Edição 39 - Memorial da América Latina

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15.04.2013 Views

mudanças em qualquer aspecto de uma realidade organizada, porém instável e sujeita a evolução; este sistema contou com notáveis intervenções de homens e mulheres, políticos e intelectuais que desempenharam o papel de pares antagônicos em diferentes momentos. Juan Lavalle (1797-1841) unitário, mandou fuzilar Manuel Dorrego depois de derrubá-lo; por sua vez, foi inimigo cabal de Juan Manuel de Rosas (1793-1877), que em 1835 consegue fazer com que a Legislatura o eleja Governador com a soma do poder público, mas que tinha sido vencido pelo general Urquiza na batalha de Caseros. Rosas, exilado e morto anos depois longe de sua pátria, teve de esperar a mitigação do ódio para regressar ao país muito tempo mais tarde. O Pai da Pátria, José de San Martín, também teve de partir para o exílio para “não derramar sangue de irmãos” e ser repatriado em outros tempos para ocupar o lugar que lhe corresponde como Libertador de América. E que podemos dizer sobre a fúria exercida sobre o corpo mumificado de Eva Perón, que passou por um itinerário digno de um romance para retornar ao país depois de muitos desvelos e desocultamentos. Crises políticas associadas a revoluções, com personagens antagônicos agindo com fúria com as pessoas ou com os corpos ou com a memória. Em 1880, já constituídos como Nação Argentina com Carta Magna e reconhecimento internacional, começa uma enorme produção de escritores, intelectuais e cientistas que mudarão a agenda dos temas e modas que atravessam os discursos até 1910, ano do Centenário, que depois analisaremos. No grupo de seletos positivistas estavam José Ramos Mejía e José Ingenieros. E entre os modernistas, influenciados pela poesia do nicaraguense Rubén Darío, potencializava-se a pergunta referente à identidade nacional. Esta questão com- põe outro forte par de opostos antagônicos que estão presentes na história: identidade nacional versus influências europeizantes, como as apoiadas por Domingo Faustino Sarmiento. No entanto, das crises saíram bons projetos que se materializaram muito antes que no resto da América. A Lei da Educação Comum, ensino primário gratuito, gradual e obrigatório para crianças de 6 a 14 anos, foi concebida em 1884 para integrar os imigrantes e, embora tenha sofrido a resistência da educação religiosa, representou uma das bases do nosso capital de progresso. Em 1918 foi realizada a Reforma Universitária promovida por alunos da Universidade de Córdoba, que dirimia o novo papel da Igreja na educação, a renovação dos programas de estudo e mudanças no governo das faculdades, com maior participação dos alunos na tomada de decisões. A Toda Orquestra II, obra do artista plástico argentino Carlos Gallardo. 57

A imigração revolucionou o campo do trabalho, introduzindo as palavras de ordem de salário digno nos sindicatos, e deu origem a algumas das mais sangrentas repressões, como a da Semana Trágica, na qual morreram muitos trabalhadores dos Talleres Metalúrgicos Vasena. A de 1921, quando os operários de Santa Cruz protestavam pelas condições de trabalho e as demissões da indústria da lã, terminou com mil e quinhentos trabalhadores assassinados, no episódio que ficou conhecido como Patagônia Trágica, imortalizada pela pena do escritor Osvaldo Bayer e base do filme dirigido por Héctor Olivera em 1974. Esta situação de morte, supressão, invisibilidade, que afetou desde os povos originários até a entrega para o sacrifício de mulheres, crianças, trabalhadores e estudantes, apoiada por grupos que pretendiam moldar a república às suas ideias, avassalando o poder político e usando a força das armas e os militares, constata-se nos primeiros cem anos e repete-se a seguir. Fuzilamentos, desaparecimentos, ódios e perseguições várias desgarram as entranhas argentinas do século XX desde aqueles acontecimentos até os presos desaparecidos dos anos 70 e primeiros anos dos 80. Assim como golpes de estado, revoluções que derrocam governos, bombardeios de civis e proscrição de peronistas, ainda há gente nas ruas manifestando sua posição com cartazes que explicitam suas ideias. Isto também nos distingue: continuamos mobilizados e usando as ruas como bandeira de várias palavras de ordem. Há algum tempo, um dos consensos que capitalizamos dessas penas, tal como afirmam lúcidos intelectuais como Beatriz Sarlo e Horacio González, é o seguinte: não há consenso para um regresso das forças armadas ao poder, há uma opção pelo sistema democrático representativo, embora sejam conheci- 58 das suas fissuras e más práticas. O percurso pelas nossas crises, e sobretudo o efeito da última, de 2001, nos fazem lembrar que queremos que ocorram dentro do sistema democrático, com os mecanismos próprios do sistema e com o cumprimento da lei. Mas vamos incluir uma nova palavra nessa descrição breve e sucinta que estamos tentando fazer. Vamos falar de celebrações, pois sem dúvida um Bicentenário traz consigo a ideia de festa, os faustos de uma data importante para a Nação. O Teatro Colón viveu sua reabertura (ver página 18). A cidade também montou, perto do teatro na Plaza Lavalle, uma instalação de Carlos Gallardo, para homenagear o artista falecido em 2008. A obra, denominada A Toda Orquesta II, é uma orquestra virtual, simbólica, com 36 atris metálicos em cujas bandejas há retângulos de diferentes tipos de gramas em vez de partituras. Mas não faltaram no país problemas no tocante a quais seriam os personagens da história. Em um ato escolar, uma professora primária de uma cidade do interior considerou personagens importantes do Bicentenário tanto Mirtha Legrand (atriz de televisão), como Leopoldo Fortunato Galtieri, um dos ditadores que declarou a Guerra das Malvinas e levou as forças armadas à sua pior derrota, junto com milhares de inocentes. Das celebrações em todo o país, as que passarão à história foram as que ocorreram nos locais históricos de Buenos Aires: o desfile temático de 25 de maio, um espetáculo sobre a Argentina, com os povos originários unidos por uma orquestra multiétnica, a representação da imigração, o tango, o folclore e outros símbolos da identidade argentina. Pilar Atilio é argentina, historiadora, professora e pesquisadora de arte.

