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17 DE<br />
NOVEMBRO<br />
DE 1889<br />
Março de 2012 - 18<br />
R E V I S T A D E E S T U D O S E M A R T E S C Ê N I C A S - 1 8
<strong>Urdimento</strong><br />
P R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M T E AT R O - U D E S C<br />
<strong>Urdimento</strong>: s.m. 1) urdume; 2) parte<br />
superior da caixa do palco, onde se<br />
acomodam as roldanas, molinetes, gornos<br />
e ganchos destinados às manobras<br />
cênicas; fig. urdidura, ideação, concepção.<br />
etm. urdir + mento.<br />
ISSN 1414-5731<br />
Revista de Estudos em Artes Cênicas<br />
Número 18<br />
Programa de Pós-Graduação em Teatro do <strong>CEART</strong><br />
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
URDIMENTO é uma publicação semestral do Programa<br />
de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da<br />
Universidade do Estado de Santa Catarina. As opiniões<br />
expressas nos artigos são de inteira responsabilidade<br />
dos autores. A publicação de artigos, fotos e desenhos foi<br />
autorizada pelos responsáveis ou seus representantes.<br />
A revista está disponível online em<br />
www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento<br />
Ficha técnica<br />
Comitê editorial: Maria Brígida de Miranda, Stephan Arnulf<br />
Baumgärtel e Vera Regina Martins Collaço<br />
Capa: BadenBaden (2011-2012), direção Vicente Concílio, Professor do<br />
Departamento de Artes Cênicas - UDESC. Foto: Lucas Heymannus<br />
Contracapa: Odisseia (2011), direção Paulo Balardim,<br />
Professor do Departamento de Artes Cênicas - UDESC.<br />
Foto: Nina Medeiros.<br />
Local: Centro de Artes da UDESC<br />
Projeto Gráfico: Déborah Salves [salves.deborah@gmail.com]<br />
Diagramação e Projeto Gráfico:<br />
Valdir Siqueira - MTB: 31.804 [valdirsiqueira@sea.sc.gov.br]<br />
Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES<br />
Catalogação na fonte: Luiza da Silva Kleinubing. CRB 14/1132<br />
Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC<br />
<strong>Urdimento</strong>: revista de estudos em artes cênicas / Universidade do<br />
Estado de Santa Catarina. Centro de Artes. Programa de Pós-<br />
Graduação em Teatro. - n.18 (2012) - Florianópolis: UDESC/<strong>CEART</strong>, 2012 -<br />
v.1, n.18, março 2012<br />
Semestral<br />
ISSN 1414-5731<br />
1. Teatro - periódicos. 2. Artes Cênicas - periódicos. I. Universidade do<br />
Estado de Santa Catarina. Centro de Artes. Programa de Pós-Graduação<br />
em Teatro.<br />
CDD: 792 - 20. ed.<br />
Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC<br />
Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa<br />
Vice Reitor: Marcos Tomasi<br />
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Leo Rufato<br />
Diretor do Centro de Artes: Milton de Andrade<br />
Chefe do Departamento de Artes Cênicas: Vicente Concílio<br />
Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Stephan Arnulf Baumgärtel<br />
Conselho editorial<br />
Ana Maria Bulhões de Carvalho Edlweiss (UNIRIO)<br />
Bya Braga (UFMG)<br />
Cássia Navas Alves de Castro (UNICAMP)<br />
Christine Greiner (PUC/SP)<br />
Felisberto Sabino da Costa (ECA/USP)<br />
Jerusa Pires Ferreira (PUC/SP)<br />
João Roberto Faria (FFLCH/USP)<br />
José Dias (UNIRIO)<br />
José Roberto O’Shea (UFSC)<br />
Luiz Fernando Ramos (ECA/USP)<br />
Márcia Pompeo Nogueira (<strong>CEART</strong>/UDESC)<br />
Marcus Mota (UnB)<br />
Maria Lucia de Souza Barros Pupo (ECA/USP)<br />
Mario Fernando Bolognesi (UNESP)<br />
Marta Isaacsson de Souza e Silva (DAD/UFRGS)<br />
Neyde Veneziano (UNICAMP)<br />
Rosyane Trotta (UNIRIO)<br />
Sérgio Coelho Farias (UFBA)<br />
Sônia Machado Azevedo (Escola Superior de Artes Célia Helena)<br />
Tiago de Melo Gomes (UFRPE)<br />
Walter Lima Torres (UFPR)<br />
Conselho assessor<br />
Beti Rabetti (UNIRIO)<br />
Ciane Fernandes (UFBA)<br />
Eugenia Casini Ropa (Universidade de Bolonha - Ítalia)<br />
Eugenio Barba (Odin Teatret)<br />
Francisco Javier (Universidad de Buenos Aires)<br />
Jacó Guinsburg (ECA/USP)<br />
Julia Sagaseta (Instituto Universitário Nacional del Arte -<br />
Buenos Aires)<br />
Juan Villegas (University of California)<br />
Marcelo da Veiga (Universidade Alanus – Alemanha)<br />
Óscar Cornago Bernal (Conselho Superior de Pesquisas<br />
Científicas – Espanha)<br />
Osvaldo Pellettieri (Universidad de Buenos Aires - In Memoriam)<br />
Peta Tait (La Trobe University)<br />
Roberto Romano (UNICAMP)<br />
Silvana Garcia (EAD/USP)<br />
Silvia Fernandes Telesi (ECA/USP)<br />
Tânia Brandão (UNIRIO)
UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina<br />
<strong>CEART</strong> - Centro de Artes<br />
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO<br />
O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, implantado<br />
em 2001, e Doutorado, em 2009.<br />
Professores permanentes<br />
André Luiz Antunes Netto Carreira<br />
Beatriz Ângela Vieira Cabral<br />
Edélcio Mostaço<br />
Fátima Costa de Lima<br />
José Ronaldo Faleiro<br />
Márcia Pompeo Nogueira<br />
Maria Brígida de Miranda<br />
Milton de Andrade<br />
Sandra Meyer Nunes<br />
Stephan Arnulf Baumgärtel<br />
Tereza Mara Franzoni<br />
Valmor Beltrame<br />
Vera Regina Martins Collaço<br />
Professores colaboradores<br />
Matteo Bonfitto Júnior (UNICAMP)<br />
Timothy Prentki (Tim Prentki) - (Universidade de Winchester,<br />
Reino Unido)<br />
O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candidatos<br />
em nível nacional e internacional. Para acesso ao calendário de<br />
atividades, linhas e grupos de pesquisa, corpo docente e corpo<br />
discente, dissertações e teses defendidas e outras informações,<br />
consulte o sítio virtual: http://www.ceart.udesc.br/ppgt<br />
APRESENTAçãO<br />
ARTIGOS<br />
Rosalinda: Protagonista de AS YOU LIKE IT<br />
Rafael Raffaeli<br />
Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta<br />
em até 140 caracteres<br />
Aline de Mello Sanfelici<br />
Fatzer e o Espectro<br />
Fernando Kinas<br />
Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições<br />
de A. Appia e E. Piscator<br />
Marcus Mota<br />
A trajetória de uma diretora<br />
Leo Sykes<br />
Padagogia do Teatro<br />
Teatro de figuras alegóricas: A ferida Woyzeck<br />
Ingrid Dormien Koudela<br />
Possibilidades e desafios da iniciação à docência<br />
em teatro na Educação Básica<br />
Vera Lúcia Bertoni dos Santos<br />
A Formação dos professores e a prática reflexiva: os canais<br />
de percepção no ensino do teatro<br />
Robson Rosseto<br />
A voz social no contexto escolar: identidade,<br />
subjetividade e diferença<br />
Raquel Guerra<br />
9 e 10<br />
16<br />
17<br />
27<br />
35<br />
43<br />
59<br />
69<br />
71<br />
78<br />
85<br />
93<br />
Sumário
A experimentação vocal na composição da personagem<br />
teatral. Confrontando as barreiras da preconcepção do texto<br />
Agatha Baú<br />
Teatralidades no Corpo: O espaço cênico somos nós<br />
Marina Marcondes Machado<br />
Teatro-fórum: propósitos e procedimentos<br />
Cilene Nascimento Canda<br />
Teatro comunitário e dramaturgia do espaço público<br />
Juliano Borba<br />
Encontro com Dramaturgo<br />
Meta-textualidade, instâncias de enunciação e conflitos<br />
não-narrativos – reflexões sobre impulsos não-dramáticos na<br />
dramaturgia brasileira contemporânea<br />
Stephan Baumgärtel<br />
ENTREVISTAS<br />
Caminhos da Dramaturgia Brasileira 1<br />
– Entrevista com Samir Yazbek<br />
Caminhos da Dramaturgia Brasileira 2<br />
– Entrevista com Márcio Abreu<br />
Caminhos da Dramaturgia Brasileira 3<br />
– Entrevista com Roberto Alvim<br />
TRADUçõES<br />
Improvisação<br />
Charles Dullin<br />
Entre fala e linguagem<br />
Theresia Birkenhauer<br />
De seres humanos reais e performers verdadeiros<br />
Annemarie Matzke<br />
ESPETáCULOS<br />
BadenBaden (2011)<br />
Odisseia (2011)<br />
103<br />
109<br />
119<br />
129<br />
139<br />
141<br />
155<br />
157<br />
159<br />
163<br />
169<br />
171<br />
181<br />
189<br />
197<br />
198<br />
207
N° 18 | Março de 2012<br />
Apresentação<br />
BadenBaden (2011) - DIREÇÃO: Vicente Concílio. ATRIZ: Gabriela Drehmer. FOTO: Lucas Heymanns.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Apresentação 9
N° 18 | Março de 2012<br />
Este número da revista URDIMENTO reúne artigos<br />
que chegaram pelo fluxo contínuo ao corpo editorial.<br />
Eles foram escolhidos por permitirem ao leitor, em sua<br />
qualidade e diversidade, acompanhar com uma visão<br />
crítica o crescimento da pesquisa na área do teatro<br />
ao longo dos últimos anos, e familiarizar-se com as<br />
diferentes pesquisas realizadas nos Programas de Pós-<br />
Graduação em Artes Cênicas do país. Esse número<br />
contempla, também, o que podemos denominar de<br />
um mini dossiê voltado para o Teatro & Educação,<br />
complementando, dessa forma, a <strong>Urdimento</strong> anterior,<br />
cujo numero temático foi voltado para a pedagogia<br />
teatral.<br />
Abrimos com dois estudos sobre duas peças de<br />
Shakespeare que atestam o fascínio que este teatro ainda<br />
consegue suscitar nos leitores de hoje. Segue um estudo<br />
sobre o texto Fatzer, uma peça não-acabada de Bertolt<br />
Brecht, que recentemente serviu como (pré-)texto para<br />
uma cooperação cênica entre artistas alemães e brasileiros<br />
em São Paulo. Marcus Mota apresenta os primeiros<br />
resultados de sua atual pesquisa sobre os projetos poéticos<br />
e culturais de alguns fundadores europeus do teatro<br />
moderno e contemporâneo, traduzindo e analisando<br />
diretamente as fontes primárias. Leo Sykes relata suas<br />
experiências como assistente de Eugenio Barba e diretora<br />
do Circo Teatro Udi Grudi, oferecendo uma perspectiva<br />
ao mesmo tempo pessoal e exemplar: partindo do ponto<br />
de vista daquilo que ela chama um olhar ‘feminino’,<br />
independente do sexo da figura do diretor, ela oferece<br />
um olhar íntimo sobre alguns processos criativos do Odin<br />
Teatret e de seu próprio grupo de Brasília.<br />
Uma das áreas mais consolidadas no nosso contexto<br />
acadêmico e profissional é a da Pedagogia do Teatro. As<br />
múltiplas relações entre teatro e educação, entre o fazer<br />
teatral e a formação de identidades humanas, individuais<br />
ou coletivas, são apresentadas em oito artigos. Os artigos<br />
situam criticamente a pedagogia do teatro e seus diversos<br />
Apresentação<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Apresentação 11
<strong>Urdimento</strong> N° 18 | Março de 2012<br />
12<br />
procedimentos criativos dentro de escola,<br />
universidade, empresa e comunidade.<br />
Em 2011, o PPGT em conjunto com os<br />
Departamentos de Artes Cênicas da<br />
UDESC e da UFSC, iniciou um projeto<br />
intitulado Encontro com Dramaturgo.<br />
Foram, então, convidados quatro<br />
dramaturgos para falar sobre seu<br />
trabalho, suas experiências enquanto<br />
autores teatrais, sua visão sobre<br />
o lugar da dramaturgia teatral na<br />
sociedade brasileira contemporânea,<br />
e para ministrar uma oficina. Três<br />
dramaturgos responderam por escrito<br />
a um questionário deixando registrado<br />
algumas dessas reflexões teóricas expostas<br />
nas suas palestras. Apresentamos aqui<br />
essas entrevistas, acompanhadas de<br />
um artigo de Stephan Baumgärtel,<br />
idealizador do referido projeto e<br />
professor do PPGT. A partir de exemplos<br />
da dramaturgia brasileira, esse artigo<br />
oferece uma reflexão sobre três aspectos<br />
básicos pelos quais uma dramaturgia<br />
não-dramática contemporânea difere<br />
de uma dramaturgia que denominamos<br />
usualmente de dramática. Esperamos que<br />
esse projeto e alguns de seus resultados<br />
aqui registrados auxiliem a repensar o<br />
lugar do texto teatral além da dicotomia<br />
literatura e cena.<br />
Finalizamos esta edição com três<br />
traduções de ensaios de pesquisadores<br />
estrangeiros. Ao lado de um texto sobre<br />
Improvisação, do encenador francês<br />
Charles Dullin, incluímos o texto<br />
Entre fala e linguagem, da pesquisadora<br />
alemã Theresia Birkenhauer, falecida<br />
prematuramente em 2006, que foi<br />
uma das primeiras teóricas do teatro<br />
a pensar a relação entre texto e cena<br />
à luz das práticas cênicas e textuais<br />
contemporâneas. Por último, reeditamos<br />
o texto de Annemarie Matzke, De seres<br />
humanos reais e performers verdadeiros, uma<br />
vez que por um erro de diagramação, na<br />
<strong>Urdimento</strong> n. 16, se perdeu a final parte<br />
do texto.<br />
Desejamos que os leitores possam<br />
encontrar nesse número impulsos<br />
para suas próprias questões de<br />
pesquisa, reiterando nosso chamado à<br />
colaboração contínua, e nosso convite a<br />
dialogar diretamente com os trabalhos<br />
apresentados.<br />
Maria Brígida de Miranda, Vera Collaço,<br />
Stephan Baumgärtel<br />
Corpo Editorial<br />
Apresentação
ARTIGOS<br />
BadenBaden<br />
(2011). Espaço 2.<br />
<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO:<br />
Vicente Concílio.<br />
ATRIzES:<br />
Vanessa Civieiro<br />
e Mirella<br />
Granucci.<br />
FOTO: Lucas<br />
Heymanns.
N° 18 | Março de 2012<br />
ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />
Resumo<br />
Este ensaio trabalha com a peça de William Shakespeare<br />
"As you like it", analisando a construção da personalidade<br />
da protagonista da comédia, Rosalinda, com referência<br />
aos aspectos mitológicos e de gênero. Rosalinda é baseada<br />
na personagem do romance Rosalynd de Thomas Lodge,<br />
mas é muito diferente da heroína pastoral usual. Rosalinda<br />
travestida pode ser interpretada como o andrógino ou<br />
hermafrodita arquetípico e o seu relacionamento com<br />
Orlando como um hiero gamos.<br />
PALAVRAS-ChAVE: Shakespeare, As you like it, Rosalinda.<br />
Abstract<br />
This essay works on the William Shakespeare’s play As<br />
you like it, analyzing the construction of the personality<br />
of the protagonist of the comedy, Rosalind, concerning<br />
gender and mythological aspects. Rosalind is based on<br />
the personage of the romance Rosalynd of Thomas Lodge,<br />
but is much different from the usual pastoral heroine.<br />
Rosalind travestied may be interpreted as the archetypal<br />
androgynous or hermaphrodite and her relationship with<br />
Orlando as a hieros gamos.<br />
KEywORDS: Shakespeare, As you like it, Rosalind.<br />
1 Professor Titular, membro permanente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em<br />
Ciências Humanas, docente dos cursos de Psicologia, Cinema e Artes Cênicas da UFSC. Mestre em<br />
Psicologia Social, Doutor em Psicologia Clínica, Pós-Doutorado em Psicologia Clínica pela PUC/SP,<br />
Pós-Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
ROSALINDA:<br />
PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />
Rafael Rafaelli 1<br />
17
<strong>Urdimento</strong><br />
18<br />
Introdução<br />
O<br />
objetivo do presente ensaio<br />
é analisar aspectos da composição<br />
da personalidade de<br />
Rosalinda, protagonista de<br />
As you like it (Do jeito que você<br />
gosta) de William Shakespeare, evidenciando<br />
algumas das interpretações sobre<br />
a função desse papel na peça e seus<br />
possíveis desdobramentos teóricos, em<br />
especial as questões relacionadas ao gênero<br />
e à mitologia.<br />
Apresenta-se a seguir alguns dos<br />
elementos históricos e estilísticos que influenciaram<br />
Shakespeare na elaboração<br />
dessa comédia.<br />
Shakespeare a redigiu provavelmente<br />
no verão de 1599, ano em que já havia<br />
escrito Henrique V e Júlio César, imediatamente<br />
antes da elaboração de Hamlet.<br />
Na produção desse ano, segundo James<br />
Shapiro (2011, p.17), se cristalizam os<br />
“mundos perdidos” de Shakespeare: “o<br />
passado católico recente da Inglaterra,<br />
a paisagem desflorestada de sua nativa<br />
Arden e a cultura cavalheiresca que desaparecia<br />
gradual, mas rapidamente”.<br />
Para esse autor o drama elisabetano foi<br />
fruto das transformações que a Inglaterra<br />
sofria em seu Renascimento tardio, em<br />
especial o rompimento com o catolicismo<br />
ocorrido em 1535, e uma das hipóteses<br />
para o florescimento do teatro nesse<br />
período foi a proibição das festas católicas,<br />
que exerciam uma enorme influência<br />
sobre o imaginário popular. Mas o<br />
fato é que os espetáculos londrinos eram<br />
assistidos diariamente por cerca de três<br />
mil pessoas de todos os extratos sociais e<br />
“isso significava que Shakespeare e seus<br />
colegas dramaturgos estavam escrevendo<br />
para os frequentadores de teatro mais<br />
experientes da história” e ele agradava a<br />
todos (SHAPIRO, 2011, p.31).<br />
No seu texto A Literatura Inglesa, Anthony<br />
Burgess (2008, p.92) coloca que<br />
o teatro da época apresentava “ação e<br />
sangue para os iletrados, belas frases e<br />
engenho para os almofadinhas, humor<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
sutil para os refinados, palhaçada escandalosa<br />
para os não-refinados, assuntos<br />
amorosos para as damas, canção e dança<br />
para todos”.<br />
E, efetivamente, tudo isso encontramos<br />
em As you like it. Há indícios de que<br />
foi encenada pela primeira vez no Natal de<br />
1599 para a rainha Elisabeth no Palácio de<br />
Richmond (SHAPIRO, 2011, p.363), tendo<br />
sido registrada de forma oficial em agosto<br />
de 1600. Sua publicação ocorreu apenas<br />
no Primeiro Fólio de 1623 - organizado por<br />
Henry Condell e John Heminges sete anos<br />
após a morte de Shakespeare - e só mais de<br />
um século depois seria citada e encenada<br />
de novo. Por ser um trabalho inovador, à<br />
frente de seu tempo, talvez o público não<br />
estivesse acostumado a personagens tão<br />
desenvolvidos e complexos, e a peça foi<br />
relegada a um relativo esquecimento após<br />
sua première (SHAPIRO, 2011, p.237).<br />
O pano de fundo do enredo é a deposição<br />
do Duque Sênior, pai de Rosalinda,<br />
pelo seu irmão, o Duque Frederico, pai<br />
de Célia. O Duque Sênior foge do palácio<br />
e se esconde na idílica floresta de Arden<br />
acompanhado por Jaques e um punhado<br />
de correligionários, deixando sua<br />
filha na cidade em companhia da prima.<br />
Rosalinda é expulsa da corte pelo tio e aí<br />
as duas primas, acompanhadas pelo bobo<br />
Touchstone, resolvem também fugir para<br />
a floresta. Para evitar os perigos da jornada,<br />
Rosalinda disfarça-se trajando roupas<br />
masculinas e adota o pseudônimo de ‘Ganimedes’,<br />
enquanto Célia veste-se como se<br />
fosse a camponesa ‘Aliena’. Já na floresta,<br />
Rosalinda encontra-se com Orlando, por<br />
quem nutre uma paixão correspondida.<br />
Sem abandonar seu disfarce masculino,<br />
Rosalinda convence Orlando que vai curálo<br />
de sua paixão e, para tanto, pede que ele<br />
a corteje como se fosse a sua amada. Com<br />
essa artimanha pretende verificar a sinceridade<br />
do seu amor por ela e, ao mesmo tempo,<br />
ensiná-lo a amar de verdade. Ao final,<br />
quando o Duque Sênior é restaurado no<br />
trono, acontece uma festa sob os auspícios<br />
de Himeneu – deus do casamento - na qual<br />
Rosalinda revela-se, abandonando seu dis-<br />
Rafael Raffaelli<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
farce, e casa com Orlando, enquanto Célia<br />
casa-se com Oliver, o irmão dele. A cena<br />
completa-se com mais dois enlaces: Touchstone<br />
casa-se com a camponesa Audrey<br />
e Silvius com Phoebe.<br />
O enredo caracteriza-se pela simplicidade.<br />
Como resume Michael Hattaway<br />
(2000, p.11): “the play’s central story of the<br />
wooing of Orlando and Rosalind, a tale in which,<br />
in the manner of classical New Comedy,<br />
love and virtue overcome adversity and oppression,<br />
is slightest”.<br />
A fonte da peça é o romance pastoril<br />
Rosalynd de Thomas Lodge, publicado em<br />
1590. Shakespeare utilizou a trama principal<br />
do romance de Lodge, dois jovens<br />
perdidos numa floresta, e o tema da usurpação<br />
e restauração do governo de um<br />
ducado. Manteve o disfarce masculino de<br />
Rosalinda como Ganimedes – o copeiro de<br />
Júpiter – e até os nomes dos personagens<br />
principais, com exceção de Orlando, denominado<br />
‘Rosader’ em Lodge (KOTT, 2003,<br />
p.240; SHAPIRO, 2011, p.241).<br />
O título da peça seria uma espécie de<br />
chamariz para o público, da mesma forma<br />
que os taverneiros da época penduravam<br />
ramos de hera nas portas dos seus estabelecimentos<br />
para anunciar que serviam vinho<br />
de qualidade superior, como é referido no<br />
seu epílogo, que em Lodge constitui-se no<br />
prefácio. Outra particularidade é que se supõe<br />
que o próprio Shakespeare atuava no<br />
papel de Adam, o idoso criado de Orlando,<br />
que desaparece de cena após a primeira<br />
refeição na floresta (BLOOM, 2000, p.260;<br />
SHAPIRO, 2011, p.254).<br />
Em suma, Shakespeare manteve a<br />
base do enredo, mas acrescentou uma pitada<br />
de ironia e humor com as figuras de<br />
Jaques e Touchstone. Ao melancólico Jaques<br />
corresponde a fala mais conhecida<br />
da peça: “O mundo é um palco e todos os<br />
homens e mulheres são na verdade atores”<br />
(SHAKESPEARE, 2011, p.54, 2.7). Touchstone,<br />
o jester, cujo nome – pedra de toque<br />
– faz menção à pedra que era usada pelos<br />
ourives para avaliar a pureza dos metais<br />
preciosos, aparece para separar o joio do<br />
trigo, a falsidade da verdade, a sabedoria<br />
ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
da loucura. O papel foi feito sob medida<br />
para Robert Armin, que havia substituído<br />
William Kemp na companhia de Shakespeare<br />
(Lord Chamberlain’s Men). Com exceção<br />
de Feste em Noite de Reis, suas trezentas linhas<br />
de fala superaram qualquer outro bufão<br />
em sua obra (SHAPIRO, 2011, p.256).<br />
Além disso, Shakespeare realiza em<br />
sua obra uma espécie de “contra-pastoral”,<br />
pois tanto Jaques como Touchstone estabelecem<br />
“a kind of reality principle, both<br />
demonstrating a sardonic scepticism about<br />
the satisfactions of country as opposed to<br />
pastoral life” (HATTAWAY, 2000, p.19).<br />
Esse ponto fica evidente no seguinte<br />
trecho do diálogo entre Touchstone e o<br />
pastor Corin:<br />
Corin – Está gostando da vida de<br />
pastor, Mestre Touchstone?<br />
Touchstone – Sendo franco, pastor,<br />
em relação a si mesma é uma vida boa,<br />
mas considerando que é uma vida de<br />
pastor, é um nada. Por ser solitária,<br />
gosto muito, mas considerando que<br />
é isolada, é uma vida muito vil.<br />
Agora, por trabalhar no campo, ela<br />
bem me agrada, mas como não é na<br />
cidade, é tediosa. Como é uma vida<br />
frugal, veja você, ela se adequa à<br />
minha disposição, mas como não<br />
há abundância, ela vai contra meu<br />
estômago (SHAKESPEARE, 2011,<br />
p.60-61, 3.3).<br />
Assim, a peça excede os domínios<br />
de uma pastoral clássica e desenvolve uma<br />
temática inovadora para os padrões da<br />
época, na qual Rosalinda se constitui a força<br />
motriz da ação dramática.<br />
As várias faces de Rosalinda<br />
Harold Bloom em seu livro Shakespeare:<br />
a invenção do humano afirma que Rosalinda<br />
é “a mais talentosa” (2000, p.260)<br />
das heroínas das comédias de Shakespeare<br />
e “a quem Rosalinda não for capaz<br />
de agradar, nenhum outro personagem<br />
shakespeariano, ou em toda a literatura,<br />
19
<strong>Urdimento</strong><br />
20<br />
poderá fazê-lo” (2000, p.261). E mais: “a<br />
invenção do humano por Shakespeare<br />
(...) alcança uma nova dimensão com Rosalinda”<br />
(2000, p.264).<br />
‘Rosalinda’ e suas variantes dão<br />
nome a personagens recorrentes na<br />
obra de Shakespeare, pois em Trabalhos<br />
de Amor Perdidos existe uma ‘Rosaline’,<br />
dama de companhia da princesa, e, em<br />
Romeu e Julieta é mencionada, dependendo<br />
da edição, ‘Rosaline’ ou ‘Rosalinda’,<br />
uma jovem compromissada com Romeu<br />
que nunca aparece em cena. Ambas são<br />
femmes fatales, mulheres inatingíveis<br />
como no ideal de Petrarca.<br />
No teatro elisabetano, Rosalinda era<br />
interpretada por um homem, que interpretava<br />
uma mulher disfarçada de homem,<br />
cujo pseudônimo é ‘Ganimedes’,<br />
com a conotação homoerótica que essa<br />
associação traz. Como classificar um<br />
homem que se faz mulher, que se faz<br />
homem para atrair outro homem? Representada<br />
por um rapaz imberbe, Rosalinda<br />
surgia com uma aura de hermafroditismo,<br />
lançando uma sombra sobre as<br />
definições estanques de gênero vigentes.<br />
Sobre esse aspecto da peça, cabe aqui a<br />
observação de Jan Kott (2003, p.241)<br />
evocando a estética teatral de Jean Genet:<br />
“O teatro é a imagem de todas as<br />
relações humanas porque a falsidade<br />
constitui seu princípio. (...) A ‘verdadeira’<br />
menina é um rapaz disfarçado”.<br />
Por outro lado, na opinião de Burgess<br />
(2008, p.90), o fato das mulheres serem<br />
proibidas de atuar no teatro elisabetano<br />
contribuiu para que várias heroínas de<br />
Shakespeare se travestissem, pois “suas heroínas<br />
eram rapazes e se sentiam mais confortáveis<br />
(provavelmente representavam<br />
melhor também) vestidas como rapazes”.<br />
Algumas montagens contemporâneas<br />
podem cair na tentação de transformar<br />
a peça numa espécie de ‘férias no<br />
campo’, mas o papel de Rosalinda exige<br />
uma ênfase no lirismo sem transbordamentos<br />
sentimentais, pois esse papel,<br />
escrito para jovens atores, tem sutilezas<br />
e ambiguidades que as atrizes por vezes<br />
suprimem. Segundo Paglia (1994, p.203)<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
“a heroína travestida de Shakespeare<br />
tem orgulho, verve, e frio e aristocrático<br />
controle masculinos – que dificilmente<br />
se encontram nas Rosalindas simplistas<br />
e inócuas de hoje”.<br />
Além de Rosalinda, Viola (Noite de<br />
Reis) e Pórcia (O Mercador de Veneza)<br />
também se travestem, mas não possuem<br />
a mesma atitude masculina, o mesmo<br />
ímpeto de ação. Viola mostra-se tímida<br />
e frágil e Pórcia não atua no sentido da<br />
conquista amorosa. Já Rosalinda sabe ser<br />
dura e direta, até intimidadora, e não se<br />
deixa levar pelo excesso de compaixão<br />
feminina, como quando desdenha Phoebe,<br />
ao contrário de Viola que fica com<br />
pena de Olívia que se apaixonou por ela.<br />
Mais ainda, a Rosalinda de As you like<br />
it é um dos personagens mais originais<br />
da literatura renascentista, superando o<br />
tratamento psicológico dado às personagens<br />
femininas da época. Rompe com a<br />
idéia da docilidade e da fragilidade inatas<br />
da mulher, da sua incapacidade intelectual,<br />
de seu papel passivo na corte<br />
amorosa e de sua submissão aos desejos<br />
masculinos. Quanto a isso, de fato, “a visão<br />
shakespeariana da mulher é revolucionária”<br />
(PAGLIA, 1994, p.203).<br />
Já a relação entre Rosalinda e Orlando<br />
evolui de um amor idealizado para<br />
uma relação de amor mútuo e cotidiano.<br />
De maneira diversa de Romeu e Julieta,<br />
o que está em jogo não é a intensidade<br />
da paixão, mas o autoconhecimento e a<br />
intimidade da vida a dois. Numa peça<br />
na qual o conflito surge no início e depois<br />
se dissipa quase por si só, o élan da<br />
comédia é a educação afetiva através da<br />
qual Rosalinda submete Orlando à sua<br />
vontade, invertendo as posições da corte<br />
amorosa. Diz ainda Bloom (2000, p.269):<br />
“Orlando é tão imaturo quanto a maioria<br />
dos personagens masculinos em Shakespeare;<br />
(...) Rosalinda é pragmática demais<br />
para lamentar essa desigualdade, e<br />
educa Orlando com todo prazer”.<br />
A base dessa educação afetiva é o<br />
contrato terapêutico que Rosalinda,<br />
como Ganimedes, propõe a Orlando<br />
logo que se encontram na floresta:<br />
Rafael Raffaelli<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Rosalinda – O amor é apenas<br />
uma loucura, posso lhe afirmar,<br />
e merece o quarto escuro e o<br />
chicote reservado aos loucos. E<br />
o motivo de não ser punida ou<br />
curada é que essa insanidade se<br />
tornou tão comum que os próprios<br />
terapeutas estão apaixonados.<br />
Mas sou perito em curá-la pelo<br />
aconselhamento.<br />
Orlando – Já curou alguém?<br />
Rosalinda – Sim, um, e deste<br />
modo: ele tinha que me imaginar<br />
como sendo o seu amor, a sua<br />
amada, e eu o encontrava todo dia<br />
para que me cortejasse. Aí eu me<br />
mostrava como sendo de lua – às<br />
vezes sensível e gentil. Às vezes<br />
mutável, volúvel, orgulhosa,<br />
caprichosa, frívola, superficial,<br />
inconstante, às vezes cheia de<br />
lágrimas, às vezes cheia de<br />
sorrisos. Demonstrava paixão por<br />
algo e depois não tinha interesse<br />
por nada, pois os garotos e as<br />
mulheres são, em sua maior parte,<br />
gado desse tipo. Às vezes, gostava<br />
dele, às vezes o detestava, às vezes<br />
o mimava, às vezes o repelia, às<br />
vezes chorava por ele, às vezes,<br />
cuspia. Desse modo, eu o conduzi<br />
da loucura amorosa para a loucura<br />
quotidiana, a qual o fez abandonar<br />
a torrente avassaladora do mundo<br />
e viver à beira de um riacho em<br />
reclusão monástica. Foi assim que<br />
o curei e da mesma forma limparei<br />
seu coração para que ele se pareça<br />
com o coração puro de uma<br />
ovelha, sem uma única mancha de<br />
amor (SHAKESPEARE, 2011, p.<br />
76-77, 3.3).<br />
Orlando é Júpiter e ela o seu belo amante<br />
Ganimedes. Mas ele precisa abandonar a<br />
prepotência do macho e aceitar a orientação<br />
dela para aprender a amar e a cortejar. Da<br />
mesma forma, os poemas inspirados em Petrarca<br />
que ele lhe dedica devem ser depurados<br />
de sua carga idealizante para enfrentar<br />
as duras realidades da convivência a dois.<br />
Por isso, “morrer de amor” é, no dizer de<br />
Rosalinda, uma “mentira” (SHAKESPEA-<br />
RE, 2011, p.93, 4.1).<br />
ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Quanto ao papel de Orlando na<br />
trama, que parece não se dar conta do<br />
disfarce óbvio de Rosalinda, fica uma<br />
dúvida: ele sabe da artimanha dela?<br />
Se ele sabe, em que momento ficou sabendo?<br />
E, se ele sabe, ela sabe que ele<br />
sabe? E ainda: ele sabe que ela sabe que<br />
ele sabe? Ou seja, é engodo ou conluio?<br />
Questões que têm que ser interpretadas<br />
pelas montagens, pois quando Rosalinda<br />
se revela ao final da peça, não<br />
há assombro por parte dele. Pode-se<br />
dizer que essa imprevisibilidade do<br />
desenrolar da comédia é a inovação<br />
introduzida por Shakespeare. Conforme<br />
avalia Bloom (2000, p.282), “além<br />
da questão da credibilidade, seria uma<br />
perda estética se Orlando não estivesse<br />
plenamente consciente do encanto da<br />
situação”. Shapiro (2011, p.246) sugere<br />
que esse reconhecimento efetivamente<br />
ocorre durante a encenação do casamento<br />
oficiado por Célia, no momento<br />
em que Rosalinda diz “dê-me sua mão,<br />
Orlando” (SHAKESPEARE, 2011, p.94,<br />
4.1) e ele a toca.<br />
Rosalinda é uma personagem muito<br />
bem trabalhada no aspecto psicológico, denota<br />
uma rica interioridade que a diferencia<br />
da heroína convencional e uma capacidade<br />
ímpar de gerar empatia com a audiência,<br />
que chega ao ápice no monólogo final. Possui<br />
um quarto do total de falas da peça,<br />
domina todas as cenas em que participa e<br />
exerce um papel central no desenrolar da<br />
trama. Pois Rosalinda é exuberante, emotiva,<br />
um tanto sonhadora, mas também,<br />
desinibida, intelectualizada e afiada como<br />
uma navalha, todas essas qualidades que a<br />
tornam única e que a fazem tão amada. Em<br />
suma, é rosa (atributo feminino) e é espinho<br />
(atributo masculino).<br />
O diálogo entre Rosalinda – disfarçada<br />
como Ganimedes – e Orlando evidencia<br />
essa ambivalência:<br />
Orlando – Um homem que possui<br />
uma mulher com tal astúcia poderia<br />
dizer: “Perdeu o juízo?”<br />
Rosalinda – Pode guardar essa<br />
observação para quando encontrar<br />
21
<strong>Urdimento</strong><br />
22<br />
a astúcia de sua mulher indo para a<br />
cama do vizinho.<br />
(SHAKESPEARE, 2011, p.95-96, 4.1)<br />
Sem dúvida tal abordagem não era<br />
isenta de riscos, tendo em vista que a criação<br />
de uma personagem desse jaez causaria<br />
certo mal-estar numa sociedade na<br />
qual ainda subsistia a prática do charivari<br />
– em inglês ‘riding the stang’, ‘skimmington<br />
riding’ ou ‘rough music’, conforme a região<br />
(ANDREWS, 2010). Consistia numa manifestação<br />
de execração pública direcionada<br />
contra pessoas que rompiam normas sociais<br />
ou causavam distúrbios, em especial<br />
no casamento, como adúlteros ou mesmo<br />
quando uma mulher mandava no marido<br />
– nesse caso, ela era colocada montada ao<br />
contrário num cavalo, isto é, com a face<br />
voltada para a traseira do animal, e desfilava<br />
pelas ruas para o escárnio do povo.<br />
Pois Rosalinda governa melhor a floresta<br />
que seu pai o ducado, ela ordena<br />
e dispõe os laços afetivos com precisão e<br />
perspicácia para obter, como que por ‘mágica’,<br />
os fins que almeja. Por isso, sugere<br />
Camille Paglia (1994, p.202), quando Jaques<br />
improvisa uma canção e nela inclui a<br />
palavra enigmática “ducdame” (SHAKES-<br />
PEARE, 2011, p.48, 2.5), poderia estar dizendo<br />
de forma oblíqua que, na verdade,<br />
“o duque é uma dama”.<br />
Outro aspecto a ser considerado é a<br />
ligação entre Rosalinda e sua prima Célia<br />
que pode ser interpretada como homoerótica,<br />
pois “nunca antes duas moças se<br />
amaram dessa maneira” (SHAKESPEARE,<br />
2011, p.13, 1.1). Some-se a isso a paixão que<br />
Phoebe nutre por ela, explicitada nos versos<br />
que lhe envia:<br />
Dize-me, ó Deus-pastor, o que quer<br />
Ao abrasar o coração de uma mulher?<br />
Por que a sua essência renascida quer<br />
Guerrear contra um coração de<br />
mulher?<br />
(SHAKESPEARE, 2011, p.101, 4.3)<br />
Pelas paixões que Rosalinda provoca<br />
logo se percebe que mudar de gênero<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
não é uma atitude isenta de riscos, tanto<br />
do ponto de vista erótico quanto metafísico,<br />
e pode até constituir-se numa punição.<br />
Segundo o relato mitológico, Hera puniu o<br />
adivinho Tirésias transformando-o em mulher<br />
(BRANDãO, 1992, v.2, p.451). Nas saturnais<br />
romanas era comum que homens e<br />
mulheres trocassem as vestimentas, porém<br />
a confusa identidade de gênero do imperador<br />
Heliogábalo (c.203-222) foi um dos<br />
motivos alegados para a sua deposição e<br />
assassinato (ARTAUD, 1982, p.104).<br />
Quanto ao erótico, levando-se em conta<br />
a visão psicanalítica da bissexualidade<br />
inerente ao ser humano, as roupas masculinas<br />
que Rosalinda traja a torna mais<br />
sedutora de quatro maneiras: aos homens<br />
heterossexuais, pois reconhecem as formas<br />
femininas sob seu disfarce ou, de outro<br />
modo, despertam suas tendências homoeróticas<br />
recalcadas; aos homossexuais, que<br />
vêem nela o efebo afeminado que atende<br />
aos seus desejos; às mulheres heterossexuais<br />
que buscam homens mais refinados<br />
e intelectualizados ou pela ação do homoerotismo<br />
latente e às homossexuais afeitas<br />
à beleza feminil. Como relata Kott (2003,<br />
p.237), “nos Diálogos das cortesãs de Aretino,<br />
as que ensinam o ofício recomendam<br />
várias vezes disfarçar-se e fingir ser um rapaz,<br />
sendo esse o meio mais eficaz de despertar<br />
a paixão”.<br />
Entretanto, de acordo com Bloom<br />
(2000, p.266), não se deve colocar demasiada<br />
ênfase num possível homoerotismo de<br />
Rosalinda, pois a opção dela é heterossexual<br />
e finda no casamento.<br />
Quanto ao aspecto mitológico, Rosalinda<br />
pode ser considerada um avatar da<br />
triformis dea, “rainha da noite de tríplice<br />
coroa” – como é denominada por Orlando<br />
(SHAKESPEARE, 2011, p.60, 3.2), denominação<br />
essa que se refere à Hécate, reinando<br />
como Cíntia no Céu, como Diana ou ártemis<br />
na Terra e como Proserpina no Hades –<br />
todas elas manifestações da deusa-mãe Ísis.<br />
Mas, travestida, é um avatar de Dioniso ou<br />
Baco, que é representado como andrógino.<br />
Nas palavras de Kott (2003, p.239) “o correspondente<br />
anatômico do disfarce é o her-<br />
Rafael Raffaelli<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
mafrodita; seu correspondente metafísico,<br />
o andrógino. O andrógino é um arquétipo,<br />
é o conceito e a imagem da fusão dos elementos<br />
masculino e feminino”. A representação<br />
escultural ou pictórica desse deus<br />
a partir do Renascimento sempre enfatiza<br />
esse aspecto, como podemos notar na escultura<br />
de Michelangelo e nos quadros de<br />
Leonardo da Vinci e Caravaggio, cujo Baco<br />
foi pintado por volta de 1597, muito próximo,<br />
portanto, do ano em que Shakespeare<br />
escreveu As you like it.<br />
Dioniso, ligado ao campo, à floresta e<br />
à caça, e por isso dito “agreste, obscuro, biforme”<br />
(PORFÍRIO, 1987, p.192), também é<br />
o patrono do teatro, do êxtase místico e do<br />
vinho, que propicia a ruptura das normas<br />
sociais através da embriaguês e do desregramento.<br />
Em sua obra “Dioniso: imagem<br />
arquetípica da vida indestrutível” Carl Kerényi<br />
(2002, p.71) coloca que “a máscara<br />
e o bode” são elementos ligados ao culto<br />
histórico de Dioniso na cultura minóica. As<br />
máscaras eram utilizadas no culto dionisíaco<br />
“quer no rosto dos dançarinos, quer<br />
no centro da cena ritual, penduradas numa<br />
árvore, ou num poste” e prefiguravam o<br />
teatro. O bode estaria relacionado a Pã, o<br />
“deus-pastor”, integrante do cortejo de<br />
Dioniso, “pleno de delírio báquico e inspiração<br />
divina” (PORFÍRIO, 1987, p.178), a<br />
espelhar o “Grande Todo, o Todo de cada<br />
ser” (BRANDãO, 1992, v.2, p.222), isto é,<br />
atribui a cada um o lugar e o papel que lhe<br />
cabe no concerto do cosmos. Isso é simétrico<br />
à atitude de Rosalinda, que através da<br />
magia estabelece ordem na caótica urdidura<br />
romântica da comédia, adequando cada<br />
personagem ao seu destino através do matrimônio.<br />
Avançando um pouco mais, o mito<br />
relata ainda que o Dioniso infante, denominado<br />
então Zagreu, foi despedaçado,<br />
cozido e devorado pelos Titãs. Zeus, como<br />
vingança, os transformou em cinzas e dessas<br />
cinzas nasceram os homens, que partilham<br />
tanto do mal, oriundo dos Titãs,<br />
como do bem, proveniente de Zagreu, que<br />
renasce como Dioniso (BRANDãO, 1992,<br />
v.1, p.286). Daí provém sua relação com o<br />
ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
culto egípcio a Ísis e Osíris que, conforme<br />
Heródoto (1950, v.1, p.130), “são o mesmo<br />
que Baco”; Plutarco (1997, p.86) igualmente<br />
afirma que “Osíris é o mesmo que Dioniso”.<br />
Assim, levando em consideração o acima<br />
descrito, do ponto de vista mitológico<br />
Rosalinda como deusa personificaria a Íris,<br />
pela sua identificação com Hécate, e, como<br />
andrógino, remeteria a Osíris, pela sua<br />
identificação com Dioniso, encarnando uma<br />
dúplice identidade.<br />
Ao final da peça, Himeneu, deus do<br />
casamento, surge para presidir a cerimônia<br />
de núpcias. Contudo, não haveria necessidade<br />
da ingerência de um deus na<br />
trama, pois os conflitos já estariam solucionados<br />
sem a sua intervenção. Essa cena<br />
se constitui na “primeira mascarada” na<br />
obra de Shakespeare, “antecipando em<br />
quase uma década aquelas em Conto de<br />
inverno, Cimbelino e A tempestade” (SHA-<br />
PIRO, 2011, p.260) e cumpriria duas funções:<br />
primeiro, substituir as jigas, danças<br />
populares, que se seguiam às peças<br />
nos teatros, e, segundo, utilizar os novos<br />
artefatos cenográficos disponíveis, que<br />
possibilitariam que o deus baixasse do<br />
teto do Globe Theatre diretamente para o<br />
palco. Todavia, as montagens modernas<br />
têm dificuldade em trabalhar a “Máscara<br />
de Himeneu”, tratando-a “como uma<br />
piada em vez da cena transcendental que<br />
Shakespeare escreveu” (SHAPIRO, 2011,<br />
p.260).<br />
Mas por que surge Himeneu ao final<br />
da peça? Para além de suas funções cênicas,<br />
qual o elemento transcendental a que<br />
está conectado? Nos casamentos gregos<br />
Himeneu possuía um papel apotropaico –<br />
afastando os malefícios dos nubentes e auxiliando<br />
o noivo no defloramento da esposa<br />
– e, por isso, era evocado aos gritos, cena<br />
que aparece na Ilíada (Livro 18) inserida na<br />
descrição do escudo de Aquiles. Porém,<br />
este ainda não é o ponto a esclarecer. Para<br />
tanto, temos que recorrer ao próprio mito<br />
da origem desse deus, que, segundo uma<br />
das versões, seria filho de Dioniso e Afrodite<br />
e possuía tal beleza que era confundido<br />
23
<strong>Urdimento</strong><br />
24<br />
como uma linda jovem e “reconhecido em<br />
Pompéia como andrógino” (BRANDãO,<br />
1992, v.1, p.566)<br />
A partir desse entendimento, poderíamos<br />
supor que Himeneu seria uma projeção<br />
da duplicidade de Rosalinda, da sua<br />
experiência transexual que finda no matrimônio.<br />
Dessa forma, no clímax da peça Rosalinda<br />
criaria uma “cerimônia de adeus ao<br />
seu ego andrógino” (PAGLIA, 1994, p.201).<br />
Antes de finalizar, é preciso evocar ainda<br />
outro deus: Hermes ou Mercúrio, mais<br />
propriamente, Mercurius Hermaphroditus,<br />
o Mercúrio andrógino ou hermafrodita<br />
(JUNG, 1994, p.313). Pouco antes da “Máscara<br />
de Himeneu”, Rosalinda revela a Orlando<br />
que ela sabe quem ele “realmente é”<br />
e que conviveu com um mágico “profundo<br />
conhecedor da arte” desde os três anos de<br />
idade (SHAKESPEARE, 2011, p.112, 5.2).<br />
A “arte” era o conhecimento esotérico<br />
da magia, mas também da numerologia,<br />
da astrologia e da alquimia, entre outros.<br />
O objetivo da alquimia era metamorfosear<br />
os elementos imperfeitos em ouro, não no<br />
ouro vulgar, mas “na Panacéia ou elixir vitae<br />
(elixir da vida), e, filosófica ou misticamente,<br />
no hermafrodita divino, no segundo<br />
Adão” (JUNG, 1983, p.102). Na peça, como<br />
já mencionado, Adam é o velho criado de<br />
Orlando que desaparece após a sua primeira<br />
refeição na floresta. Logo após a fala de<br />
Himeneu, Jacques de Boys, irmão de Orlando,<br />
revela que o Duque Frederico abdicou<br />
depois de encontrar-se com um “um velho<br />
místico” na floresta (SHAKESPEARE, 2011,<br />
p.125, 5.4). Será que disso podemos depreender<br />
que o mestre de Rosalinda e o velho<br />
místico são a mesma pessoa? E mais: será<br />
Adam essa pessoa? Admitindo que assim<br />
seja, será Orlando o “segundo Adão”, isto<br />
é, um avatar de Mercúrio andrógino, o catalisador<br />
e o resultado da transformação?<br />
O hermafrodita, afirma Carl Jung em Psicologia<br />
e Alquimia (1994, p.387), “é constituído<br />
de opostos e ao mesmo tempo é o símbolo<br />
unificador dos opostos”, é o Uróboro, a<br />
serpente ou dragão que se auto-devora e<br />
auto-copula, “matando-se e ressuscitando<br />
a si mesmo”.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Assim, a relação entre Rosalinda e Orlando<br />
seria de absoluta complementaridade<br />
e configuraria o mitologema da transformação<br />
e do renascimento através do amor,<br />
pela conjunção dos elementos femininos e<br />
masculinos num hieros gamos – casamento<br />
sagrado ou “núpcias químicas” (JUNG,<br />
1994, p.47) –, diferentemente da relação<br />
entre Romeu e Julieta, que ficou fixada na<br />
idealização romântica e não se completou.<br />
Afinal, em que base pode-se pensar<br />
essa associação? Na suposta relação entre<br />
microcosmo e macrocosmo, mas, para concluir,<br />
deixemos que o próprio Shakespeare,<br />
na voz de Orlando, responda: “a quintessência<br />
de cada criatura é o reflexo do Céu<br />
em miniatura” (SHAKESPEARE, 2011,<br />
p.65, 3.3).<br />
Rafael Raffaelli<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />
ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
ANDREWS, William. Punishments in the olden time: being an historical account of the ducking<br />
stool, brank, pillory, stocks, drunkard’s cloak, whipping post, riding the stang, etc. Farmington<br />
Hills (MI): Gale, 2010.<br />
ARTAUD, Antonin. Heliogabalo ou o anarquista coroado. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.<br />
BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. 2v. Petrópolis: Vozes, 1993.<br />
BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.<br />
BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. São Paulo: Ática, 2008.<br />
HATTAWAY, Michael. Introduction. In: Shakespeare, William. As you like it. Cambridge:<br />
Cambridge University Press, 2000.<br />
HERÓDOTO. História. 2v. São Paulo: W.N. Jackson, 1950.<br />
JUNG, Carl Gustav. Psicologia da religião ocidental e oriental. Petrópolis: Vozes, 1983.<br />
_____. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1994.<br />
KERÉNYI, Carl. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. São Paulo: Odysseus, 2002.<br />
KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.<br />
PAGLIA, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 1994.<br />
PLUTARCO. Isis y Osiris. Barcelona: Obelisco, 1997.<br />
PORFÍRIO. Himnos órficos. Madrid: Gredos, 1987.<br />
SHAPIRO, James. 1599: um ano na vida de William Shakespeare. São Paulo: Planeta, 2011.<br />
SHAKESPEARE, William. Do jeito que você gosta. Trad. Rafael Raffaelli. Florianópolis:<br />
EDUFSC, 2011.<br />
25
N° 18 | Setembro de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />
Resumo<br />
Este artigo analisa o projeto realizado pela companhia teatral<br />
Royal Shakespeare Company de levar ao Twitter uma<br />
reescrita da peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare. O<br />
projeto consistiu em tornar personagens da peça usuários do<br />
microblog, e fazê-los recontar a clássica história com conteúdo<br />
e caracterização atualizados para o século 21. O presente<br />
artigo descreve e analisa a execução do projeto, discutindo<br />
seus aspectos positivos e problemáticos, e estabelecendo suas<br />
implicações para as relações entre teatro e tecnologia no futuro.<br />
Palavras-chave: Twitter, Romeu e Julieta,<br />
Royal Shakespeare Company.<br />
Abstract<br />
This essay analyzes the project developed by the theatre group<br />
Royal Shakespeare Company of taking to Twitter a rewriting<br />
of William Shakespeare’s play Romeo and Juliet. The project<br />
consisted in making the play’s characters users of the microblog,<br />
retelling the classic story with content and characterization<br />
updated to the 21st century. The present essay describes and<br />
analyzes the carrying out of the project, discussing its positive<br />
and problematic aspects, and establishing its implications for<br />
future relations between theatre and technology.<br />
1 Doutora em Letras / Literatura Inglesa e professora da UFPA<br />
Shakespeare no Twitter: Romeu e<br />
Julieta em até 140 caracteres<br />
Keywords: Twitter, Romeo and Juliet,<br />
Royal Shakespeare Company.<br />
Aline de Mello Sanfelici 1<br />
Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta em até 140 caracteres 27
<strong>Urdimento</strong><br />
28<br />
Introdução<br />
O Twitter,<br />
frequentemente<br />
descrito como “o SMS da<br />
Internet,” é o famoso microblog<br />
eletrônico no qual usuários<br />
(ordinários ou celebridades)<br />
comunicam, em até 140 caracteres,<br />
absolutamente qualquer coisa – desde uma<br />
revolta em função de certa notícia, um<br />
comentário sobre o jogo de futebol, uma<br />
opinião a respeito de um novo escândalo<br />
político, e até mesmo o que está sendo<br />
feito para o jantar. Sendo o Twitter o que se<br />
chama de rede social virtual, basta tornarse<br />
seguidor (follower) de um determinado<br />
usuário para acompanhar suas minideclarações,<br />
chamadas tweets, e também<br />
comentá-las, criando-se, portanto, um<br />
tipo de interação imediata e ágil. O Twitter<br />
não tem limites em termos de seu alcance:<br />
criado em 2006, estima-se que hoje o site já<br />
possua mais de 300 milhões de usuários<br />
(dado de Junho de 2011), e a rede segue<br />
crescendo ano a ano. Evidentemente, por<br />
trás de tanto sucesso encontra-se uma série<br />
de críticas e desaprovações da proposta<br />
do microblog. Dentre estas, destaca-se o<br />
típico tweet de informações sem qualquer<br />
conteúdo significativo, e também o caráter<br />
vicioso da ferramenta, que faz com que<br />
alguns usuários não consigam desconectarse<br />
e, além disso, acabem compartilhando<br />
mais do que dita o bom senso.<br />
Talvez em uma tentativa de seguir as<br />
tendências atuais e manter-se modernizada,<br />
um inusitado usuário que recentemente<br />
aderiu ao Twitter foi a Royal Shakespeare<br />
Company (RSC). A celebrada companhia<br />
inglesa, que comemorou seu 50° aniversário<br />
em 2011, dedica-se majoritariamente a<br />
performances do cânone shakespeariano,<br />
mas também abre espaço para outros<br />
dramaturgos de renome, como Harold<br />
Pinter, Eugene O’Neill e Arthur Miller, e<br />
ainda novos escritores que se encontram na<br />
ativa nos dias de hoje e associam-se ao time<br />
de criação da companhia. Inegavelmente, a<br />
RSC tem prestígio internacional e carrega<br />
tanto o status de hegemônica quanto o<br />
respeito associado ao seu nome. Como<br />
coloca Beth Osnes, a companhia mantém<br />
inabalável certo padrão de excelência nas<br />
suas performances, e os melhores atores<br />
ingleses ou foram treinados na RSC ou<br />
almejam trabalhar lá (OSNES, 2001, p.<br />
286-287). Apesar de tamanha fama e<br />
sucesso, tudo indica que a companhia<br />
não é tão conservadora quanto possa<br />
parecer à primeira vista, e ambiciona<br />
conquistar novos espaços e públicos –<br />
mais especificamente, embarcando no<br />
mundo cibernético, e trazendo para ele<br />
seu dramaturgo preferido, isto é, o próprio<br />
William Shakespeare.<br />
Em 2010, a RSC produziu em<br />
conjunto com a Mudlark, uma companhia<br />
de entretenimento para TV, Internet e<br />
celulares, um ousado projeto: durante o<br />
período de cinco semanas (entre abril e<br />
maio), seis atores da própria RSC atuaram<br />
no Twitter como personagens da peça<br />
Romeu e Julieta, substituindo falas clássicas<br />
do Bardo inglês por simples tweets. Cada<br />
ator criou um perfil de usuário para um<br />
dado personagem, e foi orientado a escrever<br />
tweets embasados na personalidade e<br />
sentimentos próprios do personagem<br />
tuitado. O projeto recebeu o nome de Such<br />
Tweet Sorrow (podendo ser traduzido para<br />
“uma dor tão tweet”), em um inteligente<br />
trocadilho com a frase shakespeariana “such<br />
sweet sorrow”, que no texto original fala da<br />
doçura da dor no momento de despedida<br />
dos jovens amantes. A empreitada da RSC/<br />
Mudlark resultou em (re)escrita de fatos<br />
centrais da peça de uma forma moderna e<br />
direta, com publicação em tempo real no<br />
microblog, a partir de orientações básicas<br />
dadas pelos escritores Bethan Marlow e<br />
Tim Wright durante cada dia de execução<br />
da performance virtual.<br />
Para divulgar sua proposta, explicá-la<br />
melhor e ainda atrair seguidores, a RSC<br />
criou um website próprio para a empreitada<br />
(http://suchtweetsorrow.com/). Nesta<br />
página virtual é possível acessar dias<br />
específicos do projeto e ver o que foi postado<br />
na data escolhida, podendo-se, portanto,<br />
seguir a timeline desde o começo até o final<br />
da história. Pode-se, ainda, acessar a seção<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
“The story so far” (“A história até agora”), que<br />
resume através de um narrador observador<br />
os acontecimentos de cada dia do projeto.<br />
Desse modo, a própria RSC providenciou<br />
uma maneira de conectar (e, de certa forma,<br />
ordenar) os tweets dos atores sob a forma<br />
de uma narrativa, provavelmente a fim de<br />
garantir certa coerência de continuidade da<br />
história e facilitar o acompanhamento dos<br />
eventos. Por fim, a página virtual oferecida<br />
como suporte do projeto também traz<br />
informações da ficha técnica da produção,<br />
e fornece aos leitores um perfil em terceira<br />
pessoa de cada personagem (diferente do<br />
perfil postado por cada personagem no<br />
próprio Twitter).<br />
Assim, aprendemos no website<br />
de divulgação o quanto os personagens<br />
desse novo Romeu e Julieta diferem da<br />
versão clássica e vivem no mundo de<br />
hoje, plugados e modernizados. Romeu,<br />
aos 19 anos, acredita na filosofia de “viver<br />
o momento,” mora com os pais sendo<br />
filho único, e não tem planos de sair de<br />
casa. Tem um emprego de meio turno e<br />
aproveita o tempo livre em um pub com<br />
Mercútio, ou então jogando Xbox. Julieta,<br />
por sua vez, tem 15 anos, é extremamente<br />
obediente ao pai, e encontra conforto para<br />
sua solidão em chats online. Ela nunca teve<br />
um namorado, escreve músicas e toca<br />
guitarra, e é fã da série “Crepúsculo.” Jess,<br />
a irmã de Julieta, é estagiária em uma firma<br />
de direito, e tem com Julieta e Tibaldo uma<br />
relação de mãe e filho ao invés de irmãos –<br />
por isso seu apelido, Nurse. Mercútio, por<br />
sua vez, mora sozinho, após seus pais terem<br />
se mudado para a França e lhe dado um<br />
elegante flat e uma mesada suficiente para<br />
manter um estilo de vida repleto de eventos<br />
sociais. Ele gosta de brigas, jogos de carta,<br />
maconha e musculação. Enquanto isso,<br />
Tibaldo Capuleto vive em um internato, e<br />
é revoltado contra toda sua família. Só há<br />
um lugar no qual Tibaldo sente-se bem: a<br />
lanhouse de Friar. Laurence Friar, o sexto e<br />
último personagem do projeto, tem 38 anos<br />
e passou a juventude viajando graças aos<br />
seus negócios como traficante de drogas.<br />
Friar permite que os clientes do internet<br />
cafe fumem no andar de cima da loja, e<br />
almeja tornar-se uma figura importante<br />
na comunidade, trazendo valores liberais<br />
para a mesma.<br />
A partir dessa caracterização básica<br />
dos personagens, os tweets começaram a ser<br />
publicados. Ao passo que os tweets foram,<br />
segundo a RSC, livremente inspirados<br />
em Romeu e Julieta, eles foram também<br />
improvisados, isto é, sem um roteiro fixo<br />
e anterior, apenas orientações do time de<br />
escritores. Além disso, sendo escritos por<br />
atores-usuários jovens e nascidos no que<br />
pode chamar-se “geração da Internet,”<br />
as mensagens que recontam a história<br />
clássica de Shakespeare no microblog<br />
alteraram enormemente o conteúdo e,<br />
principalmente, o estilo do texto original,<br />
a fim de encaixarem-se no contexto de<br />
recepção da Inglaterra atual (e por que<br />
não dizer do mundo cibernético sem<br />
fronteiras), e não da Verona elizabetana.<br />
Assim, o enredo desenvolvido em Such<br />
Tweet Sorrow foi atualizado para o século<br />
21, com os personagens descrevendo seu<br />
cotidiano e, pouco a pouco, entre tweets<br />
sobre assuntos rotineiros e tweets mais<br />
reveladores, com declarações fervorosas de<br />
amor e ódio, foi-se estabelecendo a famosa<br />
história trágica de dois jovens apaixonados<br />
filhos de famílias rivais. Uma mudança<br />
fundamental em relação ao texto original<br />
seria a origem do ódio entre as duas<br />
famílias que, na versão tuitada da RSC,<br />
nasceu após um trágico acidente de carro<br />
entre Capuletos e Montéquios, e que tirou<br />
a vida da mãe de Julieta.<br />
Para montar e atualizar a trama<br />
básica tweet por tweet, os usuáriospersonagens<br />
usaram não apenas os 140<br />
caracteres permitidos pelo Twitter, mas<br />
também diversos outros recursos virtuais.<br />
Pelo Youtube foram postados vídeos que<br />
contribuíam para a caracterização dos<br />
personagens e de seu cotidiano. Julieta, por<br />
exemplo, publicou um vídeo mostrando<br />
seu quarto e focando em um retrato de sua<br />
mãe, Susan Capuleto, na ocasião dos dez<br />
anos de seu falecimento. A jovem depois<br />
postou outro vídeo no qual canta à capela<br />
uma música que escreveu para expressar<br />
sua alegria com a festa de aniversário que<br />
Aline de Mello Sanfelici Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta em até 140 caracteres 29
<strong>Urdimento</strong><br />
30<br />
estava por receber. Além do Youtube, houve<br />
postagem de fotos pelo Twitpic: Mercútio<br />
publicou uma foto de Romeu embriagado e<br />
recebendo beijos de duas jovens em um pub;<br />
já a irmã de Julieta, Jess, publicou diversas<br />
fotos da festa de máscaras. Também o<br />
Facebook foi acessado, para a criação e<br />
convite público para um evento (no caso,<br />
o aniversário de 16 anos de Julieta, ao qual<br />
mais de 300 pessoas publicaram a intenção<br />
de “comparecer”). Até mesmo o site de<br />
rádio last.fm foi utilizado, para divulgação<br />
de músicas selecionadas para o baile de<br />
máscaras, incluindo sucessos de nomes<br />
atuais como Lady Gaga, Amy Winehouse<br />
e Franz Ferdinand, que figuram entre os<br />
artistas favoritos da aniversariante Julieta.<br />
Além dos diversos recursos virtuais<br />
utilizados, os usuários-personagens da<br />
RSC interagiram uns com os outros por<br />
meio dos tweets. Para tanto, eles tornaramse<br />
seguidores dos outros personagens,<br />
aprendendo (às vezes com más intenções)<br />
sobre o que estava acontecendo com cada<br />
participante da história. Os personagens<br />
dialogavam entre si e comentavam as<br />
atividades, declarações e postagens<br />
uns dos outros – e até bloqueavam<br />
um dado personagem, temporária ou<br />
definitivamente, para proteger sua<br />
privacidade. Esse tipo de interação entre os<br />
próprios personagens foi um dos principais<br />
fatores para o desenvolvimento da história,<br />
especificamente à medida que estabeleceu<br />
relações entre o que cada usuáriopersonagem<br />
dizia, fazia e publicava, e<br />
como isso impactava ou conectava-se com<br />
as atividades e declarações dos outros<br />
usuários-personagens.<br />
Tão importante quanto a interação<br />
entre os personagens foi o fato de os atores<br />
envolvidos serem incentivados pela RSC<br />
a interagirem também com a audiência<br />
do projeto, expandindo a dimensão do<br />
mesmo para além do controle da própria<br />
companhia. A título de exemplo, alguns<br />
seguidores no Twitter deram sugestões<br />
quanto ao tema da festa de aniversário, e<br />
quando Julieta convidou seus seguidores a<br />
“comparecerem” ao baile usando máscaras<br />
confeccionadas por eles mesmos, diversos<br />
usuários engajaram-se na “brincadeira”<br />
e publicaram fotos com máscaras<br />
improvisadas ou fotos pessoais antigas de<br />
ocasiões em que utilizaram máscaras na<br />
vida real. Em outro dado momento, Romeu,<br />
testemunhando uma briga entre seus pais,<br />
deliberadamente direcionou-se aos seus<br />
seguidores no Twitter e perguntou o que é o<br />
amor. Em ainda outra ocasião, após Romeu<br />
ter sido deixado de castigo, Mercútio<br />
iniciou uma campanha chamada “Romeu<br />
livre” no Twitter, convocando seus followers<br />
a reforçarem o pedido de fim do castigo<br />
– as ocasiões citadas ganharam adeptos<br />
e proporcionaram troca de mensagens<br />
de Romeu e Mercútio diretamente com<br />
o público real. Nesse sentido, pode-se<br />
dizer que um dos principais objetivos<br />
da produção foi alcançado, pois, como<br />
coloca o diretor artístico da RSC, Michael<br />
Boyd, a companhia sempre buscou colocar<br />
atores e espectadores juntos, e aproximar<br />
a audiência de Shakespeare (declarado em<br />
reportagem de Charlotte Newman).<br />
Terminado o projeto, podemos tecer<br />
várias considerações, entre avaliações<br />
positivas e ressalvas ou críticas.<br />
Primeiramente, uma observação: Brian<br />
Feldman, diretor artístico da Amway<br />
Shakespeare Opportunity, parece ter sido<br />
o pioneiro em recontar Shakespeare via<br />
Twitter. Em 2009 ele realizou o “Twitter of<br />
the Shrew” (“O Twitter da Megera”), que<br />
contou no microblog o equivalente a uma<br />
cena-chave por dia da peça A Megera<br />
Domada. Esse projeto, no entanto, foi mais<br />
limitado em termos de recursos virtuais<br />
utilizados e também de tamanho (12 dias,<br />
apenas), e não teve tanta repercussão (Such<br />
Tweet Sorrow possui mais do triplo de<br />
ocorrências do que Twitter of the Shrew no<br />
Google), e isso se dá possivelmente por a<br />
Amway se tratar de uma companhia menos<br />
conhecida e com menor visibilidade.<br />
Agora, algumas considerações. Apesar<br />
de não ser a primeira iniciativa de combinar<br />
Shakespeare com Twitter, o projeto da RSC<br />
deve ser louvado por sua criatividade e<br />
ousadia. Esse projeto certamente passa<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
a fazer parte da história de adaptações/<br />
apropriações de Shakespeare, bem como de<br />
Shakespeare em performance – mesmo que<br />
performance virtual. É interessante destacar<br />
também que Such Tweet Sorrow atraiu<br />
seguidores que não apenas acompanharam<br />
como também comentaram, engajaramse<br />
e participaram ativamente da história,<br />
garantindo um caráter interativo em uma<br />
obra desenvolvida abertamente (isto é,<br />
com a possibilidade de edição a partir<br />
do feedback recebido). Deve-se louvar<br />
ainda o fato que o projeto inegavelmente<br />
proporcionou uma visão renovada (embora<br />
passível de críticas) da peça, como coloca<br />
Roxana Silbert, diretora da performance<br />
(em reportagem de Mark Prigg). Para<br />
Silbert, o projeto forneceu uma versão<br />
completamente nova de Romeu e Julieta,<br />
e há certo frenesi de se ver uma história<br />
excelente desdobrar-se passo a passo,<br />
momento a momento, conforme a mesma<br />
é escrita e tuitada.<br />
Outro ponto a ser valorizado na<br />
empreitada refere-se às suas possíveis<br />
implicações para o meio teatral futuro.<br />
Such Tweet Sorrow desenvolve numerosas<br />
maneiras para a inclusão de tecnologia<br />
no fazer teatral, incentivando o uso de<br />
diferentes ferramentas cibernéticas para a<br />
criação de peças – vídeo, álbum de fotos,<br />
tweets, rádio, chat, etc. Com a inclusão de<br />
tais ferramentas virtuais, outra implicação<br />
do projeto é conseguir estreitar as<br />
possibilidades de criação coletiva, e não<br />
apenas entre os atores, mas destes em<br />
parceria com o público, uma vez que esse<br />
público comenta e assim, inevitavelmente,<br />
participa da própria criação do espetáculo.<br />
Além disso, a proposta da RSC também<br />
mostra como o desenvolvimento de um<br />
tipo de linguagem modernizada para textos<br />
clássicos pode atrair novas audiências –<br />
inclusive audiências jovens, principais<br />
usuárias do Twitter, e que poderiam ter<br />
pouco interesse ou encontrar dificuldade<br />
para conhecer textos clássicos em suas<br />
formas originais.<br />
No entanto, olhando-se o resultado do<br />
projeto com mais detalhe, é necessário<br />
que se faça alguns apontamentos críticos.<br />
Um primeiro aspecto problemático<br />
referente ao projeto deve-se a combinação<br />
potencialmente falha entre o Twitter, uma<br />
rede social e um dos meios mais rápidos<br />
de divulgação pública de informações, e uma<br />
peça justamente como Romeu e Julieta,<br />
notoriamente marcada por falhas de<br />
comunicação. Após Julieta aparentemente<br />
falecer, com a ajuda de Friar, o dono da<br />
lanhouse, é difícil acreditar que Jess e Friar<br />
conectaram-se no site “tarde demais”<br />
para avisar Romeu do plano (conforme<br />
publicado na seção The Story So Far no dia<br />
11 de maio). Além disso, lembrando que<br />
os personagens são usuários do Twitter e<br />
supostamente pessoas do mundo real (que<br />
estudam, vão a pubs e lanhouses, fazem<br />
festa de aniversário, etc), é ainda mais<br />
problemático acreditar que o romance<br />
proibido entre pessoas de duas famílias<br />
inimigas seria exposto (e, portanto,<br />
colocado em risco) em uma página de<br />
relacionamentos! Ou, ainda, dificilmente<br />
alguém faria como Friar (em 12 de maio),<br />
que mandou uma mensagem pública para<br />
Julieta anunciando que o plano secreto deu<br />
errado. Um último exemplo dentro dessa<br />
mesma linha é ser inverossímil que Romeu<br />
(em 11 de maio), pensando sua amada<br />
estar morta, iria imediatamente tuitar<br />
seu sofrimento e anunciar seu suicídio<br />
no site. Em outras palavras, talvez pela<br />
inexperiência no formato virtual utilizado<br />
e pela ânsia em “contar a história,”<br />
os personagens publicaram tweets<br />
extremamente não-realistas, apenas para<br />
garantir que a “informação” seria dada.<br />
Um segundo aspecto passível de críticas<br />
refere-se às transformações ocorridas em<br />
termos de linguagem. No processo de<br />
apropriação dos fatos básicos da trama para<br />
serem recontados de forma modernizada<br />
(a fim de proporcionar uma comunicação<br />
efetiva com o público alvo), é inegável<br />
constatar que, além de certa banalização<br />
da linguagem, também ocorreram perdas,<br />
especificamente em termos de poesia,<br />
estilo, nuances, sutileza, suspense e<br />
caracterização. Sem esses elementos, que<br />
Aline de Mello Sanfelici Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta em até 140 caracteres 31
<strong>Urdimento</strong><br />
32<br />
possuem um papel imenso em contribuir<br />
para a grandeza da qualidade da obra<br />
shakespeariana, pode-se argumentar que<br />
a obra desenvolvida no Twitter tornou-se<br />
menor, isto é, menos gloriosa ou engenhosa.<br />
Além disso, o texto criado na performance<br />
online transformou-se em uma narração<br />
explícita e urgente, na maior parte das<br />
vezes. Assim, constata-se que há uma boa<br />
trama, porém a mesma não foi desenvolvida<br />
e mostrada de forma instigante e criativa,<br />
e foi, ao invés, meramente contada, e com<br />
linguagem precária e até mesmo duvidosa,<br />
se comparada com o brilho e majestade da<br />
linguagem no texto original.<br />
A fim de justificar o argumento de que<br />
a linguagem foi banalizada e trouxe perdas<br />
significativas para Romeu e Julieta na sua<br />
versão online, apresento a seguir algumas<br />
ocorrências, traduzidas livremente, das<br />
liberdades desenvolvidas com a linguagem.<br />
Apenas para reiterar, essas liberdades são<br />
problemáticas não por elas mesmas, mas<br />
especialmente por impedirem a poesia, a<br />
sutileza e o suspense tão bem orquestrados<br />
por Shakespeare, e por fazerem a produção<br />
em debate uma mera narração, irreal e<br />
difícil de acreditar ou emocionar. Eis os<br />
exemplos selecionados: “me sentindo<br />
muito muito sonolenta... mal posso esperar<br />
para ver Romeu” (Julieta, em 11 de maio),<br />
“miiiiiiiiiiisture leite e whisky e você terá...<br />
leisky ouuuuuu whiste... hahaha” (Julieta,<br />
em 11 de maio), “vejo que você fez as pazes<br />
com seu amigo, seu bundão!” (Tibaldo<br />
para Mercútio, em 3 de maio), “de saco<br />
cheiooooooo...” (Romeu, em 7 de maio),<br />
“ATENDA SEU TELEFONE! Ele atacou a<br />
mim e ao Mercútio. Ele matou meu melhor<br />
amigo na frente dos meus olhos. Achei<br />
que ele iria me matar. Por favor!” (Romeu<br />
para Julieta, em 6 de maio), “suas palavras<br />
estão me fazendo vomitar cada vez que<br />
as leio” (Jess para Friar, em 30 de abril),<br />
“que diabos está acontecendo? O que você<br />
está fazendo? LARRY, FAçA ALGO!”<br />
(Jess para Friar, em 3 de maio), e “estou<br />
horrivelmente apaixonada... minha cabeça<br />
está ficando toda deformada...” (Julieta, em<br />
11 de maio).<br />
Os exemplos citados mostram<br />
claramente como o conteúdo e estilo<br />
original de Shakespeare foram retorcidos<br />
e banalizados, e como Romeu e Julieta na<br />
reescrita via Twitter tornou-se um texto<br />
mais ordinário, cujo grau de esmero e<br />
qualidade linguística é significativamente<br />
menor em relação ao texto original.<br />
Ainda assim, é essencial lembrar que<br />
o projeto em discussão entrou em um<br />
terreno pouquíssimo explorado (aquele<br />
que une o Bardo inglês e Twitter), e talvez<br />
por isso mesmo o projeto seja frágil e tão<br />
suscetível a problemas e críticas. Em outras<br />
palavras, uma proposta como Such Tweet<br />
Sorrow merece ser reconhecida por sua<br />
criatividade e ousadia, mas certamente ela<br />
exige ainda uma dose de refinamento para<br />
vir a ser executada mais satisfatoriamente.<br />
Em resumo, portanto, a proposta da RSC<br />
é brilhante, porém deve ser amadurecida,<br />
isto é, ela deve aprender a lidar melhor<br />
com seu formato, escopo e potencial.<br />
Finalmente, a título de conclusão, sabese<br />
que a RSC sempre foi desafiada pelo peso<br />
do mito de Shakespeare (CHAMBERS,<br />
2004, p. 115), principalmente em função do<br />
senso comum de que a companhia é uma<br />
entidade supostamente indispensável para<br />
o entendimento da obra shakespeariana<br />
(CHAMBERS, 2004, p. 123). Assim, parece<br />
persistir certa expectativa cultural em<br />
torno de quais novas cores e formas a<br />
RSC conseguirá encontrar pra o Bardo<br />
inglês. Nesse sentido, Chambers (2004,<br />
p. 191) questiona a possibilidade de a<br />
companhia saber regenerar-se no centro<br />
das possibilidades de criatividade teatral.<br />
Ao que tudo indica, e apesar das críticas<br />
e ressalvas destacadas, parece que Such<br />
Tweet Sorrow responde positivamente a<br />
esse questionamento, sendo um projeto<br />
que, mesmo requerendo revisão, é, sim,<br />
um exemplo a ser seguido.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS:<br />
CHAMBERS, Colin. Inside the Royal Shakespeare Company: creativity and the institution.<br />
London and New York: Routledge, 2004.<br />
NEWMAN, Charlotte. The Bard goes digital: Such Tweet Sorrow. New Statesman, Londres,<br />
Abril 2010. Disponível em: http://www.newstatesman.com/blogs/cultural-capital /2010/04/<br />
performance-production Acesso em 10 Jan 2011, 10h00.<br />
OSNES, Beth. Acting: an international encyclopaedia. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2001.<br />
PRIGG, Mark. RSC uses Twitter to ‘perform’ Romeo and Juliet scenes. London Evening<br />
Standard, Londres, Abril 2010. Disponível em: http://www.thisislondon.co.uk/standard/article-<br />
23823525-rsc-uses-twitter-to-perform-romeo-and-juliet-scenes.do Acesso em 10 Jan 2011,<br />
12h00.<br />
Aline de Mello Sanfelici Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta em até 140 caracteres 33
N° 18 | Setembro de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />
«Eu gostaria de fazer uma arte que abordasse as coisas mais profundas e<br />
importantes e durasse mil anos: e que não fosse tão séria.»<br />
(BRECHT, Bertolt. Anotações autobiográficas, 1927)<br />
«Nós, geração leviana, vivemos em casas supostamente eternas.»<br />
(BRECHT, Bertolt. Sobre o pobre B.B.)<br />
Resumo<br />
Fatzer, texto inacabado escrito por Bertolt Brecht na<br />
década de 1920, é um material fecundo tanto para avaliar<br />
um momento chave do percurso artístico e político de<br />
Brecht, como para fomentar discussões contemporâneas em<br />
torno do teatro épico e dialético e das representações da<br />
revolução através de recursos dramatúrgicos e cênicos.<br />
PALAVRAS-ChAVE: Fatzer, peça didática, teatro brechtiano.<br />
Abstract<br />
Fatzer, unfinished text written by Bertolt Brecht in the<br />
1920s, is a fertile material for assessing a key moment of<br />
the artistic and political life of Brecht, such as to promote<br />
contemporary discussions around the epic and dialectic<br />
theater and the revolution representations through<br />
dramaturgical and scenic resources.<br />
KEywORDS : Fatzer, didactic play, brechtian theater.<br />
1 Diretor e pesquisador teatral. Doutor em Teatro pela Sorbonne Nouvelle e Universidade de São Paulo.<br />
Fatzer e o espectro<br />
Fernando Kinas 1<br />
Fatzer e o espectro 35
<strong>Urdimento</strong><br />
36<br />
1. UM ACIDEnTE DE TRAbALhO<br />
Em uma anotação autobiográfica de<br />
1935, Brecht escreveu:<br />
Quando já fazia anos que eu era um escritor<br />
de renome, nada sabia de política e não tinha<br />
visto nenhum livro ou ensaio de Marx ou<br />
sobre Marx. Já havia escrito quatro dramas e<br />
uma ópera que eram representados em muitos<br />
teatros, tinha ganho prêmios literários e nas<br />
entrevistas onde se perguntava a opinião de<br />
intelectuais progressistas, podia-se ler com<br />
frequência também a minha. Mas continuava<br />
sem compreender o ABC da política e tinha<br />
tão pouca noção do funcionamento dos<br />
assuntos públicos de meu país quanto qualquer<br />
simples camponês de um vilarejo deserto.<br />
[...] Ao começar com a literatura, nunca<br />
fui além de uma crítica bastante niilista da<br />
sociedade burguesa. Nem mesmo os grandes<br />
filmes de Eisenstein que exerceram em mim<br />
uma tremenda influência, e as primeiras<br />
apresentações teatrais de Piscator pelas quais<br />
minha admiração não era menor, me levaram<br />
ao estudo do marxismo. [...] Então, fui ajudado<br />
por uma espécie de acidente de trabalho. 2<br />
O<br />
acidente de trabalho é a pesquisa<br />
para Jan der Fleischhacker, peça<br />
que não chegou a ser escrita<br />
(“em vez disso, comecei a ler<br />
Marx”, diz Brecht). Para entender<br />
o funcionamento da Bolsa de Trigo<br />
de Chicago, Brecht acabou se debruçando<br />
sobre os mecanismos e o funcionamento<br />
da sociedade capitalista. E as respostas estavam<br />
no marxismo. A compreensão da<br />
(ir)racionalidade capitalista, do mundo da<br />
especulação e da exploração de classe não<br />
dependia mais das intuições nascidas da<br />
prática rebelde do jovem Brecht. Em 1935,<br />
aos 37 anos, Brecht avalia seu percurso de<br />
aprendizagem para dimensionar uma obra<br />
já extensa e em constante evolução. Através<br />
desse exercício retrospectivo ele identifica<br />
as características das peças do período<br />
(1918-1926), destacando suas qualidades e<br />
limitações.<br />
As peças niilistas a que se refere Brecht,<br />
quando ainda não compreendia “o ABC<br />
da política”, são Baal, Tambores na noite<br />
2 Brecht, Bertolt, Diários de Brecht, São Paulo, L&PM, 1998, pp. 159-160.<br />
e Na selva das cidades. Tanto O casamento<br />
do pequeno burguês, como Um homem é um<br />
homem, além de A pequena Mahagonny<br />
(primeira parceria com Kurt Weill), escritas<br />
na época do «acidente», também podem<br />
ser incluídas nesta conta (não sabemos ao<br />
certo quais são as quatro peças às quais<br />
Brecht se refere). O importante é que<br />
Brecht situa na segunda metade da década<br />
de 1920 uma virada fundamental na sua<br />
maneira de compreender a sociedade<br />
e no modo de escrever sobre ela. Não<br />
casualmente, estes são anos intensos<br />
de produção dramatúrgica. Intensos na<br />
quantidade de obras e na experimentação<br />
de formas e conteúdos. São os anos dos<br />
lehrstücke, conhecidos no Brasil como<br />
«peças didáticas», embora seja preferível<br />
a expressão «peças de aprendizagem» ou<br />
«peças pedagógicas». Ambas as expressões<br />
têm a vantagem de evitar a interpretação<br />
redutora segunda a qual estaria em jogo<br />
um voluntário didatismo simplificador da<br />
realidade.<br />
Fatzer inscreve-se, justamente, nesta<br />
linhagem do Lehrstück. O material foi<br />
sendo trabalhado – é o que nos indicam<br />
anotações e registros de diversas fontes,<br />
incluindo os diários de Brecht –, entre<br />
1926 e 1930 (ou 1931), e não chegou a ser<br />
concluído. Ele corresponde à efervescência<br />
artística europeia que levou, por exemplo,<br />
a explorações teatrais pouco convencionais,<br />
inclusive com a utilização de materiais<br />
considerados não dramáticos. Tanto na<br />
Alemanha (Piscator), como na União<br />
Soviética (Meyerhold), o fenômeno foi<br />
particularmente importante. Embora não<br />
seja possível desenvolver aqui este aspecto,<br />
que mais tarde ganhou importância<br />
com o chamado «teatro documentário»<br />
(Peter Weiss é a principal referência), é<br />
fácil concordar com a hipótese de Judith<br />
Wilke, segundo a qual «o documento é uma<br />
construção, mais do que uma descrição». 3<br />
Debate contemporâneo, a utilização do<br />
documento – ou a reivindicação do real em<br />
cena – é objeto de análises contraditórias,<br />
3 Wilke, Judith. The Making of a Document: An Approach to Brecht’s<br />
Fatzer Fragment, TDR: The Drama Review - Volume 43, Number 4 (T<br />
164), Winter 1999, pp. 122-128.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
