Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Nossa<br />
COLOMBO<br />
E O FUTEBOL<br />
Revista do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> N°<strong>39</strong> - Ano 2010 | 4º trimestre - R$8,00<br />
Presidente<br />
<strong>da</strong> Colômbia<br />
visita o<br />
<strong>Memorial</strong><br />
TEATRO<br />
COLÓN<br />
LATINOS NA<br />
29 a BIENAL<br />
Juan Manuel Santos<br />
FESTIVAL DE<br />
CINEMA<br />
PLACAS<br />
TECTÔNICAS<br />
JOSÉ ROBERTO TORERO • CELSO DE SOUZA MACHADO • PAULO RYDLEWSKI • FRANCISCO ALAMBERT<br />
ANA MARIA CICCACIO • UMBERTO G. CORDANI • MATILDE MARÍN • PAULO ROBERTO FELDMANN • PILAR ATILIO
Nossa Revista do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> N°<strong>39</strong> - Ano 2010 | 4º trimestre - R$8,00<br />
GOVERNADOR<br />
ALBERTO GOLDMAN<br />
SECRETÁRIO DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS<br />
ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO<br />
FUNDAÇÃO MEMORIAL<br />
DA AMÉRICA LATINA<br />
CONSELHO CURADOR<br />
PRESIDENTE<br />
ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO<br />
SECRETÁRIO DA CULTURA<br />
ANDREA MATARAZZO<br />
SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO<br />
LUCIANO SANTOS TAVARES DE ALMEIDA<br />
REITOR DA USP<br />
JOãO GRANDINO RODAS<br />
REITOR DA UNICAMP<br />
FERNANDO FERREIRA COSTA<br />
REITOR DA UNESP<br />
HERMAN JACOBUS CORNELIS VOORWALD<br />
PRESIDENTE DA FAPESP<br />
CELSO LAFER<br />
JOSÉ VICENTE<br />
JORGE CALDEIRA<br />
DIRETORIA EXECUTIVA<br />
DIRETOR PRESIDENTE<br />
FERNANDO LEÇA<br />
DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO<br />
DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA<br />
ADOLPHO JOSÉ MELFI<br />
DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS<br />
FERNANDO CALVOZO<br />
DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO<br />
SÉRGIO JACOMINI<br />
CHEFE DE GABINETE<br />
JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO<br />
DIRETOR PRESIDENTE<br />
HUBERT ALQUÉRES<br />
DIRETOR INDUSTRIAL<br />
TEIJI TOMIOKA<br />
DIRETOR FINANCEIRO<br />
FLÁVIO CAPELLO<br />
DIRETOR DE GESTãO DE NEGÓCIOS<br />
LUCIA MARIA DAL MEDICO<br />
REVISTA NOSSA AMÉRICA<br />
DIRETOR<br />
FERNANDO LEÇA<br />
EDITORA EXECUTIVA / DIREÇãO DE ARTE<br />
LEONOR AMARANTE<br />
COLABORADORA DE EDIÇãO<br />
ANA CANDIDA VESPUCCI<br />
ASSISTENTE DE REDAÇãO<br />
MÁRCIA FERRAZ<br />
TRADUÇãO<br />
CLAUDIA SCHILLING<br />
PRODUÇãO<br />
HENRIQUE DE ARAUJO<br />
DIAGRAMAÇãO E ARTE<br />
EVERTON SANTANA<br />
PAULO JAMES WOODWARD<br />
REVISãO - ESTAGIÁRIO<br />
ADRIANO TAKESHI MIYASATO<br />
EDITORIAL 04<br />
Fernando Leça<br />
ALIANÇA 06<br />
Daniel Pereira<br />
ALIANÇA 09<br />
Jorge Salmón Jordán<br />
ESPORTE 11<br />
José R. Torero<br />
DEBATE 14<br />
Celso de S. Machado<br />
CULTURA 18<br />
Paulo Rydlewski<br />
ARTE 24<br />
Francisco Alambert<br />
CINEMA 29<br />
Ana C. Vespucci<br />
COLABORARAM NESTE NÚMERO<br />
Ana Maria Ciccacio, Celso de Souza Machado, Daniel Pereira, Franscisco Alambert,<br />
Jorge Salmón Jordán, José Roberto Torero, Matilde Marin, Paulo Roberto Feldmann,<br />
Paulo Rydlewski, Pillar Atilio, Umberto G. Cor<strong>da</strong>ni e Wingston González.<br />
CONSELHO EDITORIAL<br />
Aníbal Quijano, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Galeano,<br />
Luis Alberto Romero, Luis Felipe Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo,<br />
Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano,<br />
Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes.<br />
NOSSA AMÉRICA é uma publicação trimestral <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
Re<strong>da</strong>ção: Aveni<strong>da</strong> Auro Soares de Moura Andrade, 664 CEP: 01156-001. São Paulo, Brasil.<br />
Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11)3823-4604.<br />
Internet: http://www.memorial.sp.gov.br<br />
Email: publicacao@fmal.com.br.<br />
Os textos são de inteira responsabili<strong>da</strong>de dos autores, não refletindo o pensamento <strong>da</strong> revista.<br />
É expressamente proibi<strong>da</strong> a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo <strong>da</strong> revista.<br />
FOTO CAPA - WANDER MALAGRINE<br />
Número <strong>39</strong><br />
ISSN 0103-6777<br />
LITERATURA 35<br />
Ana M. Ciccacio<br />
PLANETA 38<br />
Umberto G. Cor<strong>da</strong>ni<br />
OLHAR 44<br />
Matilde Marín<br />
ECONOMIA 50<br />
Paulo R. Feldmann<br />
HISTÓRIA 54<br />
Pillar Atilio<br />
FLIP 59<br />
Leonor Amarante<br />
CURTAS 62<br />
Da re<strong>da</strong>ção<br />
AGENDA 64<br />
Da re<strong>da</strong>ção<br />
POESIA 66<br />
Wingston González
Edito<br />
O <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />
está comemorando seus vinte e um anos<br />
e, juntamente com as representações<br />
diplomáticas dos países que celebram<br />
seu bicentenário de independência, tem<br />
sediado e participado de numerosos<br />
atos alusivos à efeméride. A Colômbia é<br />
um desses países e seu presidente, Juan<br />
Manuel Santos, há pouco empossado,<br />
esteve no <strong>Memorial</strong> por ocasião de sua<br />
visita ao Brasil, no início de setembro,<br />
circunstância muito honrosa para todos<br />
nós e para São Paulo, que merece um<br />
óbvio registro neste número de Nossa<br />
<strong>América</strong>. Em novembro, coroando um<br />
período de muito trabalho pela integração<br />
latino-americana – afinal, o grande<br />
objetivo para o qual o <strong>Memorial</strong> foi<br />
criado –, cumprimos a honra de receber<br />
o presidente peruano Alan García, em<br />
meio à realização de um megaevento<br />
significativamente denominado Expo<br />
Peru 2010, também focalizado em Nossa<br />
<strong>América</strong>.<br />
A Copa do Mundo acabou, mas<br />
a paixão dos brasileiros pelo futebol<br />
continua viva e forte. O surpreendente<br />
é que o interesse pelo esporte se arrasta<br />
por mais de 500 anos, desde a chega<strong>da</strong><br />
de Cristóvão Colombo às <strong>América</strong>s. Roberto<br />
Torero, um dos analistas esportivos<br />
que melhor tem refletido sobre a<br />
questão, apresenta um documento fictício<br />
curioso para os apaixonados, ou não,<br />
por uma boa “pela<strong>da</strong>”. Trata-se de uma<br />
carta “escrita” por um dos tripulantes,<br />
Hernán Hernandes, ironizando a exportação<br />
de nossos craques.<br />
Dentro do cenário político do continente,<br />
o Fórum Social Mundial e o Fórum<br />
Econômico Mundial têm defendido<br />
o fortalecimento ou a revitalização <strong>da</strong><br />
Organização <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s, assim<br />
como a globalização <strong>da</strong> democracia. Celso<br />
de Souza Machado, cientista político,<br />
traça um panorama do papel que a ONU<br />
poderia estar desempenhando nesse processo<br />
de equilíbrio <strong>da</strong>s relações mundiais.<br />
Finalmente o Teatro Colón reabriu<br />
suas portas. Depois de um processo de<br />
restauração que durou quase dez anos e<br />
ultrapassou uma série de dificul<strong>da</strong>des, ele<br />
já está com uma programação ampla e<br />
diversifica<strong>da</strong>. O maestro brasileiro Paulo<br />
Rydlewski comenta tecnicamente a acústica<br />
do teatro, considera<strong>da</strong> a quinta melhor<br />
do mundo, e onde ele já teve a grata<br />
oportuni<strong>da</strong>de de reger. Da Argentina,<br />
Hernán Lombardi, secretário de Turismo<br />
de Buenos Aires, fala sobre a importância<br />
<strong>da</strong> reabertura do Colón durante os<br />
festejos do bicentenário.<br />
A Bienal de Arte de São Paulo<br />
foi inaugura<strong>da</strong> em setembro com a promessa<br />
de recuperar seu papel na história<br />
<strong>da</strong>s artes plásticas. Além disso, inova ao<br />
reunir um razoável contingente de artistas<br />
latino-americanos, contrariando um<br />
passado com poucos nomes <strong>da</strong> região.<br />
O crítico Francisco Alambert analisa a<br />
instituição e comenta as obras de alguns<br />
artistas que marcam presença.<br />
Assunto atual, que aterroriza pela<br />
alta incidência nos últimos anos, os terremotos<br />
são o tema do geólogo Umberto<br />
Cor<strong>da</strong>ni. Ele explica como e porque os
ial<br />
movimentos <strong>da</strong>s placas tectônicas, que<br />
são cama<strong>da</strong>s existentes no interior <strong>da</strong><br />
terra, provocam o tão temível fenômeno<br />
em várias partes do mundo.<br />
A mesma Terra, mas vista sob outro<br />
aspecto, agora pelas lentes sensíveis<br />
<strong>da</strong> fotógrafa argentina Matilde Marín,<br />
também pode ser de uma beleza ímpar,<br />
se disseca<strong>da</strong> e reduzi<strong>da</strong> as suas linhas<br />
mais puras.<br />
A falta que um grande escritor<br />
faz. José Saramago, único prêmio Nobel<br />
de Literatura em língua portuguesa,<br />
que morreu este ano, ganha uma homenagem<br />
de Ana Maria Ciccacio. No<br />
artigo, a jornalista celebra a firmeza e a<br />
coerência do autor nascido em Portugal<br />
e residente na Espanha, em autoexílio<br />
por razões políticas.<br />
O Festival de Cinema Latino-<br />
Americano, promovido anualmente<br />
pelo <strong>Memorial</strong> chegou a sua quinta edição<br />
reunindo pelo menos os 20 melhores<br />
diretores do Continente. A jornalista<br />
Ana Candi<strong>da</strong> Vespucci traça um painel<br />
<strong>da</strong> importância que o evento conquistou,<br />
enquanto Leonor Amarante, editora<br />
de Nossa <strong>América</strong>, publica uma entrevista<br />
que fez com o cineasta argentino<br />
Marcelo Piñeyro, um dos homenageados<br />
deste ano, ao lado do brasileiro João<br />
Batista de Andrade.<br />
As empresas latino-americanas precisam<br />
saber li<strong>da</strong>r com suas idiossincrasias,<br />
na opinião de Paulo Roberto Feldmann,<br />
engenheiro. O especialista comenta como<br />
os aspectos culturais mol<strong>da</strong>m as gestões<br />
empresariais e aponta oportuni<strong>da</strong>des e<br />
ameaças no mundo globalizado.<br />
O <strong>Memorial</strong> continua atento às<br />
comemorações dos bicentenários de<br />
independência de alguns países latinoamericanos.<br />
Nesta edição, Nossa <strong>América</strong><br />
focaliza as festivi<strong>da</strong>des na Argentina<br />
com um artigo <strong>da</strong> historiadora portenha<br />
Pilar Atilio.<br />
Este ano, a editora de Nossa <strong>América</strong><br />
voltou à Festa Literária Internacional<br />
de Paraty (Flip) para conferir a<br />
quantas an<strong>da</strong> a feira de literatura que<br />
tanto sucesso faz e para entrevistar a<br />
escritora chilena Isabel Allende, que<br />
acaba de lançar seu mais recente romance,<br />
A Ilha Sob o Mar.<br />
Como estão as relações entre Venezuela<br />
e Colômbia e a tecnologia na<br />
<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> são algumas <strong>da</strong>s notícias<br />
que a seção Curtas destacou para esta<br />
edição. Ela também revela aspectos <strong>da</strong><br />
vi<strong>da</strong> do escritor português Eça de Queiroz<br />
quando embaixador em Havana, e<br />
as novi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Casa <strong>da</strong>s <strong>América</strong>s em<br />
Portugal. A seção Agen<strong>da</strong>, por sua vez,<br />
lembra alguns dos melhores eventos<br />
promovidos pelo <strong>Memorial</strong>, como El<br />
Día Del Español que inundou a instituição<br />
de gente atraí<strong>da</strong> por uma programação<br />
diversifica<strong>da</strong>.<br />
Para fechar a edição, o poema Overtura<br />
Fatal, de Wingston González, um jovem<br />
e promissor poeta guatemalteco.<br />
Boa Leitura!<br />
Fernando Leça<br />
Presidente do <strong>Memorial</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>
ALIANÇA<br />
NO MEMORIAL,<br />
Presidente <strong>da</strong> colômbia<br />
PREGA UNIãO<br />
Daniel Pereira<br />
Se a última impressão é a que fica, deve ter sido<br />
com esta sensação que o recém-empossado<br />
presidente <strong>da</strong> Colômbia, Juan Manuel Santos,<br />
voltou ao seu país depois de quase três<br />
horas de visita ao <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />
último compromisso de sua agen<strong>da</strong> de<br />
dois dias no Brasil, no início de setembro. Essa também foi<br />
a leitura do presidente Fernando Leça, ao despedir-se do<br />
mais novo protagonista do cenário geopolítico <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>. “A visita do presidente Juan Manuel Santos tem<br />
vários significados, mas o principal é que ela coloca em relevo<br />
a missão integradora do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>”.<br />
A última vez que o <strong>Memorial</strong> recebeu a visita de um presidente<br />
latino-americano foi em 1999, quando aqui esteve Hugo<br />
Chávez. Por coincidência, também recém-empossado como<br />
6
FOTOs: Wander Malagrine<br />
Juan Manuel Santos, presidente <strong>da</strong><br />
Colômbia, discursa no <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, onde foi recebido por<br />
Fernando Leça, presidente <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção.<br />
presidente <strong>da</strong> Venezuela, escolheu o<br />
Brasil para sua primeira viagem internacional.<br />
Não por acaso, integração e<br />
união foram os termos mais recorrentes<br />
usados por Santos em seu discurso<br />
no Pavilhão <strong>da</strong> Criativi<strong>da</strong>de, em que<br />
extravasou claramente sua satisfação<br />
por ter vindo ao <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>. “Que bom estar aqui neste<br />
momento, na minha primeira viagem<br />
como presidente <strong>da</strong> República. Que<br />
bom terminar essa visita aqui no <strong>Memorial</strong>!<br />
Não creio que tenha sido mera<br />
coincidência, porque o Todo-Poderoso<br />
faz a coisa certa. Este <strong>Memorial</strong><br />
está destinado a promover a integração<br />
latino-americana. E eu vim nesta<br />
primeira visita também para promover<br />
a integração latino-americana”.<br />
Juan Manuel Santos foi diplomático<br />
quando evitou aprofun<strong>da</strong>r comen-<br />
tários a respeito de questões internas<br />
<strong>da</strong> Colômbia (“eu era cadete na Escola<br />
Naval, há 40 anos, e já ouvia falar do<br />
narcotráfico”, disse) ou <strong>da</strong>s tratativas<br />
para solucionar o impasse com as Farc<br />
– temas explorados pela imprensa no<br />
encontro <strong>da</strong> véspera com o presidente<br />
Lula. Em vez disso, fez questão de<br />
deixar transparecer a sua disposição<br />
de ser visto não apenas como um dirigente<br />
“linha dura”, mas como o novo<br />
player importante no mapa políticoeconômico<br />
latino-americano.<br />
Dois parágrafos pinçados de sua<br />
fala são reveladores dessa pretensa<br />
postura. Um deles, quando reinterpretou<br />
a epígrafe do busto de Simón Bolívar,<br />
que havia visitado minutos antes.<br />
“A <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> será a grande potência<br />
sonha<strong>da</strong> por ele (Bolívar) quando<br />
ca<strong>da</strong> um de nós souber respeitar<br />
7
Alunos <strong>da</strong> Escola<br />
Estadual República<br />
<strong>da</strong> Colômbia<br />
recepcionam Juan<br />
Manuel Santos.<br />
Ao lado, ele<br />
se despede de<br />
representantes<br />
<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />
colombiana em<br />
São Paulo.<br />
as diferenças com o outro”. E foi por<br />
isso – pontuou – que ofereceu a mão<br />
para Hugo Chávez e Rafael Correa.<br />
Outro sinal de sua disposição<br />
em mostrar que a Colômbia tem mais<br />
afini<strong>da</strong>des do que divergências com<br />
seus vizinhos foi quando exaltou o<br />
imenso potencial de biodiversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />
<strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. “Tudo o que o mundo<br />
discute e precisa hoje, nós temos. Temos<br />
água e alimentos, principalmente<br />
Brasil e Colômbia, e podemos trabalhar<br />
juntos para abrir outras frentes de<br />
sinergia e progresso no Continente”.<br />
8<br />
Fernando Leça e Juan Manuel Santos caminham<br />
sobre a maquete <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, no Pavilhão<br />
<strong>da</strong> Criativi<strong>da</strong>de.<br />
O rito oficial <strong>da</strong> visita terminou<br />
com o descerramento <strong>da</strong> placa que fica<br />
nos anais do <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
À saí<strong>da</strong>, Santos foi cercado pela<br />
comuni<strong>da</strong>de colombiana, conversou e<br />
beijou crianças de uma escola estadual<br />
que tem apoio do seu governo. Foi<br />
embora feliz, mas sem conseguir disfarçar<br />
certa tensão. Parecia esperar por<br />
notícias ruins. E estava certo. As Farc<br />
haviam atacado novamente.<br />
Daniel Pereira é jornalista.<br />
FOTOs: Wander Malagrine
ALIANÇA<br />
VOzES DA<br />
inteGraÇÃo<br />
Brasil e Peru<br />
Jorge Salmón Jordán<br />
Vozes de Integração é o nome com que<br />
se batizou o esforço de difusão que o<br />
Peru realizará em novembro no impressionante<br />
<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />
em São Paulo. É um maravilhoso espaço<br />
de 80 mil metros quadrados destinado<br />
à divulgação <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> integração dos povos latinos.<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, uma generosi<strong>da</strong>de do governo do presidente Luiz<br />
Inácio Lula <strong>da</strong> Silva ter facilitado o acesso a este cenário espetacular<br />
projetado por um ícone <strong>da</strong> arquitetura mundial, Oscar<br />
Niemeyer, de quem se diz não haver seguidores nem discípulos.<br />
Os setores privados brasileiro e peruano, honrando sua condição<br />
de parceiros (sócios estratégicos), vêm preparando uma série<br />
9
Os presidentes Alan<br />
García, do Peru,<br />
e Luiz Inácio Lula<br />
<strong>da</strong> Silva, do Brasil.<br />
FOTO: rePrOdUÇÃO<br />
de manifestações relaciona<strong>da</strong>s com aspectos<br />
culturais e econômicos para que<br />
o povo paulista, em primeira instância,<br />
tome consciência do significado do desenvolvimento<br />
deste vínculo que está<br />
refletindo em importantes investimentos<br />
em mineração, fosfatos, estra<strong>da</strong>s,<br />
petroquímica e outras ativi<strong>da</strong>des produtivas<br />
geradoras de emprego e progresso.<br />
Nesta nova relação que se abre<br />
com o gigante continental, a Amazônia<br />
não será somente o pulmão do mundo,<br />
mas o espaço que unirá, graças a um dos<br />
eixos <strong>da</strong>s estra<strong>da</strong>s bioceânicas, os sólidos<br />
vínculos que podem desenvolver o<br />
Peru e o Brasil no futuro.<br />
Esses e outros aspectos de importância<br />
vital foram discutidos em<br />
Brasília, a moderna capital brasileira,<br />
onde a embaixa<strong>da</strong> do Peru convocou<br />
as empresas priva<strong>da</strong>s e públicas mais<br />
destaca<strong>da</strong>s para conhecer o que será<br />
Vozes de Integração, uma proposta<br />
conjunta com nosso aliado estratégico<br />
orienta<strong>da</strong> ao maior desenvolvimento<br />
de ambas as nações.<br />
Tudo está pronto para esta convocação<br />
singular. Espera-se que os<br />
presidentes Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva e<br />
Alan García deem destaque ao evento<br />
e que os setores público e privado de<br />
10<br />
ambos os países expressem ao mundo<br />
o que pode alcançar a integração em<br />
benefício de seus povos.<br />
A presença cultural do Peru, de<br />
suas regiões e <strong>da</strong>s múltiplas expressões<br />
gastronômicas, turísticas e comerciais<br />
será a mostra do que se vislumbra à<br />
luz dessa transcendente aliança binacional.<br />
É certo que Brasil e o Peru<br />
estiveram de costas por muitos anos.<br />
Felizmente, os dois países descobriram<br />
sua complementari<strong>da</strong>de e, por ela,<br />
a partir desta convocatória em Brasília,<br />
se estabeleça um marco para uma<br />
agen<strong>da</strong> para o futuro.<br />
É importante considerar o que<br />
afirma Carlos Faggin, arquiteto, urbanista<br />
e catedrático <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />
São Paulo: “Até finais do século XIX,<br />
o Brasil possuía 1.550 ci<strong>da</strong>des, cem<br />
anos mais tarde, são 6.000. O resultado<br />
desta conta demonstra que os brasileiros<br />
construíram quase quatro ci<strong>da</strong>des<br />
por mês. Uma delas foi Brasília,<br />
que em três anos saiu do discurso do<br />
candi<strong>da</strong>to a presidência Juscelino Kubitschek.<br />
Sem dúvi<strong>da</strong>, o Brasil, mais<br />
que um país, é um continente e tem<br />
no Peru um sócio importante, especialmente<br />
na perspectiva dos estados<br />
do Acre e de Rondônia, próximos à<br />
fronteira <strong>da</strong> aliança.<br />
Primeiramente, os povos <strong>da</strong><br />
Amazônia e aqueles por onde passa o<br />
eixo interoceânico serão os principais<br />
beneficiados com esta aliança para o<br />
desenvolvimento. É uma oportuni<strong>da</strong>de<br />
que não se pode desperdiçar.<br />
Jorge Salmón Jordán é peruano e comunicador social.
