<br />

Defoe cria um final feliz para Crusoe,<br />

que volta à Inglaterra acompanhado<br />

por seu “fiel escudeiro”, Sexta-feira, que<br />

34<br />

2<br />

6<br />

10<br />

3<br />

7<br />

11<br />

4<br />

8<br />

12<br />

o segue de muito bom grado. Em seu país<br />

natal, Robinson descobre que se tornara<br />

um homem rico, pois o pecúlio que deixara<br />

com a honesta viúva inglesa lhe rendera<br />

lucro e a ven<strong>da</strong> <strong>da</strong>s terras no Brasil também<br />

lhe proporcionara um grande montante<br />

de dinheiro. Baseado nas transações<br />

econômicas empreendi<strong>da</strong>s por Robinson<br />

que culmina com seu enriquecimento ao<br />

final do livro, Stephen Hymer produz uma<br />

inespera<strong>da</strong> interpretação sobre as práticas<br />

de Robinson desven<strong>da</strong>ndo os segredos <strong>da</strong><br />

acumulação primitiva do capital. Para isso,<br />

afirma que quer ir além dos detalhes <strong>da</strong><br />

história de Robinson para ilustrar a análise<br />

de Marx sobre a economia capitalista,<br />

especialmente o período <strong>da</strong> acumulação<br />

primitiva que é seu ponto de parti<strong>da</strong>. Esta<br />

interpretação de Hymer é um exemplo<br />

radical <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de reflexão sobre<br />

o romance, ain<strong>da</strong> que – como no caso<br />

citado – o autor se descole do texto do


omance para fazer outras considerações.<br />

A relação entre Robinson e Sextafeira<br />

imagina<strong>da</strong> por Defoe incita a outra<br />

ordem de reflexões. Na minha perspectiva,<br />

ela pode ser entendi<strong>da</strong> como a<br />

construção modelar <strong>da</strong> “relação bem<br />

sucedi<strong>da</strong>” entre o colonizador europeu<br />

e o colonizado americano. Como o irlandês<br />

James Joyce observou em 1912:<br />

“O ver<strong>da</strong>deiro símbolo <strong>da</strong> conquista dos<br />

britânicos está em Robinson Crusoe.<br />

Ele é o ver<strong>da</strong>deiro protótipo do colonizador<br />

britânico, assim como Sexta-feira<br />

(o confiante selvagem que chega em um<br />

dia infeliz) é o símbolo <strong>da</strong>s raças submeti<strong>da</strong>s”.<br />

Acrescento que a saga do homem<br />

solitário no “deserto” mundo americano<br />

é uma reprodução em miniatura <strong>da</strong> “descoberta”<br />

do Novo Mundo pelos europeus<br />

e de sua “obra civilizatória”.<br />

Na narrativa de Defoe, a relação entre<br />

Robinson e Sexta-feira foi naturaliza<strong>da</strong><br />

e surge diante dos olhos do leitor como<br />

uma conseqüência lógica <strong>da</strong> dinâmica dos<br />

encontros humanos assimétricos, aqui<br />

protagonizados por representantes do Velho<br />

e do Novo Mundo. Se Robinson salvou<br />

a vi<strong>da</strong> de Sexta-feira que ia ser devorado<br />

num festim canibal, a resposta do índio<br />

somente poderia ser a de uma pessoa eternamente<br />

grata. Em segundo lugar, como<br />

sua vi<strong>da</strong> foi salva pela utilização de uma<br />

arma de fogo, produto <strong>da</strong> técnica moderna,<br />

Sexta-feira deveria curvar-se diante <strong>da</strong><br />

superiori<strong>da</strong>de européia e aceitar seu lugar<br />

subordinado. O resultado apresentado<br />

por Defoe é, nessa seqüência, o de uma<br />

relação harmoniosa, na qual as duas partes<br />

conhecem seus lugares e não os colocam<br />

em dúvi<strong>da</strong>. A submissão de Sexta-feira é<br />

relata<strong>da</strong> nos mínimos detalhes. Robinson<br />

dá o nome de Sexta-feira ao índio – referido<br />

ao dia em que ele chegou, no imaginado<br />

calendário robinsoniano. Mas ele não<br />

é considerado digno do batismo. Crusoe<br />

ensina-lhe a língua inglesa, porém Sextafeira<br />

jamais será capaz de aprendê-la corretamente,<br />

falando de forma trôpega. Sin-<br />

tomaticamente a primeira palavra ensina<strong>da</strong><br />

e aprendi<strong>da</strong> é Master. Fornece roupas para<br />

vestir sua nudez e coloca-o para dormir<br />

do lado de fora de sua cabana, mais precisamente<br />

na porta. A roupa, exteriori<strong>da</strong>de<br />

palpável <strong>da</strong> condição de civilizado, faz de<br />

Robinson um ser diferenciado do bárbaro<br />

índio nu. O ato de vestir Sexta-feira tem<br />

um valor simbólico, pois representa o primeiro<br />

passo no seu ritual de passagem <strong>da</strong><br />

selvageria para a civilização.<br />

Robinson ensina Sexta-feira a plantar,<br />

a criar cabras. Com argumentos racionais,<br />

explica-lhe que deve abandonar<br />

o costume de comer carne humana, advertência<br />

também aceita por Sexta-feira.<br />

No tratamento dispensado ao caribenho<br />

não se coloca a questão <strong>da</strong> individuali<strong>da</strong>de<br />

do “outro”. Está fora do universo cultural<br />

de Robinson/Defoe perguntar algo<br />

sobre as crenças, a língua, os hábitos e<br />

os costumes anteriores do índio. Sua vi<strong>da</strong><br />

anterior, na qual deveria ter um nome, é<br />

apaga<strong>da</strong>. Sua real existência se inicia no<br />

dia do encontro com o homem branco.<br />

O encontro estabelece o momento <strong>da</strong><br />

origem <strong>da</strong> relação fazendo tabula rasa do<br />

passado individual e cultural do índio.<br />

O momento <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> de Sextafeira<br />

à ilha aparece sempre nas ilustrações.<br />

Numa edição inglesa do século<br />

XVIII, Robinson vestido com as peles de<br />

cabra, com uma arma ao ombro e outra<br />

apoia<strong>da</strong> no chão, ar de herói vencedor,<br />

olha em direção a Sexta-feira, totalmente<br />

nu, estirado ao chão, beijando-lhe humildemente<br />

os pés. A culminância do ato de<br />

submissão/dominação está representa<strong>da</strong><br />

pela postura de Sexta-feira que coloca o<br />

pé de Robinson sobre sua cabeça. (fig.5)<br />

No começo do século XX, há uma edição<br />

brasileira que reproduz exatamente a<br />

mesma cena. (fig.6) Numa edição francesa<br />

<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1920, a ilustração mantém a<br />

mesma moldura. Robinson paramentado<br />

e com a arma às costas encena um gesto<br />

paternal estendendo a mão sobre Sextafeira;<br />

este vestido apenas com uma tanga,<br />

<strong>35</strong>


de joelhos, faz uma espécie de reverência<br />

diante do inglês. (fig.7)<br />

Quase ao final <strong>da</strong> história, chega à<br />

ilha um grupo de espanhóis prisioneiros<br />

dos índios que se preparam para executálos.<br />

Neste preciso episódio acontece a<br />

perfeita conversão de Sexta-feira à civilização<br />

com sua decidi<strong>da</strong> escolha pelos<br />

valores ingleses. Robinson permite que<br />

Sexta-feira empunhe uma arma de fogo<br />

– suprema prova de confiança do inglês<br />

- para ajudá-lo a salvar os espanhóis, matando<br />

os indígenas caribenhos. Ao atirar<br />

contra seus “irmãos selvagens”, Sextafeira<br />

demonstra sua adesão completa à<br />

ordem do colonizador branco. Por sua<br />

importância, o episódio aparece constantemente<br />

nas ilustrações.<br />

Fiz referência anteriormente ao<br />

fato do esquecimento do lugar – o mar do<br />

Caribe – onde a saga de Robinson Crusoe<br />

e Sexta-feira se desenrola. Este não-lugar,<br />

aliado à possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> suspensão do<br />