indicando tanto a submissão à lógica pósmoderna<br />
da impossibilidade de construção<br />
do sentido, quanto seu exato oposto,<br />
a rejeição crítica do fluxo de imagens<br />
ficcionais banalizadas pela indústria<br />
cultural.<br />
A primeira publicação de Decadência<br />
do egoísta Johann Fatzer se deu nos cadernos<br />
de ensaios (Versuche), em 1930, incluindo<br />
uma pequena parte do material, que na<br />
totalidade contém cerca de 500 folhas<br />
manuscritas. Foram publicadas a cena «O<br />
passeio de Fatzer pela cidade de Mülheim»,<br />
duas outras cenas curtas e alguns textos<br />
para coro. 4 Até a morte de Brecht, em 1956,<br />
nada mais veio a público e o texto não<br />
foi encenado. A redescoberta aconteceu<br />
somente nos anos 1970 e Heiner Müller<br />
desempenhou papel importante ao propor<br />
uma forma aos fragmentos do Material<br />
Fatzer. 5<br />
Não se trata, no entanto, de caricaturar<br />
a transição de Brecht, imaginando uma<br />
passagem mecânica do associal Baal ao<br />
Fatzer propagandista da revolução. Fatzer,<br />
inclusive, mostra-se pouco disposto a abrir<br />
mão da liberdade individual, de uma certa<br />
independência materializada pela recusa<br />
em renunciar aos prazeres do corpo, como<br />
a comida e o sexo. A realidade é complexa o<br />
suficiente para que não se reduza o debate<br />
à transição do jovem Brecht impetuoso e<br />
mais ou menos anarquista para o Brecht<br />
marxista da maturidade. No entanto,<br />
o período de enorme agitação política<br />
que vai do início da Primeira Guerra<br />
Mundial à instauração da República de<br />
Weimar, exerceu influência inegável<br />
sobre sua produção. À visão rebelde, mas<br />
politicamente ingênua e subjetivista, que<br />
vai até meados dos anos 20, substituise<br />
uma visão claramente materialista e<br />
marxista, que utiliza um método de análise<br />
da realidade muito mais consistente,<br />
ainda que Brecht preserve o espaço para<br />
liberdades que a deformação dogmática do<br />
marxismo dificilmente tolerava.<br />
4 Cf. a edição brasileira em Brecht, Bertolt. Teatro completo nº 12, Rio<br />
de janeiro, Civilização Brasileira, 1995, pp. 205-223.<br />
5 Cf. a edição brasileira: Brecht, Bertolt. O declínio do egoísta Johann<br />
Fatzer (org. Heiner Müller), São Paulo, Cosac Naify, 2002.<br />
Para o Brecht do final da década de 1920,<br />
o sujeito é fruto de uma construção social.<br />
Nas famosas notas sobre Mahagonny esta<br />
ideia ganha forma: o ser social determina a<br />
consciência. E não o contrário. Livrando-se,<br />
em grande medida, da metafísica hegeliana<br />
e do niilismo, Brecht adota uma perspectiva<br />
marxista, esforçando-se, entretanto, para<br />
evitar platitudes filosóficas, políticas ou<br />
estéticas.<br />
Fatzer, exemplar sob este ponto de<br />
vista, é um exercício de liberdade radical<br />
com múltiplas inspirações, do Woyzeck<br />
de Büchner, ao agitprop, passando pelas<br />
atrações populares de sua época (como<br />
o boxe e o circo) e pelo classicismo<br />
alemão. Os versos iâmbicos, os esboços<br />
nunca finalizados, a coexistência de<br />
cenas com comentários teóricos e<br />
indicações cênicas, revelam um intenso<br />
procedimento exploratório que se afasta<br />
da tradicional realização estética para dar<br />
lugar à autoinformação ou autoconhecimento.<br />
Segundo Francine Maier-Schaeffer, «o<br />
fragmento de Brecht dá ao fragmento<br />
tradicional seu sentido moderno: a busca<br />
não concluída de uma forma acabada<br />
(inédita) se transforma progressivamente,<br />
sob a resistência do material, em um tipo<br />
de fragmento que, no processo de produção,<br />
toma valor de Selbstverständigung». 6<br />
Esta questão é capital para a<br />
compreensão dos lehrstücke. Uma citação<br />
extraída do próprio Fatzer reforça a ideia:<br />
«O propósito de um trabalho não<br />
é idêntico ao propósito ao qual deve<br />
ser utilizado. Assim antes de tudo, o<br />
documento Fatzer serve principalmente ao<br />
aprendizado de quem escreve. Se depois<br />
servir como material de estudo, os alunos<br />
aprendem dele de maneira completamente<br />
diversa do que quem escreveu. Eu, o<br />
escritor, não preciso concluir nada. Basta<br />
que tenha servido para me ensinar. Eu<br />
simplesmente conduzo a análise e é o<br />
método que eu utilizo para este fim que o<br />
6 Maier-Schaeffer, Francine. Le Méchant Baal, l’asocial et la poétique<br />
des genres chez Brecht. Fragment, pièce didactique, théâtre épique,<br />
Revue de littérature comparée 2004/2, N°310, p. 193.<br />
Fernando Kinas Fatzer e o espectro 37
<strong>Urdimento</strong><br />
38<br />
espectador poderá analisar. 7 »<br />
Fatzer não poderá ser, então,<br />
segundo Brecht, um Schaustück, uma peça<br />
tradicional. Com a liberdade que a nova<br />
forma lhe permite, mantendo a ambição de<br />
fazer tanto a análise social quanto a da ação<br />
artística, duas questões se destacam e são<br />
desenvolvidas sem os condicionantes que<br />
o formato posterior da peça épica ou dialética<br />
imporiam: 1. a tensão entre indivíduo<br />
e coletivo; 2. a violência no ambiente<br />
revolucionário. Dito isto, valeria a pena<br />
lembrar das ressalvas que Bernard Dort<br />
faz às chamadas peças didáticas. Segundo<br />
o ensaísta francês, Brecht ainda estaria<br />
preso a uma análise moral da realidade.<br />
Seu marxismo, até o começo dos anos<br />
1930, não levaria em conta o conteúdo<br />
concreto das situações cujas mudanças<br />
eram reivindicadas. A necessidade de<br />
transformar o mundo «continua abstrata»,<br />
diz Dort. A ação seria concebida de maneira<br />
muito geral, «ela não é deduzida da<br />
situação real de um país em um momento<br />
preciso, tendo levado em conta a relação de<br />
forças existente». 8<br />
2. InDIVÍDUO E COLETIVO<br />
O primeiro tema pode ser visto<br />
como um passo adiante daquele dado em<br />
Baal, peça expressionista da juventude. O<br />
exame do binômio «liberdade individual/<br />
interesse comum» consumiu muita reflexão<br />
de Brecht e foi traduzido em várias peças<br />
desse período, como Aquele que diz sim/<br />
Aquele que diz não e A decisão, mas também<br />
em fragmentos como o próprio Fatzer e A<br />
padaria. A relação entre indivíduo e coletivo<br />
expressa tanto a crise política dos anos 1920<br />
(é preciso lembrar que a Alemanha esteve<br />
à beira do colapso em 1923 e às voltas com<br />
uma hiperinflação de proporções surreais<br />
no final desta década), como uma indagação<br />
mais profunda sobre a crise do sujeito.<br />
7 Brecht, Bertolt. Fatzer, traduzido por Christine Röerig, não publicado,<br />
p. 108 (tradução ligeiramente modificada).<br />
8 Dort, Bernard. Lecture de Brecht, Paris, Arche, 1993, p. 89.<br />
Portanto, não é casual que nos últimos<br />
trinta ou quarenta anos tenha ressurgido<br />
o interesse por estes trabalhos de Brecht.<br />
Embalados por teorias sobre o suposto fim<br />
da história e das ideologias; ou seduzidos<br />
por teorias extravagantes, sintetizadas nos<br />
cultural studies e na chamada french theory,<br />
enfim, aproveitando um ambiente de<br />
desilusão política e ambições intelectuais<br />
rebaixadas, pensadores e artistas se<br />
socorreram na tábua de salvação disponível<br />
e conveniente. No lugar de projetos<br />
coletivos e da inteligibilidade, desejos<br />
ritualizantes, aporias e relativismos.<br />
O pavor da totalidade (confundida,<br />
propositalmente ou não, com totalitarismo)<br />
abriu a porta para o «vale tudo» pósmoderno,<br />
aos modismos teóricos e a todo<br />
tipo de confusão conceitual. Esta situação<br />
permitiu um adesismo cínico ao status<br />
quo, travestido de sofisticação intelectual.<br />
O fragmento, brechtiano ou outro, serviu<br />
como uma luva para aqueles que negavam<br />
(ou negam) a possibilidade de um exame<br />
razoável do mundo. A operação lembra<br />
Margaret Thatcher negando a existência<br />
da sociedade… Mas é preciso se dar conta,<br />
como faz muito bem Terry Eagleton, que a<br />
política pós-moderna «significou ao mesmo<br />
tempo enriquecimento e evasão». 9 Raymond<br />
Willians, para citar um caso no campo<br />
do marxismo, seria exemplar, segundo<br />
Eagleton, no quesito «enriquecimento».<br />
Muitos outros, entretanto, enquadram-se<br />
na rubrica «evasão».<br />
No Fatzer, Koch/Keuner (Brecht<br />
usou os dois nomes, em momentos<br />
diferentes da composição do texto, para a<br />
mesma figura ou personagem), representa<br />
a ideia do coletivo, do funcionário aplicado,<br />
do burocrata que aplica o programa<br />
ou do militante que segue a linha do<br />
partido (disciplina e terror associados,<br />
dirá Heiner Müller). Já Fatzer expressa a<br />
energia incontrolada do rebelde, indivíduo<br />
insubmisso, às voltas com o conflito entre<br />
ordem e anarquia, disciplina e liberdade.<br />
O tema é aprender, ou não, a estar de<br />
9 Eagleton, Terry. As ilusões do pós-modernismo, Rio de Janeiro,<br />
Zahar, 1998, p. 33.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
acordo (Einverständnis)! Mas mesmo estas<br />
oposições, este mecanismo antitético, não<br />
é tão transparente quanto pode parecer.<br />
Somente na quarta fase de trabalho sobre<br />
o Fatzer, Brecht parece desenvolver de<br />
maneira mais clara este conflito, sem, no<br />
entanto, resolvê-lo completamente. E a<br />
não resolução se explica para além da<br />
incompletude da peça. Esta não resolução<br />
parece ser um princípio dramatúrgico<br />
e conceitual inerente ao trabalho. A<br />
«dramatização da dialética», segundo<br />
expressão de Fredric Jameson, não admite<br />
simplificações. 10<br />
Uma montagem contemporânea do<br />
Fatzer pode aproveitar tanto a riqueza<br />
deste método de investigação proposto<br />
por Brecht, quanto suas dúvidas sobre<br />
o próprio método e o arsenal teórico<br />
que ele mobilizou, confrontando-os com<br />
leituras contemporâneas. Ao escolher<br />
outras vias (jogos de referências, lirismos,<br />
instabilidades irresolvíveis, pragmatismo<br />
resignado etc.), o risco mais evidente é o de<br />
transformar a ambiguidade e a contradição<br />
produtivas de Brecht, em experiência<br />
estética estéril, reproduzindo cacoetes pósmodernos<br />
como se fossem experiências<br />
críticas.<br />
Fatzer, em princípio, não cabe no<br />
figurino do «teatro culinário» denunciado,<br />
exatamente, por Brecht; nem tampouco<br />
no teatro que recusa a rica dialética entre<br />
matéria social e opções formais.<br />
3. O PREÇO DA REVOLUÇÃO<br />
Associado ao tema da renúncia do<br />
indivíduo (da abdicação de si mesmo), há em<br />
Fatzer uma investigação sobre a necessidade<br />
da revolução. Ou sobre o preço da revolução.<br />
O papel da violência revolucionária,<br />
sobretudo quando escapa ao controle, ou<br />
quando está submetida a uma força política<br />
que funciona, ela mesma, sem regulação<br />
externa (o processo de retroalimentação<br />
é potencialmente entrópico), percorre<br />
o fragmento. Esta conclusão é válida<br />
10 Jameson, Frederic. O método Brecht, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 98.<br />
mesmo que a revolução, propriamente<br />
dita, seja a grande ausente do fragmento,<br />
que se organiza em torno da deserção<br />
e da espera, da fome e do medo. Mas a<br />
indagação permanece: em que momento a<br />
revolução passa a se alimentar dela mesma,<br />
esquecendo o horizonte que forneceu seu<br />
sentido original, sua razão de ser? Mauser,<br />
de Heiner Müller, que dialoga criticamente<br />
com Fatzer, faz, a seu modo, interrogação<br />
semelhante:<br />
«Você lutou no front da guerra civil<br />
O inimigo não encontrou fraqueza alguma<br />
em você<br />
Nós não havíamos encontrado fraqueza<br />
alguma em você<br />
Agora você mesmo é uma fraqueza<br />
Que o inimigo não pode encontrar em nós.<br />
Você aplicou a morte na cidade de Vitebsk<br />
Aos inimigos da revolução, por nosso encargo<br />
Sabendo que o pão de cada dia da revolução<br />
Na cidade de Vitebsk como em outras cidades<br />
É a morte dos seus inimigos, sabendo ainda que<br />
Precisamos arrancar a relva para que o verde<br />
permaneça<br />
Nós os matamos com a sua mão.<br />
Mas certa manhã na cidade de Vitebsk<br />
Você mesmo matou com a sua mão<br />
Não os nossos inimigos, não de acordo com<br />
a instrução<br />
E agora você precisa ser morto, você mesmo<br />
é agora um inimigo.<br />
Cumpra sua tarefa no posto derradeiro<br />
Onde a revolução te colocou<br />
De onde não haverá de sair sobre seus<br />
próprios pés<br />
No paredão, que haverá de ser o seu último<br />
Assim como cumpriu sua outra tarefa<br />
Sabendo que o pão de cada dia da revolução<br />
Na cidade de Vitebsk como em outras cidades<br />
É a morte de seus inimigos, sabendo ainda que<br />
Precisamos arrancar a relva para que o verde<br />
permaneça. 11 »<br />
Ancorados na história, tanto Brecht<br />
quanto Müller investigaram as entranhas<br />
da política revolucionária do século vinte.<br />
Müller usa Vitebsk e a revolução russa<br />
com o olho no tempo presente. 12 Brecht<br />
situa a ação de Fatzer no final da Primeira<br />
Guerra Mundial, mas mira a situação<br />
11 Müller, Heiner. Mauser, São Paulo, Hucitec, 1987, p. 3.<br />
12 “A cidade de Vitebsk localiza-se em todos os lugares onde a<br />
revolução foi e será obrigada a matar os seus inimigos”. Ibidem, p. 21.<br />
Fernando Kinas Fatzer e o espectro 39
<strong>Urdimento</strong><br />
40<br />
especialíssima da Alemanha na segunda<br />
metade dos anos 1920. É preciso lembrar<br />
que entre 1923 e 1925 o Ruhr foi ocupado<br />
por forças francesas e belgas sob a alegação<br />
de que reparações referentes à Guerra<br />
de 14-18 não teriam sido cumpridas pela<br />
Alemanha. Mülheim, onde se passa a<br />
história de Fatzer e seus três companheiros,<br />
está localizada nesta região.<br />
Além do processo pré-revolucionário<br />
de 1918/1919, marcado tragicamente pelos<br />
assassinatos, em janeiro de 1919, de Rosa<br />
Luxemburgo e Karl Liebknecht, outra grave<br />
crise política, quatro anos mais tarde, foi<br />
igualmente controlada pela reação socialdemocrata<br />
e de direita. Brecht, nos anos de<br />
elaboração do Fatzer, não era indiferente a<br />
estes acontecimentos, entre os quais estava<br />
a proclamação da República dos Conselhos<br />
da Baviera, em 7 de abril de 1919 (na qual<br />
se envolveu diretamente). O debate entre<br />
a visão conselhista (baseada nos soviets)<br />
e a que defendia o caminho parlamentar<br />
da Assembleia Constituinte não podia lhe<br />
deixar alheio.<br />
Tambores na noite é a tradução teatral<br />
de Brecht para esta situação política,<br />
especialmente em relação ao movimento<br />
espartaquista (o soldado pequenoburguês<br />
Kragler anuncia, em alguma<br />
medida, o desertor egoísta Fatzer). A<br />
duríssima repressão sofrida pelas forças<br />
políticas da esquerda revolucionária<br />
e o enfraquecimento do KPD (Partido<br />
Comunista Alemão, criado em 1919)<br />
durante a década de 1920 é um material<br />
valioso para Brecht, assim como o estudo<br />
da obra de Büchner, especialmente A morte<br />
de Danton. Esta época, excepcionalmente<br />
rica em debates e em agitação social,<br />
coincide com os anos de formação política<br />
de Brecht. Observador ativo do panorama<br />
político alemão, que ia do SPD (partido<br />
que defendia a política conservadora da<br />
República de Weimar), ao KAPD (Partido<br />
Comunista Operário da Alemanha, criado<br />
em 1920, que representava posições<br />
consideradas esquerdistas), Brecht viveu<br />
um momento de efervescência política rara.<br />
A criação da 3ª Internacional em 1919 e o<br />
processo revolucionário russo confirmam<br />
a existência de um complexo e explosivo<br />
quadro político na época.<br />
Não é negligenciável o fato de que<br />
a Baviera, tão cara a Brecht (que nasceu<br />
em Augsburgo e estudou filosofia em<br />
Munique), tenha se tornado um lugar<br />
privilegiado para as organizações fascistas<br />
após as repressões contrarrevolucionárias.<br />
Este confronto de posições políticas tinha<br />
também sua expressão estética. É neste<br />
caldeirão que Brecht gesta e experimenta<br />
sua visão de mundo. Nela não cabem<br />
facilidades típicas do sectarismo ideológico,<br />
mas tampouco omissões políticas. Por isso,<br />
ao utilizar Fatzer para a discussão sobre<br />
o preço (ou a necessidade) da revolução,<br />
deve-se levar em conta que há nele uma<br />
tomada de posição clara, ainda que não<br />
se possa aplicar a esta atitude rótulos e<br />
explicações simplistas. Isto não significa<br />
dizer que o processo de «desmarxização»<br />
de Brecht (semelhante ao que aconteceu com<br />
Benjamin 13 ) tenha alguma credibilidade.<br />
Descobrir um «outro Brecht», via de regra,<br />
não passa de revisionismo de segunda<br />
categoria. Parte da riqueza do pensamento<br />
brechtiano desta época é explicada<br />
exatamente pela leitura atenta que ele fez<br />
da obra de Marx.<br />
O legado de Brecht – submetido a<br />
intempéries dialéticas produtivas – parece<br />
corresponder de perto às características que<br />
ele, pouco antes de sua morte, recomendou<br />
ao Berliner Ensemble, que se preparava<br />
para uma turnê inglesa. Contra a arte<br />
«terrivelmente pesada, lenta, laboriosa e<br />
pedestre», disse ele, é preciso ser «rápido,<br />
leve e forte». 14<br />
13 Cf. Clark, T. J. «Será que Benjamin devia ter lido Marx?», in<br />
Modernismos, São Paulo, Cosac Naify, 2007, pp. 281-305.<br />
14 Brecht, Bertolt. Écrits sur le théâtre, v. 2, Paris, Arche, 1979, p. 595.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />
BRECHT, Bertolt. Diários de Brecht. São Paulo: L&PM, 1998.<br />
________ Fatzer (trad. de Christine Roerig). Não publicado.<br />
________ Teatro completo nº 12. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1995.<br />
________ Écrits sur le théâtre, v. 2, Paris, Arche, 1979<br />
________ O declínio do egoísta Johann Fatzer (org. Heiner Müller). São Paulo: Cosac Naify, 2002.<br />
CLARK, T. J. «Será que Benjamin devia ter lido Marx?», in Modernismos. São Paulo: Cosac<br />
Naify, 2007.<br />
DORT, Bernard. Lecture de Brecht. Paris: Arche, 1993.<br />
EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.<br />
JAMESON, Fredric. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999.<br />
MAIER-SCHAEFFER, Francine. «Le Méchant Baal, l’asocial et la poétique des genres chez<br />
Brecht. Fragment, pièce didactique», in: Théâtre épique, Revue de littérature comparée, 2004/2,<br />
N°310.<br />
MÜLLER, Heiner. Mauser. São Paulo: Hucitec, 1987.<br />
WILKE, Judith. «The Making of a Document: An Approach to Brecht’s Fatzer Fragment», in:<br />
TDR: The Drama Review - Volume 43, Number 4 (T 164), Winter 1999, pp. 122-128.<br />
Fernando Kinas Fatzer e o espectro 41
N° 18 | Setembro de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Fontes para os Estudos Teatrais I:<br />
contribuições de A. Appia e E. Piscator.<br />
Marcus Mota 1<br />
Resumo<br />
Neste artigo apresento algumas reflexões a partir da<br />
releitura das ideias de A. Appia e E. Piscator. O objetivo é<br />
propor uma retomada de textos fundamentais de teoria do<br />
teatro. O contato direto com esses textos reafirma a relação<br />
entre reflexões em artes cênicas e processos criativos.<br />
PALAVRAS-CHAVE: A. Appia, E.Piscator, Teorias do teatro.<br />
Abstract<br />
In this paper I propose a fresh contact with sources of<br />
Theatre Studies by re-eading some basic texts as A.Appia’s<br />
and E. Piscator’s. In these texts a close relationship between<br />
ideas and effective creative process is found.<br />
KEywORDS: A.Appia, E. Piscator, Theatre Theories.<br />
1 Professor da Universidade de Brasília e Coordenador do Laboratório de Dramaturgia da UnB.<br />
Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 43
<strong>Urdimento</strong><br />
44<br />
O<br />
incremento de pesquisas e publicações<br />
em artes cênicas não pode<br />
prescindir do estudo e análise de<br />
fontes primárias, de obras e contribuições<br />
basilares que muitas vezes<br />
não frequentam os modismos acadêmicos<br />
e nem a eles se resumem.<br />
Tal atividade é fundamental na capacitação<br />
intelectual de estudantes e pesquisadores<br />
em Artes Cênicas. A leitura dessa<br />
obras demonstra que as preocupações desses<br />
hoje pioneiros em escrever sobre teatro<br />
baseava-se no enfrentamento de situações<br />
concretas de processos criativos.<br />
Ou seja, mais que pensar o próprio<br />
pensamento, tais pioneiros desbravavam<br />
um campo em formação e expansão integrando<br />
discurso a contextos imediatos de<br />
atividades cênicas.<br />
Dessa forma, ao se reler esses textos do<br />
passado sem a preocupação de formar uma<br />
história linear, uma narrativa que os transforma<br />
em nossos predecessores, podemos<br />
praticar um útil estranhamento que se verifica<br />
na percepção do seguinte fato: mesmo<br />
que muitos dos tópicos da agenda crítica<br />
contemporânea se aproximem de propostas<br />
e soluções pretéritas, a herança moderna<br />
da ruptura com a tradição consagra<br />
sempre o momento atual como única instância<br />
avaliativa de conhecimento, fazendo<br />
com que todo movimento de semelhança<br />
seja visto como algo negativo. Assim, a<br />
possibilidade de se entrar em contato com<br />
experiências prévias torna-se um anátema,<br />
pois o antigo sempre é visto algo a ser ultrapassado<br />
ou negado. Daí a clausura modernista<br />
não ter memória, ou lutar contra<br />
a construção de uma memória de práticas<br />
e vivências e se refugiar nas abstrações, no<br />
discurso sobre si mesma.<br />
Ora, quando se propõe uma volta aos<br />
textos fundamentais o que se quer não é localizar<br />
em algum momento do tempo um<br />
locus privilegiado para a construção de um<br />
espaço cômodo de observância. O que se<br />
quer é justamente intervir nessa geometrização<br />
da História, liberando o intérprete<br />
para formar diálogo com quem ele quiser.<br />
No lugar de se postular um ou outro<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
ponto no tempo ou uma e outra produção<br />
como modelar, procede-se a um contato/<br />
contágio com as mais diversas estéticas e<br />
eventos, para que, a partir daí, o intérpreteartista-<br />
pesquisador possa alçar o seu vôo.<br />
Se não, o que restará além de repetir o<br />
mesmo, refazer a mesma cantilena do que<br />
é melhor e do que dever ser reproduzido,<br />
confundindo novidade com originalidade?<br />
Dentro dos cursos superiores de teatro<br />
e em suas pós-graduações, tal contato<br />
com as fontes, com as diversas experiências<br />
expressivas sem a indicação de uma<br />
cartilha prévia, é uma atitude basilar para<br />
a ultrapassagem do fosso abstrato entre<br />
invenção e história. Para tanto, neste artigo<br />
discuto e analiso algumas das ideias<br />
de Adolphe Appia e de Erwin Piscator,<br />
valendo-me de parte de seus percursos e<br />
ideias para uma iniciação à inserção do intérprete<br />
nas fontes de teoria e história do<br />
teatro, com a motivação de que os estudos<br />
dessas fontes impulsionem o pensar-fazer<br />
cênico.<br />
A Appia: a encenação como<br />
renovação da prática teatral<br />
O visionário Adophe Appia (1862-<br />
1928) bem caracteriza a emergência da figura<br />
do encenador como fator determinante<br />
para a teoria e prática do teatro do século<br />
XX 2 .<br />
Com a crise do espaço de representação<br />
baseado no chamado palco italiano,<br />
que preconizaria uma relação frontal, unidirecional,<br />
estática e apassivadora entre<br />
palco e platéia em um lugar fechado, todo<br />
o processo de se conceber e fazer espetáculos<br />
entra em crise 3 . O espaço de representação<br />
necessita ser reestruturado, levando<br />
em conta a constituição do espetáculo e sua<br />
realização. Um espetáculo não tem de se<br />
2 V. BEACHAN. Para suas obras completas em volumes, v., 2004. APPIA. Para<br />
uma seleção de seus escritos, v., 1986-1990.BEACHAM. Para lista de escritos de<br />
A. Appia, v., 1993. A coleção Donald Oenslageer na Yale University. Link http://webtext.library.yale.edu/xml2html/beinecke.OENSLAG.con.html#a8.<br />
A coleção contém<br />
cartas, manuscritos, artigos, ensaios que documento a vida e a carreira de A.Appia.<br />
Ainda, para bibliografia de e sobre Appia, v. http://w3.uniroma1.it/cta/file/testi/appia/<br />
pdf/20.pdf.<br />
3 PELLETIER, 2006; WEST-PAVLOV, 2006; WILES, 2003; McAULEY, 2000; CARL-<br />
SON, 1989.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
amoldar a um espaço fixo 4 . A pluralidade<br />
de formas de representação é correlativa à<br />
diversidade de espaços de exibição.<br />
A contradição entre a dinâmica representacional<br />
da cena e a pressão por normalidade<br />
da forma de apresentação abre a<br />
possibilidade de não restringir o representado<br />
aos ditames extracompositivos, mas<br />
de se determinar a representação por fatores<br />
de composição e performance. Não é o<br />
espetáculo que tem de encontrar um espaço<br />
no teatro, mas é o teatro que tem de estar<br />
contido no espetáculo.<br />
Para resolver esta contradição (ou mesmo<br />
torná-la representável), é preciso uma<br />
mediação entre a fisicalidade do espetáculo<br />
e a constituição de uma situação integrada<br />
de observância, que possibilite a realidade<br />
da ficção como algo factível de ser<br />
assenhorado pela recepção. O encenador é<br />
o agente desta mediação. Uma outra criatividade,<br />
diferente da criatividade do autor,<br />
co-opera na realização do espetáculo.<br />
E, com ele, todo o mundo extramental da<br />
função autoral é positivado.<br />
De forma que, na emergência do encenador,<br />
a relação autor/texto/público é<br />
desconstruída, havendo a descentralização<br />
das prerrogativas criativas e expressivas<br />
que repousavam exclusivamente nas mãos<br />
do autor e de seu texto. A representação<br />
deixa de ser extensão das ideias de um centro<br />
e monopólio de sentido e o texto perde<br />
sua função exclusivista de fixação de um<br />
mundo homogêneo e fechado.<br />
A. Appia ficou sendo mais conhecido<br />
pelas aplicações técnicas de sua obra, relacionadas<br />
com a iluminação (luz móvel, focos<br />
precisos e variáveis) e a tridimensionalidade<br />
da cena (espaço de atuação em relações concretas<br />
entre o corpo do ator e os objetos de<br />
cena), padrões mínimos de encenação hoje<br />
largamente adotados. Mas seus escritos revelam<br />
um horizonte de questões que se tornaram<br />
fundamentais para pensar a realização<br />
teatral 5 .<br />
Ele partiu de uma situação bem deter-<br />
4 Tema recorrente em autores como V. Meyerhold, Brecht ou Grotowski.<br />
5 WIENS. Para a recepção de A. Appia, v. 2010; SALVADEO, 2006; VOLBACH,<br />
1961; VOLBACH, 1968; MONAGAN, 2008; LINDNER, s/d; BEACHAM, 1985;<br />
BEACHAM, 1985; BEACHAM, 1994.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
minada para, a partir disso, construir suas<br />
programáticas reflexões 6 . Repensando as<br />
limitações da revolução estética produzida<br />
pela obra de Richard Wagner (1813-1883),<br />
Appia soube caracterizar o contexto de<br />
ruptura que estava se formando, fundamentando<br />
teoricamente o que o futuro iria<br />
reivindicar para ser efetivado como inovação.<br />
A proposta de Wagner, que ia além da<br />
ópera, preconizava uma concepção integrada<br />
de efeitos para a construção do drama<br />
musical. Ele via nas complexidades inerentes<br />
à realização multimídia da tragédia grega<br />
(canto, dança, palavra) o impulso de reeducação<br />
estética do povo alemão. A obra<br />
de arte do futuro deveria ser uma obra de<br />
arte total, sendo a dramaturgia uma consciência<br />
dos meios para se atingir essa integração.<br />
Wagner polemiza contra o sucesso<br />
das óperas de G. Meyerbeer(1791-1864) e<br />
dos libretos de E. Scribe(1791-1861), mais<br />
preocupados em manter a platéia atenta<br />
através de isolados e pontuais truques musicais<br />
e narrativos, que não aprofundam a<br />
tensão dramática e a estruturação da obra.<br />
Wagner quer expandir o efeito do drama<br />
e suas potencialidades representacionais<br />
através da extensão dos parâmetros composicionais.<br />
O convencionalismo dramático da<br />
ópera do tempo de Wagner então é atacado<br />
como forma de se diversificar as possibilidades<br />
da expressão musical. A música,<br />
antes dependente de um enredo esquemático,<br />
previsível e limitado, agora se oferece<br />
como condutora do espetáculo. A estrutura<br />
musical e seus efeitos afetivos poderiam<br />
romper com o ilusionismo da cena convencionalizada.<br />
Ações musicais tornadas visíveis<br />
– eis um emblema para a dramaturgia<br />
musical de Wagner 7 .<br />
Mas aí onde a música se torna visível,<br />
em sua exteriorização, é que reside a con-<br />
6 Com se vê em sua primeiras publicações: Le mise en scène du drama wagnérie(1895)<br />
e Die Music und die Inscenierung/ Le musique et a mise en scène<br />
(1899). Esta última está disponível em tradução inglesa no site www. archive.<br />
org. V. BEACHAM, 1989, DUDEQUE, 2009.<br />
7 No ensaio “Über die Benennung ‘Musikdrama’”( A respeito da denominação ‘Drama<br />
musical’), de 1872. V. DEATHRIDGE&DAHLHAUS, 1988; GREY, 1995 e MIL-<br />
LER, 2002. Para textos de R. Wagner, v. http://users.belgacom.net/wagnerlibrary/.<br />
Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 45
<strong>Urdimento</strong><br />
46<br />
tradição de Wagner 8 . As soluções pictóricas<br />
extremamente suntuosas sonegam ao<br />
espectador uma participação maior nessas<br />
ações musicais. O extremo realismo da<br />
encenação traduzia o caráter espetacular<br />
da encenação, sem efetivar o espaço para<br />
uma dramatização maior 9 . A intensidade<br />
da música era vazada em uma cena inerte<br />
e reprodutiva. Como um quadro com legenda,<br />
a exuberância visual torna-se uma<br />
explicação e um direcionamento do que se<br />
pretende representar.<br />
Um novo espaço cênico é preciso, pois.<br />
Para as obras performativas não basta mudar<br />
os temas, as imagens ou a estruturação.<br />
Não basta mudar o texto sem alterar aparato<br />
cênico. A obra nova de Wagner necessita<br />
de um novo espaço. O alargamento das<br />
dimensões imaginativas proporcionados<br />
pela dramaturgia musical de Wagner reivindica<br />
uma correlata extensão representacional.<br />
Foi o que Appia viu. A emergência do<br />
encenador está diretamente relacionada<br />
com a mudança de nossas concepções de<br />
obra de arte, sempre associadas com a literatura,<br />
com a escrita. O efetivo modo de ser<br />
da encenação ilumina o além-texto, a presença<br />
irrefutável de um contexto de produção<br />
de sentido. A faticidade do que não<br />
é só linguagem e estados mentais torna-se<br />
determinante. A dramaturgia defronta-se<br />
com esse intervalo entre obra e realização.<br />
A materialidade e suas irremediáveis contingências<br />
saltam aos olhos não só como<br />
dificuldades e apêndices à ideia artística.<br />
Tal descontinuidade entre texto e representação,<br />
motiva Appia a pensar as<br />
implicações estéticas de se levar em conta<br />
as especificidades de uma expressão cênica.<br />
O pressuposto de uma imediata transparência<br />
da fisicidade da cena é refutado.<br />
Exigências físicas não podem ser refutadas,<br />
mas devem ser integradas à representação.<br />
Dispositivos técnicos são marcas de uma<br />
revisão de programas idealistas. A inadequação<br />
entre a fluidez musical e informações<br />
visuais estritas aponta para o desgaste<br />
8 APPIA, 1981:104-130.<br />
9 V. CARNEGY, 2006; ROTH, 1980.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
da maneira como a ficção audiovisual era<br />
concebida e realizada. O provimento de<br />
um drama absoluto - nas palavras de P.<br />
Szondi, por meio do qual o percurso narrativo<br />
de um agente é preenchido totalmente<br />
e o espetáculo é o mundo ordenado no qual<br />
ele habita - não mais pode perseverar 10 . A<br />
rigorosa distribuição de relações entre personagens<br />
e referências espaço-temporais,<br />
proporcionando a ilusão cênica da continuidade<br />
entre mundo e vida, chega ao seu<br />
limite. Wagner havia composto o drama<br />
musical, mas não o espaço técnico e representacional<br />
deste drama 11 .<br />
Chega ao limite também a narratividade<br />
do drama. Na dramatização não se está<br />
contando uma história. Procedimentos não<br />
narrativos são utilizados. A arte dramática<br />
não se confina à continuidade causal de<br />
acontecimentos pertencentes a uma trama<br />
que transcende à representação. O que<br />
acontece em cena pertence à outra ordem<br />
que a confirmação e encadeamento finalísticos<br />
da narrativa. A unidade da realização<br />
dramática reside na sustentação de sua recepção<br />
e efetividade.<br />
Podemos acompanhar melhor a argumentação<br />
de Appia seguindo seu livro La<br />
musique et la mise en scène 12 , de 1899. O livro<br />
divide-se em três partes interligadas como<br />
tarefas e reflexões que devem ser executadas<br />
para a renovação das artes de cena:<br />
respectivamente, Appia critica a concepção<br />
realista do teatro de seu tempo (século<br />
XIX), revê a encenação de Wagner e propõe<br />
uma teoria da encenação.<br />
A orientação musical da dramaturgia,<br />
uma dramaturgia poético-musical, como<br />
Wagner tentou realizar, produz a reconsideração<br />
do espectador e do espetáculo de<br />
um drama falado - veículo predominante<br />
de ideias e comportamentos no século XIX<br />
- ao mesmo tempo que, pela partitura musical,<br />
rompe com a centralidade do texto e<br />
dos atos verbais.<br />
A marcação partiturizada dos contex-<br />
10 SZONDI, 2001: 29-37.<br />
11 APPIA, 1981: 10-103.<br />
12 Sigo a tradução em APPIA 1981. A partir de APPIA 1986-1990, orientei a tradução<br />
de La musique et la mise en scène realizada por Flávio Café em seu projeto de<br />
iniciação científica entre 2008-2009.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
tos emocionais da personagem altera o<br />
foco da representação. Ao invés de se sobrecarregar<br />
a atuação com as informações<br />
que compõem e caracterizam o mundo do<br />
palco, uma poética musical para a cena<br />
interpreta e mantém a dinâmica que individualiza<br />
os motivos pré-actanciais, o debate<br />
interno da personagem antes do agir,<br />
bem como as respostas emocionais frente<br />
aos acontecimentos. A representação não<br />
reproduz uma constância referencial, mas<br />
produz a interpretação de sua forma através<br />
da marcação emocional e cognitiva da<br />
audiência. Do projeto de reproduzir com<br />
verossimilhança o mundo da vida partimos<br />
para a exploração de uma ambiência<br />
extracotidiana onde a construção do espectador<br />
é desenvolvida. A satisfação do olhar<br />
sustentada pelos comentários do ator é bloqueada.<br />
O uso da música como operador dramático<br />
determinante refuta os hábitos do<br />
chamado teatro literário o qual, desde o<br />
Classicismo francês (sec. XVIII) até os rescaldos<br />
do Realismo-Naturalismo, propunha<br />
que o mundo representado viesse a ser um<br />
aperfeiçoamento do mundo vivido.<br />
Rompendo com a subordinação da<br />
cena a um tipo de texto que organizava os<br />
modos de percepção do mundo, o drama<br />
musical exige a coordenação de esforços<br />
da platéia para uma experiência singular a<br />
ser representada. O foco passa a ser a ficção<br />
partilhada.<br />
Em uma obra dramático-musical essa<br />
partilha só ocorre através da continuidade<br />
da cena em suas variações temporais e<br />
afetivas. Todos os heterogêneos elementos<br />
do espetáculo (canto, dança, fala, luz, música,<br />
pintura) precisam se submeter à duração<br />
singularizada de seus efeitos. A mútua<br />
implicação dos elementos no espetáculo<br />
postula novas atribuições e funções para o<br />
material utilizado levando em conta as particularidades<br />
físicas desses materiais. Para<br />
durar, o espetáculo precisa da integração de<br />
seus vários níveis representacionais. O momento<br />
de cena é a articulação dessa pluralidade<br />
convergente 13 .<br />
13 Sobre o tema, v. GUIDO, 2007; BREMNER, 2008; ROBERTSON, 2009.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Para ficar mais claro, Appia toma o<br />
uso dos cenários pintados como contraexemplo<br />
ao que almeja 14 . Este problema<br />
plástico faculta o desenvolvimento de<br />
uma nova arte. Por meio destes objetos<br />
bidimensionais enfatizava-se uma ilusão<br />
abstrata de realidade, pressupondo no<br />
que se mostra uma generalizada visãosuporte<br />
como subsídio ao que se representa.<br />
Não levando em conta a própria<br />
realidade de cena e sua configuração<br />
para o espectador, ficava-se convencionado<br />
que ali existiria algo sem que efetivamente<br />
houvesse. Limitava-se o que<br />
devia ser visto ao que é mostrado, o que<br />
diminui o real representado. O controle<br />
do campo perceptivo da platéia está estipulado<br />
neste acordo tácito. As grandezas<br />
são constantes e absolutas: o grande<br />
e o pequeno só podem ocorrer alternadamente.<br />
A simulação de terceira dimensão<br />
nas estáticas pinturas de cenários é facilmente<br />
destruída pela realidade material<br />
dos corpos, pelo movimento da luz e do<br />
corpo humano.<br />
Para fazer valer essa óptica redutora<br />
foi preciso arrefecer o próprio alcance do<br />
espetáculo. A continuidade da ilusão de<br />
um espaço nivelador exigiu a representação<br />
de um mundo ficcional compatível.<br />
Tudo que é posto em cena leva a marca<br />
dessa conformação. A solução visual dos<br />
cenários pintados é decorrente de uma<br />
proposta dramática que reduz a realidade<br />
visual do espetáculo à sua imediata<br />
apresentação. Daí os arroubos emocionais<br />
e as trucagens de enredo.<br />
Contudo, quando se coloca algo em<br />
cena é preciso sustentar sua visão. Para<br />
tornar crível aquele painel, verdadeiro discurso<br />
da imagem, é preciso que os outros<br />
elementos de cena comunguem da mesma<br />
orientação. Appia bem explicitou que uma<br />
descrição da atividade cenográfica proporciona<br />
a compreensão de um produto que<br />
não é gratuito, mas que se determina pela<br />
orientação estética que o instaura. A fenomenologia<br />
da cena nos faz reconhecer que<br />
a atividade estética da recepção preconiza<br />
14 APPIA, 1981:103-130.<br />
Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 47
<strong>Urdimento</strong><br />
48<br />
uma hierarquia e a cooperação dos diversos<br />
elementos integrantes do espetáculo. A<br />
complexidade do visto é um fazer tornado<br />
possível.<br />
Dessa maneira, melhor que o cenário<br />
pintado é a atividade da luz. Luz e superfície<br />
pintada se anulam ao invés de se reforçarem<br />
mutuamente. O dramaturgo musical<br />
pinta com a luz. A flexibilidade e a extensão<br />
imaginativa do espetáculo reverberam<br />
na plasticidade da iluminação. Em cena<br />
objetos físicos reais e presentes desnudam<br />
o ilusionismo convencional dos cenários<br />
pintados. Objetos não podem ser fictícios<br />
porque a luz não tem existência fictícia. O<br />
corpo vivo e rítmico do ator contradiz a<br />
massa imóvel e distante que se equilibra<br />
atrás dele. Os contextos emocionais e suas<br />
seqüências e as proporções de sua visualização<br />
entrechocam-se com uma bidimensionalidade<br />
isolada. À um corpo vivo, à<br />
uma música dramatizada, corresponde<br />
um espaço temporalizado. A luz, com sua<br />
capacidade de revelar nuances multivariadas,<br />
proporciona o reconhecimento de<br />
profundidades, modificações e fusões que<br />
a representação sugere. A luz é matéria e<br />
intérprete do espetáculo.<br />
A flexibilidade da luz e as cores a ela<br />
associadas possibilitam a pluralidade coerente<br />
do novo princípio cênico que Appia<br />
teoriza 15 . A intensificação dramática é proporcional<br />
a uma economia visual. Distribuem-se<br />
as funções entre os elementos que<br />
contracenam entre si. Os atores contracenam<br />
com a luz a qual, por sua vez, contracena<br />
com a música.<br />
A desubstancialização das formas libera<br />
a dramaturgia musical para as particularidades<br />
do espaço cênico. A visualidade<br />
deixa de ser uma evidência para se postar<br />
como problematização de qualquer roteiro<br />
representacional. A controlada luz no palco<br />
unifica e realiza as intenções expressivas<br />
Dali em diante, o espaço cênico é o espaço<br />
de experimentação e de concretude<br />
estética do artista cênico. Não é anterior ao<br />
que realiza, mas é indissociável à representação.<br />
Paradoxalmente, a ficção cênica não<br />
15 APPIA, 1981: 131-193.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
é uma ilusão, uma atividade mental imposta<br />
e sim a proposição de materiais bem escolhidos<br />
e correlacionados. O espaço cênico<br />
corrige as oposições entre ficção e realidade<br />
e refuta uma estética filosófica em prol de<br />
uma estética operatória e exploratória. A<br />
teatralidade emerge como situação extrema<br />
ficcional que, no precário modo de sua<br />
existência – visualidade –, mobiliza uma<br />
complexa atualidade material e afetiva. A<br />
unidade do teatro não está mais assinalada<br />
nas intenções e ideias do texto de um autor.<br />
Em torno do espaço cênico a visibilidade<br />
do que se objetiva não será apenas um<br />
meio, mas sua própria possibilidade.<br />
Em L’Ouvre d’Art Vivant 16 , de 1921,<br />
considerado seu testamento estético, Appia,<br />
agora mais livre do ideal wagneriano,<br />
consolida sua teoria do teatro 17 . O contato e<br />
a colaboração com os experimentos da Euritimia<br />
de Emile Jaques Dalcroze fizeram<br />
com que Appia coordenasse a centralidade<br />
do espaço cênico com o corpo humano. O<br />
ritmo do espaço é interpretado pelo corpo<br />
e este modifica seus movimentos e suas<br />
formas 18 . Pois, como o corpo humano torna<br />
formas pintadas irrelevantes, é a sua performance<br />
que cria o espetáculo 19 . O ator e<br />
seu treinamento e desenvolvimento físicoexpressivo<br />
são agora o foco da reforma da<br />
encenação de Appia. A música cede sua<br />
imagem para a defesa de um espaço rítmico<br />
a ser individualizado pelo intérprete.<br />
Para chegar ao ator, Appia perguntase<br />
se tempo e espaço possuem algum denominador<br />
comum: uma forma no espaço<br />
pode se manifestar em sucessivas durações<br />
de tempo e essas sucessivas durações de<br />
tempo podem ser expressas em termos de<br />
16 Sigo aqui a tradução inglesa de APPIA, 1997. Também no site www.archive.org<br />
encontra-se diponível uma edição original da obra, dedicada a Emile Dalcroze.<br />
17 Neste livro encontramos a famosa afirmação “a stage is an empty and more or<br />
less iluminated space of arbitrary dimensions”(APPIA, 1997:8).<br />
18 APPIA, 1997:9.<br />
19 APPIA, 1997:9-10.”The body is not only mobile: it is plastic as well. This plasticity<br />
naturally gives it an immediate kinship with architecture and brings it close to sculptural<br />
form - without, however, fully identifying itself sith sculpture, which is immobile.<br />
On the other hand, it is alen to the nature of painting. A plastic object demands lights<br />
and shadows that are real and positive. Placed before a painted ray of light or a painted<br />
shadow projection, the plastic body stubbornly remains in its own atmosphere,<br />
its own light and shadow. The same is true of forms expressed in painting. These<br />
forms are not plastics, but two-dimensional, and the body is three-dimensional; their<br />
juxtaposition is out of question. The human body makes painted forms and painted<br />
light irrelevant on the stage”<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
espaço 20 . Vendo que, no espaço, unidades<br />
de tempo são expressas por sucessão de<br />
formas em movimento e que, no tempo, espaço<br />
é expresso por sucessão de palavras e<br />
sons, Appia promove o corpo vivo do ator,<br />
sujeito às suas determinações físicas reais,<br />
a intérprete do tempo em forma de espaço.<br />
Diferente de formas inanimadas, o corpo<br />
reage e realça um paradoxo fundamental<br />
da cena: se a música prescreve os movimentos<br />
do corpo, o corpo transforma o espaço<br />
em tempo 21 . A visualidade do espaço<br />
cênico demanda que o corpo torne factível<br />
a experiência de uma temporalidade. Há a<br />
cena somente quando o corpo materializa<br />
essa interação. O corpo do ator contracena<br />
com durações e extensões. Existe um momento<br />
pré-representacional que atravessa<br />
a construção do espetáculo e sobredetermina<br />
o horizonte de tudo que vai ser encenado:<br />
a fisicidade do corpo.<br />
O espaço cênico é o espaço rítmico no<br />
qual o corpo vivo do ator confronta-o (e<br />
provoca-o), transformando constrições em<br />
possibilidades criativas. Segundo Appia,<br />
então, em razão de o corpo ser o ponto de<br />
partida e sustentação da realização dramática,<br />
como o corpo expressa espaço e, para<br />
proporcionar espaço, precisa de tempo, sua<br />
atividade é expressão de espaço durante o<br />
tempo e tempo no espaço. O corpo é o autor<br />
dramático, pois “Nós somos a peça e a<br />
cena”, de acordo com Appia. A produção<br />
de tempo e espaço pelo corpo é que torna<br />
realizável o evento cênico 22 .<br />
Desse modo entramos no palco moderno.<br />
A voz de Appia não só ecoou nos<br />
trabalhos e teorias dos encenadores como<br />
Gordon Craig (1872-1966), Max Reinhardt<br />
(1873-1943), Erviw Piscator (1893-1966)<br />
20 APPIA, 1997:7,8,13. “Do time and space possess some reconciling element,<br />
some common denominator? Can form in space be manifested in successive<br />
time-durations, and can these time[durations, in turn, be expressed in terms of<br />
space? [...] In space, units of time are expressed by a sucession of forms, hence<br />
by movement. In time, space is expressed by a sucession of words and sounds,<br />
that is to say by varying time-durations prescribin the extent of the movement. [...]<br />
Movement is the reconciling principle that formally unites space and time”.<br />
21 APPIA, 1997:38-57.<br />
22 APPIA, 1997:53-54:” Space is our life; our life creates Space; our body express<br />
it.[...] In order to proportion Space, our body needs time! The time-duration of our<br />
movements, consequently, has determined their extent in space. Our life creates<br />
space and time, one through the other. Our living body is the expression of Space<br />
during Time, and of Time in Space. [...] We are the play and the stage, because it is<br />
our living body that creates them. Dramatic art is a spontaneous creation of the body;<br />
our body is the dramatic author”.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
como também em outras direções que o<br />
teatro foi promovendo (teoria e treinamento<br />
do ator). A abertura de perspectivas<br />
promovida pela abordagem de Appia, ao<br />
formular sua teoria sem se valer somente<br />
de estéticas filosóficas ou programáticas,<br />
reconsiderando a faticidade da linguagem<br />
de cena, impulsionou a chamada autonomia<br />
da teatralidade, autonomia esta baseada<br />
no conhecimento de suas especificidades.<br />
A materialidade da cena não é uma<br />
ilustração da expressão dramática, mas um<br />
pressuposto de sua realização. A partir da<br />
modernidade é preciso corrigir as ideias<br />
por meio do concreto contexto da expressão<br />
em cena. O processo criativo agora é<br />
um complexo estético-físico.<br />
Erwin Piscator e o fim da ilusão<br />
da ilusão teatral<br />
John Heartfield, contra-regra encarregado<br />
de preparar um telão para ‘ O mutilado’,<br />
atrasado como sempre, aparece à porta<br />
de entrada da sala quando a peça já estava<br />
na metade do primeiro ato, com o telão enrolado<br />
e metido debaixo do braço.<br />
Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 49
<strong>Urdimento</strong><br />
50<br />
HEARTFIELD<br />
Erwin, pare! Estou aqui!<br />
Atônitos, todos voltam-se para aquele homenzinho,<br />
de rosto fortemente avermelhado que<br />
acabara de entrar. Não sendo possível continuar o<br />
trabalho, Piscator levanta-se e abandona por um instante<br />
o seu papel de mutilado e grita:<br />
PISCATOR<br />
Por onde você andou? Esperamos quase<br />
meia hora (murmúrio de assentimento do público)<br />
e começamos sem o seu trabalho.<br />
HEARTFIELD<br />
Você não mandou o carro! A culpa é sua!<br />
(crescente hilaridade no público)<br />
PISCATOR<br />
(Interrompendo - o): Fique quieto, Johnny,<br />
precisamos continuar o espetáculo.<br />
HEARTFIELD<br />
(Extremamente excitado) Nada disso, antes<br />
vamos erguer o telão!<br />
Como HEARTFIELD não cede, PISCA-<br />
TOR volta-se para o público, perguntando-lhe<br />
o que deveria ser feito: continuar o espetáculo<br />
ou pendurar o telão. A grande maioria decide<br />
pela última alternativa. Cai o pano, monta-se o<br />
telão e, para contentamento geral, espetáculo<br />
recomeça. 23<br />
O trecho acima é uma adaptação de um<br />
episódio que, segundo as palavras jocosas<br />
de E. Piscator (1893-1966), foi a fundação<br />
do Teatro Épico. Concluindo o relato, Piscator<br />
afirma: “Considero John Heartfield o<br />
fundador do teatro épico.” 24<br />
Em nossa adaptação, convertemos a<br />
nota de rodapé que apresenta o episódio,<br />
em um roteiro teatral, com o objetivo de<br />
tornar mais compreensíveis os procedimentos<br />
relativos a este Teatro Épico.<br />
Seguindo o roteiro, notamos que a interrupção<br />
de uma representação proporciona<br />
o contexto para diversas ações do<br />
ator, do público e do agente invasor. É a<br />
partir da ampliação dessa interrupção que<br />
temos estes diversos atos estritamente vinculados<br />
entre si.<br />
23 PISCATOR, 1968:53.<br />
24 Idem, ibidem.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
A extensão da duração do que se interrompe<br />
vai formando um novo momento<br />
dentro do espetáculo, providenciando novos<br />
nexos, outro padrão de interação entre<br />
cena e platéia, revisando o padrão anterior.<br />
À frontalidade da cena - manifesta na unidirecionalidade<br />
entre o mundo dos atores e<br />
o mundo do público - contrapõe-se a correlação<br />
entre o cênico e o não cênico, simultaneamente.<br />
Dessa maneira, a intrusão de Heartfield<br />
possibilita não somente a ruptura com a<br />
‘ilusão’ do que se representa. A unidade<br />
da representação e seu padrão de interação<br />
são colocados em xeque.<br />
Mas, ao mesmo tempo e irreversivelmente,<br />
esta intrusão é integrada a uma<br />
continuidade que redefine tanto a unidade<br />
da representação quanto seu padrão de interação.<br />
À diferenciação de eventos representados<br />
corresponde uma diversificação<br />
das respostas da audiência.<br />
Os chamados ‘prejuízos’ causados pela<br />
interrupção da representação - a dispersão<br />
recepcional e a falha na continuidade actancial<br />
- são incorporados pelo curso subsequente<br />
das novas participações do público<br />
no espetáculo. Ou seja, a ruptura com<br />
o espetáculo, a descontinuidade, produz<br />
uma nova continuidade.<br />
Ora este espetáculo dentro do espetáculo<br />
amplia os nexos recepcionais ao<br />
mesmo tempo em que amplia o mundo<br />
representado e a própria representação. O<br />
público quer tudo, o telão e o espetáculo.<br />
E é para essa ampliação da cena que<br />
ruma a proposta de Piscator.<br />
Se a descontinuidade pode produzir<br />
tanto novos atos recepcionais quanto actanciais,<br />
ampliando a cena, isso só se torna<br />
possível em virtude de haver o descentramento<br />
do centro de orientação do espetáculo<br />
quanto a um ponto unificador do que<br />
é mostrado.<br />
Ora, a expansão e diversificação dos<br />
nexos agem diretamente sobre uma proposta<br />
de homogeneidade. Se considera-se<br />
imprescindível coordenar atos e eventos<br />
heterogêneos em seqüência e simultaneidade,<br />
então volta-se a totalidade desses<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
procedimentos contra o totalitarismo da<br />
cena fechada sobre sua forma de apresentação.<br />
Assim, a proposição de uma cena<br />
expandida reage diretamente contra procedimentos<br />
redutores da cena.<br />
Contudo, a diferença de Piscator não<br />
está na substituição de formas. Para ele,<br />
“o critério não está no formal, está no<br />
problemático.” 25<br />
Como então compreender esta diferença<br />
que tem um parâmetro composicional,<br />
mas que ao mesmo tempo não se limita à<br />
composição?<br />
Justamente, quando se inserem questões<br />
composicionais que controlam opções<br />
formais em questões outras não puramente<br />
estéticas é que começamos a nos aproximar<br />
da amplitude que Piscator advoga.<br />
Há, pois, uma estreita conexão entre procedimentos<br />
de composição e realização e a<br />
definição de espetáculo.<br />
O impulso para esta conexão reivindica<br />
um contexto reativo, um claro posicionamento<br />
contra o conluio entre esteticismo<br />
e subjetivismo que permeava a cultura teatral<br />
alemã dos primeiro decênios do século<br />
XX. Conquistas técnicas do teatro, como<br />
luz elétrica e palco giratório são incorporadas,<br />
por Max Reinhardt, por exemplo,<br />
no fortalecimento do lirismo dramático,<br />
em uma naturalização do mundo representado<br />
como registro e clausura da ‘alma<br />
individual’. 26<br />
Dessa forma, o dispositivo cênico magnetiza<br />
o observador, isolando-o, ao figurar<br />
ações, pensamentos e emoções que não<br />
ultrapassam a instância do próprio sujeito<br />
que as performa. O incremento técnico<br />
da cena, ou este uso da técnica, consagra<br />
a apresentação de referências desprovidas<br />
de situações que não se reduzem a ações/<br />
reações individuais.<br />
Mas há outras maneiras de se efetivar<br />
as aplicações do dispositivo cênico. As<br />
modificações técnicas ao invés de naturalizarem<br />
uma cena subjetiva podem capacitar<br />
um deslocamento do “indivíduo com<br />
25 Idem, 43.<br />
26 Idem, 37-38. “Essa arte dramática é lírica, quer dizer não é dramática. São obras<br />
líricas dramatizadas. Na miséria da guerra, que foi, na realidade, uma guerra da máquina<br />
contra o homem, procurou-se, pela negação, pesquisar a alma do homem.”<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
seu destino particular pessoal” para uma<br />
amplitude histórico-social. “A criatura no<br />
palco tem para nós o significado de uma<br />
função social. No ponto central não está<br />
sua relação consigo próprio, nem sua relação<br />
com Deus, mas sim a sua relação com a<br />
sociedade.” 27<br />
Mas que histórico-social é este? A mera<br />
adoção de uma perspectiva política capacita<br />
este teatro multidimensional que Piscator<br />
objetiva?<br />
De volta ao episódio. As confusões entre<br />
Piscator, Heartfield e o público durante<br />
a peça ‘O mutilado’, de K.A. Wittfogel<br />
aconteceram dentro das limitações do Teatro<br />
Proletário. Sindicatos e centrais trabalhistas<br />
apoiavam um palco de propaganda,<br />
determinado em promover “apelos para se<br />
intervir no fato atual e fazer política”. 28<br />
Este teatro popular, performado em<br />
salas e locais de assembléia, distinguia-se<br />
tanto dos teatros comerciais quanto dos<br />
teatros socialistas de seu tempo: “não se<br />
tratava de um teatro que pretendia proporcionar<br />
arte aos proletários, e sim uma propaganda<br />
consciente”. 29<br />
Um outro espaço, um outro nexo entre<br />
a cena e o auditório: estes dois parâmetros<br />
de composição, realização e recepção teatrais<br />
projetam-se contra a definição de arte<br />
existente e ratificam uma diversa definição<br />
de espetáculo. Dos espaços fechados, suntuosos<br />
e consagrados, para as salas e ambientes<br />
acanhados com cheiro de “cerveja<br />
velha e urina”, com cenários de “telões simples,<br />
pintados às pressas” explicita-se uma<br />
verdadeira simplificação dos meios e das<br />
posturas, que proporciona o foco naquilo<br />
mesmo que deveria ser a atividade de representação<br />
dramática: a interação entre<br />
cena/audiência.<br />
Em condições mínimas, em dificuldades<br />
flagrantes, temos o teatro mínimo:<br />
“o teatro não devia mais agir apenas sentimentalmente<br />
no espectador, não devia<br />
especular apenas a sua disposição emocional;<br />
pelo contrário, voltava-se para a razão<br />
27 Idem, 156.<br />
28 Idem, 51.<br />
29 Idem, IbIdem.<br />
Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 51
<strong>Urdimento</strong><br />
52<br />
do espectador. Não devia tão somente comunicar<br />
elevação, entusiasmo, arrebatamento,<br />
mas também esclarecimento, saber,<br />
reconhecimento”. 30<br />
A pedagogia do espectador é impulsionada<br />
pela diferenciação dos materiais que<br />
lhe são apresentados. Simultaneamente, a<br />
economia dos meios de expressão efetivava<br />
tanto o rigor da aplicação desses meios<br />
quanto o controle e a compreensão de seus<br />
efeitos. Aquilo que se mostra não é mais<br />
algo apenas para se contemplar. A contiguidade<br />
entre objetos, ações e situações em<br />
cena com as fora de cena acarreta uma interação<br />
palco/platéia que concretiza este deslocamento<br />
da esfera subjetiva/ilusionista<br />
do teatro para uma arena interindividual<br />
dos eventos representados e conseqüente<br />
excitação cognitivo-afetiva do público.<br />
Alterando-se o que se mostra a partir<br />
dos nexos recepcionais, fundamenta-se um<br />
conjunto de metas e procedimentos que<br />
podem ser explorados e se tornar operacionalizáveis,<br />
e que não mais se circunscrevem<br />
ao lugar e ao público onde foram utilizados<br />
e testados. Como a interação palco/<br />
platéia relaciona-se com os meios empregados<br />
na realização do espetáculo e com<br />
o deslocamento da cena individual para a<br />
cena sócio-histórica, vemos que a mútua<br />
implicação desses elementos é o que ratifica<br />
a amplitude do que se representa e não<br />
apenas um somatório ou escolha aleatória<br />
dos meios empregados. A cooperação entre<br />
meios técnicos, referências transubjetivas<br />
e nexos recepcionais mais cognitivos<br />
providencia um programa de atividades<br />
representacionais que transcendem o ponto<br />
origem de seu encontro e manipulação.<br />
Eis os procedimentos e parâmetros do processo<br />
criativo de Piscator rumo a uma cena<br />
expandida e ampla.<br />
No espetáculo Bandeiras (1924) estamos<br />
longe das assembléias, de seus odores<br />
e dos atores não profissionais. De acordo<br />
com Piscator, “pela primeira vez tinha eu<br />
em mãos um teatro moderno, o teatro mais<br />
moderno de Berlim, com todas suas possiblidades,<br />
e eu estava resolvido a aproveitá-<br />
30 Idem, 53.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
las em função do sentido da peça, a qual,<br />
no tema, correspondia a minha atitude polícia<br />
fundamental”. 31<br />
O texto de Bandeiras, de Paquet, era escrito<br />
em forma intermediária entre conto e<br />
drama onde “um frio sentimento do autor<br />
o proíbe de participar intimamente da sorte<br />
de suas personagens e do curso da ação.” 32<br />
Assim, a impessoalidade no tratamento do<br />
material narrativo libera o escritor a trabalhar<br />
mais as cenas, descentrando a voz<br />
autoral como guia e condutor da atividade<br />
interpretativa do leitor. Concentrandose<br />
mais no que mostra que no que julga ou<br />
diz sobre o que mostra, o narrador aplica-se<br />
melhor ao planejamento e concatenação<br />
das cenas e do desafio de sua inteligibilidade,<br />
ao invés de unificá-las em prol de uma<br />
mensagem prévia autoral.<br />
Essa situação do escritor é homóloga<br />
ao do diretor. Piscator com este material<br />
narrativo tinha a oportunidade de efetivar<br />
no palco o seu romance-drama, o seu teatro<br />
épico. E no que consistia sua atividade de<br />
diretor? “Ampliação da ação e do esclarecimento<br />
dos seus segundo planos; uma continuação<br />
da peça para além da moldura da<br />
coisa apenas dramática.” 33<br />
Ou seja, frente à eliminação de uma<br />
perspectiva central que unifica toda a representação<br />
no próprio mundo apresentado,<br />
no mundo da mensagem autoral e<br />
sua interpretação restrita do que se mostra,<br />
Piscator diversifica as referências produzidas<br />
em cena valendo-se de meios e procedimentos<br />
que dilatam o horizonte atual. Os<br />
atores contracenavam com telões que exibiam<br />
ora fotografias, ora textos.<br />
Dessa maneira, o espectador simultaneamente<br />
interagia com as figuras em cena<br />
e com os meios. A visibilidade dos meios<br />
não se limitava à duplicação redundante<br />
do mundo representado. Antes, no mesmo<br />
espaço e ao mesmo tempo o espetáculo se<br />
desdobrava em níveis de referência pertencentes<br />
a mídias e performances diversas<br />
que expandiam o presente de cena. A<br />
presença dos meios técnicos fornecia uma<br />
31 Idem, 67-68.<br />
32 Idem,69.<br />
33 Idem,IbIdem.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
abertura imaginativa da representação,<br />
contrariando o pressuposto do apagamento<br />
das marcas de ficção presentes no uso<br />
ilusionista dos novos recursos cênicos. A<br />
exibição tanto dos meios quanto de seus<br />
efeitos in loco, frente às personagens e à<br />
platéia, proporcionava um recrudescimento<br />
da pluralidade representada e da pluralidade<br />
de atos receptivos. A heterogeneidade<br />
dos níveis referenciais co-presentes em<br />
cena faculta o mútuo aprofundamento dos<br />
horizontes da representação e da audiência.<br />
Assim, retome-se o episódio da peça O<br />
mutilado: a interrupção da representação, a<br />
descontinuidade provocada pela presença<br />
dos meios é produtora de uma nova continuidade<br />
que atravessa o espetáculo - a<br />
continuidade da metareferência. O espetáculo<br />
demonstra-se como espetáculo para<br />
assegurar o vinculo entre os materiais que<br />
disponibiliza e os extensos contextos que<br />
busca apresentar para a audiência.<br />
Esse uso da metareferência, incorporando-a<br />
a atividade representacional, favorece<br />
a construtividade da cena, a orientação<br />
da seleção, combinação e distribuição dos<br />
meios em função dos atos de entendimentos<br />
da recepção. A inteligibilidade da cena<br />
conjuga-se à inteligibilidade da audiência.<br />
Em sua forma de representação, o espetáculo<br />
Bandeiras era dividido em “numerosas<br />
cenas individuais, algo de revista”. 34<br />
Seguindo o descentramento de uma<br />
perspectiva autoral privilegiada, que unificava<br />
o mundo representado e o unificava<br />
empaticamente à recepção, vimos que<br />
Piscator optara por procedimentos que<br />
verticalizavam a interação cena/platéia<br />
através de múltiplos e heterogêneos níveis<br />
de referência e de meios. Não subjugado<br />
à apropriação e reprodução de uma individualidade<br />
restrita ao particularismo de<br />
sua presença e contexto, a forma de revista<br />
forneceria um modelo de realização que<br />
poderia efetivar a liberação do processo<br />
criativo para a cena de uma unificação personativa-<br />
actancial.<br />
Assim, a forma revista com seus nú-<br />
34 Idem, 73.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
meros diversos compostos de mídias e performances<br />
diversas culminaria a definição<br />
plural do espetáculo de Piscator contra a<br />
homogeneidade reprodutiva do ilusionismo<br />
individualista anterior.<br />
Note-se que a abertura às possibilidades<br />
de representação operada pelo processo<br />
criativo de Piscator, ao radicalizar a<br />
heterogeneidade da cena como forma de<br />
se abarcar contextos de ação mais amplos,<br />
acaba por justapor performances diversas,<br />
subvertendo e refutando uma pretensa<br />
unidade midiática do espetáculo. Assim,<br />
“música, canção, acrobacia, desenho<br />
instantâneo, esporte, projeção de cinema,<br />
estatísticas, cena de ator alocução” - tudo<br />
vem à cena. A diversidade midiática corresponde<br />
à diversidade dos contextos de<br />
ação representados.<br />
Ora essa diversidade midiática da definição<br />
do espetáculo de Piscator em muito<br />
ultrapassa a dramaturgia de seu tempo e<br />
se converte em um ponto de partida para<br />
a dramaturgia ulterior. A circunscrição da<br />
dramaturgia à escritura das falas e à distribuição<br />
das ações e das partes da peça<br />
em função de um enredo havia reduzido<br />
as possibilidades expressivas do espetáculo.<br />
Sempre tudo convergia para um centro<br />
subjetivo, para um hipersujeito arquimodelo<br />
de todos atos, pensamentos os desempenhos<br />
em cena e na platéia.<br />
Com a diversidade multimidiática do<br />
espetáculo de Piscator, a dramaturgia se<br />
confronta com novas tarefas - a ilusão da<br />
ilusão do centro subjetivo é refutada desde<br />
o processo criativo. Ao isolacionismo do<br />
autor, fechado em seu gabinetismo idealtípico,<br />
temos agora a inserção de seu trabalho<br />
em outros trabalhos, um processo criativo<br />
coletivo e colaboracionista. “os diversos<br />
trabalhos de autor, diretor, artístico,<br />
músico, cenógrafo e ator se entrosavam<br />
incessantemente”. 35<br />
Desse modo, conjugam-se processo<br />
criativo, mundo representado e atos recepcionais<br />
na heterogeneidade de referencias<br />
e interreferências que produzem.<br />
A forma revista, dispondo eventos mi-<br />
35 Idem, 80.<br />
Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 53
<strong>Urdimento</strong> N° 18 | Março de 2012<br />
54<br />
diáticos diversos em sucessão, apresenta-se<br />
como exibição dessa heterogeneidade que<br />
abarca tanto a composição quanto a realização<br />
e a recepção do espetáculo. Ao mesmo<br />
tempo a forma revista não é uma resultante<br />
simples de atitudes ou procedimentos. Tal<br />
forma aberta delimita o horizonte problemático<br />
de sua realização: os limites de sua<br />
inteligibilidade a partir do posicionamento<br />
dos materiais exibidos. Toda forma que recusa<br />
uma continuidade imediata, atua sobre<br />
a continuidade mesma. A expectativa<br />
de acabamento do material exposto exige<br />
estratégias complexas de exibição mesmo<br />
deste acabamento. Com a abertura da forma,<br />
temos a prerrogativa dos suportes recepcionais.<br />
O êxito do espetáculo Apesar de tudo<br />
(1925) manifesta o ímpeto de solução de<br />
problemas impostos pela forma revista. Em<br />
destaque temos o uso de filmes em cena. A<br />
sincronização de mídias diversas era o problema<br />
a ser enfrentado. Nas palavras de<br />
Piscator “pela primeira vez a fita de cinema<br />
se ligaria organicamente aos fatos desenrolados<br />
no palco”. 36 Pois a forma de revista<br />
não diz respeito apenas ao seqüenciamento<br />
de partes diferentes, mas sim à estruturação<br />
mesma de cada parte.<br />
Os filmes estavam distribuídos por<br />
toda a peça. Eram imagens de arquivos,<br />
“filmagens que apresentavam brutalmente<br />
todo o horror da guerra: ataques com lançachamas,<br />
multidões de seres esfarrapados,<br />
cidades incendiadas; ainda não se estabelecera<br />
a moda dos filmes de guerra”. 37<br />
Juntos com os filmes eram apresentados<br />
ao público discursos, recortes de jornal,<br />
conclamações, folhetos, fotografias.<br />
Tudo bem disposto com os atores em um<br />
palco giratório, efetivando “uma unidade<br />
da construção cênica, um desenrolar ininterrupto<br />
da peça, comparável a uma única<br />
corrente de água”. 38<br />
Assim, essa unidade advinda da montagem<br />
e da sucessão de eventos midiáticos<br />
diversos era o espetáculo mesmo de sua<br />
36 Idem, 8z0.<br />
37 Idem,81<br />
38 idem, 82.<br />
possibilidade de realização e compreensão.<br />
Piscator tinha uma dupla ansiedade:<br />
“primeiro, de que modo resultaria a mútua<br />
ação condicionadora dos elementos empregados<br />
no palco; segundo, se realmente se<br />
chegaria a realizar-se algo do que forma<br />
projetado”. 39<br />
A dupla perplexidade frente à composição<br />
e realização do espetáculo foi resolvida<br />
pelo papel ativo da recepção em dar acabamento<br />
às cenas. Durante a performance<br />
da peça, Piscator afirma que “a massa incumbiu-se<br />
da direção artística. [...] O teatro,<br />
para eles, transforma-se em realidade. Em<br />
pouco tempo cessou de haver um palco e<br />
uma platéia, para começar a existir uma só<br />
grande sala de assembléia, um único grande<br />
campo de luta.[...] foi essa unidade que,<br />
naquela noite, provou definitivamente a<br />
força de incitamento do teatro político”. 40<br />
Note-se que ao se expor os meios e materiais<br />
em cena, incrementou-se a interação<br />
palco-platéia. A comum-unidade dessa interação<br />
difere de uma projeção emotiva do<br />
público à mensagem do individualismo estético<br />
e o ilusionismo de sua representação.<br />
A motivação afetiva foi impulsiona pelo<br />
esforço cognitivo. A contracenação das<br />
mídias entre si facultou a magnitude da<br />
apreensão recepcional. A audiência podia<br />
conjugar fatos diversos no diferencial tanto<br />
midiático quanto referencial e disto compreender<br />
e reunir a totalidade do que era<br />
exibido. A tensão do espetáculo estava na<br />
disparidade dos meios e dos contextos e no<br />
modo como esta disparidade é enfrentada<br />
em prol de nexos recepcionais. A contracenação<br />
entre mídias concretizava a contracenação<br />
entre palco e platéia. A ‘resolução’<br />
da disparidade, pois, não é a sua anulação,<br />
o mero cancelamento do heterodoxo, mas o<br />
provimento de atos vinculantes, de nexos.<br />
Assim, o espetáculo atua em função de<br />
sua interação ao invés de ser um veículo<br />
para ideias autorais. A realidade multimidiática<br />
da cena é o que possibilita a interpretação<br />
de contextos de ação extremos.<br />
Atos representacionais e atos da audiência<br />
39 Idem, 83.<br />
40 Idem, 83-84.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
colaboram. O projeto composicional culmina<br />
no acabamento recepcional. Nas palavras<br />
de Piscator: “no palco tudo é calculável,<br />
tudo se entrosa organicamente. Para<br />
mim, igualmente, o ator que eu vejo no<br />
efeito total do meu trabalho deve, sobretudo,<br />
exercer uma função, tal qual a luz, a cor,<br />
a música o cenário, o texto”. 41<br />
Mais importante: o documento exposto,<br />
difundido estava em mesmo nível com<br />
o documento examinado, fraturado, reordenado.<br />
A montagem colocava em mesmo<br />
plano o documento e o figurativo, de modo<br />
a possibilitar a intervenção recepcional no<br />
que era representado e não simplesmente<br />
a paráfrase de um original, de uma fonte<br />
autoral da informação. Nesse entre-lugar,<br />
nessa região limítrofe onde os limites do<br />
objetivo e do subjetivo projetam áreas impessoais<br />
e desconhecidas é que a peça é<br />
executada. A imponderabilidade dos extremos<br />
absolutos converte esse entre-lugar em<br />
um choque contra toda e qualquer ortodoxia.<br />
A obra total que o processo criativo<br />
de Piscator realizava exigia um teatro total.<br />
O sucesso de público determinou a<br />
abertura do Teatro e Estúdio Piscator, nos<br />
quais espetáculos e pesquisas sobre a arte<br />
teatral seriam efetivados. Com W. Gropius(1883-1969),<br />
o teatro total pode ser<br />
construído.<br />
Piscator justificava essa máquina teatral<br />
nova, “um aparelhamento dotado<br />
dos meios mais modernos de iluminação,<br />
de remoção e rotação no sentido vertical e<br />
horizontal, com um sem número de cabines<br />
cinematográficas, instalações de altofalantes”<br />
como algo que possibilitasse tecnicamente<br />
“a execução do novo principio<br />
dramatológico”. 42<br />
Esta máquina teatral refutava a câmara<br />
ótica que por meio do pano e cova da<br />
orquestra mantinha o espectador separado<br />
do palco. Ao invés de único centro de atenção,<br />
multiplicavam-se os palcos em cena<br />
(um central e dois laterais) e engrenagens<br />
que envolviam e cercavam o público dis-<br />
41 Idem, 98.<br />
42 Idem. 146.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
tribuído em torno desses palcos. Assim, de<br />
todas as direções as performances se abatiam<br />
sobre o público. A audiência pertence<br />
espacialmente ao palco, e vê-se confrontada<br />
e tomada pelas performances, meios<br />
mecânicos e projeções luminosas.<br />
Assim, é na atividade exercida sobre a<br />
recepção que este teatro total encontra sua<br />
efetividade.<br />
Posteriormente, a cena expandida e<br />
multimidiática de Piscator se defrontaria<br />
com a representação de figuras isoladas,<br />
com a representação do herói, como em As<br />
aventuras do bravo soldado Schwejk. Seria um<br />
recuo, como disseram de Alexander Nieviski,<br />
de S. Eisenstein? Ora na amplitude do espetáculo<br />
de Piscator a desconstrução da figura<br />
individual não se torna a revalidação<br />
de centro subjetivo. Antes, há o reforço das<br />
magnitudes teatrais quando da desconstrução<br />
dessa figura. O isolacionismo do herói<br />
e o recurso à máquina da faixa corrente,<br />
na qual desfilam as partes todas de um escárnio,<br />
complementa-se na globalidade do<br />
que foi mostrado.<br />
Assim, as reflexões e os procedimentos<br />
do teatro político de Piscator ultrapassam<br />
as motivações ideológicas e conjuntura<br />
histórico-política de sua ocorrência. Mas aí,<br />
temos uma nova história.<br />
Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 55
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Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 57
N° 18 | Setembro de 2012<br />
Resumo<br />
Leo Sykes fala sobre sua formação e seu trabalho como<br />
diretora de teatro. Conta sobre seus 5 anos como assistente<br />
de direção do Eugenio Barba, diretor do Odin Teatret.<br />
Depois explica como ela trabalha para criar espetáculos<br />
clown com Circo Teatro Udi Grudi no Brasil e com Teatret<br />
OM na Dinamarca. Ela mostra como ela desenvolve<br />
material com os atores e depois estrutura e elabora este<br />
material para virar um espetáculo.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Leo Sykes, Eugenio Barba, Clown/Palhaço<br />
Abstract<br />
Leo Sykes speaks about her training and her work as a<br />
theatre director. She tells of her five years as assistant director to<br />
Eugenio Barba, director of Odin Teatret. She explains how she<br />
works to make clown performances with Circo Teatro Udi Grudi<br />
in Brazil and with Teatret OM in Denmark. She shows how she<br />
works with the actors to develop the material and then elaborates<br />
and structures it into a performance.<br />
KEywORDS: Leo Sykes, Eugenio Barba, Clown<br />
1 Diretor e atriz. Diretora do grupo Circo Teatro Udi Grudi/Brasília.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA<br />
Leo Sykes 1<br />
A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 59
<strong>Urdimento</strong><br />
60<br />
Eu vivo uma saudável esquizofrenia<br />
profissional. Atuo entre os mundos<br />
de teatro e cinema, atores e palhaços.<br />
Não sei se isso reflete o teatro contemporâneo,<br />
onde todas as fronteiras<br />
formais estão borradas, ou se isso é uma<br />
viagem puramente subjetiva. Com certeza<br />
é porque tive dois pais. Um era meu pai de<br />
verdade, que me fez e me criou. Ele era cineasta,<br />
diretor de filmes de terror. O outro<br />
foi Eugenio Barba, a quem eu conheci aos<br />
meus 18 anos de idade, sobre quem escrevi<br />
meu doutorado, para quem trabalhei como<br />
assistente de direção durante cinco anos e<br />
que me ajuda nos meus processos criativos<br />
até hoje. A relação entre cinema e teatro então<br />
para mim é ancestral. A relação entre<br />
o ator e o palhaço existe, porque dirijo um<br />
grupo de atrizes, Teatret OM, na Dinamarca<br />
e um grupo de palhaços, Circo Teatro<br />
Udi Grudi, no Brasil.<br />
Chamo estas mudanças de “ambientes”<br />
de esquizofrenia profissional, porque<br />
cada um exige um comportamento diferente<br />
meu como diretora. Quando trabalho<br />
com filmes, sendo que só dirijo meus<br />
próprios roteiros, sou uma diretora conceitual.<br />
Tudo é pré-concebido, escrito em<br />
forma de roteiro e desenhado em forma<br />
de story-board. Chego no set sabendo não<br />
somente o que quero que o ator faça, mas<br />
também o que a câmera faça e, com isso, o<br />
que o espectador veja. É claro que, da minha<br />
cabeça até os olhos do público, o projeto<br />