FOTO: rePrOdUÇÃO<br />
ESPORTE<br />
CRISTÓVãO COLOMBO<br />
e o FUtebol<br />
A pouco inspiradora história<br />
de Caycos e Lucayo<br />
José Roberto Torero<br />
Um importante documento recentemente encontrado<br />
no Archivo Real del Descobrimento<br />
trouxe uma nova luz sobre a história do<br />
futebol, a colonização <strong>da</strong> <strong>América</strong> e o papel<br />
do nosso continente no mundo. Trata-se<br />
<strong>da</strong> carta de um integrante <strong>da</strong> tripulação de<br />
Cristóvão Colombo, mais especificamente o cozinheiro Hernán<br />
Hernandes. Deixo-vos cá com esta joia recém-descoberta:<br />
11
Ilhéu de Guanahani, 19 de outubro do ano 1492 de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
Carmencita queri<strong>da</strong>,<br />
finalmente chegamos a algum lugar. Já não aguentava mais o balanço do navio. Vomitei<br />
feito uma mulher peja<strong>da</strong> por to<strong>da</strong> a viagem. Quando deixamos Palos de la Frontera, no dia 3 de<br />
agosto, não pensei que ficaria mais de dois meses sem pisar em terra.<br />
Pensamos até em fazer um motim contra Colombo. Mas, quando estávamos às vésperas<br />
<strong>da</strong> revolução, chegamos às Índias (se bem que há marinheiros que dizem que este é um novo continente).<br />
A beleza dessa ilha, com seus montes e suas serras, suas águas e seus vales regados por rios<br />
cau<strong>da</strong>losos, é um espetáculo tal que em nenhuma outra terra sob o sol pode haver mais magnífica.<br />
Mas o mais curioso destas paragens não é sua natureza, e sim seus naturais.<br />
Vou contar-lhe como os encontramos:<br />
Quando demos à praia não vimos ninguém, mas, olhando ao longe, percebemos uma poeira<br />
que levantava e, pé ante pé, nos dirigimos até lá.<br />
Qual não foi nosso espanto quando chegamos a um enorme terreno muito limpo, onde havia<br />
uma grama cerradinha e mais de vinte selvagens correndo nus pelo campo. Curiosamente, metade<br />
dos silvestres tinha o corpo totalmente pintado de branco e os outros, de vermelho.<br />
Estavam jogando futebol. E bem. Conseguiam passar a bola de um pé a outro de tantas<br />
e várias formas que eu só podia crer no que via porque meus olhos não mentem como minha boca.<br />
Aos poucos fomos nos enturmando com os torcedores e descobrimos que estávamos vendo o<br />
clássico <strong>da</strong> ilha, algo como o nosso Real Madrid x Barcelona.<br />
Depois <strong>da</strong> parti<strong>da</strong>, que terminou em 3 a 3, Colombo chamou os capitães <strong>da</strong>s equipes e<br />
disse que tomava possessão <strong>da</strong> dita Ilha pelo Rei e pela Rainha, seus senhores. Os selvagens em<br />
na<strong>da</strong> se opuseram, talvez por reconhecerem nossa superiori<strong>da</strong>de, talvez por não entenderem patavinas<br />
de nossa língua.<br />
Demos-lhes alguns gorros vermelhos e contas de vidro que colocaram no pescoço, e outras<br />
coisas muitas de pouco valor, com o que tiveram grande prazer e ficaram tão nossos que era maravilha.<br />
Depois na<strong>da</strong>ram até às barcas, e nos trouxeram fios de algodão em novelos e outras coisas<br />
muitas.<br />
Meus companheiros de navio levarão alguns papagaios para vender na Espanha. Já eu<br />
levarei Caycos e Lucayo. O primeiro é um ágil ponta de lança e o segundo, um respeitável centroavante<br />
trombador. Deixarei de ser cozinheiro e me tornarei empresário de futebol, Carmencita<br />
queri<strong>da</strong>, com o que penso que finalmente poderei pedir sua mão em casamento.<br />
Receba esta carta como um beijo nas palmas de sua mão, <strong>da</strong>do por aquele que a ama com<br />
desespero e esperança,<br />
12<br />
Hernán Hernandes.
FOTO: rePrOdUÇÃO<br />
Pois bem, a história não registra<br />
se Hernán realmente se casou com Carmencita,<br />
mas sabemos que o Atlético<br />
de Madri foi tetracampeão de 1493 a 96<br />
graças à dupla Caycos e Lucayo, que depois<br />
foi jogar no Liverpool.<br />
O interessante é ver que continuamos<br />
com esta tradição, com esta vocação,<br />
com este triste destino de exportar<br />
matéria-prima.<br />
Se há algo que une o futebol<br />
sul-americano, é o fato de que nossos<br />
melhores jogadores vão embora para a<br />
Europa e para a Ásia mal lhe crescem<br />
pelos na cara. Alguns até antes, como é<br />
o caso de Messi, que foi para a Espanha<br />
aos 11 anos.<br />
No Brasil, este número é assustador.<br />
Jogador de futebol já é um dos<br />
principais produtos de exportação do<br />
país, ultrapassando produtos como banana,<br />
maçã e uva. Desde 1993, as exportações<br />
já somam dois bilhões de dólares.<br />
Em 2008, 1.776 futebolistas saíram<br />
do Brasil. Isso <strong>da</strong>ria para formar 80<br />
equipes, com 22 atletas ca<strong>da</strong>. Ou seja, a<br />
primeira divisão do Campeonato Brasileiro<br />
é, na ver<strong>da</strong>de, a quinta.<br />
Essa per<strong>da</strong> dos nossos jogadores<br />
é também uma per<strong>da</strong> de alegria. Vemos<br />
jogos piores, menos gols, menos dribles.<br />
E, nos fins <strong>da</strong>s contas, perdemos até dinheiro,<br />
pois vendemos os jogadores mas<br />
pagamos para ver os jogos dos campeonatos<br />
<strong>da</strong> Europa. Como diz Sócrates<br />
(o jogador, não o filósofo), é como se<br />
vendêssemos Michelângelo em vez de<br />
vender suas obras.<br />
É claro que a culpa não é dos jogadores,<br />
que têm todo o direito de ir<br />
atrás de melhores salários. A culpa é dos<br />
nossos dirigentes, dos clubes e <strong>da</strong> Confederação<br />
Brasileira de Futebol (CBF),<br />
que não souberam se modernizar, que<br />
não souberam, ou não quiseram, industrializar<br />
nossa matéria-prima.<br />
Caycos e Lucayo foram os primeiros<br />
de milhares. Éramos uma colônia. E,<br />
no futebol, ain<strong>da</strong> não deixamos de ser.<br />
José Roberto Torero é jornalista, escritor e comentarista<br />
de futebol<br />
13
14<br />
DEBATE<br />
comUm?<br />
Há UM PONTO<br />
Fórum Social Mundial e<br />
Fórum Econômico Mundial<br />
Celso de Souza Machado<br />
em praticamente todos os encontros do Fórum<br />
Social Mundial e do Fórum Econômico<br />
Mundial têm havido intervenções defendendo<br />
o fortalecimento <strong>da</strong> Organização <strong>da</strong>s<br />
Nações Uni<strong>da</strong>s (ONU). Já no Fórum Econômico<br />
Mundial de 1995, a Comissão sobre<br />
o Governo Global apresentou um relatório propondo “globalizar<br />
também a democracia, por uma revolução nas estruturas<br />
<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s” – proposta encampa<strong>da</strong> pelo então secretário-geral<br />
<strong>da</strong> ONU, Boutros Ghali, no discurso de inauguração<br />
do Fórum. No Fórum Social Mundial de 2003, um conjunto<br />
de intervenções foi dedicado à “necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> construção de<br />
um sistema de governança democrático global”. Discutiu-se<br />
“como refun<strong>da</strong>r e revitalizar a ONU”, a necessi<strong>da</strong>de de “estu<strong>da</strong>r<br />
um sistema de financiamento independente” para ela (imposto<br />
sobre as transações financeiras internacionais, loteria internacional<br />
etc.) e colocou-se que a “democratização <strong>da</strong> ONU deve
FOTO: divUlgaÇÃO<br />
ser um tema central para discussões<br />
nas próximas edições do Fórum Social<br />
Mundial”.<br />
A necessi<strong>da</strong>de de a ONU se converter<br />
em um Estado mundial e democrático,<br />
um Estado escolhido pelo eleitorado<br />
mundial (ain<strong>da</strong> que inicialmente de<br />
forma indireta) com partidos de âmbito<br />
mundial e um Estado com poderes efetivos<br />
(Executivo, Legislativo e Judiciário)<br />
para executar políticas econômicas e sociais<br />
de caráter global – não será esse um<br />
ponto para o qual convergem os debates<br />
do Fórum Social Mundial e do Fórum<br />
Econômico Mundial? Não será esse um<br />
ponto potencialmente em comum entre<br />
os dois Fóruns?<br />
Embora a necessi<strong>da</strong>de de um Estado<br />
mundial democrático não tenha<br />
ain<strong>da</strong> sido proposta com to<strong>da</strong>s as letras<br />
nesses fóruns, ela está de certa forma<br />
presente o tempo todo em todos os<br />
debates. Sem um Estado democrático<br />
mundial – com instrumentos efetivos<br />
para executar políticas globais –, as conclusões<br />
correm o risco de não sair do<br />
papel. Elas dependerão – para serem leva<strong>da</strong>s<br />
à prática – <strong>da</strong> “boa vontade” <strong>da</strong><br />
potência hegemônica de ca<strong>da</strong> momento<br />
(hoje os EUA, amanhã talvez a Comuni<strong>da</strong>de<br />
Europeia ou a Comuni<strong>da</strong>de Asiática).<br />
Só um Estado democrático mundial<br />
terá to<strong>da</strong> a estrutura dos instrumentos<br />
públicos, os poderes institucionais e a<br />
representativi<strong>da</strong>de internacional para<br />
executar as políticas globais debati<strong>da</strong>s e<br />
eleitas pela socie<strong>da</strong>de mundial – políticas<br />
globais que abrangem desde as macroeconômicas<br />
até o combate à fome,<br />
a pacificação <strong>da</strong> relação entre países, a<br />
repressão ao narcotráfico, o aumento <strong>da</strong><br />
eficiência econômica, o aprimoramento<br />
do processo democrático etc. Assim,<br />
não se trata obviamente de um Estado<br />
“nosferatu” ou “bicho-papão” – já tão<br />
criticado tanto pela esquer<strong>da</strong> quanto<br />
pela direita – , mas sim <strong>da</strong> construção de<br />
um Estado democrático, comprometido<br />
com o desenvolvimento permanente de<br />
formas de representação e de participação<br />
ca<strong>da</strong> vez mais democráticas. Hoje,<br />
quase to<strong>da</strong>s as correntes políticas concor<strong>da</strong>m<br />
com a importância de os Estados<br />
se pautarem por esses valores.<br />
Está claro que, como o Fórum<br />
Social e o Fórum Econômico representam<br />
interesses e projetos contrários<br />
para o planeta, seus objetivos para uma<br />
ONU-Estado mundial e democrático<br />
serão objetivos igualmente contrários.<br />
Contudo, é exatamente por isso que<br />
um eventual ponto em comum entre os<br />
dois Fóruns só poderá se <strong>da</strong>r em torno<br />
de uma questão organizacional (a forma<br />
de organização política que se pretende<br />
<strong>da</strong>r ao planeta): a necessi<strong>da</strong>de de um<br />
governo institucional mundial – um governo<br />
que seja democrático (isto é, que<br />
possa ser ocupado por correntes mais<br />
conservadoras e por correntes mais<br />
progressistas) e um governo que seja<br />
um Estado (isto é, que tenha poderes<br />
efetivos para executar políticas globais<br />
mais conservadoras e mais progressistas).<br />
Conteúdos concretos, como a luta<br />
contra a fome, a luta pela eficiência<br />
15<br />
Crianças Caiapó<br />
no Fórum Social<br />
Mundial.
econômica, o combate às desigual<strong>da</strong>des<br />
internacionais etc., poderiam talvez<br />
contar com a concordância de ambos<br />
os Fóruns, mas seria uma concordância<br />
apenas aparente: o Fórum Social e<br />
o Fórum Econômico defendem lógicas<br />
diferentes para o funcionamento <strong>da</strong><br />
economia internacional e <strong>da</strong>s economias<br />
nacionais, e condicionariam a consecução<br />
<strong>da</strong>queles objetivos ao tipo de<br />
lógica que defendem. Já a construção<br />
de um Estado mundial democrático diz<br />
respeito a uma questão formal: a forma<br />
ou formato que se pretende <strong>da</strong>r à organização<br />
política do planeta.<br />
No dia seguinte à constituição de<br />
um eventual Estado democrático mundial,<br />
as forças representa<strong>da</strong>s em ca<strong>da</strong><br />
Fórum estarão senta<strong>da</strong>s em trincheiras<br />
contrárias na disputa eleitoral e – como<br />
ocorre no interior dos Estados nacionais<br />
(países) – as forças com maior poder<br />
econômico tenderão obviamente a ter<br />
mais chances de vitória. No entanto –<br />
havendo uma democracia formal – o dinamismo<br />
<strong>da</strong>s disputas eleitorais (os pontos<br />
fortes e fracos <strong>da</strong>s candi<strong>da</strong>turas, os<br />
rachas, as coalizões), as movimentações<br />
<strong>da</strong>s bases sociais dos partidos, as avaliações<br />
do eleitorado sobre as políticas desenvolvi<strong>da</strong>s<br />
pelos partidos no governo<br />
etc., tudo isso irá abrindo espaço para<br />
que as diversas forças políticas tenham,<br />
num momento ou noutro, possibili<strong>da</strong>des<br />
de vitória eleitoral.<br />
É importante observar que não se<br />
trata de ser a favor ou contra um governo<br />
mundial. Esse governo de certa<br />
forma já existe, mas, como já se observou<br />
num dos Fóruns Sociais, “a atual<br />
governança mundial não é legítima, nem<br />
democrática nem eficaz” (referindo-se a<br />
FMI, Banco Mundial e OMC). A questão<br />
é se o governo mundial continuará a<br />
ser feito dessa forma, ou se será adotado<br />
o caminho que todos os países adotam<br />
internamente – o caminho de uma<br />
instituição pública (um Estado).<br />
16<br />
Não seria utópico ou irrealista pretender<br />
uma revolução como essa na forma<br />
de organização política do planeta?<br />
Com quase 200 países em extrema<br />
dependência econômica e tecnológica<br />
entre si, tendo de competir intensamente<br />
num salve-se-quem-puder e tendo conquistado<br />
o direito de lutar abertamente<br />
pelos seus interesses, a ideia de um governo<br />
mundial e democrático deixou de<br />
ser utópica ou irrealista – para se tornar,<br />
ao contrário, uma necessi<strong>da</strong>de objetiva e<br />
inadiável, pelo nível de desenvolvimento<br />
atingido pela economia mundial. Os dois<br />
pontos que, embora iniciais, já permitiriam<br />
dizer que temos um governo institucional<br />
mundial – um imposto internacional<br />
(que liberte a ONU de sua dependência<br />
econômica em relação ao pequeno grupo<br />
de países ricos, principalmente os EUA)<br />
e uma moe<strong>da</strong> institucional internacional<br />
(cuja emissão seja monopólio <strong>da</strong> ONU e<br />
que seja obrigatória nas transações econômicas<br />
internacionais, inicialmente, e<br />
depois também nas nacionais) – seriam<br />
hoje vistas provavelmente com simpatia<br />
pela grande maioria dos países, <strong>da</strong>s organizações<br />
sociais e políticas (partidos,<br />
sindicatos socie<strong>da</strong>des científicas, igrejas,<br />
associações artísticas etc.) e do eleitorado<br />
mundial. A inexistência de uma moe<strong>da</strong><br />
institucional internacional, aliás, sugere<br />
um contrassenso: quase duas centenas de<br />
países competindo economicamente entre<br />
si e o dinheiro que intermedeia essa<br />
competição ter o monopólio <strong>da</strong> sua emissão<br />
não mãos de um dos competidores?!<br />
É mais ou menos como um jogo em que<br />
a bola pertencesse a um dos times...<br />
Por que caberia ao Fórum Social e<br />
ao Fórum Econômico a tarefa de tomar<br />
a iniciativa e propor um amplo debate internacional<br />
sobre a necessi<strong>da</strong>de de um governo<br />
institucional democrático mundial?<br />
O Fórum Social e o Fórum Econômico<br />
constituem hoje o centro do debate<br />
mundial sobre as alternativas para<br />
o planeta. São hoje as únicas instâncias
internacionais com respeitabili<strong>da</strong>de e<br />
representativi<strong>da</strong>de suficientes para <strong>da</strong>r<br />
início a um amplo e democrático debate<br />
mundial sobre a necessi<strong>da</strong>de e a urgência<br />
de uma mu<strong>da</strong>nça radical na forma de organização<br />
política do planeta – sobre os<br />
perigos de o mundo continuar sem um<br />
governo institucional. Se o Fórum Social<br />
e o Fórum Econômico, ou quaisquer<br />
outras instâncias de debate mundial que<br />
venham a ser cria<strong>da</strong>s, se limitarem a debater<br />
fins e não debaterem pra valer os<br />
meios, as propostas, e não se concentrarem<br />
em debater a fundo as ferramentas<br />
para implementá-las, tenderão a se reduzir<br />
a uma feira ou festival de propostas<br />
programáticas, e a desempenhar no sistema<br />
internacional a função de válvula de<br />
escape (o Fórum Social) e decorativa (o<br />
Fórum Econômico).<br />
É a própria reali<strong>da</strong>de econômica e<br />
política do mundo de hoje que está colocando<br />
a questão <strong>da</strong> governança mundial<br />
(como exatamente o planeta deve ser<br />
governado?) como tema nº1 do debate<br />
internacional. Um Estado democrático<br />
mundial é a peça que está faltando no tabuleiro<br />
de xadrez. O planeta todo respiraria<br />
aliviado se saíssemos <strong>da</strong> atual forma<br />
de governo (ou desgoverno) mundial e a<br />
ONU assumisse as funções e os poderes<br />
de um Estado mundial democraticamente<br />
eleito – o que mu<strong>da</strong>ria a natureza <strong>da</strong><br />
relação entre os países, abrindo espaço<br />
para a construção de uma ver<strong>da</strong>deira<br />
comuni<strong>da</strong>de internacional: os países começariam<br />
a deixar de ser países para se<br />
tornarem estados (subdivisões) de um<br />
grande e único país mundial. Os países<br />
não perderiam soberania – mas, pelo<br />
contrário, ganhariam soberania (sobre<br />
todo o planeta): haveria um Estado “acima”<br />
dos países – mas um Estado eleito<br />
pelos próprios países!<br />
O Fórum Social e o Fórum Econômico<br />
têm em suas mãos a oportuni<strong>da</strong>de<br />
e a responsabili<strong>da</strong>de histórica de<br />
abrirem um amplo debate mundial sobre<br />
o perigo de o mundo continuar sem um<br />
governo institucional. É possível hoje<br />
alguém acompanhar os noticiários <strong>da</strong>s<br />
TVs, dos jornais, e não perceber que o<br />
mundo está grávido de um governo institucional?<br />
Os horrores <strong>da</strong> 1 a Guerra Mundial<br />
(com quase 10 milhões de mortos e<br />
20 milhões de mutilados) traumatizaram<br />
o mundo e levaram à criação <strong>da</strong> Liga <strong>da</strong>s<br />
Nações (1919), que tinha poucos poderes<br />
e logo foi se enfraquecendo. Os horrores<br />
<strong>da</strong> 2 a Guerra Mundial (com mais<br />
de 60 milhões de mortos e 30 milhões<br />
de mutilados) traumatizaram o mundo e<br />
levaram à criação <strong>da</strong> ONU (1945), que<br />
tem mais força do que tinha a Liga <strong>da</strong>s<br />
Nações, mas ain<strong>da</strong> está longe de ter os<br />
poderes efetivos de um Estado para coman<strong>da</strong>r<br />
políticas econômicas e sociais de<br />
âmbito mundial. Hoje, com quase 200<br />
países numa competição econômica desenfrea<strong>da</strong><br />
entre si e vários desses países<br />
já possuindo ou em vias de possuir armamentos<br />
de extermínio em massa (armas<br />
nucleares, químicas e biológicas),<br />
ou vamos para uma ONU-Estado democrático<br />
mundial através do caminho<br />
civilizado de um amplo e responsável<br />
movimento internacional – ou através<br />
do caminho de horrores de uma devastadora<br />
3ª Guerra Mundial.<br />
Celso de Souza Machado é cientista político.<br />
17<br />
Crianças no<br />
Fórum Social<br />
Mundial.
