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Urdimento - CEART - Udesc

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17 DE<br />

NOVEMBRO<br />

DE 1889<br />

Março de 2012 - 18<br />

R E V I S T A D E E S T U D O S E M A R T E S C Ê N I C A S - 1 8


<strong>Urdimento</strong><br />

P R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M T E AT R O - U D E S C<br />

<strong>Urdimento</strong>: s.m. 1) urdume; 2) parte<br />

superior da caixa do palco, onde se<br />

acomodam as roldanas, molinetes, gornos<br />

e ganchos destinados às manobras<br />

cênicas; fig. urdidura, ideação, concepção.<br />

etm. urdir + mento.<br />

ISSN 1414-5731<br />

Revista de Estudos em Artes Cênicas<br />

Número 18<br />

Programa de Pós-Graduação em Teatro do <strong>CEART</strong><br />

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA


URDIMENTO é uma publicação semestral do Programa<br />

de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da<br />

Universidade do Estado de Santa Catarina. As opiniões<br />

expressas nos artigos são de inteira responsabilidade<br />

dos autores. A publicação de artigos, fotos e desenhos foi<br />

autorizada pelos responsáveis ou seus representantes.<br />

A revista está disponível online em<br />

www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento<br />

Ficha técnica<br />

Comitê editorial: Maria Brígida de Miranda, Stephan Arnulf<br />

Baumgärtel e Vera Regina Martins Collaço<br />

Capa: BadenBaden (2011-2012), direção Vicente Concílio, Professor do<br />

Departamento de Artes Cênicas - UDESC. Foto: Lucas Heymannus<br />

Contracapa: Odisseia (2011), direção Paulo Balardim,<br />

Professor do Departamento de Artes Cênicas - UDESC.<br />

Foto: Nina Medeiros.<br />

Local: Centro de Artes da UDESC<br />

Projeto Gráfico: Déborah Salves [salves.deborah@gmail.com]<br />

Diagramação e Projeto Gráfico:<br />

Valdir Siqueira - MTB: 31.804 [valdirsiqueira@sea.sc.gov.br]<br />

Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES<br />

Catalogação na fonte: Luiza da Silva Kleinubing. CRB 14/1132<br />

Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC<br />

<strong>Urdimento</strong>: revista de estudos em artes cênicas / Universidade do<br />

Estado de Santa Catarina. Centro de Artes. Programa de Pós-<br />

Graduação em Teatro. - n.18 (2012) - Florianópolis: UDESC/<strong>CEART</strong>, 2012 -<br />

v.1, n.18, março 2012<br />

Semestral<br />

ISSN 1414-5731<br />

1. Teatro - periódicos. 2. Artes Cênicas - periódicos. I. Universidade do<br />

Estado de Santa Catarina. Centro de Artes. Programa de Pós-Graduação<br />

em Teatro.<br />

CDD: 792 - 20. ed.<br />

Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC<br />

Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa<br />

Vice Reitor: Marcos Tomasi<br />

Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Leo Rufato<br />

Diretor do Centro de Artes: Milton de Andrade<br />

Chefe do Departamento de Artes Cênicas: Vicente Concílio<br />

Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Stephan Arnulf Baumgärtel<br />

Conselho editorial<br />

Ana Maria Bulhões de Carvalho Edlweiss (UNIRIO)<br />

Bya Braga (UFMG)<br />

Cássia Navas Alves de Castro (UNICAMP)<br />

Christine Greiner (PUC/SP)<br />

Felisberto Sabino da Costa (ECA/USP)<br />

Jerusa Pires Ferreira (PUC/SP)<br />

João Roberto Faria (FFLCH/USP)<br />

José Dias (UNIRIO)<br />

José Roberto O’Shea (UFSC)<br />

Luiz Fernando Ramos (ECA/USP)<br />

Márcia Pompeo Nogueira (<strong>CEART</strong>/UDESC)<br />

Marcus Mota (UnB)<br />

Maria Lucia de Souza Barros Pupo (ECA/USP)<br />

Mario Fernando Bolognesi (UNESP)<br />

Marta Isaacsson de Souza e Silva (DAD/UFRGS)<br />

Neyde Veneziano (UNICAMP)<br />

Rosyane Trotta (UNIRIO)<br />

Sérgio Coelho Farias (UFBA)<br />

Sônia Machado Azevedo (Escola Superior de Artes Célia Helena)<br />

Tiago de Melo Gomes (UFRPE)<br />

Walter Lima Torres (UFPR)<br />

Conselho assessor<br />

Beti Rabetti (UNIRIO)<br />

Ciane Fernandes (UFBA)<br />

Eugenia Casini Ropa (Universidade de Bolonha - Ítalia)<br />

Eugenio Barba (Odin Teatret)<br />

Francisco Javier (Universidad de Buenos Aires)<br />

Jacó Guinsburg (ECA/USP)<br />

Julia Sagaseta (Instituto Universitário Nacional del Arte -<br />

Buenos Aires)<br />

Juan Villegas (University of California)<br />

Marcelo da Veiga (Universidade Alanus – Alemanha)<br />

Óscar Cornago Bernal (Conselho Superior de Pesquisas<br />

Científicas – Espanha)<br />

Osvaldo Pellettieri (Universidad de Buenos Aires - In Memoriam)<br />

Peta Tait (La Trobe University)<br />

Roberto Romano (UNICAMP)<br />

Silvana Garcia (EAD/USP)<br />

Silvia Fernandes Telesi (ECA/USP)<br />

Tânia Brandão (UNIRIO)


UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina<br />

<strong>CEART</strong> - Centro de Artes<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO<br />