sofre uma série de modificações nos ensaios,<br />
conversas com colegas e improvisos<br />
de última hora, sugeridos por todos no set,<br />
mas o produto final é geralmente bastante,<br />
se não exatamente, igual ao que eu tinha<br />
imaginado. Quando trabalho no teatro,<br />
sou estranhamente incapaz de conceber.<br />
Não consigo imaginar cenas, não consigo<br />
entender desenhos de figurinos e cenários<br />
ou idéias contadas. Preciso ver tudo ao<br />
vivo e elaboro meu trabalho com base no<br />
que está na minha frente. Neste sentido,<br />
acho que o teatro é a arte do ator e o cinema<br />
é a arte do diretor. No cinema, começo<br />
com o produto final, no teatro começo com<br />
a semente inicial.<br />
Começar do começo<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Quando adolescente, minha mãe me<br />
levava para ver os espetáculos de criação<br />
coletiva dos anos 70, em Londres, onde os<br />
atores estavam pelados e jogavam gelatina<br />
na platéia. Eu fiquei encantada e escolhi o<br />
teatro como minha profissão, porque, além<br />
do mais, era um mundo longe dos filmes<br />
de terror que meu pai dirigia. Aos 18 anos,<br />
depois de uma viagem de vários meses na<br />
Índia, voltei para Europa e ainda faltavam<br />
uns meses para começar a faculdade. Meu<br />
pai me falou “por quê você não vai visitar<br />
a Julia? Parece que ela tem um grupo bem<br />
interessante lá na Dinamarca”. Peguei o<br />
barco e fui. Pisei no foyer do Odin Teatret<br />
e entrei num outro mundo. De repente,<br />
achei um lugar no qual eu me reconhecia,<br />
eu, imigrante, filha de imigrantes, me senti<br />
em casa. O Odin é sobre tudo uma poderosa<br />
tribo de artistas que eram para mim<br />
totalmente assustadores e fascinantes. Assisti<br />
aos últimos ensaios de Oxyrhincus<br />
Evangeliet e vi, pela primeira vez, o tipo de<br />
teatro que eu queria fazer. Não tinha nada<br />
de nudez e gelatina. Eu vi, principalmente,<br />
magia, e talvez não a das brancas. Aos 18<br />
anos, eu pouco imaginava que tudo aquilo<br />
poderia ser fruto de muita disciplina e<br />
muito tempo de trabalho. Eu saí de lá sabendo<br />
que tinha este exemplo na minha<br />
frente. Mas não imaginava que iria voltar<br />
para lá, muito menos que eu viraria assistente<br />
daquele distante e poderoso diretor,<br />
Eugenio Barba.<br />
Diretor feminino<br />
Estou muito interessada no diretor ou<br />
diretora feminino. Este é um termo que utilizamos<br />
dentro da Magdalena Project (uma<br />
rede internacional de mulheres que fazem<br />
teatro) para definir um tipo de diretor que<br />
procede através da escuta do material, reagindo<br />
ao que o ator cria, em vez de um<br />
diretor que predetermina tudo e usa o ator<br />
para realizar suas ideias.<br />
Quando fiz o meu pedido para a bolsa<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
de doutorado, escrevi que iria pesquisar o<br />
diretor/diretora feminina. Coloquei os nomes<br />
de três mulheres diretoras que eu ia<br />
estudar para elucidar esta pesquisa. Logo,<br />
logo descobri que o fato de ser homem ou<br />
mulher não tem nada a ver com ser um diretor<br />
feminino ou masculino. Descartei as<br />
três mulheres e fui estudar o processo de<br />
direção de um homem, porque o seu jeito<br />
de trabalhar me parecia fundamentalmente<br />
feminino. Trabalhei cinco anos como<br />
assistente de Eugenio Barba e escrevi meu<br />
doutorado sobre sua maneira de dirigir.<br />
No doutorado, tentei extrair princípios de<br />
prática do denso caos do quotidiano dos<br />
ensaios do Odin Teatret.<br />
ODIn TEATRET<br />
E EUGEnIO bARbA<br />
Para poder falar do trabalho do Eugenio<br />
como diretor do Odin é preciso falar<br />
não somente de suas ações dentro de sala<br />
e suas tendências estéticas e técnicas como<br />
diretor. É necessário esboçar uma imagem<br />
da vida de grupo dele como líder de pessoas<br />
entre os quais atores, técnicos, administradores,<br />
produtores, colegas intelectuais e<br />
parceiros políticos. Para poder manter um<br />
grupo por mais de 40 anos, com as mesmas<br />
pessoas trabalhando juntas, é necessário ter<br />
uma sabedoria que vai muito além da direção<br />
de um forte espetáculo. Com certeza,<br />
o que aprendi com ele como ser humano e<br />
como gerente de gente foi tão fundamental<br />
quanto o que aprendi como artista.<br />
Quando comecei a trabalhar no Odin,<br />
eu estava muito atrapalhada pelo fato de<br />
não falar dinamarquês, uma língua na<br />
qual demorei dois anos para conseguir<br />
distinguir onde acabava uma palavra e<br />
onde começava outra. Finalmente, dominando<br />
o dinamarquês, descobri que este<br />
grupo de pessoas, juntas a mais de 30 anos<br />
na época (hoje em dia há mais de 40 anos),<br />
não precisava de palavras para se comunicar.<br />
Todas as frases eram ditas pela metade,<br />
uma única palavra indicava um baú<br />
inteiro de referências e memórias do qual<br />
eu não fazia parte. Os integrantes do Odin<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
são verdadeiros tubarões, antigos guerreiros,<br />
e eu era um peixinho de aquário,<br />
tentando nadar junto, sem ser comida. Era<br />
uma vida um pouco estressante, mas muito<br />
estimulante.<br />
Éramos quatro jovens que entramos<br />
no grupo nesta época, eu, um outro assistente<br />
de direção e duas atrizes. Todos<br />
os jovens tinham um ator mais velho que<br />
era seu mentor. Eugenio não se responsabilizava<br />
diretamente por nenhum de nos.<br />
Julia Varley era a minha fada-irmã.<br />
No primeiro dia de ensaio, Eugenio<br />
falou longamente sobre o novo espetáculo.<br />
“Vamos trabalhar sobre a temática do<br />
mar”. Eugenio começou a dar os estímulos<br />
para as primeiras improvisações: “vocês<br />
são uma onda, cada um tem que estar em<br />
cena ou tocando na banda acompanhando<br />
a cena, vocês são velhos...” depois perguntou<br />
“como se mata um livro?”. Eu congelei<br />
um livro num gigante bloco de gelo, outros<br />
queimaram ou rasgaram livros, mas,<br />
no final, o livro do espetáculo ficou intacto,<br />
sem maiores atentados contra sua vida.<br />
Depois de um mês de improvisações coletivas,<br />
interrompemos para sair em tournée.<br />
Eu estava no Odin porque queria aprender<br />
a dirigir teatro, mas primeiro tive que<br />
aprender a dirigir um caminhão. Saímos<br />
em tournée pela Europa com um caminhão<br />
cheio de cenário. Os atores mais velhos iam<br />
de avião e a gente tinha dia marcado em<br />
cada país para chegar para a montagem.<br />
Assim conheci não somente o Leste Europeu<br />
pela primeira vez, mas também um<br />
palhaço brasileiro que estava fazendo seu<br />
mestrado em Londres e que, anos depois,<br />
viraria meu marido, Marcelo Beré, o Deus<br />
ex Machina que me levou para o Brasil.<br />
Depois de uma tournée de várias semanas,<br />
voltamos para Holstebro. Agora<br />
tudo mudou. Íamos trabalhar em cima do<br />
Livro da Selva de Kipling. Eu comprei o livro<br />
e fiquei muito feliz de ter algo concreto<br />
e compreensível para seguir. Mas logo<br />
o livro sumiu. Entendi que não é preciso<br />
começar um processo trabalhando sobre o<br />
que se vai acabar trabalhando. É preciso ter<br />
um estimulo para começar, uma desculpa,<br />
um trampolim, mas que o espetáculo pode<br />
Leo Sykes A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 61
<strong>Urdimento</strong><br />
62<br />
se transformar tanto no processo que as<br />
origens ficam totalmente enterradas. Isso<br />
não quer dizer que o material gerado na<br />
primeira etapa dos ensaios não foi aproveitado.<br />
Naquele momento, os ensaios coletivos<br />
foram repostos por ensaios individuais.<br />
Estávamos trabalhando com os contos<br />
de Andersen, com danças de Michael Jackson,<br />
com trigo...<br />
Os meses de ensaios seguiam por um<br />
ritmo simultaneamente vertiginoso e, ao<br />
mesmo tempo, terrivelmente repetitivo,<br />
com o acúmulo e modificação de detalhes.<br />
Cada ator tinha que lembrar muita informação,<br />
que cada dia mudava de uma forma<br />
bastante abstrata, ou talvez coreográfica:<br />
três passos para frente, vire a esquerda,<br />
olhe para baixo... Uma das minhas tarefas,<br />
que eu mesma inventei, pois nada concreto<br />
nunca me foi pedido como assistente, foi<br />
de anotar cada detalhe das ações dos nove<br />
atores em cada ensaio, assim criando um<br />
roteiro de ações. Tive que inventar uma<br />
maneira de anotar e comunicar estas informações.<br />
Essas anotações viraram a memória<br />
coletiva do grupo e, uma vez a cada<br />
três semanas, mais ou menos, eu fazia uma<br />
cópia para todo mundo.<br />
Mas eu precisava saber como eu poderia<br />
contribuir para este processo de uma<br />
forma mais ativa, eu precisava de um papel<br />
concreto e de ter a sensação de participação<br />
e não somente observação. Acho, na<br />
verdade, que o papel de assistente é muito<br />
passivo, criativamente, e isso ironicamente<br />
é o oposto de aquilo se deve ser como diretor.<br />
Eu não conseguia nem conversar com<br />
Eugenio, ele estava sempre ocupado. A Julia<br />
me falou, “pega ele na saída da reunião<br />
semanal”. Esta reunião é o único momento<br />
em que toda a equipe do Odin se reúne<br />
para dar noticias e fazer perguntas. São em<br />
torno de 20 pessoas (nove atores, Eugenio<br />
e a equipe de administração, produção e<br />
técnica). Quando finalmente acabou a reunião,<br />
Eugenio saiu rapidamente. Consegui<br />
alcançar ele no fundo do corredor. Juntei<br />
toda minha coragem e falei “Eugenio, preciso<br />
falar com você”. Ele me olhou, divertido<br />
e respondeu “será que não é melhor<br />
a gente marcar outra hora?” No que eu ia<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
protestar, percebi que, na pressa, eu tinha<br />
seguido ele até o banheiro e agora ele estava<br />
espremido contra uma parede, eu contra<br />
a outra e tinha uma privada entre nós.<br />
Eu fui ter a reunião com ele no seu escritório,<br />
mais tarde. Ele me falou que tinha<br />
três coisas que eu poderia fazer para ajudar.<br />
Eu aprontei meu caderno de anotações...<br />
"um... ter paciência, dois... ter paciência<br />
e três............ ter paciência.”<br />
Desisti de tentar ser uma boa assistente.<br />
Eu não estava agüentando mais, me<br />
senti invisível, como um moleque que joga<br />
pedrinhas contra as paredes de um imenso<br />
castelo medieval na esperança que o rei o<br />
deixe entrar. Decidi não mais tentar ajudar,<br />
mas provocar Eugenio. Se eu era um moleque,<br />
iria me comportar como um. Achei o<br />
ponto fraco do castelo: os adereços. Não tinha<br />
ninguém que os produzisse ou cuidasse<br />
deles. Cada ator fazia o que podia e só.<br />
No Odin, não tinha figurinista nem cenógrafo,<br />
mas estes dois elementos já estavam<br />
sendo produzidos, com os atores orientando<br />
uma costureira e Eugenio orientando os<br />
técnicos na montagem de uma cenografia<br />
muito simples de duas telas brancas, cada<br />
uma numa ponta do palco, e o público sentando<br />
dos dois lados do palco, como quase<br />
sempre nas produções do Odin.<br />
À noite, quando todos os atores iam<br />
para casa, eu pegava os adereços da sala<br />
e os transformava. No dia seguinte, eu os<br />
levava para dentro da sala com a pretensão<br />
de pelo menos ser percebida, talvez até<br />
de conseguir atingir o Eugenio de alguma<br />
forma e com a esperança muito distante de<br />
que finalmente alguma proposta minha,<br />
algum pedaço de mim, poderia entrar no<br />
processo de criação de Kaosmos.<br />
Para minha surpresa, descobri que os<br />
atores eram resistentes a esses novos adereços.<br />
Eu achei que eles iriam ficar felizes<br />
com as novas possibilidades que tinham.<br />
Eu tinha recortado um buraco nas páginas<br />
do livro da Iben, que ela tanto lia durante<br />
o espetáculo, dentro do buraco coloquei<br />
outro livro um pouco menor, e dentro dele<br />
um outro livro ainda menor, até chegar<br />
num livrinho minúsculo. Peguei a pá do<br />
Jan e coloquei uma corda de violão, assim,<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
cada vez que ele batia com a pá ela ressonava,<br />
um pouco como um berimbau. Enfeitei<br />
a casinha de sombras do Frans com palha.<br />
Mas os atores, que eu achava que iam ser<br />
meus colaboradores em mostrar as novidades<br />
para Eugenio, se mostrarem conservadores.<br />
Atores muitas vezes não gostam de<br />
mudanças. Não querem perder o domínio<br />
de algo conhecido para entrar no risco de<br />
novas possibilidades de erro e trabalho. Foi<br />
o próprio Eugenio que acolheu as novidades.<br />
Ele gostou de ser provocado.<br />
Todas as instruções que Eugenio dava<br />
eram modificações de improvisações que<br />
os atores tinham feito. Vendo o material<br />
do ator, o diretor começou a erguer as cenas.<br />
Eu tentava entender o que ele queria,<br />
o que ele estava pensando, para onde ele<br />
queria ir e como eu podia contribuir para<br />
o que ele estava querendo. Foi uma tarefa<br />
impossível. Depois de muito tempo, percebi<br />
que ele não sabia o que queria antes da<br />
coisa aparecer, ele não estava querendo ir<br />
numa certa direção, mas estava seguindo a<br />
direção da evolução dos ensaios. Ele era o<br />
capitão de um barco perdido na tempestade.<br />
Não importava saber para onde queria<br />
ir, importava saber lidar com as ondas e<br />
as correntes, que aos poucos ia nos levando<br />
para algum lugar. Era um ato de fé. Fé<br />
no diretor, fé na qualidade das ações dos<br />
atores e fé que os deuses do teatro iam nos<br />
abençoar com um espetáculo.<br />
O MEU TRAbALhO<br />
O fato de ter sido criada, profissionalmente,<br />
pelo Eugenio tem efeitos tão complexos<br />
e completos que eu o chamo de pai<br />
profissional. Pai porque ele me criou, porque<br />
sem ele eu realmente seria outra artista.<br />
E pai porque tive que rejeitá-lo para<br />
achar minha própria identidade. Eu fugi<br />
de casa, ou seja, do Odin, e comecei a trabalhar<br />
com um tipo de teatro bem diferente<br />
de tudo que eu tinha visto no Odin. Saí da<br />
Dinamarca, vim para o Brasil e comecei a<br />
trabalhar com os palhaços musicais do Circo<br />
Teatro Udi Grudi.<br />
O Circo Teatro Udi Grudi faz 30 anos<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
em 2012 e eu sou diretora do grupo há 14<br />
anos. Já viajamos mundos e fundos, 16 países<br />
pelo mundo afora e quase todos os estados<br />
brasileiros. Ganhamos prêmios nacionais<br />
e internacionais, tivemos patrocínio de<br />
manutenção da Petrobras e muitos outros,<br />
mas ainda assim, cada dia é uma batalha.<br />
Três dos fundadores ainda formam<br />
o cerne do time de atores; Luciano Porto,<br />
Marcelo Beré e Márcio Vieira. Quando cheguei<br />
no grupo, eu era a única mulher, única<br />
estrangeira, única que não conhecia todos<br />
desde a adolescência e única com um senso<br />
de disciplina.<br />
Quando comecei a trabalhar com o Udi<br />
Grudi, eu não tinha uma metodologia ou<br />
uma linha específica de trabalho. Eu só tinha<br />
uma grande experiência no Odin, algumas<br />
experiências de direção minhas e uma<br />
tendência pessoal para o cômico. Quando<br />
estes palhaços brasileiros me chamaram<br />
para dirigir eles me falaram “somos muito<br />
difíceis de dirigir”. A sala de ensaio era<br />
praticamente um campo de batalha, um<br />
conflito rico de estilos, atitudes e habilidades.<br />
Fui achando maneiras de lidar com o<br />
que estava na minha frente. Hoje, depois<br />
de tantos anos dirigindo o mesmo grupo de<br />
atores, posso refletir e tentar ver um pouco<br />
o caminho que desenvolvemos juntos.<br />
A formação dos palhaços do Udi Grudi<br />
foi no circo tradicional, eles sabem fazer<br />
malabares, acrobacia, trapézio, mágicas,<br />
cantar, dançar, tocar e representar. Ou seja,<br />
um pouco de tudo, e mais importante de<br />
tudo, sabem criar uma relação com o público.<br />
Márcio, além de palhaço, é luthier, ele<br />
inventa e constrói os nossos instrumentos<br />
musicais, e Luciano é palhaço-cenógrafo.<br />
Então, as nossas cenografias viram instrumentos<br />
e os instrumentos são também objetos.<br />
Tudo fica num processo de metamorfose.<br />
Acho que a linguagem que a gente foi<br />
desenvolvendo juntos ao longo dos últimos<br />
anos se calca em tudo isso. Eu vim<br />
com minha estética de teatro europeu,<br />
um senso de humor que nada tinha a ver<br />
com as piadas de circo tradicional brasileiro<br />
e minha desconfiança na palavra<br />
falada. Então mantivemos todas as técni-<br />
Leo Sykes A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 63
<strong>Urdimento</strong><br />
64<br />
cas que eles já tinham, mas modificamos<br />
a maneira de usá-las. Tiramos o conceito<br />
do virtuoso, da técnica como o auge do<br />
número, típica do circo tradicional, e começamos<br />
a transformar as técnicas.<br />
Malabares não podiam ser simples<br />
malabares, mas a técnica podia ser usada<br />
para outros efeitos, como os canos que<br />
voam através do palco no começo do espetáculo<br />
Cano ou as verduras que são puxadas<br />
da terra e jogadas na peça Devolução<br />
Industrial. Acrobacia agora usamos para<br />
cair, para entalar, para aparecer de repente.<br />
Mágicas não são mais números feitos<br />
de cartola e com truques comprados em<br />
loja de mágica, pegamos o conceito do<br />
mágico, da surpresa, do inesperado e do<br />
impossível e usamos isso: homens que<br />
caem e somem dentro de um barril, plantas<br />
que surgem do nada quando derramamos<br />
água, plástico comestível, fogo que<br />
aparece de dentro de uma bacia vazia.<br />
Os palhaços do circo tradicional<br />
são contadores de piadas e de casos e a<br />
brincadeira com a palavra é muito forte.<br />
Mas para mim, que na época mal entendia<br />
o português, só via uns caras parados<br />
falando pelos cotovelos e não fazendo<br />
nada. Tiramos a palavra e colocamos<br />
ações e imagens.<br />
Utilizamos a música como cena e não<br />
como um elemento de fundo musical ou<br />
momento entre uma cena e outra como é<br />
usado no circo tradicional e muitas vezes<br />
no teatro também.<br />
Chegamos numa estética do minimalismo<br />
útil. Temos grandes cenários e instrumentos<br />
musicais, mas tudo que está em<br />
cena tem que ser usado e transformado.<br />
Não tem nada decorativo, redundante ou<br />
estático. Na Devolução Industrial, levamos<br />
esta idéia ao extremo, usando a idéia de<br />
evolução para ir transformando o que está<br />
em cena, e isso é a trama do espetáculo.<br />
O ATOR-fAZEDOR<br />
Numa tentativa de evitar o ator-fingidor<br />
e o ator-falador, trabalho com a idéia<br />
do ator-fazedor. Somos pedreiros.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
No meu trabalho, vou edificando<br />
tudo como uma mestre-de-obras. Preciso<br />
de bons tijolos para construir fortes paredes<br />
para poder desenvolver uma arquitetura<br />
única, harmônica e viva.<br />
O trabalho é baseado numa dinâmica<br />
de reação. Eu dou um estímulo aos atores,<br />
eles criam material através de improvisações<br />
e juntos formamos tijolos deste material.<br />
Um tijolo é um pequeno núcleo de<br />
ações, ou até uma ação só, que eles podem<br />
repetir com precisão e que eu posso usar<br />
como um frame no meu filme. Estes tijolos<br />
que vão definir que tipo de parede vou<br />
construir. Eu muito raramente sei o que<br />
vou fazer antes de ver o material.<br />
Na junção do material, tenho que decidir<br />
qual material vamos juntar, que tipo de<br />
parede vamos construir e depois que tipo<br />
de edifício estas paredes deveriam constituir.<br />
Geralmente, faço um primeiro esboço<br />
do espetáculo, tento perceber o que há de<br />
não harmonioso, de fraco, de perigoso, de<br />
monótono, etc. e modifico a estrutura uma<br />
vez. Depois disso, não trabalhamos mais<br />
com a construção de cenas inteiras, mas<br />
com a qualidade do cimento, a massa corrida,<br />
a tinta, a colocação de janelas e portas.<br />
A massa corrida e a tinta não são elementos<br />
decorativos, são elementos que criam a<br />
harmonia e emenda entre um tijolo e outro.<br />
Ou seja, o que faz com que cenas avulsas<br />
venham a constituir um espetáculo.<br />
Os tijolos<br />
O material inicial do ator teria que<br />
ser vivo e aberto. Vivo, porque tem algo<br />
nele que me instiga, que atrai a atenção e<br />
sugere imagens. Aberto, porque o sentido<br />
do que ele faz não está fechado numa<br />
leitura só.<br />
Geralmente, no Udi Grudi, construímos<br />
os nossos tijolos, ações, usando objetos.<br />
A presença física do objeto obriga o<br />
ator a fazer coisas de verdade. Não pode<br />
fingir carregar um cano; se o cano está, tem<br />
que carregar mesmo. Depois posso até tirar<br />
o cano e manter só a ação, mas é uma<br />
ação que não tem nada de mimética ou re-<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
presentativa.<br />
Neste momento, o diretor tem que decidir<br />
em qual direção vai, qual sentido vai<br />
dar àquela ação, qual sensação quer que o<br />
público tenha e como esta ação vai se juntar<br />
as outras ações, sejam físicas, vocais,<br />
imagéticas, musicais etc. A criação do material<br />
é o momento de mais pura liberdade<br />
do ator, todo o material vale, nenhum<br />
material de construção está sendo descartado,<br />
pelo contrário, nesta fase, tenta-se<br />
adquirir os materiais mais diversos.<br />
O Cimento<br />
Na hora de colocar um pedaço de material<br />
junto a outro, acontecem duas coisas.<br />
Uma é que um tem que grudar bem<br />
no outro, eles têm que virar uma coisa só.<br />
Para conseguir isso, tem que modificar os<br />
dois pedaços de material. Neste momento,<br />
o diretor modifica o ritmo, o comprimento,<br />
a intensidade, o foco de cada pedaço<br />
para que a junta possa ser ao mesmo tempo<br />
forte e imperceptível. Agora a ação,<br />
que claramente pertencia a um ator, vira<br />
propriedade coletiva e, às vezes, é modificada<br />
para ressaltar mais outra ação. Isso<br />
causa um conflito entre diretor e ator. Outro<br />
ponto de conflito é que agora se começa<br />
a perceber quais ações, idéias ou cenas<br />
vão ser descartadas.<br />
Massa Corrida<br />
A massa corrida é, muitas vezes, a<br />
coisa à qual menos damos atenção, botando<br />
ela ali com a única intenção de esconder<br />
emendas. Pode ser uma música que<br />
começa numa cena e vai para outra, pode<br />
ser somente um ator que fica na cena passada<br />
enquanto os outros já estão na próxima<br />
cena. Mas depois, ao longo do tempo,<br />
quando o grosso do espetáculo não nos<br />
ocupa tanto mais, a massa corrida é algo<br />
que requer mais atenção para que ela realmente<br />
emende uma coisa na outra. Às<br />
vezes, ela até cresce e vira quase uma cena<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
em si, de tão interessante que fica. A panela<br />
de pressão na Devolução Industrial saiu de<br />
estado de emenda para virar cena. O som<br />
do vapor saindo era um problema técnico,<br />
porque não acabava no final da cena e ficava<br />
atrapalhando a próxima cena. Então,<br />
colocamos um tempo no qual a atriz, Joana<br />
Abreu, canta uma música de ninar e derrama<br />
água sobre a panela. Aos poucos, a panela<br />
vai se acalmando, até que dá para tirar<br />
a tampa e começar a próxima cena.<br />
Uma vez pronta a nossa construção, temos<br />
que olhar para ela como um todo e nos<br />
perguntar se está harmônica, se está interessante,<br />
se está forte, se está dinâmica. O<br />
charme de passear naqueles povoados antigos<br />
da Europa é a quantidade de surpresas<br />
arquitetônicas que nos esperam a cada<br />
esquina. Os nichos, os chafarizes, as janelas<br />
das cantinas, as portas semi-abertas. Temos<br />
que levar o público adiante através da sua<br />
curiosidade de virar aquela esquina, espiar<br />
aquela janela, entrar por aquela porta. Assim,<br />
são eles que mandam o espetáculo se<br />
revelar através de sua curiosidade.<br />
Saber Cortar<br />
Eugenio sempre diz, “Corte seus queridinhos”.<br />
Para manter esta curiosidade, não<br />
só temos que saber construir surpresas, mas<br />
também saber ter a crueldade necessária<br />
para tirar cenas que não funcionam. Apesar<br />
de todos terem suado muito para construílas,<br />
algumas cenas não funcionam, ou pela<br />
própria qualidade, ou pelo contexto que<br />
não precisa dela. Essa crueldade faz os atores<br />
odiarem o diretor momentaneamente,<br />
mas depois, se formos sábios, vão ver na reação<br />
do público que o espetáculo ficou bom<br />
sem aquela cena, ou ação. E se não conseguem<br />
se conformar, vão tentar re-colocar a<br />
ação enquanto o diretor está impedido de<br />
reagir, ou seja, durante a apresentação, e às<br />
vezes a ação inicialmente retirada, de repente,<br />
acha uma nova maneira de compor<br />
com a cena e agora funciona melhor. Às vezes,<br />
o material cortado pode até reaparecer<br />
em outro espetáculo, porque muitas vezes<br />
Leo Sykes A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 65
<strong>Urdimento</strong><br />
66<br />
não é o material em si que não funciona,<br />
mas o contexto que não precisa dele.<br />
Os meus atores me consideram uma<br />
cruel açougueira que vive com a faca na<br />
mão. Durante os últimos ensaios do Cano,<br />
desenvolvi uma técnica para me proteger<br />
da raiva deles. Um dia, eu sabia que eu tinha<br />
que cortar uma cena inteira e que eles<br />
iriam ficar muito chateados. Cheguei no<br />
ensaio com umas daquelas balinhas bem<br />
grudentas. Eles estranharam muito a minha<br />
gentileza, mas aceitaram as balinhas.<br />
No que os dentes deles grudaram eu falei<br />
“gente, sabe aquela cena do canudinho,<br />
vamos ter que cortar”. Eles começaram a<br />
mastigar desesperadamente para poder<br />
reclamar, faíscas de pânico saíam dos seus<br />
olhos e eles se olhavam como quem estivesse<br />
organizando uma revolta, mas, os segundos<br />
que demorou para mastigar e engolir<br />
a balinha foram tempo suficiente para<br />
a raiva deles se dissipar, e consegui fazer<br />
o corte sem maiores brigas. Hoje em dia,<br />
se eles me vêem chegando com balinha, já<br />
vão falando: “aí vem o corte”. Na Devolução<br />
Industrial, até mandei o corte de uma cena<br />
por email para os atores, assim não só ia<br />
passar um tempo antes de me verem, mas<br />
iam receber a informação sozinhos e não<br />
teriam o imediato apoio um do outro. Não<br />
houve reclamações.<br />
Mas a maior cena que foi tirada de<br />
um espetáculo meu foi no Cano e não foi<br />
tirada por mim, mas por um dos atores<br />
no dia da pré-estréia. Ele simplesmente<br />
esqueceu a cena e começou a tocar a música<br />
da cena seguinte. Os outro atores<br />
ficaram horrorizados, mas foram obrigados<br />
a seguir em frente. O espetáculo<br />
fluía como nunca tinha fluído antes. A<br />
cena, cortada inconscientemente por um<br />
ator, nunca mais voltou.<br />
COMO COnSTRUIR COMICIDADE<br />
É muito importante a idéia da construção<br />
quando se fala em comicidade, porque<br />
de cara se entende que é uma coisa que não<br />
nasce já assim, mas que pode ser alcançada<br />
através de um certo trabalho. Pedir<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
para um ator fazer algo engraçado, ou de<br />
tentar imaginar uma cena engraçada não<br />
costumam ser atividades muito frutíferas.<br />
É claro que existem cenas, idéias, matérias<br />
que já nascem engraçadas, mas isso é quase<br />
uma questão de sorte ou de benção incontrolável,<br />
então, não considero interessante<br />
em termos pedagógicos ou metodológicos.<br />
Existem maneiras pelas quais, aos poucos,<br />
pode-se construir e modificar material até<br />
ele ficar cômico. De cara, isso já alivia todos,<br />
ninguém tem que ser um simples gênio<br />
da comicidade.<br />
Aliás, até os gênios da comicidade<br />
trabalham com a construção. Charles<br />
Chaplin conta como ele montou seu personagem<br />
na sala de figurinos do estúdio,<br />
colocando peça depois de peça da roupa<br />
até, de repente, nascer o Carlitos. Depois<br />
os filmes passaram por um processo de<br />
germinação. Ele não tinha uma história<br />
que preenchia com gags, ele começava<br />
com alguma gag que, ao ser elaborada,<br />
gerava a história do filme.<br />
OPERSOnAGEM<br />
CÔMICO E O CLOwn<br />
Tem duas linhas de trabalho quando<br />
se pensa em comicidade teatral. Uma é<br />
a do personagem cômico e a outra é a do<br />
clown. Tem muitas discussões sobre a diferença<br />
entre o clown e o palhaço, eu não<br />
vejo diferença e acho que cada um usa a<br />
palavra clown ou palhaço dependendo<br />
do seu grau de intimidade com inglês.<br />
Mas, para mim, tem uma grande e importantíssima<br />
diferença entre o clown e o<br />
personagem cômico. Na minha definição,<br />
a diferença é entre um processo autoral<br />
de criação de um personagem – e aqui o<br />
ator pode seguir processos conhecidos<br />
como mímesis, uso de máscaras etc., e<br />
o clown, que trabalha na direção oposta<br />
da construção de um personagem, tira as<br />
máscaras, revela o escondido da própria<br />
pessoa. O clown é o trabalho mais pessoal,<br />
individual e subjetivo que já vi. O<br />
treino do clown parece ser no palco. É<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
difícil ver um clown que treina, igual um<br />
ator se treina, fora do contexto público. É<br />
quase como se aquele estado dependesse<br />
do fato de ser visto, da interação com<br />
público, para estar presente. Tanto é que<br />
os clowns treinam muito as gags, músicas,<br />
mas dificilmente conseguem trabalhar<br />
exatamente em cima da questão de<br />
sua própria comicidade sem a presença<br />
de pelo menos uma pessoa, ou algo, para<br />
reagir. Eu digo algo, porque já vi Marcelo<br />
Beré, com seu clown Gorgônio, trabalhando<br />
na rua e usando cachorros transeuntes<br />
como seus parceiros.<br />
Os aquecimentos do clown e do ator<br />
são bem diferentes e mostram a diferença<br />
de culturas entre um estado de ser e o<br />
outro. O ator aquece a voz e o corpo antes<br />
do espetáculo, se concentra em preparar<br />
o seu organismo para manifestar o<br />
personagem. O clown, enquanto se veste<br />
no camarim, já começa a se comportar<br />
diferentemente, começa a falar e se comportar<br />
como este ser que a pessoa é na<br />
hora que se veste daquele jeito. Fuma<br />
um cigarro, fala besteira, brinca com os<br />
faxineiros atrás das cenas, ele entra no<br />
estado de ser e parece pouco concentrado<br />
na questão do espetáculo em si, porque<br />
já está perdido no estado de ser que,<br />
por acaso, em seguida vai se contextualizar<br />
nas cenas que o público percebe<br />
como espetáculo.<br />
O clown existe fora do contexto do espetáculo,<br />
podendo ir para a rua, atuar em<br />
vários espetáculos. O personagem cômico<br />
já tem uma tendência mais forte de dependência<br />
do contexto e das ações executadas.<br />
Se pedir para ele sair do espetáculo,<br />
ele não existe. O essencial do clown é sua<br />
maneira de pensar. Tem a ver com uma<br />
lógica ilógica, uma execução anti-eficaz,<br />
uma ingenuidade safada, um estar correto<br />
no erro.<br />
Nós diretores também temos que achar<br />
um pensamento paralelo para nos ajudar a<br />
perceber e estimular o cômico, pois nos diretores<br />
de clowns somos parteiros de deliciosas<br />
faíscas intangíveis do absurdo, da<br />
surpresa e do prazer.<br />
Leo Sykes, brasília, Outubro 2011<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Leo Sykes é doutora em teatro pela<br />
Universidade de Warwick, diretora do Circo<br />
Teatro Udi Grudi no Brasil há 14 anos e<br />
diretora convidada do Teatret OM na Dinamarca<br />
há 21 anos. Trabalhou 5 anos como<br />
assistente de direção do Eugenio Barba, diretor<br />
do Odin Teatret. Alem de dirigir espetáculos<br />
teatrais escreve roteiros e artigos<br />
para revistas de teatro e dirige filmes. É<br />
também diretora do Encontro de Diretores,<br />
evento organizado pelo Circo Teatro Udi<br />
Grudi.<br />
Leo Sykes A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 67
PEDAGOGIA DO TEATRO<br />
Odisseia (2011) Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Paulo Balardim. O barco de Odisseu navega entre serias. FOTO: Nina Medeiros.
N° 18 | Março de 2012<br />
Resumo<br />
A Ferida Woyzeck foi encenada no Curso de Licenciatura<br />
em Teatro da UNISO – Universidade de Sorocaba e faz parte<br />
das pesquisas na área de Pedagogia do Teatro, que investiga<br />
procedimentos didáticos e artisticos, fundamentais àqueles<br />
que pretendem trabalhar com o ensino e a aprendizagem<br />
teatral, seja em ambientes escolares ou em espaços culturais<br />
onde o teatro se faz presente.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Teatro; Dramaturgia; Pedagogia do Teatro; Coro<br />
Resumo<br />
Ferida Woyzeck was performed by students of the Theatre<br />
Teaching Degree of UNISO – University of Sorocaba. It was part of<br />
a research in the field of Theatre Pedagogy centred on investigations<br />
about didactict and artistic procedures required by those who intend<br />
to work with theatre teaching and learning processes, whether in<br />
schools or cultural spaces.<br />
KEywORDS: Theatre; Dramaturgy; Theatre Pedagogy; Choir<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
TEATRO DE FIGURAS ALEGÓRICAS:<br />
A FERIDA WOYzEK 1<br />
Ingrid Dormien Koudela 2<br />
1 Essa apresentação, coordenada por Ingrid Dormien Koudela, se inspirou na publicação de textos de Büchner “Na Pena<br />
e na Cena”, Ed. Perspectiva, 2004.<br />
2 Professora aposentada da ECA/USP e tradutora, com inúmeros trabalhos teóricos e práticos sobre a Pedagogia Teatral,<br />
a partir das propostas de Viola Spolin e principalmente de Bertolt Brecht.<br />
TEATRO DE FIGURAS ALEGÓRICAS: A FERIDA WOYzECK 71
<strong>Urdimento</strong><br />
O<br />
Teatro de Figuras Alegóricas, desenvolvidas<br />
na UNISO, propõe a<br />
possibilidade de criar encenações<br />
que rompam com a forma linear<br />
de contar histórias. A história<br />
é apresentada de maneira fragmentada,<br />
alinhando quadros de cenas que buscam<br />
romper o limite entre o palco e a platéia.<br />
Na encenação de A Figura Woyzeck a opção<br />
pedagógica e estética dialoga com cantigas<br />
de roda dançadas, criando uma inusitada<br />
relação entre o texto de Büchner e a cultura<br />
popular brasileira. Trata-se de um teatro<br />
no qual a coreografia, a pantomima, o canto<br />
e o texto são articulados na estruturação<br />
das cenas. A encenação de A Ferida Woyzeck<br />
utiliza o coro, alegorizando assim os personagens.<br />
Através do gesto e da palavra<br />
estendidos, o coletivo constrói o Gestus da<br />
experiência da coisificação, na qual o corpo<br />
é visto em seu presente de dissolução.<br />
De acordo com Sábato Magaldi (Magaldi,<br />
1963, p. 23):<br />
72<br />
Admiramos muitas peças e muitos<br />
personagens. Reconhecemos intelectualmente<br />
a genialidade de muitas<br />
obras. A Woyzeck, ama-se, como<br />
a um semelhante. Sem ser profeta,<br />
pode-se imaginar que, no futuro, ele<br />
encarnará uma nova mitologia – a<br />
mitologia de nosso tempo.<br />
O drama de farrapos, na feliz expressão<br />
cunhada por Anatol Rosenfeld é uma obra<br />
que se oferece ao encenador e aos atuantes<br />
desfazendo as perspectivas de tempo<br />
e espaço. As cenas podem ser deslocadas<br />
e rearranjadas em novo continuo. Cada<br />
cena representa um momento substancial<br />
que encerra variados aspectos do mesmo<br />
tema – o desamparo de Woyzeck que se<br />
agita e contorce enredado no labirinto do<br />
mundo, balbuciando toscamente em seu<br />
desespero mudo.<br />
Mais do que buscar uma solução prévia<br />
para o arranjo das cenas, com vistas à<br />
leitura e representação nos termos comumente<br />
realizados pelos diferentes editores<br />
da obra, a escritura buchneriana talvez<br />
devesse ser considerada, quanto ao<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
modo de estruturá-la, no sentido em que<br />
Brecht (Brecht, BBGW vol.18, p.10; tradução<br />
minha) colocou a questão:<br />
É permitido perguntar se o esboço<br />
de uma peça deve ser representado<br />
quando ela existe em forma mais<br />
completa. É permitido responder<br />
que por si só a grande importância<br />
do complexo textual, no caso do<br />
Fausto justifica a encenação do Ur-<br />
Faust (Primeiro Fausto). Mas existe<br />
ainda uma outra justificativa. O Ur-<br />
Faust tem vida própria. Pertence,<br />
juntamente com o Robert Guiskard,<br />
de Kleist e o Woyzeck de Büchner a<br />
um gênero muito especial de fragmentos.<br />
Eles não são incompletos,<br />
porém obras de arte feitas na forma<br />
de esboços.<br />
A influencia de Heiner Müller se fez<br />
presente na encenação de A Ferida Woyzeck,<br />
através das provocações radicais de<br />
seu universo reflexivo e poético que figura<br />
como referencia do teatro pós-dramatico.<br />
No programa anunciamos um comentário<br />
sobre o Woyzeck que deu o titulo à<br />
encenação. Nas palavras de Heiner Müller<br />
(Müller, 1990 p. 114, tradução minha):<br />
Woyzeck é a ferida aberta. Woyzeck<br />
vive onde o cachorro está enterrado,<br />
o cachorro chama-se Woyzeck.<br />
Esperamos a sua ressurreição com<br />
medo e/ou esperança. Que ele volte<br />
como lobo. O lobo vem do sul.<br />
Quando o sol está no zênite, quando<br />
se torna uno com a nossa sombra,<br />
inicia a hora da incandescência, a<br />
história. Somente quando a história<br />
acontece vale a pena a decadência<br />
coletiva na geada da entropia ou,<br />
abreviado politicamente, no raio<br />
atômico que é o fim das utopias e<br />
será o inicio de uma realidade para<br />
além do homem.<br />
A tradição do fragmento remonta, na<br />
literatura alemã, a Schlegel e Novalis. Visto<br />
por Schlegel como uma pequena obra<br />
de arte a estender, qual um ouriço, seus<br />
espinhos críticos e provocadores em todas<br />
Ingrid Dormien Koudela<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
as direções, e por Novalis como projeto,<br />
conotando a idéia de espontaneidade e<br />
não acabamento, o fragmento é potencialmente<br />
uma semente literária, estimulando<br />
também o leitor a refazer ou levar adiante<br />
o ato de reflexão. A estética do fragmentário<br />
está, por sua vez, ligada a critica do otimismo<br />
do progresso, e se processa dentro<br />
dos horizontes do materialismo histórico,<br />
nas obras de Bloch, Adorno, Horkheimer<br />
e Benjamin. A montagem moderna de<br />
fragmentos é vista como reflexo da desordem<br />
real, permitindo uma visão critica da<br />
totalidade.<br />
De acordo com Röhl (Röhl, 2006) o<br />
trabalho com o fragmento tem para Muller,<br />
várias funções. Uma delas, de grande<br />
importância, é a de impedir a indiferenciação<br />
das partes numa totalidade e<br />
ativar a participação do espectador. Na<br />
verdade, trata-se de uma continuação radicalizada<br />
do teatro praticado por Brecht,<br />
visando igualmente a uma abertura para<br />
efeitos, de forma a evitar que a história<br />
se reduza ao palco. O fragmento tornase<br />
produtor de conteúdos, abrindo-se à<br />
subjetividade do receptor, correspondendo<br />
ao que Muller chama de espaços livres<br />
para a fantasia, em sua opinião uma tarefa<br />
primariamente política, uma vez que age<br />
contra clichês pré-fabricados e padrões<br />
produzidos pela mídia.<br />
O trabalho com o fragmento provoca a<br />
colisão instantânea de tempos heterogêneos,<br />
possibilitando a revisão critica do presente<br />
à luz do passado.<br />
Os Jogos Teatrais de Viola Spolin tiveram<br />
neste contexto de formação de professores<br />
um papel fundamental para o desenvolvimento<br />
de habilidades de processo.<br />
A partir da experimentação com os jogos<br />
teatrais e do confronto com o texto buscouse<br />
construir a autonomia do grupo e a sua<br />
leitura do fragmento de Büchner.<br />
A capacidade imaginativa desenvolvida<br />
no jogo oferece um número muito<br />
maior de hipóteses do que aquelas que a<br />
realidade física nos permite experimentar.<br />
Característica antropológica mais marcante<br />
do homem, o jogo é o núcleo incan-<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
descente para a capacidade de exercitar o<br />
convívio e construir significados através de<br />
experimentos de caráter lúdicos e estéticos<br />
de teatro.<br />
Os eixos de aprendizagem do jogo<br />
teatral como foco, instrução e avaliação formaram<br />
a base metodológica do processo.<br />
A instrução, que é um comando dado pelo<br />
coordenador enquanto o jogo está em movimento,<br />
possibilitou o direcionamento do<br />
processo em função do texto a ser experimentado<br />
pelo grupo. A avaliação, realizada<br />
sistematicamente após o término do jogo<br />
às vezes era feita com os jogadores na platéia<br />
e outras, quando o grupo todo estava<br />
envolvido na cena, simplesmente em roda<br />
através de perguntas colocadas pelo coordenador.<br />
O acento do foco do jogo teatral foi a<br />
construção de uma atitude neutra em cena.<br />
Os Jogos de Espelho e Siga o Seguidor (Spolin,<br />
2008) permearam todos os ensaios instaurando<br />
o processo colaborativo no grupo.<br />
Neste sentido, as cantigas de roda auxiliaram<br />
na construção das relações de parceria<br />
entre os atuantes e foram elaborados como<br />
material cênico para a construção do produto<br />
apresentado para a platéia.<br />
Outro foco enfatizado na experimentação<br />
com o grupo foi o espaço (Onde) com<br />
suas inúmeras variantes. A apresentação<br />
se deu em um espaço de arena. A cenografia<br />
da encenação era constituída através do<br />
objeto no espaço (Spolin, 2008), sendo que<br />
atitude corporal e linguagem gestual eram<br />
configuradas pelos atuantes que criavam<br />
o espaço imaginário da tenda, do quarto,<br />
do pântano etc. Também os personagens<br />
foram construídos através de jogos teatrais<br />
que tinham o quem como foco. Jogos como<br />
Quem sou eu? (Spolin, 2008) que mantém<br />
embutido o principio da charada foram<br />
fundamentais para a criação dos coros de<br />
Woyzeck e Marie. Nascidos destas relações<br />
de jogo foi possível realizar com o grupo<br />
de vinte e oito atuantes uma encenação que<br />
classificamos como singela, mas que guardava<br />
a pulsão do jogo na qual teve origem.<br />
A encenação de A Ferida Woyzeck partiu<br />
de uma busca nas pistas de linguagem<br />
oferecidas pelo próprio texto. O confronto<br />
TEATRO DE FIGURAS ALEGÓRICAS: A FERIDA WOYzECK 73
<strong>Urdimento</strong><br />
74<br />
de Woyzeck com seus superiores, representantes<br />
dos estratos sociais dominantes,<br />
é indicado pelos vários padrões de linguagem<br />
utilizados por Büchner. Enquanto o<br />
Capitão, o Médico e o Professor empregam<br />
com moderação o dialeto de Darmstadt,<br />
as personagens populares falam o dialeto<br />
puro: Woyzeck, Marie, Margareth, Karl,<br />
avó crianças. Woyzeck, soldado e barbeiro,<br />
faz a barba do Capitão tagarela e bitolado.<br />
O Médico, o Tambor-mor e o Capitão podem<br />
dar ordens a Woyzeck, enquanto a<br />
este só é dado cumpri-las sem manifestar<br />
vontades.<br />
Surpreende a inserção de versos e cantigas<br />
populares inseridas por Büchner nas<br />
várias versões do fragmento. Foi com o<br />
intuito de expandir esse gesto presente no<br />
texto que trabalhamos inicialmente com<br />
cantigas de roda no processo da encenação.<br />
Essas cantigas viriam a substituir os<br />
versos alemães por referencias populares<br />
brasileiras sendo que o canto, os versos e a<br />
dança introduziam e faziam o comentário<br />
das cenas.<br />
Woyzeck sucumbe sob o peso de um<br />
universo cujos mistérios não consegue<br />
apreender nem articular e em relação ao<br />
qual sua ação nada pode, estando à mercê<br />
de forças que o manipulam como os fios a<br />
um títere. Esta visão do ser humano, que<br />
o converte em fantoche e automatiza a sua<br />
atuação, imprime-lhe, pela perda das modulações<br />
e mecanização de suas ações, uma<br />
feição grotesca. Mas neste viés, Woyzeck<br />
é acompanhado tanto pelo Capitão como<br />
pelo Doutor e pelo Tambor-mor, personagens<br />
construídas com perfis esquemáticos<br />
e que vivem, cada qual, em função de<br />
suas idéias fixas. Woyzeck atravessa a peça<br />
em agitação desesperada, contorcendose<br />
como um boneco suspenso nas cordas.<br />
Corre pelo mundo como uma navalha aberta.<br />
Vendo-o chispar pela rua, seguido aos<br />
pulinhos pelo Doutor, o magro pelo gordo,<br />
o Capitão exclama às gargalhadas: Grotesco!<br />
Grotesco!<br />
O elemento grotesco, tão presente no<br />
texto, foi explorado de variadas formas. Os<br />
personagens do Doutor e do Capitão foram<br />
encenados através de máscaras, acentuan-<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
do o Gestus da dominação do pobre e coitado<br />
Woyzeck, submetido aos experimentos<br />
medicinais e à exploração. O ventríloquo,<br />
sugerido por Büchner, foi expandido através<br />
da construção de um boneco (Jaime Pinheiro,<br />
também responsável pelo figurino<br />
da encenação) que recebeu o apelido de Sir<br />
Woyzeck e acompanhava a encenação do<br />
coro de quatorze Maries e onze Woyzecks<br />
sentado em poltronas destinadas à platéia<br />
do teatro, ao lado do Pregoeiro, do Charlatão<br />
(e do Bobo), anunciados pelo nosso<br />
autor na cena Tendas, Luzes, Povo (3). Essa<br />
cena, em nossa releitura do texto, recebeu<br />
o titulo de Prólogo. O coro de Maries e<br />
Woyzecks foi a forma encontrada para a<br />
alegorização das personagens. Através do<br />
gesto, do canto e da palavra estendidos, o<br />
coletivo dos atuantes construiu o Gestus<br />
da experiência da coisificação. Na nossa<br />
cena final, o Epilogo, o Charlatão, o Pregoeiro,<br />
o Bobo e Sir Woyzeck levantavam<br />
das poltronas para fazer o comentário das<br />
cenas mostradas pelo coro:<br />
BOBO: Um bom assassinato, um<br />
autêntico assassinato, um belo assassinato,<br />
mais belo como não se<br />
poderia desejar, faz tempo que não<br />
tínhamos nada igual.<br />
PREGOEIRO: No mundo não há<br />
permanência, todo devemos morrer,<br />
disso sabemos muito bem. Pobre<br />
homem, velhinho! Pobre criança!<br />
Criancinha! Preocupações e festas!<br />
CHARLATÃO: Um homem precisa<br />
ser também tolo por entender, para<br />
que possa dizer: mundo tolo, mundo<br />
bonito!<br />
O Bobo, um personagem do fragmento<br />
que tem algumas falas esporádicas, também<br />
foi expandido, sendo que a atriz (Fernanda<br />
Brito) que fazia o papel pesquisou<br />
falas de Bobos em Shakespeare as quais foram<br />
inseridas em algumas cenas. O resultado<br />
era um comentário caustico dos acontecimentos<br />
como o assassinato de Marie.<br />
Nas culturas teatrais ancestrais a fala<br />
é parte indissolúvel de uma expressão que<br />
Ingrid Dormien Koudela<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
engloba a palavra, o canto e a dança. No<br />
mimos grego existiam formas de teatro improvisacional<br />
que utilizavam a fala cotidiana.<br />
A partir destas tradições deriva a fala<br />
em versos do teatro clássico de Büchner a<br />
Brecht e Heiner Müller que devem ser creditados<br />
à forte ligação do teatro europeu<br />
com a literatura teatral, mas também com<br />
a fala cotidiana até ao extremo das várias<br />
formas de teatro improvisacional na história<br />
do teatro até a década de setenta. A<br />
Peça Didática de Brecht e o jogo teatral<br />
desenvolvido a partir desta dramaturgia<br />
mostram uma relação dialética entre a fala<br />
gestual (Gestische Sprache) dos originais<br />
brechtianos e as inserções de variantes de<br />
invenção própria criados pelos coletivos de<br />
atuantes em oficinas de criação.<br />
A primeira frase do Evangelho de João<br />
reza (...) no inicio era a palavra. No Fausto<br />
de Goethe encontramos (...) no inicio era o<br />
ato. Ou seja, no processo da fala o ato adquire<br />
primazia. A fala se baseia, portanto<br />
em ações em determinadas situações e<br />
contextos de significados ao mesmo tempo<br />
em que por si só possui a qualidade de<br />
ser ação. Este aspecto actancial da fala é de<br />
grande importância em todo evento cênico<br />
e em especial quando a teatralidade recorre<br />
a textos literários. Pois a fala em cena não<br />
é de forma alguma a enunciação correta ou<br />
bem sucedida de um texto literário. As palavras<br />
necessitam ser antes de faladas, pensadas<br />
e percebidas de novo para serem ancoradas<br />
novamente na ação. Elas precisam<br />
ser novamente vividas.<br />
Este caminho é indicado pelas teorias<br />
de interpretação, através de diferentes<br />
abordagens. Stanislavski introduz o conceito<br />
de sub-texto através do qual nasce<br />
o sentido da obra. Brecht vê a fala como<br />
instrumento da ação. Através do conceito<br />
de linguagem gestual (Gestische Sprache)<br />
Brecht acentua que toda fala é uma<br />
ação dos homens entre os homens. Uma<br />
questão fundamental para todo enunciado<br />
através da fala é, portanto o que move<br />
aquele que atua e de que forma interage<br />
com o outro.<br />
A fala caminha por atalhos tanto quan-<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
do parte de textos literários como quando<br />
se trata de repetições de falas que nascem<br />
do teatro improvisacional. Estes atalhos<br />
podem partir de modelos de ação (Handlungsmuster,<br />
Koudela, 1991) prefigurados no<br />
teatro dramático, narrativo e/ou poético,<br />
mas retornam para o espaço do sentir, do<br />
pensar e principalmente da fisicalização<br />
que incorpora as motivações e impulsos de<br />
ação. É somente a partir destes muitos atalhos<br />
de experimentação no jogo que o modelo<br />
literário assume a dimensão de uma<br />
ação, de uma atitude, de um gesto – a corporificação<br />
de uma intenção.<br />
TEATRO DE FIGURAS ALEGÓRICAS: A FERIDA WOYzECK 75
<strong>Urdimento</strong><br />
76<br />
REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS:<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
BRECHT, BERTOLT Gesammelte Werke, Frankfurt: Suhrkamp, 1967.<br />
Brecht, Bertolt Aus den Notizbüchern 1920-26. Zur Literatur und Kunst, BBGW 18-10.<br />
GUINSBURG, J. e KOUDELA, I.D. Georg Büchner. Na Pena e na Cena SP: Ed. Perspectiva,<br />
2004.<br />
KOUDELA, INGRID D. HEINER MÜLLER. O Espanto no Teatro (org) SP: Ed. Perspectiva,<br />
2003.<br />
---. Brecht: um jogo de aprendizagem SP: Ed. Perspectiva, 1991.<br />
---. Brecht na Pós-Modernidade SP: Ed. Perspectiva, 2001.<br />
---. Texto e Jogo SP: Ed. Perspectiva, 1996.<br />
MÜLLER, HEINER. Heiner Müllermaterial Leipzig, Reclam, 1990.<br />
RÖHL, RUTH. Literatura da República Democrática Alemã SP: Ed. Perspectiva, 2006.<br />
---. O Teatro de Heiner Müller, SP: Perspectiva, 1997.<br />
ROSENFELD, ANATOL. O Teatro Moderno SP: Perspectiva, 1977.<br />
SPOLIN, VIOLA. Jogos Teatrais na Sala de Aula SP: Perspectiva, 2008.<br />
MAGALDI, SÁBATO. O Texto no Teatro SP: Perspectiva, 1989.<br />
Ingrid Dormien Koudela
N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />
POSSIBILIDADES E DESAFIOS DA INICIAçãO à<br />
DOCêNCIA EM TEATRO NA EDUCAçãO BáSICA 1<br />
Resumo<br />
O texto traz um apanhado do trabalho de iniciação docente realizado<br />
no Subprojeto de Teatro da UFRGS do Programa Institucional de Bolsas<br />
de Iniciação à Docência (PIBID), que compreende uma proposta de<br />
qualificação da formação profissional do professor de teatro através da<br />
interação entre estudantes Bolsistas do Curso de Licenciatura em Teatro da<br />
UFRGS e a realidade de uma escola da Rede Pública Estadual de Ensino<br />
do Rio Grande do Sul. As ações do Subprojeto de Teatro desenvolvem-se<br />
na cidade de Porto Alegre, no Instituto de Educação General Flores da<br />
Cunha (IE), e têm por objetivo central restabelecer as funções do núcleo<br />
teatral da escola – o TIPIE. Nesse sentido, consideram-se as possibilidades<br />
e os desafios às ações de iniciação à docência em teatro, dentre as quais<br />
se destacam: o conhecimento acerca da estrutura e do funcionamento da<br />
escola; a inserção dos futuros professores no ambiente escolar; a pesquisa<br />
acerca da memória da escola, com ênfase no seu papel precursor para o<br />
ensino de teatro em âmbito local e nacional; o desenvolvimento de oficinas<br />
de iniciação teatral oferecidas à comunidade do IE; e a retomada das<br />
funções artísticas e culturais do TIPIE.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de teatro; formação de professores; escola; pesquisa.<br />
Abstract<br />
This paper gives a critical overview on the Institutional Undergraduate<br />
Scholarship Program on Teaching Internship in Public Schools (PIBID), as carried<br />
out by the Theatre Departmente at the Federal University of Rio Grande do Sul<br />
(UFRGS) at the State School General Flores da Cunha in Porto Alegre. It evaluates<br />
the contribution of the project in reactivating the theatrical activities at this school,<br />
recovering its theatrical memory and integrating pedagogical and artistic activities.<br />
KEYWORDS: Theatre Education, Teacher Training, School , Research<br />
1 Este artigo constitui uma versão ampliada e atualizada do trabalho publicado nos anais do VI Congresso da<br />
ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (em 2010), sob o título de<br />
Iniciação à docência em teatro: a experiência do PIBID/UFRGS.<br />
2 Professora da Universidade Federal de Rio Grande do Sul no Departamento de Arte Dramática. Pesquisa há mais<br />
de 20 anos as relações entre Teatro e Educação, do ponto de vista tanto pedagógico quanto institucional.<br />
Vera Lúcia Bertoni dos Santos 2<br />
Possibilidades e desafios da iniciação à docência em teatro na Educação Básica 77
<strong>Urdimento</strong><br />
78<br />
Neste texto reflete-se sobre um<br />
conjunto de ações de inserção<br />
escolar, ensino e pesquisa<br />
em teatro, processadas no<br />
decorrer do primeiro ano de<br />
funcionamento do Subprojeto da área de<br />
Teatro do Programa Institucional de Bolsas<br />
de Iniciação à Docência (PIBID), em colaboração<br />
entre o Curso de Licenciatura em<br />
Teatro do Departamento de Arte Dramática<br />
do Instituto de Artes da Universidade<br />
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e<br />
a comunidade escolar do Instituto de Educação<br />
General Flores da Cunha (IE), uma<br />
tradicional Instituição de Ensino da Rede<br />
Pública Estadual de Porto Alegre.<br />
O texto inicia-se pela caracterização<br />
mais ampla do PIBID, através de uma explanação<br />
sobre os propósitos gerais do<br />
Projeto Institucional da UFRGS e sobre os<br />
objetivos específicos do Subprojeto da área<br />
de Teatro, tendo em vista as possibilidades<br />
e desafios que o contexto da Educação Básica<br />
Pública e a realidade da Instituição na<br />
qual o trabalho se insere significam à ação<br />
pedagógica em teatro; a seguir, são descritos<br />
e analisados diferentes tipos de atividades<br />
realizados pelos estudantes Bolsistas<br />
do PIBID Teatro da UFRGS no sentido da<br />
sua iniciação docente, que se processam na<br />
perspectiva de valorização da prática e da<br />
reflexão do teatro no meio escolar e de inserção<br />
da disciplina de teatro na Educação<br />
Básica.<br />
Dos objetivos<br />
O Programa Institucional de Bolsas de<br />
Iniciação à Docência (PIBID) constitui uma<br />
iniciativa pioneira de estímulo à docência<br />
em âmbito nacional, implementada pela<br />
Coordenação Geral de Desenvolvimento<br />
de Conteúdos Curriculares e de Modelos<br />
Experimentais da Diretoria de Educação<br />
Básica (DEB) Presencial, da Coordenação<br />
de Aperfeiçoamento de Pessoal (CAPES)<br />
de Nível Superior do Ministério da Educação<br />
(MEC), desde 2007, que abrange atualmente<br />
diversos estados do Brasil, integrando<br />
o Ensino Superior e a Educação Básica<br />
através da interação entre estudantes e docentes<br />
de cursos licenciatura de diferentes<br />
áreas do conhecimento e a realidade edu-<br />
cacional das Instituições de Ensino da Rede<br />
Pública Estadual.<br />
Nesse sentido, o Projeto Institucional<br />
da UFRGS 3 tem por propósito central o<br />
fortalecimento das atividades de formação<br />
continuada de seus licenciandos, mediante<br />
o incentivo precoce dos futuros professores<br />
em relação à carreira docente junto à escola<br />
pública e o estímulo ao magistério na Educação<br />
Básica da Rede Estadual de Ensino.<br />
A esse propósito alinham-se as ações<br />
específicas da equipe do Subprojeto de Teatro<br />
da UFRGS, que é composta por onze<br />
estudantes Bolsistas de Iniciação à Docência,<br />
discentes de Licenciatura em Teatro, e<br />
pelo professor Supervisor, integrante do<br />
quadro docente da escola atendida pelo<br />
Subprojeto, que atuam sob orientação da<br />
professora Coordenadora, pertencente ao<br />
quadro docente da UFRGS, responsável<br />
pela área do teatro 4 .<br />
A escolha do Instituto de Educação<br />
General Flores da Cunha (IE) como escola<br />
sede do Subprojeto de Teatro determinou a<br />
formulação dos objetivos do Plano de Trabalho<br />
e orientou a formulação das ações do<br />
PIBID. De modo geral, a motivação por desenvolver<br />
o trabalho no IE originou-se de<br />
fatores relacionados, por um lado, à quantidade<br />
de possibilidades de ação políticopedagógica<br />
e investigativa em teatro que<br />
o envolvimento com uma instituição educacional<br />
do seu porte e da sua relevância<br />
histórica significa ao futuro professor de<br />
teatro, em especial as ações referentes ao<br />
núcleo de teatro do IE – o Teatro Infantil<br />
Permanente do Instituto de Educação (TI-<br />
PIE); e, por outro lado, à perspectiva de superação<br />
de desafios impostos à ação docente<br />
em teatro nessa escola, dentre os quais<br />
se destacam: a inexistência de professores<br />
de teatro no seu quadro funcional, que se<br />
3 Na sua segunda edição, que obteve aprovação a partir do resultado do Edital<br />
CAPES/DEB N° 02/2009 – PIBID e cumpre-se no período compreendido entre os<br />
anos de 2010 e 2012.<br />
4 Desde o início das atividades (em 2010), integraram a equipe do Subprojeto de<br />
Teatro: a docente da UFRGS Vera Lúcia Bertoni dos Santos (Coordenadora do<br />
Subprojeto); o docente do IE Geraldo Bueno Fischer (Supervisor); e os estudantes<br />
do Curso de Licenciatura em Teatro da UFRGS André de Souza Macedo, Clarice<br />
Dorneles Nejar, Gabriela Tarouco Tavares, Iassanã Martins da Silva, Ítalo Cassará,<br />
Janaina Moraes Franco, Mariana Silva Freitas, Mauricio Pezzi Casiraghi, Priscila<br />
da Silva Correa, Priscila Soares Morais, Renata Teixeira Ferreira da Silva, Suzana<br />
Cristina Witt e Tássia Pfeifer de Almeida (Bolsistas de Iniciação à Docência).<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Vera Lúcia Bertoni dos Santos<br />
reflete na carência de projetos curriculares<br />
de qualidade voltados à prática do teatro e<br />
à apreciação de espetáculos; as condições<br />
precárias em que se encontrava da sala de<br />
teatro da escola; e a desativação do TIPIE.<br />
Desde a sua fundação, em 1956, pela<br />
professora Olga Reverbel (1917-2008) e<br />
suas alunas do Curso de Magistério, o TI-<br />
PIE desempenhou papel de destaque no<br />
movimento de teatro estudantil do estado,<br />
tendo sido reconhecido nacionalmente entre<br />
os anos de 1960 e 1970, como um marco<br />
referencial à reflexão sobre o teatro na<br />
escola, pelo seu pioneirismo no que tange<br />
à inclusão do teatro como disciplina curricular<br />
e pela sua projeção como um espaço<br />
teatral na cidade de Porto Alegre, responsável<br />
pela difusão de espetáculos e pela<br />
promoção de eventos de natureza artística<br />
e cultural.<br />
Entretanto, com o passar dos anos, por<br />
força do descaso histórico das políticas públicas<br />
relacionadas à educação, que parece<br />
pesar ainda mais no caso das disciplinas<br />
artísticas 5 , o trabalho dos docentes que sucederam<br />
Reverbel à frente da disciplina de<br />
teatro viu-se cerceado pela falta de estrutura<br />
e respaldo à ação pedagógica. Destituído<br />
de iniciativas em prol da manutenção das<br />
funções do TIPIE, esvaziado de projetos em<br />
favor da prática e da apreciação teatrais no<br />
meio escolar e, mais recentemente, privado<br />
de um professor de teatro no seu quadro<br />
docente, o IE encontra-se atualmente impedido<br />
de oferecer a disciplina de teatro no<br />
seu currículo, o que significa um retrocesso<br />
da condição precursora de escola em relação<br />
ao ensino da arte.<br />
Nesse contexto, cabe ressaltar as condições<br />
adversas ao trabalho pedagógico,<br />
comuns a maior parte das instituições públicas<br />
de ensino no nosso país, ocasionadas<br />
pela carência de investimentos na ampliação<br />
(por concurso público), manutenção<br />
(mediante planos de carreira adequados e<br />
condições salariais dignas) e qualificação<br />
(através do incentivo à pesquisa e à pós-<br />
5 Especialmente a de teatro, devido às controvérsias que cercam a sua regulamentação<br />
como “disciplina” obrigatória no currículo escolar; e considerando os<br />
problemas causados no cotidiano da escola em função da especificidade prática<br />
dos seus conteúdos.<br />
graduação) dos quadros docentes e funcionais<br />
das escolas e na estruturação e conservação<br />
das suas dependências e instalações.<br />
Como reflexos dessa lamentável situação<br />
têm-se aspectos que dificultam o<br />
processo de ensino e aprendizagem em<br />
qualquer área do conhecimento, tais como<br />
a superlotação das turmas e a depauperação<br />
crescente dos espaços escolares; e, no<br />
caso das disciplinas de artes (desdobradas<br />
em artes visuais, dança, música e teatro),<br />
cuja carga-horária é restrita em relação às<br />
demais disciplinas do conhecimento (visto<br />
que as propostas curriculares costumam ser<br />
organizadas de modo a contemplar apenas<br />
uma dessas especificidades, na perspectiva<br />
de cumprir minimamente os ditames da<br />
lei), esses aspectos constituem entraves ao<br />
trabalho pedagógico, porquanto dificultam<br />
o estabelecimento de vínculos entre professores<br />
e alunos e comprometem o desenvolvimento<br />
e a continuidade do processo de<br />
conhecimento; além disso, os professores<br />
de artes, que costumam lecionar em mais<br />
de uma instituição (como alternativa de<br />
complementação salarial), enfrentam problemas<br />
no estabelecimento de relações de<br />
identidade com as diferentes realidades em<br />
que atuam, bem como na sua legitimação<br />
como membro das comunidades escolares<br />
com as quais convivem. E particularmente<br />
no caso da disciplina de teatro somam-se<br />
os problemas decorrentes da carência de<br />
recursos humanos e materiais, enfrentada<br />
pelas escolas, que as impossibilita de oferecer<br />
condições específicas 6 às atividades<br />
corporais e cênicas.<br />
É no sentido da retomada e da manutenção<br />
das funções artísticas, culturais e patrimoniais<br />
do TIPIE que se configuram as<br />
ações do Subprojeto de Teatro da UFRGS,<br />
cuja equipe assume, temporariamente 7 , a<br />
responsabilidade pelo desenvolvimento de<br />
atividades teatrais no IE, mediante experiências<br />
de ensino, aprendizagem, pesquisa,<br />
6 Ou seja: um espaço amplo, que favoreça a movimentação dos alunos, livre de<br />
móveis e objetos e com piso de madeira, limpo, de modo a permitir o trabalho corporal<br />
no chão, e arejado.<br />
7 Os Subprojetos que integram o Edital 2009 desenvolvem-se de maio de 2010 a<br />
maio de 2012, ou seja, pelo período de dois anos (que pode ser ampliado, no caso<br />
de aprovação em novo Edital).<br />
Possibilidades e desafios da iniciação à docência em teatro na Educação Básica 79
<strong>Urdimento</strong><br />
80<br />
produção e difusão do teatro, protagonizadas<br />
pela comunidade escolar do IE, sob<br />
orientação de estudantes de Licenciatura<br />
em Teatro da UFRGS.<br />
Das ações<br />
O momento preliminar da interação<br />
entre os estudantes Bolsistas e o PIBID<br />
ocorreu no primeiro semestre de 2010,<br />
motivado pela leitura coletiva e da discussão<br />
do Projeto Institucional e do Subprojeto<br />
de Teatro e de por uma primeira<br />
apreciação de documentos oficiais que<br />
regem a educação em âmbito nacional<br />
e estadual 8 . Tais iniciativas possibilitaram<br />
à equipe do PIBID definir formas<br />
de articulação em relação às metas propostas<br />
pelo Subprojeto de Teatro frente<br />
a objetivos específicos da área do teatro<br />
compreendidos em relação às demais<br />
áreas do conhecimento e a princípios<br />
mais amplos que norteiam os planos de<br />
estudos e as propostas pedagógicas das<br />
nossas escolas.<br />
Como ponto de partida para o planejamento<br />
do trabalho no IE realizou-se um<br />
trabalho de sondagem, mediante o levantamento<br />
dos interesses da escola em relação<br />
ao teatro, à restauração do espaço físico do<br />
TIPIE e à identificação de tempos e espaços<br />
potenciais ao trabalho teatral. O trabalho<br />
envolveu também uma avaliação do<br />
ambiente e do funcionamento da escola, a<br />
fim de possibilitar a apreensão da sua realidade,<br />
o conhecimento do Projeto Político<br />
Pedagógico da escola e do Calendário Escolar,<br />
e um primeiro contato com o corpo<br />
docente da área de artes do IE.<br />
A coleta desses dados desenvolveu-se<br />
através de visitas dos estudantes Bolsistas e<br />
da Coordenadora à escola, da participação<br />
em reuniões de professores da área de artes<br />
e de conversas com a Direção e com funcionários<br />
responsáveis por diferentes setores,<br />
que possibilitaram o reconhecimento do<br />
espaço físico da escola, especialmente da<br />
8 Plano Nacional de Educação; Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional;<br />
Diretrizes Curriculares Nacionais; Parâmetros Curriculares Nacionais; e Referenciais<br />
Curriculares do RS.<br />
sala de teatro do TIPIE, e a avaliação das<br />
possibilidades e dos desafios da escola à<br />
prática do teatro.<br />
Um dos primeiros fatores identificados<br />
como desafiador às ações do Subprojeto<br />
é o fato do quadro docente do IE não<br />
dispor de um professor de teatro, que inviabilizou<br />
a possibilidade de estabelecer<br />
parceria com um docente especializado na<br />
área para desempenhar a função de Supervisor<br />
dos estudantes Bolsistas em atividades<br />
na escola. Nesse sentido, conta-se com<br />
a colaboração do professor da disciplina<br />
de artes visuais (também responsável pela<br />
disciplina de música, pois possui formação<br />
nas duas áreas) na equipe do PIBID,<br />
o que configura um trabalho de mediação<br />
mais restrito ao acompanhamento dos estudantes<br />
Bolsistas em atividades artísticas<br />
de cunho interdisciplinar e a aspectos estruturais<br />
e funcionais das relações entre as<br />
propostas do PIBID e a comunidade do IE,<br />
em detrimento do diálogo efetivo acerca<br />
de elementos específicos do teatro que a<br />
participação que um docente da área poderia<br />
implicar.<br />
Outra limitação eram as condições em<br />
que se encontrava o TIPIE, que prejudicavam<br />
seriamente o desenvolvimento das<br />
atividades teatrais previstas no PIBID. A<br />
situação de abandono e depredação da sala<br />
do teatro, que se agravava pela falta de manutenção<br />
e limpeza e pelo uso inapropriado<br />
e desregrado do seu espaço, foi tratada<br />
a partir de reuniões com a Direção do IE<br />
e ocasionou algumas providências imediatas<br />
9 para contornar os problemas evidenciados,<br />
até que a recuperação do espaço do<br />
TIPIE se concluísse.<br />
Acerca dos resultados da sondagem<br />
foram desenvolvidos registros e relatórios<br />
e elaborou-se o mapeamento (planta baixa<br />
detalhada) do espaço escolar e uma planilha<br />
com horários e contatos dos professores<br />
das disciplinas artísticas, o que facilitou<br />
9 Tais providências compreenderam o esclarecimento ao corpo docente da escola<br />
em relação à mudança das normas de funcionamento do TIPIE e a instauração de<br />
medidas de controle do uso sala (que passou a restringir-se a atividades acompanhadas<br />
por professores) e de manutenção do seu espaço físico (retirada de entulhos<br />
e quinquilharias que estavam depositadas na sala, substituição de lâmpadas<br />
queimadas e estabelecimento de uma agenda de limpeza).<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Vera Lúcia Bertoni dos Santos<br />
a localização e o trânsito dos estudantes<br />
Bolsistas do PIBID no IE e viabilizaram a<br />
sua inserção em projetos curriculares desenvolvidos<br />
na escola.<br />
Paralelamente a esse levantamento,<br />
outra proposta buscou a inserção dos<br />
estudantes Bolsistas no cotidiano do IE,<br />
mediante a participação cooperativa em<br />
experiências metodológicas atreladas a<br />
diversas disciplinas do currículo da escola<br />
(tais como: artes visuais, música, língua<br />
portuguesa e história). O planejamento<br />
dessas experiências realizou-se em conjunto<br />
com os professores das disciplinas<br />
e o trabalho envolveu observações e propostas<br />
de colaboração e intervenção pedagógica,<br />
através da abordagem de jogos<br />
tradicionais, dramáticos e teatrais, improvisações<br />
e criações cênicas a partir de elementos<br />
formais do teatro, que foram registradas,<br />
avaliadas e compartilhadas no<br />
grupo, permitindo a compreensão de aspectos<br />
do funcionamento da sala de aula<br />
e a reflexão sobre o ensino de teatro numa<br />
perspectiva global, focalizada na relação<br />
entre conhecimentos de diversas disciplinas<br />
do currículo da escola.<br />
Outra atividade que envolveu os estudantes<br />
Bolsistas compreendeu o estudo<br />
da memória do IE e do TIPIE. O propósito<br />
dessa atividade de cunho eminentemente<br />
investigativo era favorecer a implementação<br />
de ações de revitalização da atividade<br />
teatral no contexto da escola, mediante o<br />
fortalecimento das relações de identidade<br />
entre a comunidade e o TIPIE. O trabalho<br />
envolveu uma pesquisa histórica e documental<br />
que consistiu em investigar o processo<br />
de constituição do TIPIE e a trajetória<br />
de Reverbel.<br />
Nessa busca, os estudantes Bolsistas<br />
recorreram a documentos disponíveis no<br />
arquivo histórico da escola, com a colaboração<br />
da funcionária responsável, e ao<br />
material existente em relação à autora, o<br />
que incluiu suas publicações e outras obras<br />
que mencionam o seu trabalho, e realizaram<br />
resenhas e relatórios de leitura, que<br />
abrangeram: as temáticas das publicações,<br />
o contexto histórico em que elas foram concebidas<br />
e as suas relações com a carreira da<br />
autora e com o público alvo, e os vínculos<br />
das obras com o trabalho desenvolvido no<br />
TIPIE.<br />
No decorrer das leituras constatouse<br />
que a maioria dos livros de Reverbel<br />
compreende jogos dramáticos e teatrais e<br />
encerra reflexões sobre o ensino do teatro<br />
em diferentes níveis, abarcando desde a<br />
Educação Infantil até a formação de professores;<br />
notou-se, também, a preocupação<br />
constante da autora por ressaltar a importância<br />
do teatro como um componente curricular<br />
e os benefícios da prática teatral no<br />
desenvolvimento de crianças e jovens, bem<br />
como a busca pela construção de um método<br />
de ensino de teatro, que se desenvolve<br />
a partir das suas experiências em sala de<br />
aula. Também foram lidas obras dramatúrgicas<br />
de Reverbel, concebidas durante seu<br />
trabalho no TIPIE, junto a estudantes do<br />
Magistério.<br />
Após o trabalho de sondagem referente<br />
à estrutura da escola e às atividades<br />
artísticas desenvolvidas em diferentes<br />
disciplinas e a avaliação das intervenções<br />
pedagógica ocorridas na sala de aula de<br />
alguns professores que se prontificaram<br />
a colaborar com o PIBID, e, tendo concluído<br />
a coleta de dados para a reconstituição<br />
do memorial do TIPIE, os estudantes<br />
Bolsistas puderam dedicar-se ao trabalho<br />
de iniciação docente de cunho especificamente<br />
teatral, que se desenvolveu através<br />
de oficinas oferecidas a alunos do IE, em<br />
horários alternativos (turno inverso) às<br />
suas atividades “de classe”.<br />
A proposta inaugural de oficina foi<br />
desenvolvida logo no primeiro semestre do<br />
Subprojeto e denominou-se Degustação Teatral,<br />
por se constituir uma pequena mostra<br />
das possibilidades de trabalho teatral a<br />
serem experimentadas no decorrer do Subprojeto.<br />
Nesse sentido, desenvolveram-se<br />
propostas de exploração das capacidades<br />
motoras, corporais, lúdicas, expressivas,<br />
dramáticas e representativas inerentes à<br />
formalização e à comunicação cênicas, com<br />
ênfase na aprendizagem da socialização e<br />
da cooperação, fundamental ao processo<br />
de construção de conhecimento e à constituição<br />
de um grupo de jogo, e na formação<br />
Possibilidades e desafios da iniciação à docência em teatro na Educação Básica 81
<strong>Urdimento</strong><br />
82<br />
de espectadores, primordial à reflexão sobre<br />
o fenômeno teatral.<br />
Essa experiência docente inicial permitiu<br />
estimar os interesses dos alunos do IE<br />
em relação ao teatro e estabelecer um programa<br />
de oficinas que viesse ao encontro<br />
das necessidades da comunidade escolar<br />
como um todo. O primeiro módulo do programa<br />
realizou-se no segundo semestre de<br />
2010, através do oferecimento de oficinas<br />
nos turnos da manhã, tarde e noite, “assumidas”<br />
por duplas, ou trios, de Bolsistas,<br />
revezados nas funções de ministrantes, observadores<br />
e relatores.<br />
O planejamento e a avaliação dos encontros<br />
das oficinas foram compartilhados<br />
em reuniões sistemáticas, o que possibilitou<br />
a combinação prévia de atividades e a<br />
troca de informações e experiências entre as<br />
diferentes oficinas. No término das atividades<br />
desse primeiro módulo (em dezembro<br />
de 2010) realizou-se um evento intitulado<br />
Troca de figurinhas, no qual foram apresentados<br />
resultados cênicos obtidos em cada<br />
turma. O evento reuniu os integrantes de<br />
todas as turmas e envolveu membros da<br />
comunidade escolar e da Direção do IE;<br />
contou também com a participação especial<br />
do grupo de teatro estudantil da Fundação<br />
Municipal de Artes de Montenegro<br />
(FUNDARTE-RS).<br />
A ação docente nas oficinas do primeiro<br />
ano de atuação do PIBID no IE mobilizou<br />
a equipe em torno dos problemas concernentes<br />
à manutenção do espaço físico<br />
do TIPIE, que, embora tivessem sido amenizados<br />
em função das medidas em relação<br />
à manutenção e ao uso mais criterioso da<br />
sala, ainda impunha sérias dificuldades à<br />
prática teatral. Frente a isso, a equipe do<br />
PIBID passou a investir esforços na instauração<br />
de uma “política de conscientização”<br />
da comunidade escolar como um todo em<br />
relação aos cuidados com o espaço do teatro.<br />
O trabalho de recuperação do TIPIE<br />
realizou-se no período de recesso das atividades<br />
letivas do IE (janeiro e fevereiro de<br />
2011), a partir de uma tomada de orçamentos<br />
para os reparos no espaço físico da sala,<br />
avaliados, desde a concepção do Subpro-<br />
jeto, como fatores imprescindíveis à retomada<br />
do núcleo teatral da escola. De modo<br />
geral, os reparos 10 envolveram medidas<br />
simples e poucos recursos, mas o resultado<br />
do trabalho foi decisivo ao fortalecimento<br />
das ações do PIBID.<br />
Assim, no segundo ano de trabalho no<br />
IE, as atividades do PIBID passaram a desenvolver-se<br />
num ambiente mais saudável<br />
e mais acolhedor à prática do teatro, o que<br />
favoreceu sobremaneira a ação pedagógica<br />
e o processo de ensino e aprendizagem nas<br />
oficinas.<br />
Desdobradas em cinco turmas, organizadas<br />
de modo a contemplar demandas<br />
de horário de diferentes segmentos da<br />
comunidade do IE, as oficinas de teatro<br />
do segundo módulo do programa de oficinas,<br />
realizado no primeiro semestre de<br />
2011, também são oferecidas no turno inverso<br />
das atividades de classe dos alunos<br />
interessados. Os objetivos, conteúdos e<br />
procedimentos metodológicos do trabalho<br />
pedagógico desenvolvido em cada turma<br />
são estabelecidos e sistematizados levando<br />
em conta os interesses dos alunos e as necessidades<br />