18<br />
CULTURA<br />
TEATRO COLÓN,<br />
corPo e alma<br />
A essência de um espaço<br />
consagrado mundialmente<br />
Paulo Rydlewski<br />
Qualquer partitura musical não é na<strong>da</strong> além<br />
de uma representação imprecisa <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de<br />
sonora que o compositor tentou expressar.<br />
Imprecisa? Sim, pois nos permite<br />
recriá-la à medi<strong>da</strong> que o nosso conhecimento<br />
musical avança e, nesse processo,<br />
acrescentamos a quanti<strong>da</strong>de de arte e sensibili<strong>da</strong>de<br />
que podemos oferecer. Assim<br />
como o objeto partitura, um teatro pode transcender a essa<br />
condição, tornar-se um símbolo. Dia 24 de maio passado, foi<br />
reinaugurado o Teatro Colón de Buenos Aires, um dos patrimônios<br />
culturais de nosso continente, um símbolo internacional<br />
<strong>da</strong> imensa capaci<strong>da</strong>de artística do povo argentino.<br />
Cerca de 3.000 pessoas compareceram à sua primeira noite<br />
de gala e uma projeção em 3D, na lateral do teatro, transmitiu<br />
o concerto para milhares de pessoas que se aglomeravam<br />
na charmosa Aveni<strong>da</strong> Nove de Julio. Na programação do
concerto de reinauguração, a abertura<br />
Huemac, de Pascual de Hogatis, excertos<br />
do balé O lago dos Cisnes de P. I. Tschaikovsky<br />
e <strong>da</strong> ópera La Bohème de Giacomo<br />
Puccini, com a participação do balé,<br />
do coro e <strong>da</strong> Orquestra Filarmônica de<br />
Buenos Aires.<br />
O teatro Colón, ou Colombo, foi<br />
inaugurado em 25 de maio de 1908. Construído<br />
em um estilo próximo ao nosso<br />
Theatro Municipal de São Paulo, mesclando<br />
um pouco dos clássicos italiano e<br />
francês, tem capaci<strong>da</strong>de para 3.000 pessoas<br />
acomo<strong>da</strong><strong>da</strong>s em luxuosas cadeiras de<br />
veludo vermelho escuro. Com um fosso<br />
capaz de acomo<strong>da</strong>r 120 músicos, vitrais<br />
e uma decoração suntuosa, o teatro ain<strong>da</strong><br />
oferece oficinas de máquinas, cenários,<br />
adereços, figurinos, escultura, maquiagem<br />
e cabeleireiro, além de salas de apoio, oficinas,<br />
salas para ensaio: uma pequena ci<strong>da</strong>de<br />
em seus subterrâneos. Após nove anos de<br />
reformas e uma série de dificul<strong>da</strong>des para<br />
se cumprir prazos e metas, confrontos políticos<br />
infindáveis, a luta para se manter a<br />
essência arquitetônica do projeto original<br />
teve sucesso. Seu “disco giratório”, um<br />
surpreendente mecanismo antigo, mas<br />
ain<strong>da</strong> eficiente, para a mu<strong>da</strong>nça rápi<strong>da</strong> de<br />
cenários, foi mantido juntamente com to<strong>da</strong>s<br />
suas características técnicas e arquitetônicas<br />
originais. O “disco giratório”, os<br />
candelabros, as pinturas, fazem parte <strong>da</strong><br />
alma de qualquer teatro. Não posso me esquecer<br />
a primeira vez que vi a antiga “máquina<br />
de vento” do Theatro Municipal de<br />
São Paulo ser liga<strong>da</strong>. Foi como se estivéssemos<br />
assistindo à estreia de Turandot no<br />
Teatro alla Scala, de Milão. A conexão com<br />
o passado se estabeleceu imediatamente e<br />
o sentimento que a arte “assim é, se lhe<br />
parece” ressurge com to<strong>da</strong> sua força. Não<br />
se trata de manter uma ambiência e sim<br />
de, como já dito antes, manter sua alma,<br />
que se expressa principalmente no amor<br />
do povo de Buenos Aires pelo Colón.<br />
19<br />
Depois de nove anos<br />
de restauros e muitas<br />
dificul<strong>da</strong>des, Buenos<br />
Aires recebe de volta seu<br />
teatro maior.
FOTO: ClaUdiO Zeiger<br />
Patrimônio<br />
cultural do<br />
continente e<br />
símbolo <strong>da</strong><br />
capaci<strong>da</strong>de<br />
artística do<br />
povo argentino.<br />
21
Um fato à parte, mas que merece comentários<br />
– a acústica do teatro. Uma “boa<br />
acústica” é capaz de, tanto para o público<br />
como para os artistas, oferecer um perfeito<br />
equilíbrio sonoro, a manutenção dos timbres,<br />
<strong>da</strong> coloração sonora dos instrumentos<br />
e permitir a percepção dos mínimos<br />
detalhes <strong>da</strong> execução em todo o teatro.<br />
“Gracias a Dios!” o projeto acústico original<br />
foi preservado e uma <strong>da</strong>s cinco melhores<br />
acústicas do mundo, segundo o Instituto<br />
Tanetaka do Japão (e todos os músicos<br />
que já se apresentaram lá), foi manti<strong>da</strong>!<br />
Mantendo suas tradições de grandes<br />
tempora<strong>da</strong>s, agora sob a direção geral<br />
e artística de Pedro Pablo Garcia Caffi<br />
e a direção musical de Reinaldo Censabella,<br />
o Colón promete ótimas novi<strong>da</strong>des<br />
como a participação de Daniel Barenboim,<br />
Zubin Mehta, Yo Yo Ma e Paloma<br />
Herrara já nesta tempora<strong>da</strong>.<br />
Outra novi<strong>da</strong>de é que o Teatro Colón<br />
se transformou, a partir de 11 de setembro<br />
de 2008, em uma autarquia, com<br />
personali<strong>da</strong>de jurídica própria, autonomia<br />
funcional e autossuficiência financeira. O<br />
objetivo dessa medi<strong>da</strong> é colaborar na resolução<br />
de antigos problemas administrativos,<br />
na criação de uma administração mais<br />
moderna, eficiente e transparente.<br />
Desde meados dos anos 70 na<br />
Argentina, com a toma<strong>da</strong> do poder por<br />
uma ditadura militar, houve um ver<strong>da</strong>deiro<br />
êxodo de profissionais, artistas e<br />
intelectuais e até hoje sua cultura ain<strong>da</strong><br />
não conseguiu se recuperar plenamente,<br />
em um processo muito parecido com o<br />
que vivemos no Brasil. Uma prova disso,<br />
a despeito de todo o talento existente,<br />
é o momento que passa hoje a nossa<br />
queri<strong>da</strong> música popular, acoberta<strong>da</strong> na<br />
mídia pelos “rebolations” <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Será<br />
que não existe espaço para a convivência<br />
do comercial com a quali<strong>da</strong>de? Sau<strong>da</strong>de<br />
dos tempos que eu ligava o rádio e ouvia<br />
Chico Buarque, Ivan Lins e Tom Jobim.<br />
Mas, voltando à Argentina, a sucessão de<br />
crises econômicas locais e mundiais e a<br />
22<br />
situação nos últimos tempos, fez com<br />
que essa reforma durasse quase dez anos.<br />
Contudo, a reconstrução do Colón<br />
parece correr em paralelo à retoma<strong>da</strong> dos<br />
caminhos <strong>da</strong> cultura argentina, em to<strong>da</strong><br />
sua extensão. O tango passou por uma<br />
ver<strong>da</strong>deira renovação, porém sem perder<br />
sua identi<strong>da</strong>de. Novas orquestras e grupos<br />
mais moderninhos surgem estabelecendo<br />
novas fronteiras para o tango em meio às<br />
ruas colori<strong>da</strong>s de “La Boca”. O cinema<br />
obteve um Oscar de filme estrangeiro e<br />
surgem diversos festivais por todo o país.<br />
Surge uma nova luz no fim do túnel, talvez<br />
um candelabro do Teatro Colón, que apesar<br />
de remodelado, mantém sua beleza e<br />
tradição, como um tango de Piazzolla.<br />
Paulo Rydlewski é maestro e atuou em centenas<br />
de concertos.<br />
O GRANDE TEATRO REABRE<br />
SUAS PORTAS<br />
Com uma programação de luxo, o<br />
Teatro Colón reabriu suas portas. A <strong>da</strong>ta<br />
de sua reinauguração foi ain<strong>da</strong> mais importante:<br />
coincidiu com o aniversário dos 200<br />
anos de independência (1810), o que deixa<br />
este acontecimento duplamente inscrito na<br />
história argentina.<br />
A beleza de sua arquitetura se destaca<br />
na mansão que está entre as ruas<br />
Cerrito, Viamonte, Tucumán e Libertad,<br />
em pleno centro portenho. Sua acústica<br />
é reconheci<strong>da</strong> internacionalmente como<br />
uma <strong>da</strong>s melhores. Em seu palco, viu-se<br />
o mais virtuoso <strong>da</strong> ópera, <strong>da</strong> música e do<br />
ballet do mundo. Toscanini, Stravinsky,<br />
Pavarotti, Domingo, Callas, Rubinstein,<br />
Nijinsky, Nureyev e Plissetskaia, citando<br />
alguns inesquecíveis para aqueles que tiveram<br />
o privilégio de experimentar a arte<br />
em maiúsculas. Os mais afortunados, no<br />
palco rebaixado, os demais, fixos no ‘paraíso’,<br />
o que vulgarmente se conhece entre
os portenhos como o ‘galinheiro’. Sua sala<br />
principal, com balcões até o terceiro piso,<br />
comporta até 2.600 espectadores.<br />
Sua primeira apresentação se realizou<br />
em 25 de maio de 1908 a cargo <strong>da</strong><br />
Grande Companhia Lírica Italiana, com a<br />
ópera Aí<strong>da</strong> de Giuseppe Verdi. Foi na déca<strong>da</strong><br />
de 70 que o renomado artista argentino,<br />
Raúl Soldi, pintou sua cúpula, com mais<br />
de 300 metros quadrados. Desde sempre e<br />
até nossos dias, o Colón é o símbolo mais<br />
bem-acabado do que significa a cultura em<br />
uma ci<strong>da</strong>de como Buenos Aires.<br />
Sua construção levou em torno de<br />
20 anos. O mármore foi enviado <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
italiana de Verona, o mosaico trazido<br />
de Veneza e os vitrais de Paris. O projeto<br />
inicial ficou a cargo do arquiteto Francesco<br />
Tamburini, e do seu sócio Víctor Meano.<br />
Mas foi um belga, Jules Dormal, quem finalmente<br />
conclui a obra e lhe deu o último<br />
retoque do estilo francês.<br />
Depois de seu fechamento, há quase<br />
quatro anos, por falta de investimento<br />
em manutenção e pela deterioração natural<br />
produzi<strong>da</strong> com o passar do tempo, o atual<br />
governo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Buenos Aires decidiu<br />
reformular o plano de obras para acelerar<br />
o atraso que já sofria sua reabertura,<br />
pensa<strong>da</strong> originalmente para 2008.<br />
“O turismo do mundo inteiro chega<br />
a nossa capital buscando a expressão<br />
artística em to<strong>da</strong>s as suas manifestações.<br />
Esse teatro é um imã, e presenciar uma<br />
apresentação em sua sala é uma experiência<br />
única”, afirma o presidente <strong>da</strong> pasta de<br />
Turismo de Buenos Aires e ministro <strong>da</strong><br />
Cultura portenho, Hernán Lombardi, cuja<br />
gestão impulsionou a reformulação e pôs<br />
em marcha as obras que permitiram a reabertura<br />
do teatro para as festivi<strong>da</strong>des do<br />
bicentenário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de. O projeto de turismo<br />
cultural <strong>da</strong> pasta tem como objetivo<br />
promover a inclusão <strong>da</strong> oferta do teatro –<br />
tanto a visita como a programação de 2010<br />
– nos pacotes turísticos.<br />
A valorização do Colón lhe devolve<br />
a hierarquia de grande teatro lírico que<br />
sempre foi, à altura do Ópera de Paris ou<br />
do Scala de Milão, e, ademais, o renova<br />
tecnologicamente, atualizando-o com o<br />
século XXI, num investimento em torno<br />
de 100 milhões de dólares. Sua acústica<br />
guar<strong>da</strong> a magia que, segundo os entendidos,<br />
supera a <strong>da</strong> Ópera de Viena e atinge<br />
o que os italianos denominam “niente”,<br />
quando o som perdura ain<strong>da</strong> que concluí<strong>da</strong><br />
sua execução.<br />
“Para os portenhos é um orgulho<br />
e para os visitantes um lugar obrigatório<br />
em sua passagem por Buenos Aires. Conta<br />
com uma programação de excelência que<br />
inclui a Orquestra Filarmônica de Munique<br />
e a do Teatro Alla Scala de Milão até a<br />
apresentação de ballet Manon e o Corsário”,<br />
assegura Lombardi.<br />
Durante sua reabertura, centenas<br />
de pessoas presenciaram um espetáculo<br />
de luzes e música que recriou as figuras<br />
e os momentos mais importantes na história<br />
do Colón. Sua apresentação de gala<br />
abriu com La Bohême. Aqueles que foram<br />
protagonistas de sua história, como o renomado<br />
bailarino argentino Julio Bocca,<br />
se emocionaram ao ver novamente as<br />
portas abertas do grande teatro, que conjuga<br />
os melhores artistas do mundo com<br />
a majestade de sua arquitetura.<br />
23<br />
Características<br />
técnicas e<br />
o projeto<br />
arquitetônico<br />
oficial foram<br />
mantidos.
24<br />
ARTE<br />
DEPOIS DO VAzIO<br />
bienal se recomPõe<br />
Latino-americanos<br />
na 29 a edição<br />
Francisco Alambert<br />
tudo soa instigante nesta proposta de Bienal.<br />
Tudo agora se reveste de promessas para desfazer<br />
o mal-estar causado pela Bienal anterior,<br />
que ficará para a história como a Bienal<br />
do Vazio. Promessas que poderiam até remeter<br />
ao pior do discurso político tradicional.<br />
E é justamente a relação entre arte e política o tema agora<br />
proposto: novas promessas para se estabelecer, em um evento<br />
do porte <strong>da</strong> Bienal, uma discussão contemporânea e digna.<br />
A Bienal anterior, aliás, antes de ser “vazia” (ou “diet”, como<br />
ironizou o crítico Paulo Sérgio Duarte), também prometeu<br />
pôr a mão na política, escancarar o vazio, a crise constante<br />
dessa mostra sempre turbulenta, que há um bom tempo vem<br />
se afogando em denúncias de corrupção, brigas de ricos,<br />
disputas por público de massa, e quase nenhuma relevância
cultural. Mas a proposta dos curadores<br />
não ultrapassou o cenário vazio que<br />
poderia ter encarado. Ela restará como<br />
promessa não cumpri<strong>da</strong>, como é comum<br />
na vi<strong>da</strong> pública.<br />
Por tudo isso, o que se deseja hoje<br />
é que a nova Bienal nos ofereça o que<br />
a anterior não conseguiu: uma reflexão<br />
consistente sobre o lugar <strong>da</strong> arte na nova<br />
configuração mundial e, ao mesmo tempo,<br />
sobre a própria instituição Fun<strong>da</strong>ção<br />
Bienal, palco político de suas tantas crises.<br />
Os curadores, Moacir dos Anjos e Agnaldo<br />
Farias, dois dos mais importantes pensadores<br />
brasileiros <strong>da</strong>s artes, são pessoas<br />
muito bem prepara<strong>da</strong>s para a tarefa. É de<br />
se louvar o fato, talvez inédito, de que to<strong>da</strong>s<br />
as instituições culturais de São Paulo<br />
tenham sido convi<strong>da</strong><strong>da</strong>s para participar<br />
<strong>da</strong> mostra paralela à Bienal, inclusive o<br />
<strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
Dentre os vizinhos latino-americanos<br />
escolhidos para a Bienal, é curioso<br />
antes de tudo notar que muitos deles<br />
vivem fora do continente. A maioria<br />
nos Estados Unidos (a começar pela<br />
curadora adjunta Rina Carvajal), outros<br />
na Europa (especialmente na Alemanha<br />
e na Espanha). Há algo aqui que já fala<br />
<strong>da</strong> política contemporânea <strong>da</strong>s artes, de<br />
seus deslocamentos e desterros, sejam<br />
eles propriamente políticos ou especialmente<br />
econômicos.<br />
É o caso de Alessandra Sanguinetti,<br />
que vive entre a Argentina e os Estados<br />
Unidos, trabalhando também como fotógrafa<br />
<strong>da</strong> agência Magnun. Seus trabalhos<br />
se destacam por uma elaboração original,<br />
que vai do universo dos sonhos <strong>da</strong> infância<br />
e <strong>da</strong> adolescência até um olhar estranhado<br />
(e entranhado) na vi<strong>da</strong> do campo,<br />
sobretudo na sua violência latente. Ou<br />
<strong>da</strong> peruana radica<strong>da</strong> na Espanha, Sandra<br />
Gamarra, que, anos atrás, apresentou um<br />
trabalho provocativo baseado em cópias<br />
de obras de artistas brasileiros contemporâneos,<br />
criando uma interessante discussão<br />
não apenas sobre autentici<strong>da</strong>de,<br />
mas também sobre patrimônio cultural e<br />
autoconhecimento em nações periféricas.<br />
Já o jovem artista cubano Wilfredo<br />
Prieto, que atualmente também vive<br />
na Espanha, é uma <strong>da</strong>s promessas do<br />
circuito mundial. Curiosamente, um de<br />
25
seus trabalhos mais conhecidos chamase<br />
justamente Apolítico, uma instalação<br />
feita com sessenta bandeiras de diversos<br />
países, cujo desenho é mantido, mas<br />
cujas cores são retira<strong>da</strong>s, substituí<strong>da</strong>s<br />
por tons de cinza, criando uma estranha<br />
uniformi<strong>da</strong>de. Nesta obra, a política<br />
tradicional e suas cores fortes são<br />
esvazia<strong>da</strong>s para se criar em seu lugar um<br />
espaço tanto crítico quanto reflexivo<br />
em relação à função <strong>da</strong>s cores (<strong>da</strong> arte,<br />
portanto), ao sentido <strong>da</strong> nacionali<strong>da</strong>de,<br />
à uniformi<strong>da</strong>de de um mundo sem utopias<br />
identificáveis.<br />
Mas certamente a grande “estrela”<br />
latino-americana dessa Bienal deverá<br />
ser a veterana argentina Marta Minujín<br />
que, desde os anos 60, elabora divertidos<br />
e provocantes projetos performáticos<br />
e efêmeros. Ações, mais do que<br />
26<br />
“obras” que podiam questionar a mídia<br />
(Leyendo las Noticias en el Río de la Plata, de<br />
1961, no qual jornais eram “afogados”<br />
no rio) ou a ditadura militar argentina,<br />
nos anos 70, como o inusitado Partenón<br />
de Libros, que reconstruía uma estrutura<br />
nas dimensões do Partenon grego, só<br />
que recoberta de livros proibidos pela<br />
ditadura (a documentação dessa obra foi<br />
apresenta<strong>da</strong> na 7ª Bienal do Mercosul).<br />
Nos anos 80, a artista inclusive “pagou”<br />
a dívi<strong>da</strong> externa <strong>da</strong> argentina oferecendo<br />
espigas de milho a Andy Warhol, típica<br />
performance pop à qual é afeita, ato<br />
revelador de sua concepção de política,<br />
ironia, arte e espetáculo.<br />
Francisco Alambert é professor <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de<br />
de São Paulo, historiador e pesquisador<br />
de arte.