O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, implantado<br />

em 2001, e Doutorado, em 2009.<br />

Professores permanentes<br />

André Luiz Antunes Netto Carreira<br />

Beatriz Ângela Vieira Cabral<br />

Edélcio Mostaço<br />

Fátima Costa de Lima<br />

José Ronaldo Faleiro<br />

Márcia Pompeo Nogueira<br />

Maria Brígida de Miranda<br />

Milton de Andrade<br />

Sandra Meyer Nunes<br />

Stephan Arnulf Baumgärtel<br />

Tereza Mara Franzoni<br />

Valmor Beltrame<br />

Vera Regina Martins Collaço<br />

Professores colaboradores<br />

Matteo Bonfitto Júnior (UNICAMP)<br />

Timothy Prentki (Tim Prentki) - (Universidade de Winchester,<br />

Reino Unido)<br />

O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candidatos<br />

em nível nacional e internacional. Para acesso ao calendário de<br />

atividades, linhas e grupos de pesquisa, corpo docente e corpo<br />

discente, dissertações e teses defendidas e outras informações,<br />

consulte o sítio virtual: http://www.ceart.udesc.br/ppgt<br />

APRESENTAçãO<br />

ARTIGOS<br />

Rosalinda: Protagonista de AS YOU LIKE IT<br />

Rafael Raffaeli<br />

Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta<br />

em até 140 caracteres<br />

Aline de Mello Sanfelici<br />

Fatzer e o Espectro<br />

Fernando Kinas<br />

Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições<br />

de A. Appia e E. Piscator<br />

Marcus Mota<br />

A trajetória de uma diretora<br />

Leo Sykes<br />

Padagogia do Teatro<br />

Teatro de figuras alegóricas: A ferida Woyzeck<br />

Ingrid Dormien Koudela<br />

Possibilidades e desafios da iniciação à docência<br />

em teatro na Educação Básica<br />

Vera Lúcia Bertoni dos Santos<br />

A Formação dos professores e a prática reflexiva: os canais<br />

de percepção no ensino do teatro<br />

Robson Rosseto<br />

A voz social no contexto escolar: identidade,<br />

subjetividade e diferença<br />

Raquel Guerra<br />

9 e 10<br />

16<br />

17<br />

27<br />

35<br />

43<br />

59<br />

69<br />

71<br />

78<br />

85<br />

93<br />

Sumário


A experimentação vocal na composição da personagem<br />

teatral. Confrontando as barreiras da preconcepção do texto<br />

Agatha Baú<br />

Teatralidades no Corpo: O espaço cênico somos nós<br />

Marina Marcondes Machado<br />

Teatro-fórum: propósitos e procedimentos<br />

Cilene Nascimento Canda<br />

Teatro comunitário e dramaturgia do espaço público<br />

Juliano Borba<br />

Encontro com Dramaturgo<br />

Meta-textualidade, instâncias de enunciação e conflitos<br />

não-narrativos – reflexões sobre impulsos não-dramáticos na<br />

dramaturgia brasileira contemporânea<br />

Stephan Baumgärtel<br />

ENTREVISTAS<br />

Caminhos da Dramaturgia Brasileira 1<br />

– Entrevista com Samir Yazbek<br />

Caminhos da Dramaturgia Brasileira 2<br />

– Entrevista com Márcio Abreu<br />

Caminhos da Dramaturgia Brasileira 3<br />

– Entrevista com Roberto Alvim<br />

TRADUçõES<br />

Improvisação<br />

Charles Dullin<br />

Entre fala e linguagem<br />

Theresia Birkenhauer<br />

De seres humanos reais e performers verdadeiros<br />

Annemarie Matzke<br />

ESPETáCULOS<br />

BadenBaden (2011)<br />

Odisseia (2011)<br />

103<br />

109<br />

119<br />

129<br />

139<br />

141<br />

155<br />

157<br />

159<br />

163<br />

169<br />

171<br />

181<br />

189<br />

197<br />

198<br />

207


N° 18 | Março de 2012<br />

Apresentação<br />

BadenBaden (2011) - DIREÇÃO: Vicente Concílio. ATRIZ: Gabriela Drehmer. FOTO: Lucas Heymanns.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Apresentação 9


N° 18 | Março de 2012<br />

Este número da revista URDIMENTO reúne artigos<br />

que chegaram pelo fluxo contínuo ao corpo editorial.<br />

Eles foram escolhidos por permitirem ao leitor, em sua<br />

qualidade e diversidade, acompanhar com uma visão<br />

crítica o crescimento da pesquisa na área do teatro<br />

ao longo dos últimos anos, e familiarizar-se com as<br />

diferentes pesquisas realizadas nos Programas de Pós-<br />

Graduação em Artes Cênicas do país. Esse número<br />

contempla, também, o que podemos denominar de<br />

um mini dossiê voltado para o Teatro & Educação,<br />

complementando, dessa forma, a <strong>Urdimento</strong> anterior,<br />

cujo numero temático foi voltado para a pedagogia<br />

teatral.<br />

Abrimos com dois estudos sobre duas peças de<br />

Shakespeare que atestam o fascínio que este teatro ainda<br />

consegue suscitar nos leitores de hoje. Segue um estudo<br />

sobre o texto Fatzer, uma peça não-acabada de Bertolt<br />

Brecht, que recentemente serviu como (pré-)texto para<br />

uma cooperação cênica entre artistas alemães e brasileiros<br />

em São Paulo. Marcus Mota apresenta os primeiros<br />

resultados de sua atual pesquisa sobre os projetos poéticos<br />

e culturais de alguns fundadores europeus do teatro<br />

moderno e contemporâneo, traduzindo e analisando<br />

diretamente as fontes primárias. Leo Sykes relata suas<br />

experiências como assistente de Eugenio Barba e diretora<br />

do Circo Teatro Udi Grudi, oferecendo uma perspectiva<br />

ao mesmo tempo pessoal e exemplar: partindo do ponto<br />

de vista daquilo que ela chama um olhar ‘feminino’,<br />

independente do sexo da figura do diretor, ela oferece<br />

um olhar íntimo sobre alguns processos criativos do Odin<br />

Teatret e de seu próprio grupo de Brasília.<br />

Uma das áreas mais consolidadas no nosso contexto<br />

acadêmico e profissional é a da Pedagogia do Teatro. As<br />

múltiplas relações entre teatro e educação, entre o fazer<br />

teatral e a formação de identidades humanas, individuais<br />

ou coletivas, são apresentadas em oito artigos. Os artigos<br />

situam criticamente a pedagogia do teatro e seus diversos<br />

Apresentação<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Apresentação 11


<strong>Urdimento</strong> N° 18 | Março de 2012<br />

12<br />

procedimentos criativos dentro de escola,<br />

universidade, empresa e comunidade.<br />

Em 2011, o PPGT em conjunto com os<br />

Departamentos de Artes Cênicas da<br />

UDESC e da UFSC, iniciou um projeto<br />

intitulado Encontro com Dramaturgo.<br />

Foram, então, convidados quatro<br />

dramaturgos para falar sobre seu<br />

trabalho, suas experiências enquanto<br />

autores teatrais, sua visão sobre<br />

o lugar da dramaturgia teatral na<br />

sociedade brasileira contemporânea,<br />

e para ministrar uma oficina. Três<br />

dramaturgos responderam por escrito<br />

a um questionário deixando registrado<br />

algumas dessas reflexões teóricas expostas<br />

nas suas palestras. Apresentamos aqui<br />

essas entrevistas, acompanhadas de<br />

um artigo de Stephan Baumgärtel,<br />

idealizador do referido projeto e<br />

professor do PPGT. A partir de exemplos<br />

da dramaturgia brasileira, esse artigo<br />

oferece uma reflexão sobre três aspectos<br />

básicos pelos quais uma dramaturgia<br />

não-dramática contemporânea difere<br />

de uma dramaturgia que denominamos<br />

usualmente de dramática. Esperamos que<br />

esse projeto e alguns de seus resultados<br />

aqui registrados auxiliem a repensar o<br />

lugar do texto teatral além da dicotomia<br />

literatura e cena.<br />

Finalizamos esta edição com três<br />

traduções de ensaios de pesquisadores<br />

estrangeiros. Ao lado de um texto sobre<br />

Improvisação, do encenador francês<br />

Charles Dullin, incluímos o texto<br />

Entre fala e linguagem, da pesquisadora<br />

alemã Theresia Birkenhauer, falecida<br />

prematuramente em 2006, que foi<br />

uma das primeiras teóricas do teatro<br />

a pensar a relação entre texto e cena<br />

à luz das práticas cênicas e textuais<br />

contemporâneas. Por último, reeditamos<br />

o texto de Annemarie Matzke, De seres<br />

humanos reais e performers verdadeiros, uma<br />

vez que por um erro de diagramação, na<br />

<strong>Urdimento</strong> n. 16, se perdeu a final parte<br />

do texto.<br />

Desejamos que os leitores possam<br />

encontrar nesse número impulsos<br />

para suas próprias questões de<br />

pesquisa, reiterando nosso chamado à<br />

colaboração contínua, e nosso convite a<br />

dialogar diretamente com os trabalhos<br />

apresentados.<br />

Maria Brígida de Miranda, Vera Collaço,<br />

Stephan Baumgärtel<br />

Corpo Editorial<br />

Apresentação


ARTIGOS<br />

BadenBaden<br />

(2011). Espaço 2.<br />

<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO:<br />

Vicente Concílio.<br />

ATRIzES:<br />

Vanessa Civieiro<br />

e Mirella<br />

Granucci.<br />

FOTO: Lucas<br />

Heymanns.