tempo em que a história acontece, contribuiu<br />

para a proliferação de reapropriações<br />

do tema. Desse modo, a narrativa foi ganhando<br />

uma roupagem mítica – fora do<br />

tempo e do espaço. Essa dimensão pode<br />

explicar as últimas ilustrações que apresento,<br />

indicando as metamorfoses pelas<br />

quais passou Sexta-feira. Nas edições do<br />

século XVIII, como já foi mostrado, ele<br />

é representado como um índio nos seus<br />

traços fisionômicos e na cor <strong>da</strong> pele. Essa<br />

representação do bárbaro como índio<br />

continuou a ser reproduzi<strong>da</strong>.<br />

Entretanto, há uma fun<strong>da</strong>mental<br />

transformação do “selvagem” índio em<br />

“selvagem” negro africano, a partir de algumas<br />

edições do século XIX. Essa alteração<br />

nos contornos <strong>da</strong> figura modelar do<br />

colonizado vai se processando de maneira<br />

paulatina. Na edição francesa de 1845, a<br />

pele de Sexta-feira assume um tom mais<br />

escuro a ponto dele poder ser confundido<br />

com um africano. (fig.8).O mesmo acontece<br />

com os índios na já identifica<strong>da</strong> gravura<br />

<strong>da</strong> edição brasileira <strong>da</strong> Garnier do sé-<br />

36<br />

culo XX. (ver fig. 9).Mas a transformação<br />

inequívoca ocorre em edição francesa do<br />

começo do século XX: Sexta-feira foi plenamente<br />

transfigurado em negro africano.<br />

(fig.10). Tal transformação foi apropria<strong>da</strong><br />

pela edição brasileira <strong>da</strong> Editora Itatiaia de<br />

1964, que integra a Coleção Clássicos <strong>da</strong><br />

Juventude. Na capa, está Sexta-feira pintado<br />

como um negro africano com lábios<br />

grossos e cabelos crespos; eles estão atravessados<br />

por ossinhos, associando – de<br />

forma equivoca<strong>da</strong> – a África ao canibalismo.<br />

(fig.11) Se entrarmos aleatoriamente<br />

na internet em busca de representações de<br />

Sexta-feira, encontraremos imagens de um<br />

negro africano, mostrando a permanência<br />

dessa imprópria assimilação. (fig.12)<br />

As apropriações e a<strong>da</strong>ptações <strong>da</strong><br />

história original de Robinson Crusoe e<br />

Sexta-feira carregam fortes significados<br />

culturais e políticos que se renovam até<br />

o presente. A história do inglês náufrago<br />

no Caribe oferece elementos que<br />

permitem releituras e contribuem para<br />

sutilmente defender a lógica <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> “civilização” sobre a “barbárie”<br />

e justificar o encontro assimétrico<br />

entre colonizador e colonizado em qualquer<br />

época <strong>da</strong> História. O olhar imperial<br />

se manifesta naturalizando essa relação<br />

e ocultando sua violência.<br />

Nos diálogos culturais entre o<br />

Velho e o Novo Mundo, no alvorecer<br />

dos tempos modernos, a saga de Robinson<br />

Crusoe e Sexta-feira desponta<br />

como texto referencial por sua simplici<strong>da</strong>de,<br />

sua pretensa neutrali<strong>da</strong>de e<br />

sua contundente formulação <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> construção de uma relação<br />

harmoniosa e ingênua entre colonizador<br />

e colonizado.<br />

Maria Ligia Prado é historiadora (USP) e autora<br />

de diversos livros sobre <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.


HOMENAGEM<br />

RUBEm<br />

GRIlO<br />

HUMOR IRREVERENTE<br />

LEONOR AMARANTE<br />

hAs gravuras de Rubem Grilo<br />

acompanham as publicações do<br />

<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

há anos. Não poderiamos deixar<br />

de homenageá-lo, quando a<br />

instituição completa vinte anos.<br />

A imagem <strong>da</strong> menina ao lado, é a nossa Marilyn<br />

Monroe, o charmoso ícone <strong>da</strong> Coleção Memo /<br />

Ensaio e Ficção e que já soma mais de cem autores.<br />

Os personagens estampados no editorial desta<br />

edição são igualmente de sua autoria e fazem parte<br />

do singular inventário desse instigante artista, um<br />

dos mais expressivos <strong>da</strong>s artes plásticas brasileiras.<br />

Grilo é um observador que traduz, seleciona e organiza<br />

o cotidiano e os objetos que o circun<strong>da</strong>m<br />

com um processo de interação muito especial.


Suas gravuras dispensam a escrita.<br />

Seja em formatos mínimos ou médios,<br />

ele expõe a questão do olhar para o<br />

universo urbano, uma observação correlaciona<strong>da</strong><br />

ao meio que ele transforma<br />

e complementa.<br />

Seus personagens abrem uma série<br />

de pistas sobre a investigação artístico-política,<br />

na qual ele inclui a automação<br />

do homem alienado pelo trabalho e<br />

em muitos momentos nos faz entrar em<br />

contato com as reali<strong>da</strong>des irreais. Nessa<br />

tentativa de subverter o paradigma<br />

40<br />

<strong>da</strong> relação do homem com os objetos,<br />

Grilo provoca um diálogo inusitado em<br />

que o humor aliado a um traço fino e<br />

elegante marca o tempo.<br />

O humor funciona como deslocamento<br />

nesses traços realizados com<br />

diferentes instrumentos de gravação.<br />

Cenas fantásticas se alternam entre o<br />

verossímel e o imaginado sempre com<br />

uma sutileza ímpar. Grilo parecer se divertir<br />

aos estruturar um mundo particularizado<br />

povoado por personagens únicos<br />

que movimentam seu universo imaginá-


io. Sua crítica é subliminar e delica<strong>da</strong>,<br />

mas deixa transparecer sua paixão.<br />

Autor de um traço excepcional,<br />

Grilo grava tudo de maneira poética,<br />

mesmo quando destila críticas sobre a<br />

socie<strong>da</strong>de. Nascido em Minas Gerais,<br />

mas radicado no Rio, é consagrado em<br />

todo o País.<br />

Autor de xilogravuras minúsculas,<br />

ele consegue um resultado tão expressivo<br />

que transcende sua diminuta<br />

dimensão e se agiganta no conjunto <strong>da</strong><br />

obra. As gags sobre objetos utilitários<br />

vão muito além <strong>da</strong> mera gravura e trabalham<br />

também sobre o fluxo do tempo.<br />

Isso funciona tanto para a gravura, cujo<br />

traço revela a massificação do homem<br />

diante <strong>da</strong> máquina, quanto para objetos<br />

cotidianamente usados em várias épocas,<br />

como a bengala. Alia<strong>da</strong> a uma criativi<strong>da</strong>de<br />

compulsiva, a correta limpeza formal<br />

faz dessas pequenas gravuras preciosi<strong>da</strong>des<br />

na história <strong>da</strong>s artes brasileiras.<br />

Como escreveu o filósofo francês<br />

Gaston Bachelard, para o gravador<br />

a matéria não existe, o que existe é uma<br />

vontade matérica. “O ver<strong>da</strong>deiro gravador<br />

começa sua obra num devaneio<br />

de vontade.”<br />

Leonor Amarante é crítica de arte e editora<br />

executiva <strong>da</strong> Revista Nossa <strong>América</strong>.