que surgem no andamento do<br />
trabalho, num processo de avaliação permanente<br />
das ações dos estudantes Bolsistas<br />
na condução das propostas de ensino<br />
do teatro e do processo de aprendizagem<br />
dos sujeitos aos quais elas se dirigem.<br />
Num rápido resumo dos objetivos traçados<br />
pelos estudantes Bolsistas em seus<br />
Planos de Ensino: na Turma A (da qual participam<br />
alunos em faixa etária entre 10 e 15<br />
anos), evidencia-se o propósito de “estimular<br />
a criatividade e a imaginação através da<br />
proposição de jogos e improvisações” e a<br />
perspectiva de desenvolvimento de uma<br />
“dramaturgia do ator”, que permita aos<br />
alunos compreenderem-se como “sujeitos<br />
do processo de criação teatral”; na oficina<br />
com a Turma B (que integra jovens das<br />
séries finais do Ensino Fundamental e do<br />
Ensino Médio do IE), o objetivo pretendido<br />
é a “interação dos alunos com os elementos<br />
da ação dramática, por meio de jogos<br />
10 Reboco e pintura das paredes e aberturas, reforma e lavagem de cortinas e<br />
recuperação do piso.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Vera Lúcia Bertoni dos Santos<br />
e improvisações teatrais”; na Turma C (da<br />
qual participam crianças, jovens e adultos)<br />
tem-se por objetivos “desenvolver a<br />
construção de personagens através de improvisações”<br />
de “composições de figuras e<br />
máscaras que estimulem o imaginário dos<br />
alunos” e que favoreçam o surgimento de<br />
“um corpo vivo expressivo e presente capaz<br />
de envolver-se por inteiro nas ações”<br />
e de “inserir-se no jogo e na cena teatral”;<br />
junto à Turma D (que integra alunos do Ensino<br />
Fundamental em faixas etárias diversas),<br />
o objetivo evidenciado é a ampliação<br />
da percepção, da sensibilidade e do engajamento<br />
dos participantes através do jogo,<br />
do jogo dramático e do jogo teatral; e, por<br />
fim, a oficina da Turma E, intitulada “Oficina<br />
de Voz para Professores”, que cumpre<br />
uma demanda do corpo docente da escola<br />
por um trabalho de aprimoramento e sustentação<br />
vocal.<br />
Diferentemente do sistema de oferecimento<br />
das oficinas, o trabalho dos estudantes<br />
Bolsistas do PIBID na Educação<br />
Infantil ocorre no turno regular em que as<br />
crianças frequentam a escola e realizam-se<br />
no espaço da sala de aula, e as ações pedagógicas<br />
junto aos alunos das quatro turmas<br />
contempladas são acompanhadas pelas<br />
suas respectivas professoras regentes de<br />
classe. Nessa perspectiva, o trabalho “busca<br />
incentivar a exploração de capacidades<br />
criativas dentro do faz-de-conta, através da<br />
experimentação de figuras e situações que<br />
alimentem o jogo simbólico das crianças”,<br />
com vistas a desenvolver a “percepção, a<br />
expressividade corporal, a imaginação e a<br />
ludicidade”.<br />
Em conclusão às atividades das oficinas<br />
do segundo módulo está previsto<br />
um momento de compartilhamento de experiências<br />
que marcará a re-inauguração<br />
da sala de teatro do TIPIE. Nessa “segunda<br />
edição” do evento Troca de Figurinhas<br />
planeja-se contar com a apresentação de<br />
trabalhos cênicos desenvolvidos pelos estudantes<br />
Bolsistas nas disciplinas de atuação<br />
e direção em teatro que compõem currículo<br />
do Curso de Licenciatura em Teatro<br />
da UFRGS, configurando uma proposta<br />
de integração de conhecimentos em tea-<br />
tro aberta à comunidade escolar e apoiada<br />
pela Direção do IE.<br />
A expectativa dos integrantes do Subprojeto<br />
de Teatro do PIBID é que a continuidade<br />
das ações implementadas no IE<br />
motive o surgimento de novos projetos<br />
em torno do ensino e da aprendizagem de<br />
conhecimentos teatrais no IE, evidencie a<br />
necessidade de professores da área do teatro<br />
no quadro docente da escola, possibilitando<br />
o oferecimento da disciplina de<br />
teatro no seu currículo, bem como a manutenção<br />
das funções sociais, artísticas e culturais<br />
do TIPIE, e reflita-se na ampliação<br />
do trabalho em teatro e no fortalecimento<br />
do teatro estudantil noutras Instituições<br />
de Ensino Público do Rio Grande do Sul<br />
e do Brasil.<br />
Possibilidades e desafios da iniciação à docência em teatro na Educação Básica 83
N° 18 | Setembro de 2012<br />
A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA: OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA:<br />
Resumo<br />
Este artigo discute a ação reflexiva do professor de teatro. O potencial<br />
da inclusão de estudos sobre os canais de percepção (auditivo,<br />
sinestésico e visual) é considerado como parte desta ação. O texto irá<br />
argumentar que a inserção dos canais perceptivos no contexto educativo<br />
colabora para um melhor desenvolvimento nos estilos de aprendizagem<br />
dos alunos e nos estilos de ensinar de seus professores.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Ensino do teatro, canais de<br />
percepção, formação de professor.<br />
Abstract<br />
This text discusses the reflexive action of the drama teacher.<br />
The potential inclusion of studies on the channels of perception<br />
(auditory, kinesthetic and visual) is considered as part of this action.<br />
The text argues that the inclusion of perceptual channels in the<br />
educational context contributes to a better development of the students’<br />
learning styles and their teachers’ teaching styles..<br />
KEywORDS: Theatre teaching, perception<br />
channels, teacher’s training.<br />
1 Mestre em Teatro pela Universidade Estadual de Santa Catarina - UDESC, professor do Curso de Licenciatura em<br />
Teatro da Faculdade de Artes do Paraná - FAP, membro do GT Pedagogia do Teatro & Teatro e Educação da Associação<br />
Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas - ABRACE e integrante do Grupo de Pesquisa Arte, Educação<br />
e Formação Continuada na Linha de Pesquisa Arte, Sociedade e Diversidade Cultural na FAP. rossetorobson@gmail.com.<br />
OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />
Robson Rosseto 1<br />
85
<strong>Urdimento</strong><br />
86<br />
Atualmente, em qualquer referência<br />
que se faça ao ensino, é com frequência<br />
mencionada a reflexão como<br />
algo a ser alcançado, como um<br />
determinismo no espaço da Academia,<br />
especialmente nas licenciaturas. O<br />
refletir é premissa básica para a construção<br />
do saber, a prática reflexiva deve ser uma<br />
ação permanente e adjacente aos conhecimentos<br />
propostos no currículo. O objetivo<br />
deste trabalho, nesse sentido, é questionar<br />
o processo de formação pedagógica do professor<br />
a partir da necessidade da inclusão<br />
de uma prática reflexiva, para ponderar,<br />
a seguir, sobre como as implicações que o<br />
conhecimento sobre os canais de percepção<br />
poderá auxiliar nesta ação, qual seja, o ensino<br />
do teatro.<br />
Após concluir a graduação, o professor<br />
muitas vezes reproduz os encaminhamentos<br />
metodológicos apreendidos<br />
durante o processo de formação. Conforme<br />
Hernandez (1998), quando o professor<br />
aprende um esquema de ação tenta logo<br />
aplicá-lo, baseando-se apenas na sua própria<br />
experiência. Deste modo, evidencio<br />
que um dos grandes desafios do trabalho<br />
pedagógico é incluir na formação deste<br />
profissional o hábito de uma prática reflexiva,<br />
de modo que ele não se torne um<br />
mero reprodutor de teorias e técnicas de<br />
ensino.<br />
Infelizmente, as condições de trabalho<br />
oferecidas para o professor não produzem<br />
o apoio necessário para uma ação com qualidade,<br />
especialmente no que diz respeito à<br />
disponibilidade de tempo. Não importa a<br />
área do professor, em se tratando de educação<br />
básica, ele administra, em geral, várias<br />
turmas. Esclareço que no administrar<br />
está implícito o planejar as aulas, as reuniões<br />
pedagógicas, a correção de provas e<br />
trabalhos, além de cursos de capacitação e<br />
ou pesquisas próprias; pois um profissional<br />
que se diz reflexivo, não pode parar de<br />
estudar. No entanto, às vezes não há tempo<br />
para continuar a aprender, uma vez que<br />
muitos professores lecionam nos três turnos:<br />
manhã, tarde e noite.<br />
Mas, em relação ao trabalho específico<br />
do professor de artes/teatro no contex-<br />
N° 18 | Setembro de 2012<br />
to escolar, essa jornada tende a dobrar. O<br />
currículo da escola contempla duas aulas<br />
semanais de arte, isso ocorre quando a escola<br />
cumpre com a legislação e compreende<br />
a seriedade das artes no currículo. De<br />
outro modo, é recorrente notar, escolas<br />
configuram os conteúdos artísticos unicamente<br />
numa aula semanal, e, infelizmente,<br />
no ensino médio às vezes são suprimidas<br />
as aulas de arte. Diante desta constatação,<br />
é preciso ainda registrar que para o professor<br />
de arte almejar um digno salário, será<br />
preciso que ele lecione em várias escolas,<br />
com o intuito de obter uma carga horária<br />
por volta de 40 horas semanais. Nesse sentido,<br />
contando com o deslocamento entre<br />
as escolas, e o elevado número de alunos<br />
devido ao aumento de turmas, a jornada de<br />
trabalho de fato dobra.<br />
Perante este panorama, como o professor<br />
conduz a reflexão em sua prática docente?<br />
Perrenoud afirma que “[...] uma parte<br />
da ação pedagógica é feita de urgência e<br />
improvisação, por meio da intuição, sem<br />
realmente apelar a conhecimentos, seja por<br />
falta de tempo, seja por pertinência” (2002,<br />
p. 81). Para que isso não ocorra, o saber<br />
analisar deve permear todo o processo de<br />
formação de um professor, para que este<br />
profissional entenda o processo reflexivo<br />
dentro do espaço acadêmico, e assim possa<br />
empreender a reflexão durante a sua permanência<br />
na prática do ensino.<br />
Nos cursos de Licenciatura em Teatro,<br />
com recorrência ouço comentários dos<br />
acadêmicos afirmando que as disciplinas<br />
de estágio e as voltadas para o ensino do<br />
teatro ficam compreendidas como matérias-‘chave’<br />
com enfoque reflexivo para a<br />
formação do licenciado. No entanto, a formação<br />
do professor requer disciplinas que<br />
envolvam conhecimentos mais amplos das<br />
ciências humanas e disciplinas especializadas<br />
na prática do fazer teatral, tais como interpretação<br />
e improvisação. O que os alunos<br />
entendem de forma gradativa, é que o<br />
professor de teatro precisa ter uma formação<br />
teórica e prática em disciplinas específicas<br />
do campo teatral, associadas a outras<br />
disciplinas de áreas distintas. A ponte entre<br />
o fazer teatral com o ensino e sua análi-<br />
Robson Rosseto<br />
N° 18 | Setembro de 2012<br />
se será feita por cada aluno-professor, que<br />
constituirá sua abordagem a partir do que<br />
mais lhe interessou no rol dos conteúdos,<br />
uma interface entre o conhecimento específico<br />
e geral. Nesse sentido, o aluno desfaz<br />
as fronteiras rígidas que, muitas vezes,<br />
marcam as disciplinas.<br />
Os conteúdos contemplados no ementário<br />
das disciplinas de um currículo<br />
compõem a produção cultural humana e,<br />
portanto, estão constantemente sendo elaborados<br />
e discutidos. Por isso, exige de<br />
professores e alunos a permanente competência<br />
de refletir. Para tanto, requer de<br />
todos os envolvidos no processo educativo<br />
a capacidade de ouvir, dialogar, decodificar,<br />
cruzar, organizar, processar. Destaco<br />
que todos esses verbos são uma operação<br />
aprendida, que devem envolver de forma<br />
integral a formação docente.<br />
Mesmo assim, o estágio curricular é<br />
a priori a primeira aproximação à prática<br />
profissional em que o aluno se coloca frente<br />
à realidade e, nessa perspectiva, permite<br />
a aquisição de um saber, de um saber-fazer<br />
e de um saber julgar. Nesse sentido, as atividades<br />
de estágio requerem uma reflexão<br />
a todo o momento, um examinar constante<br />
sobre os limites e as possibilidades. Inclusive<br />
é possível presumir mudanças na nomenclatura<br />
da disciplina denominada de<br />
estágio supervisionado, título já arraigado<br />
nas licenciaturas do Brasil. Mas,<br />
A mudança de terminologia da palavra<br />
supervisionado para estágio<br />
reflexivo ou prática reflexionada ou<br />
orientada somente terá sentido se a<br />
compreensão do conceito de estágio<br />
estiver levando em conta a reflexão<br />
da prática como ponto de partida e de<br />
chegada (PIMENTA; LIMA, 2004,<br />
p. 114, grifos das autoras).<br />
Embora a denominação da disciplina<br />
de estágio ainda permaneça a mesma, o<br />
que realmente importa é que o estágio se<br />
confirma como um campo fértil para a pesquisa.<br />
O estágio é o espaço por excelência<br />
onde o aluno irá refletir sobre o ensino e a<br />
aprendizagem a partir dessa vivência.<br />
A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA: OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Os alunos em processo de formação<br />
inicial, segundo Perrenoud (2002), estarão<br />
desenvolvendo uma atitude reflexiva: “[...]<br />
ao analisar protocolos, ao assistir a vídeos,<br />
ao observar planejamento didático, ao<br />
convidar a escrever um diário, ao trabalhar<br />
com situações ou com dilemas ou ao organizar<br />
debates.” (p. 67). O autor acrescenta<br />
ainda que outras atividades provocam<br />
uma percepção mais crítica e analítica: “[...]<br />
seminários de análise de práticas, grupos<br />
de trocas sobre problemas profissionais,<br />
acompanhamento de projetos, supervisão<br />
e auxílio metodológico” (p. 70).<br />
As propostas mencionadas são partícipes<br />
dos procedimentos teatrais nos cursos<br />
de Licenciatura em Teatro e nas orientações<br />
para a prática docente. Por exemplo,<br />
no momento da avaliação da linguagem<br />
teatral, utiliza-se de protocolos (escrita e<br />
desenho), vídeos e fotografias (das improvisações<br />
e encenações), situações de dilemas<br />
mostrados na cena (discussão sobre<br />
as questões culturais, sociais e políticas).<br />
Além disso, seminários, diálogos sobre<br />
problemas profissionais, orientação de projetos<br />
e auxílio metodológico, são atividades<br />
já desenvolvidas nas disciplinas de estágio<br />
e demais disciplinas voltadas para a pedagogia<br />
teatral. No entanto, a compreensão<br />
destas práticas reflexivas ocorre especialmente<br />
em função da postura do professor<br />
formador. Concordando com Perrenoud,<br />
“Só um formador reflexivo pode formar<br />
professores reflexivos, não só porque ele<br />
representa como um todo o que preconiza,<br />
mas porque ele utiliza a reflexão de forma<br />
espontânea em torno de uma pergunta, de<br />
um debate, de uma tarefa ou de um fragmento<br />
de saber” (2002, p. 72).<br />
Nesse sentido, primeiramente é fundamental<br />
analisar as nossas atitudes enquanto<br />
professores formadores dentro de sala<br />
de aula, para se obter uma percepção mais<br />
acurada das nossas ações. Caso contrário,<br />
o professor formador pode restringir-se a<br />
um discurso automático, pautado em fazeres<br />
de ‘fórmula certa’, sem avaliar constantemente<br />
as implicações dos métodos utilizados.<br />
87
<strong>Urdimento</strong><br />
88<br />
Como base teórica que norteia essa reflexão,<br />
tenho me utilizado da teoria dos canais<br />
de percepção, a partir dos estudos da<br />
neurolinguística como uma ampliação na<br />
possibilidade de análise das proposições<br />
metodológicas para a pedagogia teatral<br />
junto aos estudantes do Curso de Licenciatura<br />
em Teatro da Faculdade de Artes do<br />
Paraná – FAP.<br />
OS CAnAIS DE PERCEPÇÃO E<br />
A PRáTICA TEATRAL<br />
Segundo Robbins (2009), recebemos as<br />
informações do mundo através de nossos<br />
sentidos, visual, auditivo e sinestésico; as<br />
pessoas que não possuem algum tipo de<br />
deficiência utilizam todos os sentidos e<br />
podem ser classificadas de acordo com o<br />
sistema representacional que mais se manifesta<br />
nelas. Assim, “muitas têm acesso a<br />
seus cérebros principalmente por uma estrutura<br />
visual. Reagem às cenas que veem<br />
em suas cabeças. Outras, principalmente<br />
pela auditiva, outras pelas sinestésicas” (p.<br />
97).<br />
O autor aponta que dentre os canais de<br />
percepção 2 revelamos um com maior destaque,<br />
tendo nosso comportamento e nossa<br />
comunicação muito ligados a este canal.<br />
Usamos os sentidos externos para perceber<br />
o mundo e, internamente, reapresentamos<br />
o mundo com os mesmos sentidos ao nosso<br />
cérebro.<br />
Diante do exposto, sugiro uma hipótese:<br />
as preferências de professores e alunos<br />
no que concerne à utilização de seus canais<br />
de percepção influenciam nos estilos<br />
de aprendizagem dos alunos, e os estilos<br />
de ensinar de seus professores são um fato<br />
gerador de dificuldades de aprendizagem<br />
no ensino do teatro. Esta afirmação aponta<br />
para o potencial de envolvimento dos<br />
canais de percepção no contexto da educação,<br />
e enseja a importância da compreensão<br />
por parte dos professores das princi-<br />
2 Pessoas visuais têm mais facilidade de entender e captar as coisas ao seu redor<br />
olhando-as, pessoas auditivas captam melhor as informações ouvindo sobre<br />
as coisas e pessoas sinestésicas, em geral, precisam tocar e sentir as coisas para<br />
melhor percebê-las.<br />
N° 18 | Setembro de 2012<br />
pais tendências de seus alunos em relação<br />
às manifestações dos canais perceptivos<br />
para uma reflexão sobre as estratégias de<br />
ensino implementadas nas aulas.<br />
Por regra, no início do ano letivo, aplico<br />
o teste dos canais de percepção com os<br />
alunos para traçar um panorama em função<br />
dos canais mais e menos representativos<br />
na turma. A partir disso, consigo melhor<br />
planejar as aulas em virtude dos dados<br />
apontados no teste. Geralmente, não há um<br />
canal predominante numa turma. Nesse<br />
sentido, o intuito é ‘falar’ a mesma língua<br />
do aluno, e também estimular/aguçar 3 o<br />
canal menos utilizado por este ou aquele<br />
aluno. Na prática, o trabalho não é simples,<br />
pois se há a incidência de alunos com predominância<br />
em diferentes canais, este fato<br />
exige do educador uma atenção maior nos<br />
encaminhamentos metodológicos.<br />
É possível afirmar que o professor deveria<br />
ter os três canais perceptivos com<br />
porcentagens iguais, pois assim este profissional<br />
iria atuar e propor trabalhos a partir<br />
do auditivo, sinestésico e visual. Robbins<br />
(1987) afirma que uma mudança qualitativa<br />
no processo de ensino e na aprendizagem<br />
acontece quando o professor propõe “[...]<br />
alguma coisa visual, alguma coisa auditiva<br />
e alguma coisa sinestésica. Deve mostrarlhes<br />
coisas, fazer com que ouçam coisas e<br />
dar-lhes sensações. [...] deve ser capaz de<br />
variar sua voz e entonações, para prender<br />
todos os três tipos” (p. 142). Ainda o autor<br />
acrescenta que “Quase todos os garotos<br />
que fracassam em nossos sistemas educacionais<br />
são capazes de aprender. Nós,<br />
simplesmente, nunca aprendemos como<br />
ensiná-los. Nunca estabelecemos harmonia<br />
com eles e nunca igualamos suas estratégias<br />
de aprendizado” (p. 236).<br />
Previamente, no ensino do teatro os<br />
três canais de percepção são utilizados a<br />
todo tempo, pois, em geral, as atividades<br />
cênicas envolvem os recursos auditivos, sinestésicos<br />
e visuais. Embora o teatro já trate<br />
de englobar os canais perceptivos por exce-<br />
3 Os estudos da neurolinguística apontam atividades para desenvolver um canal de<br />
percepção subdesenvolvido. O trabalho é equilibrar os três canais para ampliar a<br />
percepção sensorial com base numa consciência dos sentidos.<br />
Robson Rosseto<br />
N° 18 | Setembro de 2012<br />
lência, esse fato não garante o emprego de<br />
todos os canais pelo professor. De certo, o<br />
docente que tiver um dos canais menos dominante<br />
pouco irá envolver este canal em<br />
suas práticas. Como se nota, a autoanálise<br />
com base nos canais de percepção poderá<br />
fazer a diferença na profissão de professor.<br />
A propósito, sugiro algumas questões para<br />
reflexão:<br />
• Como meu próprio perfil de percepção<br />
afeta meu estilo de ensino<br />
na sala de aula?<br />
• Como os meus canais de percepção<br />
desenvolvidos e subdesenvolvidos<br />
afetam aquilo que eu<br />
coloco no meu trabalho como<br />
educador, ou mantêm fora dele?<br />
• Que tipos de métodos ou materiais<br />
de ensino eu evito porque envolvem<br />
o uso do meu canal de percepção<br />
subdesenvolvido?<br />
• Que coisas eu faço especialmente<br />
bem em virtude de um ou de dois<br />
de meus canais mais desenvolvidos?<br />
Essas indagações poderão orientar os<br />
processos de formação, com o intuito de<br />
priorizar uma uniformidade de uso dos canais<br />
de percepção no processo de ensino.<br />
Tomando-se por base o momento que comecei<br />
a pôr em prática o estudo dos canais<br />
de percepção, os resultados foram significativos<br />
no meu exercício docente. O auditivo<br />
é o canal perceptivo menos aguçado<br />
e por consequência o menos utilizado por<br />
mim, portanto, no processo de preparar<br />
uma aula prática de teatro, por exemplo,<br />
dava maior importância para os recursos<br />
visuais (imagens projetadas, fotografias,<br />
observação do espaço, etc.) e para os estímulos<br />
sinestésicos (trabalho com o corpo,<br />
respiração, manipulação de objetos, cheiros,<br />
etc.).<br />
A partir disso, percebi que poucas vezes<br />
a minha atenção se direcionou para as<br />
questões auditivas no ato de preparar as<br />
aulas. Com frequência, no momento da<br />
aula prática, os recursos sonoros que utilizava<br />
eram aleatórios, ou seja, simplesmente<br />
colocava uma música durante a dinâmi-<br />
A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA: OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
ca ou jogo teatral. Posteriormente, a partir<br />
de um trabalho reflexivo sobre as minhas<br />
escolhas para a preparação das atividades,<br />
ficou evidente a minha carência de atenção<br />
para o som nas minhas opções.<br />
Atualmente, após contínuo esforço<br />
para aguçar o meu canal auditivo, ao delinear<br />
uma aula, priorizo uma música ou um<br />
ruído de acordo com os objetivos do jogo,<br />
da cena, do exercício. Nesse sentido, consigo<br />
melhores resultados. De acordo com<br />
Barbosa,<br />
A atividade de aprendizagem vai<br />
ser fortemente influenciada pelo<br />
uso dos canais de percepção preferenciais<br />
do educando, por exemplo,<br />
um educador precisa saber falar no<br />
canal auditivo (“auditivêz”), quando<br />
explica algo para um educando<br />
que prioriza o ouvido para receber<br />
informação. O mesmo educador<br />
precisará saber falar no canal visual<br />
(“visualêz”), quando tenta ensinar<br />
algo para um educando que prioriza<br />
o canal visual para internalizar o<br />
conhecimento. Também precisará<br />
saber falar no canal sinestésico (“sinestesiquêz”)<br />
para conseguir uma<br />
compreensão adequada daquilo que<br />
está tentando ensinar para um educando<br />
que prefere aprender fazendo,<br />
sentindo a matéria, cheirando ou<br />
provando o conteúdo (2008).<br />
Portanto, é muito importante aprender<br />
a identificar o canal prioritário do aluno e<br />
usá-lo para a emissão de mensagem, tornando<br />
mais fácil o processo de recepção e<br />
entendimento, aumentando a compreensão<br />
e a aprendizagem. No ensino do teatro,<br />
no momento da explicação de um jogo ou<br />
exercício, por exemplo, explicar os direcionamentos<br />
com exatidão é fundamental,<br />
pois se alguma dúvida estiver presente, a<br />
proposta poderá não surtir o efeito esperado.<br />
4 Nesse sentido, o professor, ao fa-<br />
4 Durante as aulas laboratório, em que alunos ministram atividades teatrais para<br />
seus colegas de sala, é importante notar que no final do processo, durante o momento<br />
da avaliação em grupo, os apontamentos geralmente são referentes à falta<br />
de clareza nas explicações das metodologias por aquele que está ministrando a<br />
aula. Quando isso ocorre, torna-se evidente no decorrer da aula que os alunos<br />
partícipes não permanecem concentrados, numa tentativa de compreender melhor<br />
o direcionamento dado pelo aluno/docente.<br />
89
<strong>Urdimento</strong><br />
90<br />
zer uso dos canais de percepção durante o<br />
processo de ensino, sem dúvida, estimula<br />
o interesse e o entendimento do aluno, um<br />
auxílio a mais para um melhor encaminhamento<br />
das atividades teatrais.<br />
Além disso, utilizar recursos da engrenagem<br />
teatral para criar a atmosfera da<br />
cena na escola, com instrumentos de percussão,<br />
luz, cenários, figurinos, etc., engaja<br />
mais o aluno nas proposições da aula.<br />
Com uma prática que busca determinar o<br />
mesmo universo do espetáculo no espaço<br />
da escola, certamente, o professor estará<br />
estimulando um efeito estético, obtido com<br />
base numa determinada organização de<br />
elementos sensoriais. Em decorrência do<br />
clima alcançado, os alunos serão envolvidos,<br />
provavelmente, através dos canais de<br />
percepção por uma recepção subsidiada<br />
pelas cores, formas, timbres, movimentos,<br />
etc.<br />
Deste modo, os impactos causados na<br />
elaboração de encaminhamentos teatrais<br />
tomando-se por base as possibilidades sensoriais,<br />
em razão das carências artísticas<br />
que a escola declara, permitem uma implicação<br />
de propostas cênicas mais convincentes.<br />
A sedução deve permear o trabalho<br />
com o teatro na escola, caso contrário, as<br />
propostas cênicas dificilmente atingirão<br />
plenamente o envolvimento dos alunos.<br />
O professor em processo de formação<br />
precisa valer-se desse desenvolvimento<br />
para pesquisar: experimentar e checar alternativas<br />
metodológicas. Se os canais de<br />
percepção forem utilizados em pesquisa<br />
contínua – primeiramente, por meio do autoconhecimento<br />
do docente e de seus alunos,<br />
para em seguida através de um melhor<br />
entendimento sobre os processos de<br />
interpretar e organizar os estímulos sensoriais<br />
recebidos –, certamente, a qualidade<br />
da aula será outra.<br />
Diante disso, faz sentido buscar o desenvolvimento<br />
e uma consciência desse<br />
processo sob uma forma reflexiva. As experiências<br />
significativas provêm das ações<br />
diante das sensações, basta identificarmos<br />
os caminhos pelos quais foram utilizados<br />
os canais perceptivos pelos docentes em<br />
N° 18 | Setembro de 2012<br />
nossa trajetória de aprendizagem. É preciso<br />
a disposição do professor para rever<br />
e avaliar constantemente tradições pedagógicas,<br />
uma vez que elas parecem insuficientes<br />
para responder aos novos desafios<br />
da educação. Nesta perspectiva, acredito<br />
que o ensino do teatro sendo pensado em<br />
conjunto com os canais de percepção pode<br />
contribuir e ser um caminho para refletir<br />
a formação inicial do professor na linguagem<br />
teatral e do professor em exercício.<br />
Robson Rosseto<br />
N° 18 | Setembro de 2012<br />
REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS<br />
A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA: OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
BARBOSA, Adelson Cândido. Tecnologias de Transformação do ser. Blumenau: [s.n.], 2008. (Apostila do Curso<br />
Estratégias de Aprendizagem, TECTRANS)<br />
HERNÁNDEZ, Fernando. Como os docentes aprendem. Pátio revista pedagógica, Ano 1, nº 4, Fevereiro/Abril,<br />
p.9-13, 1998.<br />
PERRENOUD, Philippe. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica. Tradução<br />
de Cláudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2002.<br />
PIMENTA, Selma Garrido; LIMA; Maria do Socorro Lucena. Estágio e Docência. São Paulo: Cortez, 2004. (Coleção<br />
docência em formação. Série saberes pedagógicos)<br />
ROBBINS, Anthony. Poder sem limites. Tradução de Muriel Alves Brazil. 11. ed. São Paulo: Best Seller, 2009.<br />
91
N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE,<br />
Resumo<br />
Este artigo apresenta uma revisão bibliográfica dos<br />
conceitos de identidade, subjetividade e diferença a partir<br />
da perspectiva educacional pós-crítica, com o intuito<br />
de refletir sobre os paradigmas com os quais o professor<br />
se depara no contexto escolar e cogitar de que<br />
maneira a prática teatral pode se relacionar com estas<br />
questões e dar voz social ao estudante.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Identidade; subjetividade; teatro na escola.<br />
Resumo<br />
This article presents a review of the concepts of identity,<br />
subjectivity and difference from the post-critical<br />
educational perspective, in order to reflect on the<br />
paradigms that the teacher faces in the school context and<br />
to consider how the theatrical practice can relate to these<br />
social issues and give voice to the student.<br />
KEywoRdS: Identity; Subjectivity; Theatre in the school.<br />
1 Texto revisado da dissertação “O espaço sonoro em processos de drama: a voz e os ruídos na construção<br />
de narrativas teatrais no contexto escolar”, defendida no PPGT/UDESC em 2010.<br />
2 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Teatro da UDESC. Atriz e Arte – educadora, atua em<br />
escolas e projetos de educação sociocultural.<br />
SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 1<br />
Raquel Guerra 2<br />
A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 93
<strong>Urdimento</strong><br />
94<br />
I – Introdução: a ruptura de paradigmas<br />
A<br />
pesquisa bibliográfica está desenvolvida<br />
a partir de duas<br />
questões amplas: como o processo<br />
educacional se relaciona com<br />
a constituição da subjetividade e<br />
identidade do educando? Quais as convergências<br />
destes aspectos para a experiência<br />
artística/teatral desenvolvida no contexto<br />
escolar?<br />
Segundo conceituações contemporâneas<br />
em torno da primeira questão, já não<br />
é possível pensar os conceitos de identidade<br />
e subjetividade como uma parte estável<br />
e centrada do sujeito. Tomaz Tadeu<br />
(2000; 1994) e Stuart Hall (2000; 2001), em<br />
abordagens acerca do pós-estruturalismo<br />
e pós-modernismo3 revelam que o descentramento<br />
da consciência e do sujeito indica<br />
a instabilidade das próprias estruturas<br />
nas quais os sujeitos contemporâneos estão<br />
constituídos, noutras palavras, o mundo<br />
globalizado imprimiu às sociedades mudanças<br />
constantes e rápidas, ao mesmo<br />
tempo em que as diversidades existentes<br />
entre as sociedades e dentro delas foram<br />
expostas. A respeito da segunda questão, é<br />
pertinente considerar que “o ensino do teatro,<br />
na escola e na comunidade, reflete as<br />
formas teatrais contemporâneas ao mesmo<br />
tempo em que responde aos avanços das teorias<br />
da educação.” (CABRAL, 2009, p.39).<br />
Neste sentido, o texto apresenta o pensamento<br />
da teoria educacional pós-crítica na<br />
intenção de confrontá-lo com o ensino do<br />
teatro na escola.<br />
Ao discorrer sobre a diversidade cultural<br />
no contexto da escola obrigatória e da<br />
educação em tempo de globalização, Gimeno<br />
Sacristán (2001) destaca um dos desafios<br />
educacionais contemporâneos: como abordar<br />
a diversidade quando o processo de<br />
escolarização se apresenta rígido quanto às<br />
normas igualadoras, ou seja, “uma escola comum<br />
que satisfaça o ideal de uma educação<br />
igual para todos [...] na paisagem social das<br />
sociedades modernas, acolhendo sujeitos<br />
3 Sobre os termos e sua relação com campo educacional, ver TADEU (1994;<br />
2000) e GIROUX (1999).<br />
muito diferentes, parece uma contradição<br />
ou uma impossibilidade.” (SACRISTáN,<br />
2001, p. 71-72).<br />
Somos únicos porque somos ‘variados’<br />
internamente, porque somos<br />
uma combinação irrepetível de condições<br />
e qualidades diversas, não de<br />
todo estáticas, o que nos torna também<br />
diferentes em relação a nós mesmos<br />
ao longo do tempo e segundo<br />
as circunstâncias em mudanças que<br />
nos afetam. Nas condições sociais e<br />
culturais da pós-modernidade, essa<br />
complexidade e instabilidade de cada<br />
pessoa são acentuadas consideravelmente,<br />
diante da variedade de relações<br />
que estabelecemos em contextos<br />
mutantes. (SACRISTÁN, 2001,<br />
p. 73-74).<br />
O termo diversidade comumente aparece<br />
associado à noção de identidade pós-moderna,<br />
sobretudo nos escritos do movimento<br />
multiculturalista, que considera a diversidade<br />
como uma “coexistência de diferentes e<br />
variadas formas (étnicas, raciais, de gênero,<br />
sexuais) de manifestação da existência humana,<br />
as quais não podem ser hierarquizadas<br />
por nenhum critério absoluto ou essencial”<br />
(TADEU, 2000, p.44). Nesse caso, a diversidade<br />
está entendida como uma característica<br />
da sociedade contemporânea. O autor<br />
ressalta, porém, que o termo pode perder<br />
relevância teórica em função da ideia que<br />
“a diversidade está dada, que ela preexiste<br />
aos meios sociais pelos quais – numa outra<br />
perspectiva – ela foi, antes de qualquer coisa,<br />
criada” (TADEU, 2000, p. 44). Desse modo,<br />
sugere a utilização do conceito de diferença,<br />
“por enfatizar o processo social de produção<br />
da diferença e da identidade em suas conexões,<br />
sobretudo, com relações de poder e autoridade.”<br />
(TADEU, 2000, p. 45). Portanto, a<br />
diversidade cultural não deve ser compreendida<br />
como um fenômeno social dado, estático,<br />
mas sim, deve estar associada ao processo<br />
social de formação da identidade, posto que<br />
este seja atrelado às questões de diferença.<br />
Para Henry Giroux (1997), a diversidade<br />
cultural nos processos educacionais<br />
deve ser valorizada como uma forma de<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Raquel Guerra<br />
luta contra a hegemonia cultural, esta compreendida<br />
como a estruturação de “um<br />
aparato cultural que promove o consenso<br />
através da reprodução e distribuição dos<br />
sistemas dominantes de crenças e atitudes.”<br />
(GIROUX, 1997, p.113). O autor atenta<br />
para a ocorrência desta relação de dominação/subordinação<br />
no meio escolar e<br />
reforça a necessidade de o educador situarse<br />
diante dela ciente de sua existência nas<br />
experiências pedagógicas.<br />
As Escolas são lugares sociais constituídos<br />
por um complexo de culturas<br />
dominantes e subordinadas, cada<br />
uma delas caracterizada por seu poder<br />
em definir e legitimar uma visão<br />
específica da realidade. Os professores<br />
e aqueles interessados em educação<br />
devem passar a compreender<br />
como a cultura dominante funciona<br />
em todos os níveis de ensino escolar<br />
para invalidar as experiências<br />
culturais das ‘maiorias excluídas’.<br />
(...) para os professores isso significa<br />
examinar seu próprio capital cultural<br />
e examinar o modo no qual este<br />
beneficia ou prejudica os estudantes.<br />
(GIROUX, 1997, p. 38).<br />
Consoante o pensamento destes autores,<br />
o texto expõe algumas definições para<br />
os conceitos de identidade e subjetividade<br />
que expressam conexões com as experiências<br />
pedagógicas na escola e que implicam<br />
uma atitude auto reflexiva do professor<br />
sobre sua própria prática e as relações que<br />
nela se estabelecem, muitas vezes, de forma<br />
silenciosa. Nesse sentido, as colocações teóricas<br />
são referentes ao papel do professor<br />
em geral, mas o contexto deve ser lido também,<br />
e principalmente, considerando-se o<br />
professor de teatro.<br />
II- Identidade, subjetividade e diferença<br />
A subjetividade, para Edgar e Sedgwick<br />
(2003, p. 326), pode ser entendida como<br />
“a propriedade de ser sujeito”, todavia, tal<br />
propriedade não é dada e sim “constituída<br />
por formas e relações sociais”, ou seja, “as<br />
concepções de subjetividade são dependentes<br />
de fatores políticos, sociais e culturais”,<br />
de modo que “a subjetividade não<br />
pode ser tomada como algo independente<br />
das formas de linguagem; pelo contrário,<br />
a subjetividade é constituída tanto dentro<br />
quanto por meio do ato da fala”. (EDGAR<br />
E SEDGWICK , 2003, p. 326). Segundo Tomaz<br />
Tadeu (2000), o entendimento contemporâneo<br />
para subjetividade e identidade<br />
indica mobilidade e fragmentação,<br />
diferenciando-se da concepção humanista<br />
do sujeito, que via o indivíduo “constituído<br />
de um núcleo autônomo, racional, consciente<br />
e unificado”. (TADEU, 2000, p. 102).<br />
As velhas identidades, que por<br />
tanto tempo estabilizaram o mundo<br />
social, estão em declínio, fazendo<br />
surgir novas identidades<br />
e fragmentando o indivíduo moderno,<br />
até aqui visto como um sujeito<br />
unificado. A assim chamada<br />
‘crise da identidade’ é vista como<br />
parte de um processo mais amplo<br />
de mudança, que está deslocando<br />
as estruturas e processos centrais<br />
das sociedades modernas e abalando<br />
os quadros de referência que<br />
davam aos indivíduos uma ancoragem<br />
estável no mundo social.<br />
(HALL, 2001, p. 7)<br />
Consoante Tadeu (2000, p. 100), as críticas<br />
pós-moderna e pós-estruturalista efetuam<br />
um duplo descentramento do sujeito<br />
cartesiano: primeiro, o homem não ocupa<br />
mais a posição de centro do universo, já que<br />
este lugar foi cedido à sociedade, à linguagem<br />
e à história; segundo, a subjetividade<br />
perde seu sentido enquanto uma propriedade<br />
que pertence ao sujeito e passa a ser<br />
vista como resultante de processos inconscientes<br />
que o interpelam. A racionalidade e<br />
a consciência de ‘si’ mesmo já não tem lugar<br />
na teoria educacional pós-crítica, posto<br />
que o ‘si’ mesmo, o self, não é propriedade<br />
ou domínio do sujeito, mas resultante de<br />
suas relações socioculturais. “O Self é socialmente<br />
‘construído’, no sentido de ser<br />
moldado através de interação com outras<br />
pessoas e por utilizar materiais sociais sob<br />
A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 95
<strong>Urdimento</strong><br />
96<br />
a forma de imagens e ideias culturais. [...]<br />
o indivíduo não é um participante passivo<br />
desse processo, e pode exercer uma influência<br />
muito forte sobre a maneira como o<br />
processo e suas consequências se desenvolvem.”<br />
(EDGAR e SEDGWICK, 2003, p.<br />
204). Sacristán (2001), ao discutir sobre estas<br />
relações que marcam o indivíduo e que<br />
se formam no processo de escolarização,<br />
reflete acerca do conceito de identidade e<br />
acrescenta que:<br />
A partir de um ponto de vista pósmoderno,<br />
a identidade não é algo<br />
unificado, definitivo e fixado de uma<br />
vez por todas, mas sim algo em constante<br />
transformação, de sorte que o<br />
sujeito assume diferentes identidades<br />
em momentos e lugares distintos. Se<br />
o sujeito se crê dotado de uma identidade<br />
determinada não é porque a<br />
possua. Mas sim consequência da<br />
narração de sua vida que se representa<br />
diante de si. Essa forma de entender<br />
a identidade é coerente com<br />
o tipo de sociedade em mudança na<br />
pós-modernidade. (SACRISTÁN,<br />
2001, p.44)<br />
Diante das definições que cercam estes<br />
conceitos, como pensar a identidade e<br />
a subjetividade que se deixa evidenciar na<br />
sala de aula? Seria possível identificar estas<br />
questões na prática teatral? Sacristán (2001)<br />
reflete sobre as relações que, no interior escolar<br />
dão suporte a essa representação de si<br />
e de uma suposta identidade fixa do sujeito:<br />
o menino ‘lento’ passa a crer que é pouco inteligente,<br />
que não é capaz. A escola (colegas<br />
e professores) reforça esta característica que<br />
lhe é atribuída. Mas será que essa é realmente<br />
a sua identidade? Será que ela não tem<br />
voz ou não tem uma escuta que reconheça<br />
essa voz com suas particularidades, diferenças<br />
e peculiaridades culturais? Nesse caso,<br />
compreende-se a identidade através das<br />
inter-relações com os locais históricos e institucionais<br />
que as produzem “e são, assim,<br />
mais o produto da marcação da diferença e<br />
da exclusão do que o signo de uma unidade<br />
idêntica, naturalmente constituída, de uma<br />
identidade em seu significado tradicional”<br />
(HALL, 2000, p.109).<br />
A educação não pode ser uma tentativa<br />
de homogeneizar, pois as diferenças<br />
podem interagir umas com as outras<br />
e o conflito oriundo delas não pode ser<br />
ignorado. A problemática do processo<br />
de escolarização, presente em Giroux<br />
(1997) e em Sacristán (2002), é o contraste<br />
oriundo de uma cultura dominante e a<br />
diversidade de manifestações que fazem<br />
obstáculos a ela – tal oposição é definida<br />
como resistência 4 por Henry Giroux.<br />
Noutras palavras, a escola é um espaço<br />
de convívio sociocultural que produz<br />
uma infinidade de narrativas, estas autorizam/aprovam<br />
uma série de atitudes<br />
e valores culturais ao mesmo tempo desaprovam<br />
e recriminam outros. Consoante<br />
Henry Giroux (1999), a noção de<br />
diferença pode ser explorada através de<br />
uma pedagogia que dê voz ao aluno e<br />
não reduza o comportamento humano<br />
a padrões determinantes nem legitime<br />
apenas um modo de ser. “A noção da<br />
diferença tem desempenhado um papel<br />
‘importante em tornar visível como o<br />
poder é inscrito de maneiras diferentes<br />
em e entre as zonas de cultura, como as<br />
fronteiras culturais suscitam questões<br />
importantes com respeito às relações de<br />
desigualdade, luta e história, e como as<br />
diferenças são expressas de maneiras<br />
múltiplas e contraditórias dentro dos indivíduos<br />
e entre grupos diferentes.” (GI-<br />
ROUX, 1999, p.197).<br />
Diante deste contexto teórico, lanço<br />
algumas perguntas: poderia o teatro na<br />
escola, com sua poética subversiva, ser<br />
pensado como resistência? A variedade<br />
de práticas teatrais e suas poéticas podem<br />
contribuir como resistência a uma<br />
possível hegemonia cultural? A constante<br />
reprodução, durante as improvisações<br />
teatrais com alunos de ensino fundamental,<br />
dos modelos televisivos e cine-<br />
4 O conceito de resistência desenvolveu-se na teoria educacional crítica em<br />
contraste às teorias da reprodução e à ideia da passividade da ação humana<br />
diante das forças sociais opressoras. “Mais recentemente, algumas análises<br />
têm-se voltado para a concepção de resistência oferecida por Michel Foucault,<br />
para quem o poder implica, sempre, resistência”(Tadeu, 2000, p. 98). Esta é,<br />
particularmente, a análise de Giroux, que se apoia nas noções foucaultianas<br />
do contradiscurso e do poder como força positiva para pensar o conceito<br />
de resistência na escola.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Raquel Guerra<br />
matográficos, de personagens e modos<br />
de interpretação, poderia ser vista como<br />
uma forma de hegemonia cultural? Qual<br />
o papel do professor de teatro diante<br />
desta situação? Longe de esgotar as possibilidades<br />
de respostas a estas questões<br />
amplas, a citação abaixo aponta para<br />
possíveis pontos a partir dos quais tais<br />
questões possam ser [re]pensadas.<br />
Quer se fale de jogo dramático,<br />
jogo teatral ou drama, não<br />
há como deixar de reconhecer o<br />
papel central das interações do<br />
fazer teatral com outras áreas<br />
de conhecimento. Processos de<br />
montagem, criação coletiva, investigações<br />
cênicas, interagem<br />
com temáticas, ideias, imagens.<br />
Seu diretor/professor media as<br />
interações entre os participantes,<br />
e destes com o espaço, o tempo,<br />
a cena, o contexto da ficção. É<br />
a partir desta constatação que se<br />
deve pensar no papel do professor.<br />
O cruzamento de áreas e subáreas<br />
do conhecimento no fazer<br />
teatral, aponta para a interdisciplinaridade.<br />
A heterogeneidade<br />
do grupo indica uma abordagem<br />
intercultural. Entretanto, o professor<br />
de teatro, por um lado, é<br />
pressionado a decorar e animar<br />
as datas comemorativas, por outro<br />
lado, vê seu espaço de atuação<br />
ser considerado descartável (...).<br />
A complexidade deste quadro,<br />
que persiste nos dias atuais, requer<br />
uma reflexão sobre a postura,<br />
atitudes e ações do professor<br />
no campo da escola. (CABRAL,<br />
2008, p.43).<br />
No pensamento de Giroux (1999; 1997),<br />
a experiência pedagógica na escola está associada<br />
à prática do professor como um Intelectual<br />
Transformador 5 que, para o autor, refere-se<br />
à construção de uma pedagogia em sala de<br />
5 A noção de Intelectual Transformador (educadores e pesquisadores<br />
educacionais) de Henry Giroux (1997) está associada a uma série de<br />
considerações em torno de uma Política Educacional que reavalie a<br />
participação do professor em diversas esferas, desde a elaboração de<br />
currículo e normativas às práticas em sala de aula. Em minha pesquisa, detiveme<br />
às considerações do autor sobre o Intelectual Transformador e sua<br />
relação com a experiência pedagógica.<br />
aula que seja uma experiência que dá voz ao<br />
estudante, por isso, o educador deve atentar<br />
para as formas pelas quais as subjetividades<br />
são construídas e legitimadas, como a experiência<br />
dentro da escola é moldada, como certos<br />
aparatos de poder legitimam uma versão<br />
particular do conhecimento como verdade<br />
(GIROUX, 1997, p.31).<br />
O ensino de Teatro na Escola, quando<br />
reproduzido segundo as “inúmeras<br />
visões preconcebidas que reduzem a atividade<br />
artística na escola a um verniz de<br />
superfície, que visa as comemorações de<br />
datas cívicas” (PCN/ARTES, 1997, p.31)<br />
não seria uma forma de inibir a voz social<br />
do aluno? Nesse sentido, a reflexão sobre<br />
o ‘como ensinar’ o teatro na escola é tão<br />
indispensável de ser revisto e repensado<br />
como ‘o que ensinar’ ou ‘que técnica usar’.<br />
Nessa reflexão, os Parâmetros Curriculares<br />
Nacionais indicam que o professor de<br />
artes deve ser visto como um observador<br />
das questões de interesse dos alunos,<br />
como um criador das situações de aprendizagem<br />
do conhecimento arte. Segundo<br />
Fusari e Ferraz (1993, p. 53) o professor<br />
que ministra uma disciplina de artes não<br />
deve apenas saber o que é ou como fazer<br />
arte, ele também precisa ‘saber ser professor<br />
de arte’ e compreender as particularidades<br />
que o processo de aprendizagem<br />
criativa em um grupo demanda: “O<br />
professor de arte precisa saber o alcance<br />
de sua ação profissional, ou seja, saber<br />
que pode concorrer para que seus alunos<br />
também elaborem uma cultura estética e<br />
artística que expresse com clareza a sua<br />
vida na sociedade.” (FUSARI E FERRAZ,<br />
1993, p. 53). A prática na sala de aula, a<br />
forma como a experiência pedagógica<br />
é moldada e as posições e papéis que o<br />
professor assume são poderosos vetores<br />
na legitimação das experiências subjetivas<br />
dos alunos no cotidiano escolar, seja<br />
ela uma forma de emancipação ou reprodução<br />
de um capital dominante. Por isso,<br />
o teatro como disciplina do conhecimento<br />
escolar também necessita refletir tais<br />
questões em sua prática pedagógica.<br />
Segundo Gadotti (1998, p.192), a teo-<br />
A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 97
<strong>Urdimento</strong><br />
98<br />
ria de Giroux não se limita à constatação<br />
de que a escola é um órgão institucional<br />
que apenas reproduz a sociedade dominante,<br />
pois ele toma “os conceitos de conflito<br />
e resistência como ponto de partida<br />
para suas análises” para compreender as<br />
relações entre escolarização e sociedade<br />
dominante e evidenciar que, mesmo não<br />
fazendo parte de uma ‘cultura dominante’<br />
e, portanto institucionalizada, as<br />
expressões culturais diferentes, ou seja,<br />
aquelas que não fazem parte do rol de<br />
‘manifestações da cultura dominante’,<br />
elas também têm voz. No âmbito destas<br />
colocações, visualizo o processo artístico<br />
na escola como uma prática pedagógica<br />
que gera um espaço para estas diversas<br />
vozes. Gimeno Sacristán (2001) acentua<br />
que “as práticas educativas – sejam as da<br />
família, as das escolas ou as de qualquer<br />
outro agente – enfrentam a diversidade<br />
como um dado da realidade.” (SACRIS-<br />
TáN, 2001, p.75). Esta diversidade cultural,<br />
no processo da escolarização, não<br />
pode ser homogeneizada por uma norma<br />
padrão.<br />
Na vida social, governada por<br />
procedimentos democráticos, a<br />
diversidade social, de opiniões<br />
quanto a modelos de vida, etc.<br />
é abordada com a prática da tolerância,<br />
da aceitação de normas<br />
compartilhadas que obrigam os<br />
indivíduos a algumas renúncias,<br />
respeitando espaços para a expressão<br />
e cultivo das individualidades<br />
singulares. A escola, cuja<br />
estruturação é anterior à aceitação<br />
do modelo democrático, elegeu o<br />
caminho da submissão do diferente<br />
à norma homogeneizadora.<br />
(SACRISTÁN, 2001, p. 76).<br />
A voz do aluno diante deste contexto<br />
representa, ou pode representar a diversidade,<br />
a peculiaridade e particularidade<br />
de opiniões, crenças, modelos de<br />
vida, etc. jamais uma norma padrão. Será<br />
o processo artístico capaz de dar vazão a<br />
essa variedade? Que voz do estudante é<br />
essa? Uma voz institucionalizada? A voz<br />
de cada aluno na sala de aula? Henry Giroux<br />
(1997) analisa, a partir da teoria da<br />
reprodução, as formas pelas quais as escolas<br />
transmitem, reproduzem e legitimam<br />
a cultura dominante. O Capital Cultural 6 ,<br />
segundo a teoria da reprodução de Pierre<br />
Bourdieu, refere-se aos bens culturais que<br />
são fornecidos como o capital material,<br />
mas que se referem a valores, estilos, práticas<br />
de linguagens, etc. Conforme Gadotti<br />
(1998, p. 195), o ponto de partida para a<br />
análise de Bourdieu está na relação entre<br />
os sistemas social e escolar. No entanto,<br />
não é a mera diferenciação de classe que<br />
irá definir o sucesso ou o fracasso escolar<br />
dos indivíduos, mas sim sua relação com<br />
a herança cultural: “a cultura das classes<br />
superiores estaria tão próxima da cultura<br />
da escola que a criança originária de um<br />
meio social inferior não poderia adquirir<br />
senão a formação cultural que é dada aos<br />
filhos da classe culta. Portanto, para uns,<br />
a aprendizagem da cultura escolar é uma<br />
conquista duramente obtida; para outros é<br />
uma herança ‘normal’, que inclui a reprodução<br />
das normas. O caminho a percorrer<br />
é diferente, conforme a classe de origem.”<br />
(GADOTTI, 1998, p.195).<br />
Diante da hegemonia cultural que tende<br />
a igualar os sujeitos, uma alternativa<br />
elencada por Giroux (1997) está na constante<br />
reflexão que o educador deve ter<br />
sobre si e suas experiências pedagógicas.<br />
Tomaz Tadeu (1994, p. 251), ao analisar o<br />
papel do professor, reforça que “é sua própria<br />
relação com os estudantes que deve<br />
ser mantida constantemente em xeque,<br />
tendo em vista seu possível envolvimento<br />
em processos de regulação e controle”.<br />
Nesse caso, o professor enquanto um intelectual,<br />
“não se reconhece tanto pelo grau<br />
de sua crítica em relação às posições de poder<br />
e dos outros quanto pelo grau de sua<br />
6 Na teoria de Bourdieu, associados ao conceito de capital cultural, estão o<br />
capital simbólico e o capital social. Segundo definições de Tomaz Tadeu<br />
(2000, p. 24-25): “O capital cultural pode se apresentar de forma objetivada<br />
(objetos culturais como obras de arte, livros, discos); institucionalizada<br />
(títulos, certificados e diplomas); ou incorporada (disposições e capacidade<br />
culturais internalizadas)”; o capital simbólico é “a autoridade, a legitimidade<br />
e o prestígio sociais conferidos ao agente possuidor de capital econômico,<br />
social ou cultural”. E o capital social “refere-se às conexões sociais – redes<br />
de amizade, parentesco, influência e troca de favores – através dos quais as<br />
classes sociais dominantes garantem suas posições de dominação”.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Raquel Guerra<br />
auto reflexividade.” (TADEU, 1994, p. 252).<br />
Nesse contexto, quais as condições que o<br />
professor de teatro encontra na escola para<br />
a reflexão de sua própria ação pedagógica?<br />
Infelizmente,<br />
“o ensino do teatro (e a escola em<br />
geral) padece com a falta de investimento<br />
em formação continuada e<br />
atualização do professor. Com sobrecarga<br />
de turmas e uma disciplina que<br />
envolve movimento, som, reformulação<br />
do espaço disponível e trabalho<br />
em grupos, o professor de teatro acaba<br />
reproduzindo uma relação ensinoaprendizagem<br />
que vai gradualmente<br />
estabelecendo uma rotina e se afastando<br />
da reflexão teórica e prática.”<br />
(CABRAL, 2008, p.43).<br />
III - Experiência pedagógica<br />
e processo artístico<br />
No tocante ao ‘dar a voz’ ao aluno, a<br />
sua expressão e presença no processo artístico<br />
podem indicar que o aluno assume um<br />
lugar, um espaço. Talvez possa dizer que<br />
seu envolvimento no fazer artístico revele<br />
inclusive uma forma de estar se posicionando<br />
diante do mundo, na proporção que<br />
tal fazer revela suas concepções de mundo,<br />
suas referências, seu capital cultural. No entanto,<br />
a participação do aluno no processo<br />
artístico será garantia que ele ‘tenha voz’<br />
no processo educacional? Não! O processo<br />
artístico como qualquer outra experiência<br />
pedagógica pode revelar-se ‘normatizante’<br />
e longe de valorizar as diferenças existentes<br />
no interior de uma classe de alunos. Quer<br />
dizer, a participação e expressão artística<br />
do aluno/ator não indicam ou garantem ao<br />
educador ‘dar voz social’ ao aluno. É nesse<br />
sentido que a citação anterior de Tomaz<br />
Tadeu (1994) está inserida: a necessidade de<br />
o educador, no caso o professor de teatro<br />
na escola, produzir uma autorreflexão de<br />
seu trabalho é o que lhe confere a condição<br />
de ‘intelectual transformador’. Questionado<br />
quanto à aprendizagem que ‘cala’ as vozes<br />
dos alunos, que não ‘dá voz’, Giroux (1999,<br />
p. 25) posiciona-se da seguinte forma: “Será<br />
que pode ocorrer aprendizagem se na verdade<br />
ela silencia as vozes das pessoas que<br />
pretende ensinar? E a resposta é: sim. As<br />
pessoas aprendem que elas não importam”.<br />
Trago um caso discutido junto ao grupo<br />
de estudos 7 que pode exemplificar esta<br />
exposição. Em um processo de Drama desenvolvido<br />
por Beatriz Cabral, com alunos<br />
de um colégio municipal de Florianópolis,<br />
há alguns anos, havia um menino maior<br />
que os demais da classe. Não apenas seu<br />
tamanho, mas também seu comportamento<br />
agitado e o fato de ter reprovado algumas<br />
vezes, faziam com que tal aluno fosse<br />
constantemente tido como ‘problema’, o<br />
aluno ‘reprovado’. No trabalho prático ele<br />
apresentou seu comportamento habitual<br />
em sala de aula: agitação, desordem, conversas<br />
para chamar a atenção, entre outras<br />
ações. Então lhe foi proposto outro papel:<br />
ele ganhou uma função importante, que<br />
nenhum outro aluno possuía, adquirindo<br />
uma função de status e responsabilidade<br />
frente aos demais. Ao fim do processo, o<br />
aluno surpreende: participa com envolvimento<br />
e escreve um texto sobre a atividade<br />
com muito empenho – o que veio a surpreender<br />
os profissionais da escola. Certamente,<br />
com esta descrição não pretendo<br />
concluir que o processo artístico modificou<br />
o comportamento do aluno, seria reducionista<br />
demais, porém, é possível dizer que<br />
o processo artístico permitiu uma variação<br />
no comportamento habitual do aluno.<br />
Este relato não descreve a mudança<br />
de comportamento do aluno em si, mas o<br />
sentido de ‘dar voz’ ao aluno. O exemplo<br />
pode analisar duas coisas: a primeira é o<br />
fato de que muitas vezes se atribui uma<br />
característica fixa a um aluno e toma-se<br />
isso como parte de sua identidade, ou<br />
seja, ‘ele é assim mesmo’. Outra questão é<br />
a inversão deste contexto no processo artístico<br />
e, talvez aí resida o poder do teatro<br />
na constituição subjetiva e de formação<br />
do aluno. Ou seja, o professor quando<br />
capaz de refletir e identificar as relações<br />
de poder, subordinação e exclusão que se<br />
7 Grupo de Estudos Pedagogia do Teatro e Teatro como<br />
Pedagogia DAC/UFSC e UDESC, 2007/2008.<br />
A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 99
<strong>Urdimento</strong><br />
100<br />
estabelecem na sala de aula pode propor<br />
atitudes/papéis/enquadramentos que<br />
possam romper ou gerar um conflito nestas<br />
‘identificações marcadas’, posto que o<br />
próprio conceito de identidade já não é<br />
mais visto como algo unificado.<br />
A ênfase no engajamento do professor<br />
em questões de ordem cultural e<br />
social é indispensável para a escola, ou<br />
seja, o educador não pode ignorar como<br />
essas questões dão condições a alguns e<br />
excluem outros no processo educacional.<br />
Moacyr Gadotti (1998) posiciona-se da seguinte<br />
maneira:<br />
Dadas as diferenças em formação<br />
e informação que a criança recebe,<br />
conforme sua posição na hierarquia<br />
social, ela traz um determinado<br />
‘capital cultural’ para a escola.<br />
Já que na escola a cultura burguesa<br />
constitui a norma, para as crianças<br />
das classes dominantes a escola<br />
pode significar continuidade, enquanto<br />
que para os filhos da classe<br />
dominada a aprendizagem se torna<br />
uma verdadeira conquista. (GA-<br />
DOTTI, 1998, p. 189)<br />
Estas relações, estabelecidas no interior<br />
da vida escolar, reforçam a importância de<br />
reavaliar a experiência pedagógica, local e<br />
particular ao grupo de indivíduos que participam<br />
na construção de um saber, o saber<br />
da experiência, conforme Jorge Larrosa<br />
Bondía (2001):<br />
A experiência, a possibilidade de<br />
que algo nos aconteça ou nos toque,<br />
requer um gesto de interrupção, um<br />
gesto que é quase impossível nos<br />
tempos que correm: requer parar<br />
para pensar, parar para olhar, parar<br />
para escutar, pensar mais devagar,<br />
olhar mais devagar, e escutar mais<br />
devagar; parar para sentir, sentir<br />
mais devagar, demorar-se nos detalhes,<br />
suspender a opinião, suspender<br />
o juízo, suspender a vontade,<br />
suspender o automatismo da ação,<br />
cultivar a atenção e a delicadeza,<br />
abrir os olhos e os ouvidos, falar<br />
sobre o que nos acontece, aprender<br />
a lentidão, escutar aos outros, cultivar<br />
a arte do encontro, calar muito,<br />
ter paciência e dar-se tempo e espaço.<br />
(BONDÍA, 2001, p.24).<br />
O sujeito desta experiência é definido<br />
segundo sua passividade, disponibilidade<br />
e abertura ao acontecimento da experiência.<br />
Contudo, Jorge Larrosa Bondía (2002,<br />
p. 25) destaca que tal passividade não é<br />
contrária ao sujeito ativo, mas anterior à<br />
própria oposição passividade-atividade.<br />
Trata-se, portanto, de uma passividade que<br />
concerne à paciência, atenção e disponibilidade<br />
à experiência. Na experiência teatral<br />
na escola, é necessário que o professor seja<br />
capaz de colocar-se também como sujeito<br />
desta experiência, para que possa construir<br />
um saber junto aos seus alunos, e isto poderá<br />
ser possível, mediante sua capacidade<br />
de olhar para seu papel e função dentro da<br />
escola e as possibilidades de o teatro existir<br />
dentro dela como uma experiência.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Raquel Guerra<br />
REfEREnCIAL<br />
BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais/Artes. Brasília: MEC,<br />
1997.<br />
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira<br />
de Educação. n. 19, p. 20-28, Jan/Fev/Mar/Abr, 2002.<br />
CABRAL, Biange. O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos históricos. (39- 48).<br />
URDIMENTO, Revista do Programa de Pós-Graduação em Teatro/UDESC. 2009.<br />
EDGAR, Andrew; SEDGWICK, Peter. Teoria social de A a Z. São Paulo: [s. n.], 2003.<br />
FUSARI, Maria de Rezende; FERRAZ, Maria Heloísa. A arte na educação escolar. São Paulo:<br />
Ed. Cortez, 1993.<br />
GADOTTI, Moacyr. História das Ideias Pedagógicas. São Paulo: ática, 1998.<br />
GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em educação.<br />
Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.<br />
_____________ Os professores como intelectuais: rumo a uma nova pedagogia crítica da aprendizagem.<br />
Tradução de Daniel Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.<br />
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.<br />
_____________ Quem precisa de Identidade? Artigo in Identidade e diferença, org. Tomaz<br />
Tadeu da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000.<br />
SACRISTáN, Gimeno. A Educação obrigatória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.<br />
___________ Educar e conviver na cultura global. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.<br />
TADEU, Tomaz. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica,<br />
2000.<br />
_______________ (org) O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994.<br />
A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 101
N° 18 | Março de 2012<br />
A EXPERIMENTAçãO VOCAL NA COMPOSIçãO DA PERSONAGEM TEATRAL. CONFRONTANDO AS BARREIRAS DA PRECONCEPçãO DO TEXTO<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
A EXPERIMENTAçãO VOCAL NA COMPOSIçãO DA PERSONAGEM TEATRAL.<br />
CONFRONTANDO AS BARREIRAS DA PRECONCEPçãO DO TEXTO.<br />
Ágata Baú 1<br />
A fala não é um comentário, uma sombra do real, a<br />
moedagem do mundo em palavras, mas algo vindo ao<br />
mundo como que para nos arrancar dele.<br />
Resumo<br />
Este artigo trata de algumas questões sobre o trabalho vocal do<br />
ator que surgiram durante o processo de experimentação prática<br />
da pesquisa para a Dissertação de Mestrado “Imagens da pintura<br />
como estímulo para a composição da personagem teatral”. Trata<br />
principalmente do momento quando as atrizes que trabalharam<br />
nesta investigação começaram a colocar o texto junto com as matrizes<br />
corporais que haviam criado a partir de imagens da pintura. Indica os<br />
problemas e as estratégias utilizadas para contornar as dificuldades.<br />
Palavras-chave: teatro, ator, composição de personagem, voz.<br />
Resumo<br />
This article addresses some questions about the actor’s vocal<br />
work that emerged during the trial practice of research for<br />
the Dissertation “Images of the painting as a stimulus for the<br />
composition of theatrical character”. This is especially the<br />
moment when the actresses who worked on this research have<br />
begun to put the text together with the matrices that body had<br />
created from images of the painting. Indicates the problems<br />
and the strategies used to circumvent the difficulties.<br />
KEywoRdS: theater, acting, composing character, voice.<br />
1 Atriz e Mestre em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, sob orientação da<br />
Professora Doutora Mirna Spritzer.<br />
2 NOVARINA, Valère. Diante da Palavra. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. p.15.<br />
103
<strong>Urdimento</strong><br />
104<br />
São muitas as variáveis na relação<br />
entre a palavra escrita (o texto dramático,<br />
neste caso) e a palavra falada<br />
(a encenação). Quando começamos<br />
3 as leituras do texto “A Filha<br />
do Teatro”, de Luís Reis, tentamos ser o<br />
mais neutras possível na forma como o fazíamos,<br />
sem buscar intenções neste primeiro<br />
momento. Descobrimos, no entanto, quão<br />
difícil era desvincular aquelas palavras de<br />
uma preconcepção das personagens que o<br />
habitavam. O texto escrito sempre esteve<br />
bastante presente no processo, com as leituras,<br />
os cortes, as anotações feitas em todos<br />
os dias de trabalho, mas mesmo assim,<br />
trabalhar com ele exigiu mais cuidado.<br />
Depois que as atrizes já haviam feito<br />
suas explorações sobre imagens da pintura<br />
(foco da pesquisa) e depois que caracterizamos<br />
as personagens, pedi que fossem<br />
brincando com as palavras que as definiam,<br />
junto com as explorações corporais.<br />
Aqui as dificuldades apareceram bastante<br />
tímidas ainda. Quando juntamos o texto<br />
em si (e não mais palavras soltas) com estes<br />
corpos em tensão e movimento é que pudemos<br />
sentir que era um ponto que precisava<br />
de maior atenção, que seriam necessárias<br />
algumas estratégias para unir os corpos às<br />
palavras, já que, num primeiro momento,<br />
estes ainda pareciam dissociados:<br />
A palavra pronunciada não existe<br />
em um contexto puramente verbal:<br />
ela participa necessariamente de um<br />
processo geral, operando numa situação<br />
existencial que ela altera de<br />
alguma forma e cuja tonalidade engaja<br />
os corpos dos participantes (ZU-<br />
MTHOR, 2005, p.147).<br />
Tínhamos que trabalhar mais a fala do<br />
texto. A forma como o estavam dizendo<br />
era cheia de intenções vazias, construídas<br />
e cristalizadas com as primeiras leituras,<br />
antes de qualquer aprofundamento ou entendimento<br />
sobre as personagens. As falas<br />
eram repletas de entonações desconexas<br />
com suas composições físicas e estava muito<br />
difícil quebrá-las. Precisávamos torná-las<br />
3 Trabalharam comigo nesta pesquisa as atrizes Luiza Sperb e Vívian Salva.<br />
maleáveis, torná-las disponíveis para aqueles<br />
seres que estavam sendo criados, para<br />
deixá-los críveis, inteiros, verdadeiros.<br />
Começamos com alguns exercícios para<br />
tentar romper com a métrica pré-concebida<br />
da fala. Sempre em movimento, dizer o texto<br />
de várias formas, alternando velocidade,<br />
ritmo, duração. Dizer este texto em uma<br />
determinada trajetória na sala de trabalho,<br />
alterar o volume da voz, como se estivesse<br />
sussurrando ou gritando:<br />
O trabalho vocal que se desenvolve<br />
pela adoção e imitação de um<br />
modelo, por meio da repetição de<br />
formas acabadas, fórmulas prontas,<br />
soluções permanentes, é limitado<br />
e torna-se limitador, quer seja proposto<br />
sobre si mesmo, quer seja na<br />
relação com uma linguagem. Percorrer<br />
esta via é admitir que uma<br />
técnica existe por si mesma, sem<br />
depender de um organismo vivo,<br />
consciente e dotado de imaginário,<br />
que adote seus procedimentos e a<br />
construa em seu corpo, a seu modo,<br />
criando, pela matéria que lhe é própria,<br />
a individuação da forma.<br />
A identificação, o reconhecimento<br />
e a apreensão física do funcionamento<br />
dos mecanismos do corpo<br />
leva, mesmo que mais lentamente,<br />
a um aprendizado diferenciado: relaciona<br />
a estrutura corporal interna<br />
à existência e à ocorrência da sensação,<br />
da emoção, do movimento e<br />
libera uma voz pronta para revelar<br />
essas relações. É um percurso que<br />
permite organizar o saber para além<br />
das formas, incorporando os conteúdos<br />
(LOPES, 2005, p. 94).<br />
Acredito que qualquer trabalho tenha<br />
maior êxito quando o fazemos com prazer.<br />
Então, depois destes “aquecimentos”, decidi<br />
propor um jogo que me acompanhou no<br />
processo de criação e apropriação do texto<br />
no meu trabalho de Graduação e que me foi<br />
muito prazeroso e produtivo: pedi que as<br />
atrizes cantassem seus textos. E fui propondo<br />
estilos de música. Depois, dando continuidade<br />
à experimentação, dava alguns<br />
temas para que servisse de mote enquanto<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
ágata Baú<br />
diziam o texto: melodrama, cantor de churrascaria,<br />
monstrinhos, criança, fazendo<br />
manha, político em campanha, bruxa. Enfim,<br />
uma infinidade de propostas que elas<br />
realizavam com prazer e que nos levavam<br />
a descobertas bastante interessantes, já que<br />
brincavam com a sonoridade das palavras<br />
e não somente com o seu significado.<br />
Sara Lopes diz que:<br />
[...] uma voz responde mais propriamente<br />
à sua função, na representação,<br />
quando se desprende dos significados<br />
abstratos contidos na palavra<br />
para se ligar à concretude da materialidade<br />
sonora.<br />
A geração dessa voz está diretamente<br />
ligada à identificação e ao<br />
reconhecimento de sua corporalidade,<br />
e a um redimensionamento<br />
físico pela expansão do corpo (LO-<br />
PES, 2005, p. 93).<br />
O próximo passo era ir para a cena levando<br />
em conta estas experiências. Não<br />
para que reproduzissem alguma forma<br />
que haviam trabalhado, mas que esta abertura,<br />
este estado de disponibilidade vocal,<br />
estivesse presente. Um “estado de entrega,<br />
no qual seria adotado um comportamento<br />
similar ao de uma criança que procura<br />
o entendimento das palavras através de<br />
brincadeiras com os próprios sons das palavras”<br />
(FORTUNA, 2000, p. 120).<br />
E foi o que aconteceu. As atrizes se<br />
permitiram brincar com a voz e deixaram<br />
que o corpo influenciasse diretamente na<br />
vocalidade de seus textos. E o mais interessante<br />
é que acabamos identificando características<br />
das personagens que não havíamos<br />
cogitado anteriormente, quando<br />
fizemos uma análise do texto. Deixamos as<br />
“primeiras impressões” em segundo plano<br />
e nos agarramos a estas novas facetas<br />
que descobrimos. Todas aquelas mulheres<br />
(do texto) foram ganhando aos poucos<br />
mais “humanidade” e, confesso, tínhamos<br />
mais argumentos para defendê-las e para<br />
entendê-las. Foi realmente muito bonito e<br />
gratificante ver essa transformação.<br />
Percebemos também que seus corpos<br />
ganharam força quando inserimos as falas:<br />
[...] é em torno do gesto que se organiza<br />
a cena inteira, subordinando<br />
a palavra. Mas ele, em vez de<br />
sufocá-la, vai valorizá-la, enquanto<br />
ela explicita seu significado, pois,<br />
ao que o olhar registra, falta a espessura<br />
concreta da voz, a percepção<br />
do sopro, a urgência da respiração;<br />
falta a condição de retomar,<br />
sempre, o jogo de presentificar um<br />
objeto ausente, pelo som da palavra<br />
(LOPES, 2005, p. 92).<br />
Acredito que o caminho contrário<br />
também se fez presente: a fala valorizando<br />
o gesto. Tanto que algumas cenas me<br />
emocionavam todas as vezes que eu as<br />
via. Mesmo já sabendo exatamente o que<br />
aconteceria, mesmo estando presente em<br />
todas as vezes que a cena era feita, meus<br />
olhos se enchiam de lágrimas em alguns<br />
momentos específicos. Sentimento que eu<br />
não podia controlar, tamanha era a força<br />
adquirida na união dessas corporeidades<br />
com as vocalidades:<br />
O som vocal gera sensações e impressões,<br />
pela vibração, e as mantém<br />
presentes, em emoção, no movimento.<br />
É o princípio da voz como<br />
materialização da ação física, permeando<br />
da pele ao sistema nervoso,<br />
sendo percebida através dos poros e<br />
dos ossos, e não apenas pelos ouvidos;<br />
esse atributo que estabelece o<br />
contato físico entre seres humanos<br />
distantes um do outro: a manifestação<br />
de uma interioridade livre para<br />
invadir outros corpos, provocando<br />
respostas fisiológicas internas, profundas<br />
(LOPES, 2005, p. 94).<br />
Houve uma modificação, ou melhor,<br />
uma amplificação dos significados das cenas.<br />
Onde antes se via uma sequência de<br />
movimentos tensos, por exemplo, com o<br />
texto pode-se perceber a dor da mulher<br />
que não pode criar a filha; onde se via antes<br />
movimentos de derretimento, vimos<br />
depois o cansaço e tristeza da mulher que<br />
A EXPERIMENTAçãO VOCAL NA COMPOSIçãO DA PERSONAGEM TEATRAL. CONFRONTANDO AS BARREIRAS DA PRECONCEPçãO DO TEXTO<br />
105
<strong>Urdimento</strong><br />
106<br />
tinha sonhos que não realizou. E ao contrário,<br />
que aquela que, com as primeiras leituras,<br />
acreditávamos ser uma menina mimada<br />
e chata, descobrimos ser uma jovem<br />
com dificuldades de expor sua intimidade.<br />
É importante salientar que este ganho<br />
não é somente para as personagens, mas<br />
também para as atrizes que vão colorindo<br />
seu trabalho e enriquecendo suas personagens.<br />
É um momento de crescimento e reconhecimento<br />
de suas capacidades e potencialidades<br />
para explorar a sua arte. É confronto<br />
com seus bloqueios e seus medos, já que a<br />
fala não permite correções imediatas:<br />
A vocalidade existe, efetivamente, na<br />
publicação. [...] Esse momento supõe<br />
competência: saber fazer, saber dizer,<br />
saber ser no espaço e na duração.<br />
Corporifica-se então, uma ação vocal<br />
que oferece, a quem ouve, uma palavra<br />
na qual não há lugar para dúvidas<br />
ou indecisões: a publicação oral não<br />
tem rascunho: não permite ao ouvinte<br />
qualquer possibilidade de volta<br />
– independente do efeito buscado,<br />
a comunicação é imediata (LOPES,<br />
2003, p. 21).<br />
O processo de trabalho teatral exige<br />
atenção a todos seus componentes com<br />
igual dedicação. Corpo e voz são um só e o<br />
envolvimento deste com o texto deve estar<br />
afinado e coeso para que seja possível ampliar<br />
os seus sentidos e para que tenham o<br />
tamanho e força desejados. Este equilíbrio<br />
e esforço em favor de uma representação<br />
verdadeira facilitará a comunicação com o<br />
espectador.<br />
Em um dos encontros, quando propus<br />
aliar a movimentação criada com a pintura<br />
com uma personagem, ocasião em que<br />
Luiza juntou a imagem de Van Gogh com<br />
o texto da “prostituta” e Vívian trabalhou a<br />
imagem de Van Gogh com o texto da “menina”,<br />
anotei: “é impressionante como se<br />
soltam/libertam quando brincam, quando<br />
não se preocupam com ‘o que deve ser a<br />
personagem’, inclusive deixam o movimento<br />
do corpo influenciar mais na voz”. 4<br />
4 Diário de trabalho de Ágata Baú, dia 06 de maio de 2009.<br />
Foi bastante clara a diferença positiva que<br />
produziam as brincadeiras com o texto na<br />
relação delas com esse. Ainda naquele dia,<br />
começaram a intercalar as composições de<br />
texturas, 5 alternando uma e outra, tentando<br />
recuperar rapidamente as conquistas.<br />
Sobre esse trabalho, Luiza escreveu:<br />
“Foi legal brincar com o texto, dá uma soltada<br />
na voz e no corpo e tira essa preocupação<br />
de querer fazer direito. Essa preocupação<br />
que deixa o corpo e voz tensos e o texto<br />
meio mórbido, sério demais. Nesse exagero<br />
(melodrama, teatrão, musical) vem várias<br />
imagens do texto que ficam mais aparentes<br />
na hora de dizer”. 6<br />
E Vívian exemplifica: “Os exageros<br />
ajudaram a eliminar alguns vícios de texto.<br />
‘Eu não quero ser doméstica’ ficou com<br />
tom quase de birra, de manha, mas com<br />
muita tristeza. Acho que consegui uma naturalidade<br />
maior [...]” 7<br />
Em meu diário de trabalho, escrevi:<br />
“Faço estes trabalhos com o texto para quebrar<br />
os ‘vícios de leitura’ delas e para facilitar<br />
o entendimento do que é dito. E ainda<br />
para ajudar a lembrá-lo”. 8<br />
A partir daí, o trabalho com a voz ganhou<br />
mais atenção e as composições físicas<br />
já possuíam desde o princípio um valor vocal<br />
mais evidente. As intensões físicas (corpo<br />
e vocalidades) se tornaram mais coesas<br />
e o entendimento sobre as personagens e<br />
as relações entre elas (as personagens do<br />
texto) ganharam novas cores, o que contribuiu<br />
bastante para o desenvolvimento do<br />
trabalho.<br />
Estes procedimentos que selecionei<br />
para utilizar para o trabalho com as atrizes<br />
se compôs durante os meus anos de experiência<br />
como atriz e como aluna de teatro.<br />
Não é uma fórmula ou indicações de um<br />
autor que segui, mas a colagem de diversas<br />
vivências que fui me apropriando, tentan-<br />
5 Textura foi o nome proposto pelas atrizes para denominar o que estavam<br />
compondo: a união de um texto e uma pintura, que criam uma textura, algo<br />