N° 18 | Março de 2012<br />

ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />

Resumo<br />

Este ensaio trabalha com a peça de William Shakespeare<br />

"As you like it", analisando a construção da personalidade<br />

da protagonista da comédia, Rosalinda, com referência<br />

aos aspectos mitológicos e de gênero. Rosalinda é baseada<br />

na personagem do romance Rosalynd de Thomas Lodge,<br />

mas é muito diferente da heroína pastoral usual. Rosalinda<br />

travestida pode ser interpretada como o andrógino ou<br />

hermafrodita arquetípico e o seu relacionamento com<br />

Orlando como um hiero gamos.<br />

PALAVRAS-ChAVE: Shakespeare, As you like it, Rosalinda.<br />

Abstract<br />

This essay works on the William Shakespeare’s play As<br />

you like it, analyzing the construction of the personality<br />

of the protagonist of the comedy, Rosalind, concerning<br />

gender and mythological aspects. Rosalind is based on<br />

the personage of the romance Rosalynd of Thomas Lodge,<br />

but is much different from the usual pastoral heroine.<br />

Rosalind travestied may be interpreted as the archetypal<br />

androgynous or hermaphrodite and her relationship with<br />

Orlando as a hieros gamos.<br />

KEywORDS: Shakespeare, As you like it, Rosalind.<br />

1 Professor Titular, membro permanente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em<br />

Ciências Humanas, docente dos cursos de Psicologia, Cinema e Artes Cênicas da UFSC. Mestre em<br />

Psicologia Social, Doutor em Psicologia Clínica, Pós-Doutorado em Psicologia Clínica pela PUC/SP,<br />

Pós-Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

ROSALINDA:<br />

PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />

Rafael Rafaelli 1<br />

17


<strong>Urdimento</strong><br />

18<br />

Introdução<br />

O<br />

objetivo do presente ensaio<br />

é analisar aspectos da composição<br />

da personalidade de<br />

Rosalinda, protagonista de<br />

As you like it (Do jeito que você<br />

gosta) de William Shakespeare, evidenciando<br />

algumas das interpretações sobre<br />

a função desse papel na peça e seus<br />

possíveis desdobramentos teóricos, em<br />

especial as questões relacionadas ao gênero<br />

e à mitologia.<br />

Apresenta-se a seguir alguns dos<br />

elementos históricos e estilísticos que influenciaram<br />

Shakespeare na elaboração<br />

dessa comédia.<br />

Shakespeare a redigiu provavelmente<br />

no verão de 1599, ano em que já havia<br />

escrito Henrique V e Júlio César, imediatamente<br />

antes da elaboração de Hamlet.<br />

Na produção desse ano, segundo James<br />

Shapiro (2011, p.17), se cristalizam os<br />

“mundos perdidos” de Shakespeare: “o<br />

passado católico recente da Inglaterra,<br />

a paisagem desflorestada de sua nativa<br />

Arden e a cultura cavalheiresca que desaparecia<br />

gradual, mas rapidamente”.<br />

Para esse autor o drama elisabetano foi<br />

fruto das transformações que a Inglaterra<br />

sofria em seu Renascimento tardio, em<br />

especial o rompimento com o catolicismo<br />

ocorrido em 1535, e uma das hipóteses<br />

para o florescimento do teatro nesse<br />

período foi a proibição das festas católicas,<br />

que exerciam uma enorme influência<br />

sobre o imaginário popular. Mas o<br />

fato é que os espetáculos londrinos eram<br />

assistidos diariamente por cerca de três<br />

mil pessoas de todos os extratos sociais e<br />

“isso significava que Shakespeare e seus<br />

colegas dramaturgos estavam escrevendo<br />

para os frequentadores de teatro mais<br />

experientes da história” e ele agradava a<br />

todos (SHAPIRO, 2011, p.31).<br />

No seu texto A Literatura Inglesa, Anthony<br />

Burgess (2008, p.92) coloca que<br />

o teatro da época apresentava “ação e<br />

sangue para os iletrados, belas frases e<br />

engenho para os almofadinhas, humor<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