42<br />

OLHAR<br />

OUTRO ROSTO<br />

dO BRASIl<br />

PELA OBjETIVA DE<br />

ORLANDO AZEVEDO<br />

<strong>da</strong>s viagens pelos quatro cantos<br />

do Brasil o fotógrafo Orlando<br />

Azevedo compôs um<br />

acervo de milhares de imagens<br />

em cores e em branco<br />

e preto, que toma conta<br />

de seu estúdio em Curitiba. O resultado é um<br />

documento multifacetado, singular e com elegância<br />

formal rara. Por isso nossa dificul<strong>da</strong>de<br />

na escolha. Optamos pelo recorte de um ensaio<br />

documental pouco explorado: personagens<br />

<strong>da</strong> região sul do país onde ucranianos, poloneses,<br />

alemães, longe <strong>da</strong>s grandes metrópoles,<br />

podem conservar seus hábitos e culturas. O<br />

homem e a arquitetura explodem numa simbiose<br />

de transe criativo com o capricho técnico.


50<br />

CÁTEDRA<br />

CIÊnCIA, TECnOlOGIA<br />

E ATIvIdAdE ECOnÔmICA<br />

nA AmÉRICA lATInA<br />

QUARTO MóDULO DA<br />

CÁTEDRA DO MEMORIAL<br />

HERNAN CHAIMOVICH<br />

O<br />

foco do quarto módulo<br />

<strong>da</strong> Cátedra <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> é o papel<br />

<strong>da</strong> ciência e <strong>da</strong> tecnologia<br />

no desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Este<br />

tema é particularmente pertinente hoje, pois<br />

muitos indicadores mostram que na recuperação<br />

econômica, após a presente crise, a posição<br />

relativa dos países será ain<strong>da</strong> mais dependente<br />

de conhecimento que antes <strong>da</strong> débâcle financeira<br />

de 2008. Cabe ao Brasil uma responsabili<strong>da</strong>de<br />

global adicional, por ser o único país continental<br />

que pode construir uma nova civilização<br />

que, basea<strong>da</strong> no conhecimento, produza uma<br />

socie<strong>da</strong>de desenvolvi<strong>da</strong>, justa e sustentável nos


FOTO: reprOduçãO<br />

trópicos (Da civilização do petróleo a uma<br />

nova civilização verde, de Ignacy Sachs).<br />

A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e o Caribe se caracterizam<br />

pela sua profun<strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de<br />

geográfica, demográfica, cultural, linguística,<br />

social e econômica. Numa era em que<br />

o conhecimento é um dos motores centrais,<br />

as relações internacionais neste continente<br />

poderão estar determina<strong>da</strong>s pela<br />

capaci<strong>da</strong>de de incorporação de ciência,<br />

tecnologia e inovação a um desenvolvimento<br />

sustentável com equi<strong>da</strong>de social. O<br />

uso que se faça <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de local de gerar<br />

conhecimento pode determinar, então, as<br />

relações entre pessoas, empresas e países.<br />

Embora o conhecimento parecesse<br />

ser um bem universal, o uso deste<br />

bem depende <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de de criá-lo.<br />

Estudo recente do Conselho InterAcademias<br />

(InterAcademy Council, Inventing<br />

a better future) resume esta situação<br />

quando descreve a urgência <strong>da</strong> promoção<br />

de capaci<strong>da</strong>des globais em ciência e<br />

tecnologia(C&T). Este estudo sintetiza a<br />

necessi<strong>da</strong>de de construir, em ca<strong>da</strong> país,<br />

uma capaci<strong>da</strong>de local de criação que<br />

permita fazer uso do conhecimento uni-<br />

versal de uma forma adequa<strong>da</strong> para as<br />

necessi<strong>da</strong>des locais. Ciência e tecnologia<br />

vêm determinando a aceleração <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças<br />

no mundo. Reconheci<strong>da</strong>mente<br />

uma parte destas mu<strong>da</strong>nças, exemplifica<strong>da</strong>s<br />

pela componente antropogênica<br />

do aquecimento global, é ameaçadora<br />

para o planeta, mas é consensual que o<br />

enfrentamento destas ameaças requer<br />

51


mais conhecimento. A capaci<strong>da</strong>de local<br />

de C&T é essencial para usar e contribuir<br />

para o estoque global de conhecimento<br />

e, para que isto aconteça, investimentos<br />

em C&T, que permitem crescimento<br />

econômico, devem ser considerados. As<br />

estratégias para alcançar uma capaci<strong>da</strong>de<br />

local de C&T são necessariamente diversifica<strong>da</strong>s<br />

pois dependem <strong>da</strong> identificação<br />

nacional de priori<strong>da</strong>des. Contudo, e<br />

especialmente em nosso continente, ensino<br />

superior e treinamento técnico são<br />

necessários em ca<strong>da</strong> nação. Além disso,<br />

ca<strong>da</strong> nação deve desenvolver, atrair e,<br />

sobretudo manter os seus talentos em<br />

C&T. A construção local de capaci<strong>da</strong>des<br />

não pode ser considera<strong>da</strong> uma iniciativa<br />

somente local pois constitui responsabili<strong>da</strong>de<br />

regional compartilha<strong>da</strong>.<br />

O <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />

por meio <strong>da</strong> sua Cátedra, apresentará<br />

no segundo semestre deste ano<br />

uma oportuni<strong>da</strong>de única para alunos e<br />

outros interessados nas relações entre<br />

Ciência, Tecnologia e Ativi<strong>da</strong>de Econômica<br />

na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Um conjunto<br />

de cientistas, diplomatas e empresários,<br />

ocupando posições de destaque<br />

no Brasil, oferecerá suas visões sobre<br />

este tema a partir <strong>da</strong>s suas experiências.<br />

Análises recentes sugerem que a<br />

ciência produzi<strong>da</strong> no Continente não<br />

criou ligações virtuosas com os atores<br />

socialmente relevantes, estando majoritariamente<br />

determina<strong>da</strong> pelos caminhos<br />

seguidos pelos países centrais. Outras<br />

apreciações apontam para o pouco impacto<br />

<strong>da</strong> ciência produzi<strong>da</strong> na <strong>América</strong><br />

<strong>Latina</strong> no contexto mundial. De fato,<br />

quando se compara a produção científica<br />

latino-americana (estima<strong>da</strong> como número<br />

de trabalhos indexados) com algumas<br />

regiões do mundo pode-se constatar que<br />

nos últimos dez anos a AL passou de<br />

uma contribuição de aproxima<strong>da</strong>mente<br />

dois a quatro por cento. No mesmo<br />

período Ásia, que em 1996 tinha uma<br />

contribuição de dezoito, passou a trinta<br />

52<br />

e um por cento de to<strong>da</strong>s as publicações<br />

(www.scimagojr.com). Uma tese explicativa<br />

sugere que esta baixa contribuição<br />

<strong>da</strong> AL ao conhecimento científico<br />

e técnico global pode estar relaciona<strong>da</strong><br />

a pouca importância relativa que os Estados<br />

<strong>da</strong> AL dão a estes investimentos.<br />

Com exceção do Brasil o investimento<br />

em C&T na AL raramente excede meio<br />

ponto percentual do produto nacional<br />

bruto, enquanto nos países desenvolvidos<br />

este investimento alcança dois a quatro<br />

por cento (www.ricyt.org). Somado<br />

ao fato que o PNB <strong>da</strong> região é relativamente<br />

modesto e que os investimentos<br />

em C&T são essencialmente públicos,<br />

pode-se compreender que os países do<br />

continente sejam pouco expressivos na<br />

produção de conhecimento em C&T.<br />

Dentro <strong>da</strong> agu<strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de no<br />

nível de desenvolvimento de C&T&I<br />

na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, o Brasil se destaca,<br />

pois a produção científica continua<br />

a ocupar ca<strong>da</strong> vez mais espaço<br />

no mundo, ao mesmo tempo em que<br />

crescentemente incorporam-se ciência<br />

e tecnologia em segmentos importantes<br />

<strong>da</strong> produção nacional. Estes<br />

movimentos simultâneos sugerem<br />

novos padrões nas relações entre<br />

o Brasil e os países do Continente.<br />

Assim, esta reali<strong>da</strong>de brasileira,<br />

na qual ciência e tecnologia se<br />

inserem crescentemente no tecido<br />

social, gera a necessi<strong>da</strong>de de reexaminar<br />

as relações científicas, culturais<br />

e econômicas com a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Os palestrantes mostrarão um<br />

novo quadro em que as questões levanta<strong>da</strong>s<br />

acima serão abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelos próprios<br />

atores responsáveis por parte significativa<br />

destas mu<strong>da</strong>nças. A Cooperação<br />

Internacional será abor<strong>da</strong><strong>da</strong> considerando<br />

tanto a parceria como a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de.<br />