Uma <strong>da</strong>s estrelas <strong>da</strong> 29 a<br />
Bienal, a argentina Marta<br />
Minujin já fez performance<br />
com Andy Warhol na déca<strong>da</strong><br />
de 1970.<br />
27
Acima, grafismo de<br />
Edith Derdyk e as<br />
camisetas de clubes de<br />
futebol de várzea de<br />
Júlio Leite. Ao lado,<br />
obra eletrônica de<br />
Diana Domingues.<br />
28<br />
MEMORIAL NO CIRCUITO<br />
<strong>da</strong> 29 a bienal de sÃo PaUlo<br />
O <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> fez parte do Polo de Arte Contemporânea<br />
idealizado pela 29ª Bienal Internacional de São Paulo de 2010. A Galeria Marta Traba<br />
exibiu a produção de brasileiros e artistas de cinco países que, neste ano, estão<br />
comemorando o Bicentenário de sua Independência: Argentina, Chile, Colômbia,<br />
México e Venezuela.<br />
A coletiva reuniu diferentes linguagens, hibridismos formais e interações para<br />
compor alguns dos atuais procedimentos <strong>da</strong> arte contemporânea. Com o título<br />
TRANSfronteiras, a mostra refletiu sobre a ideia <strong>da</strong>s passagens geográficas, culturais,<br />
linguísticas, mediáticas e artísticas interliga<strong>da</strong>s ao contexto do mundo informatizado.
CINEMA<br />
marco na ci<strong>da</strong>de<br />
O 5 o Festival de Cinema<br />
Latino-Americano<br />
Ana Candi<strong>da</strong> Vespucci<br />
o<br />
sucesso do 5o Festival de Cinema Latino-Americano,<br />
promovido pelo <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong> <strong>América</strong><br />
<strong>Latina</strong>, confirmou mais uma vez que o evento<br />
se tornou o mais importante do gênero, ao<br />
exibir a maioria <strong>da</strong>s melhores produções regionais<br />
realiza<strong>da</strong>s no período de 2000 a 2009. A festa, além<br />
<strong>da</strong>s homenagens de praxe a cineastas – este ano ao brasileiro<br />
João Batista de Andrade e ao argentino Marcelo Piñeyro -,<br />
também teve outra celebração: comemorou o bicentenário de<br />
29<br />
Cena do filme<br />
Memórias do<br />
Desenvolvimento,<br />
do cubano<br />
Miguel Coyula,<br />
inspirado no livro<br />
de Edmundo<br />
Desnoes.
Cena do filme A Água Fria do Mar, <strong>da</strong> costa-riquenha Paz Fábrega.<br />
independência de Argentina, Chile,<br />
Colômbia, México e Venezuela, com a<br />
apresentação de curta-metragens, todos<br />
realizados nos países aniversariantes.<br />
A primeira edição do festival<br />
foi em 2006, uma iniciativa inédita<br />
no país, que revelou a vitali<strong>da</strong>de de<br />
um cinema dono de estética singular,<br />
mas, ain<strong>da</strong> assim, ligado à linguagem<br />
cinematográfica universal. O cinema<br />
latino-americano foi ganhando fôlego<br />
ao longo do tempo e mostrou, nas edições<br />
subsequentes, que seus cineastas<br />
caminhavam, de fato, em direção ao<br />
público e vice-versa.<br />
Com parceria do Governo do<br />
Estado de São Paulo (Secretaria de<br />
Estado de Cultura e Secretaria de Relações<br />
Institucionais) e organização <strong>da</strong><br />
Associação do Audiovisual, a edição<br />
deste ano foi movimenta<strong>da</strong>. A crítica<br />
especializa<strong>da</strong> afirmou que o festival<br />
exibiu, no mínimo, 20 dos melhores filmes<br />
já produzidos na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
A relação é vasta: de Viúvas <strong>da</strong>s Quintasfeiras,<br />
do homenageado e renomado<br />
Marcelo Piñeyro, um dos principais<br />
diretores latino-americanos, a A Água<br />
Fria do Mar, filme que lança Paz Fábre-<br />
30<br />
ga, uma cineasta costa-riquenha, estreante<br />
em um país sem qualquer tradição<br />
cinematográfica.<br />
As sessões lotaram a plateia do<br />
Teatro Simón Bolívar, assim como <strong>da</strong>s<br />
demais instituições que receberam o<br />
evento: o Cinesesc, o Cinusp, o Museu<br />
<strong>da</strong> Imagem e do Som, e a Sala Cinemateca<br />
BNDES. Muita gente compareceu,<br />
desde a noite de abertura com a apresentação<br />
<strong>da</strong> obra de Paz Fábrega, escolhi<strong>da</strong><br />
pelas proprie<strong>da</strong>des muito particulares<br />
e pelo ineditismo em seu país de<br />
origem. A afluência de público também<br />
comprovou o interesse pelas oficinas<br />
e pelos debates, cujas discussões correram<br />
em torno <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de que<br />
é fazer cinema na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Paz<br />
Fábrega contou que sofreu para “tirar<br />
do papel” o seu A Água Fria do Mar. Explicou<br />
que, em seu país, as pessoas não<br />
vão ao cinema, apenas assistem à televisão<br />
e, além disso, ninguém vê o cinema<br />
como uma vertente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cultural. Por<br />
isso, demorou a obter o financiamento.<br />
Quando os recursos foram liberados, o<br />
filme – longamente amadurecido por<br />
conta <strong>da</strong> espera – teve de ser ro<strong>da</strong>do às<br />
pressas, “havia uma pequena janela de
oportuni<strong>da</strong>de para fazê-lo”. Ocorre que<br />
o clima <strong>da</strong> locali<strong>da</strong>de escolhi<strong>da</strong>, uma<br />
praia praticamente deserta, entraria na<br />
tempora<strong>da</strong> de chuvas fortes, o que inviabilizaria<br />
a produção durante meses.<br />
“Trabalho com o que tenho, fazendo<br />
um intercâmbio com o que ocorre.”<br />
Ain<strong>da</strong> na opinião dos cineastas,<br />
tanta demora também gera outro tipo<br />
de problema. Quem comentou foi<br />
Marcelo Gomes, autor de Cinema, Aspirinas<br />
e Urubus, um veterano, que já está<br />
em fase de produção de seu terceiro<br />
longa. Ele levou cinco anos para fazer<br />
seu primeiro filme e mais quatro para o<br />
segundo; um período, em que, de acordo<br />
com sua experiência, o cineasta tem<br />
de se repreparar para as mu<strong>da</strong>nças tecnológicas,<br />
embora essa evolução esteja<br />
barateando as produções. Nem assim<br />
tem sido fácil. Ele, em particular, en-<br />
controu produtores criativos, que entendem<br />
suas propostas. “São parceiros<br />
dos meus projetos, pessoas interessa<strong>da</strong>s<br />
em filmes autorais.” Como Cinema,<br />
Aspirinas e Urubus teve excelente repercussão,<br />
todos achavam que captar<br />
recursos para o segundo longa Viajo<br />
Porque Preciso, Volto Porque Te Amo não<br />
seria tão difícil. Porém, inicialmente o<br />
tema não agradou eventuais patrocinadores.<br />
Agora que está em sua terceira<br />
produção, cuja história se desenrola no<br />
Recife, conseguiu, por enquanto, os recursos<br />
para a pré-produção: “Não dá<br />
para inventar, por exemplo, que se trata<br />
de um filme de ação.”<br />
O fato é que para a maioria dos<br />
cineastas, sobretudo jovens, a grande<br />
dificul<strong>da</strong>de é financiamento. O próprio<br />
Marcelo Gomes já foi questionado<br />
quanto ao título Cinema, Aspirinas e Uru-<br />
Um público cativo de cinema<br />
lotou to<strong>da</strong>s as sessões.<br />
31
us. Perguntaram-lhe como ele pretendia<br />
que assistissem a um filme “com um<br />
título desses?” Ele acrescentou que faz<br />
filmes “para instigar a imaginação”, que<br />
faz mesmo apenas o que lhe interessa,<br />
sem se preocupar com rentabili<strong>da</strong>de.<br />
Felipe Bragança também. Premiado por<br />
A Fuga <strong>da</strong> Mulher Gorila, o cineasta conta<br />
que se preocupa com o imaginário audiovisual,<br />
“não saberia construir uma<br />
equação estratégica para alcançar um<br />
público X,Y ou Z.”<br />
Em outro debate, o tom descontraiu-se<br />
com a intervenção do cineasta<br />
e professor de roteiro Flavio González<br />
Mello, mexicano autor de narrativas<br />
para cinema, televisão e teatro: “A<br />
pessoa mais importante em um filme é<br />
o fotógrafo. Alguém com uma câmara<br />
na mão pode prescindir <strong>da</strong> montagem<br />
e a figura do diretor não tem a menor<br />
32<br />
As duas grandes premia<strong>da</strong>s deste ano:<br />
acima, a argentina Natalia Smirnoff e<br />
cena de seu filme Quebra-Cabeças; ao<br />
lado, a brasileira Marilia Rocha e seu<br />
filme A Falta Que Me Faz. Abaixo,<br />
João Batista de Andrade, homenageado<br />
brasileiro <strong>da</strong> edição deste ano.<br />
importância.” O cubano Miguel Coyula,<br />
jovem cineasta que mora nos Estados<br />
Unidos por conta de uma bolsa <strong>da</strong><br />
Fun<strong>da</strong>ção Guggenheim, autor do filme<br />
Memórias do Desenvolvimento, arrematou<br />
que “alguém com um computador pode<br />
prescindir de um fotógrafo”. Peremptório<br />
foi o brasileiro Kiko Goifman, autor<br />
do documentário 33, sobre a busca por<br />
sua mãe biológica, que começou aos 33<br />
anos de i<strong>da</strong>de, com um diário online que<br />
se transformou em filme. Ele acha que<br />
se produz muito no Brasil, mas se exibe<br />
pouco, frase que pode ser um paradigma<br />
<strong>da</strong> atual situação do cinema latinoamericano,<br />
permanentemente encarando<br />
o poder do cinema norte-americano.<br />
Ana Candi<strong>da</strong> Vespucci é jornalista especializa<strong>da</strong><br />
em cultura.
MARCELO PIÑEyRO<br />
ícone do cinema arGentino<br />
REVISTA NOSSA AMÉRICA – O<br />
que faz com que o cinema argentino tenha uma narrativa<br />
mais centra<strong>da</strong> na classe média, sem cair na técnica<br />
de telenovela? Até que ponto vocês são influenciados<br />
pela literatura?<br />
MARCELO PIÑEYRO – Como<br />
não poderia deixar de ser, a cultura argentina<br />
tem o aporte <strong>da</strong> literatura, que é bastante<br />
expressiva. Temos excelentes escritores,<br />
ótimos contistas como Jorge Luis Borges,<br />
Julio Cortázar, Bioy Casares, Manuel Puig<br />
e tantos outros. Recebemos uma influência<br />
natural <strong>da</strong> literatura.<br />
R.N.A. – Na Argentina os diretores contam<br />
com o Instituto de Cinema. Uma vez que no país<br />
O cineasta argentino<br />
que, ao lado de João<br />
Batista de Andrade,<br />
foi o homenageado<br />
do festival deste ano,<br />
concedeu entrevista à<br />
Nossa <strong>América</strong>.<br />
não há leis de incentivo fiscal, como vocês conseguem<br />
fazer 50 filmes por ano? Há muitas estratégias para<br />
se realizar as coproduções?<br />
M.P. – Eu tenho a sorte de fazer parte<br />
do reduzido grupo que não necessita de<br />
apoio governamental, não faço parte de<br />
suas instituições, na ver<strong>da</strong>de eu trabalho<br />
à margem e, por isso mesmo, às vezes tenho<br />
problemas com o Instituto de Cinema.<br />
Tenho muita liber<strong>da</strong>de para dizer o que eu<br />
quero porque não dependo <strong>da</strong> verba do<br />
governo. Mas já aconteceu de eu ser convi<strong>da</strong>do<br />
para um festival internacional e o<br />
Instituto de Cinema enviar uma carta à organização<br />
dizendo que meu filme não representa<br />
a Argentina.<br />
33
Os dois polos <strong>da</strong> carreira de Piñeyro: seu<br />
último filme As Viúvas <strong>da</strong>s Quintas-feiras e o<br />
inaugural Tango Feroz, de 1973.<br />
R.N.A. – Você hoje, praticamente, só participa<br />
de coproduções. Isso não limita sua criativi<strong>da</strong>de?<br />
Até que ponto os parceiros estrangeiros interferem em<br />
seu cinema, que tem fortes características de seus país?<br />
M.P. – Hoje, recorremos muito às parcerias<br />
internacionais, assim os filmes não são<br />
mais decididos só na Argentina. Temos que<br />
nos conciliar com os coprodutores, Não tem<br />
jeito, mas posso dizer que tenho liber<strong>da</strong>de.<br />
Até o ano 2000 ain<strong>da</strong> se podia fazer filmes<br />
como Patagônia Rebelde, hoje não mais. Nem<br />
mesmo A História Oficial ou O Beijo <strong>da</strong> Mulher<br />
Aranha, por exemplo. De certa forma, sempre<br />
há interferência <strong>da</strong> coprodução.<br />
R.N.A. – Até que ponto você acha importante<br />
festivais de cinema ? Quanto ao do <strong>Memorial</strong>,<br />
o que você tem a comentar?<br />
M.P. – Primeiro eu acho importante<br />
que existam festivais para conhecermos<br />
outras produções, diretores mais jovens,<br />
depois, o importante também são as trocas<br />
de ideias, que muitas vezes podem surgir de<br />
um encontro como este. O <strong>Memorial</strong> está<br />
organizando um bom festival, bem diversificado<br />
e organizado.<br />
R.N.A. – Em uma <strong>da</strong>s mesas deste festival<br />
alguns diretores desconstruíram a forma de se fazer<br />
cinema. Primeiro questionaram as tradicionais duas<br />
horas de duração e depois a presença de um diretor, de<br />
um fotógrafo e de roteristas. Qual sua opinião sobre o<br />
modelo de como se fazer cinema depois de mais de cem<br />
anos que ele foi inventado?<br />
M.P. – Faço cinema <strong>da</strong> forma tradicional,<br />
mantenho todos esses profissionais des-<br />
34<br />
cartados acima e às vezes tenho uma equipe<br />
mais numerosa do que gostaria de ter. Filmo<br />
o suficiente para ter uma projeção de duas<br />
horas, em sala particular. Não posso imaginar<br />
meus filmes projetados fora de uma sala<br />
tradicional.<br />
R.N.A. – Como você escolhe o roteiro? Você<br />
planeja e desenvolve uma ideia antes ou acontece ao<br />
acaso?<br />
M.P. – Na reali<strong>da</strong>de, não tenho um plano<br />
específico, meus filmes são resultados de<br />
histórias que me dão vontade de contar. Só<br />
isso.<br />
R.N.A. – Qual a sua opinião sobre a cinematografia<br />
brasileira?<br />
M.P. – O cinema brasileiro é muito<br />
potente. Vocês têm uma reali<strong>da</strong>de diferente<br />
<strong>da</strong> nossa, o que inspira também<br />
um cinema diferente. Considero Ci<strong>da</strong>de de<br />
Deus e Lavoura Arcaica dois grandes filmes.<br />
Leonor Amarante é editora <strong>da</strong> Revista<br />
Nossa <strong>América</strong>.