palpável, moldável, tramado com esses dois elementos. Remete ao tátil, ao<br />
não plano, ao fluido, à consistência, enfim, um terceiro elemento, que não<br />
é composto nem somente pelo texto, nem somente pela imagem da pintura,<br />
algo que mistura os dois e que não prioriza nenhum dos dois. Estão juntos, se<br />
completando e se complementando.<br />
6 Diário de trabalho de Luiza Sperb, dia 04 de maio de 2009.<br />
7 Diário de trabalho de Vívian Salva, dia 04 de maio de 2009.<br />
8 Diário de trabalho de Ágata Baú, dia 15 de maio de 2009.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
ágata Baú<br />
do fazer com que tivesse em seu conjunto<br />
um efeito positivo no trabalho das atrizes.<br />
Sempre considerei importante levar-se em<br />
conta as particularidades das pessoas envolvidas<br />
em um processo de criação e é por<br />
isso que afirmo que o meu depoimento é<br />
sobre um momento específico, que rendeu<br />
bons frutos com aquelas pessoas envolvidas<br />
e que pode ou não ter o mesmo efeito<br />
com um outro grupo de pessoas ou em<br />
uma outra experiência.<br />
O que quero dizer é que um procedimento<br />
não deve ser absoluto. Precisa ter e<br />
dar a liberdade para ser adaptada, experimentada,<br />
adequada, desobedecida, reformulada<br />
e reconstruída. Acredito que ela só<br />
tem validade quando oferece mais do que<br />
a técnica em si, mais do que um momento<br />
de criação. Deve conseguir servir para uma<br />
continuidade e o desenvolvimento artístico<br />
de quem a vivencia. REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />
FORTUNA, Marlene. A performance da oralidade<br />
teatral. São Paulo: Annablume, 2000.<br />
LOPES, Sara P. In: Cadernos da Pós-Graduação.<br />
Instituto de Artes UNICAMP Ano 7<br />
Vol. 7 nº1. Campinas: UNICAMP, 2005.<br />
______. In: Expressão – Revista do Centro de<br />
Artes e Letras. Santa Maria: UFSM, jan/jun<br />
2003.<br />
NOVARINA, Valère. Diante da palavra. Rio<br />
de Janeiro: 7 Letras, 2003.<br />
ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo.<br />
São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.<br />
A EXPERIMENTAçãO VOCAL NA COMPOSIçãO DA PERSONAGEM TEATRAL. CONFRONTANDO AS BARREIRAS DA PRECONCEPçãO DO TEXTO<br />
107
<strong>Urdimento</strong><br />
108<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
ágata Baú
N° 18 | Março de 2012<br />
Resumo<br />
Este texto aproxima a psicologia fenomenológica ao teatro<br />
contemporâneo discutindo as noções de espacialidade e<br />
corporalidade, a partir do pensamento do filósofo Maurice<br />
Merleau-Ponty. Com base no princípio fenomenológico de<br />
que somos “seres em situação”, a autora propõe que nosso<br />
corpo pode ser, ele mesmo, cenário de uma teatralidade<br />
intensamente experienciada por meio de estados, lugares e<br />
atmosferas, algo que pode nos fazer prescindir de cenografias<br />
estruturadas e dadas de antemão.<br />
Palavras-chave: Teatralidade; espacialidade; corporalidade.<br />
Abstract<br />
This article brings together phenomenological psychology<br />
and contemporary theater through the philosopher Maurice<br />
Merleau-Ponty’s concepts of spatiality and corporality.<br />
Starting from the phenomenological principle that we<br />
are “beings in situation”, the author suggests that our<br />
bodies can be, in themselves, the stage of a theatricality<br />
that is intensely experienced thanks to states, places, and<br />
ambiences, thereby freeing ourselves from the need of preestablished,<br />
structured scripts.<br />
Key-words: Theatricality; spatiality; corporality.<br />
1 Marina Marcondes Machado é docente da Escola Superior de Artes Célia Helena, formadora de professores<br />
de teatro e escritora. É psicoterapeuta com mestrado em Artes (ECA/USP), doutora em Psicologia da Educação<br />
(PUC/SP) com pós-doutorado em Pedagogia do Teatro (ECA/USP). Sua pesquisa gira em torno das relações entre<br />
infância e cena contemporânea.a<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Teatralidades no Corpo: O espaço cênico somos nós.<br />
A fala não é um comentário, uma sombra do real, a<br />
moedagem do mundo em palavras, mas algo vindo ao<br />
mundo como que para nos arrancar dele.<br />
Marina Marcondes Machado 1<br />
TEATRALIDADES NO CORPO: O ESPAçO CêNICO SOMOS NÓS 109
<strong>Urdimento</strong><br />
110<br />
• Introdução<br />
Esta reflexão é fruto de minha pesquisa<br />
das relações entre infância<br />
e cena contemporânea, iniciada<br />
na pesquisa de Mestrado e continuada<br />
no Pós-doutoramento,<br />
dois momentos de pesquisa acadêmica sob<br />
supervisão da Profa. Dra. Maria Lucia de<br />
Souza Barros Pupo (ECA/USP) e com subsídios<br />
da bolsa FAPESP. Estive bastante<br />
ocupada, por cerca de dez anos, com as interações<br />
entre a primeira infância e a gênese<br />
constitutiva de um “eu”, percebendo a<br />
possibilidade de um retorno a este estado<br />
por meio das artes cênicas, em especial do<br />
teatro agora nomeado “não espetacular”.<br />
No Mestrado 2 minha preocupação era<br />
a de procurar desconstruir todo e qualquer<br />
estereótipo acerca da infância no teatro,<br />
especialmente no corpo do ator que “representasse”<br />
a personagem criança. Anos<br />
depois, ergui outro campo dramatúrgico,<br />
a partir de observação dos modos de ser<br />
e estar das crianças em situações de espera,<br />
na cidade de São Paulo (2009): parte<br />
da pesquisa “Territórios do brincar”, meu<br />
pós-doutorado reuniu etnografia e criação<br />
dramatúrgica, sempre na direção dos<br />
modos de vida da criança, tomando distância<br />
de idealizações ou construtos acerca<br />
da criança, dados de antemão. Entre<br />
Mestrado e Pós-doutorado em Artes realizei<br />
o Doutorado 3 no campo da Psicologia<br />
da Educação (PUC/SP), debruçando-me<br />
sobre a obra de Maurice Merleau-Ponty<br />
(1990a; 1990b) para tematizar as relações<br />
entre fenomenologia e infância.<br />
Com base em meus estudos acerca<br />
dos existenciais – a saber: a corporalidade,<br />
a outridade, a linguisticidade, a espacialidade,<br />
a temporalidade e a mundaneidade<br />
da criança – desdobrarei neste<br />
artigo a gênese de construção das relações<br />
eu-espaço, buscando paralelos com<br />
a arte não representacional: elo mais caro<br />
2 Pesquisa publicada na forma de livro sob o título Cacos de infância /<br />
teatro da solidão compartilhada (São Paulo: Annablume / FAPESP, 2004).<br />
3 Também meu doutorado transformou-se em livro: Merleau-Ponty & a<br />
Educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2010).<br />
entre a maneira de ser da primeira infância<br />
e o teatro contemporâneo.<br />
Que me perdoem os leitores a forma<br />
de bricolagem, mas penso ser necessária<br />
uma pitada de nonsense e outra pitada de<br />
elementos poético-caóticos para fazer ver<br />
a riqueza da fenomenologia da criança.<br />
• Chorar e rir no imaginário<br />
O homem normal e o ator<br />
não tomam por reais<br />
as situações imaginárias,<br />
mas, inversamente,<br />
destacam seu corpo real<br />
de sua situação vital<br />
para fazê-lo respirar, falar e,<br />
se necessário,<br />
chorar no imaginário.<br />
Maurice Merleau-Ponty<br />
Uma das noções mais interessantes para<br />
pensar o “si mesmo” do ponto de vista fenomenológico,<br />
com foco especial na filosofia<br />
merleau-pontiana, é a corporalidade compreendida<br />
como “espaço corpo-próprio”<br />
(Merleau-Ponty, 1999). Pensar quem somos<br />
a partir das relações espaciais é instigante –<br />
e pode nos transpor, facilmente, para o campo<br />
do teatro: hipótese inicial que desembocou<br />
nesta reflexão. Trata-se de experienciar<br />
nosso corpo não a partir da espacialidade de<br />
posição (sem partir de um “onde”), mas antes<br />
de conceber nossa corporalidade como<br />
“uma espacialidade de situação” (Merleau-<br />
Ponty, 1999, p.146) – partiremos, então, de<br />
um “quem” e seu contorno/entorno desenhado<br />
em gesto e palavra:<br />
O espaço corporal pode distinguirse<br />
do espaço exterior e envolver<br />
suas partes em lugar de desdobrálas,<br />
porque ele é a obscuridade da<br />
sala necessária à clareza do espetáculo,<br />
o fundo de sono ou a reserva<br />
de potência vaga sobre os quais<br />
se destacam o gesto e sua meta,<br />
a zona de não-ser diante da qual<br />
podem aparecer seres precisos, figuras<br />
e pontos.<br />
(Merleau-Ponty, idem ibidem)<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Marina Marcondes Machado<br />
A expressão “zona de não-ser”, localizada<br />
no “fundo de sono”, nos remete<br />
àquilo que Merleau-Ponty nomeia o<br />
“onirismo” da vida infantil: um lugar entre<br />
fantasia e realidade, vivido cotidiana<br />
e ordinariamente na infância; uma experiência<br />
“híbrida”, própria das crianças<br />
pequenas.<br />
Como acontece, em cada um de nós, a<br />
distinção daquilo nomeado “espaço exterior”?<br />
Se a fenomenologia nos convida à<br />
noção de ser-no-mundo, como trabalhar<br />
em nós uma gênese do “eu” como “espaço<br />
corpo-próprio”, sem dicotomias nem<br />
apego ao espaço do geômetra ou do alfaiate<br />
que nos tira medidas? O que é um<br />
“contorno”?<br />
Merleau-Ponty nos ensina que “não<br />
há contorno sem um sujeito que estruture<br />
elementos dados para fazer deles figuras”<br />
(1990a, p.209). No entanto haveria<br />
um momento pré-reflexivo, anterior ao<br />
surgimento<br />
(…) de um limite entre o “fora” e<br />
o “dentro”, distinção que só existe<br />
para um sujeito, ele p r ó p r i o<br />
situado no espaço, que vê de um<br />
certo ponto de vista (seu corpo)<br />
em relação ao qual a distinção de<br />
fora e de dentro toma um sentido.<br />
(idem ibidem)<br />
Nosso contorno é portanto construído<br />
e vivenciado lentamente, na relação<br />
adulto-criança, nos cuidados cotidianos:<br />
alimentação, banho, toque, trocas de fraldas<br />
e de roupas. Experienciamos nosso<br />
espaço corpo-próprio por meio da proximidade<br />
e do distanciamento dos adultos<br />
cuidadores, especialmente. Sintonizamos<br />
com o psiquiatra existencial Guimarães<br />
Lopes:<br />
Dentro da extensão entre mim e<br />
o outro podem sobrevir dois momentos<br />
significativos: o próximo<br />
e o distante. O próximo situa-se<br />
entre o eu e o tu, o distante entre<br />
o eu e o ele. O que é “distante”<br />
reflete-se no uso do “se” – como<br />
nas frases “ama-se”, “procura-<br />
se”, muito diferente de “amo-te”,<br />
“procuro-te”, em que o “te” reflete<br />
diretamente o tu. /grifos do autor/<br />
(Guimarães Lopes, 1993, p. 85)<br />
Próximos ou distantes, estamos sempre<br />
implicados: encontramo-nos em relação;<br />
em termos espaciais, estamos em relação…<br />
a nós mesmos, ao outro, às coisas<br />
do mundo.<br />
Procurando compreender os advérbios<br />
de lugar e a maneira de ser própria<br />
de quem fala o português do Brasil, de<br />
modo a ampliar a reflexão sobre a espacialidade<br />
humana, encontrei um interessante<br />
texto do linguista Márcio Eduardo<br />
Viaro (2003), que nos diz que é próprio<br />
da nossa língua a “metaforização do locativo”.<br />
A cultura católica, por exemplo,<br />
pode ser responsável pelas imagens<br />
do que temos “por cima” e “por baixo”;<br />
mas “o aparecimento da mesma oposição<br />
numa cultura não-cristã poderia apontar<br />
para uma associação natural entre o que<br />
é bom e aquilo que está no céu límpido,<br />
voando ou entre o que é mau e aquilo que<br />
está no chão sujo, rastejando (…)” (2003,<br />
p.2). Viaro conversa com uma espécie de<br />
“gramática espacial”, onde “associam-se<br />
valores às direções”; comenta o que é próprio<br />
de traços culturais – algo “que não<br />
se associa necessariamente a uma única<br />
língua, mas vale como uma herança da<br />
visão de mundo” (idem ibidem).<br />
Se o leitor quiser ficar “por dentro”…<br />
que nos acompanhe, por favor!<br />
• O espaço povoado pelo outro<br />
Apaixonite aguda<br />
Itamar Assumpção<br />
Quando estou longe<br />
Quero ficar perto<br />
Quando estou perto<br />
Quero ficar dentro<br />
Quando estou dentro<br />
Quero ficar mudo<br />
Quando estou mudo<br />
Quero dizer tudo<br />
TEATRALIDADES NO CORPO: O ESPAçO CêNICO SOMOS NÓS 111
<strong>Urdimento</strong><br />
112<br />
A noção fenomenológica de espacialidade,<br />
traduzida como relação “eu-espaço”<br />
em termos estritamente humanos, nos<br />
remete a espaços ocupados, povoados<br />
por outros, o que inclui todos os “nãoeu”<br />
que ali já se encontravam antes de<br />
mim: inicialmente, aqueles que me conceberam;<br />
em seguida, aquele que me cuida;<br />
depois, aquele a quem procuramos:<br />
para estar perto, para brincar junto, para<br />
ir e voltar conosco… O espaço esvaziado<br />
de sentido, ausente do não-eu, nos anos<br />
iniciais, é habitualmente experienciado<br />
de modo doloroso, psiquicamente prejudicado,<br />
possuidor de silêncio cortante;<br />
pois ali, ninguém me espera.<br />
Experienciar o espaço povoado é,<br />
portanto, habitar um lugar mais ou menos<br />
ruidoso onde alguém me espera, me<br />
aguarda: alguém espera que eu acorde –<br />
e guarda meu sono; e se uma porta bate<br />
inesperadamente pelo vento, e eu acordo<br />
um tanto assustado, alguém comunica,<br />
carinhosamente: “Foi o vento!”.<br />
Os espaços entre-corpos são preenchidos<br />
por gesto e palavra – e por muitos<br />
tipos de silêncio. Enxerga-se isso em<br />
um exercício teatral muito recorrente em<br />
oficinas e workshops: propõe-se aos atores<br />
andar pelo espaço, procurando, com seu<br />
movimento e com sua presença, preencher<br />
espaços “vazios” entre eles. Vazio<br />
entre aspas, pois em uma sala onde está<br />
acontecendo esse tipo de exercício, não há<br />
de fato um vazio – ou antes, haveria um<br />
vazio “grávido” de possibilidades, parafraseando<br />
a psicanalista Marion Milner<br />
(1991). A criadora dos assim chamados<br />
“Jogos Teatrais”, Viola Spolin, pede ao<br />
ator que dê “substância ao espaço”. Em<br />
sua técnica para o ator, as caminhadas e<br />
os exercícios que auxiliam a “perceber o<br />
corpo todo” o levam a uma fenomenologia<br />
do espaço, vivido cenicamente; são<br />
exemplos de seus comandos para o ator:<br />
Sinta a forma de seu corpo quando<br />
se move pelo espaço! Agora<br />
deixe que o espaço sinta você!<br />
O seu rosto! Os seus braços! O<br />
seu corpo todo! Mantenha os<br />
olhos abertos! Espere! Não force!<br />
Você atravessa o espaço e deixa<br />
que o espaço o atravesse! (Spolin,<br />
1999, p.135)<br />
Também Kazuo Ohno, dançarino<br />
criador do butoh, noutra chave de direção<br />
cênica, afirmou a inexistência do vazio<br />
para o ator, dançarino ou performer:<br />
De maneira nenhuma pode-se dizer<br />
que não haja nada num palco<br />
vazio, num palco que se pise de<br />
improviso. Pelo contrário, existe<br />
ali uma infinidade de coisas e<br />
acontecimentos, sem que se saiba<br />
como e quando. (Ohno, 1997)<br />
Mas condições de adoecimento psíquico<br />
podem revelar um corpo encarnado<br />
de vazio e solidão, sofrimento e silêncio,<br />
nos remetendo a outros lugares, muitos<br />
dos quais extremamente assombrosos;<br />
surgem assim habitantes dos palcos psiquicamente<br />
vazios:<br />
Dentro do horizonte da espacialidade<br />
observamos por vezes um<br />
caminhar em viés, esquinado, por<br />
outras vezes em círculo. Ou seja,<br />
no primeiro caso, quase nunca<br />
encontrando o outro a não ser por<br />
casualidade, no segundo caso, fazendo<br />
uma aproximação<br />
mas logo se distanciando para<br />
repetir o mesmo movimento.<br />
Noutras situações verificamos<br />
a primazia da vivência do vazio<br />
nada havendo, do ponto de vista<br />
humano, que o preencha ou, então,<br />
a corporalidade procurando<br />
abertura no outro para extravasar<br />
a espacialidade cerrada. Ainda<br />
outras vezes verificamos hiperordenação:<br />
o relacionamento segue<br />
pré-determinações quase rígidas,<br />
fixas, meticulosas, postas<br />
umas a seguir às outras, ou, então,<br />
a espacialidade é vertiginoso buraco<br />
negro onde tudo se consome<br />
nada restando afinal das possibilidades<br />
de relação. Pode também<br />
a espacialidade aparecer à superfície<br />
atrativa, chamativa, cheia de<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Marina Marcondes Machado<br />
engodos descontínuos, dando lugar<br />
ao saltitar sem um verdadeiro<br />
salto para a passagem a um outro<br />
modo de ser. (Guimarães Lopes,<br />
1993, p.85).<br />
• Lugares de mundaneidade e faz de conta<br />
Sou o espaço onde estou<br />
Noel Arnaud<br />
Outro dia, dentro de um ônibus em<br />
São Paulo, presenciei um acontecimento<br />
interessante entre uma mãe e seu bebê:<br />
uma cena. A nenê devia ter entre 7 e 9<br />
meses. A mãe queria “ensinar” sua filha<br />
a dizer: “Mamãe”. Repetia, por diversas<br />
vezes: “Mamãe”; “mã mã mã”;<br />
“Mamãe”. Certamente a mãe não percebia<br />
a situação como eu a percebia: ela<br />
dizia “Mamãe, mã mã mã” e sua filhinha<br />
respondia com seu corpo: dando tapinhas<br />
suaves nela, apontando quem é a<br />
mamãe. Vi, no gesto da criança, beleza<br />
e amorosidade únicas. A espacialidade<br />
viva e preenchida entre elas, o dizer da<br />
mãe e a resposta não-verbal da filha, os<br />
corpos dizendo que se complementavam<br />
e se compreendiam… com certeza é<br />
a isso que os psicanalistas nomeiam uma<br />
experiência de “amor incondicional”! Se<br />
aquele bebê pudesse se perguntar, “Qual<br />
o meu lugar no mundo?”, a resposta certa<br />
seria: “O colo da minha mãe”.<br />
Haveria uma sequência espacial<br />
comum a quase todos nós, humanos e<br />
mamíferos… sequência espacial/existencial:<br />
habitar a barriga da mamãe; sair<br />
da barriga da mamãe; andar de colo; repousar<br />
no berço; arrastar-se, engatinhar,<br />
para depois andar. Assim, o espaço corpo-próprio<br />
mostra-se como um lugar a<br />
ser habitado em relação: relaciona-se,<br />
comunica-se com outros contornos, limites<br />
e espaços, os outros e as coisas do<br />
mundo.<br />
A espacialidade vivida, a espacialidade<br />
existencial (“estar por dentro!”, “estar<br />
por fora”…) dialoga todo o tempo com a<br />
espacialidade de posição:<br />
Estou escondido<br />
Debaixo da mesa;<br />
Ninguém sabe, porém,<br />
Onde estou. Que beleza!<br />
Este é o início de um ingênuo poema<br />
que lia e relia na minha infância. Tratavase<br />
de um bebê escondido dos pais…: “já<br />
ouvi o papai perguntar / (…) / -- Onde<br />
está o nenê? / Já olhou na cozinha?” (Aldis<br />
apud Machado, 1998). Esconde-esconde!<br />
Uma prática ancestral de brincadeira<br />
de espacialidade – aparecer e sumir,<br />
desaparecer e ser encontrado – muito<br />
interessante para pensarmos as possíveis<br />
descobertas de “qual o meu lugar no<br />
mundo?”.<br />
Esconder-se para ser achado: convite<br />
ao deslocamento do outro até mim,<br />
quando o espaço ganha outra dimensão;<br />
quero e não quero ser achado, e a visita<br />
do outro ao meu espaço-esconderijo é o<br />
fim do jogo… mas pode significar também<br />
um alívio: continuar existindo! Poder<br />
sair correndo! Gritar! Libertar-se da<br />
imobilidade anterior, necessária para não<br />
ser achado.<br />
Para D. W. Winnicott (1994), a mãe<br />
que esconde seu bebê por detrás de um<br />
pano ou fralda e depois o redescobre<br />
(“Achou!”) revive uma das primeiras<br />
formas culturais humanas, algo relacionado<br />
a saber “brincar de ilusão”: ilusão<br />
de estar escondido mas “achado” bem inteirinho<br />
ali, diante da mãe; e a resposta<br />
adulta, na forma de jogo, é também ilusória:<br />
“acreditar” que seu nenê havia sumido…<br />
Este mote “simples assim” está,<br />
para Winnicott, na origem de todas as<br />
atividades criativas/criadoras – teatro,<br />
cinema, poesia, filosofia, ciência e religiosidade:<br />
a ponto do psicanalista inglês<br />
nomear seu conceito de espaço potencial<br />
também como “espaço de ilusão” e “área<br />
do consolo”.<br />
De que me consolo? Do fato de minha<br />
mãe não ser “eu”; do fato de que sou<br />
totalmente dependente dos cuidados, dizeres<br />
e ações dos adultos ao meu redor;<br />
da fagulha, acesa ao nascer, de que “tudo<br />
que nasce, morre”. Tudo isso é ingredien-<br />
TEATRALIDADES NO CORPO: O ESPAçO CêNICO SOMOS NÓS 113
<strong>Urdimento</strong><br />
114<br />
te do brincar de faz de conta – ou, como<br />
propõe Sarmento (2004), da “fantasia do<br />
real” própria da primeira infância.<br />
De que me iludo? Me iludo de ser o<br />
criador do mundo.<br />
• Situações e imagens de teatralidades<br />
Há uma espécie de construção sintática<br />
em português e outras línguas<br />
românicas que não tem tido<br />
a atenção que merece. Trata-se de<br />
sintagmas em que um verbo é seguido<br />
de um advérbio de lugar ou de<br />
uma locução adverbial equivalente.<br />
Tal combinação forma uma imagem<br />
básica, donde se derivam outros significados<br />
menos evidentes.<br />
Márcio Eduardo Viaro<br />
Ampliar o horizonte da espacialidade,<br />
da relação eu-espaço, nos faz visitar,<br />
adultos que somos, a linguisticidade e o<br />
campo gramatical de nossa lingua-mãe.<br />
Proponho concretizarmos essa boa ampliação<br />
de vocabulário: não algo feito por<br />
meio do dicionário, mas antes, no seu espaço<br />
corpo-próprio e megulhado nas relações.<br />
Será rico perceber a gramática das<br />
ações espaciais, visitando os advérbios<br />
de lugar em seu corpo vivido. Jean-Pierre<br />
Ryngaert (1992), ao discutir as marcas<br />
espaciais de textos teatrais, diz, sobre a<br />
noção de “espaço metafórico”: “O lugar<br />
da palavra é talvez o verdadeiro espaço<br />
do confronto já que visitar o outro é, na<br />
peça, conversar” (1992, p.101).<br />
Wim Wenders escreveu um poema<br />
que homenageia Pina Bausch e que pode<br />
ser uma estrela guia em como as palavras<br />
nos convidam a “algures” – outros espaços,<br />
que podem “nascer progressivamente<br />
da linguagem” (Ryngaert, 1992):<br />
Levantar, cair,<br />
cambalear, desabar,<br />
escorregar, agarrar, soltar,<br />
saltar, avançar às pressas, dar<br />
uma cambalhota,<br />
tombar,<br />
rolar, buscar proteção,<br />
se endurecer, se contrair,<br />
fincar as garras, deitar o braço em<br />
torno de alguém,<br />
se tocar e se afastar de novo.<br />
(…)<br />
Wenders conduz sua homenagem a Pina<br />
Bausch a uma espécie de jogo de palavras:<br />
(…)<br />
Homens se mexem<br />
e enquanto esses gestos, saltos,<br />
passos…<br />
levados à ribalta por Pina, são encenados,<br />
destacados<br />
e conscientizados,<br />
muitas vezes com graça, mas<br />
sempre leves e jamais “prenhes<br />
de significado”,<br />
de repente se vê assim,<br />
como se jamais ante se tivesse<br />
compreendido, nem de longe,<br />
como cada um de nossos movimentos<br />
internos, de nossas<br />
emotions<br />
Se anunciam para fora, prosseguem,<br />
se entranham,<br />
se transformam em motions.<br />
O texto poético de Wim Wenders também<br />
é convite para pensar teatralmente:<br />
seus dizeres nos levam para longe do psicologismo<br />
– ou, noutro modo de dizer,<br />
para longe de um tipo de representação<br />
emotiva – e nos propõe entranhas transformadas<br />
em movimento e ação. O cineasta<br />
procura palavras e cria um texto que revela<br />
a enorme contribuição de Pina Bausch à<br />
cena contemporânea – a encenação que não<br />
representa: é, encarna no corpo um leque<br />
de emoções, não mais “interpretadas”, mas<br />
agora mostradas, escancaradas ao espectador,<br />
de modo que ele mesmo se entranhe<br />
naquilo que a dança assistida lhe propõe.<br />
Desse modo o espectador levará<br />
embora o cenário em seu espaço corpopróprio,<br />
“motions”, forma de memória e<br />
possibilidade de digressão daquilo que se<br />
assistiu no teatro. Pontuo ao leitor que as<br />
crianças fazem isso o tempo todo, em suas<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Marina Marcondes Machado<br />
ações cotidianas mais ordinárias: impregnam-se;<br />
corporificam prazer e medo, advindos<br />
da experiência de viver o mundo.<br />
Reside especialmente neste paralelo entre<br />
ser criança e ser performer minha contribuição<br />
como pesquisadora de teatro 4 .<br />
• Estados, atmosferas e<br />
temporalidade: nosso corpo<br />
próprio é lugar de teatralidades<br />
A linguagem estabelece uma relação<br />
com o espaço,<br />
a ação dá-lhe um sentido<br />
Jean-Pierre Ryngaert<br />
Considerar que o espaço não está<br />
cheio de significações dadas de antemão,<br />
como relembrou Wim Wenders, ou ainda,<br />
procurar significações nos espaços, nos<br />
lugares, transformando-os em “cenários”<br />
simples, cotidianos, como paisagens de<br />
nossa relação com o outro e mergulhados<br />
no mundo, seria próprio de todos aqueles<br />
que viveram o que Winnicott (1994)<br />
nomeia “um bom começo”. “Um bom começo”<br />
é um início de vida com boa maternagem,<br />
ou seja, indício da vitalidade<br />
de bebês que são cuidados por adultos<br />
responsáveis e responsivos: adultos que<br />
cuidam para que a realidade nos seja<br />
apresentada em pequenas doses; adultos<br />
que, concomitantemente, nos preservam<br />
e nos levam a novos lugares para vivenciar<br />
novas situações.<br />
A noção de “mãe suficientemente<br />
boa”, proposta por Winnicott, revela um<br />
adulto que carrega uma certa sabedoria<br />
zen: ausente e presente ao mesmo tempo;<br />
significa estar sempre por ali, mas sem<br />
interferir na maneira de ser e estar da<br />
criança diretamente ou invasivamente.<br />
No vazio-cheio entre um adulto presente<br />
e ausente e uma criança pequena está<br />
aquilo que Winnicott nomeou “espaço<br />
potencial”. Algo que ele mesmo disse ser<br />
4 Para saber mais ver MACHADO, Marina Marcondes. “A criança é performer”.<br />
Revista Educação & Realidade. V.35, n.2. P.115-137. Porto Alegre:<br />
UFRGS, 2010.<br />
“um lugar conceitual”; modo de dizer<br />
algo sobre o afeto entre a mãe e o bebê,<br />
quando as coisas estão indo bem.<br />
O espaço potencial não é um lugar no<br />
sentido da espacialidade de posição, mas é<br />
um lugar psíquico compartilhado, habitado<br />
pelo bebê com sua mãe. É o lugar da brincadeira<br />
(playground); é o lugar da ilusão de<br />
que somos, sim, os criadores do mundo! Fechar<br />
os olhos fazendo o mundo desaparecer<br />
é uma ação infantil que não deve ser questionada<br />
ou replicada pelo adulto realista. É<br />
fundamental ser cúmplice da capacidade<br />
criativa da criança pequena, cumplicidade<br />
que deixará rastro e lastro: rumo à experiência<br />
estética, filosófica e religiosa; rumo à<br />
invenção na arte, ciência e poesia. Assim, a<br />
noção de “espaço potencial” não quer revelar<br />
apenas uma geografia; é também história<br />
e mundaneidade, é lugar de existir:<br />
Espacialidade e corporalidade estão<br />
tão intimamente ligadas que<br />
por vezes se confundem. Heidegger<br />
falava duma topologia do ser.<br />
Em psico(pato)logia é importante<br />
a consideração simbólica do “topus”<br />
no acontecer corporal. (Guimarães<br />
Lopes, 1993, p. 85)<br />
Proponho, para finalizar, que o cenário<br />
central para os acontecimentos performativos<br />
cotidianos é o performer ele mesmo,<br />
ou seja, o espaço corpo-próprio. Sua<br />
corporalidade em relação: fora, dentro,<br />
entre; profunda ou superficialmente implicado.<br />
Experienciar teatralidades, nesta<br />
chave, prescinde de cenários no sentido<br />
tradicional do termo. E, no sentido da<br />
sociologia que trabalha com as noções<br />
de papéis sociais, quanto mais autêntica<br />
a experiência daquele que “performa”,<br />
menos máscaras sociais, figurinos rebuscados,<br />
dramaturgia pronta e requisitos<br />
cenográficos prévios seriam necessários<br />
para a comunicação transformadora entre-humanos:<br />
aquela que nos supreende<br />
por não ser previsível, algo capaz de nos<br />
“tirar o chão” – bem como nos colocar<br />
“para cima” na hora da queda.<br />
TEATRALIDADES NO CORPO: O ESPAçO CêNICO SOMOS NÓS 115
<strong>Urdimento</strong><br />
116<br />
REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.<br />
LOPES, Raul Guimarães. Clínica Psicopedagógica / Perspectiva da antropologia fenomenológica<br />
e existencial. Hospital do Conde Ferreira: Porto, 1993.<br />
MACHADO, Marina Marcondes. A Poética do Brincar. São Paulo: Edições Loyola, 1998.<br />
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes,<br />
1999.<br />
MERLEAU-PONTY, Maurice. Merleau-Ponty na Sorbonne/Resumo de cursos: Filosofia e Linguagem.<br />
Campinas: Papirus, 1990a.<br />
MERLEAU-PONTY, Maurice. Merleau-Ponty na Sorbonne/Resumo de cursos: Psicossociologia<br />
e Filosofia. Campinas: Papirus, 1990b.<br />
MILNER, Marion. A loucura suprimida do homem são. Rio de Janeiro: Imago, 1991.<br />
OHNO, Kazuo. Catálogo da “Temporada SESC Outono 97”. SESC SP: Maio, 1997.<br />
ORLANDI, Eni. As formas do silêncio. Campinas: Editora UNICAMP, 2007.<br />
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Porto: Edições ASA, 1992.<br />
SARMENTO, Manuel. As Culturas da Infância nas Encruzilhadas da 2ª Modernidade. Disponível<br />
em:<br />
http://cedic.iec.uminho.pt/Textos_de_Trabalho/textos/encruzilhadas.pdf<br />
Acesso em 26/04/2011<br />
SPOLIN, Viola. O jogo teatral no livro do diretor. São Paulo: Perspectiva, 1999.<br />
VIARO, Márcio Eduardo. “Estruturas cristalizadas de verbo+advérbio de lugar no português.”<br />
Boletim da Associação Brasileira de Lingüística. Fortaleza: UFC/Imprensa Universitária,<br />
2003. v. 26, p. 464-466.<br />
WENDERS, Wim. “Que tesouro mora dentro de nossos corpos…” Revista Humboldt.<br />
Bonn: Goethe Institut, 2010. N. 102, ano 51. P. 30-33.<br />
WINNICOTT, Donald Woods. Playing and Reality. Londres e Nova Iorque: Tavistock/<br />
Routledge, 1994.<br />
Marina Marcondes Machado
Resumo<br />
O artigo apresenta reflexões sobre princípios filosóficos<br />
e procedimentos metodológicos do Teatro-fórum, técnica<br />
mais conhecida do Teatro do Oprimido. A escolha desta<br />
técnica se deu pela sua ampla inserção em movimentos<br />
populares e em redes de Teatro do Oprimido existentes em<br />
dezenas de países. Apesar da difusão, dúvidas persistem<br />
sobre a atuação do ator, do espectador e da encenação do<br />
fórum. Estas são as principais questões tratadas no texto.<br />
Palavras-chave: Teatro-fórum – Teatro do Oprimido - Encenação.<br />
Theater-forum: proposals and procedures<br />
Abstract<br />
The article presents reflections about philosophical<br />
principles and methodological procedures of theater-forum,<br />
the most known Theater of the Oppressed’s technique.<br />
The choice of this technique was due your wide insertion<br />
in popular movements and at Theater of the Oppressed’s<br />
networks existing in dozens of countries. Despite the wide<br />
dissemination, doubts persist about the performance of<br />
actor, spectator and forum staging. These are the main<br />
questions treated in the text.<br />
Key-words: Theater-forum - Theater of the Oppressed – Liberating Education<br />
1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia/<br />
UFBA. Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia/ UFRB.<br />
Teatro-fórum: propósitos e<br />
procedimentos.<br />
Cilene Nascimento Canda 1<br />
TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS 119
<strong>Urdimento</strong><br />
120<br />
1. Caminhos introdutórios<br />
A<br />
crescente utilização do Teatrofórum<br />
é resultado da popularização<br />
do arsenal estético-político<br />
do Teatro do Oprimido<br />
e nos remete à reflexão sobre<br />
seus princípios políticos e procedimentos<br />
metodológicos. O Teatr o-fórum é uma<br />
modalidade expressiva e reflexiva bastante<br />
empregada como uma das armas de fortalecimento<br />
de práticas culturais de grupos<br />
populares. O presente texto faz a revisão<br />
de suas características estéticas e políticas<br />
e baseia-se em estudos teóricos desenvolvidos<br />
por Augusto Boal (2005), Paulo Freire<br />
(2001), Nunes (2004), dentre outros. Buscase,<br />
neste artigo, contribuir para a compreensão<br />
sobre os procedimentos metodológicos<br />
da referida técnica, visando desmistificar<br />
algumas dúvidas existentes sobre o exercício<br />
artístico do Teatro do Oprimido. Cabe<br />
salientar que a reflexão sobre tais procedimentos<br />
é sustentada pela dimensão política<br />
e humanística do teatro popular.<br />
Atuo com Teatro do Oprimido há alguns<br />
anos e, nessa trajetória em diversas<br />
redes sociais, observo dificuldades de grupos<br />
e de militantes com a utilização da<br />
técnica do Teatro-fórum, no que se refere<br />
especialmente à atuação do curinga, à participação<br />
da plateia e à direção artística do<br />
espetáculo-fórum. Por esta razão, torna-se<br />
necessária a ampliação da discussão sobre<br />
o Teatro-fórum, tanto no campo social,<br />
quanto no contexto acadêmico, como<br />
possibilidade de repensar práticas e reafirmar<br />
a função política do teatro. O próprio<br />
Augusto Boal assegurou a necessidade de<br />
revisão das formas de aplicação da técnica<br />
do Teatro-fórum, por conta de sua utilização<br />
em lugares mais longínquos de todo o<br />
mundo:<br />
O desenvolvimento de múltiplas direções<br />
do Teatro-fórum em tantos países do<br />
mundo determina, inevitavelmente, uma<br />
revisão de todos os conceitos, de todas as<br />
formas, estruturas, técnicas, métodos e processos.<br />
(...) Dentro das múltiplas formas e<br />
maneiras de se praticar o Teatro-fórum,<br />
contudo, surgem muitas dúvidas, mas também<br />
muitas certezas. (BOAL, 2007, p. 319).<br />
Apesar dos estudos de Boal serem bastante<br />
difundidos por meio de livros e das<br />
redes de multiplicação 2 do Teatro do Oprimido,<br />
convém afirmar a necessidade de divulgação<br />
da base metodológica do Teatrofórum,<br />
revendo dúvidas e certezas, desafios<br />
e possibilidades de atuação teatral. Para<br />
isso, partimos do seguinte questionamento:<br />
quais os propósitos políticos e os procedimentos<br />
da técnica do Teatro-fórum?<br />
Para iniciar tal debate, cabe contextualizar,<br />
brevemente, o cenário filosófico e<br />
artístico do Teatro do Oprimido como um<br />
sistema de técnicas e jogos destinados ao<br />
exercício teatral, com o propósito de fortalecer<br />
a formação política e estética de sujeitos<br />
oprimidos. Tal formação visa a humanização<br />
e a busca pela superação das opressões,<br />
seja de ordem social, psicológica ou simbólica.<br />
O Teatro do Oprimido pode ser visto<br />
como um campo de expressões humanas,<br />
de produção de sentidos, de vivências coletivas<br />
e de formação política.<br />
Evidentemente, é importante ponderar<br />
os limites enfrentados nessa formação, de<br />
modo a evitar a consideração de que os sujeitos<br />
se tornam automaticamente livres e<br />
autônomos, por participarem de um fórum<br />
ou de um breve processo de formação política<br />
em Teatro do Oprimido. Para Paulo<br />
Freire, o processo formativo é caracterizado<br />
pela revisão permanente de posturas, concepções<br />
e práticas sociais, e não é dado a<br />
priori, tampouco é transferido por outrem.<br />
Do mesmo modo, o processo formativo em<br />
Teatro do Oprimido é marcado pelo contato<br />
constante do sujeito com a obra de arte<br />
e pela inserção em espaços de debates e de<br />
criação artística.<br />
Convém, então, dimensionar que este<br />
arsenal dirige-se a uma formação consistente,<br />
não restringida ao acúmulo de técnicas<br />
para o desempenho de personagens,<br />
2 O Projeto Teatro do Oprimido de ponto a ponto, desenvolvido<br />
pelo Centro de Teatro do Oprimido, do Rio de Janeiro, vem<br />
formando centenas de instituições, pontos de cultura e de<br />
grupos multiplicadores. Dentre outras redes sociais, é importante<br />
destacar o Movimento dos Sem Terra, como um dos principais<br />
movimentos sociais que utilizam o Teatro do Oprimido em<br />
trabalhos artísticos e políticos.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
mas voltada para (re)pensar o contexto<br />
de produção cultural, artística e crítica de<br />
grupos economicamente excluídos. O Teatro<br />
do Oprimido trata de uma formação<br />
que integra a dimensão estética à reflexão<br />
política, tendo em vista a mudança das<br />
relações abusivas de poder, expressas em<br />
formas distintas de opressão social. Esta é<br />
mais uma possibilidade de formação, e não<br />
pode ser a única, visto que outros meios de<br />
produção cênica precisam ser ampliados; e<br />
o Teatro do Oprimido atua no sentido dessa<br />
democratização, por compreender que<br />
tais meios precisam ser utilizados por todo<br />
ser humano e não restritos a determinados<br />
grupos sociais hegemônicos.<br />
2. A técnica do Teatro-fórum:<br />
perspectiva filosófica e metodológica<br />
O Teatro-fórum é considerado por<br />
Boal como um ensaio para a vida, por meio<br />
do qual o espect-ator 3 experimenta as possibilidades<br />
de atuação, de reivindicação da<br />
resolução de opressões vividas ou testemunhadas<br />
no contexto social. Em cena, o sujeito<br />
é portador da voz, do ato cênico e visa<br />
colocar em prática as ideias e as sugestões<br />
de ações para a superação do problema de<br />
opressão, para que possa ensaiar possibilidades<br />
de atuação no contexto social.<br />
Em breves linhas, descrevemos os<br />
procedimentos de um espetáculo de Teatro-fórum.<br />
Em um processo de oficina<br />
ou de laboratório de um grupo de teatro,<br />
os participantes (atores e/ou não-atores)<br />
compartilham histórias de vida que serão<br />
discutidas, avaliadas e selecionadas para a<br />
montagem. Esta técnica consiste em apresentar<br />
um problema social em cena, um<br />
anti-modelo (ou seja, um modelo de vida<br />
não desejado, que não deve ser visto como<br />
modelo), no qual o oprimido é impedido<br />
de realizar um desejo, fruto da necessidade<br />
clara de cunho pessoal ou social. Na<br />
cena, apresentam-se diferentes motivações<br />
do opressor e do oprimido. Em um jogo<br />
3 Espect-ator significa espectador + ator, ou seja, aquele que<br />
assiste e intervém na ação cênica.<br />
Cilene Nascimento Canda TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS<br />
de conflitos, nos quais se apresentam forças,<br />
muitas vezes desiguais, o protagonista<br />
busca resolver o problema apresentado.<br />
Sem conflito, não há fórum, por isso,<br />
é preciso que os diferentes quereres<br />
dos diferentes personagens entrem<br />
em choque, caracterizando o conflito<br />
dramático. Esse conflito não<br />
se resolve nem se dissolve em cena,<br />
ele, na verdade, se acirra. A peça<br />
termina - sempre inacabada - geralmente<br />
quando o protagonista, após<br />
algumas tentativas, praticamente<br />
desiste de lutar pelo que deseja.<br />
(NUNES, 2004, p. 58).<br />
Nesse jogo de conflitos, torna-se evidente<br />
que a tentativa do oprimido de realizar<br />
o seu desejo não se efetivou, por conta<br />
da força opositora do opressor e não por<br />
mera desistência do oprimido. O problema,<br />
ou o conflito, deve ser claro e apresentar-se<br />
como uma pergunta a ser levada ao fórum.<br />
Boal ressalta a clareza da pergunta que<br />
norteará a discussão, afirmando que o desejo<br />
do oprimido deve ficar evidente para<br />
todos; só a partir disso, é possível construir<br />
um fórum de debate - político e estético!<br />
Com o término do anti-modelo, o curinga<br />
4 questiona o público a respeito do que<br />
se apresentou no palco e convida-o a entrar<br />
em cena e a propor novos esquemas<br />
possíveis de atuação do oprimido para a<br />
realização do seu desejo no ato cênico e<br />
para, principalmente, superar ou amenizar<br />
a opressão ali apresentada. Independente<br />
de obter um resultado satisfatório, o<br />
espect-ator estará experimentando o espaço<br />
da atuação estética e política, como um ensaio<br />
para a vida social. No fórum, o sujeito<br />
está testando concretamente, ainda que de<br />
modo metafórico, as possibilidades de atuar<br />
no cotidiano.<br />
Salientamos que o mais importante não<br />
é solucionar o problema, destruir a opressão<br />
ou realizar o desejo do oprimido; o que<br />
importa é o debate estético e a busca por<br />
4 O Curinga é o mediador do debate entre palco e plateia,<br />
entre atores e espectadores. É ele o responsável por provocar<br />
questões e estimular o espect-ator a subir no palco e mostrar<br />
sua versão para a resolução do problema.<br />
121
<strong>Urdimento</strong><br />
122<br />
alternativas, revelando que a questão implica<br />
em várias formas de atuação do oprimido<br />
e não somente uma intervenção no<br />
anti-modelo. Todo problema sugere meios<br />
diferentes de intervenção e de resolução;<br />
anunciar apenas uma alternativa possível é<br />
também uma atitude autoritária. Isto pode<br />
ser reafirmado por Nunes:<br />
Não se procura a melhor solução, mas<br />
conhecer mecanismos de poder presentes<br />
na situação, experimentando e buscando<br />
saídas, do ponto de vista do protagonista.<br />
As alternativas são analisadas pela platéia,<br />
cujas pessoas, ativadas - para usar um termo<br />
de Boal -, se transformam de espectadores<br />
em espect-atores - aqueles que vêem e<br />
agem. (NUNES, 2004, p. 44).<br />
Esta questão é, ainda, endossada pelo<br />
próprio Boal, ao tratar sobre os propósitos<br />
do Teatro-fórum: “mais importante do que<br />
chegar a uma boa solução é provocar um<br />
bom debate. Na minha opinião, o que conduz<br />
à auto-ativação dos espect-atores é o debate,<br />
não a solução que porventura possa<br />
ser encontrada”. (BOAL, 2007, p. 326). Esta<br />
auto-ativação proferida por Boal diz respeito<br />
à possibilidade do espectador virar<br />
um espect-ator, mobilizado para a atuação<br />
em cena e, possivelmente, para a intervenção<br />
na vida concreta.<br />
A técnica do Teatro-fórum foi bastante<br />
inovadora no campo do fazer teatral, do<br />
ponto de vista da criação/consolidação de<br />
uma metodologia profícua de mobilização<br />
social. O Teatro-fórum é visto por diversos<br />
segmentos sociais, como “a mais radical na<br />
socialização dos meios de produção teatral,<br />
pois rompe completamente a barreira palco<br />
e platéia” (COLETIVO NACIONAL DE<br />
CULTURA, 2006, p. 19). Por visar romper<br />
as barreiras existentes entre palco e plateia<br />
e entre opressores e oprimidos, o Teatro-fórum<br />
integra, dialogicamente, no ato teatral<br />
aqueles que, convencionalmente, dizem e<br />
fazem (os atores) e aqueles que escutam e<br />
assistem (o público).<br />
Propõe-se, por meio desta técnica, a<br />
ruptura entre o lugar de falar e de comandar<br />
o fenômeno teatral: o palco; e o local de<br />
ouvir: a plateia. Porém, diante da prolifera-<br />
ção de diversos procedimentos metodológicos<br />
de quebra da quarta parede, a partir<br />
das técnicas de distanciamento desenvolvidas<br />
por Bertold Brecht, seria incorreto dizer<br />
que a principal característica (e exclusiva!)<br />
do Teatro-fórum é o diálogo efetivo<br />
entre palco e plateia.<br />
Embora a proposta de participação do<br />
público no ato teatral seja uma característica<br />
primordial do Teatro-fórum, sem a<br />
qual este deixaria de existir, convém destacar<br />
que a mera participação do público<br />
no palco não contempla os princípios de<br />
humanização e de libertação almejados por<br />
Augusto Boal. O que difere o Teatro-fórum<br />
de outras técnicas de teatro interativo é justamente<br />
o seu objetivo político de emancipação<br />
humana e social, atendendo a dois<br />
princípios primordiais: “a) transformação<br />
do espectador em protagonista da ação teatral;<br />
b) tentativa de, através dessa transformação,<br />
modificar a sociedade, e não apenas<br />
interpretá-la” (BOAL, 2007, p. 319). Ao<br />
estimular a intervenção efetiva do espectator,<br />
busca-se provocar reflexões sobre as<br />
formas de opressão social apresentadas e a<br />
revisão das possibilidades de modificação<br />
da realidade, no espaço cênico.<br />
O Teatro-fórum não é um mero jogo<br />
de entretenimento e de apresentação das<br />
virtudes e das habilidades de improvisação<br />
do ator no palco. O Teatro-fórum é<br />
considerado por Augusto Boal como uma<br />
metáfora teatral, que pode ser recriada e<br />
reinterpretada na vida social de cada sujeito<br />
presente na plateia. Assim, visa-se com<br />
o Teatro do Oprimido “ajudar o espectador<br />
a se transformar em protagonista da ação<br />
dramática, para que, em seguida, utilize<br />
em sua vida as ações que ensaiou na cena”.<br />
(DESGRANGES, 2006, p. 70). É o sentido<br />
da formação política configurada em atuação<br />
cênico-reflexiva que está em jogo. Este<br />
é um processo formativo do ator em cena<br />
e da plateia que assiste, opina, intervém e<br />
avalia a ação do sujeito, podendo propor<br />
outros modos de atuação cênica para a resolução<br />
da questão apresentada.<br />
Ressaltamos que o oprimido não é<br />
aquele que perdeu a batalha e resignou-<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
se; oprimido é o sujeito que está sempre<br />
em luta, em conflito com o opressor, mas<br />
não atingirá êxito por não ter condições de<br />
visualizar/implementar possíveis estratégias<br />
para resolver o problema tratado.<br />
Abre-se, então, o espaço para o fórum, enquanto<br />
oportunidade dos participantes que<br />
assistem à cena opinarem, discordarem,<br />
expressarem suas ideias, mas, ao invés de<br />
simplesmente dizerem o que a personagem<br />
deve fazer, o próprio público entra em<br />
cena para mostrar a sua alternativa ante a<br />
resolução do problema.<br />
Nesse momento, o espect-ator ingressa<br />
efetivamente (corpo, voz, pensamento e<br />
ação) no palco para ensaiar possibilidades<br />
de realização do desejo e da superação da<br />
relação dicotômica entre opressor e oprimido<br />
apresentada em cena. Se uma mulher<br />
decide separar-se de um marido violento,<br />
por exemplo, ela precisará visualizar/ativar<br />
os mecanismos de poder (a denúncia,<br />
a delegacia da mulher, a legislação, a família,<br />
a lei Maria da Penha, etc.) para pôr em<br />
cena. O palco é um espaço metafórico, mas<br />
enquanto atua, o espect-ator estará concretamente,<br />
em cena, simulando as possíveis<br />
estratégias de atuação.<br />
3. Desmistificando algumas<br />
questões do Teatro- fórum<br />
Esta parte do texto destina-se à revisão<br />
de princípios e procedimentos metodológicos<br />
do Teatro-fórum, partindo de dúvidas<br />
encontradas em práticas 5 de militância social<br />
e nas orientações de Boal (2007) na sistematização<br />
do referido arsenal. O primeiro<br />
equívoco a se desconstruir diz respeito<br />
à afirmação de que o Teatro do Oprimido<br />
não se preocupa da abordagem técnica e<br />
estética da encenação teatral, colocando o<br />
conteúdo como uma parte mais relevante<br />
do que a forma artística. Esta questão pre-<br />
5 Estas experiências foram observadas, especialmente, na<br />
atuação no Projeto Teatro do Oprimido de ponto a ponto,<br />
coordenado pelo Centro de Teatro do Oprimido e apoiado pelo<br />
Ministério da Cultura, que visa a disseminação do Teatro do<br />
Oprimido em diversas regiões, estados e municípios brasileiros,<br />
por meio da formação de multiplicadores em Pontos de Cultura,<br />
movimentos sociais e organizações não-governamentais.<br />
Cilene Nascimento Canda TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS<br />
cisa ser desmistificada, pois Boal, em toda<br />
sua obra, aborda a importância do belo, do<br />
rigor técnico e do vigor estético da experiência<br />
teatral. Com este posicionamento,<br />
afirmava que<br />
O importante é que o Teatro do Oprimido<br />
seja bom teatro, antes de mais nada.<br />
Que a apresentação do anti-modelo seja,<br />
em si, fonte de prazer estético. Deve ser<br />
um bom e belo espetáculo, antes de ter<br />
início a parte do fórum, isto é, a discussão<br />
dramática, teatral, do tema proposto.<br />
(BOAL, 2007, p. 322).<br />
Na fonte de prazer estético, desencadeada<br />
pela forma cênica, residem os meios<br />
para a leitura da cena e da realidade social.<br />
Com este mesmo posicionamento, a dissertação<br />
de mestrado de Carolina Vieira (2009)<br />
endossa que o espetáculo de Teatro-fórum<br />
visa “estimular os participantes do grupo<br />
quanto às suas capacidades de pensar não<br />
só política, mas esteticamente o espetáculo.<br />
A teatralidade deve conviver com a reflexão”<br />
(p. 72), evitando a supervalorização de<br />
um aspecto sobre outro.<br />
O teatro, apontado aqui como prática<br />
cultural para a liberdade, é fruto da interação<br />
estética e política do sujeito com seu<br />
meio. Para ser político, o teatro não precisa<br />
ser destituído de beleza, afinal o direito<br />
ao belo e à qualidade da experiência cênica<br />
deve ser assegurado nas práticas culturais.<br />
O teatro precisa ser vibrante para estimular<br />
o exercício humano do sonho, da liberdade<br />
e da emancipação; afinal, visa-se, com<br />
esta técnica, incentivar a participação ativa<br />
do público, com todas as suas ferramentas<br />
estéticas disponíveis. No espaço cênico do<br />
Teatro-fórum, os elementos cênicos são utilizados<br />
como qualquer forma de teatro: sonoplastia,<br />
cenário, adereços, figurino, maquiagem<br />
e a construção rigorosa de bons<br />
personagens.<br />
Investir na formatividade da cena é<br />
também um ato político, pois, “o perigo de<br />
uma encenação pobre é induzir os espectatores<br />
participantes a apenas falar, discutir<br />
verbalmente as soluções possíveis, em vez<br />
de fazê-lo teatralmente” (BOAL, 2007, p.<br />
123
<strong>Urdimento</strong><br />
124<br />
324). O objetivo de fazer teatro é soberano;<br />
sem o ato cênico, não haverá Teatrofórum.<br />
Boal ainda acentua que<br />
Muitas vezes, os grupos que praticam o<br />
Teatro-fórum são pobres, de poucos recursos<br />
econômicos. Em geral, vêem-se cenografias<br />
constituídas por mesa e cadeiras, e<br />
nada mais. Isso é uma contingência, não<br />
deve ser considerada opção. O ideal é que<br />
a cenografia seja o mais elaborada possível,<br />
com todos os detalhes que julguem<br />
necessários, com toda a complexidade<br />
que se considerar importante. O mesmo é<br />
válido para os figurinos. É importante que<br />
os personagens sejam reconhecidos pelas<br />
roupas que vestem e pelos objetos que<br />
utilizam. Muitas vezes, a opressão está na<br />
roupa, nas coisas: é preciso que coisas e<br />
roupas sejam presentes, atuantes, claras,<br />
estimulantes (BOAL, 2007, p. 333).<br />
Os princípios políticos não contradizem<br />
a experiência estética ou a diversão.<br />
Ao contrário: é importante considerar<br />
que o teatro cumprirá, de modo cada vez<br />
mais intenso, o seu potencial educativo,<br />
na medida em que garantir o vigor estético<br />
da experiência. Ou seja, quanto mais<br />
rica em imagens e intensa em cenas for a<br />
experiência estética, mais o sujeito produzirá<br />
sentidos para a compreensão da<br />
vida em sociedade. A democratização do<br />
espaço para a experiência livre de criação,<br />
reservado a determinadas classes<br />
sociais, deve ser considerada uma atitude<br />
política de grande relevância para a<br />
dinâmica social emancipatória.<br />
Outra série de dúvidas presente<br />
nesta discussão diz respeito ao papel e<br />
à atuação do curinga no Teatro-fórum.<br />
Cabe salientar que o curinga é o sujeito<br />
atuante da coordenação dos espetáculos<br />
de Teatro-fórum, que trabalha também<br />
nas funções de diretor das cenas e de<br />
educador das oficinas práticas, utilizando<br />
os jogos e exercícios deste arsenal.<br />
Assim,<br />
A coordenação artística reúne funções<br />
que passam pelas escolhas dos elementos<br />
da cena até o ensaio do espetáculo. É<br />
válido ressaltar que o curinga quase nun-<br />
ca está sozinho exercendo essas funções<br />
e não deve ser revestido de autoridade.<br />
(VIEIRA, 2009, p. 71).<br />
A atuação do curinga é bastante complexa,<br />
pois este é o responsável por substituir<br />
qualquer um dos sujeitos envolvidos<br />
no fenômeno teatral, inclusive os atores.<br />
Porém, o seu principal papel foca-se na<br />
mediação entre o palco e a plateia, questionando<br />
e provocando o debate, as reflexões<br />
e a participação plena do público em cena.<br />
Boal faz diversas orientações para a<br />
atuação do curinga, porém afirma a nãoexistência<br />
de um modelo certo a ser seguido.<br />
Porém, alguns equívocos precisam ser<br />
evitados, como forma de assegurar a participação<br />
plena do público, bem como para<br />
evitar o direcionamento das questões para<br />
o espect-ator. Este tipo de postura diretiva<br />
seria um modo de alienar o sujeito em seu<br />
processo livre e libertador de pensar, analisar,<br />
ponderar e decidir. Por isso, o curinga<br />
não deve manipular as questões provenientes<br />
das cenas no debate, com o suposto<br />
objetivo de traduzir para o outro o que a<br />
cena “quis dizer ou mostrar”.<br />
É importante valorizar a polissemia de<br />
interpretações e de contribuições daqueles<br />
que fazem a leitura do espetáculo teatral,<br />
especialmente porque é por meio das diferentes<br />
leituras que surgem mais possibilidades<br />
de intervenção cênico-social. O<br />
curinga não deve expor conclusões do fórum,<br />
mas questionar a platéia e provocar<br />
reflexões, problematizando o que foi visto<br />
e (re)feito pelo espect-ator. A atuação do<br />
curinga se dá na mediação da construção de<br />
novas perguntas sobre as intervenções do<br />
público, a serem respondidas pela plateia<br />
por meio do ato cênico.<br />
A interpretação pessoal deve ser feita<br />
com cuidado, para evitar a manipulação do<br />
pensamento do outro, visto que o curinga<br />
está situado em uma postura privilegiada de<br />
coordenação das atividades. É importante<br />
salientar que o seu papel de provocar o debate<br />
não lhe dá o direito de tomar decisões por<br />
conta própria, sem o aval da plateia. Nesse<br />
caso, ele “enuncia as regras do jogo, mas, a<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
partir daí, deve aceitar até mesmo que a plateia<br />
as modifique, se isso for julgado conveniente”<br />
(BOAL, 2007, p. 330).<br />
É válido salientar, ainda, a importância<br />
do corpo do curinga na ação de coordenação<br />
do fórum. Sem vigor e intensidade,<br />
dificilmente haverá fórum, ainda que o<br />
anti-modelo apresente inquietações e motivações<br />
à plateia. O curinga não intervém<br />
dizendo o que o espet-ator deve fazer, mas<br />
também deve estimulá-lo, ativando-o para<br />
entrar em cena, de modo a promover o debate<br />
estético-político. Para isso, o curinga<br />
precisa estar inteiro em sua ação, com a<br />
atitude física vigorosa, pois ele é também<br />
um sujeito de teatro, sua atuação também é<br />
cênica, ainda que sua função no momento<br />
do fórum seja a de coordenação do debate.<br />
Logo, seu corpo e sua voz devem estar focalizados<br />
no evento teatral. Sobre este aspecto,<br />
Boal alerta que alguns curingas<br />
têm a tendência de se diluir na platéia,<br />
sentando-se ao lado dos demais espectatores<br />
– isso pode ser desmobilizante. Outros,<br />
com o próprio corpo revelam dúvida,<br />
indecisão e até timidez. (...) Se o curinga<br />
em cena está cansado ou desorientado,<br />
sua cansada e desorientada imagem será<br />
transmitida aos espect-atores. Se, pelo<br />
contrário, o curinga está atento, dinâmico,<br />
também esse dinamismo não deve significar<br />
ser impositivo! (BOAL, 2007, p. 332).<br />
Outra questão a ser discutida na prática<br />
do Teatro-fórum, diz respeito ao papel<br />
dos atores na encenação. Diferentemente<br />
do teatro convencional, o ator do Teatrofórum<br />
deve apresentar uma estrutura dialética,<br />
mostrar a complexidade do personagem,<br />
que muitas vezes aparece em cena<br />
dizendo “não”, mas pode mudar de opinião<br />
e vir a dizer “sim”, assim como ocorre<br />
na vida. O ator do Teatro-fórum “deve<br />
expressar sobretudo a dúvida: cada gesto<br />
deve conter sua negação; cada frase deve<br />
deixar pressupor a possibilidade de dizer<br />
o contrário daquilo que se diz, cada sim<br />
pressupõe o não, o talvez” (BOAL, 2007,<br />
p. 335). O personagem é complexo e traz<br />
em si as contradições da vida social e da<br />
Cilene Nascimento Canda TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS<br />
relação opressor/oprimido, por isso o ator<br />
deve estar aberto ao diálogo, à troca mútua<br />
e aos aprendizados que as intervenções da<br />
plateia podem produzir.<br />
Assim, “o ator deve ser dialético, dar<br />
e receber, dialogar, medir-se, ser estimulante,<br />
criador. Não deve ter medo (coisa<br />
que acontece com freqüência, quando se<br />
trata de atores profissionais) de perder<br />
seu posto no palco” (BOAL, 2007, p. 335).<br />
Esta perspectiva permite-nos refletir que o<br />
Teatro-fórum é uma técnica de cunho dialético,<br />
promotora de novas sínteses para o<br />
entendimento do ato teatral e da realidade<br />
social.<br />
A fim de garantir a aproximação entre<br />
a cena e a realidade social, a preparação<br />
dos atores do Teatro-fórum perpassa por<br />
técnicas sistematizadas por Stanislavski,<br />
de representação naturalista da realidade,<br />
adaptada aos anseios marxistas de superação<br />
das relações de opressão nesta mesma<br />
realidade. Boal, em sua formação inicial<br />
em teatro, teve sua marca stanislavskiana,<br />
como anteparo para se pensar o trabalho<br />
do ator no teatro de cunho popular. No entanto,<br />
a representação naturalista não é a<br />
única alternativa cênica possível no Teatrofórum.<br />
Boal, em diversos livros, trata sobre<br />
a possibilidade de travar um diálogo estético<br />
e político por meio de diferentes estilos<br />
e de abordagens cênicas, sendo que o conteúdo<br />
libertador não deve ser dispensado.<br />
Porém, Nunes lembra que<br />
Apesar dessa antiga advertência de Boal, às<br />
vezes, alguns praticantes do Teatro do Oprimido,<br />
por ignorância ou insensibilidade, se<br />
mantêm fixados nesse tipo de ilusão objetivista,<br />
julgando fazer “uma pintura” fidedigna<br />
da realidade. Ou, mesmo que acreditem<br />
que concretizam sua leitura de mundo, sua<br />
versão de uma dada situação, pretendem<br />
que ela seja ou pareça real, como se “parecer<br />
real” fosse a única forma de construir uma<br />
peça. Entretanto é a forma dada aos personagens,<br />
aos diálogos, a muitas encenações<br />
de Teatro-fórum que tem uma intenção de<br />
semelhança com a realidade cotidiana. Até<br />
porque uma das pretensões do Teatro-fórum<br />
é que ele seja um ensaio para a realidade<br />
– para sua transformação... (NUNES,<br />
2004, pp. 82 e 83).<br />
125
<strong>Urdimento</strong><br />
126<br />
As considerações feitas por Nunes são<br />
pertinentes para a afirmação da autonomia<br />
e da liberdade do sujeito – o diretor, o ator<br />
e o público - no processo criativo do Teatro<br />
do Oprimido. Compreendemos que o estilo<br />
teatral é fruto de investigação criativa e<br />
coletiva, não é dado a priori por um conjunto<br />
de modelos e padrões cênicos. Afinal,<br />
“o modelo é uma peça de teatro como<br />
tantas outras, com a única diferença de que<br />
não pode ser evangélica, não pode ser portadora<br />
de mensagem, da boa palavra, e sim<br />
da dúvida” (BOAL, 2007, p. 333). Tanto<br />
no conteúdo, quanto na forma, o Teatrofórum<br />
não pode impor padrões de atuação<br />
cênica/social.<br />
Com base nisso, compreendemos que<br />
a técnica do Teatro-fórum, apesar de apresentar<br />
claramente princípios éticos e procedimentos<br />
metodológicos, pode ser recriada<br />
pelos seus participantes de forma ampliada,<br />
sem a imposição de um estilo único ou<br />
“correto” de encenação. Não se deve, entretanto,<br />
perder de vista o horizonte político<br />
de transformação da realidade, conforme<br />
já anunciamos no início do texto. Acreditamos<br />
que quanto mais a investigação de<br />
um estilo de encenação for marcada pela<br />
liberdade de criação, mais libertador este<br />
processo será. Para que a liberdade seja<br />
um fim, ela deve ser assegurada em seus<br />
meios, no bojo do processo de formação.<br />
Muitas vezes, por desconhecimento<br />
de outras possibilidades de encenação teatral,<br />
alguns grupos militantes do Teatro do<br />
Oprimido tomam uma possível interpretação<br />
da palavra de Boal como sendo a definitiva,<br />
a mais correta; e isso pode incidir<br />
na restrição da compreensão do próprio<br />
processo de teatro de cunho libertador.<br />
Em sua vida, Boal sempre foi defensor da<br />
democratização das práticas culturais de<br />
liberdade, compreendendo que o teatro<br />
tem um significativo papel na emancipação<br />
humana e social de sujeitos. Portanto,<br />
o maior propósito do Teatro do Oprimido<br />
é o de humanização e de fortalecimento<br />
da ação/intervenção cultural, com vistas à<br />
superação de todas as formas de opressão,<br />
até mesmo em seu contexto de militância.<br />
4. Algumas conclusões<br />
(ou outras provocações)<br />
O presente artigo tratou da revisão dos<br />
princípios filosóficos e de alguns procedimentos<br />
metodológicos do Teatro-fórum,<br />
técnica mais difundida do Teatro do Oprimido.<br />
Por compreender que todo método é<br />
fruto de um posicionamento ético-filosófico,<br />
esta discussão ancorou-se no ponto de<br />
vista teórico de Augusto Boal, em consonância<br />
com as formas de concretização do<br />
Teatro-fórum. A preocupação de Boal em<br />
sistematizar uma técnica se deu pela necessidade<br />
de assegurar que esta não fosse<br />
utilizada como modo a atender a objetivos<br />
divergentes ou contraditórios ao Teatro do<br />
Oprimido. Pois sua própria obra, a depender<br />
dos usos e das adaptações sofridas, poderia<br />
contribuir para a conservação do autoritarismo<br />
e da dicotomia entre opressor e<br />
oprimido.<br />
Rever propósitos e orientações didáticas,<br />
longe de ser uma receita a ser seguida,<br />
permite-nos investigar problemas e tentar<br />
desmistificar alguns preconceitos enfrentados<br />
no âmbito da atuação em Teatro do<br />
Oprimido. A forma de interpretação dos<br />
atores, a mediação do curinga e o estilo de<br />
encenação são questões que não se esgotam<br />
no presente texto. Ao contrário, acreditamos<br />
que questionar a prática do Teatro<br />
do Oprimido é possibilitar a sua atualização<br />
e relevância para o contexto social contemporâneo.<br />
Evidentemente, outras questões pertinentes<br />
poderiam ser citadas e enfocadas<br />
neste artigo. Entretanto, não nos dedicamos<br />
a esgotar todos os problemas de interpretação<br />
da obra de Boal, porque acreditamos<br />
que o debate e a polissemia de<br />
interpretações são saudáveis para a reflexão<br />
e a historicidade de qualquer proposta<br />
de cunho emancipador. Porém, para que<br />
qualquer técnica ganhe validade social, o<br />
debate sobre o assunto precisa ser fomentado.<br />
Visamos, de modo conciso, levantar<br />
questionamentos acerca da utilização deste<br />
significativo arsenal, compreendendo que<br />
se o Teatro do Oprimido serve como arma<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
de fortalecimento da participação social do<br />
sujeito, os princípios de liberdade tanto na<br />
reflexão, na atuação social e na produção<br />
cênica devem ser considerados em sua totalidade.<br />
Dessa forma, afirmamos, contundentemente,<br />
que, se o princípio de liberdade não<br />
se consolidar nas práticas de militantes do<br />
Teatro do Oprimido, este arsenal corre o<br />
risco de vir a ser dogmático e tão opressor<br />
quanto às formas conservadoras de ação<br />
por nós criticadas, por restringir as potencialidades<br />
de criação e de invenção estética<br />
do ato cênico. A criação de um estilo não<br />
implica em uma receita a ser seguida. Ao<br />
contrário: o percurso de criação estética se<br />
desenvolve no próprio modo de caminhar<br />
de seus atuantes.<br />
Contudo, algumas orientações de Boal<br />
aqui expressas visam sistematizar uma técnica<br />
de teatro, com a finalidade de possibilitar<br />
a consistente utilização da mesma por<br />
grupos populares, porém tais orientações<br />
não podem ser vistas como passos rígidos<br />
a serem seguidos. Devem ser, na verdade,<br />
questionadas e recriadas a cada processo de<br />
encenação, a cada novo passo dado... a busca<br />
pelo vigor estético implica na concepção,<br />
criação, diálogo e concretização do produto<br />
cênico e isto tudo pode ser mediado em um<br />
processo educativo crítico e humanizador.<br />
Por fim, asseveramos que a sensibilidade,<br />
a liberdade criativa e as peculiaridades de<br />
cada elenco, de cada grupo, constituirão a<br />
poesia e a beleza do ato cênico com todas as<br />
potencialidades estéticas e políticas mencionadas.<br />
Cilene Nascimento Canda TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS<br />
127
<strong>Urdimento</strong><br />
128<br />
REfERênCIAS UTILIZADAS:<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.<br />
_____, _______. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.<br />
_____, _______. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização<br />
Brasileira, 2005.<br />
BRECHT, Bertold. Estudos sobre teatro. Tradução de Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira, 1978.<br />
COLETIVO NACIONAL DE CULTURA. Teatro e Transformação Social; Teatro Fórum e Agitprop.Vol.<br />
1. CEPATEC/FNC/MINC/00463. São Paulo, 2006.<br />
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo. São Paulo: Ed. Hucitec,<br />
2006.<br />
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a prática da liberdade e outros escritos. 9ª ed. São Paulo: Paz<br />
e Terra, 2001.<br />
_______, _____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:<br />
Paz e Terra, 1996.<br />
_______, _____. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora<br />
UNESP, 2000.<br />
Nunes, Sílvia Balesteri. Boal e Bene: contaminações para um teatro menor. Tese de doutorado.<br />
Doutorado em Psicologia clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC).<br />
São Paulo: 2004. Orientação: Luiz Benedicto Lacerda Orlandi.<br />
VIEIRA, Carolina Silva. Curinga uma carta fora do baralho: a relação diretor/espectador nos<br />
processos e produtos de espetáculos fórum. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação<br />
em Artes Cênicas. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009. Orientação:<br />
Antonia Pereira Bezerra.<br />
Cilene Nascimento Canda
N° 18 | Setembro Março de 2012 de 2012<br />
TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />
<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />
TEATRO COMUNITáRIO E<br />
DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO.<br />
Juliano Borba 1<br />
Resumo<br />
O espaço público é tema e foco de trabalho de um grupo de<br />
teatro comunitário da cidade de Buenos Aires, na Argentina,<br />
chamado Pompapetryasos. A partir do seu espetáculo Visita<br />
Guiada é possível relacionar algumas teorias que permitem<br />
compor uma noção de dramaturgia territorial. Para tanto é<br />
necessário compreender a relação entre a cidade e a ação do<br />
grupo como forma de intervenção cultural e política.<br />
PALAVRAS-CHAVES: teatro comunitário, dramaturgia do espaço, cidade<br />
Abstract<br />
Public space is theme and focus of a community theatre<br />
group from Buenos Aires, Argentina, called Pompapetryasos.<br />
From the spectacle Visita Guiada, it is possible to relate some<br />
theories that allow the composition of a notion of territory<br />
dramaturgy. Therefore, it is necessary understanding the<br />
relationship between the city and the group actions as a form<br />
of cultural and political intervention.<br />
KEY WORDS: community theatre, dramaturgy of space, city<br />
1 Juliano Borba é investigador de teatro comunitário. Egresso do curso de Artes Cênicas da<br />
UDESC, o autor fez mestrado em Teatro Aplicado pela Universidade de Exeter, Inglaterra e<br />
está finalizando seu doutoramento em Teoria das Artes na Universidade de Buenos Aires,<br />
Argentina, com tese sobre a Ação Cultural do Teatro Comunitário. É atualmente professor<br />
substituto do Departamento de Artes Cênicas da UDESC.<br />
129
<strong>Urdimento</strong><br />
130<br />
Entre as transformações do teatro<br />
contemporâneo, as que se referem<br />
à dramaturgia e ao espaço como<br />
sistema significante são as que<br />
nos possibilitam pensar uma dramaturgia<br />
do espaço no teatro realizado pelo<br />
grupo de palhaços do bairro Parque Patricios,<br />
em Buenos Aires, chamando Los Pompapetryasos.<br />
O grupo surgiu em 2002, período<br />
de maior expansão do teatro comunitário<br />
na Argentina, quase vinte anos depois do<br />
surgimento do primeiro grupo desse movimento,<br />
Catalinas Sur, em 1983, no bairro<br />
La Boca, em Buenos Aires. Entre os grupos<br />
de teatro comunitário que foram criados no<br />
ano de 2002, além da motivação artística e<br />
social, podemos inferir que também houve<br />
uma motivação para participar politicamente<br />
e mudar os destinos trágicos que a nação<br />
argentina estava experimentando, uma crise<br />
econômica e política que deixou 57% da<br />
população em situação de pobreza e a taxa<br />
de desemprego chegou aos 25%. Los Popapetryasos<br />
se reuniram a partir de um encontro<br />
de vizinhos do bairro Parque Patricios organizado<br />
pelos grupos teatrais seminais como<br />
Catalinas Sur, e o grupo Circuito Cultural<br />
Barracas do bairro de Barracas.<br />
A linguagem estética e teatral é<br />
desenvolvida em função de problemas<br />
concretos como o treinamento e a incorporação<br />
contínua de novos membros e a<br />
criação de espetáculos de qualidade artística.<br />
Por isso evitam os conflitos psicológicos<br />
na necessidade de uma construção<br />
dramatúrgica própria, que possa dar conta,<br />
ao mesmo tempo, de dar espaço para<br />
um grande número de atores, cantores e<br />
músicos, e de envolver as histórias locais<br />
na construção das cenas e do espetáculo.<br />
O grupo trabalha mais com as imagens e<br />
situações criadas pelos personagens-tipo<br />
e pelas canções cantadas em coro, do<br />
que compor uma história linear a partir<br />
de conflitos psicológicos de personagens<br />
individualizados. Tal perspectiva estética<br />
surge dessas necessidades específicas<br />
desse teatro inclusivo e realizado por um<br />
grupo com muitos integrantes. Música e<br />
personagens-tipo bem desenhados facili-<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
tam a construção de um espetáculo baseado<br />
na imagem e no som, em que o texto<br />
literal proposto nas letras das músicas<br />
ajuda a uma composição visual caricatural<br />
e grotesca. Ao invés de uma linearidade<br />
aristotélica, as cenas são episódicas e se relacionam<br />
entre si a partir da temática, e é<br />
a partir desse pré-texto, uma visita guiada<br />
no parque, que o espetáculo é construído<br />
de forma orgânica.<br />
O espaço público é o lugar escolhido<br />
para ensaio, apresentação e tema dos espetáculos.<br />
No espaço público o grupo busca<br />
novas abordagens cênicas para comportar<br />
novos vizinhos que se integram ao grupo e<br />
outros antigos que se afastam. A improvisação<br />
teatral e musical também prepara o grupo<br />
para a espontaneidade e isso quer dizer<br />
que estão gradualmente mais hábeis para<br />
encontrar soluções emergentes relacionadas<br />
com as intervenções e rupturas inesperadas<br />
causadas em decorrência das contingências<br />
desse ambiente.<br />
O segundo espetáculo do grupo chamado<br />
Visita Guiada é um musical itinerante,<br />
percorre alguns pontos da Praça Ameghino<br />
e em cada um constrói teatralmente um<br />
pouco da história, da cultura, e das práticas<br />
de desenvolvimento do poder público e dos<br />
habitantes do bairro. A cidade é o tema da<br />
obra, precisamente seu deterioro físico e insegurança<br />
dos seus espaços públicos 2 .<br />
O Espetáculo Visita Guiada<br />
Algumas horas antes do início do espetáculo,<br />
os membros do grupo ocupam<br />
um determinado lugar no centro da praça<br />
e preparam o espaço para a festa teatral.<br />
Eles armam barraca e tendas, expõem fotos,<br />
e disponibilizam comida e bebida a<br />
preços módicos e depois vão preparando<br />
2 Tal problema foi evidenciado quatro anos depois da estréia do<br />
espetáculo, em uma reportagem do diário Clarin no dia 07-02-<br />
2008, que termina com a seguinte conclusão: “Como contraste,<br />
aún conservan el esplendor de las reformas, la plaza Almagro,<br />
en Bulnes y Perón; las plazas Noruega y Castelli, en Belgrano;<br />
y el Parque Ameghino, en Parque Patricios. Por su parte, los<br />
vecinos esperan que las plazas dejen de dividirse, como las películas,<br />
en clase A y clase B y que todas vuelvan a ser un lugar<br />
para disfrutar”. Para mais da matéria ver: http://www.clarin.com/<br />
diario/2008/02/07/laciudad/h-03801.htm<br />
Juliano Borba<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
cenografias, objetos de cena, pondo figurino,<br />
se maquiando e se compondo para o<br />
espetáculo junto ao público, a vista de todos.<br />
As pessoas chegam, saúdam e conversam<br />
com os integrantes do grupo que estão<br />
em processo de preparação do espetáculo,<br />
compram bebida e comida, e conversam<br />
enquanto esperam o início da obra.<br />
Esse momento inicial e depois final<br />
de confraternização e comemoração entre<br />
espectadores e membros do grupo é uma<br />
das características fundamentais do teatro<br />
comunitário na Argentina. Diz respeito à<br />
necessidade de restabelecer as redes de relação<br />
social. Nesses momentos do evento,<br />
antes e depois da obra espetacular propriamente<br />
dita, existe um espaço de relacionamento<br />
humano acolhedor criado através do<br />
clima de festa familiar. O princípio chave é<br />
estar entre amigos. Existe uma perspectiva<br />
de estreito contato com o público e com a<br />
realidade social que os circunda, de forma<br />
que uma apresentação é um momento para<br />
atrair mais colaboradores e participantes.<br />
Existe uma rotatividade de integrantes, ingressam<br />
novos, se afastam outros antigos.<br />
Neste espetáculo existe uma situação<br />
interessante na qual o espetáculo começa<br />
antes de começar propriamente. Os atores<br />
e músicos se reúnem para realizar um<br />
aquecimento antes de começar o espetáculo<br />
propriamente, realizam esse feito em<br />
frente ao público. Essa prática se configura<br />
como um elemento espetacular, coerente<br />
com a preparação do espaço e dos atores<br />
também em frente ao público. Uma forma<br />
de desmistificar a preparação e os meios de<br />
produção e estabelecer uma relação horizontal<br />
e ritual.<br />
Em formação, ao som do violão, os<br />
atores e músicos cantam e se movimentam<br />
de forma a aquecer corpo e voz e ativar a<br />
concentração necessária à ação teatral. Todos<br />
os atores juntos se aproximam gradualmente<br />
e se apresentam ao público com<br />
uma canção:<br />
TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
En Parque Patricios no hay teatros<br />
Pero los vecinos no nos quedamos<br />
atrás,<br />
Mientras salga el sol sobre este<br />
barrio<br />
Nuestra función debe comenzar.<br />
No tenemos luces ni escenarios<br />
Menos hay telón tampoco hay que<br />
pagar,<br />
Nuestra mejor paga es su aplauso<br />
Y que quiera usted participar.<br />
(Refrão)<br />
Abran bien los ojos<br />
Atentos los sentidos<br />
El teatro ha venido<br />
Y es de todos por igual.<br />
Rompan las caretas<br />
Y que broten las sonrisas<br />
Acomódense de prisa<br />
La función va a comenzar.<br />
Nuestro telón es imaginario<br />
Nuestras luces vienen todas desde<br />
el sol,<br />
Los colores de nuestro escenario<br />
La naturaleza los pinto.<br />
No tendremos luces ni escenario<br />
Pero les mostramos nuestro corazón,<br />
Es sencillo como es este barrio<br />
Y es alegre como esta canción.<br />
(Refrão)<br />
Esta tarde vamos a mostrarles<br />
Para que usted vea lo que no siempre se ve,<br />
Cosas que encontramos en el parque<br />
Cosas que inventamos para usted.<br />
Esta plaza es más que un escenario<br />
Es nuestro poema fiel de inspiración,<br />
Esta historia que hoy representamos<br />
Esta plaza nos la confesó.<br />
(Refrão)<br />
Depois da canção os atores e músicos<br />