Diversos palestrantes considerarão as<br />

oportuni<strong>da</strong>des e os <strong>da</strong>safios <strong>da</strong> cooperação<br />

em C&T, a diplomcia <strong>da</strong> Ciência<br />

e os impactos tecnológicos <strong>da</strong> produção


de conhecimento no Brasil. Sem deixar<br />

de se perguntar sobre pesquisa, quem,<br />

quando como, por que e para que, os<br />

expositores devem construir um espectro<br />

de reflexão que é ao mesmo tempo<br />

urgente e pouco explorado com<br />

esta abrangência. Estas contribuições,<br />

bem como um conjunto selecionado<br />

de monografias de alunos matriculados<br />

do Curso deve constituir o cerne de<br />

um livro a ser editado pelo <strong>Memorial</strong>.<br />

A Cátedra, neste semestre, deve<br />

compreender mais duas ativi<strong>da</strong>des com<br />

o mesmo foco, um levantamento cientométrico<br />

que investigará a relação<br />

entre produção científica e economia<br />

nos países latino-americanos e do Caribe<br />

e um Seminário Internacional de<br />

Gestores de Política de Ciência e Tecnologia<br />

<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e do Caribe.<br />

No levantamento pretende-se<br />

obter uma visão semiquantitativa que<br />

permita responder a pergunta seguinte:<br />

existe relação entre a Ciência produzi<strong>da</strong><br />

na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e no Caribe com<br />

as principais ativi<strong>da</strong>des econômicas de<br />

ca<strong>da</strong> um dos países? Dois exemplos<br />

ilustram o tipo de <strong>da</strong>do que se pode obter<br />

com esta investigação. Entre 2007 e<br />

2009, Chile e Brasil apresentavam 1,8 e<br />

0,27 por cento <strong>da</strong> produção total de artigos<br />

científicos (apps.isiknowledge.com).<br />

Usando como palavras-chave ativi<strong>da</strong>des<br />

econômicas no Chile se encontram os<br />

<strong>da</strong>dos seguintes(palavra (percentagem)):<br />

cobre (0,8%), salmão (1,5%). Assim o<br />

Chile produz conhecimento em áreas de<br />

(seu) interesse econômico que estão acima<br />

<strong>da</strong> média de produção do país em to<strong>da</strong>s<br />

as áreas. No Brasil se destaca o setor<br />

<strong>da</strong> cana de açúcar, no qual o país produz<br />

37% de todo o conhecimento científico<br />

do mundo nessa área. Estes <strong>da</strong>dos constituirão<br />

uma base de informação útil<br />

para reflexão de políticas públicas que<br />

possam contribuir à incorporação de<br />

conhecimento à ativi<strong>da</strong>de econômica.<br />

A ativi<strong>da</strong>de final <strong>da</strong> Cátedra deve<br />

ser um encontro entre gestores <strong>da</strong>s<br />

políticas de C&T&I <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />

e do Caribe que sirva para analisar<br />

as possibili<strong>da</strong>des de colaboração<br />

continental à luz dos resultados do<br />

curso e do levantamento proposto.<br />

Hernan Chaimovich é professor de Bioquímica<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo.<br />