LITERATURA<br />
ExPANDINDO<br />
CONSTELAÇõES<br />
QUe vimos imPressas<br />
Saramago, único prêmio Nobel<br />
<strong>da</strong> língua portuguesa<br />
Ana Maria Ciccacio<br />
a<br />
língua portuguesa enlutou em junho<br />
com a morte de José Saramago, no dia<br />
18, aos 87 anos. O mundo perdeu o ator<br />
de algumas <strong>da</strong>s páginas mais pungentes<br />
contra a cegueira que leva os homens a<br />
digladiarem-se e enganarem-se cruelmente,<br />
as mulheres a serem estupra<strong>da</strong>s em nome de partilhas<br />
torpes, a comi<strong>da</strong> a ser inflaciona<strong>da</strong> a ponto de valer mais<br />
que a vi<strong>da</strong>. Certamente continuarão surgindo escritores dispostos<br />
a brandir contra a omissão, mas, talvez, não com a<br />
mesma sinceri<strong>da</strong>de e a franqueza desse português de Azinhaga<br />
(aldeia ao sul de Portugal), comunista convicto, polemista,<br />
único Prêmio Nobel <strong>da</strong> língua portuguesa (em 1998).<br />
35
Por que Saramago caiu tanto no<br />
gosto dos brasileiros enquanto em seu<br />
próprio país vivia às turras por causa<br />
de seus escritos? Em 1992 – ponto<br />
culminante dos entreveros com seus<br />
compatriotas –, O Evangelho Segundo Jesus<br />
Cristo foi excluído <strong>da</strong> lista de concorrentes<br />
ao Prêmio Literário Europeu<br />
pelo subsecretário de Estado <strong>da</strong> Cultura<br />
de Portugal, Sousa Lara. De Portugal<br />
à Itália, passando por Espanha, França<br />
e Alemanha, os jornais manifestaram<br />
perplexi<strong>da</strong>de com o descabimento do<br />
veto que, segundo eles, reeditava a Inquisição<br />
e comprometia as liber<strong>da</strong>des<br />
conquista<strong>da</strong>s pela Revolução dos Cravos,<br />
em 1974. Lara, contudo, mostravase<br />
inflexível: “O livro de Saramago não<br />
representa Portugal”.<br />
Há uma teoria: os brasileiros são<br />
leitores cativos desse expoente <strong>da</strong> moderna<br />
prosa portuguesa, ain<strong>da</strong> que com<br />
traços de um barroquismo ao gosto espanhol,<br />
pelo simples fato de Saramago<br />
ter coragem de expor-se com dúvi<strong>da</strong>s<br />
que costumam consumir todo ser humano<br />
pensante, mas na maioria <strong>da</strong>s<br />
vezes com medo de se expressar. Portugal,<br />
evidentemente, reconciliou-se<br />
com Saramago, e felizmente três anos<br />
36<br />
Saramago passeia ao lado de<br />
alguns amigos escritores.<br />
antes do Nobel de Estocolmo. Prova é<br />
que a mais alta condecoração <strong>da</strong> língua<br />
portuguesa, o Prêmio Camões, lhe foi<br />
concedido em 1995.<br />
Em setembro de 1983, como<br />
jornalista de O Estado de S. Paulo, eu<br />
tive o privilégio de entrevistá-lo sobre<br />
o lançamento do romance <strong>Memorial</strong> do<br />
Convento, no Brasil. E ele se referiu ao<br />
legado que nos acompanha, mas foi<br />
além. “Ao tomarmos consciência do<br />
que somos, ao tentarmos apreender<br />
melhor e definir o tempo em que vivemos,<br />
sentimos uma espécie de on<strong>da</strong><br />
que vem de trás. Quando um homem<br />
se sente tão plural, embora ain<strong>da</strong> confuso,<br />
tenta clarear suas ideias por meio<br />
do que escreve; como eu. E quer dizer<br />
tudo e quer encontrar respostas. E está<br />
perplexo”, ele disse e se definiu.<br />
Saramago praticou essa perplexi<strong>da</strong>de<br />
por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>, levando suas in<strong>da</strong>gações<br />
ao paroxismo de questionar a<br />
tradição, inclusive a religiosa católica, ao<br />
escrever sobre Jesus Cristo, sobre Caim,<br />
sobre o que pode ser feito em nome de<br />
Deus. Por que não in<strong>da</strong>gar?, perguntam<br />
os leitores brasileiros e, certamente, os<br />
de todo o mundo que passaram a respeitar<br />
o autor de Janga<strong>da</strong> de Pedra. Na en-
FOTOs: rePrOdUÇÃO<br />
trevista que me concedeu sobre a obra<br />
<strong>Memorial</strong> do Convento, à questão sobre se<br />
não poderíamos recor<strong>da</strong>r Memórias de<br />
Adriano ou A Obra em Negro, de Marguerite<br />
Yourcenar, escritora que comparece<br />
na epígrafe de seu “<strong>Memorial</strong>”, ele respondeu:<br />
“Talvez, neste momento, estejamos<br />
procurando emen<strong>da</strong>r a História,<br />
apesar do atrevimento. Não se trata de<br />
emen<strong>da</strong>r erros, mas fazer História de<br />
outra maneira. É como se alguém me<br />
tivesse feito uma narrativa erra<strong>da</strong>, e eu,<br />
sem saber qual a ver<strong>da</strong>deira, tentasse<br />
recontá-la pelos meus próprios meios,<br />
desconhecendo ain<strong>da</strong> se é a ver<strong>da</strong>deira.<br />
Mas é outra, e é necessária.”<br />
O Convento de Mafra, tema do<br />
<strong>Memorial</strong> do Convento, foi erguido entre<br />
1717 e 1735 por cerca de 40 mil<br />
homens a 40 quilômetros ao norte de<br />
Lisboa por determinação de D. João V,<br />
sem que jamais se apurasse exatamente<br />
a fortuna que consumiu para alimentar<br />
a Inquisição. E isto em um contexto<br />
no qual o brasileiro Bartolomeu<br />
de Gusmão sonhava voar e o músico<br />
italiano Domenico Scarlatti edificava<br />
sua magnífica obra. Portugal, segundo<br />
Saramago, ain<strong>da</strong> vivia em trevas, “com<br />
grande luxo, grande corrupção, ignorância<br />
e superstição”.<br />
Em todos os seus livros, José Saramago<br />
perscrutou o passado com a<br />
intenção de que seus textos transcendessem<br />
o tempo memorialístico para<br />
ganhar a dimensão <strong>da</strong> interiori<strong>da</strong>de<br />
do leitor, terreno pleno de liber<strong>da</strong>de<br />
se não assombrado por preconceitos e<br />
medos. “Não é ilusão do escritor que,<br />
ao concluir sua leitura, alguém alce voo<br />
e continue a expandir a constelação<br />
que viu impressa”, disse ele na rápi<strong>da</strong><br />
entrevista de tanta ver<strong>da</strong>de. Saramago<br />
se foi, mas em seus livros ele permanece<br />
íntegro e inquietante, buscando<br />
respostas que nem sempre obteve, levando-nos<br />
a expandir as constelações<br />
que vimos impressas.<br />
O ranking dO nObel<br />
nO mundO ibéricO<br />
Por enquanto, Saramago é o único escritor<br />
de língua portuguesa laureado com o<br />
Nobel de Literatura. Porém, <strong>da</strong> Península<br />
Ibérica foram vários autores espanhóis<br />
já agraciados com o prêmio, como, por<br />
exemplo, José Echevaray Y Eizaguirre, em<br />
1904, Jacinto Benavente Y Martinez (1922)<br />
e Vicente Aleixandre, em 1977.<br />
Entre os iberos e latino-americanos,<br />
foi uma escritora a primeira<br />
a levar o prêmio que já era considerado<br />
o mais respeitado do<br />
mundo <strong>da</strong>s letras: a chilena Gabriela<br />
Mistral (1945). Na sequência,<br />
ganharam o guatemalteco<br />
Miguel Ángel Asturias, em 1967,<br />
o chileno Pablo Neru<strong>da</strong> (1971), o<br />
colombiano Gabriel García Márquez<br />
(1982) e o mexicano Octavio<br />
Paz, em 1990.<br />
A obra de Saramago não se limita<br />
aos grandes romances que circulam<br />
pelo mundo em várias línguas, como<br />
Levantado do Chão, de 1980, seu primeiro<br />
best-seller internacional, ou Janga<strong>da</strong> de Pedra<br />
(1986) ou História do Cerco de Lisboa<br />
(1989). O escritor transitava em todos<br />
os segmentos em que a palavra escrita<br />
lhe permitisse se expressar. Dos contos,<br />
a exemplo de Objeto Quase (1978), aos<br />
ensaios, nove livros deles, listagem em<br />
que se inserem Deste Mundo e de Outro<br />
(1971) e Democracia e Universi<strong>da</strong>de (2010),<br />
Saramago também incursionou pela<br />
poesia (O Ano de 1993, de 1975) e pela<br />
dramaturgia: são suas, entre outras peças,<br />
A Noite (1979) e Dom Giovanni ou O<br />
Dissoluto Absolvido (2005).<br />
Ana Maria Ciccacio é jornalista <strong>da</strong> área<br />
cultural.<br />
37
38<br />
PLANETA<br />
NAS PROFUNDEzAS DA<br />
terra<br />
A força incontrolável<br />
<strong>da</strong> natureza<br />
Umberto G. Cor<strong>da</strong>ni<br />
o<br />
homem pode conhecer bem o que<br />
acontece a milhares de quilômetros acima<br />
de sua cabeça, mas não consegue saber<br />
direito o que acontece a algumas centenas<br />
de quilômetros abaixo de seus pés. As<br />
perfurações mais profun<strong>da</strong>s efetua<strong>da</strong>s na<br />
Terra atingem no máximo uma dezena de quilômetros de<br />
profundi<strong>da</strong>de, de modo que têm que ser utiliza<strong>da</strong>s outras armas<br />
para a investigação <strong>da</strong> composição e condições físico-químicas<br />
dos materiais existentes no interior do planeta. Tudo o que<br />
sabemos é estabelecido com base em evidências indiretas,<br />
tais como estudos de meteoritos, planetologia compara<strong>da</strong>,<br />
estudos de petrologia experimental, bem como evidências<br />
geofísicas oriun<strong>da</strong>s de pesquisas sobre magnetismo terrestre,<br />
comportamento de on<strong>da</strong>s sísmicas e fluxo térmico do planeta.
ilUsTraÇões: insTiTUTO de geOCiênCias - UsP<br />
A Terra formou-se há 4,57 bilhões de anos atrás, ao mesmo tempo do que o<br />
Sol e os demais planetas do Sistema Solar, através <strong>da</strong> condensação do gás e <strong>da</strong> poeira<br />
cósmica que constituíam a nebulosa solar. Portanto ela, nos primórdios de sua formação,<br />
consistia de uma mistura caótica de materiais que foi manti<strong>da</strong> coesa pela atração<br />
gravitacional. A evolução do planeta resultou <strong>da</strong> transformação dessa mistura caótica<br />
em um corpo estruturado em cama<strong>da</strong>s concêntricas diferentes entre si. O material<br />
mais denso afundou e concentrou-se no interior do planeta ao passo que o material<br />
menos denso constitui a parte mais superficial. Nesse contexto formaram-se dois<br />
sistemas fun<strong>da</strong>mentais: um núcleo interno formado por Ferro e Níquel e um manto<br />
envolvente rochoso. A crosta terrestre, a cama<strong>da</strong> mais externa do planeta onde estamos<br />
situados, originou-se mais tarde, por modificações do material do manto.<br />
A FIGURA 1 mostra um perfil genérico<br />
mostrando as cama<strong>da</strong>s superficiais<br />
<strong>da</strong> Terra, com as denominações pertinentes.<br />
Há dois tipos de crosta terrestre: a<br />
crosta continental, de natureza granítica e<br />
espessura média maior, e a crosta oceânica,<br />
de natureza basáltica e espessura média<br />
menor. Esta última situa-se nas extensas<br />
regiões de domínio oceânico, e seu topo<br />
corresponde ao assoalho marinho. A litosfera<br />
inclui inteiramente os dois tipos<br />
de crosta, e mais parte do assim chamado<br />
manto superior. Em consequência,<br />
também há duas denominações para a<br />
litosfera, continental e oceânica, correspondendo<br />
à natureza <strong>da</strong> crosta nela inclu-<br />
í<strong>da</strong>. Ambos os tipos de litosfera possuem<br />
comportamento rígido e sobrepõem-se a<br />
uma zona com características físicas mais<br />
plásticas, denomina<strong>da</strong> astenosfera. O seu<br />
topo situa-se de aproxima<strong>da</strong>mente 100 a<br />
200 km de profundi<strong>da</strong>de, sempre dentro<br />
do manto, e nela ocorre pequena percentagem<br />
de material líquido (magma).<br />
A dinâmica interna do planeta tem<br />
suas origens na mobili<strong>da</strong>de do material do<br />
manto, apesar deste ser quase que totalmente<br />
no estado sólido. A temperatura no<br />
seu interior aumenta na direção ao centro<br />
<strong>da</strong> Terra, atingindo no limite manto/núcleo<br />
cerca de 4000ºC. Nas proximi<strong>da</strong>des<br />
do centro <strong>da</strong> Terra, no núcleo constituído<br />
<strong>39</strong><br />
Figura 1 – Perfil<br />
esquemático dos primeiros<br />
300 km a partir <strong>da</strong><br />
superfície <strong>da</strong> Terra,<br />
mostrando duas placas<br />
tectônicas com limite<br />
divergente. São indica<strong>da</strong>s<br />
as principais feições <strong>da</strong><br />
litosfera, e a denominação<br />
<strong>da</strong>s uni<strong>da</strong>des maiores <strong>da</strong><br />
crosta e <strong>da</strong> litosfera.
Figura 2 - Configuração<br />
<strong>da</strong> superfície <strong>da</strong> Terra<br />
com a denominação<br />
e a delimitação <strong>da</strong>s<br />
placas tectônicas mais<br />
importantes.<br />
por Ferro e Níquel, a temperatura atinge<br />
por volta de 5500ºC. O calor interno, produzido<br />
principalmente através <strong>da</strong> desintegração<br />
dos elementos radioativos de meiavi<strong>da</strong><br />
longa existentes no manto, tais como<br />
Urânio, Tório, Potássio e outros, é transportado<br />
para a superfície, para em segui<strong>da</strong><br />
ser dissipado para fora do planeta. Consequentemente,<br />
com a diminuição progressiva<br />
e inexorável dos elementos radioativos,<br />
o planeta vai lentamente resfriando.<br />
O transporte do calor interno pode ser<br />
por condução ou por convecção, e este<br />
último modo consiste <strong>da</strong> movimentação<br />
de massa <strong>da</strong>s zonas mais quentes para as<br />
mais frias. No entender de muitos geofísicos,<br />
as principais fontes de energia interna<br />
<strong>da</strong> Terra localizam-se na zona limite entre<br />
o manto e o núcleo, onde existe uma cama<strong>da</strong><br />
de alta temperatura, cerca de 1000ºC<br />
mais eleva<strong>da</strong> do que as rochas mantélicas<br />
adjacentes. As correntes de convecção no<br />
manto, embora muito lentas, são o motor<br />
<strong>da</strong> dinâmica interna do planeta, responsáveis<br />
pelo fluxo térmico observado na<br />
superfície e pelos movimentos <strong>da</strong>s placas<br />
tectônicas, que serão descritos a seguir.<br />
FIGURA 2. A litosfera é dividi<strong>da</strong><br />
em cerca de uma dúzia de placas tectônicas<br />
grandes e muitas placas menores. Essas<br />
placas se movimentam tangencialmente<br />
à superfície do planeta, com veloci<strong>da</strong>des<br />
distintas que podem variar de menos de<br />
40<br />
um centímetro por ano a uma dezena de<br />
centímetros por ano. Esse movimento depende<br />
<strong>da</strong>s correntes de convecção mantélicas<br />
subjacentes, que originam-se nas<br />
zonas mais quentes do manto, onde o material<br />
inicia uma ascensão para níveis superiores.<br />
Ao mesmo tempo, para compensar<br />
essa ascensão, rochas mais frias e por isso<br />
mesmo mais densas descem e preenchem<br />
o espaço deixado pelo material que subiu,<br />
completando o movimento circular <strong>da</strong>s<br />
células de convecção. As placas tectônicas,<br />
constituí<strong>da</strong>s de porções <strong>da</strong> litosfera rígi<strong>da</strong>,<br />
se movimentam sobre o material mais<br />
plástico <strong>da</strong> astenosfera, e os limites entre<br />
elas constituem o sítio ideal para a ocorrência<br />
<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des que caracterizam a<br />
dinâmica interna <strong>da</strong> Terra. As figuras 2 e 3<br />
mostram que esses limites não correspondem<br />
àqueles entre continentes e oceanos.<br />
Nos limites entre placas tectônicas<br />
contíguas concentram-se, praticamente,<br />
todos os terremotos de grande intensi<strong>da</strong>de<br />
e a grande maioria dos vulcões ativos<br />
do planeta. Eles podem ser convergentes,<br />
divergentes, ou conservativos.<br />
Nos limites convergentes ocorre<br />
o choque entre duas placas que se aproximam.<br />
As feições geológicas cria<strong>da</strong>s e as<br />
modificações produzi<strong>da</strong>s na crosta irão<br />
depender <strong>da</strong> natureza de sua litosfera.<br />
No caso de choque de uma placa oceânica<br />
com outra <strong>da</strong> mesma natureza, uma<br />
delas mergulhará por debaixo <strong>da</strong> outra,<br />
voltando para o manto, e criando o que<br />
se denomina “zona de subducção”. Se<br />
as duas placas tiverem litosfera continental,<br />
haverá um processo colisional, com<br />
a geração de cordilheiras de montanhas,<br />
como os Alpes e os Himalaias. Por fim,<br />
se o limite convergente envolver uma placa<br />
continental e uma placa oceânica, esta<br />
mergulhará em subducção, e na placa vizinha<br />
haverá magmatismo intenso, como<br />
ocorre na Cordilheira Andina. No caso de<br />
limites divergentes entre placas tectônicas<br />
aparecem aberturas na crosta, ao longo de<br />
grandes sistemas de fraturamento, associa-<br />
ilUsTraÇões: insTiTUTO de geOCiênCias - UsP
dos com vulcanismo intenso. É o caso <strong>da</strong>s<br />
chama<strong>da</strong>s dorsais meso-oceânicas, as cordilheiras<br />
submersas que atravessam todos<br />
os oceanos, as quais representam os locais<br />
de geração de crosta oceânica nova, pela<br />
subi<strong>da</strong> de magmas basálticos provenientes<br />
do manto. Se o movimento divergente<br />
durar muitos milhões de anos, o que é comum,<br />
fundos oceânicos inteiros poderão<br />
ser formados. A título de exemplo, pode<br />
ser menciona<strong>da</strong> a Dorsal Meso-Atlântica,<br />
que divide o Atlântico em duas partes simétricas.<br />
Nela situa-se a Islândia, sítio de<br />
grandes fraturamentos e muitos vulcões,<br />
um deles bastante ativo neste ano de 2010,<br />
lançando cinzas e gases na atmosfera. Por<br />
sua vez, os limites de placas conservativos<br />
apresentam grandes sistemas de falhamento,<br />
em que as placas contíguas deslizam<br />
horizontalmente, uma em relação à outra,<br />
com movimentação oposta. O exemplo<br />
mais conhecido e mais característico é o<br />
sistema de falhas de San Andréas, na costa<br />
ocidental <strong>da</strong> <strong>América</strong> do Norte.<br />
Pelo exposto decorre que se situa<br />
no manto o motor dos processos <strong>da</strong> dinâmica<br />
interna do planeta, que produzem as<br />
maiores modificações na fisiografia, estrutura<br />
e natureza do material <strong>da</strong> crosta terrestre.<br />
Esse motor interno é responsável<br />
pela existência do relevo, ou seja, <strong>da</strong>s terras<br />
emersas no planeta, os continentes. Com<br />
efeito, o relevo é continuamente atacado e<br />
desbastado pelos agentes <strong>da</strong> dinâmica externa,<br />
e se não houvesse um mecanismo<br />
adequado para a sua contínua reposição,<br />
não haveria continentes, e o fundo do único<br />
oceano global estaria situado por volta<br />
de 2.500 metros de profundi<strong>da</strong>de.<br />
A FIGURA 3 mostra a situação <strong>da</strong>s<br />
placas tectônicas na região do planeta em<br />
que situam-se os países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
As placas maiores são a Norte-Americana<br />
e a Sul-Americana, que incluem as<br />
respectivas litosferas continentais, mais as<br />
porções de litosfera oceânica relativas às<br />
regiões do Oceano Atlântico que lhe são<br />
contíguas. A placa do Caribe, que inclui<br />
Figura 3 – Denominação e delimitação <strong>da</strong>s placas tectônicas maiores na<br />
região que inclui os países <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Nela estão indicados os<br />
sentidos dos movimentos atuais no limites entre as placas, e sua veloci<strong>da</strong>de<br />
aproxima<strong>da</strong>, em cm/ano. A localização de alguns vulcões ativos e de locais em<br />
que ocorreram alguns grandes terremotos também foi mostra<strong>da</strong>.<br />
• Círculos: vulcões ativos. 1 – Islândia; 2 – Tristão <strong>da</strong> Cunha; 3 – Saint Helens;<br />
– 4 Saint Pierre; 5 – Nevado Ruiz; 6 – Galapagos; 7 – Arenal; 8 – Cerro<br />
Hudson; 9 – Ilha de Páscoa.<br />
• Triângulos: Epicentros de grandes sismos. 10 – Ci<strong>da</strong>de do México; 11 – Porto<br />
Príncipe; 12 – Valdívia; 13 – Concepción; 14 – San Francisco.<br />
numerosas ilhas vulcânicas, e as placas de<br />
Nazca, de Cocos, do Pacífico e <strong>da</strong> Antártica,<br />
nas margens do Oceano Pacífico, são<br />
to<strong>da</strong>s forma<strong>da</strong>s por litosfera oceânica.<br />
Na figura 3, limites divergentes<br />
ocorrem apenas ao longo <strong>da</strong>s dorsais do<br />
Atlântico e do Pacífico Oriental, onde<br />
as ilhas vulcânicas <strong>da</strong> Islândia, Tristão <strong>da</strong><br />
Cunha, de Páscoa e Galápagos são testemunho<br />
dos grandes fraturamentos e do<br />
seu vulcanismo associado. Com exceção<br />
do limite conservativo entre a placa do<br />
Pacífico e <strong>da</strong> <strong>América</strong> do Norte, sítio do<br />
grande Falhamento de San Andréas, os<br />
demais limites são convergentes, indicando<br />
aproximação entre placas tectônicas.<br />
Este é o caso <strong>da</strong>s placas de Nazca e de<br />
Cocos em relação às placas <strong>da</strong>s <strong>América</strong>s<br />
do Norte e do Sul, em que a convergência<br />
41
O globo terrestre, e<br />
as variações térmicas.<br />
No caso, a linha<br />
grifa<strong>da</strong> delimita a<br />
placa do pácifico.<br />
se dá entre uma placa com litosfera continental<br />
e outra com litosfera oceânica.<br />
Na parte oriental <strong>da</strong> placa do Caribe e <strong>da</strong><br />
placa de Scotia, a convergência se dá entre<br />
duas porções de litosfera oceânica.<br />
Nos limites convergentes ou conservativos<br />
é que ocorrem os maiores<br />
riscos sísmicos e vulcânicos. No caso<br />
dos terremotos, a <strong>da</strong>ta e hora do evento,<br />
mesmo que aproxima<strong>da</strong>s, não podem<br />
ser previstas. A dificul<strong>da</strong>de para esta previsão<br />
é a seguinte: os movimentos direcionais<br />
continuados de material, com o<br />
tempo, pressionam gra<strong>da</strong>tivamente a<br />
litosfera rígi<strong>da</strong>, acumulando energia justamente<br />
nos limites <strong>da</strong>s placas. Quando<br />
as pressões ultrapassam o que a litosfera<br />
pode suportar, a energia acumula<strong>da</strong><br />
é libera<strong>da</strong> em curto espaço de tempo, o<br />
que provoca um grande terremoto, com<br />
o seu séquito de tremores associados.<br />
Para ca<strong>da</strong> região sísmica, os seus registros<br />
históricos indicam a frequência e a<br />
intensi<strong>da</strong>de aproxima<strong>da</strong> dos terremotos,<br />
medi<strong>da</strong> pela sua magnitude. No caso dos<br />
vulcões, a previsão de erupções é possível<br />
em certa medi<strong>da</strong>. De início, o local<br />
dos centros eruptivos é conhecido, de<br />
modo que os assentamentos e demais<br />
ativi<strong>da</strong>des humanas não precisam localizar-se<br />
nas proximi<strong>da</strong>des dos centros de<br />
perigo. Além disso, com o monitoramento<br />
dos vulcões, através de sismógrafos, a<br />
42<br />
subi<strong>da</strong> do magma pode ser senti<strong>da</strong> com<br />
alguma antecedência, dias ou semanas, o<br />
que permite operações de evacuação <strong>da</strong>s<br />
populações em áreas perigosas. O caso<br />
mais emblemático aconteceu em 1991,<br />
quando uma <strong>da</strong>s maiores manifestações<br />
vulcânicas do século XX foi prevista<br />
com o tempo apenas necessário para salvar<br />
cerca de 80 mil vi<strong>da</strong>s nas proximi<strong>da</strong>des<br />
do vulcão Pinatubo, nas Filipinas. A<br />
erupção foi tão grande que cinzas vulcânicas<br />
e aerosóis foram lançados para a estratosfera,<br />
e seus produtos ain<strong>da</strong> podem<br />
ser encontrados a mais de 2.000 quilômetros<br />
de distância do vulcão.<br />
Na figura 3 são indicados alguns<br />
locais escolhidos onde ocorreram grandes<br />
eventos sísmicos ou vulcânicos que devastaram<br />
regiões <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, comentados<br />
a seguir, todos relacionados com<br />
limites entre placas.<br />
Os sismos de Valdívia (1960 –<br />
magnitude 9,5), e de Concepción (2010<br />
– magnitude 8,8), cujos epicentros estão<br />
relativamente próximos entre si, no Chile,<br />
ilustram muito bem a recorrência dos<br />
grandes terremotos que afetam regiões<br />
sismicamente muito ativas. No caso trata-se<br />
do avanço <strong>da</strong> placa Sul-Americana<br />
sobre a placa de Nazca, na medi<strong>da</strong> de<br />
onze centímetros por ano (Figura 3). Na<br />
região ocorre pelo menos um terremoto<br />
importante em ca<strong>da</strong> déca<strong>da</strong>, e os dois<br />
indicados estão entre os maiores eventos<br />
mundiais dos últimos tempos, em termos<br />
de magnitude sísmica.<br />
Quanto aos riscos que as zonas sísmicas<br />
apresentam para a humani<strong>da</strong>de, os<br />
grandes terremotos sempre causam <strong>da</strong>nos<br />
materiais substanciais. Entretanto, com<br />
relação à per<strong>da</strong> de vi<strong>da</strong>s, a relação maior é<br />
com a vulnerabili<strong>da</strong>de dos assentamentos<br />
locais. Na figura 3 estão indicados, além<br />
dos dois exemplos chilenos, os locais dos<br />
grandes terremotos de São Francisco,<br />
EUA (1987 – magnitude 7,1), Ci<strong>da</strong>de do<br />
México (1985 – magnitude 8,1 ) e Porto<br />
Príncipe, Haiti (2009 – magnitude 7,0 ).