se integram ao público enquanto uma policial<br />
se destaca deste e convoca a todos a colocarem<br />
a mão na cabeça para se preparar<br />
para a apresentação com um pensamento<br />
positivo. Pede a todos para repetirem junto<br />
com ela um exercício de pensamento positivo:<br />
“Meu vizinho não vai me roubar”.<br />
Esse momento parece ironizar a situação<br />
de insegurança gerada no processo gradativo<br />
de empobrecimento da população. Em<br />
seguida uma mulher e um homem, em tom<br />
131
<strong>Urdimento</strong><br />
132<br />
solene, vestidos formalmente, se apresentam<br />
ao público como os guias da visita ao<br />
Parque Ameghino. Eles pedem desculpas<br />
pela demora e iniciam falando sobre a importância<br />
da praça como símbolo do processo<br />
de transformação do bairro, de um<br />
lugar rural para um lugar metropolitano.<br />
Do ponto de partida, no centro da praça,<br />
o grupo se desloca cerca de vinte metros<br />
para o norte onde estava um monumento<br />
da praça que possui uma história curiosa.<br />
Era uma linda fonte que foi roubada e representava<br />
as distintas pessoas que habitavam<br />
o bairro, professores, operários, trabalhadores<br />
da saúde, comerciantes e artistas.<br />
O monumento que restou, situado no centro<br />
da praça, é uma homenagem ás vítimas<br />
da febre amarela e aos que ajudaram<br />
a cuidar e a enterrar suas vitimas. A cena<br />
mostra uma versão da situação do roubo<br />
do monumento. A cena termina com a chegada<br />
impactante de um grupo carnavalesco<br />
que vem de longe para ocupar o espaço<br />
antes ocupado pela fonte. A chegada desse<br />
grupo de murga do time de futebol local, o<br />
Huracán, faz uma alusão a duas dimensões<br />
muito importantes da cultura argentina, o<br />
futebol e a murga 3 . Ao som da bateria de<br />
percussão e com uma dança enérgica na<br />
qual predominam chutes para o alto ao ritmo<br />
da bateria eles cantam em tom sarcástico<br />
para que devolvam a estátua.<br />
Somos levados a um caminho no centro<br />
da praça, uma espécie de passagem por<br />
entre as árvores que liga duas faces opostas<br />
da praça, uma que encara o antigo presídio<br />
e outra que encara o Hospital Muníz. Ali encontramos<br />
quatro rapazes em cima de bancos<br />
cantando um tango em tom de serenata,<br />
um deles com uma viola em punho.<br />
A guia convidou a todas as mulheres<br />
para passar pelo corredor humano e os<br />
homens foram convidados a ficar de cada<br />
lado do caminho para compor tal corredor.<br />
Essa cena propõe um jogo com a platéia.<br />
Ao dar cada passo, as mulheres são alvo<br />
dos gracejos lisonjeiros característico do típico<br />
porteño boêmio. Pode-se experimentar<br />
3 Murga argentina é uma agrupação local carnavalesca com<br />
bateria de percussão cantada no coro dos dançarinos e instrumentistas.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
nesse momento um pouco de um comportamento<br />
tradicional.<br />
No fim do espetáculo somos guiados<br />
ao fundo da praça e nos dispomos ao redor<br />
de uma plataforma de concreto na qual se<br />
recompõe uma estátua viva com os atores<br />
em personagens de anjos, e nas extremidades<br />
laterais os atores como os personagens<br />
característicos do bairro e os demais músicos<br />
e atores que criam com a voz e o corpo<br />
uma dança que se dinamiza em ritmo<br />
de hip-hop. Como pano de fundo da ação<br />
teatral, um grande edifício branco de quatro<br />
andares com imensas janelas de vidro,<br />
uma antiga fábrica transformada em apartamentos<br />
e ao lado uma arborizada construção<br />
colonial de cor amarelada, o Hospital<br />
Muníz. Todos os atores e músicos do grupo<br />
estão reunidos no ritmo cantando:<br />
Encontramos la plaza<br />
Así como se ve<br />
Con monumentos en ruina<br />
Y la mugre de ayer<br />
Con voluntad y trabajo<br />
Juntos pudimos lograr<br />
Esta, nuestra historia<br />
Un sueño colectivo<br />
Hecho realidad<br />
Esta, nuestra historia<br />
Un sueño colectivo<br />
Hecho realidad<br />
Este sueño logrado<br />
Puede crecer mucho más<br />
El tiempo no se detiene<br />
No nos quedemos atrás<br />
Para seguir construyendo<br />
Y para nunca olvidar<br />
Depois do hip-hop eles terminam o<br />
espetáculo e respondem aos aplausos com<br />
uma música de encerramento. É possível<br />
perceber algumas pessoas da platéia cantando<br />
com eles:<br />
Los Pompapetriyasos<br />
con todo su amor<br />
En retirada dejamos esta canción;<br />
Con bombo y platillo señor<br />
Con todo nuestro corazón<br />
Porque la Visita Guiada ya<br />
se terminó<br />
Juliano Borba<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Pasen a ver, acérquense,<br />
Porque esta fiesta vecino<br />
Es para usted<br />
Si les gusto nuestra función<br />
Hasta el domingo<br />
Les decimos adiós<br />
Los Pompapetriyasos con todo su<br />
amor<br />
En retirada dejamos esta canción;<br />
Con bombo y platillo señor<br />
Con todo nuestro corazón<br />
Porque la Visita Guiada ya se terminó<br />
Pasen a ver, acérquense,<br />
Porque esta fiesta vecino<br />
Es para usted<br />
Si les gusto nuestra función<br />
Hasta el domingo<br />
Les decimos adiós<br />
Ao fim da música, uma nova sessão de<br />
aplauso que a diretora Agustina Ibarrea<br />
interrompe ao tomar a dianteira do grupo<br />
para agradecer ao público sua presença.<br />
Avisa que os atores irão passar o chapéu<br />
para recolher as contribuições voluntarias.<br />
Ela explica de forma sintética que o grupo<br />
é comunitário e todos são bem vindos<br />
a participar e avisa que o grupo se reúne<br />
para trabalhar nas quartas-feiras à noite no<br />
Clube Atlético Parque Patricios e aos sábados<br />
à tarde na praça, se o tempo está bom,<br />
ou no clube se estiver muito frio ou chovendo.<br />
Grande parte das pessoas fica junto<br />
aos membros do grupo por mais muito<br />
tempo entre saudações e conversas, e os<br />
ajudam a levar cenografia e instrumentos<br />
musicais até o quartel general do grupo no<br />
outro lado da praça.<br />
Dramaturgia, espaço público e<br />
participação política<br />
Para entender como um espaço público<br />
da cidade ofereceu uma possível dramaturgia<br />
para espetáculo Visita Guiada, parece<br />
necessário tecer as bases teóricas de uma<br />
possível relação entre dramaturgia e o espaço<br />
público da cidade. No que se refere à<br />
dramaturgia, a utilização canônica do texto<br />
dramático para a composição do espetácu-<br />
TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
lo experimentou uma crise que possibilitou<br />
novas perspectivas dramatúrgicas para<br />
além da mise en escéne. Pudemos perceber<br />
novos olhares teóricos e práticos sobre a<br />
complexa rede de significados emitidos e<br />
recebidos no espetáculo, que podem ser<br />
entendidos como processos de codificação<br />
e decodificação. Ao pensar o espetáculo,<br />
os críticos e encenadores contemporâneos<br />
migraram seu interesse do objeto dramatúrgico<br />
em si, o texto dramático, para as<br />
possíveis relações dramatúrgicas que poderiam<br />
ser geradas na relação entre as diversas<br />
dimensões da manifestação teatral.<br />
De modo geral não se negou totalmente a<br />
importância da dramaturgia. No entanto,<br />
expandiram-se suas possibilidades através<br />
de redes de relação e significação operando<br />
em regime de complexidade. Ao invés<br />
da utilização do texto dramático canônico<br />
sob direção de um ensaiador, as histórias<br />
surgem de vários pontos e perspectivas,<br />
porque os diversos componentes do teatro<br />
podem comunicar sob a direção de um diretor<br />
compositor que se permite fraturar e<br />
recompor o texto base da ação. Os espectadores<br />
também aprimoraram suas ferramentas<br />
de leituras e esse diálogo entre ação<br />
e recepção está possibilitando agregar conhecimentos<br />
sobre o que funciona e o que<br />
não funciona na relação com o público, ainda<br />
mais quando se refere à ação teatral que<br />
acontece no espaço que é dele (do público),<br />
como no teatro de rua.<br />
A partir desta nova relação semântica<br />
proposta na dramaturgia do espectador,<br />
foi possível pensar no caráter dramatúrgico<br />
de outros elementos compositores do<br />
espetáculo. Ao pensar na recepção, se pensou<br />
também nas diversas formas de significar<br />
e comunicar. Cada elemento poderia<br />
dar sua “fala” no espetáculo e propor conflitos<br />
e significados. Os encenadores, a partir<br />
de novas fronteiras, se propõem a criar e<br />
adentrar novos territórios para orquestrar<br />
o espetáculo. Surgiram dramaturgias do<br />
diretor, do ator, da cenografia, da iluminação,<br />
e da cidade.<br />
No que se refere ao espaço público da<br />
cidade, pensar a cidade é de algum modo<br />
133
<strong>Urdimento</strong><br />
134<br />
pensar a modernidade e vice-versa. A cidade<br />
como conhecemos hoje pode ser<br />
considerada uma realização humana que<br />
se identifica com o processo histórico que<br />
chamamos Modernidade. Surgiu como resultado<br />
da transformação nos modos de<br />
vida, nos processos de produção, circulação<br />
e consumo de bens simbólicos e materiais,<br />
bem como de novas formas de pensar<br />
e agir sobre o mundo, através do processo<br />
de secularização, desmistificação e teatralização.<br />
No entanto, podemos pensar a cidade<br />
desde a civilização grega clássica que foi<br />
construída ao redor da polis e sua promessa<br />
de vida coletiva com ordem, segurança<br />
e participação.<br />
Sobre o surgimento da polis a partir da<br />
transição da sociedade tribal, isto é organizada<br />
a partir de laços e privilégios consangüíneos,<br />
Harvey Cox propõe que o<br />
homem, quando surge na história, já é um<br />
animal social, vivendo num grupo coletivo,<br />
principalmente na tribo onde ele podia<br />
se entender enquanto homem. Para ele o<br />
surgimento da polis grega, da transição da<br />
tribo para a cidade, foi uma das eclosões<br />
mais decisivas da história. “Esta apareceu<br />
quando os clãs belicosos e as casas rivais<br />
se reuniram aqui e ali para formarem um<br />
novo tipo de comunidade. Então a lealdade<br />
às leis e aos deuses desta substituiu os<br />
laços de parentesco mais elementares que<br />
outrora eram fortes (1971, p.20)”. O teatro<br />
foi uma linguagem importante no surgimento<br />
da polis para preparar culturalmente<br />
aos cidadãos para essa dramática transição<br />
da lógica tribal para a lógica da polis. A tragédia<br />
de Sófocles, Antígona evidencia esse<br />
conflito entre lealdades e relações a partir<br />
dos laços de sangue na tribo e a justiça<br />
mais impessoal da polis. O drama da cidade<br />
e sua transposição para o palco não é novo<br />
e compõe os rizomas teatrais do ocidente.<br />
Mais de dois mil anos depois do surgimento<br />
da polis, a cidade ainda enfrenta<br />
o dilema da relação humana e da participação<br />
política na coletividade: como viver<br />
em comunidade e não participar politicamente?<br />
Hanna Arendt construiu uma<br />
noção de participação política e citou a<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
contribuição de Sócrates, que sintetizava<br />
o ideal político na doxa, que não significava<br />
mera opinião, mas também esplendor e<br />
fama nas relações humanas na esfera pública,<br />
onde cada um pode mostrar quem<br />
é. A convicção de Sócrates era que todo<br />
homem possui sua própria abertura ao<br />
mundo, e, portanto, a metodologia de interação<br />
humana seria a dialética, na qual a<br />
pergunta é a forma inicial de se assegurar<br />
da posição do outro diante de um mundo<br />
comum. Para Arendt, resultava óbvio que,<br />
dentro de tais circunstâncias, esse clássico<br />
diálogo que não necessitava de conclusão<br />
era mais apropriado entre amigos, que falam<br />
do que têm em comum (2008, p. 54-<br />
56).<br />
Num contexto de uma polis se formando<br />
em transição conflituosa com o paradigma<br />
tribal, essa relação de amizade, no curso<br />
do tempo e da vida começa a construir<br />
um pequeno mundo capaz de fortalecer a<br />
comunidade ameaçada pela competição.<br />
De acordo com Aristóteles, a comunidade<br />
nasce da igualdade política fruto da amizade,<br />
da philia, y de acordo Sócrates, esse<br />
mundo comum criado entre os amigos não<br />
necessita de governo (Ibid., p. 52-56).<br />
A partir do teatro gerado não pela<br />
relação profissional, mas pela relação de<br />
amizade, que tem poder de gerar festas e<br />
celebrações, uma voz coletiva é articulada<br />
e emite opiniões na esfera pública da sociedade.<br />
Além de comunicar, essa voz espetacular<br />
gera interação social dentro da comunidade<br />
e com o público.<br />
Por outro lado, a cidade, no contexto<br />
da Modernidade espetacular contemporânea,<br />
constitui uma rede de falas que, ao<br />
serem articuladas entre si e com as outras<br />
dramaturgias possíveis do espetáculo, podem<br />
fornecer uma dramaturgia do espaço<br />
e incrementar a teatralidade do espetáculo<br />
que ocupa esse espaço. Como propõe<br />
André Carreira, a dramaturgia da cidade<br />
é emergente da explicitação dos contextos<br />
relacionais deste espaço territorial que<br />
são expressos em sua silhueta, seus fluxos,<br />
seus usos, suas histórias, suas contradições<br />
(2008). Tal polissemia tece uma dramatur-<br />
Juliano Borba<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
gia muitas vezes difícil de ser identificada,<br />
más que pode ser utilizada de forma reveladora<br />
no jogo espetacular do teatro de rua.<br />
A dramaturgia da cidade explicita uma<br />
possibilidade do teatro de rua perceber a<br />
relação entre a cidade e obra teatral que a<br />
ocupa.<br />
Nesse contexto, tal ação artística territorial<br />
do teatro comunitário pode ser entendida<br />
se conjugarmos essa noção crítica<br />
de Modernidade junto à noção cunhada<br />
por Nicolás Bourriaud como Estética Relacional.<br />
O autor propõe o surgimento de<br />
propostas estéticas que surgem no âmbito<br />
das relações sociais articuladas a partir e<br />
em função da obra artística, que é gerada<br />
e fruída em um interstício social (2005, p.<br />
13). Ao articular a arte não a partir de cânones<br />
estéticos, mas a partir das relações humanas<br />
evidenciadas e estimuladas na vida<br />
urbana, a estética relacional parece ajudar<br />
a construir a noção de dramaturgia territorial.<br />
Neste sentido, não apenas a urbe, mas<br />
o território como geradora de inúmeras e<br />
variadas relações, se torna o ambiente propício<br />
para uma arte relacional. Poderíamos,<br />
com a premissa acima, pensar a cidade<br />
como obra relacional em si, assim como<br />
uma dramaturgia de obras, relações, usos e<br />
fluxos que ocupam o seu espaço.<br />
O fenômeno do teatro comunitário se<br />
efetiva na canalização das forças produtivas,<br />
na organização dos saberes artísticos<br />
e culturais que existem em determinado<br />
território. Essas manifestações de territorialidade<br />
se efetivam a partir de uma localização,<br />
da uma definição de fronteiras e<br />
territórios. Esta atuação territorial nos espaços<br />
públicos, praças, calçadas, esquinas,<br />
permite a esse teatro comunitário dialogar<br />
diretamente com textos emanados na cidade<br />
e construir uma articulação dramatúrgica<br />
a partir de novas relações de significação.<br />
O espaço público da comunidade é<br />
articulado artisticamente pelos atores-vizinhos.<br />
Como vizinhos eles já ocupavam o<br />
espaço público e o teatro comunitário permitiu<br />
que esse domínio comum fosse alvo<br />
de suas dramaturgias.<br />
A arte do encontro de vizinhos do bair-<br />
TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
ro Parque Patricios parece ser uma propulsora<br />
estética capaz aproximar o teatro do<br />
ritual. Existe uma capacidade de envolver<br />
a comunidade através de um evento teatral<br />
que tem características de uma festa pública<br />
no espaço da cidade. As relações de cooperação<br />
do teatro estariam possibilitando<br />
um cimento gerador de aglutinação social,<br />
de capital social e simbólico e de ação conjunta<br />
que capacita e motiva os membros de<br />
uma comunidade para participar politicamente<br />
e para ler a cidade já espetacularizada<br />
pela cultura visual, como texto útil<br />
ao teatro e à cidade. Sem necessariamente<br />
buscar o novo ou o inédito, proposta da<br />
arte moderna por excelência, ou sem buscar<br />
uma relação polar entre produtores e<br />
consumidores de arte e cultura, o teatro<br />
comunitário subverte a ordem e a lógica<br />
dominante exposta pela cidade e a prepara<br />
para essa transformação latente da arte e<br />
da cultura como ordinária como bem propôs<br />
Raymond Williams.<br />
O espetáculo permite perceber o<br />
espaço público como espaço cultural. O<br />
espetáculo fala para os membros da comunidade<br />
e essa interlocução precisa indica<br />
que é sobre todos eles que pesa a responsabilidade<br />
de tornar os espaços públicos<br />
preparados para o uso-fruto da população,<br />
uma voz artística sobre a política, questiona<br />
a relação do Estado e do próprio vizinho<br />
com o espaço público.<br />
A característica territorial do teatro<br />
comunitário é fundamental para entender<br />
teoricamente como se manifesta sua dramaturgia<br />
espacial. No caso do teatro comunitário<br />
talvez fosse apropriado entender<br />
como dramaturgia territorial. Perspectivas<br />
teóricas atuais referentes ao território, territorialidade<br />
e desenvolvimento territorial<br />
encaram o território não como simplesmente<br />
uma realidade geográfica ou física,<br />
mas uma realidade complexa, ao mesmo<br />
tempo humana, social, cultural e histórica.<br />
Por um lado, a formação de um território<br />
resulta do encontro e da mobilização dos<br />
atores sociais que integram um dado espaço<br />
geográfico e que procuram identificar<br />
e resolver problemas comuns. Por outro<br />
135
<strong>Urdimento</strong><br />
136<br />
lado, um “território dado”, cuja delimitação<br />
é político-administrativa, pode abrigar<br />
vários “territórios construídos” Assim, o<br />
território pode ser visto como uma configuração<br />
mutável, provisória e inacabada,<br />
e a sua construção pressupõe a existência<br />
de uma relação de proximidade dos atores.<br />
Um “território é ao mesmo tempo uma<br />
construção coletiva e um recurso institucional.”<br />
(Carriere & Cazella 2001, p. 33).<br />
Mais do que terminar esse artigo com<br />
conclusões, me parece que o exercício para<br />
refletir a dramaturgia do espaço no teatro<br />
comunitário possibilitou encontrar novos<br />
problemas e espaços de investigação. Portanto,<br />
para aprofundar no entendimento<br />
de como a cidade pode contribuir enquanto<br />
dramaturgia seria necessário definir uma<br />
compreensão do conceito de território e<br />
dessa relação territorial que compõe o ethos<br />
desses grupos. Essa relação territorial pela<br />
definição de um território e de suas fronteiras<br />
gera relações de pertencimento e não<br />
significa na prática impermeabilidade, mas<br />
diferencia essa prática comunitária das outras<br />
nesse campo teatral, com possibilidades<br />
de intercâmbios entre outros grupos,<br />
seus territórios, características.<br />
Aqui estamos relacionando duas dimensões<br />
de territorialidade: por um lado,<br />
uma dimensão territorial que se refere à<br />
localização territorial de cada grupo, sua<br />
comunidade que pode ser seu bairro, povoado,<br />
instituição, interesse. Por exemplo,<br />
o grupo Pompapetryasos é do bairro Parque<br />
Patrícios e o grupo Catalinas Sur é um grupo<br />
de teatro comunitário do bairro La Boca.<br />
Por outro lado, existe uma territorialidade<br />
que diz respeito ao teatro comunitário<br />
como categoria teatral específica dentro<br />
do vasto campo teatral argentino, esses<br />
grupos ligados a comunidades específicas<br />
constituem um território teatral, posto em<br />
relação com outros como o teatro oficial,<br />
teatro comercial, teatro independente e teatro<br />
de rua. Nesse espaço territorial complexo<br />
da comunidade e do teatro comunitário,<br />
esses vizinhos exercem sua criatividade e<br />
sua produção teatral.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Juliano Borba<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
REfERênCIAS:<br />
TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
ARENDT, Hanna. La Promesa de la Política. Barcelona: Paidós, 2008.<br />
CAPACCIOLI, Héctor & TROTTA, Nicolás. Comunas: participando transformemos Buenos<br />
Aires. Prólogo de Daniel Filmus. Buenos Aires: Fundación Caminos del Sur, 2007.<br />
COX, Harvey. A Cidade do Homem. Rio de Janeiro: Record, 1971.<br />
CARRIERE, Jean-Paul, & CAZELLA, Ademir, A. “Abordagem introdutória ao conceito<br />
de desenvolvimento territorial”. In: Revista Eisforia, Florianópolis, UFSC V1, N.1, Jan-jun<br />
de 2003, pp. 23-47.<br />
CARREIRA, André e BOURRIAUD. “Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade.”<br />
In: LIMA, Evelyn F.W. (Org.) Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de<br />
Janeiro: Sete Letras, 2008, pp. 67-78.<br />
BOURRIAUD, Nicolás. La Estética Relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editorial,<br />
2006.<br />
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Imaginarios Urbanos. 3ª. Ed. Buenos Aires: Eudeba, 2005.<br />
137
ENCONTRO COM DRAMATURGO<br />
BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente Concilio. ATRIz: Emanuele Mattiello. Foto: Guilherme Santos.
N° 18 | Setembro de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Meta-textualidade, instâncias<br />
de enunciação e conflitos<br />
não-narrativos – reflexões<br />
sobre impulsos não-dramáticos na<br />
dramaturgia brasileira contemporânea<br />
Stephan Baumgärtel 1<br />
Resumo<br />
Este artigo analisa o texto contemporâneo como proposta<br />
de um arranjo cênico para expor o trabalho formativo da<br />
linguagem quando encontra o ser humano e passa por seu<br />
corpo na concretude dos corpos dos atores. Ele exemplifica<br />
essa visão por meio de uma leitura estrutural e temática de<br />
dois exemplos da dramaturgia textual brasileira: Vida de<br />
Márcio Abreu e Pinokio de Roberto Alvim.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia brasileira contemporânea –<br />
performatividade textual – Márcio Abreu – Roberto Alvim<br />
Abstract<br />
This paper analises the contemporary theatre text as a<br />
proposal for scenique arrangements whose goal is to expose the<br />
formative work of language when it meets the human being e<br />
passes through his body the concreteness of the actors’ bodies. It<br />
exemplifies this vision through a structural and thematic reading of<br />
two examples of contemporary Brazilian textual dramaturgy: Vida<br />
by Márcio Abreu and Pinokio by Roberto Alvim.<br />
KEYWORDS: Contemporary Brazilian dramaturgy – textual<br />
performativity – Márcio Abreu – Roberto Alvim<br />
1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC.<br />
META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 141
<strong>Urdimento</strong><br />
142<br />
Um convite a vivenciar a escrita<br />
teatral. Em 2011, criei o projeto<br />
Encontro com Dramaturgo,<br />
em parceria com Fábio Salvatti<br />
do Departamento de Artes Cênicas<br />
da UFSC e com apoio financeiro do<br />
CNPq e da SecArte da UFSC. O projeto<br />
consistia em palestras e oficinas de criação<br />
de textos teatrais oferecidas por dramaturgos<br />
brasileiros de renome com o intuito de<br />
possibilitar para as pessoas interessadas<br />
de Florianópolis, sejam elas acadêmicas<br />
ou membros da comunidade, um contato<br />
com representantes da dramaturgia brasileira<br />
contemporânea; estimular a discussão<br />
acerca dos desafios e tensões formais que<br />
determinam essa dramaturgia no que diz<br />
respeito à sua contemporaneidade; e fazer<br />
os participantes experimentarem as propostas<br />
cênicas e textuais contemporâneas<br />
trazidas pelos dramaturgos convidados(<br />
os quais trabalham todos também como<br />
diretores teatrais). Participaram como oficineiros<br />
e palestrantes do projeto em 2011<br />
os dramaturgos/diretores Márcio Abreu<br />
(PR), Grace Passô (MG), Roberto Alvim<br />
(SP) e Samir Yazbek (SP). Posteriormente,<br />
pedi aos artistas para responderem a um<br />
questionário, com o intuito de oferecer ao<br />
público mais amplo, leitores da revista UR-<br />
DIMENTO, um panorama comparativo<br />
dos temas levantados nas palestras e oficinas.<br />
As oficinas e palestras atestaram a diversidade<br />
das preocupações formais tanto<br />
dos autores convidados quanto dos participantes<br />
locais. Talvez por serem em grande<br />
parte alunos dos dois cursos de Artes Cênicas<br />
(UDESC/UFSC) e por participarem<br />
há bastante tempo das oficinas contínuas<br />
oferecidas por mim na UDESC, nas oficinas<br />
surgiram propostas que juntaram no<br />
mesmo texto elementos dramáticos (diálogo,<br />
intersubjetividade), épicos (narrativa,<br />
contação de história) e líricos (linguagem<br />
autorreferencial, devaneios subjetivos). 2 As<br />
oficinas corrobaram neste sentido a afirmação<br />
de Patrice Pavis (2003, p.405) de que<br />
um texto teatral se define pelo simples fato<br />
de ser falado em cena.<br />
Um arranjo textual para expor a língua<br />
em cena. Entretanto, o fato de que não<br />
faz mais sentido qualificar de texto teatral<br />
somente os textos com personagem e diálogos<br />
intersubjetivos que levam a narrativa<br />
ficcional até uma solução final, exige que se<br />
repense as características de um texto para o<br />
palco. A função principal deste texto, então,<br />
não é mais criar um mundo ficcional mimético,<br />
mas talvez, como propõe Theresia Birkenhauer<br />
(2005), expor a língua. Nessa visão de<br />
teatro contemporâneo, a prática teatral exibe<br />
nas qualidades materiais, temporais e espaciais<br />
da cena a estrutura lingüística, poética<br />
e sonora de um texto específico. O que os espectadores<br />
contemplariam é o encontro da<br />
língua com a materialidade e corporeidade<br />
da cena. Nesse sentido, Pavis define jocosa<br />
e ambiguamente esta exposição da língua<br />
como um colocar “em jogo” do texto. 3 Esse<br />
por-em-jogo do texto concretiza o potencial<br />
especificamente estético do verbo e do texto<br />
escrito no contexto do palco. Theresia Birkenhauer<br />
frisa como tarefa de uma encenação<br />
desses textos evidenciar, por meio do palco,<br />
qualidades específicas da língua do texto:<br />
N° 18 | Setembro de 2012 N° 18 | Setembro de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
A encenação realiza uma dimensão da<br />
língua que se livra da função descritiva<br />
e comunicativa da fala dramática.<br />
Ela gera novos espaços de significação,<br />
de modo que a língua não é mais<br />
somente parte funcional da narrativa<br />
dramática, mas desenvolve um movi-<br />
2 Devido a esta mistura de gêneros literários, Jean-Pierre Sarrazac<br />
chama o narrador deste tipo de texto de “rapsodo”. O que me interessa<br />
neste artigo é apontar desdobramentos formais que essa estrutura<br />
rapsódica provoca na contemporaneidade, tanto no que diz respeito à<br />
noções representacionais – “a personagem”, “a narrativa” – quanto à<br />
relação entre texto e cena. Sarrazac esboça como essa escrita que se<br />
distancia da escrita dramática leva não à totalidade e homogeneidade<br />
do texto, mas a combinações de elementos ficcionais heterogêneos e<br />
ao realce da situação teatral: “Em suma, apagar da obra a relação de<br />
interdependência, inscrever no seu lugar a de estranhamento. E, antes<br />
de mais, problematizando a relação primordial do teatro dramático, a<br />
sua partitura original: a dicotomia do espaço intracênico (o microcosmo)<br />
e do espaço extracênico (o macrocosmo) que o engloba.” (2002, p.38)<br />
3 Pavis, 2011, p. 105.<br />
Stephan Baumgärtel<br />
mento próprio, que por sua vez transforma<br />
o acontecimento cênico. Desse<br />
modo, a encenação possibilita uma<br />
transformação e uma modelagem da<br />
fala teatral e com isso uma prática da<br />
linguagem própria do teatro. 4 .<br />
Atrás dessa redefinição do papel da<br />
língua existe não só uma concepção nãorealista<br />
da língua e do verbo no palco, mas<br />
um entendimento da língua humana enquanto<br />
estrutura e espaço experiencial que<br />
excede o indivíduo e que simultaneamente<br />
o conecta com uma dimensão transindividual.<br />
Graças a essa concepção, a exposição<br />
da língua não se limita a um fetichismo formal<br />
para com a língua humana. A língua<br />
enquanto mimese de uma in/consciência é<br />
um fenômeno libidinal, social e histórico;<br />
dialógico em si, por tanto incessantemente<br />
marcado por tensões e pressões internas<br />
que lhe dão seu contorno específico. Mas a<br />
comunicação cotidiana ofusca essa dimensão<br />
social e histórica quando faz de conta<br />
de que o sujeito é um indivíduo no sentido<br />
literal da palavra; que ele domine a estrutura<br />
da língua e pode organizar e mimetizar<br />
o mundo racionalmente ao transformá-lo<br />
em fragmentos de informação controlável.<br />
Expor a língua no encontro com a cena implica<br />
expor, na materialidade da cena, essas<br />
inscrições libidinais, históricas e sociais<br />
no sujeito contemporâneo. Tornar visível<br />
no palco a marca da língua no corpo e na<br />
existência humana<br />
Essa concepção não logocêntrica influencia<br />
não só a estrutura de textos de<br />
autores como Handke, Koltés, Müller e<br />
Novarina. Ela também está incipiente na<br />
construção estrutural de textos teatrais de<br />
Maeterlinck e até de Tchechov, cujos diálogos<br />
monológicos possuem menos uma<br />
função comunicativa que expositiva. 5<br />
O que interessa nesse contexto teatral é<br />
o encontro entre língua e subjetividade humana:<br />
mostrar como essa subjetividade é<br />
atravessada pelas forças da língua. Por isso<br />
o enfoque no encontro entre o sujeito artís-<br />
4 Birkenhauer, 2012.<br />
5 Ver Birkenhauer (2005) e os ensaios reunidos em Autant-Mathieu,<br />
1995.<br />
tico e o material ganha destaque: criar uma<br />
língua, um verbo em cena, que amostra os<br />
conflitos entre subjetividade artística (autor,<br />
ator, personagem) e os contextos sincrônicos<br />
e diacrônicos da história no âmbito da<br />
linguagem, por meio da construção do texto<br />
teatral. Parece-me ser uma função primordial<br />
no trabalho textual desses autores configurar<br />
esse encontro cênico; propor o trabalho<br />
com a língua como um trabalho com a<br />
subjetividade humana que está em conflito<br />
consigo mesmo. Tradicionalmente, este trabalho,<br />
por seu caráter formal autorreflexivo<br />
e seu enfoque na subjetividade de uma figura<br />
autoral, foi reservado ao gênero lírico, o<br />
que explica porque, nas primeiras reflexões<br />
sobre este uso novo da língua no teatro contemporânea,<br />
este trabalho foi qualificado de<br />
“poético”. Observa Theresia Birkenhauer:<br />
No teatro dramático, o texto apresenta<br />
os esboços de ação para um<br />
acontecimento ficcional e é texto<br />
de um personagem (portanto, fala<br />
figurativa). Textos teatrais além do<br />
drama, no entanto, mostram uma<br />
tematização autorreflexiva da língua<br />
e deveriam ser lidos enquanto<br />
“poesia”: Libertado da polifuncionalidade<br />
fundamental da comunicação<br />
cotidiana, ou seja, da comunicação<br />
puramente referencial<br />
de informações, a linguagem no<br />
texto teatral pode ativar preferencialmente<br />
a função poética de seus<br />
signos. 6<br />
Para logo fazer uma ressalva acerca<br />
dessas teorias que definem a autorreflexão<br />
como poética:<br />
6 Ver Birkenhauer (2012)<br />
Mas o que qualifica uma fala<br />
dramática enquanto “texto para um<br />
papel”? O que a qualifica enquanto<br />
“poesia”? A tese dos gêneros diz<br />
que é a referência da fala dramática<br />
a um contexto de ações, que a torna<br />
“texto para um papel”. Onde se<br />
renuncia “as axiomas dramáticas<br />
de ação”, onde a linguagem<br />
dramática é libertada da função de<br />
caracterizar e diferenciar pessoas,<br />
META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 143
<strong>Urdimento</strong><br />
144<br />
onde a fala não se refere mais<br />
a personagens, ali há ‘poesia’.<br />
Mas isso significa, inversamente,<br />
que não há “poesia” onde existe<br />
um contexto dramático de ação,<br />
personagens ficcionais, indicações<br />
de fala referentes a pessoas? Essa<br />
conclusão inversa mostra o quanto<br />
tal definição conceitual é discutível.<br />
Ela aponta a dificuldade de uma<br />
delimitação que torna o “poético”<br />
uma característica de textos teatrais<br />
que desconhecem a fala figurativa e<br />
um contexto de ação. 7<br />
Portanto, mais importante do que definir<br />
um texto enquanto poético ou dramático<br />
é entender como e com que finalidade<br />
um texto sugere e manipula essas características,<br />
inserindo, por meio desse jogo, o<br />
verbo e possíveis figuras teatrais no duplo<br />
contexto teatral: da situação teatral (de<br />
apresentação física aqui e agora) e da situação<br />
ficcional (fisicamente ausente, mas<br />
presente no imaginário), a comunicação<br />
palco-platéia e a comunicação intra-ficcional<br />
(que não precisa ser entre personagens,<br />
pois pode constituir-se também entre blocos<br />
temáticos textuais ou modos verbais<br />
discursivos diferentes).<br />
As três entrevistas por escrito, incluídas<br />
neste volume da URDIMENTO, mostram<br />
tanto um incômodo comum entre os dramaturgos<br />
para com o formato do drama burguês<br />
quanto uma diversidade formal muito<br />
grande de como responder a essa insatisfação.<br />
Embora seja um consenso que o formato<br />
do drama burguês dificilmente consiga<br />
oferecer um contexto formal adequado<br />
para expressar os conflitos relevantes da<br />
subjetividade contemporânea, cada artista<br />
entrevistado apresenta um estilo particular<br />
de como intervir criticamente na escrita<br />
dramática ou até deixá-la para trás, e como<br />
colocar a própria língua em jogo.<br />
A produção textual desses três dramaturgos<br />
mostra opções formais bem diversas.<br />
Roberto Alvim iniciou sua carreira<br />
com textos relativamente tradicionais em<br />
7 Idem.<br />
termos de suas técnicas miméticas, 8 para<br />
ultimamente criar textos que rompem radicalmente<br />
com os pilares da forma do<br />
drama: personagem, ação ficcional linear<br />
e diálogo intersubjetivo. Márcio Abreu<br />
possui um interesse especial nos desafios<br />
da situação teatral para a escrita dramatúrgica.<br />
Como incluir a performatividade do<br />
encontro teatral também na escrita dramatúrgica<br />
e torná-la tão importante quanto os<br />
recursos narrativos em forma dialogados?<br />
Seu texto Vida 9 pode ser lido como resposta<br />
tentativa à questão de como criar deslizes<br />
significativos entre o ficcional e o performativo,<br />
entre o representacional e o autoreferencial<br />
da escrita teatral. Samir Yazbek,<br />
por sua vez, aproveita a forma dramática<br />
para problematizar o personagem tradicional<br />
autônomo, e com isso cria perfurações<br />
oníricas e reflexivas em seus textos que revelam<br />
a crise da subjetividade moderna.<br />
Predomina nesses autores a tentativa de<br />
usar criticamente o modo dramático um fio<br />
comum, mesmo que os experimentos formais<br />
recentes de Roberto Alvim apresentem<br />
tentativas de deixar o formato do drama<br />
burguês definitivamente para trás.<br />
No que segue quero discutir três aspectos<br />
formativos que, entre outros, me parecem<br />
importantes para confrontar textos<br />
da dramaturgia brasileira contemporânea<br />
com seu contexto formal e histórico atual.<br />
Primeiro, o enfoque na situação teatral,<br />
não no sentido de definir por meio de<br />
didascálias as ações cênicas, mas no sentido<br />
de manipular sutilmente os dois eixos<br />
comunicativos na textualidade da escrita.<br />
Articular uma textualidade mimética<br />
e uma textualidade autorreferencial, ou<br />
uma meta-textualidade, para convocar a<br />
montagem a expor a estrutura lingüística,<br />
o verbo fixado e o verbo falado, como um<br />
elemento integral de sua poética performativa.<br />
Como é que certos textos configuram<br />
e manipulam as interseções e os confrontos<br />
entre a partilha do ficcional e a partilha do<br />
real (para variar Ranciére), “a dicotomia<br />
do espaço intracênico (o microcosmo) e do<br />
8 Por exemplo o texto Ás Vezes É Preciso Usar um Punhal<br />
para Atravessar o Caminho, de 2003.<br />
9 Cito deste texto a partir da versão final, eletrônica e não publicada.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Stephan Baumgärtel<br />
espaço extracênico (o macrocosmo) que o<br />
engloba” (Sarrazac, 2002, p.38), a partilha<br />
do imaginário e do sensível? Como posso<br />
entender a finalidade dessa manipulação;<br />
dessa proposta de uma dupla e conflituosa<br />
partilha?<br />
Segundo, um impulso que em seu extremo<br />
leva à dissolução de personagens<br />
e dramatis figurae em meras instâncias de<br />
enunciação. Como é que certos textos brasileiros<br />
solapam os fundamentos do personagem<br />
dramático, mesmo que ainda usem<br />
um conjunto de signos lingüísticos que o<br />
definem (o pronome “eu”, uma problemática<br />
psicológica, a fala individual enquanto<br />
impulso para desencadear ações dramáticas,<br />
o choque com um antagonista, etc.)?<br />
Qual é a finalidade disso, e qual é o objetivo<br />
quando se dissolve quase por completo<br />
a instância individualizada de enunciação?<br />
Terceiro, a dissolução do conflito narrativo<br />
e a construção de um conflito interno<br />
à consciência textual; a configuração de<br />
um conflito entre consciência artística e o<br />
material trabalhado: conflito este agora incorporado<br />
pelo texto teatral. Como é que<br />
textos não-dramáticos perfuram o conflito<br />
ficcional narrativo e o deslocam para um<br />
agon formal, mais impessoal e estrutural,<br />
que remete à tensão entre a consciência (ou<br />
percepção humana) e um mundo maior<br />
que esta consciência e por isso parcialmente<br />
indisponível à dominação formal.<br />
De fato, nos exemplos comentados<br />
mais adiante, podemos verificar que estes<br />
três aspectos são interligados, sendo que<br />
em cada caso seria necessário avaliar o status<br />
de cada um bem como sua função poética<br />
e crítica no conjunto dos procedimentos<br />
de escrita teatral. A escrita teatral ‘além<br />
do drama’ possui algumas características<br />
formais em comum, mas não por isso constitui<br />
um corpus homogêneo.<br />
O que permeia essas três questões e justifica<br />
as reflexões para além de seu status<br />
enquanto exercício de análise teatral-literária<br />
é a questão da necessidade de mediar o<br />
impulso artístico vanguardista de realizar<br />
uma ruptura formal com o horizonte de expectativa<br />
mais tradicional de uma boa par-<br />
te do público, em um país que praticamente<br />
desconhece o apoio material e financeiro<br />
do Estado para realizar esses experimentos<br />
formais. Esta questão se coloca também por<br />
outro motivo histórico: será que a forma de<br />
incorporar o capitalismo globalizado na<br />
realidade brasileira não é um modo antropofágico<br />
de pós-modernizar o país? Qual<br />
seria o valor de uma estrutura simbólica<br />
pós-moderna nessa situação? Será que um<br />
pouco de narrativa linear, de sobriedade<br />
semântica, de personagem agente na situação<br />
ficcional, não constitui um ingrediente<br />
imprescindível para uma arte que se pretende<br />
como crítica para com o status quo?<br />
Não para afirmar essas possibilidades, mas<br />
para discutir suas condições? Nesse sentido,<br />
acredito que é a construção de uma<br />
tensão conflituosa entre drama e teatralidade,<br />
entre as dimensões representacionais<br />
e performativas que produz os resultantes<br />
mais instigantes e provocadores na dramaturgia<br />
atual.<br />
Interseções entre textualidade mimética<br />
e meta-textualidade. O texto Vida de<br />
Marcio Abreu apresenta já no início uma<br />
pequena estrutura verbal que tanto formalmente<br />
quanto semanticamente evidencia<br />
com quais desafios a manipulação dos dois<br />
eixos de comunicação se depara. O texto<br />
inicia com um ator, que passa pela platéia<br />
e, subindo ao palco, diz as seguintes palavras<br />
(Abreu, 2010, p.1):<br />
Rodrigo - Quem brilha? (Pausa)<br />
foneticamente, a pergunta é uma<br />
modulação ascendente, na emissão<br />
da frase. Perceberam? Quem<br />
brilha? Eu pergunto. Se eu pergunto<br />
e vocês me respondem, alguém<br />
me responde, podemos começar o<br />
diálogo. Você pode me dizer, alguém<br />
pode me dizer, minha testa<br />
brilha quando eu suo e eu digo<br />
sim está calor aqui, abafado, quer<br />
um lenço? Podemos abrir as janelas,<br />
se tiver janelas. Não, não há<br />
janelas, não me parece que tenha<br />
janelas aqui. Você vê uma janela?<br />
Eu pergunto. E continuamos nosso<br />
diálogo e você diz alguém diz,<br />
META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 145
<strong>Urdimento</strong><br />
146<br />
eu daqui vejo uma janela, ela está<br />
aberta, eu gosto de janelas abertas,<br />
a noite está linda, fresca e nós podemos<br />
olhar o céu, você vem olhar<br />
o céu? E por aí vai. [...]<br />
Pelas convenções da escrita dramática,<br />
entendemos que o texto marca um personagem<br />
chamado Rodrigo. Além disso, sabemos<br />
pelo site do grupo que um dos atores<br />
se chama Rodrigo Ferrarini. Primeira indicação<br />
que o texto busca manipular sutilmente<br />
nossa percepção da relação entre o<br />
ficcional e o real, entre o microcosmo ficcional<br />
e o macrocosmo empírico. Logo depois<br />
encontramos o jogo com a estrutura “vocêalguém”.<br />
Deste modo, deduzo que o texto<br />
propõe uma questionamento das identidades<br />
dos “eu”, “vocês”, “alguém” e de suas<br />
relações no contexto da situação teatral.<br />
Essa investigação também é inscrita na frase<br />
“podemos abrir as janelas”, confundindo o<br />
‘nós’ do grupo de atores com o ‘nós’ de todas<br />
as pessoas presentes. Entendemos que o<br />
foco desse texto de abertura talvez não seja<br />
em primeiro lugar estabelecer características<br />
de um mundo ficcional, mas direcionar<br />
a atenção do leitor/espectador para a proposta<br />
situacional do teatro: “Você vê uma<br />
janela? Eu pergunto.” Essa redundância de<br />
informação se explica melhor se sua função<br />
é lida como meta-teatral e meta-textual: um<br />
texto teatral é um texto ficcional e descrição<br />
de um momento concreto, compartilhado<br />
entre pessoas reais.<br />
A particularidade contemporânea dessa<br />
função reside no fato de que nada disso<br />
é informado como didascália. Não se trata<br />
de um projeto que pretende estabelecer<br />
um autor onisciente que define e controla<br />
as características ficcionais e materiais da<br />
cena; que pretende manter a percepção do<br />
espectador ligado na ficção e interpelar seu<br />
olhar de modo a sugerir uma interpretação<br />
da cena ficcional. A ausência desse autor,<br />
junto com o foco perceptual cambiante –<br />
uma vez nas qualidades de uma ficção, outra<br />
vez na situação concreta e empírica –,<br />
faz com que o espectador sutilmente toma<br />
consciência de sua presença e participação<br />
na construção do significado do espetácu-<br />
lo. Neste sentido há uma proposta perceptual<br />
decididamente contemporânea para o<br />
espectador.<br />
Na apresentação do espetáculo VIDA,<br />
o ator Rodrigo Ferrarini dilui na fala a cesura<br />
entre “você me diz alguém me diz”,<br />
ou seja, embora o texto dialogue com uma<br />
proposta do “a parte” ou de um endereçamento<br />
direto do público, o modo como o<br />
texto é dito, frontalmente para todos e simultaneamente<br />
para ninguém, evoca características<br />
de um texto coral. De fato, a<br />
dimensão coral já é proposta pela estrutura<br />
da célula lingüística como uma possibilidade<br />
entre várias de instalar o texto em cena.<br />
Ao longo do texto (e da apresentação) fica<br />
mais claro que essa alternância entre ficção<br />
e situação pragmática, entre um nós ficcional<br />
e um nós real, articula também um eixo<br />
temático da narrativa: a relação tensa entre<br />
o indivíduo e a comunidade, entre o elemento<br />
particular e o contexto geral; mais<br />
especificamente entre a vontade livre do<br />
indivíduo e o peso de sua inserção em um<br />
contexto social, que é o assunto das autorrevelações<br />
dos personagens-atores e das<br />
conversas entre os personagens-membros<br />
da banda ficcional. Essa dimensão temática<br />
é fundamental para salvar o texto e a montagem<br />
de um mero jogo formal privado.<br />
Não se trata aqui de argumentar em<br />
prol de um novo textocentrismo, mas de<br />
entender que um texto contemporâneo<br />
sugere uma poética da cena por meio de<br />
indicações estruturais às vezes bastante<br />
sutis. Deslocamento da atenção de um<br />
eixo comunicativo para outro, expor uma<br />
dimensão temática por meio das estruturas<br />
autorreferenciais do texto, confrontar o<br />
espectador com forma e tema do texto ao<br />
estabelecer uma tendência coral das falas,<br />
são algumas das consequências da inserção<br />
de momentos meta-teatrais e meta-textuais<br />
no texto teatral mimético.<br />
O solapamento do personagem. Já<br />
nos anos 80, teóricos constataram a dissolução<br />
da noção de personagem nos textos<br />
teatrais. Este impulso certamente está presente<br />
nos textos do Beckett tardio, nos pri-<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Stephan Baumgärtel<br />
meiros textos teatrais de Peter Handke. A<br />
partir dos anos 70, isso levava a uma diversidade<br />
formal muito rica na escrita teatral.<br />
A investigação na crise do sujeito burguês<br />
leva a experimentos formais que buscam<br />
colocar no primeiro plano da escrita a dinâmica<br />
psíquica e a sobredeterminação da<br />
personalidade humana por forças sóciohistóricas.<br />
Em muitos casos, como de Heiner<br />
Müller, Bernard-Marie Koltés ou Sarah<br />
Kane, a busca por novas formas de escrita<br />
implica na tematização da relação entre o<br />
autor e seu material, focando a tensão mimética<br />
entre a capacidade de descrever e<br />
simbolicamente dominar o mundo, por um<br />
lado, e a incapacidade estrutural de fazêlo,<br />
pois o critério de autenticidade e veracidade<br />
não permite a necessária distância<br />
para uma mimese objetiva. Surgem, então,<br />
escritas altamente performativas que expõem<br />
por meio de uma mimese de produção,<br />
como denominou Luiz Costa Lima<br />
este procedimento, 10 sobretudo a relação<br />
de uma consciência ou subjetividade para<br />
com o mundo (o material artístico), e não<br />
sua imagem objetiva ou correta.<br />
Jean-Pierra Sarrazac descreveu o fenômeno<br />
no contexto da escrita teatral como a<br />
entrada do narrador épico enquanto rapsodo<br />
para o interior do texto. 11 Este manifesta<br />
qualidades não só dramáticas, mas também<br />
narrativas e líricas. Aqui no Brasil, foi<br />
Luis Alberto de Abreu quem teorizou as<br />
possibilidades formais e éticas desse procedimento.<br />
Seu textos teatrais, desde os anos<br />
90, possuem uma característica fortemente<br />
rapsódica, com a restrição de que ela raramente<br />
é levada para uma crise do discurso<br />
textual como um todo. Ou seja, mesmo<br />
que a fala de um personagem oscila entre<br />
primeira e terceira pessoa, entre afirmação<br />
dramática e narrativa, este recurso não é<br />
usado por Abreu para colocar em crise a<br />
finalidade mimética e racionalizante de<br />
10 ver Costa Lima, Luiz. Mimesis e Modernidade: A forma das<br />
sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.<br />
11 Em O futuro do drama (2002), Sarrazac define várias estruturas<br />
dinâmicas que realizam a “desconstrução do personagem<br />
individualizado” (2002, p. 97) ou a desfiguração do personagem<br />
dramático. No Brasil, Maria Lúcia Levy Candeias se debruçou sobre o<br />
problema em sua tese de doutorado A fragmentação do personagem<br />
na dramaturgia de 1997, publicada em forma de livro em 2012.<br />
seu texto. Antes, é um procedimento para<br />
construir e garantir a objetividade da mimese<br />
num momento da crise da subjetividade<br />
pós-moderno. 12<br />
Tecnicamente falando, encontramos o<br />
mesmo procedimento de dividir um personagem<br />
em uma voz dramática e outra narrativa,<br />
entre uma identificação para consigo<br />
mesmo e um distanciamento desse eu,<br />
em um corpo e uma voz que representa e<br />
outro/a que abertamente chama atenção<br />
á performance cênica, como por exemplo<br />
no texto Corte Seco de Christiane Jatahy. A<br />
autora e diretora separa claramente as funções,<br />
por meio de cadeiras que impõem ao<br />
ator a relação com sua figura teatral quando<br />
sentar em uma delas: “Narrar, descrever,<br />
caracterizar, dialogar, interiorizar”<br />
(Jatahy, 2010, p.2), mesmo que na apresentação<br />
nem sempre esse função seja respeitada<br />
pelos atores. Ao mesmo tempo em<br />
que as cadeiras dão uma inteligibilidade<br />
às falas, elas determinam o jogo textual e<br />
performativo com a relação ao ator-figura,<br />
sujeito-texto. Inicialmente, o texto expõe o<br />
material mimético (por exemplo as figuras<br />
do avô e da avó) como composto de uma<br />
multiplicidade de olhares, mas nem a subjetividade<br />
da autora/dramaturga nem dos<br />
atores transparece em relação ao seu material,<br />
uma vez que o material é dominado<br />
pela organização das cadeiras. A reorganização<br />
das cenas proposta segundo as indicações<br />
do público pode levar a essa perda<br />
de controle, como também pode revelar<br />
certa desimportância da ordem das cenas<br />
no que diz respeito ao solapamento das<br />
subjetividades ficcionais e reais (dos artistas<br />
em cena).<br />
Entretanto, aos poucos, aparecem, no<br />
texto falado e nas didascálias, pequenas<br />
frestas na camada ficcional que sugerem<br />
um leve descontrole dos atores sobre seu<br />
material (como, por exemplo, na conversa<br />
entre DU e BRANCA (Jaratahy, 2010,<br />
p.16/17) sobre sua história, e a saída filmada<br />
de BRANCA do palco para a rua). Surge<br />
na cena da ficção teatral um efeito do real<br />
12 Ver, por exemplo, seus textos teóricos publicados em ABREU, Luís<br />
Alberto de. Um Teatro de Pesquisa. (org. Adélia Nicolete). São Paulo:<br />
Perspectiva, 2011.<br />
META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 147
<strong>Urdimento</strong><br />
148<br />
(Sanches), o que faz o material textual e a<br />
situação apresentada oscilar entre o campo<br />
do inconsciente dos artistas e o campo da<br />
ficção, entre o campo da performatividade<br />
e da teatralidade. Estamos perante um<br />
procedimento que produz uma erupção do<br />
real – o foco no contexto empírico e material<br />
do trabalho dos atores – para focar a<br />
situação teatral e, deste modo, problematizar<br />
a construção controlada de um personagem.<br />
Talvez seja a busca por procedimentos<br />
que expressem um descontrole sobre a<br />
própria escrita ficcional sem recorrer a um<br />
efeito do real que marca o projeto dramatúrgico<br />
de Roberto Alvim. Em seus trabalhos<br />
teóricos, 13 defende a escrita textual e<br />
palavra pronunciada como cerne de um<br />
fazer teatral que rompe com o legado mimético<br />
da dramaturgia dramática. 14 Sua<br />
noção do ‘transhumano’ promove, com<br />
toda insistência possível, a escrita teatral<br />
como força imaginária e criadora de novas<br />
subjetividades, de novas formas humanas<br />
de estar-no-mundo, 15 e não como força representacional<br />
de pessoas e sociedades já<br />
existentes, passíveis a serem reconhecidas<br />
no palco como um espelho nosso. Mesmo<br />
que sua escrita arrisque a impressão de<br />
uma arbitrariedade semiótica, de um caos<br />
enigmático, o ponte forte me parece ser o<br />
reconhecimento de que somente aquela<br />
dramaturgia que exige do leitor/espectador<br />
um esforço de deslocamento para dialogar<br />
com ela, vale a pena de ser inventada<br />
e posta no papel.<br />
Do ponto de vista teórico, seu projeto<br />
poético se coloca claramente além da mo-<br />
13 Por exemplo, na entrevista incluída nesta edição da URDIMENTO,<br />
ele afirma: “A palavra (e, por inevitável extensão performativa, a fala)<br />
é o tijolo fundamental das dramáticas contemporâneas; a palavra, e<br />
não a imagem.”<br />
14 Por causa dessa ruptura, uma acusação de textocentrismo não se<br />
aplica, apesar da linguagem taxativa que Alvim gosta de usar. Este<br />
texto não mimético é central para seu teatro, mas strictu sensu não<br />
constitui um centro semântico, que controla o sentido da apresentação.<br />
Esta, entretanto, é a implicação do discurso textocentrista que<br />
argumenta com noções como fidelidade ao texto, concretização do<br />
texto em cena, e até “interpretação” do texto por meios cênicos. Todas<br />
essas noções não se aplicam à proposta de Alvim. A centralidade do<br />
texto se dá mais no sentido de ser o impulso provocador, exigindo<br />
respostas artísticas das outras linguagens cênicas.<br />
15 Para uma breve discussão da diferentes implicações inscritas nas<br />
noções de “subjetividade” e de “estar-no-mundo”, com uma ênfase no<br />
fazer artístico, ver Gumbrecht (2010).<br />
derna subjetividade burguesa e dramaturgicamente<br />
além da idéia de personagem,<br />
trama e conflito ficcional: “Uma escrita não<br />
se dá a partir de um sujeito estável, mas<br />
sim a partir de diferentes modos de subjetivização.<br />
[...] O deslocamento é o centro da<br />
gravidade” (2011, p. 19). No entanto, este<br />
sujeito estável é a base empírica e a condição<br />
para possibilitar tanto uma mimese<br />
representacional quanto a criação de um<br />
personagem. Segue a frase que deixa bem<br />
claro que esta proposta conceitualmente se<br />
posiciona fora do campo do personagem:<br />
“Deslocamento entre diferentes arquiteturas<br />
lingüísticas que promovem, cada uma,<br />
habitações distintas da vida.” (Alvim, 2011,<br />
p.19). O importante para o nosso subtema<br />
da diluição da noção de personagem, não é<br />
a defesa de uma multiplicidade de olhares,<br />
mas a descrição de suas instâncias de enunciação<br />
como “arquiteturas lingüísticas”.<br />
Vejo nessa retórica a tentativa de dissolver<br />
o ‘eu psicológico’, sua fala marcada por<br />
motivações e intenções pessoais, em um tecido<br />
de vozes que em seu conjunto expressam<br />
o que o autor toma (e experimenta na<br />
própria pele) como o vetor da dinâmica do<br />
mundo atual agindo sobre a subjetividade<br />
humana; sobre a consciência do ser ficcional<br />
tanto quanto sobre a consciência dele.<br />
Segundo Alvim, o mundo atual é vivenciado<br />
e expresso pelo artista como um<br />
mundo não dominável por meio de um<br />
trabalho mimético. Entretanto, esse trabalho<br />
mimético é inevitável e indispensável<br />
para a vida humana. É por meio dele que<br />
organizamos nossa relação com o mundo,<br />
criamos uma imagem do mundo que permite<br />
a transformação deste segundo nossas<br />
necessidades e nossas buscas. As propostas<br />
miméticas contemporâneas me parecem<br />
ser buscas por parte dos autores contemporâneos<br />
(no sentido forte da palavra) de<br />
relacionar-se com esta tensão; de plasmar<br />
as angústias, conflitos e esperanças que resultam<br />
dessa contradição existencial.<br />
O sujeito centrado, estável, científico<br />
e dominador é enfraquecido a ponto de<br />
se tornar irrelevante, com todas as conseqüências<br />
problemáticas para a agência<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Stephan Baumgärtel<br />
humana: os seres humanos sofrem a história<br />
mundana como se fosse unicamente<br />
uma história natural, enquanto processo<br />
independente de sua vontade. O que resta<br />
é, por um lado, registrar o choque, e por<br />
outro, buscar uma mimese camaleônica de<br />
lançar-se nessa dinâmica.<br />
O projeto de Alvim visa, entre outros, a<br />
“construção de mimeses cognoscíveis apenas<br />
como a instauração de solos para saltos<br />
em direção a mimeses incognoscíveis (a<br />
proposição de novas mitologias, de novos<br />
moldes arquetípicos)” (2011, p. 20). É patente<br />
a busca por uma escrita que proporcione,<br />
na “arquitetura lingüística” marcada<br />
por uma polissemia aberta, uma experiência<br />
de alteridade aos leitores/espectadores.<br />
Alvim aposta na possibilidade de criar, por<br />
meio da experiência de alteridade, uma experiência<br />
comum, uma vivência da “nossa<br />
humanidade” no âmbito de um imaginário<br />
além do eu. Entretanto, há certo individualismo<br />
inscrito no projeto quando diz que<br />
essa escrita visa “produzi[r] experiências<br />
singulares e autônomas por parte de cada<br />
receptor” (2011, p.19).<br />
Para avaliar essa tensão – que me parece<br />
ser constitutiva para essa escrita que<br />
oscila entre o registro do deslocamento<br />
contínuo de percepções e sensações, ou<br />
seja, uma mimese performativa, e a representação<br />
de um mundo compartilhado, ou<br />
seja, uma mimese representacional – faz-se<br />
necessário entender concretamente o que<br />
engloba a noção da “arquitetura lingüística”<br />
para além do sujeito empírico. Como<br />
ela articula materialidade e significado da<br />
língua, a dimensão sócio-histórica da linguagem<br />
verbal e a dimensão individual,<br />
as marcas da dependência e da libertação<br />
no processo que Alvim chama de deslocamento?<br />
Já podemos adiantar que a dissolução<br />
do personagem em uma arquitetura<br />
lingüística tende a dissolver o conflito ficcional<br />
narrativo para um conflito entre a<br />
consciência artística (do autor e do leitor)<br />
e as características do material plasmado.<br />
O texto PINOKIO 16 foi escrito por ele em<br />
16 Acessível em http://www.novasdramaturgias.com/conteudo/<br />
roberto_alvim/pinokio_roberto_alvim.pdf, Acesso 25/01/2011.<br />
2009/2010, ou seja, surge no contexto dessas<br />
propostas das dramáticas do transumano. O<br />
texto apresenta seus “personagens” enquanto<br />
figuras, denominadas como A MULHER<br />
VELHA, O HOMEM VELHO, O MENINO,<br />
A MULHER DE AZUL, O GRILO FALAN-<br />
TE e A AGENTE DA LEI (Alvim, 2010, p. 3).<br />
Este distanciamento do personagem psicológico<br />
por meio de denominações tipificantes<br />
ainda é relativamente convencional. Estabelece<br />
também certa (meta-)teatralidade ao falar<br />
em figuras, e aproxima essa teatralidade<br />
a um mimetismo tipificante. Inicialmente, as<br />
didascálias propõem uma “mimese cognoscível”,<br />
o que está enfatizado pela primeira<br />
fala do texto, proferida da figura O GRILO<br />
FALANTE que se apresenta como uma espécie<br />
de narrador, talvez um mestre de cerimônias<br />
dado a teatralidade não-realista<br />
inscrita na denominação figura. Diz o texto<br />
(2010, p.4):<br />
O GRILO FALANTE<br />
no princípio<br />
um boneco<br />
veioseivasmadeira<br />
do jardim<br />
a madeira<br />
e o vento lá fora<br />
só<br />
o céu<br />
raízes no céu<br />
vazio<br />
e as raízes<br />
raízes no céu no ventre as raízes<br />
do céu<br />
no princípio um<br />
só<br />
do jardim um eco<br />
e a vertigem<br />
vertigem<br />
perguntas?<br />
O texto afirma um início só para presentificar<br />
o fluxo do tempo ficcional nas modulações<br />
formais da escrita. O movimento que a<br />
narração realiza é de uma constante oscilação<br />
META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 149
<strong>Urdimento</strong><br />
150<br />
entre descrever uma ficção, por meio de um<br />
uso representacional da linguagem, e imitar<br />
performativamente as qualidades da realidade<br />
descrita, de modo a criar no leitor a vertigem<br />
que se atribui a esta. As duas modalidades<br />
miméticas se entrelaçam e permitem uma<br />
leitura semiótica e consequentemente uma<br />
interpretação: há um boneco que no princípio<br />
existia junto com terra e céu, pois a madeira<br />
da qual é feita está intimamente ligada a ambos.<br />
Descreve-se um movimento de soltar a<br />
madeira de seu contexto natural, mas a madeira<br />
mantém marcas de sua união original:<br />
“veioseivasmadeira”. Interpreto essas informações<br />
como indicações em direção a uma<br />
história de individuação, talvez mal sucedida,<br />
talvez propondo tipos de individuação ‘holística’.<br />
Importante perceber que a figura do<br />
grilo falante assimila sua fala ao fenômeno<br />
descrito, ou seja, o modo performativo dilui a<br />
exterioridade do narrador para com seu material,<br />
o boneco. Algo semelhante acontece com<br />
o leitor/espectador quando perde a orientação<br />
em relação ao eixo temporal e à dimensão<br />
semântica do texto.<br />
Não se trata simplesmente de uma proposta<br />
tipificante para o personagem, mas de<br />
uma dissolução do ponto de vista exterior,<br />
seja ele individualizado ou ‘típico’, para o<br />
funcionamento interno do texto. O leitmotif<br />
formal do texto me parece ser este: expressar<br />
o tema da individuação por meio de um processo<br />
de escrita performativa que simultaneamente<br />
o problematiza e dilui. Esta característica<br />
formal explica porque temos a presença<br />
simultânea de dois tipos de instâncias de<br />
enunciação: uma voz de um narrador e uma<br />
voz temática que expressa estruturalmente o<br />
tema do texto. Antes de qualquer interpretação,<br />
a tarefa de análise é diferenciar entre essas<br />
duas modalidades, para posteriormente<br />
relacioná-las. 17 Pois nessa transformação do<br />
centro actancial, das relações intersubjetivas<br />
dos personagens ficcionais para o funcionamento<br />
performativo do texto, estamos perante<br />
o deslocamento seu do centro agônico:<br />
17 A temática já foi esboçada por Matteo Bonfitto (2002, p.132-137) na<br />
sua diferenciação entre “personagem-indivíduo”, “personagem-tipo”,<br />
“actante-estado” e “actante-texto”, com o foco nos desafios propostas<br />
para o trabalho do ator. É a relação dinâmica entre actante-texto e<br />
personagem-mâscara que está em jogo aqui.<br />
da narrativa ficcional para a dinâmica textual<br />
enquanto expressão da relação entre consciência<br />
humana e material empírico, expresso<br />
talvez um pouco explícito demais na pontuação<br />
final desse trecho: “perguntas?”. Pela lógica<br />
estrutural do texto, me parece claro que<br />
a palavra não implica em oferecer respostas,<br />
mas em perceber por parte do leitor/espectador<br />
as próprias perguntas e dúvidas, ou mais<br />
amplamente, em perceber por parte do leitor/espectador<br />
a própria relação desestabilizada<br />
para com o texto. A intenção de fazer<br />
um levantamento das perguntas se sobrepõe<br />
na minha leitura ao convite de tirar dúvidas.<br />
Há um segundo momento texto que quero<br />
analisar no que diz respeito ao solapamento<br />
do personagem e o conseqüente deslocamento<br />
do conflito ficcional para o ato de criação<br />
e recepção do material plasmado. Após duas<br />
falas das figuras HOMEM VELHO e MU-<br />
LHER VELHA (pai e mãe? Anciões? Sábios<br />
ou figuras de autoridade repressora?), aparece<br />
O MENINO. Ele apresenta, por meio do<br />
texto falado, um processo temático de reconhecimento<br />
de uma casa, a falta de uma chave<br />
para sair, da consequente impossibilidade<br />
de habitar a casa, da casa enquanto prisão, da<br />
vontade inútil de fugir da casa, uma vez que<br />
não há chave, para afirmar que fugir da casa<br />
é fugir do próprio corpo e do próprio tempo<br />
existencial também. Descreve esse percurso<br />
de sua consciência e percepção às vezes balbuciando,<br />
às vezes com vocabulário extremamente<br />
rebuscado como se selecionado após<br />
de uma consulta ao dicionário, simultaneamente<br />
comete erros gramaticais que sugerem<br />
um espírito indefeso e desamparado perante<br />
a situação paradoxal. O texto é consistente enquanto<br />
cria uma estrutura performativa para<br />
marcar linguisticamente os sintomas de uma<br />
consciência enclausurada, mas abre uma lacuna<br />
explicativa quando define a casa como<br />
sendo o próprio corpo (2010, p.7-8).<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Stephan Baumgärtel<br />
só agora você só agora<br />
percebe compreende você<br />
que não há chave não veio com a<br />
casa não chave? não há só agora eu<br />
compreende? está trancadoele eu<br />
compreendo<br />
dentro<br />
vocêvocê<br />
compreendeu?<br />
mesmo?<br />
porque a casa enfim<br />
porque a casa finalmente a casa porque<br />
é o corpo<br />
celacorpo<br />
cubículo<br />
carne lacrada prisão da pele os órgãos<br />
algemas<br />
Podemos perceber aqui a dissolução<br />
do personagem em uma escrita performativa.<br />
Ela utiliza procedimentos ortográficos<br />
(trancadoele), deslizamentos de pronomes<br />
(eu-você), neologismos (celacorpo), não só<br />
para marcar a realidade descrita, mas para<br />
expressar a consciência que percebe e sofre<br />
esta realidade; para inscrever no texto<br />
o estado de imersão dessa consciência no<br />
fenômeno descrito. De fato, ao meu ver, as<br />
denominações dos personagens não consolidam<br />
mais a dinâmica da fala em torno de<br />
um centro textual estável ou de uma estrutura<br />
que pode ser descrita como personagem-mâscara.<br />
Elas funcionam muito mais<br />
como indicações intertextuais em relação<br />
aos personagens da história Pinocchio de<br />
Carlo Collodi, transformando estes em figuras<br />
arquetípicas dentro de um contexto<br />
discursivo despersonalizado. Esta tensão<br />
entre um fluxo discursivo e seu enquadramaneto<br />
(arque)típico configura neste texto<br />
a “arquitetura lingüística” da qual fala Alvim.<br />
Esta observação me permite algumas<br />
reflexões acerca da terceira característica<br />
que levantei: a dissolução do conflito narrativo<br />
em um conflito estrutural da escrita.<br />
Dito de outra forma, o modo de articular o<br />
conflito temático se desloca do meio narrativo<br />
para um meio estrutural da escrita, do<br />
eixo temporal para um eixo espacial.<br />
A dissolução do conflito narrativo. No<br />
conto de Collodi, o processo de individuação<br />
de Pinocchio, do boneco de madeira<br />
e preso nos instintos de sua natureza para<br />
um menino ‘de verdade’, se desenvolve<br />
em uma narrativa impulsionada por figuras<br />
que cada uma tem sua função agencial<br />
e metafórica para levar a cabo a viagem do<br />
pequeno buscador, seja ela interpretada<br />
como viagem de uma atitude egoísta para<br />
uma atitude altruísta, de uma atitude sem<br />
presença de uma energia maternal feminina<br />
para uma atitude que integrou essas<br />
energias, etc. Tematicamente, Alvim elege<br />
com conflito central do texto a relação de<br />
Pinokio com seu próprio corpo (“celacorpo”),<br />
para inverter a solução proposta por<br />
uma possível leitura cristã dessa narrativa:<br />
não é o corpo, mas a ditadura do enfoque<br />
na alma que criou as angústias da figura.<br />
Diz a Mulher de Azul, que remete à fada<br />
turquesa de Collodi (2010, p.19):<br />
porque não era o corpo a prisão<br />
o corpo? não<br />
a prisão era a alma ela compreende<br />
finalmente antes de morrer<br />
e o tumor um bebê ela compreende<br />
um instante antes de morrer<br />
parindo o corpo novo<br />
sem cabeça<br />
Este corpo é um corpo que desconhece<br />
uma separação da alma ou do espírito<br />
(2010, p.20):<br />
O corpo hibridado três dias em fim<br />
glorioso o corpoanfíbio surgindo do<br />
mar eterno<br />
sobe à terra desce dos céus espíritoemcorpo<br />
encarnado glorioso<br />
META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 151
<strong>Urdimento</strong><br />
152<br />
Mas ele não faz seu boneco passar por<br />
uma série de situações para vivenciar o<br />
surgimento desse insight. Antes, ele evoca<br />
alguns aspectos temáticos. O que as figuras<br />
apresentam são mais teses ou interpretações<br />
do dilema do menino que se desdobram<br />
discursivamente, sempre tentando<br />
seguir a prerrogativa da escrita performativa<br />
de fazer com que sobretudo a estrutura<br />
do texto (da fala) exprima o que se quer dizer<br />
tematicamente. Menos em dois trechos<br />
que marcam os momentos ontológicos do<br />
discurso: a afirmação do Menino que o corpo<br />
é uma cela e a resposta final da Mulher<br />
em Azul de que a alma era de fato a prisão.<br />
Não há muita polissemia inscrita nestes<br />
momentos de fazer prevalecer uma escrita<br />
discursiva, não-performativa.<br />
Perante o que Alvim afirma (e realiza<br />
em boa parte) como projeto poético performativo,<br />
os trechos convencionalmente<br />
discursivos que falam racionalmente sobre<br />
um estado, ao invés de não expressar os<br />
sintomas do corpo na consciência, surgem<br />
quase como uma decepção, marcando dois<br />
momentos ‘zero’ e fundadores desse texto.<br />
Entretanto, do ponto de vista estrutural<br />
e performativo, vimos como a escrita<br />
performativa dissolve o fundamento da<br />
afirmação do Menino. Ela também continua<br />
em tensão com a afirmação da Mulher<br />
Azul, de modo que a escrita volta a expor<br />
traços performativos para expressar o impacto<br />
da morte da alma legislativa sobre o<br />
corpo: corpoanfíbio, espíritoemcorpo. Perante<br />
a tensão entre escrita performativa e escrita<br />
racional-descritiva, o que era fixo revela<br />
seu estatus de processo. Qualquer fundamentação<br />
da perspectiva sobre o ser humano,<br />
privilegiando uma vez o corpo, outra<br />
vez o espírito/mente/alma, é fruto de um<br />
auto-engano epistemológico. Esta tensão<br />
formal apresenta e modula o conflito temático<br />
básico do texto, desestabiliza a rigidez<br />
de uma oposição binária entre corpo e alma<br />
(ou Eros e Lei, como uma outra camada do<br />
texto afirma) e articula a crítica do texto à<br />
qualquer posição ontológica fixa. Vejo nessa<br />
tensão também uma tentativa da figura<br />
do autor de se posicionar claramente em<br />
um vetor cultural (descrito também no manifesto<br />
Dramaturgias do Transhumano), e simultaneamente<br />
minar o fundamento dessa<br />
posição. Ou seja, a escrita performativa<br />
coloca em cheque a instância do autor, ao<br />
mesmo tempo que afirma a inevitibilidade<br />
de sua existência.<br />
O texto desafia uma possível encenação<br />
para atender cenicamente a estas instabilidades;<br />
atenuar a tendência para um teatro<br />
abstrato de teses ao expor os corpos dos<br />
atores que performativamente passam por<br />
um processo que é escrito tematicamente<br />
no texto teatral.<br />
Mas o projeto poético do texto fica claro:<br />
expressar linguisticamente um processo<br />
físico, criar uma escrita sintomática e não<br />
representacional, que pode ser lida pelo<br />
receptor em primeiro lugar a partir do impacto<br />
que este recebe pelo ato de recepção.<br />
Isso implica em decisões cênicas sobre a<br />
poética do texto, mas não necessariamente<br />
em decisões acerca do significado dos signos,<br />
ou seja, das palavras e frases. Como<br />
tornar concreto e interessante em cena<br />
o jogo textual entre, por um lado, os elementos<br />
discursivos e narrativos com seus<br />
fortes traços de representação e descrição<br />
racionalista, fechando e fixando as leituras<br />
simbólicas, e por outro lado, os elementos<br />
performativos, com seu funcionamento<br />
sintomático, fisiológico e libidinal, desestabilizando<br />
interpretações esclarecedoras<br />
dos signos?<br />
Entre vanguarda e tradição. O texto<br />
de Alvim talvez seja hermético e abstrato<br />
demais para interessar à maioria do público<br />
brasileira. Mas ele apresenta uma clara<br />
tentativa de um dramaturgo brasileiro de<br />
atender em sua forma de escrita à impossibilidade<br />
contemporânea de separar claramente<br />
sujeito e objeto, corpo e espírito,<br />
fenômenos de sentido e fenômenos de presença.<br />
18 É claro que são possíveis propostas<br />
mais tradicionais de expressar o colapso<br />
18 Ver o livro de Gumbrecht (2010), que contém uma série de impulsos<br />
para refletir sobre a relação entre estruturas representacionais e<br />
performativas na escrita teatral contemporânea, especialmente no<br />
que diz respeito a suas motivações epistemológicas e culturais.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Stephan Baumgärtel<br />
desses binarismos por meio da escrita. 19<br />
O texto de Alvim não afirma a incapacidade<br />
mimética do autor acerca de seu<br />
material, ou uma possível libido polimorfa<br />
como nova verdade sobre a subjetividade,<br />
mas antes expõe uma tensão crítica entre<br />
mimese representacional e mimese performativa.<br />
Neste sentido, ele pode servir como<br />
ponto de partida para discutir as necessidades<br />
de uma escrita não-antropomórfica<br />
no Brasil de hoje; para refletir sobre as possibilidades<br />
de como transformar manifestos<br />
poéticos em escrita teatral.<br />
Trata-se de um projeto de colocar em<br />
cheque não só o centro racional da mimese,<br />
mas também uma suposta verdade do processo<br />
libidinoso ou inconsciente. Por isso,<br />
os textos que expõem ao longo da leitura a<br />
premissa do mundo como caótico e/ou da<br />
subjetividade humana como irracional não<br />
ultrapassam a lógica mimética monológica<br />
da escrita moderna. Mas uma escrita que<br />
não expressa e dinamiza um conflito entre<br />
o centro semântico e o centro performativo,<br />
entre intersubjetividade e singularidade,<br />
entre história e psique, entre consciência e<br />
inconsciência, experiência e sensação, dificilmente<br />
consegue criar uma visão complexa<br />
e multi-dimensional dos prazeres e<br />
angustias, das possibilidades de liberdade<br />
e das restrições da existência humana hodierna.<br />
19 Podemos, por exemplo, incluir o texto As Folhas do Cedro de<br />
Samir Yazbek como um exemplo de uma proposta que media mais<br />
cautelosamente exigências de uma poética contemporânea com as<br />
normas da tradição,tensionando as em uma tentativa de expressar<br />
não só crises dos personagens, mas também as crises do autor para<br />
com o material e o mundo contemporâneo.<br />
META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 153
<strong>Urdimento</strong><br />
154<br />
REfERênCIAS bIbLIOGRAfIAS:<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
ABREU, Luís Alberto de. Um Teatro de Pesquisa. (org. Adélia Nicolete). São Paulo: Perspectiva,<br />
2011.<br />
Abreu, Márcio. Vida. Manuscrito inédito. Arquivo do autor. 40 páginas. 2010.<br />
Alvim, Roberto. “Dramáticas do Transhumano”. Revista Antro Positivo, No. Zero, 2011,<br />
http://issuu.com/antropositivo/docs/ed_zero/19?zoomed=&zoomPercent=&zoomX=<br />
&zoomY=¬eText=¬eX=¬eY=&viewMode=magazine, acesso em 05/11/2011.<br />
---. Pinokio. Versão pdf disponível em www.novasdramaturgias.com. Acesso em<br />
18/12/2011.<br />
AutAnt-mAthieu, Marie-Christine. Écrire pour le théâtre. Les enjeux de l’écriture dramatique.<br />
Paris: CRNS Editions, 1995.<br />
bonfitto, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002.<br />
birkenhAuer, Theresia. Schauplatz der Sprache – das Theater als Ort der Literatur. Maeterlinck,<br />
Čechov, Genet, Beckett, Müller. Berlin: Vorwerk 8, 2005.<br />
---. “Entre fala e linguagem“. Trad. Stephan Baumgärtel. In: <strong>Urdimento</strong> 18, 2012.<br />
CANDEIAS, Maria Lúcia Levy. A fragmentação da personagem. São Paulo: Perspectiva,<br />
2012.<br />
CostA limA, Luiz. Mimesis e Modernidade: A forma das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.<br />
GumbreCht, Hans-Ulrich. Produção de Presença. O que o sentido não pode expressar. Rio<br />
de Janeiro: Contraponto, 2010.<br />
JAtAhy, Christiane. Corte Seco. Versão pdf disponível em: www.novasdramaturgias.com.<br />
Acesso em 18/12/2011.<br />
PAvis, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. de Guinsburg, J., Pereira M.L. et al., São Paulo:<br />
Perspectiva, 2003.<br />
---. A encenação contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2011.<br />
sArrAzAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002.<br />
Stephan Baumgärtel
ENTREVISTAS<br />
BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente Concilio. ATRIzES: Priscila Marinho e Mirella Granucci. FOTO: Lucas Heymanns.