sutil para os refinados, palhaçada escandalosa<br />

para os não-refinados, assuntos<br />

amorosos para as damas, canção e dança<br />

para todos”.<br />

E, efetivamente, tudo isso encontramos<br />

em As you like it. Há indícios de que<br />

foi encenada pela primeira vez no Natal de<br />

1599 para a rainha Elisabeth no Palácio de<br />

Richmond (SHAPIRO, 2011, p.363), tendo<br />

sido registrada de forma oficial em agosto<br />

de 1600. Sua publicação ocorreu apenas<br />

no Primeiro Fólio de 1623 - organizado por<br />

Henry Condell e John Heminges sete anos<br />

após a morte de Shakespeare - e só mais de<br />

um século depois seria citada e encenada<br />

de novo. Por ser um trabalho inovador, à<br />

frente de seu tempo, talvez o público não<br />

estivesse acostumado a personagens tão<br />

desenvolvidos e complexos, e a peça foi<br />

relegada a um relativo esquecimento após<br />

sua première (SHAPIRO, 2011, p.237).<br />

O pano de fundo do enredo é a deposição<br />

do Duque Sênior, pai de Rosalinda,<br />

pelo seu irmão, o Duque Frederico, pai<br />

de Célia. O Duque Sênior foge do palácio<br />

e se esconde na idílica floresta de Arden<br />

acompanhado por Jaques e um punhado<br />

de correligionários, deixando sua<br />

filha na cidade em companhia da prima.<br />

Rosalinda é expulsa da corte pelo tio e aí<br />

as duas primas, acompanhadas pelo bobo<br />

Touchstone, resolvem também fugir para<br />

a floresta. Para evitar os perigos da jornada,<br />

Rosalinda disfarça-se trajando roupas<br />

masculinas e adota o pseudônimo de ‘Ganimedes’,<br />

enquanto Célia veste-se como se<br />

fosse a camponesa ‘Aliena’. Já na floresta,<br />

Rosalinda encontra-se com Orlando, por<br />

quem nutre uma paixão correspondida.<br />

Sem abandonar seu disfarce masculino,<br />

Rosalinda convence Orlando que vai curálo<br />

de sua paixão e, para tanto, pede que ele<br />

a corteje como se fosse a sua amada. Com<br />

essa artimanha pretende verificar a sinceridade<br />

do seu amor por ela e, ao mesmo tempo,<br />

ensiná-lo a amar de verdade. Ao final,<br />

quando o Duque Sênior é restaurado no<br />

trono, acontece uma festa sob os auspícios<br />

de Himeneu – deus do casamento - na qual<br />

Rosalinda revela-se, abandonando seu dis-<br />

Rafael Raffaelli<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

farce, e casa com Orlando, enquanto Célia<br />

casa-se com Oliver, o irmão dele. A cena<br />

completa-se com mais dois enlaces: Touchstone<br />

casa-se com a camponesa Audrey<br />

e Silvius com Phoebe.<br />

O enredo caracteriza-se pela simplicidade.<br />

Como resume Michael Hattaway<br />

(2000, p.11): “the play’s central story of the<br />

wooing of Orlando and Rosalind, a tale in which,<br />

in the manner of classical New Comedy,<br />

love and virtue overcome adversity and oppression,<br />

is slightest”.<br />

A fonte da peça é o romance pastoril<br />

Rosalynd de Thomas Lodge, publicado em<br />

1590. Shakespeare utilizou a trama principal<br />

do romance de Lodge, dois jovens<br />

perdidos numa floresta, e o tema da usurpação<br />

e restauração do governo de um<br />

ducado. Manteve o disfarce masculino de<br />

Rosalinda como Ganimedes – o copeiro de<br />

Júpiter – e até os nomes dos personagens<br />

principais, com exceção de Orlando, denominado<br />

‘Rosader’ em Lodge (KOTT, 2003,<br />

p.240; SHAPIRO, 2011, p.241).<br />

O título da peça seria uma espécie de<br />

chamariz para o público, da mesma forma<br />

que os taverneiros da época penduravam<br />

ramos de hera nas portas dos seus estabelecimentos<br />

para anunciar que serviam vinho<br />

de qualidade superior, como é referido no<br />

seu epílogo, que em Lodge constitui-se no<br />

prefácio. Outra particularidade é que se supõe<br />

que o próprio Shakespeare atuava no<br />

papel de Adam, o idoso criado de Orlando,<br />

que desaparece de cena após a primeira<br />

refeição na floresta (BLOOM, 2000, p.260;<br />

SHAPIRO, 2011, p.254).<br />

Em suma, Shakespeare manteve a<br />

base do enredo, mas acrescentou uma pitada<br />

de ironia e humor com as figuras de<br />

Jaques e Touchstone. Ao melancólico Jaques<br />

corresponde a fala mais conhecida<br />

da peça: “O mundo é um palco e todos os<br />

homens e mulheres são na verdade atores”<br />

(SHAKESPEARE, 2011, p.54, 2.7). Touchstone,<br />

o jester, cujo nome – pedra de toque<br />

– faz menção à pedra que era usada pelos<br />

ourives para avaliar a pureza dos metais<br />

preciosos, aparece para separar o joio do<br />

trigo, a falsidade da verdade, a sabedoria<br />

ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

da loucura. O papel foi feito sob medida<br />

para Robert Armin, que havia substituído<br />

William Kemp na companhia de Shakespeare<br />

(Lord Chamberlain’s Men). Com exceção<br />

de Feste em Noite de Reis, suas trezentas linhas<br />

de fala superaram qualquer outro bufão<br />

em sua obra (SHAPIRO, 2011, p.256).<br />

Além disso, Shakespeare realiza em<br />

sua obra uma espécie de “contra-pastoral”,<br />

pois tanto Jaques como Touchstone estabelecem<br />

“a kind of reality principle, both<br />

demonstrating a sardonic scepticism about<br />

the satisfactions of country as opposed to<br />

pastoral life” (HATTAWAY, 2000, p.19).<br />

Esse ponto fica evidente no seguinte<br />

trecho do diálogo entre Touchstone e o<br />

pastor Corin:<br />

Corin – Está gostando da vida de<br />

pastor, Mestre Touchstone?<br />

Touchstone – Sendo franco, pastor,<br />

em relação a si mesma é uma vida boa,<br />

mas considerando que é uma vida de<br />

pastor, é um nada. Por ser solitária,<br />

gosto muito, mas considerando que<br />

é isolada, é uma vida muito vil.<br />

Agora, por trabalhar no campo, ela<br />

bem me agrada, mas como não é na<br />

cidade, é tediosa. Como é uma vida<br />

frugal, veja você, ela se adequa à<br />

minha disposição, mas como não<br />

há abundância, ela vai contra meu<br />

estômago (SHAKESPEARE, 2011,<br />

p.60-61, 3.3).<br />

Assim, a peça excede os domínios<br />

de uma pastoral clássica e desenvolve uma<br />

temática inovadora para os padrões da<br />

época, na qual Rosalinda se constitui a força<br />

motriz da ação dramática.<br />

As várias faces de Rosalinda<br />

Harold Bloom em seu livro Shakespeare:<br />

a invenção do humano afirma que Rosalinda<br />

é “a mais talentosa” (2000, p.260)<br />

das heroínas das comédias de Shakespeare<br />

e “a quem Rosalinda não for capaz<br />

de agradar, nenhum outro personagem<br />

shakespeariano, ou em toda a literatura,<br />

19


<strong>Urdimento</strong><br />

20<br />

poderá fazê-lo” (2000, p.261). E mais: “a<br />

invenção do humano por Shakespeare<br />

(...) alcança uma nova dimensão com Rosalinda”<br />

(2000, p.264).<br />

‘Rosalinda’ e suas variantes dão<br />

nome a personagens recorrentes na<br />

obra de Shakespeare, pois em Trabalhos<br />

de Amor Perdidos existe uma ‘Rosaline’,<br />

dama de companhia da princesa, e, em<br />

Romeu e Julieta é mencionada, dependendo<br />

da edição, ‘Rosaline’ ou ‘Rosalinda’,<br />

uma jovem compromissada com Romeu<br />

que nunca aparece em cena. Ambas são<br />

femmes fatales, mulheres inatingíveis<br />

como no ideal de Petrarca.<br />

No teatro elisabetano, Rosalinda era<br />

interpretada por um homem, que interpretava<br />

uma mulher disfarçada de homem,<br />

cujo pseudônimo é ‘Ganimedes’,<br />

com a conotação homoerótica que essa<br />

associação traz. Como classificar um<br />

homem que se faz mulher, que se faz<br />

homem para atrair outro homem? Representada<br />

por um rapaz imberbe, Rosalinda<br />

surgia com uma aura de hermafroditismo,<br />

lançando uma sombra sobre as<br />

definições estanques de gênero vigentes.<br />

Sobre esse aspecto da peça, cabe aqui a<br />

observação de Jan Kott (2003, p.241)<br />

evocando a estética teatral de Jean Genet:<br />

“O teatro é a imagem de todas as<br />

relações humanas porque a falsidade<br />

constitui seu princípio. (...) A ‘verdadeira’<br />

menina é um rapaz disfarçado”.<br />

Por outro lado, na opinião de Burgess<br />

(2008, p.90), o fato das mulheres serem<br />

proibidas de atuar no teatro elisabetano<br />

contribuiu para que várias heroínas de<br />

Shakespeare se travestissem, pois “suas heroínas<br />

eram rapazes e se sentiam mais confortáveis<br />

(provavelmente representavam<br />

melhor também) vestidas como rapazes”.<br />

Algumas montagens contemporâneas<br />

podem cair na tentação de transformar<br />

a peça numa espécie de ‘férias no<br />

campo’, mas o papel de Rosalinda exige<br />

uma ênfase no lirismo sem transbordamentos<br />

sentimentais, pois esse papel,<br />

escrito para jovens atores, tem sutilezas<br />

e ambiguidades que as atrizes por vezes<br />

suprimem. Segundo Paglia (1994, p.203)<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

“a heroína travestida de Shakespeare<br />

tem orgulho, verve, e frio e aristocrático<br />

controle masculinos – que dificilmente<br />

se encontram nas Rosalindas simplistas<br />

e inócuas de hoje”.<br />

Além de Rosalinda, Viola (Noite de<br />

Reis) e Pórcia (O Mercador de Veneza)<br />

também se travestem, mas não possuem<br />

a mesma atitude masculina, o mesmo<br />

ímpeto de ação. Viola mostra-se tímida<br />

e frágil e Pórcia não atua no sentido da<br />

conquista amorosa. Já Rosalinda sabe ser<br />

dura e direta, até intimidadora, e não se<br />

deixa levar pelo excesso de compaixão<br />

feminina, como quando desdenha Phoebe,<br />

ao contrário de Viola que fica com<br />

pena de Olívia que se apaixonou por ela.<br />

Mais ainda, a Rosalinda de As you like<br />

it é um dos personagens mais originais<br />

da literatura renascentista, superando o<br />

tratamento psicológico dado às personagens<br />

femininas da época. Rompe com a<br />

idéia da docilidade e da fragilidade inatas<br />

da mulher, da sua incapacidade intelectual,<br />

de seu papel passivo na corte<br />

amorosa e de sua submissão aos desejos<br />

masculinos. Quanto a isso, de fato, “a visão<br />

shakespeariana da mulher é revolucionária”<br />

(PAGLIA, 1994, p.203).<br />

Já a relação entre Rosalinda e Orlando<br />

evolui de um amor idealizado para<br />

uma relação de amor mútuo e cotidiano.<br />

De maneira diversa de Romeu e Julieta,<br />

o que está em jogo não é a intensidade<br />

da paixão, mas o autoconhecimento e a<br />

intimidade da vida a dois. Numa peça<br />

na qual o conflito surge no início e depois<br />

se dissipa quase por si só, o élan da<br />

comédia é a educação afetiva através da<br />

qual Rosalinda submete Orlando à sua<br />

vontade, invertendo as posições da corte<br />

amorosa. Diz ainda Bloom (2000, p.269):<br />

“Orlando é tão imaturo quanto a maioria<br />

dos personagens masculinos em Shakespeare;<br />

(...) Rosalinda é pragmática demais<br />

para lamentar essa desigualdade, e<br />

educa Orlando com todo prazer”.<br />

A base dessa educação afetiva é o<br />

contrato terapêutico que Rosalinda,<br />

como Ganimedes, propõe a Orlando<br />

logo que se encontram na floresta:<br />

Rafael Raffaelli<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Rosalinda – O amor é apenas<br />