Sabe-se que nos EUA as construções civis<br />
são antissísmicas, feitas levando em conta<br />
as possibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> ocorrência de grandes<br />
sismos, e portanto seguindo regulamentos<br />
e controles muito rigorosos. Isto seguramente<br />
impediu que no sismo de São Francisco<br />
os edifícios <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de colapsassem,<br />
e fez com que o número de vítimas fosse<br />
pequeno, menos de vinte pessoas. Em<br />
contraste, no terremoto de Porto Príncipe,<br />
cuja magnitude foi similar, a ci<strong>da</strong>de inteira<br />
foi destruí<strong>da</strong>, pela fraqueza estrutural<br />
de suas construções civis. Nesse evento o<br />
número de vítimas foi descomunal, mais<br />
de 200 mil pessoas pereceram. No Chile<br />
os códigos para construção civil também<br />
são rigorosos. Entretanto a magnitude<br />
dos terremotos de Valdívia e Concepción<br />
foi tão eleva<strong>da</strong> que a destruição foi grande,<br />
e o custo em vi<strong>da</strong>s também foi muito<br />
alto, cerca de 6 mil pessoas no primeiro<br />
caso, e mil no segundo. De qualquer<br />
forma, muito menos vítimas do que em<br />
Porto Príncipe. Caso intermediário foi o<br />
<strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de do México, situa<strong>da</strong> em terreno<br />
pouco consoli<strong>da</strong>do, de sedimentos lacustres.<br />
Esse material amplificou as vibrações<br />
do solo durante o terremoto de 1985, a<br />
destruição foi considerável, e cerca de 10<br />
mil pessoas foram vitima<strong>da</strong>s.<br />
Com relação aos vulcões ativos, o<br />
seu monitoramento possibilita evitar grandes<br />
per<strong>da</strong>s de vi<strong>da</strong>s, embora a devastação<br />
provoca<strong>da</strong> por erupções de lavas e outros<br />
materiais vulcânicos não possa ser impedi<strong>da</strong>.<br />
Vulcões recentemente ativos, como<br />
o Cerro Hudson no Chile ou o Arenal na<br />
Costa Rica, estão relativamente afastados<br />
de assentamentos urbanos para provocar<br />
vítimas fatais. Entretanto, isto pode ocorrer<br />
em condições particulares, em que a ativi<strong>da</strong>de<br />
vulcânica se associa a circunstâncias<br />
adicionais que podem em muito aumentar<br />
a sua capaci<strong>da</strong>de destrutiva. Três exemplos<br />
são <strong>da</strong>dos a seguir.<br />
Pelo acúmulo de pressão em sua<br />
câmara magmática, o vulcão Saint Helens,<br />
nos EUA, explodiu em 1980, lançando aos<br />
ares grande parte de seu edifício vulcânico,<br />
o que reduziu de 400 metros a sua elevação,<br />
e devastou uma enorme área em seus<br />
arredores. Como a região tem ocupação<br />
humana pouco relevante, apenas cerca de<br />
60 vítimas foram contabiliza<strong>da</strong>s. Em 1985,<br />
o Nevado Ruiz, na Colômbia, teve uma<br />
erupção modera<strong>da</strong> em termos vulcânicos,<br />
mas que aqueceu e fundiu grande quanti<strong>da</strong>de<br />
de material de suas geleiras, provocando<br />
a formação de grandes massas de<br />
lama e fragmentos de rocha, que desceram<br />
vales abaixo com grande veloci<strong>da</strong>de e grande<br />
força destrutiva. A ci<strong>da</strong>de de Armero,<br />
situa<strong>da</strong> num dos vales que se originam no<br />
vulcão, contabilizou cerca de 25 mil vítimas.<br />
Finalmente, características insólitas<br />
teve a erupção do Mt. Pelée que destruiu<br />
completamente a ci<strong>da</strong>de de Saint Pierre,<br />
na Martinica, em 1902. Na ocasião, além<br />
de materiais vulcânicos normais, o vulcão<br />
emitiu uma grande quanti<strong>da</strong>de de vapor<br />
superaquecido a mais de 1000 graus centígrados,<br />
misturado com outros gases e cinza<br />
vulcânica, que desceu as encostas a atingiu<br />
Saint Pierre, incendiando-a completamente<br />
em poucos minutos.<br />
Os poucos exemplos aqui descritos<br />
servem para ilustrar que os movimentos<br />
inerentes à tectônica de placas, embora a<br />
veloci<strong>da</strong>de destas seja muito pequena para<br />
ser observa<strong>da</strong> no dia a dia, pode ter consequências<br />
trágicas nas regiões que situam-se<br />
no limite entre placas contíguas. Nesse aspecto<br />
o Brasil pode considerar-se beneficiado<br />
pela sua situação geográfica. Apesar<br />
de ser um país de grande dimensão, está ele<br />
localizado na região central <strong>da</strong> Placa Sulamericana,<br />
onde não há vulcões ativos, e as<br />
ativi<strong>da</strong>des sísmicas assinala<strong>da</strong>s em seu território<br />
são de baixa intensi<strong>da</strong>de, sem grandes<br />
riscos para os assentamentos humanos.<br />
Umberto G. Cor<strong>da</strong>ni é diretor do Instituto<br />
de Estudos Avançados <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de<br />
São Paulo e professor do Instituto de Geociências<br />
<strong>da</strong> USP.<br />
43
44<br />
OLHAR<br />
MATILDE MARíN<br />
itinerÁrio
matilde Marín, artista argentina, mergulhou<br />
no vasto território <strong>da</strong> Patagônia<br />
para compor um poema visual impregnado<br />
de mistério, magnetismo e sedução,<br />
ingredientes contidos na imensidão dos<br />
horizontes infinitos. A paisagem que seduz<br />
e repele não é dura, ao contrário, romantiza uma <strong>da</strong>s regiões<br />
mais enigmáticas do planeta. Um dos desafios propostos<br />
por Matilde, tanto em fotos como em vídeos, é o de revisar a<br />
relação <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> natureza. Ela vai muito além disso.<br />
45
50<br />
ECONOMIA<br />
COMPORTAMENTO<br />
aFeta resUltados<br />
Como a cultura mol<strong>da</strong><br />
a forma de gerir empresas<br />
Paulo Roberto Feldmann<br />
a<br />
História de uma nação define valores que se<br />
perpetuam por gerações e que acabam por<br />
determinar o comportamento dos seus ci<strong>da</strong>dãos.<br />
Ou seja, é por conta desses valores<br />
que os indivíduos estão dispostos a assumir<br />
mais ou menos riscos, serão mais ou menos<br />
patriotas, estarão dispostos ou não a repartir lucros e assim por<br />
diante. Ela acaba por afetar costumes e hábitos e, consequentemente,<br />
interferir nos fatores culturais, influindo também na forma<br />
como as empresas de uma região ou país são administra<strong>da</strong>s.<br />
Max Weber (1930) já dizia que a cultura pesa, determina, inclina<br />
e acaba por decidir que nações prosperam e quais estão<br />
condena<strong>da</strong>s à pobreza, enquanto seus povos não mu<strong>da</strong>rem<br />
de hábitos, crenças e valores. Weber dizia que a ética
FOTO: rePrOdUÇÃO<br />
protestante era a responsável pelo fato<br />
<strong>da</strong> Alemanha e <strong>da</strong> Suíça serem mais<br />
bem-sucedi<strong>da</strong>s economicamente no<br />
século XIX que os países católicos<br />
como Espanha e Portugal. As empresas<br />
latino-americanas decorrem de<br />
uma socie<strong>da</strong>de de formação aristocrática<br />
e oligárquica. Essa socie<strong>da</strong>de sempre<br />
foi centra<strong>da</strong> nas classes mais abasta<strong>da</strong>s,<br />
cujas famílias fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s na<br />
forma patriarcal foram responsáveis<br />
pelo surgimento <strong>da</strong>s primeiras empresas<br />
importantes <strong>da</strong> região. É natural<br />
que a forma <strong>da</strong>s empresas se organizarem<br />
fosse muito pareci<strong>da</strong> com a forma<br />
como as pessoas dentro <strong>da</strong>s famílias se<br />
relacionavam. Por outro lado, durante<br />
muitos séculos, a ativi<strong>da</strong>de agrícola era<br />
praticamente a única ativi<strong>da</strong>de econômica,<br />
o que acabou por fazer com<br />
que o sistema feu<strong>da</strong>l predominante<br />
no campo acabasse tendo raízes fun<strong>da</strong>s<br />
na cultura latino-americana e até<br />
na forma como as empresas <strong>da</strong> região<br />
são administra<strong>da</strong>s.<br />
Um dos exemplos mais típicos<br />
dessa influência <strong>da</strong> cultura nos negócios<br />
no caso latino-americano está no tema<br />
<strong>da</strong>s amizades. Misturar negócios com<br />
amizade é comum na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. O<br />
contrato às vezes não é tão importante<br />
quanto à palavra empenha<strong>da</strong>. Enquanto<br />
nos Estados Unidos existe o culto<br />
ao advogado, sendo tudo enfocado<br />
nos contratos, na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> existe<br />
o culto à “personali<strong>da</strong>de”, ou seja,<br />
tudo depende de com quem você estiver<br />
negociando.<br />
Vários autores que estu<strong>da</strong>ram o<br />
tema realçam que a principal caracte-<br />
51
ística de comportamento dos latinos,<br />
que afeta a forma como as empresas<br />
<strong>da</strong> região são geri<strong>da</strong>s, são as extensas<br />
redes de relacionamento pessoal. Ao<br />
contrário dos norte-americanos os<br />
latino-americanos têm uma visão negativa<br />
<strong>da</strong> competição individual, mas<br />
dão uma enorme importância aos<br />
grupos sociais de que fazem parte.<br />
Há uma frase corrente que diz que os<br />
americanos fazem negócios e depois,<br />
se possível, amigos; enquanto os latinos<br />
primeiro verificam se são amigos<br />
para depois irem aos negócios.<br />
Outro traço cultural muito característico<br />
e também problemático é<br />
o fato <strong>da</strong> quase totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> grande<br />
empresa latino-americana possuir seu<br />
controle acionário nas mãos de um indivíduo<br />
ou, quando muito, nas mãos<br />
de uma ou duas famílias. Isto leva a<br />
um afrouxamento dos controles sobre<br />
os resultados e a ausência de profissionalização<br />
<strong>da</strong> gestão, ou seja, os<br />
acionistas muitas vezes não cobram<br />
resultados porque eles mesmos são<br />
os executivos. É comum os donos <strong>da</strong>s<br />
empresas não conseguirem separar<br />
claramente os limites <strong>da</strong> empresa dos<br />
limites <strong>da</strong> família.<br />
O contrário ocorre nos EUA,<br />
onde o capital <strong>da</strong> grande empresa é<br />
muito mais pulverizado e os acionistas<br />
minoritários pressionam muito<br />
mais por resultados consistentes. Nas<br />
empresas latino-americanas dificilmente<br />
se encontra a separação entre<br />
o Conselho de Administração e a Diretoria<br />
Executiva. Enquanto em boa<br />
parte <strong>da</strong>s empresas norte-americanas<br />
é muito difícil descobrir-se quem é o<br />
dono <strong>da</strong>s mesmas, tamanha a pulverização<br />
<strong>da</strong>s ações, nas empresas latinoamericanas<br />
praticamente sempre se<br />
sabe quem é o dono.<br />
Por outro lado, quando ocorrem<br />
problemas ou fracassos nas suas empresas,<br />
o primeiro culpado a ser apon-<br />
52<br />
tado pelos empresários é sempre o<br />
governo. Os empresários de nossa região<br />
estão sempre na defensiva, nunca<br />
admitindo suas próprias falhas ou de<br />
suas empresas. Se houver problemas,<br />
prejuízos ou fracassos, o primeiro culpado<br />
é o governo. Mas se não deste,<br />
então a culpa pelos fracassos é do fornecedor,<br />
ou dos sindicatos de trabalhadores,<br />
ou dos distribuidores ou até<br />
mesmo do cliente, quando não <strong>da</strong> natureza;<br />
mas nunca <strong>da</strong> própria empresa<br />
e de seus acionistas ou executivos.<br />
Mas, ao mesmo tempo que critica,<br />
o empresariado latino-americano<br />
está permanentemente buscando<br />
apoio governamental para suas ativi<strong>da</strong>des.<br />
Basear o crescimento de suas<br />
empresas em favores governamentais<br />
é algo muito frágil, pois esses favores<br />
são efêmeros e acabam por não proporcionar<br />
vantagens competitivas efetivas<br />
e perenes para as empresas.<br />
Aliás, se existe um traço cultural<br />
latino-americano marcante é a sempre<br />
presente necessi<strong>da</strong>de de que haja uma<br />
liderança superior para tomar decisões<br />
importantes. A busca de uma resposta<br />
para tudo através de um líder caudilhesco<br />
é algo que perpassou a história<br />
de praticamente todos os países deste<br />
continente. Provavelmente por isso<br />
é que as decisões gerenciais são frequentemente<br />
toma<strong>da</strong>s por uma única<br />
pessoa de uma maneira central e decisiva<br />
e, por sua vez, os proprietários<br />
<strong>da</strong>s empresas comumente contam<br />
com algum alto governante para tomar<br />
decisões que lhes favoreçam.<br />
Em suma, gestão familiar, pouco<br />
profissionalismo, paternalismo,<br />
manipulação de políticos, atitudes defensivas<br />
e não éticas são alguns dos<br />
principais ingredientes que fomentaram<br />
as empresas originárias <strong>da</strong> região,<br />
com raríssimas exceções. Esse estilo<br />
de administração não condiz com as<br />
exigências atuais de competição global
FOTO: rePrOdUÇÃO<br />
do século XXI. As grandes empresas<br />
globais que dominam o cenário<br />
competitivo mundial são profissionais,<br />
transparentes, não dependem<br />
de favores governamentais e em<br />
muitos casos seus acionistas não são<br />
conhecidos, ou seja, não possuem a<br />
figura do “dono”. Talvez seja por<br />
isso que tenhamos um número tão<br />
pequeno de empresas <strong>da</strong> nossa região<br />
nos rankings <strong>da</strong>s maiores empresas<br />
do mundo . Na última delas,<br />
publica<strong>da</strong> pela Revista Forbes, entre<br />
as 2.000 maiores apenas 54 tinham<br />
sede no nosso continente.<br />
De qualquer forma o que é<br />
importante é estarmos conscientes<br />
de que os fatores culturais exercem<br />
uma forte influência sobre como as<br />
empresas são geri<strong>da</strong>s. A cultura está<br />
aí para ficar. Precisamos apreender a<br />
tirar proveito dela.<br />
Precisamos olhar para outras<br />
nações que conseguiram transformar<br />
aquilo que aparentemente eram<br />
deficiências <strong>da</strong> sua cultura em fatores<br />
alavancadores de sucesso. Há inúmeros<br />
exemplos nessa linha. A Itália é<br />
apenas um deles, com a sua vocação<br />
para a microempresa familiar basea<strong>da</strong><br />
no forte apego que os italianos<br />
têm pela família. A Itália soube aproveitar<br />
muito bem essa sua característica<br />
e desenvolveu uma forte competência<br />
em promover associações<br />
de pequenas empresas. Uni<strong>da</strong>s elas<br />
passam a ser fortes, e por isso conseguem<br />
exportar ou pesquisar inovações<br />
tecnológicas. Esse pode ser<br />
um caminho para a pequena empresa<br />
latino-americana, pois uma outra<br />
característica importante <strong>da</strong>s empresas<br />
de nossa região é que as mesmas<br />
raramente se unem para atingir um<br />
objetivo comum, a não ser que este<br />
seja pressionar o governo.<br />
Paulo Roberto Feldmann é engenheiro de produção.<br />
53
HISTÓRIA<br />
BI, CENTENáRIO<br />
e oUtros bis<br />
54<br />
Pilar Atilio<br />
existe atualmente na Argentina um acordo tácito<br />
muito fácil de ser comprovado através <strong>da</strong> mídia:<br />
considera-se importante o bicentenário, suas<br />
celebrações, sua realização, as discussões que<br />
ele suscita e o múltiplo acordo entre setores de<br />
todo tipo e a segmentação regional ou políticoideológica.<br />
Em suma, em to<strong>da</strong> a república celebra-se este Bicentenário<br />
com renovado fervor pátrio repleto de bandeiras argentinas.<br />
A disponibili<strong>da</strong>de de uma palavra como esta, respeita<strong>da</strong> por<br />
consenso, e minha condição de cinquentenária, induziram-me<br />
a permanecer atenta e a comprar, ler, escutar e comentar to<strong>da</strong>s<br />
as edições especiais de jornais, revistas, canais de televisão –<br />
especializados ou não – sobre história. Por outro lado, to<strong>da</strong>s<br />
as esferas do governo – municipais, estaduais e nacional – trabalharam<br />
em silêncio e com um bom ritmo para os grandes
FOTOs: rePrOdUÇÃO<br />
Atos do Bicentenário, celebrado durante<br />
uma semana, de 17 a 25 de maio. Pois<br />
bem, naqueles dias de maio de 1810,<br />
as inquietações começaram no dia 17,<br />
transformaram-se em pedido formal no<br />
dia 24, entregue à comissão que deliberava<br />
no Cabildo de Buenos Aires, com<br />
o povo na praça pressionando e esperando<br />
novi<strong>da</strong>des. Finalmente, o acordo<br />
é aprovado por pressão e com várias<br />
negociações em 25 de maio. Elege-se<br />
a Primeira Junta de Governo com a vitória<br />
<strong>da</strong>s ideias dos revolucionários de<br />
maio, levando em consideração o <strong>da</strong>do<br />
que não pode ser deixado de lado <strong>da</strong> prisão<br />
do rei espanhol Fernando VII, efetua<strong>da</strong><br />
por Napoleão.<br />
Embora essa primeira junta tenha<br />
sido fruto de uma escolha aprova<strong>da</strong>, foi<br />
preciso superar numerosos obstáculos,<br />
valas, restrições e incômodos, entre eles<br />
os de armar um exército e combater os<br />
espanhóis, obrigando-os progressivamente<br />
a abandonar o território. Um dos<br />
historiadores argentinos mais respeitados,<br />
Tulio Halperín Donghi – que mora nos<br />
Estados Unidos desde os anos 70 e leciona<br />
universi<strong>da</strong>de de Berkeley –, afirma que<br />
as condições dessa revolução não provinham<br />
apenas <strong>da</strong>s ideias dos combativos<br />
Mariano Moreno e Manuel Belgrano, mas<br />
tinham também um antecedente claro na<br />
resistência do povo na época <strong>da</strong>s Invasões<br />
Inglesas de 1806 e 1807. A organização<br />
doméstica tinha acabado com as pretensões<br />
de um conquistador tão poderoso<br />
quanto a frota inglesa dos primeiros anos<br />
do século XIX e evidenciou a fraqueza do<br />
vice-rei Cisneros e seus homens.<br />
Analisaremos juntos algumas palavras-chave<br />
presentes neste Bicentenário,<br />
com a intenção de aprofun<strong>da</strong>r uma<br />
55<br />
A Calle Flori<strong>da</strong> no<br />
auge de seu glamour.