N° 18 | Março de 2012<br />
Quais são os impulsos cênicos e/ou<br />
sociais que possuem mais impacto em<br />
seu trabalho enquanto dramaturgo?<br />
Antes de tudo, a relação com o ator é<br />
o principal estímulo para o meu trabalho<br />
enquanto dramaturgo. Estar próximo do<br />
ator, experimentar com o ator, dirigir o<br />
ator, todas essas atividades chegam a determinar,<br />
no meu caso, o ato de escrever<br />
para teatro. Também considero o teatro<br />
como um fórum privilegiado para aprofundar<br />
questões humanas relevantes em<br />
nossa época.<br />
Qual é a função da palavra e do texto<br />
teatral em suas montagens (ou dispositivos<br />
cênicos)?<br />
Levando em conta que tenho dirigido<br />
algumas de minhas peças, a palavra<br />
e o texto teatral costumam nascer de um<br />
imaginário denso, para depois amadurecer<br />
a partir do contato com a cena. Não<br />
apenas a palavra, mas o silêncio, o gesto,<br />
as movimentações etc., são elementos que<br />
constituem a natureza do texto teatral.<br />
Qual é a função e a importância da<br />
tradição dramática em seu processo dramatúrgico?<br />
A tradição dramática teve fundamental<br />
importância em minha formação, mas,<br />
hoje em dia, já não representa um modelo<br />
válido para a minha escritura, que se<br />
pauta muito mais por intuições e necessidades<br />
criativas, livres de quaisquer imposições.<br />
O que pode ocorrer, eventual-<br />
CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Caminhos da Dramaturgia<br />
Brasileira Contemporânea<br />
Entrevista com Samir Yazbek 1<br />
mente, é que se estabeleça algum tipo de<br />
diálogo com esta tradição, normalmente<br />
para problematizá-la.<br />
Do seu ponto de vista, quais são as<br />
barreiras e riscos mais iminentes que a<br />
dramaturgia brasileira contemporânea<br />
precisa enfrentar?<br />
É saudável que os autores sejam permeáveis<br />
à pluralidade de caminhos que<br />
a criação dramatúrgica contemporânea<br />
oferece, além de se deixarem contaminar<br />
por outras linguagens artísticas, sem<br />
perderem de vista o amadurecimento de<br />
suas próprias individualidades. Ao mesmo<br />
tempo, como parte de uma estratégia<br />
de valorização da palavra, é preciso evitar<br />
que a proliferação dos processos colaborativos,<br />
por todo o país, ofusque o fato<br />
de que boa parte dos textos considerados<br />
antiquados, hoje em dia, nasceu de um<br />
contato estreito do autor com a cena de<br />
sua época.<br />
Como você vê a importância das oficinas<br />
de dramaturgia as quais você administrou<br />
e como você vê os resultados<br />
concretos delas?<br />
Cada vez mais considero as oficinas<br />
que dou como extensos diálogos sobre<br />
dramaturgia, teatro, arte em geral, além<br />
de outros assuntos, como filosofia etc.,<br />
com o intuito de ajudar a despertar a<br />
consciência e a vontade criadora de cada<br />
aluno. Acreditar que os melhores resultados<br />
possam surgir rapidamente, só impede<br />
que os processos artísticos tenham<br />
1 Samir Yazbek é dramaturgo e diretor. Ganhador do Prêmio Shell 1999 por “O Fingidor” e do prêmio ABCA 2010 por “As Folhas<br />
do Cedro”. A presente entrevista foi realizada por e-mail.<br />
157
<strong>Urdimento</strong><br />
158<br />
tempo suficiente para se desenvolver.<br />
Como você vê o papel do Estado no<br />
processo de construir e consolidar uma<br />
Dramaturgia brasileira Contemporânea?<br />
Ainda falta muito para o Estado ocupar<br />
o seu papel de incentivar a nossa dramaturgia,<br />
por meio de oficinas, editais,<br />
montagens, publicações etc. Além disso,<br />
a política cultural brasileira, em geral,<br />
quase não se interessa em promover nossos<br />
dramaturgos no exterior. O que tem<br />
sido feito, neste sentido, ocorre muito<br />
mais por conta de iniciativas de indivíduos<br />
ou de instituições privadas.<br />
Tem algo que você considera importante<br />
para complementar estas questões?<br />
É preciso sempre lembrar que o fortalecimento<br />
de nossa dramaturgia depende<br />
não apenas do desenvolvimento de uma<br />
técnica de escrita específica, ou mesmo<br />
de fatores de ordem econômica, que asseguram<br />
a montagem dos textos, mas,<br />
sobretudo, da existência de uma visão de<br />
mundo que seja suficientemente consistente<br />
para se impor nos dias de hoje.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Entrevista com Samir Yazbek
N° 18 | Março Setembro de 2012 de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />
1. Quais são os impulsos cênicos<br />
e/ou sociais que possuem<br />
mais impacto em seu trabalho enquanto<br />
dramaturgo?<br />
O que imediatamente me<br />
mobiliza é a tentativa de diálogo<br />
com o outro. Como articular elementos<br />
de escritura - escrita, inscrição,<br />
composição - teatral que<br />
sejam determinantes enquanto<br />
propostas endereçadas a alguém<br />
e que tenham possibilidade de<br />
sequência, na medida em que se<br />
abrem também a respostas e reações.<br />
Este princípio aparentemente<br />
óbvio está na base de tudo e não<br />
se confunde em nenhum momento<br />
com fazer aquilo que o outro<br />
espera, confirmar expectativas ou<br />
fazer concessões ao que se supõe<br />
ser aceitável. Ao contrário, busca<br />
criar conexões múltiplas com as<br />
pessoas do público e expandir o<br />
campo de percepção. Ao longo<br />
de tempo tenho percebido que<br />
insisto em alguns estímulos que<br />
se articulam em conceitos como<br />
polissemia, polifonia, expansão,<br />
endereçamento, permeabilidade<br />
e presença.<br />
1 Márcio Abreu é ator, diretor e dramaturgo, natural<br />
de Rio de Janeiro, radicado em Curitiba. Ministra<br />
regularmente desde os anos 1990 oficinas, cursos,<br />
seminários e palestras relacionados ao teatro. O trabalho<br />
VIDA recebeu três indicações ao prêmio Shell<br />
(SP), entre eles autor e direção,<br />
Caminhos da Dramaturgia Brasileira<br />
Contemporânea<br />
Entrevista com Márcio Abreu 1<br />
2. Qual é a função da palavra<br />
e do texto teatral em suas montagens<br />
(ou dispositivos cênicos)?<br />
A palavra é um elemento, entre<br />
tantos outros, a integrar o amplo<br />
território de articulação e de<br />
linguagem que é a dramaturgia.<br />
Não há, necessariamente, hierarquia<br />
entre os elementos. No entanto,<br />
se considerarmos o âmbito da<br />
cultura, a palavra, historicamente,<br />
revela muitos condicionamentos<br />
sociais. Para me referir apenas a<br />
dois deles, aos quais o teatro está<br />
intrinsecamente ligado, posso pensar<br />
na tirania dos discursos, num<br />
extremo, e na surdez social no outro<br />
extremo. Como pensar a função<br />
da palavra sabendo disso? Como<br />
tentar reinaugurar sua potência<br />
sem sobrepujar os outros elementos<br />
da linguagem?<br />
Como tomar a palavra mais<br />
uma vez sem ser tirano? Como estimular<br />
uma escuta descondicionada?<br />
Como escapar do âmbito da<br />
cultura? São questões que me coloco<br />
sempre. A dimensão utópica<br />
desses desafios alimentam minha<br />
lida com a palavra, me levando,<br />
muitas vezes, a explorar seu campo<br />
de sonoridade: palavra como<br />
som, como música; mas também<br />
seu campo de concretude: palavra<br />
como pedra, objeto, matéria.<br />
CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 159
<strong>Urdimento</strong><br />
160<br />
3. Qual é a função e a importância<br />
da tradição dramática em seu processo<br />
dramatúrgico?<br />
Fundamental. Invenção e consciência<br />
histórica estão profundamente vinculadas<br />
aos meus processos criativos. É evidente<br />
que estamos num tempo em que a<br />
vivência da pluralidade se impõe. Temos<br />
a chance de conviver simultaneamente<br />
com experiências inauguradas em épocas<br />
distintas. Para mim é cada vez mais difícil<br />
considerar algo como ultrapassado.<br />
Não é apenas uma relação cronológica a<br />
que eu busco com o tempo. No pós-tudo,<br />
podemos conviver com essas experiências<br />
fora do tempo. Podemos lidar quase<br />
arqueologicamente com algumas ideias,<br />
sem ingenuidade e de maneira legítima.<br />
4. Do seu ponto de vista, quais são<br />
as barreiras e riscos mais iminentes que<br />
a dramaturgia brasileira contemporânea<br />
precisa enfrentar?<br />
Os simulacros são sempre um risco.<br />
Reproduzir discursos, “métodos” e<br />
“técnicas”, criar “manuais”, tudo isso<br />
enfraquece a possibilidade de experiências<br />
genuínas. É também uma barreira<br />
e um risco iminente a auto-caricatura, o<br />
afirmar-se “contemporâneo”, o fechar-se<br />
à alteridade. As dramaturgias no Brasil<br />
ocupam um lugar inédito historicamente.<br />
É preciso não mistificar essa dimensão,<br />
mas alimentar esse campo do pensamento<br />
e da invenção e trabalhar para que ele<br />
permaneça existindo com potência, em<br />
transformação dinâmica, sem mortes súbitas<br />
ou banalizações sociais.<br />
5. Como você vê a importância das<br />
oficinas de dramaturgia as quais você<br />
ministrou e como você os resultados<br />
concretos deles?<br />
No ponto em que estamos, vejo com<br />
muito otimismo as oportunidades de oficinas,<br />
núcleos e encontros de dramaturgia.<br />
São, objetivamente, momentos em<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
que as experiências de alguns criadores,<br />
práticas e de estudo, podem ser abertas,<br />
compartilhadas, repensadas. Podem ser<br />
realmente trocas frutíferas, estímulos<br />
fundamentados e acredito que contribuem<br />
muito nos processos de formação.<br />
Tenho tido a sorte acompanhar as reverberações<br />
desses trabalhos. Meus e de alguns<br />
colegas. Faz realmente diferença.<br />
Principalmente se conseguem ir além de<br />
um simples evento que acontece só uma<br />
vez. É preciso insistir no tempo, na continuidade.<br />
6. Como você vê o papel do Estado<br />
no processo de construir e consolidar<br />
uma Dramaturgia brasileira Contemporânea?<br />
Essa é uma questão difícil de responder<br />
em poucas linhas. Tentando ser objetivo:<br />
o compromisso do Estado deve ser<br />
primordialmente com o que não é gerido<br />
pelo mercado. Formação não é e nem<br />
pode ser mercado, arte de ponta também<br />
não. É dever do Estado, portanto, fomentar<br />
e dar acesso a essas experiências; é<br />
um direito nosso. As pesquisas no teatro<br />
recente no Brasil, os movimentos dos<br />
grupos e companhias, os núcleos de dramaturgia<br />
tem uma enorme e entusiasmada<br />
resposta da sociedade. Isso legitima<br />
ainda mais o compromisso que o Estado<br />
deve ter.<br />
7. Tem algo que você considera importante<br />
para complementar estas questões?<br />
As pontes que o projeto “Encontro<br />
com Dramaturgo” está tentando construir<br />
entre a academia e a pratica do ofício<br />
são muito estimulantes e imprescindível<br />
para o amadurecimento de ambas<br />
as partes. A re-elaboração teórica de uma<br />
experiência teatral, a proximidade e a<br />
pratica mesmo dentro da universidade,<br />
enfim, tudo isso amplia a experiência e<br />
ajuda a afirmar o nosso espaço.<br />
Entrevista
N° 18 | Março de 2012<br />
1. Quais são os impulsos cênicos<br />
e/ou sociais que possuem mais<br />
impacto em seu trabalho enquanto<br />
dramaturgo?<br />
Trabalho com o conceito de<br />
dramáticas do transumano: transumano<br />
é a invenção de desenhos<br />
(im)possíveis que propiciam experienciarmos<br />
a vida de outros (e<br />
imprevisíveis) modos. É a recusa<br />
de uma idéia, surgida no renascimento<br />
(com ecos da Grécia do<br />
século V a.C e do ethos cristão<br />
do século IV d.C), que se expandiu<br />
(no iluminismo, e paradoxalmente<br />
também no romantismo) e<br />
vigorou até o final do século XX<br />
acerca do que seja o humano (e<br />
que tem agido como o maior mecanismo<br />
de controle jamais concebido);<br />
é a criação de outros modos<br />
de subjetivação, em desenhos<br />
1 Roberto Alvim é dramaturgo, diretor e professor<br />
de Artes Cênicas. Em 2010, foi o Curador do<br />
FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO de São<br />
José do Rio Preto. Foi Curador da Mostra DRA-<br />
MATURGIAS, realizada no CENTRO CULTURAL<br />
BANCO DO BRASIL (RJ) em 2009. Em 2011, foi<br />
convidado a lecionar dramaturgia em Bruxelas,<br />
para um grupo de 12 autores europeus de diversas<br />
nacionalidades, pela Cifas – La Bellone (Maison<br />
du Spectacle). Desde 2006 reside em São Paulo,<br />
onde dirige a companhia CLUB NOIR, dedicada a<br />
encenar obras de dramaturgos contemporâneos.<br />
Além de diversas indicações para os prêmios mais<br />
importantes do teatro brasileiro, foi o vencedor do<br />
Prêmio BRAVO! 2009 de Melhor Espetáculo Teatral<br />
de São Paulo, por sua encenação da peça O<br />
QUARTO, de Harold Pinter.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Caminhos da Dramaturgia<br />
Brasileira Contemporânea<br />
Entrevista com Roberto Alvim 1<br />
instáveis que problematizam de<br />
modo radical uma idéia hegemônica<br />
acerca do que seja o sujeito.<br />
O “trans” aqui não implica em<br />
transcendência, mas sim na invenção<br />
de desenhos transitórios<br />
da condição (não)humana, em<br />
instabilidade e hibridação permanentes.<br />
A invenção de outros, de<br />
infinitos modos de subjetivação,<br />
aparentemente impossíveis, imprevisíveis.<br />
Significa a criação de<br />
novos moldes arquetípicos, a serem<br />
preenchidos por pulsões que<br />
teremos que inventar, expandindo<br />
nossa experiência em veredas<br />
insuspeitadas. É importante perceber<br />
que uma questão estética é<br />
sempre uma questão existencial<br />
(por existencial entenda-se, inevitavelmente,<br />
a integralidade do<br />
estar no mundo). Toda técnica,<br />
procedimento, ou operação, está<br />
ligada a uma determinada visão<br />
de mundo. Neste sentido, empregar<br />
uma técnica existente significa<br />
compactuar com (e subordinar-se<br />
a) uma visão específica da<br />
condição humana. Nenhuma das<br />
técnicas existentes no campo da<br />
dramaturgia se fundamenta na<br />
transumanidade; todas corroboram<br />
e se fundam em uma idéia<br />
estratificada de sujeito. Novas<br />
visões de mundo pressupõe, ine-<br />
CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 163
<strong>Urdimento</strong><br />
164<br />
vitavelmente, a invenção de outras técnicas<br />
que as traduzam e, sobretudo, que<br />
as expandam em direções inconcebíveis<br />
(para o receptor e para o próprio artista).<br />
Para mim, a finalidade do teatro é a reinvenção<br />
da anatomia humana. (Emprego<br />
o conceito de dramáticas no sentido de sistemas<br />
dramatúrgicos: dramaturgia como<br />
reinvenção do homem - recusa do ser,<br />
aporte no estar).<br />
Quanto tempo e espaço cabem em<br />
uma pequena porção de tempo e espaço?<br />
Quantos modos de subjetivação cabem<br />
em um único emissor? A tentativa<br />
de responder a estas perguntas configura<br />
as operações dramatúrgicas que instauro.<br />
É deste modo que invento obras<br />
que promovem miríades de deslocamentos<br />
(de tempo, de espaço, de modos de<br />
subjetivação) a cada frase. Peças muito<br />
mais próximas da lógica da poesia que<br />
da lógica da prosa. Os neologismos (e<br />
arquiteturas lingüísticas inusuais) presentes<br />
nos textos apontam para outras<br />
formas de habitarmos a linguagem,<br />
para a criação de significantes que expandem<br />
e instigam nosso imaginário na<br />
invenção de novos significados (inexistentes<br />
até então); são potência, liberdade<br />
e arbítrio, possibilitando a redefinição<br />
de nossa estrutura de pensamento,<br />
de sensibilidade, reconstruindo nosso<br />
modo de vermos a nós mesmos e de nos<br />
relacionarmos e estarmos no mundo. E,<br />
em termos temáticos, corroboram para<br />
a construção de uma nova mitologia, de<br />
uma outra humanidade, através do desenho<br />
de criaturas-linguagem que se constituem<br />
como alteridades radicais: novos<br />
moldes arquetípicos. Textos nos quais<br />
a linguagem transita todo o tempo entre<br />
as instâncias da evocação e da invocação.<br />
Trata-se de um teatro que recusa o<br />
“conhece-te a ti mesmo” e que propõe um<br />
“constrói-te a ti mesmo”. A cena não é um<br />
espelho no qual nos reconheceremos,<br />
mas uma tecelagem norteada por outras<br />
possibilidades de vir-a-ser, para além do<br />
homem cultural, normatizado, estático,<br />
conformado. Tudo tem a ver com forças<br />
inconscientes, invenção, desejo (a dramaturgia<br />
como máquina desejante) e hibridações,<br />
em permanente instabilidade<br />
e mutação.<br />
2. Qual é a função da palavra e do texto<br />
teatral em suas montagens (ou dispositivos<br />
cênicos)?<br />
A palavra (e, por inevitável extensão<br />
performativa, a fala) é o tijolo fundamental<br />
das dramáticas contemporâneas; a palavra,<br />
e não a imagem. A fala é ação: criação de<br />
tempos, de espaços, de modos de subjetivação.<br />
A fala é criação de mundos e de<br />
modos de habitarmos a vida, haja vista que<br />
uma linguagem é uma forma de vida. Mas<br />
a palavra só se instaura como ação quando<br />
cria mundos, não quando comunica ou<br />
expressa. eu falo: eu existo – é o modo como<br />
eu falo que me faz existir desta ou daquela<br />
(ou de infinitas) maneiras. O poder epifânico<br />
de criação e recriação perpétua do<br />
mundo que as palavras tem, na medida em<br />
que para cada nova arquitetura linguística<br />
corresponde uma nova e imprevisível habitação<br />
do mundo (gerando outras formas<br />
de ação e de modelação do tempo/espaço).<br />
3. Qual é a função e a importância da<br />
tradição dramática em seu processo<br />
dramatúrgico?<br />
Todos os grandes dramaturgos (clássicos<br />
e contemporâneos) são exemplos,<br />
não modelos. Percebo a pulsão de ruptura<br />
com uma lógica cultural banalmente limitadora<br />
e redutora da condição humana em<br />
seus trabalhos, e procuro esta mesma pulsão<br />
na construção de minha obra. Analiso<br />
suas estratégias, o modo admirável como<br />
tensionam suas obras, mas não as reproduzo;<br />
utilizo-os como exemplos de como<br />
a dramaturgia pode ser revolucionária,<br />
pode nos levar a uma renovação completa<br />
de nossa noção de sentido, e tento criar,<br />
à minha maneira, com estratégias tão poderosas<br />
quanto as deles, a minha própria<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Entrevista com Roberto Alvim<br />
instância de deslocamento. São exemplos,<br />
volto a dizer, não modelos; mas são nomes<br />
como H. Pinter, G. Motton, S. Kane,<br />
Heiner Muller, M. Vinaver, R. Maxwell,<br />
V. Novarina, E. Bond, J. Fosse, J. Orton,<br />
Enda Walsh, S. Beckett, Arne Lygre, D.<br />
Harrower, que provam que é possível,<br />
sim, reconstruir o mundo inteiro sobre o<br />
palco. Entender e vivenciar a nossa humanidade<br />
de outros modos, transfigurando<br />
os significados, configurando outros modos<br />
de subjetivação. Para isso, o trabalho<br />
de poetas como F. Hölderlin e Robert Creeley,<br />
de romancistas como W. Faulkner,<br />
Herta Müller e Antônio Lobo Antunes, de<br />
filósofos como L. Wittgenstein, M. Heidegger,<br />
J. Lacan, G. Deleuze e Heráclito, de<br />
pintores como J. Pollock, W. de Kooning,<br />
M. Rothko, Barnett Newman, F. Bacon, Cy<br />
Twombly, e de teóricos da arte como David<br />
Sylvester, Clement Greenberg, A. Danto,<br />
T. J. Clark, Paulo Sérgio Duarte, Mário<br />
Pedrosa, Ronaldo Brito, Paulo Herkenhoff,<br />
Luiz Fernando Ramos, Sílvia Fernandes<br />
e Harold Rosemberg também são estímulos<br />
fundamentais. Harold Bloom escreveu<br />
um livro (Shakespeare: a Invenção do Humano)<br />
no qual nos mostra como o autor<br />
inglês percebeu que um novo homem estava<br />
começando a se desenhar no renascimento,<br />
e como traduziu este novo homem<br />
(o sujeito moderno) em suas obras, não<br />
só retratando-o, mas expandindo-o em<br />
múltiplas direções e complexidades, conformando<br />
em definitivo a idéia de humano.<br />
E a obra de Shakespeare é tão imensa<br />
que fez sentido até o final do século XX.<br />
Estamos hoje em um período similar ao<br />
renascimento, e estamos diante da oportunidade<br />
de invenção de outras possibilidades<br />
de experiênciação (o que eu chamo<br />
de transumano: outros modos de subjetivação,<br />
para além do homem). Assim como<br />
Shakespeare (não um filósofo, não um<br />
cientista, mas um dramaturgo) inventou<br />
o humano, inventemos (nós) agora<br />
o transumano, que poderá habitar o futuro<br />
de modo absolutamente distinto do<br />
modus operandi que utilizamos nos últimos<br />
400 anos.<br />
4. Do seu ponto de vista, quais são as<br />
barreiras e riscos mais iminentes que a<br />
dramaturgia brasileira contemporânea<br />
precisa enfrentar?<br />
O grande desafio para a dramaturgia,<br />
hoje, é problematizar a idéia de trama, de<br />
conflito, de personagem (esteios do drama<br />
tradicional, ligados ideologicamente a uma<br />
visão hegemônica acerca da condição humana),<br />
e, promovendo o desenvolvimento<br />
de uma obra com outras bases, conseguir<br />
fazer com que ela se tensione, crie ruídos,<br />
deslocamentos, desdobramentos, em suma:<br />
fique de pé, proporcionando uma experiência<br />
estética inaugural que amplie nossas vivências<br />
para além da experienciação que a<br />
cultura nos proporciona.<br />
5. Como você vê a importância das<br />
oficinas de dramaturgia que você<br />
ministra?<br />
Estar formando técnicos que dominam<br />
uma meia dúzia de técnicas do século passado,<br />
que lidam com a condição humana<br />
sem levar em conta tudo o que já produzimos<br />
em todos os campos do conhecimento<br />
humano (sobretudo no século XX); estar<br />
buscando amestrar artistas em potencial<br />
para que realizem a peça bem-feita e tirem<br />
nota 9 na escolinha, isto é um assassinato<br />
neurótico da sensibilidade e da potência<br />
de muitos indivíduos, que poderiam e podem<br />
e devem florescer em direções insuspeitadas.<br />
Nenhuma arte se alimenta de si<br />
mesma – se não se tem um conhecimento<br />
profundo de filosofia, psicanálise, poesia,<br />
pintura, história da arte, linguística, continua-se<br />
lidando com as mesmas ideias e<br />
expectativas acerca do que seja a obra de<br />
arte, porque continua-se lidando com as<br />
mesmas ideias e expectativas acerca do que<br />
seja a condição humana. A informação destrói<br />
o seu próprio conteúdo, e é uma luta<br />
fazer com que nossas palavras não se tornem<br />
informação digerida. Porque não se<br />
trata de ensino, mas de uma anti-didática,<br />
anti-sistemática, na medida em que o que<br />
CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 165
<strong>Urdimento</strong><br />
166<br />
importa é desencadear processos criativos<br />
(incompreensões, entendimentos tortos ou<br />
mesmo equivocados de alguns conceitos<br />
são bem-vindos).<br />
6. Como você vê o papel do Estado no<br />
processo de construir e consolidar uma<br />
Dramaturgia brasileira Contemporânea?<br />
No Brasil, raras são as políticas culturais<br />
que se perpetuam. Isto é catastrófico,<br />
posto que a arte fica ao sabor de eventos,<br />
de vontades que variam ao sabor das circunstâncias.<br />
É imperioso que projetos bem<br />
sucedidos no campo do fomento e desenvolvimento<br />
artístico tenham continuidade,<br />
e se coloquem como mecanismos efetivos e<br />
estruturantes na construção de nossa produção<br />
criativa.<br />
7. Tem algo que você considera importante<br />
para complementar estas questões?<br />
E enquanto isso o naturalismo / realismo<br />
“sincero”, “despojado”, chegando<br />
às raias de um hiper-naturalismo anódino,<br />
infesta os palcos. Atores e diretores acreditando<br />
que esta é uma forma de tornar<br />
o teatro mais “próximo” do público contemporâneo...<br />
As pequenas subjetividades<br />
contemporâneas (subjetividades encarceradoras<br />
de qualquer movimento de reinvenção<br />
do humano) expostas sem “espetacularização”<br />
em cena - na verdade, apenas<br />
anodinia e desejo de vender uma imagem<br />
de sinceridade e singeleza (sem dimensão<br />
poética nenhuma) para o público. Quando<br />
se olha para a pintura moderna (de Iberê<br />
Camargo ou de Jackson Pollock ou de<br />
Barnett Newman ou de Cy Twombly), ou<br />
para a literatura de Antonio Lobo-Antunes<br />
ou de Herta Muller, quando se olha para<br />
a poesia de Robert Creeley ou de F. Holderlin,<br />
ou quando se lê Deleuze ou Derrida<br />
ou Lacan, entende-se porque o teatro não<br />
pode, na maior parte das vezes, ser levado<br />
a sério no debate artístico. Ao mesmo tem-<br />
po, existe uma parcela (ainda) subterrânea<br />
da produção dramatúrgica contemporânea<br />
que está, sim, na ponta, e eu diria que está<br />
mais na ponta que todas as outras artes na<br />
contemporaneidade. Esta parcela está para<br />
vir à tona, nos próximos anos, em escala internacional.<br />
Mas a maior parte do que se vê<br />
nos palcos ainda é tão figurativo e hegemônico<br />
(hegemônico em essência, no sentido<br />
de que não problematiza nenhum dos pilares<br />
do que entendemos por humanidade).<br />
No campo da criação artística, ninguém<br />
impede ninguém de nada, a não ser<br />
o próprio artista. Não, não somos reprodutores,<br />
e é justamente contra esta instância<br />
(de reprodução de sistemas formais reconhecíveis)<br />
que se grita aqui. Ainda que<br />
idéias novas não signifiquem nada fora de<br />
uma prática, de um fazimento, haja vista<br />
que o teatro não é uma arte conceitual. E<br />
sim, é preciso suportar a imensa ansiedade<br />
advinda do fato de que, em processos<br />
de criação, não vai se obter resultados rápidos;<br />
quando não suportamos esta ansiedade,<br />
fazemos uso de procedimentos<br />
conhecidos e funcionais e clichês. Quando<br />
a suportamos, criamos a possibilidade de<br />
invenção de sistemas de relações formais<br />
fundantes. É verdade que o problema é a<br />
compreensão da realidade (do que seja “realidade”).<br />
E é verdade também que o estilo<br />
realista vende uma imagem de realidade<br />
bem específica, que veio a ser comprada,<br />
inclusive, como sendo “a” realidade, como<br />
se o real não fosse construído todo o tempo<br />
por nós (cada real é conformado por um<br />
jogo de linguagem específico). Neste sentido,<br />
o realismo é um problema; mais ainda<br />
a partir do momento em que foi assimilado<br />
pelos mass media, que propagam (vendem)<br />
para milhões de pessoas uma determinada<br />
idéia acerca do que seja a humanidade,<br />
baseada em sensações catalogadas e modus<br />
operandi psíquicos recorrentes (imagem<br />
esta que é comprada, inadvertidamente,<br />
até pelo teatro). Toda técnica traz consigo<br />
uma visão de mundo; se me utilizo de uma<br />
técnica, estou veiculando (e vinculado a)<br />
uma visão de mundo, e estou soterrando<br />
em mim a possibilidade de conquista de<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Entrevista com Roberto Alvim<br />
uma visão de mundo singular, e a possibilidade<br />
de invenção de novas técnicas (isto<br />
é o que é próprio da arte). O realismo é baseado<br />
no desvelamento, como se houvesse<br />
uma verdade por baixo de tudo, verdade<br />
esta que, uma vez vindo à tona, libertará<br />
(ou desgraçará) a todos (vide Ibsen ou Tennessee<br />
Williams). Também é ancorado na<br />
idéia de um sujeito uno. É um estilo que<br />
se pauta pelo diálogo, como se pudéssemos<br />
acreditar no diálogo (sem problematizações).<br />
Enfim, são tantos os pontos de<br />
ignorância profunda que norteiam este estilo,<br />
que só alguém que ignora toda a revolução<br />
dos signos perpetrada pela arte e<br />
pela filosofia no século XX pode continuar<br />
levando-o a sério. Mas não é fácil sair-se<br />
(escapar-se) de seus fundamentos: mesmo<br />
em estéticas ditas pós-dramáticas, cria-se outros<br />
contextos, tudo parece ser uma outra<br />
coisa, mas o ser humano é sempre o ser humano<br />
realista: hiper-psicológico. E é contra<br />
isto, exatamente, que se deve lutar: contra<br />
esta idéia acerca do que seja a vida, e não<br />
contra este ou aquele estilo (embora seja<br />
óbvio que o estilo realista nunca será capaz<br />
de trabalhar para além do sujeito, porque<br />
se o fizer já não será mais realismo). Estas<br />
proposições só poderão realmente se abrir<br />
quando textos que não trabalham com uma<br />
idéia estagnada de vida forem publicados e<br />
encenados, neste nosso século XXI. Aí se fisicalizará<br />
outra(s) opção(ões), com a potência<br />
de experiências estéticas imprevisíveis,<br />
como aconteceu com o próprio realismo<br />
de Ibsen e Tchekov quando do seu surgimento<br />
(insuspeitado naquele período, final<br />
do século XIX/início do século XX). Sem a<br />
problematização radical de todos os esteios<br />
fundamentais das dramáticas estabelecidas,<br />
quais sejam: a personagem (uma determinada<br />
idéia de sujeito estável); o conflito<br />
(como ferramenta para gerar mudança,<br />
isto é, saltos quantitativos gerando saltos<br />
qualitativos); e a narrativa [que não pode<br />
mais existir em primeiro plano, como sentido<br />
(e mecanismo estruturador) da obra,<br />
haja vista que a narrativa está para o teatro<br />
como a figura está para a pintura]; sem a<br />
problematização radical destes esteios, e o<br />
soerguimento de obras que se tensionem<br />
em outras bases, fundadas em outros solos,<br />
não se avançará um milímetro, porque se<br />
permanecerá no mesmo terreno existencial.<br />
Promover mudanças na construção dos<br />
edifícios sem mudar o solo sobre o qual<br />
estas construções se apoiam é uma falácia,<br />
que só engana a quem não percebe o teatro<br />
(e a vida) em profundidade. Não é apenas<br />
de multiplicidade do sujeito que se está<br />
falando aqui, mas da constituição de outros<br />
modos de subjetivação não-humanos,<br />
através de arquiteturas linguísticas outras.<br />
Não tem nada a ver com o sujeito e suas<br />
várias facetas em co-habitação psicológica...<br />
É no estilo realista que a tal “imagem<br />
e semelhança”, o homem como “topo da<br />
criação”, é mais forte. Porque no realismo<br />
tudo em cena é sobre a vida dos homens.<br />
Esta hierarquia na qual uma idéia de humano<br />
está no topo, em relação às outras<br />
formas de imaginarmos e experienciarmos<br />
a vida... Porque são estes outros modos de<br />
subjetivação que interessam agora, e não<br />
o homem e seus relacionamentos idiotas.<br />
Outras formas de experienciarmos a vida,<br />
através de outras arquiteturas linguísticas<br />
(que promovem outras habitações), para<br />
além dos homens discutindo em sua linguagem<br />
hegemônica na sala de estar.<br />
Devemos, finalmente, nos permitir experienciarmos<br />
o mundo através dos olhos<br />
de um pássaro.<br />
Porque o transumano não é uma coisa;<br />
o transumano é o fim de uma coisa, e<br />
a abertura de desconhecidas veredas infinitas.<br />
É o teatro não como descoberta do<br />
passado ou diagnóstico do presente, mas<br />
como invenção do futuro – AQUIAGORA.<br />
CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 167
Odisseia (2011) Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Paulo Balardim. Odisseu e Calipso. FOTO: Nina Medeiros.<br />
TRADUçõES
N° 18 | Março de 2012<br />
Resumo<br />
Este escrito tem por objetivo expor e analisar elementos de<br />
um método de improvisação para a formação do ator. Tais<br />
elementos visam a apresentar ao leitor exercícios práticos<br />
e a proporcionar-lhe um meio de reflexão sobre problemas<br />
decorrentes do trabalho de atuação. É enfatizada a necessidade<br />
de o ator “sentir” antes de procurar expressar, “olhar” e “ver”<br />
antes de descrever, “escutar” e “ouvir” antes de responder ao<br />
interlocutor. A improvisação é aqui considerada como fonte<br />
de expressão essencialmente binária, na qual “Voz do mundo”<br />
e “Voz de si mesmo” se completam. Ela também é vista como<br />
uma arte coletiva, na qual o uso da máscara tem importância.<br />
PALAVRAS-ChAVE: Improvisação – Exercícios de<br />
máscara – Charles Dullin<br />
Résumé<br />
Cet écrit a pour but d´exposer et d´analyser certains eléments d´une méthode<br />
d´improvisation em vue de la formation de l´acteur. Ces éléments<br />
présentent au lecteur dês exercices pratiques et permettent de réfléchir<br />
sur certains problèmes concernant le jeu de l´acteur. Il est mis l´accent ici<br />
sur le besoin de “sentir” avant que de chercher à exprimer, “regarder”<br />
et “voir” avant de décrire, “écouter” et “entendre” avant de répondre à<br />
l´interlocuteur. L´improvisation est ici considérée comme étant une source<br />
d´expression essentiellement binaire, où “Voix Du monde” et “Voix de<br />
soi-même” ne font qu´un. Elle y est vue aussi comme étant un art collectif,<br />
où le port du masque trouve sa place.<br />
MOTS CLÉTS: Improvisation – exercices du masque – Charles Dullin<br />
1 Oringalmente publicado in DULLIN, Charles. Souvenirs et notes de travail d´un acteur [Lembranças e Notas de<br />
Trabalho de um Ator]. Paris: Odette Lieutier, 1946, p. 109-131. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO, professor<br />
do Programa de Pòs-Graduação em Teatro da UDESC.<br />
2 Charles DULLIN (1885-1949): ator, encenador e teórico francês. Considera o teatro como uma força de regeneração<br />
social e cultural. Trabalhou na companhia de André Antoine, no Teatro Odeon (1906); ingressou no Teatro das Artes<br />
em 1910, onde cria o papel de Smerdiakov (Os Irmãos Karamazovi) em 1911. Participou da fundação do Teatro do<br />
Vieux-Colombier (1913) e atuou sob a direção de Jacques Copeau até 1919. Abriu seu próprio teatro-escola, L´Atelier,<br />
em 1921. Fez parte do Cartel (1927), juntamente com Jouvet, Baty e Pitoëff. Em 1940, deixou L´Atelier e assumiu a<br />
direção do Teatro da Cidade (ex-Sarah Bernhardt), onde criou As Moscas, de J.-P. Sartre. – Pregou um teatro que não<br />
fosse imitação da vida, mas sua transposição. – Por sua escola e por seus espetáculos, Dullin influenciou atores como<br />
Jean-Louis Barrault, Antonin Artaud, André Barsacq, Roger Blin, Jean Marais, Jean Vilar.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Improvisação 1<br />
Charles Dullin 2<br />
IMPROVISAçãO 171
<strong>Urdimento</strong><br />
172<br />
Agora, meu caro, vou lhe oferecer<br />
não um método pedagógico,<br />
habilmente estabelecido, mas os<br />
elementos de um método, que<br />
poderão abrir para você horizontes<br />
novos e inesperados. Esse método,<br />
que pratico há vinte anos com os meus alunos,<br />
deu resultados; muitos jovens atores<br />
que você admira foram formados, em parte,<br />
por ele; muitas vezes foi feito um uso<br />
abusivo dele, desviado inconsideradamente<br />
da sua finalidade verdadeira, que é essencialmente<br />
escolar.<br />
Sirva-se dele com inteligência, não só<br />
como um exercício prático para lhe dar<br />
desenvoltura, «pertinência», naturalidade,<br />
mas como um meio de introspecção e uma<br />
fonte de meditações sobre os problemas<br />
que surgirão mais tarde a cada passo diante<br />
de você.<br />
Quando se fala em «Improvisação»,<br />
imediatamente se pensa na Commedia<br />
dell´Arte. Ora, o que entendo por «Improvisação»<br />
não é a renovação com uma forma<br />
moderna dessa arte desaparecida, mas um<br />
método vivo para ensinar a teoria e a prática<br />
do «Jogo Dramático» e favorecer o desenvolvimento<br />
da personalidade de cada<br />
aluno.<br />
O ensino corrente do teatro é em grande<br />
parte baseado no mimetismo; o aluno imita o<br />
professor, os mais velhos, e é assim que ele<br />
soçobra no artifício e no convencional.<br />
«A Improvisação» obriga o aluno<br />
a descobrir os seus próprios meios<br />
de expressão.<br />
Mediante alguns exemplos, vou tentar<br />
mostrar as vantagens desse método, que<br />
deveria ser considerado um complemento<br />
indispensável aos estudos comuns.<br />
Quando um aluno faz um teste, fora<br />
das qualidades que retêm a nossa atenção,<br />
que notamos, em geral? Uma voz mal<br />
colocada; uma dicção insegura; desajeitamento<br />
no andar, nas atitudes, nos gestos;<br />
precipitação na fala e uma falta de ritmo; a<br />
entonação aprendida como um papagaio,<br />
com apoio em certas palavras, que ele até<br />
se deu o trabalho de sublinhar com um lá-<br />
pis vermelho no texto, a vontade evidente<br />
de pôr tudo o que ele sabe da personagem<br />
em cada réplica. Ele nem sequer pensa na<br />
situação dramática ou cômica em que se<br />
encontra, mas, se viu a peça representada,<br />
faz esforço para imitar o ator cujo físico lhe<br />
disseram que ele tinha.<br />
Alguns exercícios muito simples de<br />
«improvisação» vão abrir os olhos do aluno<br />
para uma das leis fundamentais de nossa<br />
arte, cujo desconhecimento está na base de<br />
todos aqueles desajeitamentos; sentir antes<br />
de procurar expressar, «olhar» e «ver» antes<br />
de descrever o que se viu, «escutar» e «ouvir»<br />
antes de responder a um interlocutor.<br />
Esses exercícios serão baseados nas<br />
sensações que percebemos auxiliados pelos<br />
cinco sentidos. Aqui estão alguns deles<br />
como exemplo:<br />
Olhe uma paisagem...<br />
Siga o vôo de um pássaro no espaço.<br />
Deitado na relva, observe um inseto...<br />
Escute sinos, ao longe.<br />
Escute o passo de alguém que se aproxima<br />
de você.<br />
Escute uma conversa cujas palavras<br />
chegam indistintamente até você.<br />
Sinta um perfume agradável.<br />
Respire o ar fresco da manhã.<br />
Sinta um cheiro desagradável.<br />
Experimente o calor da água com a mão.<br />
Toque um pano rugoso.<br />
Toque um tecido sedoso, muito suave.<br />
Saboreie um fruto que você colhe de<br />
uma árvore.<br />
Deguste vinhos de diferentes colheitas.<br />
Beba uma bebida amarga.<br />
Essa lição infantil baseada na visão, na<br />
audição, no olfato, no tato, no paladar tem por<br />
objetivo obrigar o aluno a tomar contato com<br />
o mundo exterior, que chamaremos, para a<br />
clareza do que virá adiante, «Voz do Mundo».<br />
Mas eis que essa paisagem que você<br />
olha evoca uma lembrança da infância e o<br />
mergulha numa melancolia passageira.<br />
Os sinos que você ouve lembram o dobre<br />
triste dos funerais de um ser querido.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Charles Dullin<br />
Você pensa em dar a uma amiga o perfume<br />
que você está respirando, etc...<br />
A «Voz do Mundo» vai fazer com que<br />
surja na pessoa a voz que vem do interior<br />
do indivíduo e que chamaremos «Voz de si<br />
mesmo», e desse encontro nascerá «a expressão».<br />
Vemos imediatamente que a improvisação<br />
é binária em sua essência, e, conseqüentemente,<br />
na sua aplicação prática, por<br />
causa dessa dupla corrente que vem do interior<br />
do indivíduo (voz de si mesmo) e da<br />
que vem do exterior do mundo e das coisas<br />
(voz do mundo), a qual, encontrando a contracorrente<br />
interior e individual, o estimula<br />
e o fecunda, e até o cristaliza. Chega um<br />
momento em que ocorre a síntese e é então<br />
que se pode passar à aplicação prática daquela<br />
operação que, é bom lembrar, é feita<br />
em dois tempos: Expressar.<br />
A improvisação é, portanto, uma ação<br />
que se realiza em dois tempos: primeiro tempo,<br />
conceber até à possibilidade extrema,<br />
depois, segundo tempo: expressar com tanta<br />
força quanto se pode; e tal ação é em si<br />
mesma de essência binária, visto que exige:<br />
— Busca de si mesmo.<br />
— Confrontação desse «si mesmo»<br />
com o mundo exterior.<br />
Quais são os elementos do «Si mesmo»<br />
sobre os quais vamos insistir, corrigindo<br />
o trabalho do aluno? Primeiro, tudo o que<br />
constitui a sua «personalidade», os seus dons<br />
particulares, a sua sensualidade artística, a<br />
sua sensibilidade.<br />
No início, tudo isso muitas vezes está<br />
mascarado pela timidez, pelo pudor, pela<br />
contração; é preciso pacientemente deixar<br />
o aluno com confiança e ao mesmo tempo<br />
exigir dele uma sinceridade total...<br />
Quanto aos elementos que vêm de fora,<br />
com os quais essa personalidade deve se<br />
encontrar, serão eles as sensações, as impressões<br />
físicas, estéticas, geográficas, morais, etc.,<br />
etc. — e, por fim, de natureza totalmente<br />
diferente, as emoções.<br />
Levando em conta os limites deste estudo,<br />
é impossível para mim enumerar todos<br />
os exercícios preparatórios. Portanto,<br />
escolhi, como exemplo, um tema que agrupa<br />
certo número deles. Eu o decomponho<br />
na ordem do trabalho a executar:<br />
1º Dois namorados chegam à cena. Caminham<br />
ternamente enlaçados; respiram<br />
confiança, alegria interior sem<br />
mistura; tudo é belo em torno deles.<br />
Vêm sentar-se a um banco encostado<br />
numa grande parede nua.<br />
2º Atrás desse muro imaginário existe<br />
o pátio de uma prisão. Conduzidos<br />
por um guarda, prisioneiros vêm caminhar<br />
em círculo. (Silhuetas dos prisioneiros,<br />
do guarda, atmosfera.)<br />
3º Os namorados percebem o lugar<br />
em que se encontram.<br />
4º A ronda continua.<br />
5º O homem sobe no banco para olhar<br />
por cima da parede.<br />
Impressão penosa que se comunica à<br />
moça, sem que ela ouse olhar.<br />
6º A ronda continua, sinistra.<br />
7º Essa indigência humana aproxima<br />
por um instante os namorados, um<br />
pouco mais ainda, mas joga sobre a<br />
alegria deles um véu de tristeza. Tudo<br />
se torna feio à sua volta; eles se afastam<br />
silenciosos.<br />
8º A ronda continua... Um dos prisioneiros<br />
cai, extenuado. Os outros param.<br />
Olhares hostis para o guarda.<br />
IMPROVISAçãO 173<br />
Fim.<br />
Esse exercício de conjunto permitirá<br />
que se abram os olhos do aluno para uma<br />
multidão de problemas: a descontração muscular,<br />
a caminhada, a atitude, o ritmo, o olhar,<br />
que, após ter escrutado o mundo exterior,<br />
se volta para o mundo interior e lhe traz<br />
seu alimento: o drama.<br />
Mas cada uma dessas partes deverá ser<br />
objeto de um trabalho prático, tão regular,<br />
tão preciso quanto os exercícios de ginástica<br />
ou de dança clássica. Acabo de aludir<br />
à caminhada, à atitude, ao ritmo e à des-
<strong>Urdimento</strong><br />
174<br />
contração. Todo e qualquer ator que tenha<br />
experiência conhece a importância desses<br />
elementos da nossa técnica.<br />
Talvez você pense que é uma idéia estranha<br />
ensinar um aluno a olhar, a ver um<br />
objeto, a prestar ouvidos ao que os outros<br />
dizem ou aos ruídos do exterior, a tocar um<br />
objeto para sentir a sua matéria ou a suavidade<br />
ou a rugosidade que possui, a reconhecer<br />
um cheiro, a sentir o gosto... Será<br />
que ele não faz isso todos os dias da sua<br />
vida, da manhã à noite, e será que não o<br />
fará daqui a pouco tão facilmente, na cena<br />
de um teatro? Não... Esses atos quotidianos<br />
são inclusive aqueles que ele vai pôr o maior<br />
tempo para realizar corretamente. Quantos<br />
atores sabem «escutar»? E isso é pelo menos<br />
tão importante quanto saber falar. O mesmo<br />
ocorre quanto a «ver», quanto a «tocar»<br />
um objeto. Quanto à caminhada, pode-se<br />
afirmar que nem um só principiante sabe<br />
caminhar em cena. Convém fazer com que<br />
executem exercícios do tipo dos seguintes:<br />
Caminhar na rua passeando...<br />
Ir rapidamente de um ponto a outro...<br />
Caminhar dentro do quarto...<br />
Caminhar na neve...<br />
Caminhar na areia de uma praia,<br />
etc., etc.<br />
A vantagem da Improvisação reside<br />
em que, seguindo um método gradativo,<br />
podem-se desvendar os defeitos de um<br />
aluno e tentar corrigi-los imediatamente,<br />
inventando o exercício que lhe convém. De<br />
modo geral, o inimigo nº 1 é a «contração»:<br />
ela equivale a uma espécie de semiparalisia.<br />
No ator de ofício, a contração vem, no mais<br />
das vezes, da preocupação que ele tem com<br />
o «público»... Que será que o público vai<br />
pensar dele? Ao se absorver no jogo é que<br />
conseguirá se descontrair... Quer dizer: ao<br />
opor ao fator de perturbação trazido pela<br />
«Voz do Mundo» a «Voz de si mesmo».<br />
Eu já disse que era esse o próprio princípio<br />
da improvisação... Mas a contração nem sempre<br />
é ditada pela vaidade: ela pode ser ditada<br />
por um pudor muito apreciável, muito<br />
sincero; os verdadeiros «apaixonados» são<br />
aqueles que no início sofrem mais com essa<br />
maldita contração, a ponto de serem muitas<br />
vezes acusados de frieza. O uso da meiamáscara<br />
nos exercícios muitas vezes dá um<br />
resultado apreciável. A timidez é, então,<br />
parcialmente vencida: o aluno acredita estar<br />
protegido; ele «ousa». Escolhidos tanto<br />
quanto possível fora da realidade quotidiana,<br />
exercícios contribuirão para o «liberar».<br />
Dou um exemplo disso. Nós o chamaremos<br />
de «descoberta do mundo»:<br />
«Faça um esforço para esquecer o<br />
mais possível do seu corpo e do<br />
seu peso.<br />
Estendido no chão, com o rosto coberto<br />
por uma meia-máscara, relaxe, procurando<br />
o aniquilamento total.<br />
Um vento leve roça o seu rosto, corre<br />
sobre o seu corpo; você abre os olhos e<br />
«descobre» o mundo: o céu, a terra, a vegetação;<br />
Conforme o seu temperamento, sentirá<br />
uma sensação de plenitude, de alegria ou<br />
de força, ou até de terror. Você se levantará<br />
ainda pesadamente, com as pernas presas<br />
no chão; no céu nuvens passam; vem a vontade<br />
de as alcançar ou o medo do mistério;<br />
Você vê uma fonte, aproxima-se dela, a<br />
água lhe devolve a sua imagem; você quer<br />
pegar a imagem, a água lhe foge por entre<br />
os dedos...<br />
O sol se mostra e o ofusca...<br />
O sangue que circula em suas veias, a<br />
vida que sente dentro de si o levam a reações<br />
físicas violentas; você se desprende da<br />
terra e improvisa uma dança...»<br />
São tantas as dificuldades desse exercício<br />
que a sua realização é raramente satisfatória,<br />
mas o esforço que exige do aluno<br />
desperta nele reflexos que o farão progredir<br />
rapidamente.<br />
Ao mesmo tempo em que leva à descontração,<br />
um exercício desse tipo vai mostrar<br />
ao aluno a importância do Ritmo e da<br />
Plástica.<br />
Quanto ao curso de dicção, o aluno<br />
declama uma cena de tragédia ou recita<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Charles Dullin<br />
uma cena de comédia, se apoia num trabalho<br />
de memória; não tira quase nada de si<br />
mesmo... Na improvisação, ao contrário, o<br />
tempo e a medida lhe são dados pelo seu<br />
próprio mecanismo, que ele põe em movimento;<br />
não pode escapar à lei do ritmo;<br />
bem melhor: depois de ter sentido a sua<br />
importância, chegará rápido a explorá-la; já<br />
não conseguirá tolerar o vazio dentro dele,<br />
ou a inércia dos seus membros; já não fará<br />
esta pergunta absurda que vem aos lábios<br />
de tantos atores, assim que não têm nada<br />
para dizer: «Mas... estou bloqueado, que<br />
devo fazer?» Ele sente que a pessoa fica<br />
bloqueada quando se põe fora do jogo não<br />
vivendo a sua personagem, nos silêncios e<br />
no diálogo. Compreende que o ritmo vivifica<br />
a própria imobilidade, porque comanda<br />
as nossas pulsações, e se manifesta tanto<br />
numa crispação dos dedos da mão quanto<br />
no salto do dançarino; de agora em diante<br />
sentirá a necessidade do ritmo na palavra<br />
como no gesto.<br />
Para favorecer o desenvolvimento do<br />
sentido do ritmo, a maioria dos exercícios<br />
que se inventam são utilizáveis, considerando-os<br />
por esse ângulo particular; no entanto,<br />
é bom variar-lhes a natureza para habituar<br />
o aluno a pôr ritmo em tudo o que faz...<br />
Você caminha com um sentimento de<br />
alegria interior profunda...<br />
Você pára; se levanta...Torna a caminhar.<br />
(As mudanças de atitude não devem perturbar<br />
o ritmo.)<br />
Você caminha dominado por um sentimento<br />
de tristeza... Pare... Sente-se... Caminhe<br />
de novo...<br />
Aí, é a «Voz de si mesmo» que comanda<br />
o ritmo e o preserva de uma agitação<br />
gratuita... Você encontrará no andar dos<br />
animais exemplos excelentes:<br />
Movimento contínuo do felino... (Ritmo<br />
em todo o corpo.)<br />
O gato que espreita um rato... e... pula<br />
sobre ele... (Não deixar o aluno imitar o gato,<br />
mas estimulá-lo a traduzir as imagens por uma<br />
plástica humana.)<br />
Procure exemplos na própria natureza:<br />
«Um caniço balançado pelo vento»;<br />
Na vida quotidiana:<br />
«Você espera alguém lendo... De<br />
vez em quando olha para a porta...<br />
Depois de um tempo... batem...<br />
Você se precipita para abrir...»<br />
Esse exercício o levará a chamar a atenção<br />
do aluno para a «Noção de tempo»...<br />
que, evidentemente, está intimamente ligada<br />
à noção de ritmo. A medida do tempo está<br />
subordinada ao interesse e à intensidade dramática...<br />
Ela é difícil de adquirir no teatro pelo<br />
fato de não ser a mesma da vida:<br />
Escreva uma carta de ruptura... Como<br />
você o faria na vida;<br />
Escreva a mesma carta durante uma<br />
pequena improvisação num tempo possível<br />
no teatro...<br />
A tendência do ator é, em geral, encurtar,<br />
passar rapidamente de uma idéia a outra;<br />
por estar em cena, esquece os valores<br />
reais.<br />
Para lhe lembrar tais valores, é preciso<br />
insistir em exercícios simples...<br />
«Debruçado sobre um poço, deixe<br />
cair uma pedra. Calcule instintivamente<br />
o tempo da queda...»<br />
Quando o aluno tiver captado bem essa<br />
noção de tempo vinculada intimamente à<br />
de ritmo, e que na maior parte dos casos a<br />
comanda, aproveite esse mesmo exercício<br />
para chamar a sua atenção para a plástica.<br />
Aí , a «improvisação» é de longe o melhor<br />
treinamento para adquirir uma plástica<br />
de natureza teatral.<br />
O aluno que executou o exercício da<br />
descoberta do mundo recorreu imediatamente<br />
a atitudes convencionais ou, se tiver<br />
um pouco de talento para a dança, ter-se-á<br />
inspirado mais ou menos numa técnica de<br />
dançarino; ora, a plástica que convém ao<br />
teatro não é a que convém para a dança,<br />
assim como a ciência do cantor não o é para<br />
a do ator.<br />
IMPROVISAçãO 175
<strong>Urdimento</strong><br />
176<br />
Se o circo e o music-hall herdaram a tradição<br />
dos bufões e dos improvisadores da<br />
Commedia dell´Arte (o cantor cômico atribui<br />
importância tão grande às suas atitudes<br />
quanto à sua voz), com demasiada freqüência<br />
o ator de teatro é amorfo; o desejo<br />
de aparecer em cena tal qual é na vida faz<br />
com que não ouse se comportar em cena de<br />
modo diferente que na vida privada. Essa<br />
plástica de teatro vai da atitude nobre da<br />
tragédia à caricatura grotesca.<br />
A improvisação vai-lhe revelar primeiro<br />
a sua utilidade e lhe impor o seu uso. Ela<br />
o obrigará a primeiramente compor toda<br />
silhueta por dentro (voz de si mesmo), enquanto<br />
a arte da dança conduz o gesto pela<br />
simples beleza do gesto. Entretanto, a necessidade<br />
de estilizar gestos quotidianos ou de<br />
expressar um sentimento por uma atitude<br />
fará com que busque expressões corporais<br />
próprias à arte do ator, que não serão redundantes<br />
em relação à palavra, e ao mesmo<br />
tempo realçarão as suas composições.<br />
Para desembaraçar o aluno nessa pesquisa,<br />
dê a ele exercícios muito simples,<br />
mas que vão apelar para a sua imaginação:<br />
Uma rua às 5 horas da manhã...<br />
Cada aluno deve inventar uma silhueta<br />
de personagens que são encontráveis nas<br />
ruas de Paris por volta dessa hora, «aqueles<br />
que se dirigem para o trabalho...»<br />
«Aqueles que estão saindo do trabalho...»<br />
«Folgazões, mendigos, etc...»<br />
Insistir, passando pela influência da<br />
atmosfera (contribuição exterior, Voz do<br />
Mundo):<br />
A mesma rua ao meio-dia, num dia de<br />
verão muito quente...<br />
Às seis horas da tarde, no fim da jornada...<br />
Dê elementos de silhueta:<br />
«Tensão do surdo» que procura ouvir.<br />
«Modo de olhar de um míope... »<br />
«A caminhada de um vaidoso...»<br />
«De um manequim de casa de alta costura.»<br />
Passe depois para uma fonte de inspirações<br />
quase inesgotável: as silhuetas de<br />
animais.<br />
Um dia, alguém perguntava ao arlequim<br />
Thomazi em que escola ele havia<br />
aprendido a utilizar o corpo com tanta<br />
graça, e ele respondeu: «Olhando os gatos<br />
pequenos brincarem»...<br />
Para esses exercícios, cubramos a parte<br />
superior do rosto com uma meia-máscara,<br />
para deixar todo o valor expressivo<br />
para a silhueta.<br />
Já a utilizamos para o ritmo do caminhar<br />
dos felinos...<br />
Entreguemo-nos, agora, a improvisações<br />
a partir do «cisne», do vôo da andorinha,<br />
da águia que paira, do pato, do peru.<br />
O sucesso da apresentação de As Aves<br />
e, mais tarde, de Plutus, no Atelier [Ateliê]<br />
foi em grande parte baseado nesse treinamento<br />
específico, que permitiu que eu<br />
desse ao coro de Aristófanes todo o seu<br />
valor poético.<br />
Para fecundar a imaginação dos alunos,<br />
faça com que leiam entre dois exercícios<br />
poemas ou fábulas de La Fontaine.<br />
Encene uma fábula de La Fontaine... Nunca<br />
tolere a imitação pueril. A fim de fazer<br />
com que seja bem compreendido o vínculo<br />
entre a plástica e o sentimento dramático,<br />
proponha um exercício do tipo deste:<br />
«No verão, na neve. Uma coruja se aproxima<br />
de uma casa, atraída pela luz. A luz<br />
a ofusca. Ela se apaga. A coruja fica sozinha.<br />
Vai morrer. Morre».<br />
Atingimos aqui a arte da pantomima.<br />
Devemos, no entanto, permanecer no plano<br />
teatral, a fim de não nos perdermos misturando<br />
os gêneros. A pantomima tem leis próprias,<br />
regras próprias. Deve expressar tudo<br />
pelo gesto. Pode, deve até, como a dança, se<br />
compor de fora. Ela é o drama inteiro. No teatro,<br />
a plástica está a serviço do drama interior; sua<br />
qualidade, sua raridade dependem dessa nuança<br />
judiciosamente observada. Para obter<br />
tal resultado, repito, o aluno deve ater-se paralelamente<br />
a um treinamento corporal: dança<br />
clássica, sapateado, esgrima, pantomima pura.<br />
Esse treinamento deve ser o equivalente da<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Charles Dullin<br />
dicção mecânica: deve servir para prepará-lo,<br />
para flexibilizá-lo — é um meio, não um fim.<br />
Há pouco chamei a atenção para o interesse<br />
em usar a meia-máscara nos exercícios<br />
plásticos. Dei razões práticas para isso:<br />
1º Proteger o aluno da timidez, favorecer<br />
a sua descontração;<br />
2º Incitá-lo a utilizar todo o corpo para expressar.<br />
A seguir, trataremos, com a improvisação,<br />
do estudo da máscara de teatro. Nem<br />
o trabalho nem os objetivos para serem alcançados<br />
são, aqui, os mesmos.<br />
Uma máscara tem uma vida própria,<br />
que, aliás, nem sempre é a que o escultor<br />
quis dar a ela. Muitas vezes há algo que escapa<br />
ao criador. Pegue uma máscara bem<br />
feita: estude essa máscara em todos os aspectos,<br />
viva com ela; faça dela uma companheira,<br />
seja seu confidente. Nada me<br />
parece mais irritante do que ver um aluno<br />
pular em cima de uma máscara e usá-la<br />
como um vendedor de artigos de moda o<br />
faria com uma máscara de carnaval. Temse<br />
a impressão de um sacrilégio. Porque a<br />
máscara tem um caráter sagrado. Requer<br />
um público de iniciados. Na maior parte<br />
do tempo, a multidão só verá nela um tema<br />
de zombaria. Muitas vezes foi feito um uso<br />
inconsiderado de experiências de escola.<br />
Mas não se buscou mais longe. Quis-se voltar<br />
atrás, ressuscitar formas desaparecidas.<br />
Erro. O uso da máscara no teatro moderno<br />
não precisa ser descoberto, mas precisa ser<br />
criado inteiramente. Ele condiciona uma<br />
dramaturgia que ainda não encontrou o<br />
seu poeta. Nem o diálogo, nem o tom, nem<br />
o ritmo da nossa tragédia convêm a tentativas<br />
desse gênero.<br />
Na «improvisação», o objetivo que vamos<br />
perseguir é mais de ordem psicológica<br />
do que prática.<br />
O uso da «máscara» acarreta uma despersonalização<br />
forçada do ator.<br />
Até hoje, todos os nossos estudos, contrariamente<br />
a isso, procuraram exaltar a<br />
personalidade do ator; tais estudos viveram<br />
com as suas próprias sensações, foram<br />
buscar a sua sensibilidade na forma mais<br />
direta. Vamos momentaneamente, e sem<br />
atacar essa personalidade profunda, pedir<br />
ao ator para fazer tabula rasa de todas<br />
as pequenas comiserações que ele possuía<br />
em relação a si mesmo, dos seus tiques,<br />
das suas manias, inclusive das suas amabilidades.<br />
Trata-se de uma espécie de «despojamento»<br />
que o preparará para uma arte<br />
mais objetiva e de maior envergadura.<br />
Exercícios de máscaras:<br />
Escolha uma máscara, dê essa máscara<br />
a um aluno, para que a estude fora da aula.<br />
Peça que procure primeiro o caminhar que<br />
lhe convém, a posição da cabeça, e, quando<br />
estiver pronto, mande-o executar os<br />
primeiros exercícios, chamando a atenção<br />
para a importância dos músculos da barriga.<br />
De fato: se você observar estampas de<br />
atores japoneses, perceberá que quase todas<br />
as atitudes são comandadas pelos músculos<br />
da barriga, e muitas vezes, ao fazer com que<br />
alunos trabalhassem, eu não podia me impedir<br />
de lembrar os conselhos daquele ator que<br />
fazia o papel principal nos melodramas, o<br />
qual me repetia fastidiosamente: «Enquanto<br />
você não souber se apoiar nos músculos da barriga,<br />
lhe faltará autoridade». Aquele ator certamente<br />
ignorava tudo sobre o teatro do Extremo<br />
Oriente, mas o seu ofício de «incendiário dos<br />
palcos» 2A havia feito com que reencontrasse<br />
uma velha lei, que vem, sem dúvida, das eras<br />
mais recuadas do teatro.<br />
Tema de improvisação com máscara:<br />
«Você é obrigado a atravessar uma torrente<br />
de montanha. Você luta contra a corrente.<br />
Você supervalorizou as próprias forças:<br />
a corrente o está arrastando. Você luta<br />
desesperadamente, perde pé. Você se afoga».<br />
Encontro à margem do meu livro de<br />
bordo da escola: este exercício foi executado<br />
pela primeira vez por Antonin Artaud e<br />
por Marguerite Jamois. Nessa mesma aula,<br />
2A «Brûleur de planches»: aquele que atua com um arrebatamento<br />
comunicativo. ― Nota do Tradutor.<br />
IMPROVISAçãO 177
<strong>Urdimento</strong><br />
178<br />
Marguerite Jamois fazia uma improvisação<br />
plástica inspirada por «La Violette» [A<br />
Violeta]. Ele foi retomado alguns anos mais<br />
tarde por Jean-Louis Barrault.<br />
No trabalho da máscara, o aluno-ouvinte<br />
deve poder tirar por si indicações preciosas<br />
do que vê: os graus de inclinação da<br />
máscara, a direção do olhar, a importância<br />
do primeiro plano que de repente o mínimo<br />
gesto pode adquirir. Ele captará facilmente o<br />
mecanismo particular para o qual todos os<br />
centros de atividade estão deslocados. É raro<br />
que o aluno um pouco prendado não se apaixone<br />
por esses exercícios. Ele experimenta o<br />
seu caráter sagrado: um pouco de «magia»,<br />
um sentimento de grandeza, a atração do<br />
mistério, o ligam um pouco mais àquela arte<br />
do ator desonrada com excessiva freqüência<br />
por miseráveis tarefas de histrião.<br />
Eu disse, acima, que tais exercícios acarretavam<br />
uma despersonalização forçada do<br />
ator. Sim, porque desta vez ele vai parcialmente<br />
compor a partir do exterior, como<br />
o dançarino que trabalha diante de um espelho<br />
grande: os movimentos já não serão<br />
comandados pelas próprias sensações, mas<br />
exigidos pela «máscara», que substitui a<br />
personalidade dele pela dela.<br />
É a arte de composição por excelência:<br />
o ator se tornará forçosamente mais objetivo,<br />
mais mestre da sua arte... Os tiques,<br />
os hábitos, as manias dele, que tinham um<br />
encanto na vida corrente, se dissolverão<br />
pouco a pouco e só reaparecerão como materiais<br />
de construção e não como construções<br />
em si.<br />
*<br />
***<br />
Vimos que o ator tomou conhecimento<br />
de si mesmo; da sua personalidade despojada<br />
e profunda; e até pôde adquirir algumas<br />
luzes sobre a originalidade das suas aptidões,<br />
sobre a raridade dos seus dons.<br />
Aprendeu a não se isolar do mundo<br />
exterior e tangível (embora de convenção)<br />
que é a atmosfera viva de toda e qualquer<br />
arte; a rejeitar tudo o que pode ser imitativo<br />
puro (e, portanto, inoriginal e velho);<br />
adquiriu as noções que lhe permitirão ir até<br />
o limite extremo da expressão da sua perso-<br />
nalidade própria e finalmente acostumou<br />
essa personalidade e a levou ao encontro<br />
do «Drama» (contendo este em si tudo o<br />
que as propostas de exercício abrangiam, a<br />
saber: o mundo e os seus elementos, e a sua<br />
substância dramática). Nesse momento,<br />
ele poderá abordar com uma compreensão<br />
mais aguçada, com uma lucidez de artista,<br />
o estudo dos grandes dramas shakespearianos,<br />
do teatro grego, do teatro espanhol<br />
e do nosso patrimônio em toda a sua variedade<br />
de gêneros.<br />
Se, agora, eu me afastar um pouco do<br />
ensino prático e se procurar um interesse<br />
de ordem geral, direi que esse método de<br />
improvisação é o único que pode formar<br />
atores aptos para uma arte coletiva.<br />
Eu já disse tanto que «a Improvisação»<br />
não queria recomeçar a experiência dos<br />
Atores Italianos, que o teatro era uma arte<br />
completa em si, que não se deviam misturar<br />
os gêneros, a tal ponto que agora posso<br />
me permitir voltar às próprias fontes que me<br />
inspiraram no decorrer desses trabalhos e influenciaram<br />
indiretamente todas as minhas<br />
realizações teatrais: a Commedia dell´Arte, os<br />
teatros do Extremo Oriente e o Cinema.<br />
Tenho o prazer de notar que quando<br />
Riccobini 3B , «o reformador», queria expulsar<br />
da cena os histriões que então a desonravam,<br />
se atinha ao próprio princípio da<br />
Commedia dell´Arte, mas apesar disso reservava<br />
a escola da improvisação para formar verdadeiros<br />
atores.<br />
É muito provável que Luigi Riccobini<br />
tivesse razão quando empreendeu essa<br />
cruzada contra os histriões da Commedia<br />
dell´Arte, então em decadência: tratava-se<br />
duma arte tão ligada à compleição de cada<br />
ator que teria de sofrer, mais cedo ou mais<br />
tarde, a sina de todo corpo vivo: um nas-<br />
3 B A edição de 1946 traz a grafia Riccobini, em vez de Riccoboni, a cada vez que<br />
o nome é citado. —Trata-se de Luigi Riccoboni (Módena,1676 – Paris, 1753).<br />
Ator e escritor italiano da primeira metade do século XVIII. Seu nome artístico<br />
era Lélio. Figura de ator-intelectual, chefe de companhia do Teatro Italiano<br />
em Paris. Autor de Dell´arte rappresentativa. Pedagogia e critica<br />
di un comico italiano a Parigi [Da Arte Representativa. Pedagogia e<br />
critica de um cômico italiano em Paris], livro publicado em Londres, em 1728;<br />
de Nouveau Théâtre Italien [Novo Teatro Italiano]; de Lettre d´un<br />
comédien français au sujet de l´histoire du Théâtre Italien<br />
[Carta de um ator francês sobre a história do Teatro Italiano]. No início do<br />
século XVIII, L.R. queria reformar o teatro italiano e equipará-lo em qualidade<br />
aos teatros francês, inglês e espanhol. Afastou-se da figura do ator italiano<br />
bufão de corte, mas foi obrigado pelo público – habituado com os arlequins – a<br />
retomar os roteiros antigos. — Nota do Tradutor.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Charles Dullin<br />
cimento nos vagidos e numa semiconsciência,<br />
uma adolescência impetuosa, irresistível<br />
em seus ímpetos, uma maturidade<br />
consciente da força e da sabedoria adquirida,<br />
e depois a velhice... A velhice do Velho<br />
Saltimbanco descrito por Baudelaire: «em<br />
cuja tenda já não se entra».<br />
Bufões, farsantes, atores nômades,<br />
herdeiros dos mimos antigos e das Atelanas<br />
se reúnem: formam uma coletividade<br />
de atores que vai criar uma forma de arte<br />
dramática na qual a participação particular<br />
de cada um se fundirá no conjunto. Provenientes<br />
de diversas províncias, essas personagens<br />
bastante informes inicialmente, que<br />
nem sequer falam o mesmo dialeto, se aperfeiçoam,<br />
se esmeram, se enriquecem; com<br />
roteiros inspirados no teatro escrito, ou no<br />
folclore popular, improvisam; num quadro<br />
fixo de caracteres bem definidos, dão livre<br />
curso à imaginação, à fantasia. Enquanto<br />
se esqueceram os nomes de quase todos os<br />
atores da Comédia escrita, famílias inteiras<br />
de «improvisadores» estão ligadas à história<br />
do teatro durante mais de dois séculos;<br />
depois do crescimento laborioso dessa arte<br />
nova, eis a aparição irradiante e quase irreal<br />
de uma Isabela Andreini, a do Arlequim<br />
Dominique, a do Pantaleão Antonio Riccobini,<br />
a do apaixonado Silvio Calderoni<br />
e a de tantos outros; a arte se desenvolve<br />
e se decanta; os figurinos se embelezam, a<br />
plástica se torna cada vez mais rara. Estão<br />
vivas as imagens que, na seqüência, inspiraram<br />
tantos poetas: deambulam pela<br />
Europa toda para levar a todos os países a<br />
sua mensagem... Depois... a coletividade se<br />
desagrega; o público se cansa; é o declínio,<br />
chega Molière... A comédia escrita triunfa...<br />
O último Arlequim de raça, Carlino, velho,<br />
desencantado, por volta de 1777 representa<br />
pobres paradas nos jardins do Trianon, sob<br />
o olhar indiferente das cortesãs e dos criados<br />
de cozinha.<br />
O tempo passa; o mesmo milagre de<br />
arte coletiva se reproduz no cinema.<br />
Será que se pode não ver um parentesco<br />
íntimo entre a primeira companhia de<br />
Charlie Chaplin e uma dessas companhias<br />
da Comédia Italiana?<br />
Mas sendo uma arte nova, o cinema<br />
não se abarrota com tradições: irá cada vez<br />
mais rumo a uma arte coletiva. É a sua força.<br />
Não faz isso para ser «moderno»: faz isso<br />
porque é moderno. No Cinema, o autor ou<br />
os autores do filme têm o seu lugar, o ator<br />
o dele; o operador e os seus auxiliares, maquinistas,<br />
eletricistas, o decorador — todos<br />
os artesãos trabalham sob a direção de um<br />
«mestre de obras», o encenador, que também<br />
está submetido a uma disciplina coletiva.<br />
Será que por isso a obra é impessoal?<br />
Não... Porque apesar de um mercantilismo<br />
odioso, apesar de combinações financeiras<br />
sórdidas, o cinema continua a ser, ainda assim,<br />
atualmente, uma arte cheia de possibilidades<br />
e de futuro.<br />
Eu o situo propositadamente entre a<br />
Commedia dell´Arte e o Teatro do Extremo<br />
Oriente, pois, em sua velha aristocracia,<br />
este último também é uma arte coletiva.<br />
Querer impor ao nosso teatro ocidental<br />
as regras de um teatro feito por uma longa<br />
tradição, que tem uma linguagem simbólica<br />
bem dele, seria um erro grosseiro, mas<br />
não tirar vantagem dos exemplos admiráveis<br />
de transposição ao mesmo tempo<br />
realista e poético, efeitos que ele extrai da<br />
plástica e do ritmo, seria absurdo.<br />
Em arte, todo o mundo pega a sua riqueza<br />
onde a encontra; é a escolha dos materiais<br />
e a utilização que ele consegue fazer<br />
deles que distingue o verdadeiro artista...<br />
O que nos importa, no momento, é que essas<br />
três formas de arte, de épocas diferentes,<br />
que já demonstraram o seu valor, são<br />
formas de arte coletiva.<br />
Se quiser encontrar a sua força e a sua<br />
originalidade, o Teatro do futuro não escapará<br />
a isso.<br />
Estamos sempre clamando por um gênio<br />
dramático, esperamos a cada temporada<br />
«um Messias».<br />
Temos certeza absoluta de que a forma<br />
que nós lhe oferecemos, em 1946, requer<br />
esse gênio? Temos certeza absoluta de que<br />
ele se sente chamado por uma arte que vive<br />
de repetições e, com muita freqüência, soa<br />
oco... A perspectiva de não ser compreendido,<br />
de não ver a sua obra representada, pelo<br />
menos em vida, não estimula o jovem autor<br />
para procurar obras novas.<br />
IMPROVISAçãO 179
<strong>Urdimento</strong><br />
180<br />
As disciplinas coletivas impostas pelo<br />
trabalho «de improvisação», ao mesmo<br />
tempo que a cultura individual, são meios<br />
excelentes para preparar o instrumento favorável<br />
à eclosão de um movimento teatral<br />
moderno.<br />
Para uma coletividade ter uma vida<br />
artística, é preciso que cada indivíduo que<br />
a compõe seja bastante educado para procurar<br />
a perfeição na parcela de colaboração<br />
que lhe está reservada. Não se trata de pedir<br />
ao ator para ser escritor, ao maquinista<br />
para ser encenador, mas ao ator que passe<br />
para o plano vivo o trabalho do escritor,<br />
sem lhe desnaturar o espírito; ao maquinista,<br />
para trazer todos os seus conhecimentos<br />
práticos para a realização do encenador —<br />
tudo isso, ademais, com aquele «algo» que<br />
vai fazer com que a obra teatral que se beneficia<br />
da contribuição de cada um se torne<br />
a obra de todos...<br />
Na organização social, cuja gestação é<br />
tão longa, tão mortífera, o teatro deve considerar<br />
fórmulas novas, se quiser manter o<br />
seu lugar.<br />
Entre as qualidades que a «improvisação»<br />
desenvolve no ator, a integração do<br />
esforço individual num trabalho coletivo é<br />
certamente um dos aspectos mais interessantes<br />
do problema, que posso apenas aflorar<br />
nos limites deste capítulo.]<br />
<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Charles Dullin
N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Entre fala e língua, drama e texto: reflexões<br />
acerca de uma discussão contemporânea 1<br />
Resumo<br />
O presente trabalho discute a pertinência da diferenciação<br />
entre escrita dramática e não-dramática e aponta a<br />
importância de práticas cênicas na criação dessa fronteira. A<br />
autora sugere que nas práti cas tidas como dramáticas, não<br />
se trabalha cenicamente com a linguagem, mas usa o texto<br />
como pré-texto do jogo ficcional. Por outro lado, as práticas<br />
não-dramáticas colocam no centro da atenção o impacto da<br />
estrutura lingüística sobre a percepção humana, bem como o<br />
palco enquanto espaço de expor esse trabalho interpelativo<br />
da língua sobre a percepção e consciência humana.<br />
PALAVRAS-ChAVE: Teatralidade textual – escrita<br />
teatral – teatro dramático – teatro pos-drámático<br />
Abstract<br />
This paper discusses to what extent it is pertinent to diferentiate<br />
between a dramatic and a non-dramatic writing. It points out<br />
the importance of theatrical practices in creating this distinction.<br />
The author suggests that in theatrical practices perceived as<br />
dramatic, language is not the main focus. It is put at the service<br />
of fictional play. On the other hand, non-dramátic practice focus<br />
the impact of linguistic structure on human perception as well<br />
as the stage as the space to expose this interpelation of human<br />
consciousness and perception through language.<br />
KEy wORDS: Textual theatricality – theatrical writing<br />
– dramatic theatre – postdramatic theatre<br />
1 Título original: “Zwischen Rede und Sprache, Drama und Text. Überlegungen zur gegenwärtigen<br />
Diskussion.“ In: BAYERDÖRFER, Hans-Peter et. al. Vom Drama zum Theatertext? Zur<br />
Situation der Dramatik in Ländern Mitteleuropas. Tübingen: Max Niemeyer, 2007. Tradução:<br />
Stephan Baumgärtel, professor do Departamento de Artes Cênicas e do PPGT/UDESC.<br />
Theresia Birkenhauer 1<br />
ENTRE FALA E LíNGUA, DRAMA E TEXTO: REFLEXõES ACERCA DE UMA DISCUSSãO CONTEMPORâNEA 181
<strong>Urdimento</strong><br />
O<br />
título da minha palestra é uma<br />
variação do título desse congresso,<br />
Do drama ao texto teatral?, ao<br />
liberar seus elementos do enquadramento<br />
inscrito neste, especialmente<br />
da relação de uma sucessão<br />
temporal. Desta forma, mantenho-me fiel<br />
ao ponto de interrogação após o título do<br />
congresso.<br />
Desde os anos 60 estão aumentando as<br />
propostas terminológicas para substituir<br />
o conceito de drama: “substrato textual<br />
literário”, 2 “peça teatral” 3 , “texto teatral” 4 ,<br />