53


54<br />

ANÁLISE<br />

OBAmA<br />

E O mUndO QUE CATIvOU<br />

CAPITAL POLÍTICO<br />

PARA AVANÇAR<br />

CARLOS E. LINS DA SILVA<br />

provavelmente ninguém assumiu<br />

nenhum governo cercado por<br />

maior interesse e pensamento positivo<br />

de tantas pessoas no mundo<br />

inteiro quanto Barack Obama nos<br />

EUA em 20 de janeiro de 2009.<br />

Nenhuma análise minimamente realista deixou<br />

de ressaltar desde sua eleição em novembro<br />

de 2008 que era impossível Obama satisfazer<br />

a to<strong>da</strong>s as expectativas dos que nele<br />

votaram, trabalharam, acreditaram, confiaram.<br />

Sua meteórica transformação de mero legislador<br />

estadual e professor de direito em Illinois em ocupante<br />

do mais importante cargo público <strong>da</strong> Terra<br />

ocorreu em meros quatro anos, nos quais ele foi<br />

um obscuro senador, exceto pelos extraordinários


FOTOs: reprOduçãO<br />

dotes de oratória e a impressionante capaci<strong>da</strong>de<br />

de infundir esperança nas pessoas.<br />

Havia, portanto, muito pouca base<br />

factual para antecipar o que ele realmente<br />

faria como presidente dos EUA.<br />

Tradicionalmente, o presidente<br />

recém-empossado ganha <strong>da</strong> opinião pública<br />

nacional um período de graça de<br />

cem dias, durante os quais na<strong>da</strong> ou muito<br />

pouco lhe é cobrado. No caso de Obama,<br />

a magnitude <strong>da</strong> crise econômica que ele<br />

pegou junto com o cargo certamente fez<br />

com que se lhe fosse ofertado um tempo<br />

maior de tolerância coletiva. As pesquisas<br />

na época <strong>da</strong> posse mostravam que<br />

a maioria dos americanos se dispunha a<br />

esperar um ano até começar a exigir resultados<br />

do novo presidente.<br />

Mas aos seis meses, completados<br />

em 20 de julho de 2009, as comparações<br />

com os antecessores começaram a<br />

ser feitas. E, para a surpresa de muitos,<br />

mas certamente não de todos, o que se<br />

constata é que Obama – o mais popular<br />

presidente em início de man<strong>da</strong>to na<br />

história recente dos EUA – completou<br />

seu primeiro meio ano de poder com<br />

taxas de aprovação quase iguais às dos<br />

que deixaram o cargo com as mais baixas<br />

marcas de todos os tempos: George W.<br />

Bush e Richard Nixon e muito inferiores<br />

às de John Kennedy, Dwight Eisenhower<br />

e George H. Bush seis meses a posse.<br />

Não que elas sejam ruins: em<br />

torno de 60%, mas em que<strong>da</strong> indiscutível<br />

e acelera<strong>da</strong> (em 6 de agosto, já havia<br />

pesquisas que mostravam 50%). O mais<br />

grave para o futuro político imediato de<br />

Obama é o fato de que suas marcas caem<br />

especialmente no grupo de eleitores que<br />

se consideram independentes, nem democratas<br />

nem republicanos, faixa que<br />

vem se alargando a ca<strong>da</strong> eleição desde<br />

meados dos anos 1970 e se tornando<br />

ca<strong>da</strong> vez mais decisiva. Dois terços deles<br />

achavam em fins de julho que Obama<br />

tem a tendência de gastar mais dinheiro<br />

público do que deveria e, por isso, não<br />

aprovam seu governo.<br />

Obama assumiu com uma lista<br />

de deveres de casa de extensão sem precedentes.<br />

Durante a campanha, conseguiu<br />

evitar <strong>da</strong>r respostas precisas sobre quais<br />

entre elas seriam suas priori<strong>da</strong>des. Quando<br />

deu mãos à obra, ficou claro quais seriam:<br />

reforma do sistema de saúde, medi<strong>da</strong>s<br />

para enfrentar as mu<strong>da</strong>nças climáticas<br />

e aumento do poder do governo federal<br />

55


O presidente Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva<br />

e Barack Obama.<br />

no sistema de educação do país. Os outros<br />

pontos <strong>da</strong> agen<strong>da</strong> ficariam para depois.<br />

Com o privilégio que nenhum<br />

predecessor exceto Franklin Roosevelt<br />

teve de contar com maiorias folga<strong>da</strong>s nas<br />

duas Casas do Congresso (257 a 178 na<br />

Câmara, 60 a 40 no Senado) e com taxas<br />

de apoio e confiança públicas sem precedentes<br />

(na casa dos 80%), Obama parecia<br />

ter capital político suficiente para avançar<br />

bastante e rapi<strong>da</strong>mente na sua missão.<br />

Mas as coisas começaram a se<br />

complicar. Primeiro, porque o país está<br />

demorando para sair <strong>da</strong> recessão. Ninguém<br />

esperava que ela passasse depressa.<br />

Mas uma coisa é saber que algo desagradável<br />

vai perdurar por muito tempo, outra<br />

é sofrer os efeitos desse prolongamento.<br />

A crise não se aprofundou; ao contrário,<br />

as coisas melhoraram nos primeiros seis<br />

meses, mas não o bastante para que a<br />

maioria o percebesse em sua vi<strong>da</strong> real.<br />

Segundo, Obama tem demonstrado<br />

capaci<strong>da</strong>de muito menor de convencer<br />

grupos pequenos de pessoas – entre elas,<br />

os congressistas – do que as grandes multidões<br />

que ele cativou na campanha. O<br />

presidente parece ter a tendência de deixar<br />

a cargo de terceiros a tarefa de obter os<br />

votos de que precisa para fazer passar seus<br />

projetos em vez de se engajar pessoalmente<br />

nesse esforço, o que parece confirmar<br />

uma impressão ca<strong>da</strong> vez mais generaliza-<br />

56<br />

<strong>da</strong> de que ele é um líder que prefere li<strong>da</strong>r<br />

com as grandes linhas estratégicas do que<br />

se incomo<strong>da</strong>r com a administração dos<br />

detalhes de sua implementação. No campo<br />

<strong>da</strong> política legislativa, em qualquer país<br />

do mundo, nos EUA inclusive, esse traço<br />

de personali<strong>da</strong>de pode ser fatal se os prepostos<br />

do coman<strong>da</strong>nte não forem muito<br />

eficazes. E os de Obama por enquanto<br />

não estão provando ser.<br />

Em terceiro lugar, Obama parece<br />

estar sendo vítima de uma estranha<br />

combinação de leniência por parte dos<br />

meios de comunicação tradicionais e de<br />

extrema intolerância por parte dos adversários<br />

políticos, que se vêm valendo<br />

dos instrumentos mais modernos, como<br />

a internet. O resultado é que começa a se<br />

cristalizar entre muitos eleitores independentes<br />

e centristas a impressão de que<br />

ele é “esquerdista” demais, no sentido de<br />

que defende mais do que a maioria dos<br />

americanos gostaria, a presença do Estado<br />

no cotidiano nacional.<br />

A mais expressiva demonstração<br />

desse sentimento coletivo é a formação<br />

de um bloco de deputados do Partido<br />

Democrata (o de Obama) que tem o<br />

princípio <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de fiscal entre<br />

os seus dogmas e que na prática vem atuando<br />

como oposição ao governo, principalmente<br />

no que se refere ao crucial projeto<br />

<strong>da</strong> reforma do sistema de saúde, que<br />

era – no meio do verão americano – o<br />

tópico número um <strong>da</strong>s preocupações <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de. Este grupo, chamado de “blue dog<br />

Democrats” (referência aos tradicionais “yellow<br />

dog Democrats” do fim do século 19 e começo<br />

do século 20, que era o nome <strong>da</strong>do aos mais<br />

leais integrantes do partido) somam 52 deputados,<br />

número que eventualmente tira de<br />

Obama a maioria <strong>da</strong> Câmara.<br />

E não é só à direita que o presidente<br />

enfrenta resistências. Embora nos<br />

ambientes mais conservadores o rótulo<br />

de “socialista” (e até “comunista”) comece<br />

a colar com força ca<strong>da</strong> vez maior<br />

à sua imagem, nos setores liberais do


país (como se denomina a esquer<strong>da</strong> lá), a<br />

desilusão é grande e o nível de cobrança<br />

do que eles julgavam ser compromissos<br />

assumidos por Obama na campanha se<br />

eleva dramaticamente.<br />

Para esses liberais frustrados,<br />

Obama tem aju<strong>da</strong>do excessivamente as<br />

grandes empresas e os seus executivos<br />

nas medi<strong>da</strong>s de estímulo à economia,<br />

deixa de cumprir as promessas de que<br />

lobistas não teriam acesso a seu governo,<br />

fez concessões excessivas à oposição no<br />

seu plano para li<strong>da</strong>r com a mu<strong>da</strong>nça climática,<br />

não tem nomeado juízes federais<br />

suficientemente jovens e comprometidos<br />

com causas progressistas nas vagas que se<br />

abrem e manteve inúmeros instrumentos<br />

criados na administração de George W.<br />

Bush para combater o terrorismo e considerados<br />

como ameaças aos direitos individuais<br />

(como detenções prolonga<strong>da</strong>s<br />

de suspeitos sem acusação formal, técnicas<br />

brutais de interrogatório, espionagem<br />

de ci<strong>da</strong>dãos americanos).<br />

Em política externa, na qual o<br />

presidente dos EUA desfruta de liber<strong>da</strong>de<br />

de ação muito maior do que nos assuntos<br />

domésticos, já que depende menos do<br />

Congresso para decidir, Obama também<br />

tem tido nos seis primeiros meses um<br />

desempenho que pode ser considerado<br />

muitíssimo aquém <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong>des de<br />

mu<strong>da</strong>nça em relação ao passado recente<br />

que sua campanha prenunciava.<br />

Ele fez três grandes discursos:<br />

em Praga, anteviu um mundo livre de<br />

armas nucleares; no Cairo defendeu brilhantemente<br />

que o Ocidente se abrisse<br />

para o Islã e a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criação<br />

de um Estado palestino como condição<br />

indispensável para solucionar os problemas<br />

seculares do Oriente Médio; em<br />

Accra, chamou os países africanos à responsabili<strong>da</strong>de<br />

com a autori<strong>da</strong>de moral<br />

que só um presidente americano filho<br />

de um ci<strong>da</strong>dão do Quênia poderia ter.<br />

Na prática, no entanto, pouco<br />

aconteceu. É evidente que a dimensão<br />

dos obstáculos é enorme e que Obama,<br />

por menos que alguns acreditem,<br />

é apenas um ser humano. Os discursos<br />

tiveram um efeito positivo imediato: a<br />

imagem dos EUA em outros países melhorou<br />

muito e quase universalmente.<br />

As pesquisas periódicas feitas pelo Instituto<br />

Pew mostram, por exemplo, que<br />

a atitude favorável aos EUA entre julho<br />

de 2008 e julho de 2009 pulou de 42%<br />

para 75% na França, de 31% para 64%<br />

na Alemanha, de 47% para 61% no Brasil,<br />

de 64% para 79% na Nigéria. Mas em<br />

países de maioria muçulmana, como Egito,<br />

Líbano e nos territórios palestinos, ela<br />

permaneceu estável e baixa, mesmo depois<br />

do pronunciamento do Cairo. O que<br />

demonstra que o carisma do presidente<br />

ain<strong>da</strong> não é suficiente para mobilizá-los.<br />

A política externa de Obama é<br />

marcantemente diferente <strong>da</strong> de W. Bush.<br />

Não só em estilo. Ela é pragmática, não<br />

idealista. Não se preocupa em doutrinar<br />

nem impor padrões de comportamento<br />

a outros países. É aberta ao diálogo. Isso<br />

é muito favorável ao entendimento entre<br />

os povos e já resultou em alguns sucessos,<br />

como a libertação de duas jornalistas<br />

americanas presas na Coreia do Norte.<br />

Mas para ser capaz de mu<strong>da</strong>r o<br />

mundo, precisará de mais ação e menos<br />

retórica. Mesmo aqui, na nossa <strong>América</strong>,<br />

faltam fatos, como se viu no episódio<br />

do golpe de Estado em Honduras, que<br />

Obama condenou – como era de esperar<br />

– mas vem tolerando preocupantemente<br />

na prática e no caso dos caminhoneiros<br />

mexicanos, que continuam com restrições<br />

de entra<strong>da</strong> nos EUA, apesar do que<br />

diz em contrário o Nafta.<br />

Carlos E. Lins <strong>da</strong> Silva é editor <strong>da</strong> revista Política<br />