análise <strong>da</strong> nossa condição atual, tanto<br />
no âmbito político quanto no cultural.<br />
A primeira palavra que merece<br />
destaque é Revolução; este termo teve<br />
várias interpretações ao longo dos anos<br />
deste bicentenário, mas sempre aludiu<br />
a um aspecto de reconstrução alentadora,<br />
um regresso às bases. A Revolução<br />
de Maio tem sido interpreta<strong>da</strong> a<br />
partir de diferentes abor<strong>da</strong>gens: como<br />
uma revolução patrícia sem conteúdo<br />
democrático ou – como afirma Roberto<br />
Marfany – “feitos realizados por um<br />
exército em linha com seus comandos<br />
naturais, cuja missão histórica continuava<br />
sendo no presente guiar os avanços<br />
<strong>da</strong> nação surgi<strong>da</strong> de sua ação nessas<br />
jorna<strong>da</strong>s”. Houve outros historiadores,<br />
sociólogos e militantes na déca<strong>da</strong><br />
de 60 e 70, que viram no antecedente<br />
local, o <strong>da</strong> Grande Revolução Socialista<br />
de Outubro, destino histórico de to<strong>da</strong><br />
a humani<strong>da</strong>de. Também é consensual<br />
o reconhecimento do gradualismo <strong>da</strong>s<br />
ações ou momentos críticos que levaram<br />
à formação de um estado como<br />
o que somos atualmente. Os outros<br />
passos seriam: a Assembleia do ano<br />
13, que legislou sobre questões como a<br />
escravidão ou a tortura; o trabalho nas<br />
regiões, cujo resultado foi a possibili<strong>da</strong>de<br />
concreta de formar uma Confederação<br />
soberana do trono <strong>da</strong> Espanha,<br />
em 1816, em San Miguel de Tucumán.<br />
Tudo isso até chegar ao estado atual de<br />
uma democracia representativa e federal,<br />
que marca o início <strong>da</strong> República<br />
Argentina em 1853.<br />
A segun<strong>da</strong> palavra à qual pretendo<br />
prestar a máxima atenção é Imprensa,<br />
o poder que tem a palavra difundi<strong>da</strong><br />
por meios impressos. Na ver<strong>da</strong>de, pela<br />
imprensa foram difundi<strong>da</strong>s ideias e palavras<br />
de ordem que despertaram no<br />
povo sentimentos libertários e acordos<br />
conjuntos. Para corroborar este fato é<br />
suficiente relatar dois acontecimentos:<br />
em 3 de março de 1810 – meses antes<br />
56<br />
<strong>da</strong> Revolução de Maio –, é fun<strong>da</strong>do o<br />
Correo de Comercio, editado por Manuel<br />
Belgrano, jovem membro proeminente<br />
<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de portenha e estimulador de<br />
diversos projetos, junto com Hipólito<br />
Vieytes. Embora os conceitos a serem<br />
difundidos estivessem restritos aos aspectos<br />
comerciais de um porto muito<br />
importante como o de Buenos Aires,<br />
outras ideias estavam presentes. E logo<br />
depois <strong>da</strong> posse <strong>da</strong> Primeira Junta, em<br />
maio de 1810, esta decreta a criação de<br />
um órgão de imprensa oficial, a Gazeta<br />
de Buenos Aires, dirigi<strong>da</strong> por Mariano<br />
Moreno, uma pluma agu<strong>da</strong> e bem<br />
forma<strong>da</strong>, junto com outros integrantes<br />
desse corpo colegiado: Gregorio Funes,<br />
Juan José Agrelo e Bernardo de<br />
Monteagudo.<br />
“Tempos de felici<strong>da</strong>de, aqueles<br />
nos quais se pode sentir o que se deseja<br />
e é lícito dizê-lo”. A frase corresponde<br />
ao historiador romano Cornélio Tácito<br />
e foi repeti<strong>da</strong> em to<strong>da</strong>s as edições, junto<br />
com um esclarecimento no qual se explicitava<br />
que as ideias e opiniões contrárias<br />
à causa não seriam publica<strong>da</strong>s.<br />
A terceira palavra que atravessa<br />
nosso Bicentenário e é uma característica<br />
constante <strong>da</strong> nossa história, é Fúria.<br />
Segundo o historiador argentino Miguel<br />
Wizñaki: “O poder, uma forma de administrar<br />
a fúria” ou aquilo que se experimenta<br />
ao transformar o temor em<br />
fúria. Fúria e também sanha para o que<br />
pode ser lido como “decidir em situação<br />
de poder a quem é conveniente odiar”,<br />
fustigar, usar golpes baixos ou man<strong>da</strong>r à<br />
morte. Essa fúria de base tem características<br />
especiais, é patrícia, conservadora<br />
e militarista, sempre segundo Wizñaky.<br />
No trecho do livro Facundo, civilización o<br />
barbarie, de Domingo Faustino Sarmiento,<br />
narra-se a história que levou à criação<br />
do apelido “Tigre <strong>da</strong>s planícies” do<br />
caudilho de La Rioja, morto em 1835.<br />
Temos a quarta palavra-chave:<br />
Crise. Defini<strong>da</strong> como um sistema de
mu<strong>da</strong>nças em qualquer aspecto de uma<br />
reali<strong>da</strong>de organiza<strong>da</strong>, porém instável e<br />
sujeita a evolução; este sistema contou<br />
com notáveis intervenções de homens<br />
e mulheres, políticos e intelectuais que<br />
desempenharam o papel de pares antagônicos<br />
em diferentes momentos. Juan<br />
Lavalle (1797-1841) unitário, mandou<br />
fuzilar Manuel Dorrego depois de derrubá-lo;<br />
por sua vez, foi inimigo cabal<br />
de Juan Manuel de Rosas (1793-1877),<br />
que em 1835 consegue fazer com que<br />
a Legislatura o eleja Governador com<br />
a soma do poder público, mas que tinha<br />
sido vencido pelo general Urquiza<br />
na batalha de Caseros. Rosas, exilado e<br />
morto anos depois longe de sua pátria,<br />
teve de esperar a mitigação do ódio para<br />
regressar ao país muito tempo mais tarde.<br />
O Pai <strong>da</strong> Pátria, José de San Martín,<br />
também teve de partir para o exílio para<br />
“não derramar sangue de irmãos” e ser<br />
repatriado em outros tempos para ocupar<br />
o lugar que lhe corresponde como<br />
Libertador de <strong>América</strong>. E que podemos<br />
dizer sobre a fúria exerci<strong>da</strong> sobre<br />
o corpo mumificado de Eva Perón, que<br />
passou por um itinerário digno de um<br />
romance para retornar ao país depois<br />
de muitos desvelos e desocultamentos.<br />
Crises políticas associa<strong>da</strong>s a revoluções,<br />
com personagens antagônicos agindo<br />
com fúria com as pessoas ou com os<br />
corpos ou com a memória.<br />
Em 1880, já constituídos como<br />
Nação Argentina com Carta Magna e<br />
reconhecimento internacional, começa<br />
uma enorme produção de escritores,<br />
intelectuais e cientistas que mu<strong>da</strong>rão a<br />
agen<strong>da</strong> dos temas e mo<strong>da</strong>s que atravessam<br />
os discursos até 1910, ano do Centenário,<br />
que depois analisaremos. No<br />
grupo de seletos positivistas estavam<br />
José Ramos Mejía e José Ingenieros. E<br />
entre os modernistas, influenciados pela<br />
poesia do nicaraguense Rubén Darío,<br />
potencializava-se a pergunta referente à<br />
identi<strong>da</strong>de nacional. Esta questão com-<br />
põe outro forte par de opostos antagônicos<br />
que estão presentes na história:<br />
identi<strong>da</strong>de nacional versus influências<br />
europeizantes, como as apoia<strong>da</strong>s por<br />
Domingo Faustino Sarmiento.<br />
No entanto, <strong>da</strong>s crises saíram bons<br />
projetos que se materializaram muito antes<br />
que no resto <strong>da</strong> <strong>América</strong>. A Lei <strong>da</strong><br />
Educação Comum, ensino primário gratuito,<br />
gradual e obrigatório para crianças<br />
de 6 a 14 anos, foi concebi<strong>da</strong> em 1884<br />
para integrar os imigrantes e, embora<br />
tenha sofrido a resistência <strong>da</strong> educação<br />
religiosa, representou uma <strong>da</strong>s bases do<br />
nosso capital de progresso. Em 1918 foi<br />
realiza<strong>da</strong> a Reforma Universitária promovi<strong>da</strong><br />
por alunos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Córdoba,<br />
que dirimia o novo papel <strong>da</strong> Igreja<br />
na educação, a renovação dos programas<br />
de estudo e mu<strong>da</strong>nças no governo <strong>da</strong>s<br />
facul<strong>da</strong>des, com maior participação dos<br />
alunos na toma<strong>da</strong> de decisões.<br />
A To<strong>da</strong> Orquestra II,<br />
obra do artista plástico<br />
argentino Carlos<br />
Gallardo.<br />
57
A imigração revolucionou o campo<br />
do trabalho, introduzindo as palavras<br />
de ordem de salário digno nos<br />
sindicatos, e deu origem a algumas <strong>da</strong>s<br />
mais sangrentas repressões, como a<br />
<strong>da</strong> Semana Trágica, na qual morreram<br />
muitos trabalhadores dos Talleres Metalúrgicos<br />
Vasena. A de 1921, quando<br />
os operários de Santa Cruz protestavam<br />
pelas condições de trabalho e as demissões<br />
<strong>da</strong> indústria <strong>da</strong> lã, terminou com<br />
mil e quinhentos trabalhadores assassinados,<br />
no episódio que ficou conhecido<br />
como Patagônia Trágica, imortaliza<strong>da</strong><br />
pela pena do escritor Osvaldo Bayer e<br />
base do filme dirigido por Héctor Olivera<br />
em 1974. Esta situação de morte,<br />
supressão, invisibili<strong>da</strong>de, que afetou<br />
desde os povos originários até a entrega<br />
para o sacrifício de mulheres, crianças,<br />
trabalhadores e estu<strong>da</strong>ntes, apoia<strong>da</strong><br />
por grupos que pretendiam mol<strong>da</strong>r a<br />
república às suas ideias, avassalando o<br />
poder político e usando a força <strong>da</strong>s armas<br />
e os militares, constata-se nos primeiros<br />
cem anos e repete-se a seguir.<br />
Fuzilamentos, desaparecimentos, ódios<br />
e perseguições várias desgarram as entranhas<br />
argentinas do século XX desde<br />
aqueles acontecimentos até os presos<br />
desaparecidos dos anos 70 e primeiros<br />
anos dos 80. Assim como golpes de estado,<br />
revoluções que derrocam governos,<br />
bombardeios de civis e proscrição<br />
de peronistas, ain<strong>da</strong> há gente nas ruas<br />
manifestando sua posição com cartazes<br />
que explicitam suas ideias. Isto também<br />
nos distingue: continuamos mobilizados<br />
e usando as ruas como bandeira de<br />
várias palavras de ordem.<br />
Há algum tempo, um dos consensos<br />
que capitalizamos dessas penas,<br />
tal como afirmam lúcidos intelectuais<br />
como Beatriz Sarlo e Horacio González,<br />
é o seguinte: não há consenso para um<br />
regresso <strong>da</strong>s forças arma<strong>da</strong>s ao poder,<br />
há uma opção pelo sistema democrático<br />
representativo, embora sejam conheci-<br />
58<br />
<strong>da</strong>s suas fissuras e más práticas. O percurso<br />
pelas nossas crises, e sobretudo<br />
o efeito <strong>da</strong> última, de 2001, nos fazem<br />
lembrar que queremos que ocorram<br />
dentro do sistema democrático, com os<br />
mecanismos próprios do sistema e com<br />
o cumprimento <strong>da</strong> lei.<br />
Mas vamos incluir uma nova palavra<br />
nessa descrição breve e sucinta<br />
que estamos tentando fazer. Vamos falar<br />
de celebrações, pois sem dúvi<strong>da</strong> um<br />
Bicentenário traz consigo a ideia de festa,<br />
os faustos de uma <strong>da</strong>ta importante<br />
para a Nação.<br />
O Teatro Colón viveu sua reabertura<br />
(ver página 18). A ci<strong>da</strong>de também<br />
montou, perto do teatro na Plaza Lavalle,<br />
uma instalação de Carlos Gallardo,<br />
para homenagear o artista falecido<br />
em 2008. A obra, denomina<strong>da</strong> A To<strong>da</strong><br />
Orquesta II, é uma orquestra virtual, simbólica,<br />
com 36 atris metálicos em cujas<br />
bandejas há retângulos de diferentes<br />
tipos de gramas em vez de partituras.<br />
Mas não faltaram no país problemas no<br />
tocante a quais seriam os personagens<br />
<strong>da</strong> história. Em um ato escolar, uma<br />
professora primária de uma ci<strong>da</strong>de do<br />
interior considerou personagens importantes<br />
do Bicentenário tanto Mirtha Legrand<br />
(atriz de televisão), como Leopoldo<br />
Fortunato Galtieri, um dos ditadores<br />
que declarou a Guerra <strong>da</strong>s Malvinas e<br />
levou as forças arma<strong>da</strong>s à sua pior derrota,<br />
junto com milhares de inocentes.<br />
Das celebrações em todo o país, as que<br />
passarão à história foram as que ocorreram<br />
nos locais históricos de Buenos<br />
Aires: o desfile temático de 25 de maio,<br />
um espetáculo sobre a Argentina, com<br />
os povos originários unidos por uma orquestra<br />
multiétnica, a representação <strong>da</strong><br />
imigração, o tango, o folclore e outros<br />
símbolos <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de argentina.<br />
Pilar Atilio é argentina, historiadora, professora<br />
e pesquisadora de arte.