uma loucura, posso lhe afirmar,<br />

e merece o quarto escuro e o<br />

chicote reservado aos loucos. E<br />

o motivo de não ser punida ou<br />

curada é que essa insanidade se<br />

tornou tão comum que os próprios<br />

terapeutas estão apaixonados.<br />

Mas sou perito em curá-la pelo<br />

aconselhamento.<br />

Orlando – Já curou alguém?<br />

Rosalinda – Sim, um, e deste<br />

modo: ele tinha que me imaginar<br />

como sendo o seu amor, a sua<br />

amada, e eu o encontrava todo dia<br />

para que me cortejasse. Aí eu me<br />

mostrava como sendo de lua – às<br />

vezes sensível e gentil. Às vezes<br />

mutável, volúvel, orgulhosa,<br />

caprichosa, frívola, superficial,<br />

inconstante, às vezes cheia de<br />

lágrimas, às vezes cheia de<br />

sorrisos. Demonstrava paixão por<br />

algo e depois não tinha interesse<br />

por nada, pois os garotos e as<br />

mulheres são, em sua maior parte,<br />

gado desse tipo. Às vezes, gostava<br />

dele, às vezes o detestava, às vezes<br />

o mimava, às vezes o repelia, às<br />

vezes chorava por ele, às vezes,<br />

cuspia. Desse modo, eu o conduzi<br />

da loucura amorosa para a loucura<br />

quotidiana, a qual o fez abandonar<br />

a torrente avassaladora do mundo<br />

e viver à beira de um riacho em<br />

reclusão monástica. Foi assim que<br />

o curei e da mesma forma limparei<br />

seu coração para que ele se pareça<br />

com o coração puro de uma<br />

ovelha, sem uma única mancha de<br />

amor (SHAKESPEARE, 2011, p.<br />

76-77, 3.3).<br />

Orlando é Júpiter e ela o seu belo amante<br />

Ganimedes. Mas ele precisa abandonar a<br />

prepotência do macho e aceitar a orientação<br />

dela para aprender a amar e a cortejar. Da<br />

mesma forma, os poemas inspirados em Petrarca<br />

que ele lhe dedica devem ser depurados<br />

de sua carga idealizante para enfrentar<br />

as duras realidades da convivência a dois.<br />

Por isso, “morrer de amor” é, no dizer de<br />

Rosalinda, uma “mentira” (SHAKESPEA-<br />

RE, 2011, p.93, 4.1).<br />

ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Quanto ao papel de Orlando na<br />

trama, que parece não se dar conta do<br />

disfarce óbvio de Rosalinda, fica uma<br />

dúvida: ele sabe da artimanha dela?<br />

Se ele sabe, em que momento ficou sabendo?<br />

E, se ele sabe, ela sabe que ele<br />

sabe? E ainda: ele sabe que ela sabe que<br />

ele sabe? Ou seja, é engodo ou conluio?<br />

Questões que têm que ser interpretadas<br />

pelas montagens, pois quando Rosalinda<br />

se revela ao final da peça, não<br />

há assombro por parte dele. Pode-se<br />

dizer que essa imprevisibilidade do<br />

desenrolar da comédia é a inovação<br />

introduzida por Shakespeare. Conforme<br />

avalia Bloom (2000, p.282), “além<br />

da questão da credibilidade, seria uma<br />

perda estética se Orlando não estivesse<br />

plenamente consciente do encanto da<br />

situação”. Shapiro (2011, p.246) sugere<br />

que esse reconhecimento efetivamente<br />

ocorre durante a encenação do casamento<br />

oficiado por Célia, no momento<br />

em que Rosalinda diz “dê-me sua mão,<br />

Orlando” (SHAKESPEARE, 2011, p.94,<br />

4.1) e ele a toca.<br />

Rosalinda é uma personagem muito<br />

bem trabalhada no aspecto psicológico, denota<br />

uma rica interioridade que a diferencia<br />

da heroína convencional e uma capacidade<br />

ímpar de gerar empatia com a audiência,<br />

que chega ao ápice no monólogo final. Possui<br />

um quarto do total de falas da peça,<br />

domina todas as cenas em que participa e<br />

exerce um papel central no desenrolar da<br />

trama. Pois Rosalinda é exuberante, emotiva,<br />

um tanto sonhadora, mas também,<br />

desinibida, intelectualizada e afiada como<br />

uma navalha, todas essas qualidades que a<br />

tornam única e que a fazem tão amada. Em<br />

suma, é rosa (atributo feminino) e é espinho<br />

(atributo masculino).<br />

O diálogo entre Rosalinda – disfarçada<br />

como Ganimedes – e Orlando evidencia<br />

essa ambivalência:<br />

Orlando – Um homem que possui<br />

uma mulher com tal astúcia poderia<br />

dizer: “Perdeu o juízo?”<br />

Rosalinda – Pode guardar essa<br />

observação para quando encontrar<br />

21


<strong>Urdimento</strong><br />

22<br />

a astúcia de sua mulher indo para a<br />

cama do vizinho.<br />

(SHAKESPEARE, 2011, p.95-96, 4.1)<br />

Sem dúvida tal abordagem não era<br />

isenta de riscos, tendo em vista que a criação<br />

de uma personagem desse jaez causaria<br />

certo mal-estar numa sociedade na<br />

qual ainda subsistia a prática do charivari<br />

– em inglês ‘riding the stang’, ‘skimmington<br />

riding’ ou ‘rough music’, conforme a região<br />

(ANDREWS, 2010). Consistia numa manifestação<br />

de execração pública direcionada<br />

contra pessoas que rompiam normas sociais<br />

ou causavam distúrbios, em especial<br />

no casamento, como adúlteros ou mesmo<br />

quando uma mulher mandava no marido<br />

– nesse caso, ela era colocada montada ao<br />

contrário num cavalo, isto é, com a face<br />

voltada para a traseira do animal, e desfilava<br />

pelas ruas para o escárnio do povo.<br />

Pois Rosalinda governa melhor a floresta<br />

que seu pai o ducado, ela ordena<br />

e dispõe os laços afetivos com precisão e<br />

perspicácia para obter, como que por ‘mágica’,<br />

os fins que almeja. Por isso, sugere<br />

Camille Paglia (1994, p.202), quando Jaques<br />

improvisa uma canção e nela inclui a<br />

palavra enigmática “ducdame” (SHAKES-<br />

PEARE, 2011, p.48, 2.5), poderia estar dizendo<br />

de forma oblíqua que, na verdade,<br />

“o duque é uma dama”.<br />

Outro aspecto a ser considerado é a<br />

ligação entre Rosalinda e sua prima Célia<br />

que pode ser interpretada como homoerótica,<br />

pois “nunca antes duas moças se<br />

amaram dessa maneira” (SHAKESPEARE,<br />

2011, p.13, 1.1). Some-se a isso a paixão que<br />

Phoebe nutre por ela, explicitada nos versos<br />

que lhe envia:<br />

Dize-me, ó Deus-pastor, o que quer<br />

Ao abrasar o coração de uma mulher?<br />

Por que a sua essência renascida quer<br />

Guerrear contra um coração de<br />

mulher?<br />

(SHAKESPEARE, 2011, p.101, 4.3)<br />

Pelas paixões que Rosalinda provoca<br />

logo se percebe que mudar de gênero<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