Externa, presidente do Conselho Acadêmico do<br />

Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais<br />

(IEEI) <strong>da</strong> Unesp, membro do Grupo de Análise<br />

de Conjuntura Internacional (Gacint) <strong>da</strong> USP e<br />

ombudsman <strong>da</strong> Folha de S. Paulo.<br />

57


58<br />

MESTRE DO<br />

CINEMA NOVO<br />

CINEMA<br />

nElSOn<br />

pEREIRA dOS SAnTOS<br />

pOR ElE mESmO<br />

Cinco filmes meus foram exibidos<br />

no 4° Festival de Cinema<br />

Latino-Americano de São Paulo<br />

no <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

São filmes de diferentes contextos<br />

políticos e cinematográficos,<br />

feitos entre as déca<strong>da</strong>s de 1950 e 1980. Nesse<br />

período, tanto o regime político quanto a história<br />

do cinema brasileiro mu<strong>da</strong>ram muito. A história<br />

desses filmes e to<strong>da</strong>s essas mu<strong>da</strong>nças foram temas<br />

<strong>da</strong> Aula Magna que proferi durante o Festival.<br />

Rio 40 Graus foi lançado em 1955. Sou paulistano.<br />

Herdei a vocação dos bandeirantes e fui<br />

em busca, em meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950, de coisas<br />

além do Rio Tietê. No caso, para o Rio de


FOTO: divulgaçãO<br />

Vi<strong>da</strong>s Secas, uma <strong>da</strong>s mais importantes produções <strong>da</strong> cinematografia brasileira. 1962<br />

59


Janeiro, a convite do Alex Vianny, um<br />

carioca que tinha trabalhado comigo<br />

em O Saci, de Rodolfo Nanni. Fui para<br />

o Rio passar alguns meses. Fiquei até<br />

hoje. O cinema no Brasil, naquela época,<br />

era financiado só pela iniciativa priva<strong>da</strong>.<br />

Em São Paulo havia a Vera Cruz<br />

(Companhia Cinematografica) e, no Rio,<br />

a Atlânti<strong>da</strong>. O cinema <strong>da</strong>quela época tinha<br />