“literatura teatral” 5 . Algo semelhante vale<br />
para o conceito de personagem. Sugerese<br />
falar antes em “portadores de texto” 6 ,<br />
“instâncias de discursos” ou “instâncias<br />
locucionais” 7 . Essas substituições apontam<br />
para mudanças fundamentais. O velho juízo<br />
que afirmava que um texto é “inapto<br />
para o palco” não é mais válido. Hoje em<br />
dia, não existem mais textos que seriam<br />
“impossíveis de serem apresentados no<br />
palco” por causa de características específicas<br />
de seu gênero ou de sua forma. Textos<br />
em prosa, romances, epopeias, poemas,<br />
radiodramas: todo tipo de texto está sendo<br />
‘realizado’ no palco, sem passar por uma<br />
‘dramatização’ no sentido usuário – o Velho<br />
Testamento bem como o bestseller da<br />
última temporada, roteiros de filmes ou<br />
textos de autores famosos que não foram<br />
escritos para o palco. Os textos teatrais recentes<br />
não podem mais ser classificados<br />
por meio das características tipológicas do<br />
drama, nem por respeitar estruturas dialógicas,<br />
nem por seguir outros elementos<br />
formais deste.<br />
Frente a essa prática teatral contemporânea,<br />
a questão sobre se o teatro precisa<br />
do texto ou deveria prescindir dele para li-<br />
182<br />
2 Pfister, Manfred. Das Drama. München: Fink, 1988 5 , p.28.<br />
3 Dyes, Klaus-Müller. Gattungsfragen. In: ArnolD, Heinz-Ludwig<br />
e Detering, Heinrich: Grundzüge der Literaturwissenschaft. München:<br />
DTV, 1996, p.343.<br />
4 PoschmAnn, Gerda. Der nicht mehr dramatische Theatertext.<br />
Tübingen: Max Niemeyer, 1997, p.38.<br />
5 lehmAnn, Hans-Thies. Postdramatisches Theater. São Paulo:<br />
Cosac & Naify, 2007, p.51.<br />
6 PoschmAnn, Gerda. Der nicht mehr dramatische Theatertext.<br />
Tübingen: Max Niemeyer, 1997, p. 309.<br />
7 Keim, Katharina. Theatralität in den späten Dramen Heiner Müllers.<br />
Tübingen: Max Niemeyer,1998, p.55<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
bertar a sua própria característica artística,<br />
que era uma polêmica na época das vanguardas<br />
teatrais, não constitui mais uma<br />
alternativa antitética.<br />
Parece que o velho conflito entre teatro<br />
e literatura chegou ao fim. Mesmo as tradicionais<br />
fronteiras culturais, que por muito<br />
tempo propiciaram uma orientação, (que<br />
o teatro do texto seja o teatro institucional,<br />
concebendo-se como instituição da formação<br />
literária, enquanto o teatro experimental<br />
seja “antiliterário” ou “além do texto”)<br />
não servem mais.<br />
Dramático – Pós-dramático<br />
Perante essas transformações, as teorias<br />
recentes do drama propuseram uma<br />
diferenciação que implica concomitantemente<br />
em uma periodização histórica: a<br />
distinção entre formas teatrais dramáticas<br />
e pós-dramáticas, entre textos dramáticos e<br />
textos teatrais não-mais dramáticos.<br />
O que se afirma é uma cesura entre o<br />
teatro dramático – enquanto lugar de personagens<br />
que falam no contexto de ações<br />
ficcionais – e o teatro pós-dramático, enquanto<br />
lugar de discursos polifônicos e<br />
de significantes soltos. A essa concepção<br />
junta-se uma tese sobre a função da língua.<br />
No teatro dramático, assim ela diz, o texto<br />
apresenta os esboços de ação para um<br />
acontecimento ficcional e é texto de um<br />
personagem (portanto, fala figurativa).<br />
Textos teatrais além do drama, no entanto,<br />
mostram uma tematização autorreflexiva<br />
da língua e deveriam ser lidos enquanto<br />
“poesia”: Libertado da polifuncionalidade<br />
fundamental da comunicação cotidiana, ou<br />
seja, da comunicação puramente referencial<br />
de informações, a linguagem no texto<br />
teatral pode ativar preferencialmente a<br />
função poética de seus signos. 8<br />
Essa atribuição retoma uma diferencia-<br />
8 PoschmAnn, 1997, p.323. A “função poética” é compreendida<br />
enquanto “função autorreflexiva” e explicita da seguinte forma:<br />
“O que aflora no centro do interesse [do leitor e do espectador]<br />
por meio da função poética da linguagem, são os processos da<br />
prática semiótica e da constituição de significados no uso de determinado<br />
código. O uso poético da linguagem, enquanto sua<br />
auto-reflexão, é ao mesmo tempo meta-linguístico e meta-teatral.”<br />
Theresia Birkenhauer<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
ção mais antiga, no entanto com outra ênfase.<br />
Tradicionalmente, se relacionava com<br />
a oposição entre “dramático” e “poético”<br />
uma fronteira entre gêneros literários. Uma<br />
vez que a palavra, em textos teatrais, não<br />
possui sua eficácia por si só – como na fala<br />
lírica – mas no diálogo das personagens,<br />
tem-se afirmado uma incompatibilidade<br />
entre a escrita ‘dramática’ e a ‘poética’, 9<br />
respectivamente uma limitação da ‘função<br />
poética’. Neste sentido, Käthe Hamburger<br />
diz: “[…] o drama é aquela obra de arte<br />
verbal, na qual o verbo não está mais livre,<br />
mas contextualizado. […] A fórmula<br />
dramática, que diz que o verbo é colocado<br />
para dentro do contexto da forma, diz que<br />
o lugar do drama deve ser definido, em<br />
primeiro lugar, em relação ao problema da<br />
forma, e não à palavra em si.” 10<br />
As teorias mais recentes do drama também<br />
atestam aos textos teatrais um “uso<br />
poético da linguagem”, no sentido de que<br />
eles não se definem pelo representado, mas<br />
se referem ao seu próprio acabamento formal<br />
e ao processo teatral da representação<br />
e da percepção. 11<br />
Por isso, pode-se perceber nas concepções<br />
teóricas acerca do teatro pós-dramático<br />
um interesse renovado no teatro lírico e<br />
simbolista da virada para o século XX. Dizse<br />
que no drama inicial de Maeterlinck,<br />
“renuncia-se a toda a estrutura de tensão,<br />
drama, ação e imitação” 12 , “não era mais<br />
o texto para os papéis que se considerava<br />
como a essência do texto teatral – como<br />
ocorria no teatro dramático –, e sim o texto<br />
como poesia, que por sua vez deveria corresponder<br />
à própria ‘poesia’ do teatro.” 13<br />
Mas o que qualifica uma fala dramática<br />
enquanto “texto para um papel”? O que<br />
a qualifica enquanto “poesia”? A tese dos<br />
gêneros diz que é a referência da fala dramática<br />
a um contexto de ações, que a torna<br />
“texto para um papel”. Onde se renuncia<br />
9 lArthomAs, Pierre. Le Langage dramatique. Sa nature, ces procédés.<br />
Paris: PUF, 1980, p.438.<br />
10 hAmburger, Käthe, Kate. Die Logik der Dichtung,<br />
Stuttgart, Klett, 19692 , p.161. (A Lógica da Criação Literária,<br />
Perspectiva, São Paulo, 1975.)<br />
11 PoschmAnn, 1997, p.130 e p.340.<br />
12 lehmAnn, 2007, p.95.<br />
13 lehmAnn, 2007, p.97.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
“as axiomas dramáticas de ação”, onde a<br />
linguagem dramática é libertada da função<br />
de caracterizar e diferenciar pessoas, onde<br />
a fala não se refere mais a personagens,<br />
ali há ‘poesia’. Mas isso significa, inversamente,<br />
que não há “poesia” onde existe um<br />
contexto dramático de ação, personagens<br />
ficcionais, indicações de fala referentes a<br />
pessoas? Essa conclusão inversa mostra o<br />
quanto tal definição conceitual é discutível.<br />
Ela aponta a dificuldade de uma delimitação<br />
que torna o “poético” uma característica<br />
de textos teatrais que desconhecem a<br />
fala figurativa e um contexto de ação.<br />
É impossível decidir, pela superfície<br />
formal, se um texto dramático é “poesia”<br />
ou “texto para um papel”. Nas peças de<br />
Tchekhov ou Koltés há “texto de personagem”.<br />
Entretanto, a fala dramática neles<br />
não se refere exclusivamente a personagens<br />
ou ações. Por outro lado, didascálias<br />
de interlocutores que apontam a uma despersonalização<br />
– como, por exemplo, “o<br />
velho”, “o estrangeiro”, “primeiro, segundo,<br />
terceiro cego” nas peças de Maeterlinck<br />
– não diferem fundamentalmente de indicações<br />
figurativas dos papéis em Beckett<br />
ou Thomas Bernhard. Nesses casos, não<br />
é nada óbvio se os interlocutores são, de<br />
fato, pessoas, mesmo que sejam denominados<br />
enquanto tais. Fica explícita a dificuldade<br />
de definir características formais de<br />
textos dramáticos ou não-dramáticos com<br />
categorias fixas. Nenhum texto dramático<br />
prescreve como deve ser lido; se um texto é<br />
denominado “poético” ou não, não é determinado<br />
por um caráter que possa ser definido<br />
conceitualmente como “dramático”<br />
ou “não-dramático” em si. O poético é uma<br />
dimensão da linguagem dos textos que<br />
pressupõe, para ser materializada, uma determinada<br />
prática de leitura ou montagem,<br />
que produz ou revela essa dimensão – ou<br />
não.<br />
A tentativa de uma definição inequívoca<br />
de características do “dramático” corre o<br />
risco de identificar convenções de encenação<br />
com a forma literária dos textos. Uma<br />
caracterização da função de texto no drama<br />
principalmente através das proprieda-<br />
ENTRE FALA E LíNGUA, DRAMA E TEXTO: REFLEXõES ACERCA DE UMA DISCUSSãO CONTEMPORâNEA 183
<strong>Urdimento</strong><br />
184<br />
des “fala de personagem” e “referência do<br />
diálogo à ação”, remete em primeiro lugar<br />
a uma determinada prática de encenação.<br />
Tanto a concepção de que a fala de uma<br />
personagem representa uma expressão natural,<br />
quanto à afirmação de que a linguagem<br />
em textos dramáticos é, sobre tudo,<br />
um meio de comunicação e sua função a<br />
transmissão de conteúdos discursivamente<br />
descritíveis, são atribuições que surgiram<br />
por causa de convenções de encenação do<br />
teatro ilusionista burguês. Somente essa<br />
tradição de montagem criou estas suposições<br />
básicas, supostamente fundamentais,<br />
acerca da função do texto dramático,<br />
segundo as quais a linguagem no drama<br />
implica, em princípio, a fala individual de<br />
uma personagem; fala monológica ou dialógica<br />
de caracteres representados. Determinar<br />
as características de textos por meio<br />
dos modos de apresentação do teatro ilusionista<br />
implica em defini-las através de<br />
uma prática de encenação a qual eles não<br />
pertencem nem exclusivamente, e muito<br />
menos necessariamente.<br />
Enquanto se entende a fala dramática<br />
primordialmente na sua dimensão comunicativa,<br />
ou seja, enquanto mimese de uma<br />
fala individual, o texto falado se referirá<br />
às dramatis personae: Como são criadas as<br />
personagens? O que acontece entre elas? O<br />
que elas revelam sobre si mesmas? Negligencia-se<br />
o fato de que também os textos<br />
dialógicos não são escritos exclusivamente<br />
enquanto textos da fala das dramatis personae,<br />
mas igualmente enquanto textos para<br />
o palco teatral. 14 Enquanto textos para o<br />
teatro, entretanto, eles possuem um duplo<br />
ponto de referência: no que concerne<br />
a seus elementos, os textos dramáticos se<br />
relacionam com uma cena a ser representada,<br />
uma ação, uma interação, mas em seu<br />
cálculo compositório se relacionam com o<br />
processo de apresentação, com a percepção<br />
do espectador. Isso tem a ver com a estrutura<br />
fundamental da apresentação teatral:<br />
a perspectivização dupla da fala dramática.<br />
14 Isso não quer dizer que sejam escritos para uma determinada<br />
encenação e tampouco que os textos implicam em uma encenação,<br />
mas sim afirmar o vínculo da composição dos textos com a<br />
estrutura da apresentação teatral.<br />
A dupla perspectivização<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Segundo um consenso entre todas as teorias,<br />
a simultaneidade de duas perspectivas<br />
é fundamental para o teatro. Ela é descrita<br />
de modo diverso: enquanto “função dupla”<br />
da fala dramática, que é sempre endereçada<br />
duas vezes, às personagens e ao público; 15<br />
enquanto sobreposição da perspectiva das<br />
personagens e dos espectadores; 16 enquanto<br />
“sobreposição imediata dos sistemas comunicativos<br />
interno e externo”; 17 enquanto<br />
“eixo de comunicação intracênico” e “um<br />
eixo ortogonal que diz respeito à comunicação<br />
entre o palco e o local da plateia, diferenciado<br />
(real ou estruturalmente) do palco”. 18<br />
Quais são as consequências dessa perspectivização<br />
dupla? Tradicionalmente, se<br />
atribui o “texto principal” – as falas das<br />
personagens – ao sistema de comunicação<br />
“interno”. O “texto coadjuvante” – as<br />
indicações sobre os interlocutores, as didascálias,<br />
definições de atos, de entradas e<br />
saídas de personagens – é atribuído ao sistema<br />
de comunicação “externo”, como se<br />
as falas das personagens não fossem submetidas<br />
também a um raciocínio formal de<br />
apresentação. Nas citadas abordagens da<br />
teoria do drama, a relação dos dois eixos<br />
se transforma em critério de periodização:<br />
a literatura dramática tradicional deve-se<br />
compreender a partir do sistema de comunicação<br />
interno – enquanto representação<br />
de ações ficcionais no palco, ao passo que<br />
“o tipo textual não-dramático” se refere à<br />
comunicação externa, à plateia. Em relação<br />
às formas teatrais pós-dramáticas, se diz:<br />
“Dessa conhecida duplicidade de todo teatro,<br />
o teatro pós-dramático extraiu a consequência<br />
de que em princípio deve ser possível<br />
levar a primeira dimensão à beira do<br />
desaparecimento e ativar a segunda para<br />
lograr uma nova qualidade de teatro. […]<br />
O teatro é enfatizado como situação, não<br />
como ficção.” 19<br />
15 Larthomas, 1980, p.437: «La replique la plus banale est destinée<br />
à la fois au personnage auquel elle s’adresse et au public.»<br />
16 Hamburger, 1969, p.164.<br />
17 Pfister, 1988, p.24.<br />
18 Lehmann, 2007, p.211.<br />
19 Lehmann, 2007, p. 212.<br />
Theresia Birkenhauer<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Mas esta periodização, que encaixa o<br />
drama em seu universo intraficcional – a<br />
“realidade autônoma da ficção dramática”<br />
– e as formas não dramáticas na comunicação<br />
externa – “a situação teatral real” –,<br />
prescreve, para a literatura dramática, uma<br />
fronteira que dificilmente pode ser sustentada<br />
a partir de uma perspectiva histórica<br />
do teatro. A dupla perspectivização é constitutiva<br />
para o teatro. Se ela é negada por<br />
causa de convenções estéticas do teatro,<br />
por exemplo na reivindicação da quarta<br />
parede no teatro burguês, isso não significa<br />
que não havia a “comunicação externa” –<br />
o endereçamento à plateia. O espectador é<br />
endereçado enquanto observador clandestino,<br />
que é excluído do acontecimento.<br />
A comunicação externa não implica<br />
simplesmente no endereçamento ao espectador<br />
real, mas a formação dessa relação, a<br />
perspectivização daquilo que é representado.<br />
Mesmo a atitude descrita por Szondi de<br />
modo tão drástico, segunda a qual o espectador<br />
do drama congela numa “passividade<br />
total”, “calado, com os braços cruzados,<br />
paralisado pela impressão de um segundo<br />
mundo”, 20 não implica que não haja um<br />
endereçamento da representação para o espectador.<br />
Se e por meio de quais formas se<br />
realiza este endereçamento no eixo palcoplateia,<br />
se de modo explícito ou embutido<br />
em uma estrutura dialógica que parece<br />
endereçar-se exclusivamente aos acontecimentos<br />
representados, depende de convenções<br />
teatrais dramatúrgicas e estéticas.<br />
Se reconhecemos a tematização do eixo<br />
palco-plateia apenas onde há um endereçamento<br />
fatual e explícito ao público – ou seja,<br />
predominantemente nas formas teatrais da<br />
vanguarda e neovanguarda do século XX –<br />
incorremos em ignorar uma das forças formadoras<br />
determinantes fundamentais de<br />
textos dramáticos. Textos escritos na tradição<br />
do drama não são exclusivamente endereçados<br />
à “ação intraficcional”. Quem se<br />
atém a isso identifica determinada prática<br />
de encenação com uma relação desses dois<br />
eixos e a prescreve, posteriormente, como<br />
20 Szondi, Peter. Teoria do drama moderno. 1880-1950. São<br />
Paulo: Cosac & Naify, 2001, p.31.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
a característica formal do drama. Em sua<br />
esteira, a literatura dramática aparenta ser<br />
determinada pelas propriedades de “totalidade,<br />
ilusão e representação do mundo”, 21<br />
ou respectivamente por ficção, ação e mímese<br />
– enquanto “apresentação de uma<br />
história de personagens que se estende no<br />
espaço e no tempo”. 22<br />
Outro entendimento resulta se pensarmos<br />
cada encenação como uma nova determinação<br />
desses eixos. A consequência<br />
disso é diferenciar entre estruturas textuais<br />
e modos de encenação e historizar rigorosamente<br />
as características tipológicas. Faz<br />
uma grande diferença se pensamos o teatro<br />
exclusivamente enquanto “realidade<br />
do palco” – enquanto realização empírica<br />
de textos, segundo certas convenções de<br />
encenação – ou enquanto uma estrutura de<br />
apresentação que organiza textos teatrais<br />
de modo específico. Isso transforma a perspectiva<br />
sobre os textos tanto quanto as encenações.<br />
Em relação a textos dramáticos,<br />
isso significa não imputar-lhes de antemão<br />
uma determinada relação – por exemplo, a<br />
hegemonia do eixo intraficcional – mas desenvolver<br />
uma relação específica entre os<br />
dois eixos a partir de suas estruturas textuais.<br />
Neste caso, os textos dialogados não<br />
lidos de modo intradramático, em relação<br />
às dramatis personae – enquanto falas, que<br />
as caracterizam, que lhes atribuem um contorno<br />
e expressam seu estado de ânimo –<br />
mas simultaneamente enquanto textos que<br />
constituem a estrutura dramática da apresentação<br />
ao configurar a relação dos dois<br />
eixos de modo específico.<br />
Pode-se observar isso tanto no drama<br />
tradicional quanto em textos dramáticos<br />
recentes. Na virada para o século XX, o trabalho<br />
com essas duas camadas é explícito,<br />
por exemplo, em Tchekhov e Maeterlinck.<br />
Mas pode-se percebê-lo igualmente em<br />
Koltés, cujas peças possuem características<br />
– fala de personagem e o vínculo dela<br />
com a ação dramática – de textos dramáticos.<br />
Entretanto, elas manuseiam de modo<br />
muito sutil a dupla perspectivização da<br />
21 Lehmann, 2007, p.26.<br />
22 Poschmann, 1997, p. 47.<br />
ENTRE FALA E LíNGUA, DRAMA E TEXTO: REFLEXõES ACERCA DE UMA DISCUSSãO CONTEMPORâNEA 185
<strong>Urdimento</strong><br />
186<br />
fala dramática. O diálogo nunca se resolve<br />
na sua dimensão referencial intraficcional.<br />
Sempre são expostos também gestos verbais,<br />
retóricas e estratégias que concomitantemente<br />
estruturam nossa percepção do<br />
espaço cênico e as qualidades temporais.<br />
Por outro lado, devemos indagar nas encenações<br />
como cada uma acentua esses dois<br />
eixos do teatro de modo particular. Neste<br />
sentido, devemos compreender encenações<br />
– num sentido mais específico do que<br />
o comum – enquanto leituras que realizam<br />
aquele potencial em textos dramáticos que<br />
uma leitura exclusivamente direcionada à<br />
ficção dramática negligencia: a dupla perspectivização<br />
da fala teatral.<br />
Entre fala e língua<br />
Podemos observar, de modo exemplar,<br />
o potencial cênico 23 de um trabalho com os<br />
dois eixos naquelas encenações que montam<br />
textos que, segundo suas características<br />
tipológicas, seriam textos dramáticos, como<br />
por exemplo a montagem de Woyzeck de<br />
Büchner, realizada por Michael Thalheimer<br />
no Thalia Theater em Hamburgo (2003). A<br />
encenação de Thalheimer expõe a perspectivização<br />
dupla ao distanciar radicalmente<br />
os dois eixos – o intracênico e o extracênico.<br />
Um meio básico do qual a encenação<br />
lança mão consiste em renunciar do modo<br />
de atuação realista, de sua correspondência<br />
entre gestos e voz, entre forma corporal<br />
e fala. Nunca se articula os textos segundo<br />
as regras da entonação semântica – como<br />
se articulassem estados de ânimo ou intenções<br />
dos personagens – mas sempre como<br />
elementos de uma composição de encenação<br />
que a estabelece como dispositivo espacial<br />
abstrato do palco. Isso produz transformações<br />
na relação entre cena e língua.<br />
Ainda que haja uma sequência linear de<br />
cenas, é abandonada a relação de ação dra-<br />
23 Em alemão: Darstellungspotential. O verbo darstellen não<br />
diferencia entre “representar” e “apresentar” e significa principalmente<br />
“tornar concreto ou colocar perante os olhos algo que<br />
existe na mente ou em outro lugar” e nessa dimensão inclui “representar”.<br />
A atividade não se limita à atuação, mas uma das<br />
palavras tradicionais para o ator em alemão é Darsteller. (nota<br />
do tradutor)<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
mática interna. Com isso, as réplicas perdem<br />
seu ponto de referência dialógico; elas<br />
se encontram no espaço sem endereçado e,<br />
mesmo assim, apelam permanentemente<br />
a um outro, carregadas com um afeto que<br />
fica sem ressonância.<br />
Normalmente, o modo específico da<br />
apresentação teatral fica camuflado por<br />
causa da orientação não-questionada<br />
na personagem falante e de uma correspondência<br />
entre situação cênica e texto<br />
falado. Esta encenação subverte essa<br />
orientação ao tornar perceptível não a<br />
correspondência, mas a tensão entre os<br />
dois eixos. As réplicas são tiradas de<br />
qualquer relação intracênica e direcionadas<br />
diretamente para o público, mas não<br />
por meio de procedimentos conhecidos<br />
como o distanciamento, o comentário, o<br />
endereçamento isolado, senão de modo<br />
estranho, pois as frases ficam, ao mesmo<br />
tempo, carregadas da excitação que lhes<br />
pertence a partir da dinâmica cênica.<br />
Os procedimentos cênicos propulsionam<br />
um movimento no qual as frases ditas<br />
perdem seu “significado unilateral” que se<br />
refere à situação cênica. Elas são colocadas<br />
em um espaço que não pertence unicamente<br />
aos interlocutores. Elas se chocam diretamente<br />
com o espectador. Para ele, que não<br />
é interlocutor, mas um observador dessa<br />
fala, elas se tornam perceptíveis enquanto<br />
violência cortante, imploração, emoção que<br />
perdeu os suportes relacionais, afeto puro.<br />
Enquanto ouvinte, o observador é exposto<br />
à violência dessa linguagem, sem a distância<br />
que lhe oferecem um contexto cênico e<br />
uma ambientação dramática.<br />
A encenação realiza uma dimensão da<br />
língua que se livra da função descritiva e<br />
comunicativa da fala dramática. Ela gera<br />
novos espaços de significação, de modo<br />
que a língua não é mais somente parte funcional<br />
da narrativa dramática, mas desenvolve<br />
um movimento próprio, que por sua<br />
vez transforma o acontecimento cênico.<br />
Desse modo, a encenação possibilita uma<br />
transformação e uma modelagem da fala<br />
teatral e com isso uma prática da linguagem<br />
própria do teatro.<br />
Theresia Birkenhauer<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Encenar enquanto prática<br />
da linguagem<br />
Se compreendermos encenações enquanto<br />
leitura, no sentido explicitado por<br />
Michel de Certeau – enquanto “procedimento<br />
necessário para a realização da obra”<br />
– elas não aparecem mais como “interpretações”<br />
da direção, modos de ler pessoais, mas<br />
enquanto leituras que continuam o ato de<br />
escrever um texto dramático e desse modo<br />
transformam permanentemente o olhar sobre<br />
a fala dramática. Uma encenação não<br />
é classificada como leitura por acentuar o<br />
conteúdo de textos de modos diversos – o<br />
que se associa com o “teatro do diretores”<br />
dos anos 70 – mas por organizar os textos<br />
cenicamente, para, dessa forma, “restaurar<br />
um determinado uso, mais abrangente e<br />
mais radical, da palavra.” 24<br />
Se analisarmos os procedimentos de<br />
encenação que geram essa dimensão da<br />
linguagem, perceberemos que realizam<br />
potenciais cênicos genuínos do palco. 25<br />
Os procedimentos são dos mais diversos:<br />
um deslocamento do sentido das palavras<br />
pela imagem, um modo específico de atuação,<br />
formas de espacialização da palavra,<br />
criação de temporalidades heterogêneas.<br />
Entretanto, esses deslocamentos sempre<br />
impactam sobre a língua, colocam-na “em<br />
cena” de forma diversa.<br />
Nesse sentido, o teatro não é o lugar de<br />
uma concretização da literatura – no sentido<br />
comum de um teatro de literatura – mas<br />
ele mesmo é uma prática literária, contanto<br />
que as modalidades próprias do palco<br />
permitam um “trabalho na língua” (Barthes)<br />
que faz com que ela possa ser experimentada<br />
de modo diverso. Na encenação<br />
de Thalheimer, a língua aparece enquanto<br />
afeto condensado que praticamente cancela<br />
a função comunicativa do ato de dizer.<br />
Experiências com a língua totalmente diferentes<br />
foram realizadas pelo teatro de Heiner<br />
Müller, o teatro de Einar Schleef ou de<br />
24 Merleau-Ponty, Maurice. “Der Mensch und die Widersetzlichkeit<br />
der Dinge”. In: Das Auge und der Geist. Philosophische<br />
Essays. Philosophische Essays.“ Hamburg: Rowohlt, 1984.<br />
25 Darstellungspotentiale, ver nota 23.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Elfriede Jelinek. O palco é um lugar em que<br />
surgem novos jogos de linguagem a cada<br />
encenação.<br />
De um ponto de vista histórico, isso<br />
significa que encenações mudam permanentemente<br />
a relação entre os dois eixos<br />
da apresentação teatral. O teatro francês<br />
clássico, por exemplo, podia ser lido diferentemente<br />
após montar as tragédias de<br />
Racine com sensibilidade pelas estruturas<br />
espaciais e pelas relações dos olhares, presentes<br />
nas práticas cênicas do século XVIII.<br />
Isso é válido também para textos teatrais.<br />
Os dramas de Koltés configuram um palco<br />
que renova o olhar para Corneille, os textos<br />
de Jelinek transformam nossa perspectiva<br />
sobre Hauptmann, as peças de Duras a sobre<br />
Maeterlinck.<br />
Entretanto, isso não acontece inevitavelmente.<br />
Uma encenação não acentua automaticamente<br />
a dupla perspectivização na<br />
estrutura da apresentação teatral. Encenações<br />
certamente podem transformar textos<br />
teatrais em textos convencionais por reduzi-los<br />
ao “drama”. Um exemplo recente é a<br />
estreia da peça Blues subterrâneo 26 de Peter<br />
Handke, por Claus Peymann na Berliner<br />
Ensemble em 2004. A encenação aposta<br />
exclusivamente na dimensão intraficcional<br />
do texto; os espectadores veem um placo<br />
que representa, de modo realista e detalhado,<br />
uma daquelas polidas e assépticas<br />
estações de metrô sem nenhum funcionário,<br />
na qual trens dirigidos com controle<br />
remoto emitem sinais automáticos durante<br />
a parada. O “subterrâneo” aqui é brilhante<br />
e bonito; as figuras – todas são vestidas<br />
de modo que já revelam sua tipificação por<br />
meio do figurino – entram no vagão. Lá está<br />
sentado “um homem selvagem”, como diz<br />
a rubrica descritiva da figura. Esse homem<br />
comenta sobre os antigos e novos passageiros<br />
ao falar, sem restrições, o que lhe passa<br />
pela cabeça – palavrões, gentilezas, especulações,<br />
fantasias, pressuposições que lhe<br />
vêm à mente frente às personagens. Até,<br />
em fim, entrar “uma mulher selvagem”<br />
que comprova a misantropia do homem.<br />
“Sim, exatamente assim acontece,” pensa o<br />
26 Em alemão, Untertageblues.<br />
ENTRE FALA E LíNGUA, DRAMA E TEXTO: REFLEXõES ACERCA DE UMA DISCUSSãO CONTEMPORâNEA 187
<strong>Urdimento</strong><br />
188<br />
espectador dessa encenação e rapidamente<br />
fica com tédio. Em nenhum momento criase<br />
uma irritação. A situação visual é interpretada<br />
claramente através do texto, pois<br />
a encenação constrói, já de antemão, uma<br />
congruência entre a fala do homem selvagem<br />
e aquilo a qual ela se refere. A possível<br />
diferença entre a perspectiva do interlocutor<br />
e da situação cênica não é trabalhada<br />
na encenação, de modo que nem a qualificação<br />
da fala dada no título – enquanto<br />
Blues – nem o lugar de sua manifestação<br />
– o subterrâneo – se tornam claros. A personagem<br />
se mantém estranhamente rasa,<br />
não se transforma – nem por instantes – em<br />
uma das figuras metamorfoseadas que o<br />
texto menciona: um Tirésia, um Charon,<br />
um anjo negro. De fato, pouco resta desse<br />
monólogo interior, de sua motivação pelo<br />
outro e pelo próprio, de seu status ficcional<br />
ambivalente enquanto conversa consigo<br />
mesmo e endereçamento. A dupla perspectivização,<br />
embutida no texto de vários modos,<br />
está sendo nivelada em favor de uma<br />
evidência unilateral e inequívoca.<br />
O que vale para as encenações se aplica,<br />
naturalmente, também aos modos de escrita.<br />
Eles também podem contornar ou evitar<br />
o potencial da perspectivização dupla, por<br />
meio de uma orientação direta demais nos<br />
temas a serem comunicados, no material<br />
ou nas teses. Não é por acaso que os festivais<br />
anuais de novas peças criam a impressão<br />
de que se tratam de produções cíclicas<br />
sobre os temas da pedofilia, da identidade<br />
da Alemanha Oriental, do incesto ou do<br />
desemprego. De fato, existem dramaturgos<br />
que se concebem enquanto fornecedores de<br />
temas para o teatro e que escrevem a peça a<br />
ser encenada pensando numa relação com<br />
a atualidade que há tempo é assumida por<br />
outros meios de informação.<br />
Assim, surge a questão se devemos<br />
diferenciar entre textos literários e “textos<br />
teatrais”, que reivindicam um status não<br />
literário, ou seja, de ser “material” ou “matriz”<br />
da atuação.<br />
Propriedades formais (as formas dialogadas,<br />
relação com a ação, ficcionalidade)<br />
ou simples procedimentos dramatúrgicos<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
(repetição, interrupção, modos de fala em<br />
forma de coro, a renuncia a personagens<br />
ou narração) não são critérios para dizer<br />
se um texto é teatral ou não. Antes, isso se<br />
decide pelo modo como e até que ponto<br />
trabalham com o potencial das estruturas<br />
da apresentação teatral. Tais textos, mesmo<br />
sendo dramas, são interessantes para diretores<br />
de hoje. Frank Castorf, por exemplo,<br />
liberta na sua encenação Estação Terminal<br />
América o clássico Um Bonde Chamado Desejo,<br />
de Tennesee Williams, de sua fixação<br />
como clássico do drama psicológico.<br />
Ao invés de insistir no texto literário,<br />
dever-se-ia indagar que tipo de experiência<br />
de linguagem humana ele possibilita. O que<br />
faz do teatro um espaço da literatura não é o<br />
fato de que se montam textos literários. Teatro<br />
também pode se tornar um espaço para<br />
vivenciar a literariedade, onde não se encena<br />
textos literários, como nos trabalhos de<br />
Christoph Marthaler ou Ariane Mnouchkine.<br />
Não existe um significado prévio de textos<br />
que deveria ser “comunicado”, realizado<br />
ou transposto pelas encenações. Tampouco<br />
poderia um conteúdo atribuído a um drama<br />
“desvendar” para o espectador o “sentido”<br />
de uma encenação. Isso pode unicamente a<br />
vivência estética desta.<br />
Literatura, na compreensão de Roland<br />
Barthes, não é um atributo das obras, mas<br />
uma atividade, um “trabalho na língua”<br />
que se distingue da prática verbal comum.<br />
A língua não se revela por vontade própria.<br />
Por vontade própria, ela é o lugar das<br />
mensagens, do poder. Ela se revela, diz<br />
Barthes, “porque as forças de liberdade<br />
que residem na literatura não dependem<br />
da pessoa civil, do engajamento político<br />
do escritor [...] nem mesmo do conteúdo<br />
doutrinário de sua obra, mas do trabalho<br />
de deslocamento que ele exerce sobre a<br />
língua.” 27 Por causa dessa estrutura dupla<br />
da fala dramática, o teatro é o espaço no<br />
qual é possível este “trabalho de deslocamento<br />
sobre a língua” e, com isso, a “revolução<br />
permanente da fala”, que é a literatura.<br />
27 Barthes, Roland. Aula. Aula inaugural da cadeira de semiologia<br />
literária do Colégio de França. São Paulo: Cultrix, 1988,<br />
p.15-16.<br />
Theresia Birkenhauer
N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
De seres humanos reais e<br />
performers verdadeiros 1<br />
Annemarie M. Matzke<br />
Trad. Stephan Baumgärtel 2<br />
Resumo<br />
Este artigo discute noções como autenticidade e veracidade<br />
no trabalho cênico frente ao crescente interesse em usar<br />
depoimentos biográficos de atuantes não-profissionais. O<br />
artigo se questiona sobre as fontes desse interesse bem como<br />
as diferenças dessas práticas teatrais em relação a formatos<br />
televisivos que trabalham com depoimentos biográficos e reflete<br />
sobre diferentes efeitos de autenticidade que se pode produzir<br />
com um teatro documentário que oscila entre ficção e realidade<br />
empírica.<br />
PALAVRAS-ChAVE: teatro documentário – teatro<br />
pós-dramático – prática de atuação teatral - teatralidade<br />
Abstract<br />
Leo Sykes speaks about her training and her work as a<br />
theatre director. She tells of her five years as assistant director to<br />
Eugenio Barba, director of Odin Teatret. She explains how she<br />
works to make clown performances with Circo Teatro Udi Grudi<br />
in Brazil and with Teatret OM in Denmark. She shows how she<br />
works with the actors to develop the material and then elaborates<br />
and structures it into a performance.<br />
KEywORDS: Leo Sykes, Eugenio Barba, Clown<br />
1 In: Fischer-Lichte, Erika et. al. (eds.). Wege der Wahrnehmung. Authentizität, Reflexivität und Aufmerksamkeit<br />
im zeitgenössischen Theater. Berlin: Theater der Zeit, 2006. pp. 39 – 47. Trad. Stephan Baumgärtel,<br />
Prof. do PPGT da UDESC<br />
DE SERES HUMANOS REAIS E PERFORMERS VERDADEIROS 189
<strong>Urdimento</strong><br />
190<br />
Uma mulher entra no palco. Na<br />
mão, ela carrega uma lâmpada<br />
de pé, um modelo de IKEA.<br />
Ela procura um lugar, põe a<br />
lâmpada no chão e começa<br />
a contar: do salário de desemprego, da<br />
redução da assistência social do governo<br />
e as injustiças; da necessidade de cada<br />
um se engajar e do fato que ela está farta;<br />
como é preciso que se faça algo, cada um<br />
de nos. Durante a fala, ela perde a fluência,<br />
chega a parar momentaneamente. Cria-se<br />
a impressão como ela estivesse fala o seu<br />
texto de modo livre, como se ela decidisse<br />
espontaneamente o que dizer. Ouvese<br />
o tictac de um relógio. A luz se apaga<br />
lentamente – um minuto se passou: um<br />
minuto na luz do palco.<br />
Essa cena curta provém da encenação<br />
Tableau com existências marginais<br />
(Standbild mit Randexistenzen) de Björn<br />
Auftrag e Stefanie Lorey de 2004. 3 O conceito<br />
da encenação é buscar, via anúncios nos<br />
jornais, pessoas que gostariam dizer algo no<br />
palco, é colocar a sua disposição um minuto<br />
de tempo cênico. Este minuto pode ser<br />
usado de modo arbitrário. O pressuposto<br />
é que cada um traz consigo a sua própria<br />
lâmpada de pé. Aos poucos configura-se<br />
no palco uma ‘imagem de grupo’ composta<br />
pelos trinta e cinco ‘atores’: alguém conta<br />
uma piada sobre Bush, uma outra pessoa<br />
conta do seu cunhado que morreu de câncer;<br />
uma fica em silêncio por um minuto. Do<br />
lado-a-lado dos diferentes discursos surge<br />
um caleidoscópio de confissões, histórias, e<br />
anedotas pessoais, ou discursos engajados,<br />
que realça a individualidade dos diferentes<br />
representadores (de si mesmo). A previsão<br />
de Andy Warhol que no futuro cada um<br />
de nos poderia ganhar fama por quinze<br />
minutos, é realizado aqui no palco pelo<br />
menos por um minuto.<br />
A organização da encenação é simples<br />
e transparente para o espectador. O palco,<br />
a luz da lâmpada de pé e o limite de tempo<br />
atribuem a cada apresentação uma moldura.<br />
3 Apresentações, entre outras, no Mousonturm em Frankfurt/<br />
Main, no teatro Hebbel am Ufer em Berlin, no Diskurs-Festival<br />
Gießen, e no teatro Die Kammerspiele em München.<br />
As apresentações são organizados segundo<br />
um regulamento reconhecível. A pesar<br />
dessa delimitação formal da encenação,<br />
cria-se um impacto especial de vivencia<br />
imediata. Tudo parece ‘real’, como se a<br />
‘atuadora’ o trouxesse diretamente da sua<br />
vida cotidiana para o palco. No caso da<br />
lâmpada de pé, trata-se de uma lâmpada de<br />
IKEA que pode ser encontrada em muitos<br />
lares, e a roupa tampouco é reconhecível,<br />
de modo específico, como figurino. A<br />
forma da apresentação também subverte<br />
certas convenções de uma apresentação<br />
teatral. Durante a sua fala, a ‘atriz’ é<br />
nervosa, comete erros de pronuncia, mas<br />
exatamente por causa deste modo faltoso<br />
de falar o seu discurso aparenta ser nãoencenado.<br />
Será que tudo que se opõe à<br />
construção do acontecimento teatral, e<br />
por tanto ao seu caráter encenado, produz<br />
um efeito de autenticidade? Com isso,<br />
autenticidade no palco seria aquilo que<br />
parece ser não-encenado, mesmo que a<br />
encenação organiza um visível contexto de<br />
encenação.<br />
Talvez a impressão de autenticidade<br />
seja produzida por uma especial<br />
confiabilidade da ‘atuadora’ que convence a<br />
mim, a espectadora, que ela realmente quer<br />
dizer o que ela fala. À diferença de um ator<br />
que fala em nome de um personagem, ele<br />
formula um assunto pessoal. Ela responde<br />
por aquilo que diz. Pode-se imaginar que<br />
repetiria as suas reivindicações na rua<br />
durante uma manifestação: autenticidade<br />
como uma forma de street credibility.<br />
Será que a impressão de imediatez se<br />
cria exatamente pela contradição entre<br />
a proximidade cotidiana da ‘atriz’ e a<br />
delimitação exposta da encenação?<br />
A formulação do ‘ser humano<br />
real’ com que intitulei o meu ensaio é<br />
propositalmente polêmica: no palco e no<br />
dia-a-dia, todo ser humano é naturalmente<br />
‘real’, independentemente sé é um ator ou<br />
uma funcionária de um banco. Mas perante<br />
a crescente prática no teatro contemporâneo<br />
de colocar atores não-profissionais no<br />
palco, parece necessário realizar algumas<br />
Annemarie M. Matzke / Trad. Stephan Baumgärtel<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
diferenciações. Da onde vem o interesse<br />
na encenação de atores não-profissionais?<br />
Onde encontra-se a diferença em relação<br />
a formatos da mídia como o Talkshow<br />
ou os Reality Soaps? Quais efeitos de<br />
autenticidade são produzidos, quando se<br />
aposta não em atores profissionais, mas na<br />
apresentação de pessoas comuns?<br />
Comparando as encenações que<br />
surgem neste contexto, chama a atenção<br />
que os ‘atuadores’ apresentam a sua<br />
história, a sua situação empírica, e por<br />
tanto, apresentam eles mesmos. Na<br />
maioria das vezes, eles não representam<br />
mais personagens literários ou figuras<br />
dramáticas – e caso que o fazem, é para<br />
refletir sobre a própria situação de vida. 4<br />
Eles são postos em cena como expertos<br />
da própria causa: como ‘especialistas do<br />
cotidiano’. 5 Eles se apresentam a si mesmos<br />
ou um assunto pessoal, como na encenação<br />
descrita no início. É um teatro biográfico<br />
com uma abordagem documentária.<br />
No entanto, essa definição é pertinente<br />
também para muitas apresentações no<br />
âmbito do teatro-performance. Elas também<br />
mostram, a partir de questionamentos<br />
pessoais, encenações de um Eu além da<br />
representação de uma figura. Nenhum<br />
texto literário é ponto de partida para a<br />
montagem, mas os ‘atores’ tornam a si<br />
mesmo, sua biografia ou corporeidade,<br />
o assunto da apresentação. O que se<br />
mostra não é um teatro auto-biográfico.<br />
Estas encenações do Eu são discussões de<br />
formas de encenação sociais e midiáticas,<br />
que são reconhecíveis nos trabalhos. Como<br />
exemplos, pode-se mencionar o Quizshow<br />
da produção QUIZOOLA! do grupo<br />
Forced Entertainment, o Setting Ballsaal<br />
na encenação Warum tanzt ihr nicht?<br />
[Porque vocês não estão dançando?] do<br />
grupo SheShePop, ou o mundo do trabalho<br />
como lugar de um auto-marketing na<br />
performance Work do grupo Gob Squad.<br />
4 Na encenação Wallenstein (2005), do grupo Rimini-Protokoll,<br />
os ‘atores’ não representam as figuras da peça. Ao contrário disso,<br />
é indagado até que ponto pode se reconhecer nos conflitos<br />
na biografia dos ‘atores’ os conflitos do drama.<br />
5 Behrend, Eva. “Die Alltagsspezialisten”, in Jahrbuch Theater<br />
heute (2003), p.52-63. Exemplos para esta forma de teatro são<br />
Rimini Protokoll, Theater Lubricat, Gudrun Herbold, Hofmann e<br />
Lindholm, para mencionar só alguns.<br />
As encenações revelam indagações nos<br />
modos sociais de encenação. São citados<br />
formatos da mídia ou cultural performances,<br />
que precisam uma forma especifica da<br />
auto-apresentação.<br />
Este procedimento se mostra também<br />
nas encenações de atores não-profissionais,<br />
que muitas vezes, sem qualquer tipo de<br />
formação de ator, são profissionais na autoapresentação.<br />
Ao por, na sua encenação de<br />
Wallenstein, na pessoa de Sven-Joachim Otto<br />
um político profissional no palco, o grupo<br />
Rimini-Protokoll não só tematiza modos de<br />
auto-apresentação profissionais – durante<br />
a encenação, Otto revela, por exemplo, as<br />
estratégias da sua campanha publicitária –,<br />
mas os expõe no próprio ato de apresentar<br />
e jogar cenicamente. Uma discussão<br />
parecida com a auto-promoção mostra a<br />
trilogia Perform Performing do bailarina<br />
e performer Jochen Roller, que indaga no<br />
seu trabalho “o sentido e o absurdo de<br />
compreender a dança como trabalho”.<br />
Agui, o negocio com a auto-revelação se<br />
transforma no show propriamente dito.<br />
Portanto, as transições entre o performer,<br />
que torna a própria pessoa assunto da sua<br />
apresentação, e o ‘ator’ não-profissional,<br />
que recorre a suas estratégias pessoais<br />
de representar o próprio Eu, não são<br />
claramente delimitadas. Ambos fazem da<br />
sua competência na auto-encenação o tema<br />
da sua apresentação e com isso aludem<br />
a um fenômeno social: a necessidade de<br />
saber como se auto-promover, e portanto,<br />
a obrigação de apresentar uma imagem<br />
autêntica de si mesmo. Por isso, eles<br />
não tratam do ser humano ‘real’, cuja<br />
proximidade com ao cotidiano deveria<br />
lhe confiar autenticidade, nem de uma<br />
apresentação ‘verdadeiro’ de um suposto<br />
Eu por parte dos performer, mas de um jogo<br />
com estratégias de (auto-)apresentação.<br />
Um desdobramento parecido pode ser<br />
observado também nas mídias de massa.<br />
Nos formatos da televisão encontra-se um<br />
crescente número de ‘representadores’ que<br />
não são mais introduzidos como atores ou<br />
apresentadores profissionais – começando<br />
de biG brother (2000), passando pelos Reality<br />
DE SERES HUMANOS REAIS E PERFORMERS VERDADEIROS 191
<strong>Urdimento</strong><br />
192<br />
Soaps até DeutsChlAnD suCht Den suPerstAr<br />
[Alemanha procura o superstar; um show<br />
de talentos musicais] (2003). Enquanto, no<br />
início, um dos objetivos desses formatos<br />
era, através da criação de configurações de<br />
teste extremas – seja de uma isolação do<br />
mundo afora, ou através de provocações<br />
e desafios – fazer com que os candidatos<br />
se apresentem de modo autêntico, agora<br />
esta busca por autenticidade aparece em<br />
segundo plano. Os formatos mais novos<br />
observam os candidatos no processo de<br />
se tornar auto-apresentadores mais e<br />
mais aperfeiçoados, por exemplo, quando<br />
eles aperfeiçoam a sua auto-encenação<br />
enquanto popstars. O espectador não mais<br />
pontua como os candidatos são além da<br />
câmara, mas como eles constroem uma<br />
imagem em frente e para a câmara que<br />
parece autentico. O objetivo não parece ser<br />
a confecção de autenticidade para além da<br />
encenação, mas a autenticidade no ato da<br />
encenação.<br />
Na descrição das formas teatrais de<br />
representação – tanto no contexto dos<br />
‘atores’ não-profissionais quanto no teatroperformance<br />
– chama a atenção também que<br />
se recorre com tanta freqüência ao conceito<br />
de autenticidade, e simultaneamente o<br />
questiona. 6 Mesmo que se questione a<br />
autenticidade do apresentado e o conceito<br />
seja definido de modo problemático, ele<br />
continua sendo o ponto de referência da<br />
descrição. Deste modo, o conceito sempre<br />
marca também a dúvida acerca do autêntico<br />
e se define em última análise através do seu<br />
oposto: o fingimento ou a falsificação. 7<br />
Esta atitude cética acerca do conceito<br />
de autenticidade encontra-se em discursos<br />
de diversas ciências. A sociologia aponta<br />
a impossibilidade de uma comunicação<br />
não-mediata e direta. As teorias do<br />
gênero indagam com concepções como<br />
performatividade e máscara a autenticidade<br />
do gênero. A teoria literária se despede da<br />
instância do autor recorrendo a conceitos<br />
6 Ver, por exemplo, Diez, Georg. “Das Drama des wirklichen Lebens“<br />
[o drama da vida real], in Frankfurter Allgemeine Zeitung,<br />
5.Juni 2005; Bauer, Detlev. “Echt gespielt“ [representado de verdade],<br />
in: Deutsche Bühne 8 (2004), p.36-39.<br />
7 Römer, Stefan: Künstlerische Strategien des Fake. Kritik von<br />
Original und Fälschung, Köln: DuMont, 2001.<br />
como a intertextualidade. E a etnologia<br />
problematiza qualquer forma de uma<br />
documentação autêntica. Frente a este<br />
contexto, Helmut Lethen questiona a<br />
autenticidade como critério de avaliação:<br />
“Quando não é mais possível denominar<br />
interfaces claras entre natureza e construção<br />
social, a autenticidade parece ser usada no<br />
máximo de forma irônica, como critério<br />
para diferenciar entre vários graus de<br />
artificialidade.” 8<br />
Esta interface entre vários graus<br />
de artificialidade, no entanto, é típico<br />
para a discussão contemporânea sobre<br />
autenticidade e encenação no palco. 9<br />
Investigar e buscar a imediatez com os<br />
meios do palco é uma tentativa um tanto<br />
paradoxal: O contexto ‘palco’ aponta<br />
exatamente para o caráter mediado do<br />
apresentado. Autenticidade no palco<br />
é sempre efeito de uma construção.<br />
Gabriele Brandstetter vê neste fato um<br />
novo paradoxo do ator, na sucessão de<br />
Diderot, um “estar presente sem atuar”. 10<br />
O paradoxo não se articula mais entre<br />
sentimento e representação, mas entre o<br />
desejo por uma representação autêntica e<br />
o saber simultâneo da sua impossibilidade.<br />
Com isso, a autenticidade se transforma<br />
de um problema da representação –<br />
como posso conseguir uma representação<br />
autêntica? – em um problema da retórica:<br />
como posso comunicar ao espectador<br />
a impressão de imediatez no palco, se<br />
qualquer impressão de autenticidade é<br />
resultado de uma construção?<br />
Um breve excursão pela história da<br />
atuação documenta o deslocamento de<br />
conceito de autenticidade em relação a esta<br />
8 Lethen, Helmut. “Versionen des Authentischen. Sechs Gemeinplätze“<br />
[Versões do autêntico: seis chavões], in: Böhme, Hartmut<br />
e Scherpe, Klaus (eds.) Literatur und Kulturwissenschaften:<br />
Positionen, Theorien, Modelle. Reinbek bei Hamburg: Rowohl,<br />
1996., p.205-230, aqui p.209.<br />
9 Ver Fischer-Lichte, Erika e Pflug, Isabel (eds). Inszenierung<br />
von Authentizität [Encenações de autenticidade]. Tübingen e<br />
Basel: Francke, 2000. E também Berg, Jan; Hügel, Hans-Otto;<br />
e Kurzenberger, Hajo. (eds.) Authentizität als Darstellung [Autenticidade<br />
enquanto representação]. Hildesheim: Universität<br />
Hildesheim, 1997.<br />
10 Brandstetter, Gabriele. “Geschichten erzählen im Performance-Theater<br />
der neunziger Jahre.“ In: Fischer-Lichte, Erika et. al.<br />
(eds). Transformationen: Theater der 90ger Jahre [Transformações:<br />
teatro dos anos 90]. Berlin: Theater der Zeit, 1999. p. 27-<br />
42, aqui p.36.<br />
Annemarie M. Matzke / Trad. Stephan Baumgärtel<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
pergunta. Nas teorias de atuação do século<br />
18, se buscou por autenticidade tanto na<br />
expressão do ator quanto na representação<br />
do personagem. Esta exigência focou<br />
uma determinada concepção de uma<br />
representação ‘natural’, em oposição a<br />
uma representação artificial e exagerada. 11<br />
A partir da metade do século XIX, as<br />
exigências ao ator mudam: Ele deve sempre,<br />
na representação da figura, também<br />
representar ele mesmo. 12 Nas teorias do<br />
teatro no início do século XX, a relação<br />
entre palco e realidade é invertida: não o<br />
teatro, mas a realidade social é marcada<br />
pelo fingimento. Stanislavski, por exemplo,<br />
compreende a sua técnica de atuação<br />
como uma tentativa “de como podemos<br />
apreender de eliminar do teatro [...] o<br />
‘teatral’.” 13 Principalmente a concepção de<br />
Grotowski do seu Teatro Pobre define o ato<br />
de atuação como instrumento para atingir<br />
uma veracidade. O ator, através do trabalho<br />
sobre ele mesmo e sobre o personagem,<br />
deve alcançar uma veracidade impossível<br />
na vida cotidiana. O palco é declarado como<br />
o lugar em que esta forma de autenticidade<br />
parece possível.<br />
Os trabalhos contemporâneos, ao<br />
contrário, revelam auto-encenações que<br />
conscientemente não escondem o seu<br />
caráter de serem um jogo construído. As<br />
apresentações investigam as encenações do<br />
cotidiano e suas estratégias de atribuir-lhes<br />
autenticidade. A auto-representação se<br />
apresenta como um jogo com identidades,<br />
como um modo de representação, na<br />
sua multiplicação em imagens mais<br />
diversas de si mesmo. Neste contexto, a<br />
questão do verdadeiro, da veracidade e<br />
da credibilidade se torna inane. Isto faz<br />
com que a percepção do espectador vira<br />
o elemento central: não se coloca mais a<br />
11 Fischer-Lichte, Erika. “Entwicklung einer neuen Schauspielkunst“<br />
[O desenvolvimento de uma nova arte de atuação], in:<br />
Bender, Wolfgang F. (ed). Schauspielkunst im 18. Jahrhundert.<br />
Stuttgart: Steiner, 1998, p.51-70.<br />
12 Emblemático para este fenômeno é o debate sobre a diferença<br />
na atuação da Duse e Sarah Bernhardt. Ver Balk, Claudia.<br />
Theatergöttinnen. Inszenierte Weiblichkeit. Clara Ziegler, Sarah<br />
Bernhardt, Eleonore Duse. Frankfurt/Main: Stroemfeld, 1994.<br />
13 Stanislavski, Konstantin. Die Arbeit des Schauspielers na sich<br />
selbst: Tagebuch eines Schülers. [O trabalho do ator sobre si<br />
mesmo: diário de um aluno]. Vol.1, Berlin:Henschel, 1983.<br />
questão se algo é imediato ou encenado,<br />
mas que impressão de imediatez é<br />
produzida. Se expõe a construção de<br />
efeitos do autêntico. Neste processo, podese<br />
diferenciar várias estratégias.<br />
Um procedimento consiste em<br />
desvendar a construção do acontecimento<br />
teatral propriamente dito. Podemos<br />
mostrar isso de forma exemplar na<br />
encenação stAnDbilD mit rAnDexistenzen,<br />
descrita no início deste artigo. Ao permitir<br />
um conhecimento sobre a seleção dos<br />
‘atores’ e sobre os parâmetros expostos<br />
na encenação, a apresentação revela a<br />
sua estrutura. Esta exposição e revelação<br />
funcionam, no entanto, somente perante<br />
o contexto ‘teatro’ e das suas convenções<br />
inscritas neste. O que se percebe como<br />
autentico é o gesto do desvendamento.<br />
O modo da ‘encenação’ é afirmado como<br />
a realidade comum entre espectadores<br />
e ‘atores’. Esta concepção de realidade<br />
não refere a algo extra-teatral, mas a um<br />
determinado clima de comunicação: o que<br />
importa é uma definição compartilhada<br />
da situação como sendo encenada. Este<br />
procedimento se diferencia da conceito<br />
Brechtiano do distanciamento na medida<br />
em que não há uma ilusão teatral na<br />
situação da apresentação que poderia ser<br />
quebrada, do mesmo modo como não há<br />
figuras fictícias ou uma fábula. Aquilo que<br />
se expõe enquanto encenação é meramente<br />
a situação teatral de representar e observar.<br />
Jogando com estas camadas da encenação,<br />
cria-se a impressão de autenticidade<br />
só a partir da diferença. Quanto menos<br />
encenado, mais autêntico o efeito em<br />
comparação com algo mais encenado.<br />
Um outro procedimento é recorrer a<br />
conhecidos formatos da mídia, ou cultural<br />
performances, nos quais são inscritos<br />
específicas estratégias de encenação,<br />
reconhecíveis pelos espectadores. O grupo<br />
Rimini Protokoll, por exemplo, faz uso,<br />
uma e outra vez, de formas de encenação<br />
sociais para as suas produções, seja isso<br />
o parlamento alemão em DeutsChlAnD<br />
2, ou a sala de um tribunal em zeuGen<br />
[testemunhas]. Se examina a produção e<br />
DE SERES HUMANOS REAIS E PERFORMERS VERDADEIROS 193
<strong>Urdimento</strong><br />
194<br />
recepção de procedimentos e estratégias de<br />
encenação na política e no sistema jurídico,<br />
respectivamente. Neste contexto, levantase<br />
a questão como se produz ‘a verdade’<br />
nessas formas sociais de encenação, e quais<br />
‘papeis’ são assumidos. Procedimentos<br />
de encenação teatrais se misturam com<br />
aqueles da realidade social. Os ‘atores’ nãoprofissionais<br />
legitimam o seu aparecimento<br />
no palco com o fato de serem expertos para<br />
uma forma específica de encenar realidade<br />
empírica – seja por causa de uma predileção<br />
pessoal, da sua profissão ou de uma<br />
determinada experiência biográfica. Eles<br />
causam uma impressão de autenticidade<br />
enquanto expertos, não enquanto ‘atores’<br />
teatrais. Mas a sua competência, por sua<br />
vez, é exposta como uma forma específica<br />
de (auto-) encenação. Na oposição das<br />
diferentes estratégias de encenação surge a<br />
impressão de autenticidade como efeito de<br />
diferenças.<br />
Isso aponta para um terceiro efeito<br />
de autenticidade no palco: o fracasso da<br />
(auto-) encenação bem fabricada. No teatro<br />
tradicional, relaciona-se um momento de<br />
autenticidade com o fracasso do andamento<br />
fluído da apresentação: um ator ‘sai do<br />
personagem’, a técnica não funciona ou<br />
alguém se machuca. A “irrupção do real” 14<br />
causa a impressão de autenticidade dentro<br />
da situação encenada. Em muitas produções<br />
contemporâneas, este fracasso é parte da<br />
encenação. Por um lado, ele é produzido<br />
por uma falta de profissionalismo dos<br />
‘atores’, que muitas vezes aparecem<br />
pela primeira vez num palco. Os ‘atores’<br />
não-profissionais freqüentemente não<br />
conseguem produzir aspectos rotineiros de<br />
atuação – por exemplo uma sensibilidade<br />
em relação ao texto, uma voz audível ou uma<br />
sensibilidade específica pela linguagem e<br />
pelo corpo. Na sua atuação, eles minam as<br />
convenções da representação no palco. Por<br />
causa desta falta de profissionalismo, criase<br />
uma cumplicidade com o público: por<br />
mais que sejam especialistas na sua própria<br />
profissão, eles são ao mesmo tempo não-<br />
14 Lehmann, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo:<br />
Cosac&Naïfy, 2007, p.163<br />
especialistas enquanto atores. Podemos<br />
constatar um diletantismo da forma.<br />
Deste modo, a encenação se transforma<br />
em um arranjo experimental que brinca<br />
de modo consciente com o fracasso na<br />
representação: a atenção se desloca da<br />
capacidade artístico-representacional dos<br />
atores para suas capacidades de autoencenação.<br />
O centro da questão agora<br />
é como eles se apresentam e tratam a<br />
situação da encenação. A impressão de<br />
autenticidade surge pelo modo de minar o<br />
que é esperado, pelo erro da encenação.<br />
Algo parecido acontece quando grupos<br />
performáticos como Forced Entertainment,<br />
Gob Squad ou SheShePop trabalham com<br />
estruturas de jogo no palco, que exigem do<br />
performer a capacidade de improvisação no<br />
palco. A montagem QUIZOOLA! do grupo<br />
Forced Entertainment, por exemplo, é um<br />
jogo de perguntas e respostas que trabalha<br />
com a característica de que a situação do<br />
jogo é aberta. Dois performers se enfrentam<br />
sentados e cara a cara no palco. De um bolo<br />
de mais do que mil perguntas, eles fazem<br />
perguntas um ao outro. As respostas são<br />
improvisadas por ambos. O espectador<br />
pode perceber as regras que organizam<br />
a apresentação. No contexto do teatro se<br />
estabelece um segundo frame do jogo que<br />
coloca o performer numa situação de decisão<br />
concreta. A duração da montagem, entre<br />
quatro a seis horas, faz parte da estratégia<br />
de autenticação. Durante este tempo longo,<br />
os performers passam necessariamente por<br />
dificuldades de concentração. Eles começam<br />
a rir, param no meio da fala, começam<br />
a gaguejar, fazem pausas longas para<br />
refletir (desesperadamente). Cria-se um<br />
momento de sobrecarrego que desencadeia<br />
afetos visíveis nos performers: vergonha e<br />
embaraço. A vergonha, que se caracteriza<br />
pelo desejo de “não estar aqui agora”,<br />
torna a presença inevitável dos ‘atores’<br />
algo obsessivo. Ela não se deixa integrar<br />
(aparentemente) na auto-encenação, e os<br />
‘atores’ perdem o controle sobre a situação<br />
teatral. O tempo de duração parece assim<br />
um truque consciente para conseguir<br />
uma perda de controle e, com isso, uma<br />
Annemarie M. Matzke / Trad. Stephan Baumgärtel<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
imediatez: uma tentativa de produzir afetos<br />
reais através de determinados efeitos. Ao<br />
mesmo tempo, este truque faz parte da<br />
configuração da situação, transparente<br />
para o espectador. O fracasso é e sempre<br />
será parte da encenação.<br />
Neste contexto, os dois pólos ‘autêntico’<br />
e ‘encenado’ referem um ao outro. O<br />
autêntico é encenado desde já, e a encenação<br />
responde a um fracasso autêntico. Este<br />
jogo ambíguo aponta para um conceito de<br />
uma ‘autenticidade irônica’: autenticidade<br />
é afirmada, mas não é aquilo que se quer<br />
dizer. É justamente a diferença entre o<br />
mostrado e o não-afirmado que possibilita:<br />
algo com intenções sérias, uma afirmação<br />
irônica, uma transgressão autêntica de algo<br />
necessariamente mediado, representação<br />
da impossibilidade dessa transgressão.<br />
No entanto, resta a pergunta, porque<br />
a autenticidade continua sendo um<br />
ponto de referência na descrição de<br />
representações teatrais. Se a brincadeira<br />
com os efeitos de autenticidade é mais<br />
do que um mero meio para um fim, deste<br />
tratamento de autenticidade, irônico e<br />
abertamente encenado, resultam novas<br />
reivindicações e esperanças, como<br />
Christoph Schlingensief as define: “O meu<br />
desejo é grande de encontrar um sistema<br />
que é satisfeito consigo mesmo, mas do<br />
qual os participantes sabem que é um<br />
sistema enganoso. Ao afirmar que algo<br />
é teatro, ao apresentar algo e confessar<br />
seu caráter como fake, se cria uma nova<br />
sinceridade.” 15 Aqui surge uma outra<br />
compreensão de autenticidade. Junto à<br />
exposição de ‘atores’ não-profissionais,<br />
ao desvendamento dos parâmetros da<br />
encenação, à brincadeira com o risco<br />
do fracasso, é a própria constituição<br />
do acontecimento teatral que vira foco.<br />
Todos que vão ao teatro sabem do<br />
status do apresentado. O evento teatral<br />
15 Schlingensief, Christoph: “ ‘Wir sind zwar nicht gut, aber wir<br />
sind da’ [‘Não somos bons, mas estamos aqui.] Registrado<br />
depois de uma conversa com Christoph Schlingensief por Julia<br />
Lochte e Wilfried Schulz.” In: Julia Lochte e Wilfried Schulz<br />
(eds). Schlingensief. Notruf für Deutschland; über die Mission,<br />
das Theater und die Welt des Christoph Schlingensief. Hamburg:<br />
Rotbuch, 1998. p. 12-35, aqui p.35.<br />
não funciona através o engano ou o<br />
equívoco entre realidade e ficção. Ao<br />
contrário: a realidade teatral se destaca<br />
pelo conhecimento compartilhado<br />
das condições do apresentado, pela<br />
possibilidade de reconhecer o ato de<br />
mostrar, e pela tentativa produtiva<br />
e compartilhada de estabelecer uma<br />
comunicação sobre este ato. Neste<br />
ponto reside o potencial do teatro no<br />
contexto de uma discussão das formas de<br />
encenação presentes na nossa sociedade,<br />
numa época em que a impossibilidade de<br />
distinguir entre o real e o encenado está<br />
se tornando um problema (do cotidiano).<br />
Não se trata mais se algo é real ou<br />
verdadeiro, mas de uma diferenciação<br />
entre os diferentes graus de encenação;<br />
não do desmascaramento da realidade<br />
social como encenada, mas de uma<br />
tentativa de responder com os meios do<br />
palco e em igual grau de complexidade à<br />
complexidade social.<br />
DE SERES HUMANOS REAIS E PERFORMERS VERDADEIROS 195
<strong>Urdimento</strong><br />
196<br />
REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
bAlk, Claudia. Theatergöttinnen. Inszenierte Weiblichkeit. [Deusas do Teatro. Feminilidade<br />
encenada] Clara Ziegler, Sarah Bernhardt, Eleonore Duse. Frankfurt/Main: Stroemfeld,<br />
1994<br />
bAuer, Detlev. “Echt gespielt“ [representado de verdade], in: Deutsche Bühne 8 (2004)<br />
behrenD, Eva. “Die Alltagsspezialisten”, in Jahrbuch Theater heute (2003)<br />
berG, Jan; hüGel, Hans-Otto; e kurzenberGer, Hajo. (eds.) Authentizität als Darstellung<br />
[Autenticidade enquanto representação]. Hildesheim: Universität Hildesheim, 1997<br />
brAnDstetter, Gabriele. “Geschichten erzählen im Performance-Theater der neunziger<br />
Jahre.“ In: fisCher-liChte, Erika et. al. (eds). Transformationen: Theater der 90ger Jahre<br />
[Transformações: teatro dos anos 90]. Berlin: Theater der Zeit, 1999<br />
Diez, Georg. “Das Drama des wirklichen Lebens“ [o drama da vida real], in Frankfurter<br />
Allgemeine Zeitung, 5. Juni 2005.<br />
fisCher-liChte, Erika e Pflug, Isabel (eds). Inszenierung von Authentizität [Encenações de<br />
autenticidade]. Tübingen e Basel: Francke, 2000<br />
fisCher-liChte, Erika. “Entwicklung einer neuen Schauspielkunst“ [O desenvolvimento<br />
de uma nova arte de atuação], in: benDer, Wolfgang F. (ed). Schauspielkunst im 18.<br />
Jahrhundert. Stuttgart: Steiner, 1998<br />
lehmAnn, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac&Naïfy, 2007<br />
lethen, Helmut. “Versionen des Authentischen. Sechs Gemeinplätze“ [Versões do autêntico:<br />
seis chavões], in: böhme, Hartmut e sCherPe, Klaus (eds.) Literatur und Kulturwissenschaften:<br />
Positionen, Theorien, Modelle. Reinbek bei Hamburg: Rowohl, 1996<br />
römer, Stefan: Künstlerische Strategien des Fake. Kritik von Original und Fälschung. [Estratégias<br />
artísticas do fake. Crítica de original e falsificação]. Köln: DuMont, 2001.<br />
Annemarie M. Matzke / Trad. Stephan Baumgärtel
ESPETáCULOS<br />
BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente Concilio. ATRIzES: Mirella Granucci, Vanessa Civiero, Marina Sell e Julia Oliveira. FOTO: Lucas Heymanns.
BadenBaden<br />
SInOPSE:<br />
O homem ajuda o homem?<br />
badenbaden, inspirado em texto de bertolt brecht, estabelece<br />
um jogo vivo e um acordo sutil entre as atrizes e o espectador.<br />
A proposta é que a plateia seja constantemente convidada<br />
a se posicionar ante as cenas, questionando sua própria função<br />
diante delas. Através de um inquérito no qual se decide se quatro<br />
aviadores recém-acidentados merecem ser ajudados. O espetáculo<br />
suscita a reflexão política sobre a morte, a renúncia, o acordo, a<br />
ajuda e a violência.<br />
BadenBaden<br />
(2011). Espaço<br />
2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO:<br />
Vicente<br />
Concilio.<br />
ATRIzES:<br />
Gabriela<br />
Drehmer e<br />
Nina Bamberg.<br />
FOTO: Lucas<br />
Heymanns.<br />
N° 18 | Março Setembro de 2012 de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />
BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente Concilio.<br />
ATRIzES: Priscila Marinho, Mirella Granucci, Marina<br />
Sell, Vanessa Civiero e Julia Oliveira.<br />
FOTO: Guilherme Santos.<br />
BadenBaden<br />
BadenBaden<br />
(2011). Espaço<br />
2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO:<br />
Vicente<br />
Concilio.<br />
ATRIzES:<br />
Julia Oliveira,<br />
Luísa Bresolin<br />
e Priscila<br />
Marinho.<br />
FOTO: Lucas<br />
Heymanns.<br />
199
<strong>Urdimento</strong><br />
200<br />
BADENBADEN (2011).<br />
Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente<br />
Concilio.<br />
FOTO: Lucas<br />
Heymanns<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Entrevista<br />
FICHA TÉCNICA:<br />
direção: Vicente Concilio<br />
Atrizes: Emanuele Mattiello, Gabriela<br />
Drehmer, Isadora Peruch, Julia<br />
Oliveira, Luísa Bresolin, Marina<br />
Sell, Mirella Granucci, Nina-Carmo<br />
Bamberg, Priscila Marinho e Vanessa<br />
Civiero<br />
Texto: Bertolt Brecht<br />
Assistente de direção: Pedro Coimbra<br />
Monitoria: Camila Mayer Petersen<br />
dramaturgia: Luísa Bresolin, Marina<br />
Sell e Vanessa Civiero<br />
Repertório sonoro: Morgana Martins<br />
Criação do “Funk da Mercadoria”:<br />
Bernardo Flesch e Luísa Bresolin<br />
Figurinos: Alice Assal, Luísa Bresolin<br />
e Mirella Granucci<br />
Criação da alegoria: Fátima Lima,<br />
Emanuele Mattiello e Priscila Marinho<br />
Iluminação: Ivo Godois, Julia<br />
Oliveira e Priscila Marinho<br />
Preparador para tecido: Marlon<br />
Spilhere<br />
Material gráfico: Camila Mayer<br />
Petersen<br />
Produção: Emanuele Mattiello e<br />
Nina-Carmo Bamberg<br />
Produção executiva: Gabriela<br />
Drehmer e Isadora Peruch
<strong>Urdimento</strong><br />
202<br />
BadenBaden (2011).<br />
Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente Concilio.<br />
ATRIzES: Mirella Granucci,<br />
Vanessa Civiero, Marina<br />
Sell e Julia Oliveira.<br />
FOTO: Lucas Heymanns<br />
BadenBaden (2011).<br />
Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente<br />
Concilio.<br />
ATRIzES: Isadora<br />
Peruch, Emanuele<br />
Mattiello e Nina<br />
Bamberg.<br />
FOTO: Lucas<br />
Heymanns.<br />
BadenBaden (2011). Espaço 2.<br />
<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente Concilio.<br />
ATRIzES: Isadora Peruch, Priscila<br />
Marinho, Mirella Granucci, Julia<br />
Oliveira, Nina Bamberg, Vanessa<br />
Civiero e Gabriela Drehmer.<br />
FOTO: Lucas Heymanns.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Sinopse<br />
BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente Concilio.<br />
ATRIzES: Vanessa Civiero, Mirella Granucci,<br />
Marina Sell e Julia Oliveira.<br />
FOTO: Lucas Heymanns.<br />
BadenBaden (2011).<br />
Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente<br />
Concilio.<br />
ATRIz: Priscila<br />
Marinho.<br />
FOTO: Lucas<br />
Heymanns.<br />
BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente Concilio. ATRIzES: Mirella Granucci, Vanessa Civiero,<br />
Marina Sell e Julia Oliveira. FOTO: Lucas Heymanns.<br />
BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC. DIREçãO:<br />
Vicente Concilio. ATRIz: Emanuele Mattiello. FOTO:<br />
Guilherme Santos.<br />
BADENBADEN 203
<strong>Urdimento</strong><br />
204<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
Sinopse<br />
BadenBaden (2011).<br />
Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO:<br />
Vicente Concilio.<br />
ATRIzES: Luísa<br />
Bresolin.<br />
FOTO:<br />
Lucas Heymanns<br />
BADENBADEN 205
<strong>Urdimento</strong><br />
206<br />
BadenBaden (2011).<br />
Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO: Vicente<br />
Concilio.<br />
ATRIzES:<br />
Mirella Granucci,<br />
Vanessa Civiero e<br />
Marina Sell.<br />
FOTO:<br />
Guilherme Santos.<br />
N° 18 | Março de 2012<br />
Sinopse
ODISSEIA
odISSEIA<br />
SInOPSE:<br />
Odisseia foi o resultado das disciplinas de<br />
Montagem Teatral I e II, da turma ‘X’ de 2011, do Curso<br />
de Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina/<br />
UDESC. na proposta de montagem, a linguagem<br />
do Teatro de Sombras foi utilizada para contar<br />
uma parte do poema épico grego homônimo,<br />
concentrando a narrativa na visualidade e nos recursos<br />
de transformação do espaço da tela.<br />
Odisseia, atribuído a homero, é, em parte, uma<br />
sequência da Ilíada, outra obra creditada ao autor, e é<br />
um poema fundamental ao cânone ocidental moderno. O<br />
poema é um poema de regresso. Tem como protagonista<br />
um herói da Guerra de Troia, Odisseu (ou Ulisses,<br />
como era conhecido na mitologia romana). Odisseu leva<br />
dez anos para chegar à sua terra natal, Ítaca, depois da<br />
Guerra de Troia, que também havia durado dez anos.<br />
nesse ínterim, participa de fantásticas aventuras com<br />
seres mitológicos e deuses.<br />
Odisseia (2011) Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC. DIREçãO:<br />
Paulo Balardim. Experimento com sombras. FOTO:<br />
Nina Medeiros.<br />
N° 18 | Março Setembro de 2012 de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />
Odisseia (2011)<br />
Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO:<br />
Paulo Balardim.<br />
Odisseu<br />
e seus<br />
companheiros.<br />
FOTO:<br />
Nina Medeiros.<br />
Odisseia (2011)<br />
Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO:<br />
Paulo Balardim. Os<br />
companheiros de<br />
Odisseu.<br />
FOTO:<br />
Nina Medeiros.<br />
CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 209
Odisseia (2011)<br />
Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />
UDESC.<br />
DIREçãO:<br />
Paulo Balardim.<br />
O barco de<br />
Odisseu.<br />
FOTO:<br />
Nina Medeiros.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
FICHA TÉCNICA:<br />
dIREção, dRAMATURGIA E CENoGRAFIA:<br />
Paulo Balardim<br />
ATRIZES:<br />
Elisângela Poletto, Fabiana Lazzari, Izabela Quint, Kátia de<br />
Arruda, Rafaela Ribeiro<br />
PRodUção E dIVULGAção:<br />
Fabiana Lazzari<br />
ASSESSoRIA EM TEATRo dE SoMBRAS:<br />
Alexandre Fávero<br />
PREPARAção VoCAL (ESTáGIo doCêNCIA):<br />
Bárbara Biscaro<br />
CENoTÉCNICA E CoNSTRUção dE SILHUETAS:<br />
Elisângela Poletto, Fabiana Lazzari, Gabriela Paz, Izabela Quint,<br />
Jaqueline Cisne, Luana Mara Pereira, Kátia de Arruda, Paulo<br />
Balardim, Rafaela Ribeiro<br />
CoSTURA dA TELA:<br />
Suzana Silveira e Camila Bressan Ruas<br />
FIGURINoS:<br />
O Grupo<br />
Tema musical “odISSEIA”:<br />
Fábio Saggin (Viola), Tacio Vieira (Cello)<br />
MoNTAGEM dA TRILHA SoNoRA:<br />
Bárbara Biscaro, Paulo Balardim<br />
ESTúdIo:<br />
Departamento de Música - <strong>CEART</strong>/UDESC<br />
TÉCNICo dE ESTúdIo:<br />
Nico Nicodemus<br />
oPERAção dE SoM E LUZ:<br />
Jonas Martins<br />
APoIo:<br />
Caixa do Elefante Teatro de Bonecos e Grupo de Pesquisa Teatro<br />
de Animação - <strong>CEART</strong>/UDESC<br />
FoToS:<br />
Nina Medeiros
<strong>Urdimento</strong><br />
212<br />
Odisseia (2011) Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO: Paulo Balardim. Odisseu e Calipso.<br />
FOTO: Nina Medeiros.<br />
N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
213
214<br />
Odisseia (2011)<br />
Espaço 2.<br />
<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO:<br />
Paulo Balardim.<br />
O barco de<br />
Odisseu navega<br />
entre serias.<br />
FOTO: Nina<br />
Medeiros.<br />
Odisseia (2011)<br />
Espaço 2.<br />
<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
DIREçãO:<br />
Paulo Balardim.<br />
O ciclope<br />
Polifermo.<br />
FOTO:<br />
Nina Medeiros.<br />
Odisseia (2011)<br />
Espaço 2.<br />
<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />
Direção: Paulo<br />
Balardim.<br />
Odisseu<br />
encontra Helio.<br />
foto:<br />
Nina Medeiros.<br />
<strong>Urdimento</strong><br />
215
COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO<br />
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