não é uma atitude isenta de riscos, tanto<br />

do ponto de vista erótico quanto metafísico,<br />

e pode até constituir-se numa punição.<br />

Segundo o relato mitológico, Hera puniu o<br />

adivinho Tirésias transformando-o em mulher<br />

(BRANDãO, 1992, v.2, p.451). Nas saturnais<br />

romanas era comum que homens e<br />

mulheres trocassem as vestimentas, porém<br />

a confusa identidade de gênero do imperador<br />

Heliogábalo (c.203-222) foi um dos<br />

motivos alegados para a sua deposição e<br />

assassinato (ARTAUD, 1982, p.104).<br />

Quanto ao erótico, levando-se em conta<br />

a visão psicanalítica da bissexualidade<br />

inerente ao ser humano, as roupas masculinas<br />

que Rosalinda traja a torna mais<br />

sedutora de quatro maneiras: aos homens<br />

heterossexuais, pois reconhecem as formas<br />

femininas sob seu disfarce ou, de outro<br />

modo, despertam suas tendências homoeróticas<br />

recalcadas; aos homossexuais, que<br />

vêem nela o efebo afeminado que atende<br />

aos seus desejos; às mulheres heterossexuais<br />

que buscam homens mais refinados<br />

e intelectualizados ou pela ação do homoerotismo<br />

latente e às homossexuais afeitas<br />

à beleza feminil. Como relata Kott (2003,<br />

p.237), “nos Diálogos das cortesãs de Aretino,<br />

as que ensinam o ofício recomendam<br />

várias vezes disfarçar-se e fingir ser um rapaz,<br />

sendo esse o meio mais eficaz de despertar<br />

a paixão”.<br />

Entretanto, de acordo com Bloom<br />

(2000, p.266), não se deve colocar demasiada<br />

ênfase num possível homoerotismo de<br />

Rosalinda, pois a opção dela é heterossexual<br />

e finda no casamento.<br />

Quanto ao aspecto mitológico, Rosalinda<br />

pode ser considerada um avatar da<br />

triformis dea, “rainha da noite de tríplice<br />

coroa” – como é denominada por Orlando<br />

(SHAKESPEARE, 2011, p.60, 3.2), denominação<br />

essa que se refere à Hécate, reinando<br />

como Cíntia no Céu, como Diana ou ártemis<br />

na Terra e como Proserpina no Hades –<br />

todas elas manifestações da deusa-mãe Ísis.<br />

Mas, travestida, é um avatar de Dioniso ou<br />

Baco, que é representado como andrógino.<br />

Nas palavras de Kott (2003, p.239) “o correspondente<br />

anatômico do disfarce é o her-<br />

Rafael Raffaelli<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

mafrodita; seu correspondente metafísico,<br />

o andrógino. O andrógino é um arquétipo,<br />

é o conceito e a imagem da fusão dos elementos<br />

masculino e feminino”. A representação<br />

escultural ou pictórica desse deus<br />

a partir do Renascimento sempre enfatiza<br />

esse aspecto, como podemos notar na escultura<br />

de Michelangelo e nos quadros de<br />

Leonardo da Vinci e Caravaggio, cujo Baco<br />

foi pintado por volta de 1597, muito próximo,<br />

portanto, do ano em que Shakespeare<br />

escreveu As you like it.<br />

Dioniso, ligado ao campo, à floresta e<br />

à caça, e por isso dito “agreste, obscuro, biforme”<br />

(PORFÍRIO, 1987, p.192), também é<br />

o patrono do teatro, do êxtase místico e do<br />

vinho, que propicia a ruptura das normas<br />

sociais através da embriaguês e do desregramento.<br />

Em sua obra “Dioniso: imagem<br />

arquetípica da vida indestrutível” Carl Kerényi<br />

(2002, p.71) coloca que “a máscara<br />

e o bode” são elementos ligados ao culto<br />

histórico de Dioniso na cultura minóica. As<br />

máscaras eram utilizadas no culto dionisíaco<br />

“quer no rosto dos dançarinos, quer<br />

no centro da cena ritual, penduradas numa<br />

árvore, ou num poste” e prefiguravam o<br />

teatro. O bode estaria relacionado a Pã, o<br />

“deus-pastor”, integrante do cortejo de<br />

Dioniso, “pleno de delírio báquico e inspiração<br />

divina” (PORFÍRIO, 1987, p.178), a<br />

espelhar o “Grande Todo, o Todo de cada<br />

ser” (BRANDãO, 1992, v.2, p.222), isto é,<br />

atribui a cada um o lugar e o papel que lhe<br />

cabe no concerto do cosmos. Isso é simétrico<br />

à atitude de Rosalinda, que através da<br />

magia estabelece ordem na caótica urdidura<br />

romântica da comédia, adequando cada<br />

personagem ao seu destino através do matrimônio.<br />

Avançando um pouco mais, o mito<br />

relata ainda que o Dioniso infante, denominado<br />

então Zagreu, foi despedaçado,<br />

cozido e devorado pelos Titãs. Zeus, como<br />

vingança, os transformou em cinzas e dessas<br />

cinzas nasceram os homens, que partilham<br />

tanto do mal, oriundo dos Titãs,<br />

como do bem, proveniente de Zagreu, que<br />

renasce como Dioniso (BRANDãO, 1992,<br />

v.1, p.286). Daí provém sua relação com o<br />

ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

culto egípcio a Ísis e Osíris que, conforme<br />

Heródoto (1950, v.1, p.130), “são o mesmo<br />

que Baco”; Plutarco (1997, p.86) igualmente<br />

afirma que “Osíris é o mesmo que Dioniso”.<br />

Assim, levando em consideração o acima<br />

descrito, do ponto de vista mitológico<br />

Rosalinda como deusa personificaria a Íris,<br />

pela sua identificação com Hécate, e, como<br />

andrógino, remeteria a Osíris, pela sua<br />

identificação com Dioniso, encarnando uma<br />

dúplice identidade.<br />

Ao final da peça, Himeneu, deus do<br />

casamento, surge para presidir a cerimônia<br />

de núpcias. Contudo, não haveria necessidade<br />

da ingerência de um deus na<br />

trama, pois os conflitos já estariam solucionados<br />

sem a sua intervenção. Essa cena<br />

se constitui na “primeira mascarada” na<br />

obra de Shakespeare, “antecipando em<br />

quase uma década aquelas em Conto de<br />

inverno, Cimbelino e A tempestade” (SHA-<br />

PIRO, 2011, p.260) e cumpriria duas funções:<br />

primeiro, substituir as jigas, danças<br />

populares, que se seguiam às peças<br />

nos teatros, e, segundo, utilizar os novos<br />

artefatos cenográficos disponíveis, que<br />