um público importantíssimo. Os filmes<br />

chegavam ao público e se pagavam.<br />

Era dinheiro do próprio mercado: o distribuidor<br />

adiantava uma parte <strong>da</strong> ren<strong>da</strong><br />

para o produtor, que tinha crédito no<br />

laboratório, inclusive de negativos. Assim<br />

eu fiz Rio 40 Graus. E tivemos sorte:<br />

ain<strong>da</strong> na mixagem, o dono do laboratório<br />

viu, gostou e conseguiu uma distribuição<br />

<strong>da</strong> Columbia. No lançamento,<br />

no Rio, porém, o chefe de polícia achou<br />

o filme “perigoso” e vetou a exibição.<br />

Isso acabou sendo um presente: ganhamos<br />

uma publici<strong>da</strong>de enorme. Por<br />

quatro meses, praticamente todos os<br />

60<br />

dias o filme rendeu primeira página<br />

nos jornais. Naquele ano havia a campanha<br />

eleitoral para presidente, com<br />

Juscelino Kubistchek candi<strong>da</strong>to. E o<br />

chefe de polícia era um opositor, <strong>da</strong><br />

UDN. Então, todos os que apoiavam<br />

Juscelino apoiavam o filme. Apesar<br />

<strong>da</strong> proibição, o governador de Minas<br />

exibiu o filme em Belo Horizonte.<br />

O mesmo aconteceu em Salvador –<br />

quando eu conheci Glauber – e em<br />

Cena de Como Era Gostoso<br />

o meu Francês. 1970<br />

Porto Alegre e Niterói. Isso durou<br />

até o fim do ano, quando foi liberado<br />

e lançado logo no começo de 1956.<br />

O episódio revela que, apesar<br />

de não contar com dinheiro público,<br />

havia, sim, relação com o Estado: a<br />

<strong>da</strong> censura. Além de determinar a faixa<br />

etária, dizia se o filme era de “boa<br />

quali<strong>da</strong>de” ou não. O que significava<br />

boa quali<strong>da</strong>de? Não se explicava.<br />

Vi<strong>da</strong>s Secas foi lançado em<br />

1963, também sem apoio do Estado.<br />

Havia alguns loucos, como o dono


FOTOs: divulgaçãO<br />

do Banco Nacional de Minas Gerais,<br />

José Luís Magalhães de Lins, que financiava<br />

cinema por meio de crédito<br />

pessoal; funcionava assim: eu assinava<br />

um “papagaio” de milhões do<br />

produtor e o produtor assinava um<br />

“papagaio” no meu nome. Eu não<br />

tinha nem um Fusca, como é que<br />

podia <strong>da</strong>r lastro financeiro a uma<br />

dívi<strong>da</strong> assim? Quem descobriu esse<br />

caminho, e deu certo, foi o brilhante<br />

produtor Luiz Carlos Barreto. Para o<br />

Vi<strong>da</strong>s Secas tive também a associação<br />

de um produtor consoli<strong>da</strong>do, Herbert<br />

Richards. Era começo dos anos<br />

1960, e o Brasil passava por uma tremen<strong>da</strong><br />

confusão política, com João<br />

Goulart presidente parlamentarista.<br />

Continuava havendo propostas, muitas<br />

para um esquema estatal de cinema,<br />

mas tanto eu, com Vi<strong>da</strong>s Secas,<br />

como Glauber Rocha, com Deus e<br />

o Diabo na Terra do Sol, não tivemos<br />

absolutamente nenhum investimen-<br />

to públicos. Nem pensávamos nisso.<br />

Este filme também tem um fato<br />

curioso: eu tentei fazer pela primeira<br />

vez no fim <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1950, mas<br />

choveu no sertão. Inicialmente, queria<br />

fazer um filme sobre os flagelados<br />

<strong>da</strong> seca com roteiro próprio. Mas<br />

meu livro de consulta era o Vi<strong>da</strong>s<br />

Secas. Lá pelas tantas, me dei conta<br />

de que o filme já estava “escrito”<br />

por Graciliano Ramos. Tive, também,<br />

Memórias do Cárcere. 1984<br />

muito contato com o Ricardo Ramos,<br />

filho do Graciliano, que me prestou<br />

grande aju<strong>da</strong>. Ele me ajudou muito<br />

a esclarecer alguns pontos de Vi<strong>da</strong>s<br />

Secas, me contou como o pai dele raciocinava<br />

para criar um personagem.<br />

Por exemplo, a Sinhá Vitória, combinação<br />

de índia e negra, e Fabiano,<br />

branco, olhos e cabelos claros. Graciliano<br />

implicava com aquela história<br />

de raça pura, em voga nos anos 30.<br />

Então fez a Sinhá Vitória inteligente<br />

e o Fabiano burrão. Na primei-<br />

61


a versão de Vi<strong>da</strong>s Secas eu ia fazer<br />

tudo errado. Ain<strong>da</strong> bem que choveu.<br />

El Justicero, de 1967, foi de certa<br />

maneira financiado pelo Estado.<br />

Tudo começou quando o diretor e<br />

crítico de cinema Flávio Tambellini<br />

conseguiu pôr na Lei de Remessas de<br />

Lucros um artigo em favor do cinema.<br />

A lei funcionava assim: to<strong>da</strong> empresa<br />

importadora de filmes podia exportar<br />

70% <strong>da</strong> ren<strong>da</strong> desses filmes ao<br />

seu país de origem. Sobre esses 70%<br />

havia um imposto a pagar. Pois bem:<br />

25% desse imposto, posteriormente<br />

50%, até chegar a 75%, poderia ser<br />

aplicado, pela empresa distribuidora,<br />

na produção de filmes, em associação<br />

com produtores brasileiros. El Justicero<br />

foi feito com dinheiro dessa lei,<br />

em associação com a Condor Filmes.<br />

Fazendo um parênteses, falando<br />

<strong>da</strong> Embrafilme e voltando ao assunto<br />

<strong>da</strong> interferência do Estado no<br />

cinema, eu sempre faço a seguinte<br />

pergunta: quem nasceu primeiro? O<br />

Cinema Novo ou o Instituto Nacional<br />

de Cinema (INC)? Claro que foi o<br />

Cinema Novo, que apareceu espontaneamente,<br />

com sua liber<strong>da</strong>de e criativi<strong>da</strong>de.<br />

Só que, em plena ditadura,<br />

os filmes do Cinema Novo não correspondiam<br />

à publici<strong>da</strong>de oficial, que<br />

dizia que por aqui estava tudo bem,<br />

somos um país rico. O Cinema Novo<br />

contava história de gente triste, miserável.<br />

Daí inventaram o INC, pois<br />

a constatação foi a de que, apesar de<br />

a censura ser severa naquela época,<br />

não tinha controle sobre a criação.<br />

O filme podia ser proibido só<br />

depois de pronto e, mais dia, menos<br />

dia, seria liberado, exibido e conhecido.<br />

Aí surgiu o INC, para ter acesso<br />

ao filme ain<strong>da</strong> no roteiro. Além<br />

disso, a Embrafilme retirou o poder<br />

que as distribuidoras estrangeiras tinham<br />

de produzir filmes aqui. Tudo<br />

tinha que passar pelo crivo do Esta-<br />

62<br />

do. Assim, essa primeira Embrafilme<br />

começou a comprar e a pagar mais<br />

por filmes coloridos, que mostrassem<br />

as belezas do Brasil. Eles compravam<br />

filmes do Jean Manzon, de propagan<strong>da</strong>,<br />

para tentar reduzir o impacto<br />

do Cinema Novo. El Justicero é desse<br />

período, quando já existia o INC.<br />

Como Era Gostoso o meu Francês,<br />

concluído em 1968, segue o caminho<br />

de El Justicero. Também foi financiado<br />

pela Condor, mas sob fiscalização<br />

do INC. Ain<strong>da</strong> assim, tive liber<strong>da</strong>de<br />

de realização. Não houve interferência<br />

para mu<strong>da</strong>r roteiro, ou vestir os<br />

índios. O filme foi feito, o INC engoliu.<br />

Mas a Censura não, e proibiu.<br />

Ele foi, porém, apresentado na França<br />

e no Festival de Berlim, em 1968.<br />

Um ano ou dois depois, mudou<br />

o chefe <strong>da</strong> Censura. Eu estava<br />

em Paris, quando recebi um telefonema<br />

do Luiz Carlos Barreto:<br />

- Você tem de ir a Brasília. As freiras<br />

gostaram do seu filme (risos).<br />

É que o ministro <strong>da</strong> Cultura, o<br />

Jarbas Passarinho, queria liberar o filme,<br />

por tê-lo achado histórico. Mandou<br />

o filme para a CNBB, para ouvir<br />

a opinião <strong>da</strong> ala católica. E as freiras<br />

que estavam lá disseram que a única<br />

coisa imoral do filme era quando<br />

um francês matava o outro. Mesmo<br />

assim, enfrentei um censor bravo demais<br />

e tive de cortar várias partes do<br />

filme, que ficou completamente sem<br />

nexo. Foi lançado assim mesmo. No<br />

dia do lançamento, eu tive uma decepção.<br />

Ouvi o seguinte comentário:<br />

- O filme é bom, mas o índio mata o<br />

mocinho... (risos). Pensei: “Que loucura!<br />

O cara tem DNA de índio, mas<br />

está com o francês!” Isso porque, no<br />

cinema americano, o herói é sempre<br />

aquele que mata o índio. No meu filme,<br />

o francês é devorado pelo índio.<br />

Eu gosto muito de Memórias do<br />

Cárcere, produzido integralmente pela


FOTO: divulgaçãO<br />

Embrafilme. Mas é bom lembrar que<br />

existiram duas Embrafilmes, aquela<br />

depois do Cinema Novo, que divulgava<br />

só coisas boas, e outra, que começou<br />

no governo Geisel, que instituiu,<br />

junto com seus ministros Ney<br />

Braga e Reis Velloso, uma comissão<br />

para reestu<strong>da</strong>r o cinema nacional.<br />

Eu fiz parte desta comissão. Foi <strong>da</strong>í<br />

que nasceu a segun<strong>da</strong> Embrafilme,<br />

uma empresa de mercado que, como<br />

empresa, seria produtora ou coprodutora,<br />

distribuidora, exibidora e até<br />

importadora de filmes. A execução<br />

<strong>da</strong> lei, porém, foi combati<strong>da</strong>. Para<br />

torná-la distribuidora foi uma batalha<br />

enorme. Havia grande resistência dos<br />

distribuidores já existentes. Já a exibidora<br />

não aconteceu, e a importadora,<br />

muito menos. E assim, em vez de<br />

empresa moderna, a segun<strong>da</strong> Embrafilme<br />

virou uma repartição pública.<br />

De todo modo, deu um impulso<br />

ao cinema, auxilia<strong>da</strong> por uma forte<br />

legislação nacionalista, que obrigava<br />

to<strong>da</strong> e qualquer sala de cinema<br />

do Brasil a exibir filmes brasileiros<br />

Rio 40 graus. 1957<br />

no mínimo 180 dias por ano. Isso é<br />

exagero e nunca ninguém cumpriu.<br />

Daí que surgiram os filmes <strong>da</strong> Boca<br />

do Lixo, produzidos com baixo orçamento<br />

e “liber<strong>da</strong>de temática” (risos).<br />

Outra coisa que a lei criou foi a<br />

obrigatorie<strong>da</strong>de de exibição de curtas<br />

brasileiros – que teriam direito a 5%<br />

<strong>da</strong> ren<strong>da</strong> – acompanhando todo filme<br />

estrangeiro. A reação foi violenta.<br />

Aí, a segun<strong>da</strong> fase <strong>da</strong> Embrafilme,<br />

profissional, acabou logo em segui<strong>da</strong>,<br />

pois, quando acabou o governo Geisel,<br />

acabou a Embrafilme nestes moldes. Assumindo<br />

Figueiredo, ele só perguntava<br />

para Delfim Netto, seu ministro: - Quando<br />

é que você vai fechar aquela m...?<br />

Voltando a Memórias do Cárcere, tive<br />

a sorte de lançá-lo em 1984, ano <strong>da</strong>s Diretas<br />

Já! Um filme político, que saiu num<br />

ano político, com um milhão de pessoas na<br />

rua. Apesar de ser um filme de três horas,<br />

teve boa bilheteria e foi até para Cannes.<br />

Nelson Pereira dos Santos é cineasta, nome<br />

importante do cinema novo brasileiro.<br />

Colaboração de Tânia Rabello.<br />

63


AGENDA<br />

Fotografia, Fragmento.<br />

Naiah Mendonça, 2003<br />

A exposição que esteve em cartaz<br />

na Galeria Marta Traba foi sucesso de<br />

público. A proposta de Linha Líqui<strong>da</strong><br />

foi envolver o público em um movimento<br />

fluído e dinâmico no percurso <strong>da</strong><br />

exposição. Com o patrocínio <strong>da</strong> Sabesp,<br />

reuniu 33 artistas de diferentes países<br />

latino-americanos, como Chile, Argenti-<br />

AnISTIA pARA TOdOS<br />

O <strong>Memorial</strong> é referência para os<br />

bolivianos, diz o cônsul geral <strong>da</strong> Bolívia<br />

em São Paulo, Jaime Valdívia. Isto por<br />

conta <strong>da</strong> Festa <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de Boliviana,<br />