A imigração revolucionou o campo<br />

do trabalho, introduzindo as palavras<br />

de ordem de salário digno nos<br />

sindicatos, e deu origem a algumas <strong>da</strong>s<br />

mais sangrentas repressões, como a<br />

<strong>da</strong> Semana Trágica, na qual morreram<br />

muitos trabalhadores dos Talleres Metalúrgicos<br />

Vasena. A de 1921, quando<br />

os operários de Santa Cruz protestavam<br />

pelas condições de trabalho e as demissões<br />

<strong>da</strong> indústria <strong>da</strong> lã, terminou com<br />

mil e quinhentos trabalhadores assassinados,<br />

no episódio que ficou conhecido<br />

como Patagônia Trágica, imortaliza<strong>da</strong><br />

pela pena do escritor Osvaldo Bayer e<br />

base do filme dirigido por Héctor Olivera<br />

em 1974. Esta situação de morte,<br />

supressão, invisibili<strong>da</strong>de, que afetou<br />

desde os povos originários até a entrega<br />

para o sacrifício de mulheres, crianças,<br />

trabalhadores e estu<strong>da</strong>ntes, apoia<strong>da</strong><br />

por grupos que pretendiam mol<strong>da</strong>r a<br />

república às suas ideias, avassalando o<br />

poder político e usando a força <strong>da</strong>s armas<br />

e os militares, constata-se nos primeiros<br />

cem anos e repete-se a seguir.<br />

Fuzilamentos, desaparecimentos, ódios<br />

e perseguições várias desgarram as entranhas<br />

argentinas do século XX desde<br />

aqueles acontecimentos até os presos<br />

desaparecidos dos anos 70 e primeiros<br />

anos dos 80. Assim como golpes de estado,<br />

revoluções que derrocam governos,<br />

bombardeios de civis e proscrição<br />

de peronistas, ain<strong>da</strong> há gente nas ruas<br />

manifestando sua posição com cartazes<br />

que explicitam suas ideias. Isto também<br />

nos distingue: continuamos mobilizados<br />

e usando as ruas como bandeira de<br />

várias palavras de ordem.<br />

Há algum tempo, um dos consensos<br />

que capitalizamos dessas penas,<br />

tal como afirmam lúcidos intelectuais<br />

como Beatriz Sarlo e Horacio González,<br />

é o seguinte: não há consenso para um<br />

regresso <strong>da</strong>s forças arma<strong>da</strong>s ao poder,<br />

há uma opção pelo sistema democrático<br />

representativo, embora sejam conheci-<br />

58<br />

<strong>da</strong>s suas fissuras e más práticas. O percurso<br />

pelas nossas crises, e sobretudo<br />

o efeito <strong>da</strong> última, de 2001, nos fazem<br />

lembrar que queremos que ocorram<br />

dentro do sistema democrático, com os<br />

mecanismos próprios do sistema e com<br />

o cumprimento <strong>da</strong> lei.<br />

Mas vamos incluir uma nova palavra<br />

nessa descrição breve e sucinta<br />

que estamos tentando fazer. Vamos falar<br />

de celebrações, pois sem dúvi<strong>da</strong> um<br />

Bicentenário traz consigo a ideia de festa,<br />

os faustos de uma <strong>da</strong>ta importante<br />

para a Nação.<br />

O Teatro Colón viveu sua reabertura<br />

(ver página 18). A ci<strong>da</strong>de também<br />

montou, perto do teatro na Plaza Lavalle,<br />

uma instalação de Carlos Gallardo,<br />

para homenagear o artista falecido<br />

em 2008. A obra, denomina<strong>da</strong> A To<strong>da</strong><br />

Orquesta II, é uma orquestra virtual, simbólica,<br />

com 36 atris metálicos em cujas<br />

bandejas há retângulos de diferentes<br />

tipos de gramas em vez de partituras.<br />

Mas não faltaram no país problemas no<br />

tocante a quais seriam os personagens<br />

<strong>da</strong> história. Em um ato escolar, uma<br />

professora primária de uma ci<strong>da</strong>de do<br />

interior considerou personagens importantes<br />

do Bicentenário tanto Mirtha Legrand<br />

(atriz de televisão), como Leopoldo<br />

Fortunato Galtieri, um dos ditadores<br />

que declarou a Guerra <strong>da</strong>s Malvinas e<br />

levou as forças arma<strong>da</strong>s à sua pior derrota,<br />

junto com milhares de inocentes.<br />

Das celebrações em todo o país, as que<br />

passarão à história foram as que ocorreram<br />

nos locais históricos de Buenos<br />

Aires: o desfile temático de 25 de maio,<br />

um espetáculo sobre a Argentina, com<br />

os povos originários unidos por uma orquestra<br />

multiétnica, a representação <strong>da</strong><br />

imigração, o tango, o folclore e outros<br />

símbolos <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de argentina.<br />

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