possibilitariam que o deus baixasse do<br />

teto do Globe Theatre diretamente para o<br />

palco. Todavia, as montagens modernas<br />

têm dificuldade em trabalhar a “Máscara<br />

de Himeneu”, tratando-a “como uma<br />

piada em vez da cena transcendental que<br />

Shakespeare escreveu” (SHAPIRO, 2011,<br />

p.260).<br />

Mas por que surge Himeneu ao final<br />

da peça? Para além de suas funções cênicas,<br />

qual o elemento transcendental a que<br />

está conectado? Nos casamentos gregos<br />

Himeneu possuía um papel apotropaico –<br />

afastando os malefícios dos nubentes e auxiliando<br />

o noivo no defloramento da esposa<br />

– e, por isso, era evocado aos gritos, cena<br />

que aparece na Ilíada (Livro 18) inserida na<br />

descrição do escudo de Aquiles. Porém,<br />

este ainda não é o ponto a esclarecer. Para<br />

tanto, temos que recorrer ao próprio mito<br />

da origem desse deus, que, segundo uma<br />

das versões, seria filho de Dioniso e Afrodite<br />

e possuía tal beleza que era confundido<br />

23


<strong>Urdimento</strong><br />

24<br />

como uma linda jovem e “reconhecido em<br />

Pompéia como andrógino” (BRANDãO,<br />

1992, v.1, p.566)<br />

A partir desse entendimento, poderíamos<br />

supor que Himeneu seria uma projeção<br />

da duplicidade de Rosalinda, da sua<br />

experiência transexual que finda no matrimônio.<br />

Dessa forma, no clímax da peça Rosalinda<br />

criaria uma “cerimônia de adeus ao<br />

seu ego andrógino” (PAGLIA, 1994, p.201).<br />

Antes de finalizar, é preciso evocar ainda<br />

outro deus: Hermes ou Mercúrio, mais<br />

propriamente, Mercurius Hermaphroditus,<br />

o Mercúrio andrógino ou hermafrodita<br />

(JUNG, 1994, p.313). Pouco antes da “Máscara<br />

de Himeneu”, Rosalinda revela a Orlando<br />

que ela sabe quem ele “realmente é”<br />

e que conviveu com um mágico “profundo<br />

conhecedor da arte” desde os três anos de<br />

idade (SHAKESPEARE, 2011, p.112, 5.2).<br />

A “arte” era o conhecimento esotérico<br />

da magia, mas também da numerologia,<br />

da astrologia e da alquimia, entre outros.<br />

O objetivo da alquimia era metamorfosear<br />

os elementos imperfeitos em ouro, não no<br />

ouro vulgar, mas “na Panacéia ou elixir vitae<br />

(elixir da vida), e, filosófica ou misticamente,<br />

no hermafrodita divino, no segundo<br />

Adão” (JUNG, 1983, p.102). Na peça, como<br />

já mencionado, Adam é o velho criado de<br />

Orlando que desaparece após a sua primeira<br />

refeição na floresta. Logo após a fala de<br />

Himeneu, Jacques de Boys, irmão de Orlando,<br />

revela que o Duque Frederico abdicou<br />

depois de encontrar-se com um “um velho<br />

místico” na floresta (SHAKESPEARE, 2011,<br />

p.125, 5.4). Será que disso podemos depreender<br />

que o mestre de Rosalinda e o velho<br />

místico são a mesma pessoa? E mais: será<br />

Adam essa pessoa? Admitindo que assim<br />

seja, será Orlando o “segundo Adão”, isto<br />

é, um avatar de Mercúrio andrógino, o catalisador<br />

e o resultado da transformação?<br />

O hermafrodita, afirma Carl Jung em Psicologia<br />

e Alquimia (1994, p.387), “é constituído<br />

de opostos e ao mesmo tempo é o símbolo<br />

unificador dos opostos”, é o Uróboro, a<br />

serpente ou dragão que se auto-devora e<br />

auto-copula, “matando-se e ressuscitando<br />

a si mesmo”.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Assim, a relação entre Rosalinda e Orlando<br />

seria de absoluta complementaridade<br />

e configuraria o mitologema da transformação<br />

e do renascimento através do amor,<br />

pela conjunção dos elementos femininos e<br />

masculinos num hieros gamos – casamento<br />

sagrado ou “núpcias químicas” (JUNG,<br />

1994, p.47) –, diferentemente da relação<br />

entre Romeu e Julieta, que ficou fixada na<br />

idealização romântica e não se completou.<br />

Afinal, em que base pode-se pensar<br />

essa associação? Na suposta relação entre<br />

microcosmo e macrocosmo, mas, para concluir,<br />

deixemos que o próprio Shakespeare,<br />

na voz de Orlando, responda: “a quintessência<br />

de cada criatura é o reflexo do Céu<br />

em miniatura” (SHAKESPEARE, 2011,<br />

p.65, 3.3).<br />

Rafael Raffaelli<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />

ROSALINDA: PROTAGONISTA DE AS YOU LIKE IT<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

ANDREWS, William. Punishments in the olden time: being an historical account of the ducking<br />

stool, brank, pillory, stocks, drunkard’s cloak, whipping post, riding the stang, etc. Farmington<br />

Hills (MI): Gale, 2010.<br />

ARTAUD, Antonin. Heliogabalo ou o anarquista coroado. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982.<br />

BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. 2v. Petrópolis: Vozes, 1993.<br />

BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.<br />

BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. São Paulo: Ática, 2008.<br />

HATTAWAY, Michael. Introduction. In: Shakespeare, William. As you like it. Cambridge:<br />

Cambridge University Press, 2000.<br />

HERÓDOTO. História. 2v. São Paulo: W.N. Jackson, 1950.<br />

JUNG, Carl Gustav. Psicologia da religião ocidental e oriental. Petrópolis: Vozes, 1983.<br />

_____. Psicologia e alquimia. Petrópolis: Vozes, 1994.<br />

KERÉNYI, Carl. Dioniso: imagem arquetípica da vida indestrutível. São Paulo: Odysseus, 2002.<br />

KOTT, Jan. Shakespeare nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.<br />

PAGLIA, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson. São<br />

Paulo: Companhia das Letras, 1994.<br />

PLUTARCO. Isis y Osiris. Barcelona: Obelisco, 1997.<br />

PORFÍRIO. Himnos órficos. Madrid: Gredos, 1987.<br />

SHAPIRO, James. 1599: um ano na vida de William Shakespeare. São Paulo: Planeta, 2011.<br />

SHAKESPEARE, William. Do jeito que você gosta. Trad. Rafael Raffaelli. Florianópolis:<br />