FOTO: divUlgaÇÃO - FliP<br />
FLIP<br />
LITERATURA<br />
PUlsa em Paraty<br />
Leonor Amarante<br />
com personagens tão díspares quanto o resultado<br />
do encontro, a 8ª Festa Literária<br />
Internacional de Paraty tomou como<br />
ponto de parti<strong>da</strong> um Brasil multifacetado<br />
para promover os debates sobre Gilberto<br />
Freyre, o homenageado <strong>da</strong> edição. Coube<br />
a Fernando Henrique Cardoso <strong>da</strong>r início às reflexões,<br />
com o apoio do também sociólogo Luiz Felipe Alencastro.<br />
Em sua primeira edição, em 2003, a Flip convidou mais escritores<br />
que personali<strong>da</strong>des de outras áreas. Era de fato uma<br />
feira literária. Hoje, tornou-se também palco de outros interesses,<br />
em que todos segmentos convergem. O evento<br />
59
O indiano Salman<br />
Rushdie, o alemão<br />
Berthold Zilly; os<br />
americanos Gilbert<br />
Shelton e Robert<br />
Crumb; os irlandeses<br />
William Kennedy, à<br />
esquer<strong>da</strong>, e Colum<br />
McCann.<br />
aposta na diversi<strong>da</strong>de de culturas e de<br />
interesses para manter a chama do mais<br />
ba<strong>da</strong>lado encontro literário do País.<br />
Foram colocados no mesmo caldeirão<br />
a combativa iraniana Azar Nafisi<br />
e a frágil irlandesa Pauline Melville, o<br />
sério teórico marxista Terry Eagleton e<br />
a patricinha cubana Wendy Guerra. O<br />
irriquieto iraniano Salman Rushdie, que<br />
voltou à Paraty para lançar seu último<br />
Luka e o Fogo <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>, teve de conviver<br />
com Terry Eagleton, crítico inglês, que<br />
o chamou de direitista. “Ele é um covarde”,<br />
resmungou Rushdie.<br />
Mas, entre todos os contrários,<br />
quem roubou a cena foram mesmo a<br />
chilena Isabel Allende, que arrastou uma<br />
legião de fãs, além do desbocado e irreverente<br />
Robert Crumb. O norte-americano<br />
autor do famoso gato Fritz se destaca<br />
dos demais. Ele debochou de tudo<br />
e de todos, xingou as ruas de Paraty pavimenta<strong>da</strong>s<br />
com pedras enormes, irregulares,<br />
<strong>da</strong>ta<strong>da</strong>s do período colonial. Aos<br />
67 anos, mas com aparência de quase 80,<br />
o mito <strong>da</strong> geração beatnik, símbolo <strong>da</strong><br />
contracultura nos anos 1960, continua<br />
autêntico. Segue um ferrenho agnóstico<br />
que verteu, com um viés cortante, o<br />
Gênesis 2009, a<strong>da</strong>ptação para quadrinhos<br />
60<br />
do mais antigo livro <strong>da</strong> Bíblia. Ele foi<br />
a azeitona no pastel <strong>da</strong> Flip, animou a<br />
festa com suas tira<strong>da</strong>s diverti<strong>da</strong>s sobre<br />
governos, bares, porres e trabalho. Ele<br />
reinventou Kafka, Charles Bukowski em<br />
situações perturbadoras e lançou na Flip<br />
Meus Problemas com as Mulheres.<br />
O destino de Sakineh Moahammadie<br />
Ashtiani, iraniana condena<strong>da</strong> a<br />
morrer apedreja<strong>da</strong> por suposto adultério,<br />
também foi tema de discussão em algumas<br />
mesas. Salman Rusdie acha que é importante<br />
outras nações aju<strong>da</strong>rem o Irã a<br />
colocar em prática os direitos humanos,<br />
e não condenou diretamente a participação<br />
de Lula nesse aspecto. No entanto,<br />
Azar Safisi levantou o tom, foi mais áci<strong>da</strong>,<br />
e sugeriu que o presidente brasileiro<br />
desse asilo ao presidente iraniano Mahmoud<br />
Ahmadimejad.<br />
O advento do livro eletrônico também<br />
foi discutido. O historiador Peter<br />
Burke disse não acreditar que no futuro<br />
as pessoas leiam Guerra e Paz impresso<br />
em papel, ao que John Makinson, executivo<br />
<strong>da</strong> editora Penguin, rebateu e afirmou<br />
que é absurdo dizer que os livros<br />
estão morrendo. “Nos próximos anos<br />
serão publicados mais de milhão de novos<br />
títulos impressos em todo o mundo.”<br />
FOTOs: divUlgaÇÃO - FliP
FOTO: divUlgaÇÃO - FliP<br />
isabel allende<br />
POLêMICA E FRANCA<br />
“...Em meus quarenta anos,<br />
eu, Zarité Sedella, tive mais sorte que<br />
outras escravas. Vou viver muito e<br />
minha velhice será boa porque minha<br />
estrela - minha z´etoile - brilha até em<br />
noites nubla<strong>da</strong>s. Conheço a satisfação<br />
com o homem escolhido por meu coração<br />
quando suas mãos grandes despertam<br />
minha pele...”<br />
Acima, fragmento do livro A Ilha<br />
Sob o Mar de Isabel Allende,<br />
lançado na 8 a Flip.<br />
REVISTA NOSSA AMÉRICA – Você iniciou<br />
sua vi<strong>da</strong> na literatura por meio do jornalismo.<br />
O que fez com que abandonasse as re<strong>da</strong>ções para se<br />
dedicar somente à literatura?<br />
ISABEL ALLENDE – Deixei o jornalismo<br />
porque eu era péssima profissional, inventava<br />
muita coisa para melhorar a matéria.<br />
R.N.A. – Quando você decidiu escrever para valer?<br />
I.A. – Com a ditadura de Augusto Pinochet,<br />
por uma questão de sobrevivência,<br />
eu saí do Chile. Esse período marcou fortemente<br />
minha vi<strong>da</strong> pessoal e profissional.<br />
Interferiu na minha forma de pensar, de ver<br />
o mundo e, é claro, de escrever. Não é por<br />
acaso que o binômio “poder e justiça” é recorrente<br />
em meus livros.<br />
R.N.A. – Você é uma <strong>da</strong>s raras escritoras latinoamericanas<br />
best-sellers, com 18 livros publicados<br />
em mais de 30 idiomas e uma legião de fãs de fazer<br />
inveja a qualquer escritor. Por que ain<strong>da</strong> há preconceitos<br />
no Chile contra sua obra?<br />
I.A. – Os chilenos não gostam de quem vende<br />
livro, preferem os que ficam à margem.<br />
Depois há o fato de eu ser mulher.<br />
R.N.A. – Quer dizer que autores como Fernando<br />
Bolaños não gostam de seus livros?<br />
I.A. – Não só não gostam como odeiam.<br />
Todos os escritores chilenos odeiam meus livros.<br />
Nos Estados Unidos e na Europa não é<br />
pecado vender livros. No Chile, sim. Se você<br />
vende livros, seus colegas vão execrá-lo.<br />
R.N.A. – Você veio ao Brasil para lançar a versão<br />
em português de seu último livro, A Ilha Sob<br />
o Mar. Como você chegou à personagem central,<br />
uma escrava negra?<br />
I.A. – O livro tem a ver com o deslocamento<br />
de minha família para os Estados<br />
Unidos. É uma história ambienta<strong>da</strong> em<br />
Santo Domingo, no século XVIII, e conta<br />
a história de Zarité, escrava mulata em sua<br />
luta para conquistar a liber<strong>da</strong>de.<br />
R.N.A. – Você veio ao festival acompanha<strong>da</strong> de seu<br />
marido, o escritor americano William Gordon. Como<br />
é conviver com um parceiro que também escreve?<br />
I.A. – Ele veio à Flip para lançar The Ugly<br />
Dwarf, um romance de intrigas policiais.<br />
Na hora em que estamos trabalhando,<br />
quando um emperra o outro aju<strong>da</strong>.<br />
61
CURTAS<br />
CResCe investimento em teCnologia<br />
na améRiCa latina<br />
2<br />
Em 2010, o mercado de<br />
tecnologia deve investir na<br />
<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> 5,1% a mais<br />
que no ano passado, segundo<br />
estudo divulgado pela International<br />
Data Corporation (IDC).<br />
O crescimento, no entanto,<br />
ocorre em um cenário de que<strong>da</strong><br />
provoca<strong>da</strong> pelos reflexos <strong>da</strong><br />
crise mundial, que retraiu os<br />
gastos <strong>da</strong>s empresas em 7,5%.<br />
O estudo trimestral realizado pela IDC – Worldwide Black<br />
Book – aponta também que na <strong>América</strong> <strong>Latina</strong> a que<strong>da</strong> dos<br />
gastos na área de tecnologia foi ain<strong>da</strong> maior no ano passado,<br />
chegando a 9%. Segundo o levantamento, “o principal motivo<br />
foi a diminuição dos investimentos feitos por México e<br />
Brasil, que em conjunto representam pouco mais de 65% do<br />
total empregado na região”. O aumento dos investimentos na<br />
região, aponta a IDC, deve vir <strong>da</strong> reativação de projetos de TI<br />
– Tecnologia de Informação –, que ficaram parados em 2009,<br />
e <strong>da</strong>s boas expectativas de consumo em massa em 2010.<br />
62<br />
Relações Reata<strong>da</strong>s.<br />
até quando?<br />
Colômbia e Venezuela reataram relações, depois de uma<br />
reunião a portas fecha<strong>da</strong>s que durou quase quatro horas.<br />
Chegaram a um acordo. E Juan Manuel Santos, presidente<br />
colombiano recém-empossado, retirou do Tribunal Penal<br />
Internacional a solicitação, feita por seu antecessor Álvaro<br />
Uribe, para investigar a presença na Venezuela de acampamentos<br />
e terroristas <strong>da</strong>s Forças Arma<strong>da</strong>s Revolucionárias<br />
<strong>da</strong> Colômbia. Por declarações anteriores do próprio Santos,<br />
uma aproximação assim seria bastante improvável. Com o<br />
desfecho, um, ou o outro, ou os dois recuaram. O que já era<br />
esperado, já que os prejuízos econômicos com o rompimento<br />
eram grandes. Os negócios bilaterais entre os dois<br />
países despencaram: 7 bilhões de dólares em 2009, para 1<br />
bilhão no início de 2010.<br />
ResistênCia louva<strong>da</strong>:<br />
mujiCa ganha PRêmio<br />
1<br />
3<br />
Mónica González Mujica,<br />
jornalista chilena que foi<br />
presa e tortura<strong>da</strong> durante<br />
a ditadura de Augusto<br />
Pinochet (1973-1990),<br />
ganhou o Prêmio Mundial<br />
Guillermo Cano de<br />
Liber<strong>da</strong>de de Imprensa,<br />
outorgado pela Unesco.<br />
“Ao longo de to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> profissional, ela deu provas de<br />
valor e mostrou o lado obscuro do Chile”, comentou em um<br />
comunicado <strong>da</strong> Unesco Joe Thloloe, presidente do júri e ombudsman<br />
do Conselho de Imprensa <strong>da</strong> África do Sul. “Tratase<br />
de uma mulher forte. Presa, tortura<strong>da</strong> e processa<strong>da</strong>, ain<strong>da</strong><br />
assim continuou firme”, disse. Irina Bokova, diretora geral <strong>da</strong><br />
Unesco, fez a entrega do prêmio no Dia Mundial <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de<br />
de Imprensa, no início de maio, em uma conferência<br />
realiza<strong>da</strong> em Brisbane, na Austrália, informou a Organização<br />
<strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s para a Educação, a Ciência e a Cultura.<br />
Nasci<strong>da</strong> em 1949, González ficou quatro anos exila<strong>da</strong> depois<br />
do golpe militar de 1973.<br />
FOTOs: rePrOdUÇÃO
FOTOs: rePrOdUÇÃO<br />
4<br />
Casa <strong>da</strong> améRiCa latina<br />
A Casa <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>,<br />
cria<strong>da</strong> em 1998 em<br />
Portugal, acaba de inaugurar<br />
a Aleph, uma emissora<br />
de rádio com conteúdo<br />
dedicado à atuali<strong>da</strong>de<br />
latino-americana, com<br />
relatos de experiências<br />
e projetos de relevo envolvendo<br />
o eixo. Com gravações abertas e feitas na própria<br />
CAL, os programas são transmitidos a ca<strong>da</strong> quinze dias, aos<br />
domingos, sempre entre 10 e 11h na Rádio CSB – Comunicação<br />
Sem Barreiras(105.4 Mhz). A Casa <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong><br />
é uma associação sem fins lucrativos e de direito privado,<br />
constituí<strong>da</strong> pelo Município de Lisboa, pelo Ministério dos<br />
Negócios Estrangeiros e pelas embaixa<strong>da</strong>s dos países latinoamericanos,<br />
além de um conjunto de empresas.<br />
6 7<br />
PoRtuguês PaRa estRangeiRos FeiRa de FRankFuRt<br />
A crescente exposição do Brasil na mídia internacional está<br />
gerando o crescimento do contingente de estrangeiros que<br />
estu<strong>da</strong>m o português do Brasil. O interesse que antes era<br />
gerado apenas pela música e pelo esporte, ganhou força com<br />
a presença relevante do Brasil entre os chamados Bric’s –<br />
Brasil, Rússia, Índia e China –, países com taxas de crescimento<br />
econômico acima <strong>da</strong> média mundial, com modelos de<br />
gestão macroeconômica.<br />
eça de queiRoz,<br />
um diPlomata<br />
em havana<br />
5<br />
Nem todos sabem, mas o célebre romancista português<br />
Eça de Queiroz viveu um tempo em Cuba. Chegou em<br />
dezembro de 1872; era o novo Cônsul. Segundo consta,<br />
ele se assustou não só com o clima dos trópicos, mas com<br />
a socie<strong>da</strong>de escravagista decadente que encontrou. Lopes<br />
de Oliveira em seu relato “Eça de Queiroz, a sua vi<strong>da</strong> e<br />
a sua obra”, explica que “em Cuba existiam mais de cem<br />
mil colonos asiáticos, que, tendo emigrado pelo porto de<br />
Macau, encontravam-se, como os portugueses”, sob proteção<br />
de seu consulado. Porém, as condições legais eram<br />
ignora<strong>da</strong>s e todos viviam como ver<strong>da</strong>deiros escravos. Eça<br />
decidiu então lutar: em nome do prestígio de Portugal e<br />
<strong>da</strong> própria causa humanitária. Encontrou oposição dos<br />
fazendeiros e do próprio governo. Porém não desistiu. A<br />
batalha foi difícil, mas bem-sucedi<strong>da</strong>.<br />
A Feira do Livro de<br />
Frankfurt vai abrir,<br />
provavelmente ain<strong>da</strong><br />
em 2010, um escritório<br />
no Brasil, para<br />
intermediar as relações<br />
com editores e<br />
escritores do Brasil<br />
e <strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>.<br />
Realiza<strong>da</strong> desde<br />
1949, em Frankfurt<br />
AM Maim, na Alemanha, a Frankfurter Buchmesse, é o<br />
maior encontro mundial do setor editorial. Promovi<strong>da</strong> pela<br />
Börsenverein des Deutschen Buchhandels (Associação do<br />
Comércio de Livro Alemão), atrai anualmente mais de 7.000<br />
expositores e 280.000 visitantes.<br />
A internacionalização <strong>da</strong> feira começou já na edição de<br />
1950 quando reuniu em torno de cem editoras estrangeiras.<br />
Três anos mais tarde, já eram exatos 534, maior do que o de<br />
editoras alemãs – 524. Uma <strong>da</strong>s iniciativas que contribuiu<br />
para atrair o setor do mundo todo foi instituir uma homenagem<br />
a um país ou a uma região, como a <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>, a<br />
primeira a ganhar destaque, em 1976.<br />
63
DA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AG<br />
AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGEND<br />
memorial exPõe braUn-veGa<br />
Na pintura contemporânea há um lugar<br />
garantido para Braun-Vega, peruano residente<br />
em Paris. Seu discurso visual propõe<br />
a intervenção em obras de artistas<br />
consagrados ao introduzir-lhes novos<br />
personagens. Em Déjeuner sur I’Herbe, de<br />
Manet, impressionista francês, colocou<br />
Picasso acompanhado de Velásquez.<br />
Em a Lição de Anatomia, de Rembrandt,<br />
optou por uma inusita<strong>da</strong> cena política.<br />
Retrata um grupo de “notáveis” junto ao<br />
cadáver de um mendigo, assassinado por<br />
64<br />
ter roubado um casaco, naquele rigoroso<br />
inverno de 1631. A intenção desses supostos<br />
“homens de bem” era perpetuar<br />
em pintura o castigo, para que servisse de<br />
lição aos futuros ladrões <strong>da</strong> aldeia. Este<br />
e dezenas de outros trabalhos estarão na<br />
mostra que faz parte do projeto <strong>da</strong> 29ª<br />
Bienal e <strong>da</strong> Expo Peru 2010 e ocorrerá<br />
na Galeria Marta Traba, do <strong>Memorial</strong>,<br />
com abertura no dia 28 de outubro às<br />
19h30, seguido de bate-papo com o artista.<br />
A mostra vai até 28 de novembro.<br />
a Festa arGentina<br />
Como parte <strong>da</strong>s comemorações do bicentenário<br />
<strong>da</strong> independência argentina, o<br />
Consulado Geral <strong>da</strong> Argentina trouxe a<br />
São Paulo o show de tango <strong>da</strong> casa Esquina<br />
Carlos Gardel. O espetáculo que<br />
atraiu os paulistanos ao Auditório Simón<br />
Bolívar é considerado uma <strong>da</strong>s mais tradicionais<br />
atrações portenhas, conheci<strong>da</strong><br />
internacionalmente por seu corpo de<br />
<strong>da</strong>nça e pela casa de shows que mantém<br />
um restaurante de comi<strong>da</strong>s típicas.
ENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA<br />
A AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGENDA AGEN<br />
FOTOs: rePrOdUÇÃO<br />
el día del s-Pñol<br />
Setenta e três ci<strong>da</strong>des de 56 países comemoram<br />
o Dia do Espanhol, que festeja<br />
uma <strong>da</strong>s línguas mais fala<strong>da</strong>s no mundo.<br />
São Paulo entrou no circuito. Pela segun<strong>da</strong><br />
vez realiza a festa, cujas dimensões<br />
crescem, já que de um evento pequeno,<br />
promovido pelo Instituto Cervantes em<br />
suas dependências, transforma-se em<br />
uma grande celebração no <strong>Memorial</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>América</strong> <strong>Latina</strong>. Das 10h <strong>da</strong> manhã<br />
à meia-noite, as apresentações de música,<br />
de folclore, teatro, debates, oficinas e<br />
feira gastronômica atraiu o público estimado<br />
em milhares de pessoas dispostas<br />
a apreciar a riqueza <strong>da</strong> cultura espanhola.<br />
Várias instituições e empresas, como o<br />
Centro Cultural Espanhol, os consulados<br />
do México, Uruguai e Peru, o Banco Santander<br />
e a Telefônica apoiaram o evento,<br />
que promete fazer parte do calendário<br />
cultural de São Paulo.<br />
Padre vieira 400 anos<br />
Escritor, sacerdote, educador e político,<br />
ca<strong>da</strong> faceta de Padre Antonio Vieira<br />
foi analisa<strong>da</strong> por especialistas durante<br />
o colóquio realizado no <strong>Memorial</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>América</strong> <strong>Latina</strong> e desenvolvido pelo<br />
Centro de Estudos Fernando Pessoa. A<br />
presença de dezenas de escritores e professores<br />
interessados no estudo <strong>da</strong> obra<br />
e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Vieira atesta a importância<br />
que o autor dos Sermões e <strong>da</strong>s Cartas tem<br />
para a cultura luso-brasileira. O encontro,<br />
como sempre ocorre com eventos<br />
do gênero realizados pelo <strong>Memorial</strong>,<br />
foi condensado no livro, já lançado, 400<br />
Anos do Padre Vieira – “Imperador <strong>da</strong> Língua<br />
Portugues”, sob coordenação do jornalista<br />
e também escritor João Alves <strong>da</strong>s<br />
Neves. Um elenco de historiadores, do<br />
Brasil e de Portugal, focaliza os vários<br />
aspectos <strong>da</strong> produção<br />
de Vieira, que é considerado<br />
um grande<br />
prosador e chamado<br />
de “O Imperador <strong>da</strong><br />
Língua Portuguesa”.<br />
Entre eles estão Hernanni<br />
Donato, Tereza<br />
Rita Lopes, Carlos<br />
Francisco Moura,<br />
Eduardo Navarro,<br />
Maria Beatriz Rosário<br />
Alcântara e Raul<br />
Francisco Moura,<br />
que abor<strong>da</strong>m temas<br />
como “A Inconstância <strong>da</strong> Alma Selvagem<br />
do Sermão do Espírito Santo” e<br />
“Padre Antonio Vieira, Defensor dos<br />
Índios e dos Escravos Africanos”.<br />
65
66<br />
OVERTURA FATAL<br />
POESIA<br />
Iniciación en brujería y versión latina del milagro<br />
(bienvenidos al show aplau<strong>da</strong>n más fuerte)<br />
/mi quimera Fabiola negra la pauta gaita<br />
melódica serpiente de fuego a secas<br />
en su cuerpo entra<strong>da</strong>/<br />
:se fue al varón y no foreció<br />
mi quimera quiera Fabiola mar de cantos de paganos<br />
y ojos a porro y ventana a puertas<br />
a las jaulas que aprisionan su sangre<br />
de la sombra el hombro fera libertad el sacrilegio<br />
pero no torno<br />
que comienza el amor en el mar juraba<br />
que la lluvia lesbia no es más lángui<strong>da</strong><br />
que el agua<br />
es la lejanía<br />
entre la tiniebla y su sombra<br />
a los alientos de tu noche en vela a los baladros<br />
Tan civilizados estos tipos<br />
me dijiste<br />
de la ciénaga del mundo duros hermanos<br />
de Asia furiosos lobos incendiarios<br />
contra Corinto el verbo confrma trémulo por Cristo<br />
que de la traición Eva sola se salva<br />
y soñar con piernas que se quiebran en los dientes<br />
Wingston González é um jovem poeta guatemalteco de apenas 24 anos, com uma trajetória<br />
ain<strong>da</strong> curta, mas internacional. Participou, entre outros, do I Festival de Poemas “Arquimedes<br />
Cruz”, em El Salvador em 2006 e no IV Encontro Internacional de Poesia “El Turno del<br />
Ofendido”, também, em El Salvador, em 2007.