realiza<strong>da</strong> na Praça Cívica, já em segun<strong>da</strong><br />

edição. Daí a escolha <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção para<br />

abrigar o Programa de Documentação<br />

do Ci<strong>da</strong>dão Boliviano no Brasil. O objetivo<br />

é emitir documentos de inscrição<br />

consular e regularizar a vi<strong>da</strong> de ci<strong>da</strong>dãos<br />

que chegaram antes de fevereiro deste<br />

ano. O programa ganhou o estímulo <strong>da</strong><br />

lei 11.961, promulga<strong>da</strong> em julho deste ano<br />

pelo presidente Lula, que anistia os estrangeiros<br />

em situação irregular no Brasil.<br />

64<br />

lInhA lÍQUIdA<br />

na, Bolívia, Equador e Brasil, com obras<br />

e diversas ativi<strong>da</strong>des paralelas. Durante<br />

o período de exibição, o espaço foi<br />

permanentemente reconfigurado, os<br />

artistas finalizaram trabalhos no local<br />

e também trabalharam no processo de<br />

implementação <strong>da</strong>s etapas. Foram vários<br />

workshops, palestras e performances.<br />

hISTóRIA IlUSTRAdA<br />

Fica em cartaz até outubro uma exposição<br />

que pretende familiarizar<br />

os estu<strong>da</strong>ntes e interessados em geral<br />

com a história <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />

Quem eluci<strong>da</strong> a trajetória dessas<br />

terras e povos é a arte popular que<br />

o Pavilhão <strong>da</strong> Criativi<strong>da</strong>de guar<strong>da</strong> e<br />

preserva. Por meio de peças utilitárias,<br />

indumentárias, adornos e outras<br />

mais, o visitante percorrerá caminhos<br />

passados e presentes do Continente,<br />

a começar pela Argentina, prosseguindo<br />

por Bolívia, Brasil, Colômbia,<br />

Equador e México, além de Paraguai,<br />

Peru, Uruguai e Venezuela.


LIVROS<br />

CRImE BÁRBARO QUE<br />

ESCAndAlIZOU A CIdAdE<br />

O historiador Boris Fausto tomou<br />

como objeto de estudo um crime bárbaro,<br />

ocorrido na ci<strong>da</strong>de de São Paulo em<br />

1938, na manhã <strong>da</strong> quarta-feira de cinzas.<br />

Naquele dia, o chinês Ho-Fong e sua esposa<br />

Maria Akiau, donos do estabelecimento,<br />

e dois funcionários que dormiam<br />

no local - o lituano José Kulikevicius e o<br />

brasileiro Severino Lindolfo Rocha - foram<br />

brutalmente assassinados a porreta<strong>da</strong>s<br />

e por estrangulamento. Um outro<br />

funcionário, ao chegar para o trabalho,<br />

encontrou a cena de horror, com os corpos<br />

e muito sangue espalhados pelo restaurante.<br />

A arma usa<strong>da</strong> para estraçalhar<br />

os crânios <strong>da</strong>s vítimas foi uma mão de<br />

pilão, com cerca de setenta centímetros,<br />

e aparentemente não havia razão para a<br />

série de mortes, embora objetos de valor<br />

tenham sido furtados.<br />

O crime escan<strong>da</strong>lizou a ci<strong>da</strong>de, mobilizou<br />

a opinião pública e foi um prato<br />

cheio para as especulações <strong>da</strong> imprensa.<br />

O restaurante ficava no centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

e gozava de certa populari<strong>da</strong>de. Havia o<br />

preconceito racial pouco digerido desde<br />

a abolição <strong>da</strong> escravatura, muito recente<br />

historicamente, e a rejeição aos imigrantes<br />

que vieram ao país em busca de trabalho,<br />

justamente para substituir a mão-de-obra<br />

que antes era ocupa<strong>da</strong> pelos escravos.<br />

As investigações, reforça<strong>da</strong>s pelo<br />

depoimento do garçom e funcionário<br />

mais antigo <strong>da</strong> casa - Manoel Custódio<br />

Pinto -, levaram a polícia a suspeitar do<br />

jovem negro Arias de Oliveira, ex-funcionário<br />

do estabelecimento e desempregado<br />

na ocasião. Negro e de origem muito<br />

pobre, Oliveira tinha acesso ao restaurante<br />

e estava para voltar a trabalhar com<br />

Ho-Fong. No início, ele negou o crime,<br />

LIVROS<br />

mas chegou a confessá-lo espontaneamente<br />

em segui<strong>da</strong>, sem passar por tortura,<br />

recurso muito comum nos interrogatórios<br />

policiais <strong>da</strong>quele período. Para as<br />

autori<strong>da</strong>des, o crime estava resolvido. No<br />

caso <strong>da</strong> opinião pública, mais um tema<br />

para discussões sensacionalistas.<br />

O fato, no entanto, teve uma reviravolta<br />

que despertou o interesse de Boris<br />

Fausto, por suas características peculiares.<br />

Depois de quatro anos na prisão, o réu<br />

foi absolvido por júri popular, em decisão<br />

aperta<strong>da</strong>, e o caso foi arquivado, sem conclusão.<br />

Defendido pelo advogado Paulo<br />

Lauro, que na déca<strong>da</strong> seguinte se tornaria<br />

o primeiro prefeito negro de São Paulo<br />

(1947-1948), a acusação foi abor<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

como perseguição racial, com apelação à<br />

situação de pobreza e humil<strong>da</strong>de do suposto<br />

criminoso. Com tais argumentos,<br />

Lauro conseguiu sensibilizar a opinião pública<br />

em favor de seu cliente, deslocando<br />

o crime para uma questão social.<br />

Boris Fausto disseca o episódio,<br />

apoiando-se nos conceitos <strong>da</strong> micro-história<br />

- que busca revelar os fatos históricos<br />

a partir do cotidiano, dos costumes,<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de personagens menores, em<br />

oposição aos grandes panoramas - para<br />

revelar as sutis ligações entre o crime<br />

com o ambiente carnavalesco e a euforia<br />

do futebol, centra<strong>da</strong> na figura do jogador<br />

Leôni<strong>da</strong>s, herói negro <strong>da</strong> seleção brasileira<br />

e goleador. Para o historiador, o fato<br />

aparentemente banal <strong>da</strong> chacina, que deixou<br />

muitas perguntas no ar, pode representar<br />

um importante vetor de questões<br />

ideológicas, filosóficas e culturais que<br />

estão em conflito num determinado momento<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Reynaldo Damazio, sociólogo e jornalista, autor de<br />

Horas perplexas (Editora 34), entre outros.<br />

65


66<br />

POESIA<br />

EdUARdO<br />

mIlÁn<br />

(AGUA) al fin es la canción<br />

del fin<br />

canto de ir: decir<br />

canción es ir em arcos<br />

arco es ir al aire adónde<br />

vuelve donde a<br />

arco<br />

adónde vuelve<br />

a donde aire al ir es arco<br />

limite: aire suelto<br />

devuelto en corte<br />

al agua en arcos<br />

o en paréntesis<br />

al agua en rama<br />

líneas de água<br />

(se cimbre como rama)<br />

tenso<br />

címbrase:<br />

gotas de rama<br />

picos<br />

garras<br />

hojas<br />

tenso<br />

açude extenso<br />

va hacia<br />

(aspira)<br />

a donde escancia<br />

vacía<br />

(canción fuera<br />

áspero: água<br />

vuélvese adentro)<br />

Eduardo Milán é poeta e crítico uruguaio, publicou os seguintes livros de poesia: Secos y<br />

Mojados (1974), Nervadura (1985), Cuatro poemas (1990), Errar (1991); ensaio:<br />

Una Cierta Mira<strong>da</strong> (1989). Atualmente é crítico literário independente e membro <strong>da</strong> revista<br />

mexicana Vuelta.

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