EDUFSC, 2011.<br />

25


N° 18 | Setembro de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />

Resumo<br />

Este artigo analisa o projeto realizado pela companhia teatral<br />

Royal Shakespeare Company de levar ao Twitter uma<br />

reescrita da peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare. O<br />

projeto consistiu em tornar personagens da peça usuários do<br />

microblog, e fazê-los recontar a clássica história com conteúdo<br />

e caracterização atualizados para o século 21. O presente<br />

artigo descreve e analisa a execução do projeto, discutindo<br />

seus aspectos positivos e problemáticos, e estabelecendo suas<br />

implicações para as relações entre teatro e tecnologia no futuro.<br />

Palavras-chave: Twitter, Romeu e Julieta,<br />

Royal Shakespeare Company.<br />

Abstract<br />

This essay analyzes the project developed by the theatre group<br />

Royal Shakespeare Company of taking to Twitter a rewriting<br />

of William Shakespeare’s play Romeo and Juliet. The project<br />

consisted in making the play’s characters users of the microblog,<br />

retelling the classic story with content and characterization<br />

updated to the 21st century. The present essay describes and<br />

analyzes the carrying out of the project, discussing its positive<br />

and problematic aspects, and establishing its implications for<br />

future relations between theatre and technology.<br />

1 Doutora em Letras / Literatura Inglesa e professora da UFPA<br />

Shakespeare no Twitter: Romeu e<br />

Julieta em até 140 caracteres<br />

Keywords: Twitter, Romeo and Juliet,<br />

Royal Shakespeare Company.<br />

Aline de Mello Sanfelici 1<br />

Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta em até 140 caracteres 27


<strong>Urdimento</strong><br />

28<br />

Introdução<br />

O Twitter,<br />

frequentemente<br />

descrito como “o SMS da<br />

Internet,” é o famoso microblog<br />

eletrônico no qual usuários<br />

(ordinários ou celebridades)<br />

comunicam, em até 140 caracteres,<br />

absolutamente qualquer coisa – desde uma<br />

revolta em função de certa notícia, um<br />

comentário sobre o jogo de futebol, uma<br />

opinião a respeito de um novo escândalo<br />

político, e até mesmo o que está sendo<br />

feito para o jantar. Sendo o Twitter o que se<br />

chama de rede social virtual, basta tornarse<br />

seguidor (follower) de um determinado<br />

usuário para acompanhar suas minideclarações,<br />

chamadas tweets, e também<br />

comentá-las, criando-se, portanto, um<br />

tipo de interação imediata e ágil. O Twitter<br />

não tem limites em termos de seu alcance:<br />

criado em 2006, estima-se que hoje o site já<br />

possua mais de 300 milhões de usuários<br />

(dado de Junho de 2011), e a rede segue<br />

crescendo ano a ano. Evidentemente, por<br />

trás de tanto sucesso encontra-se uma série<br />

de críticas e desaprovações da proposta<br />

do microblog. Dentre estas, destaca-se o<br />

típico tweet de informações sem qualquer<br />

conteúdo significativo, e também o caráter<br />

vicioso da ferramenta, que faz com que<br />

alguns usuários não consigam desconectarse<br />

e, além disso, acabem compartilhando<br />

mais do que dita o bom senso.<br />

Talvez em uma tentativa de seguir as<br />

tendências atuais e manter-se modernizada,<br />

um inusitado usuário que recentemente<br />

aderiu ao Twitter foi a Royal Shakespeare<br />

Company (RSC). A celebrada companhia<br />

inglesa, que comemorou seu 50° aniversário<br />

em 2011, dedica-se majoritariamente a<br />

performances do cânone shakespeariano,<br />

mas também abre espaço para outros<br />

dramaturgos de renome, como Harold<br />

Pinter, Eugene O’Neill e Arthur Miller, e<br />

ainda novos escritores que se encontram na<br />

ativa nos dias de hoje e associam-se ao time<br />

de criação da companhia. Inegavelmente, a<br />

RSC tem prestígio internacional e carrega<br />

tanto o status de hegemônica quanto o<br />

respeito associado ao seu nome. Como<br />

coloca Beth Osnes, a companhia mantém<br />

inabalável certo padrão de excelência nas<br />

suas performances, e os melhores atores<br />

ingleses ou foram treinados na RSC ou<br />

almejam trabalhar lá (OSNES, 2001, p.<br />

286-287). Apesar de tamanha fama e<br />

sucesso, tudo indica que a companhia<br />

não é tão conservadora quanto possa<br />

parecer à primeira vista, e ambiciona<br />

conquistar novos espaços e públicos –<br />

mais especificamente, embarcando no<br />

mundo cibernético, e trazendo para ele<br />

seu dramaturgo preferido, isto é, o próprio<br />

William Shakespeare.<br />

Em 2010, a RSC produziu em<br />

conjunto com a Mudlark, uma companhia<br />

de entretenimento para TV, Internet e<br />

celulares, um ousado projeto: durante o<br />

período de cinco semanas (entre abril e<br />

maio), seis atores da própria RSC atuaram<br />

no Twitter como personagens da peça<br />

Romeu e Julieta, substituindo falas clássicas<br />

do Bardo inglês por simples tweets. Cada<br />

ator criou um perfil de usuário para um<br />

dado personagem, e foi orientado a escrever<br />

tweets embasados na personalidade e<br />

sentimentos próprios do personagem<br />

tuitado. O projeto recebeu o nome de Such<br />

Tweet Sorrow (podendo ser traduzido para<br />

“uma dor tão tweet”), em um inteligente<br />

trocadilho com a frase shakespeariana “such<br />

sweet sorrow”, que no texto original fala da<br />

doçura da dor no momento de despedida<br />

dos jovens amantes. A empreitada da RSC/<br />

Mudlark resultou em (re)escrita de fatos<br />

centrais da peça de uma forma moderna e<br />

direta, com publicação em tempo real no<br />

microblog, a partir de orientações básicas<br />

dadas pelos escritores Bethan Marlow e<br />

Tim Wright durante cada dia de execução<br />

da performance virtual.<br />

Para divulgar sua proposta, explicá-la<br />

melhor e ainda atrair seguidores, a RSC<br />

criou um website próprio para a empreitada<br />

(http://suchtweetsorrow.com/). Nesta<br />

página virtual é possível acessar dias<br />

específicos do projeto e ver o que foi postado<br />

na data escolhida, podendo-se, portanto,<br />

seguir a timeline desde o começo até o final<br />

da história. Pode-se, ainda, acessar a seção<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

“The story so far” (“A história até agora”), que<br />

resume através de um narrador observador<br />

os acontecimentos de cada dia do projeto.<br />

Desse modo, a própria RSC providenciou<br />

uma maneira de conectar (e, de certa forma,<br />

ordenar) os tweets dos atores sob a forma<br />

de uma narrativa, provavelmente a fim de<br />

garantir certa coerência de continuidade da<br />

história e facilitar o acompanhamento dos<br />

eventos. Por fim, a página virtual oferecida<br />

como suporte do projeto também traz<br />

informações da ficha técnica da produção,<br />

e fornece aos leitores um perfil em terceira<br />

pessoa de cada personagem (diferente do<br />

perfil postado por cada personagem no<br />

próprio Twitter).<br />

Assim, aprendemos no website<br />

de divulgação o quanto os personagens<br />

desse novo Romeu e Julieta diferem da<br />

versão clássica e vivem no mundo de<br />

hoje, plugados e modernizados. Romeu,<br />

aos 19 anos, acredita na filosofia de “viver<br />

o momento,” mora com os pais sendo<br />

filho único, e não tem planos de sair de<br />

casa. Tem um emprego de meio turno e<br />

aproveita o tempo livre em um pub com<br />

Mercútio, ou então jogando Xbox. Julieta,<br />

por sua vez, tem 15 anos, é extremamente<br />

obediente ao pai, e encontra conforto para<br />

sua solidão em chats online. Ela nunca teve<br />

um namorado, escreve músicas e toca<br />

guitarra, e é fã da série “Crepúsculo.” Jess,<br />

a irmã de Julieta, é estagiária em uma firma<br />

de direito, e tem com Julieta e Tibaldo uma<br />

relação de mãe e filho ao invés de irmãos –<br />

por isso seu apelido, Nurse. Mercútio, por<br />

sua vez, mora sozinho, após seus pais terem<br />

se mudado para a França e lhe dado um<br />

elegante flat e uma mesada suficiente para<br />

manter um estilo de vida repleto de eventos<br />

sociais. Ele gosta de brigas, jogos de carta,<br />

maconha e musculação. Enquanto isso,<br />

Tibaldo Capuleto vive em um internato, e<br />

é revoltado contra toda sua família. Só há<br />

um lugar no qual Tibaldo sente-se bem: a<br />

lanhouse de Friar. Laurence Friar, o sexto e<br />

último personagem do projeto, tem 38 anos<br />

e passou a juventude viajando graças aos<br />

seus negócios como traficante de drogas.<br />

Friar permite que os clientes do internet<br />

cafe fumem no andar de cima da loja, e<br />

almeja tornar-se uma figura importante<br />

na comunidade, trazendo valores liberais<br />

para a mesma.<br />

A partir dessa caracterização básica<br />

dos personagens, os tweets começaram a ser<br />

publicados. Ao passo que os tweets foram,<br />

segundo a RSC, livremente inspirados<br />

em Romeu e Julieta, eles foram também<br />

improvisados, isto é, sem um roteiro fixo<br />

e anterior, apenas orientações do time de<br />

escritores. Além disso, sendo escritos por<br />

atores-usuários jovens e nascidos no que<br />

pode chamar-se “geração da Internet,”<br />

as mensagens que recontam a história<br />

clássica de Shakespeare no microblog<br />

alteraram enormemente o conteúdo e,<br />

principalmente, o estilo do texto original,<br />

a fim de encaixarem-se no contexto de<br />

recepção da Inglaterra atual (e por que<br />

não dizer do mundo cibernético sem<br />

fronteiras), e não da Verona elizabetana.<br />

Assim, o enredo desenvolvido em Such<br />

Tweet Sorrow foi atualizado para o século<br />

21, com os personagens descrevendo seu<br />

cotidiano e, pouco a pouco, entre tweets<br />

sobre assuntos rotineiros e tweets mais<br />

reveladores, com declarações fervorosas de<br />

amor e ódio, foi-se estabelecendo a famosa<br />

história trágica de dois jovens apaixonados<br />

filhos de famílias rivais. Uma mudança<br />

fundamental em relação ao texto original<br />

seria a origem do ódio entre as duas<br />

famílias que, na versão tuitada da RSC,<br />

nasceu após um trágico acidente de carro<br />

entre Capuletos e Montéquios, e que tirou<br />

a vida da mãe de Julieta.<br />

Para montar e atualizar a trama<br />

básica tweet por tweet, os usuáriospersonagens<br />

usaram não apenas os 140<br />

caracteres permitidos pelo Twitter, mas<br />

também diversos outros recursos virtuais.<br />

Pelo Youtube foram postados vídeos que<br />

contribuíam para a caracterização dos<br />

personagens e de seu cotidiano. Julieta, por<br />

exemplo, publicou um vídeo mostrando<br />

seu quarto e focando em um retrato de sua<br />

mãe, Susan Capuleto, na ocasião dos dez<br />

anos de seu falecimento. A jovem depois<br />

postou outro vídeo no qual canta à capela<br />

uma música que escreveu para expressar<br />

sua alegria com a festa de aniversário que<br />

Aline de Mello Sanfelici Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta em até 140 caracteres 29


<strong>Urdimento</strong><br />

30<br />

estava por receber. Além do Youtube, houve<br />

postagem de fotos pelo Twitpic: Mercútio<br />

publicou uma foto de Romeu embriagado e<br />

recebendo beijos de duas jovens em um pub;<br />

já a irmã de Julieta, Jess, publicou diversas<br />

fotos da festa de máscaras. Também o<br />

Facebook foi acessado, para a criação e<br />

convite público para um evento (no caso,<br />

o aniversário de 16 anos de Julieta, ao qual<br />

mais de 300 pessoas publicaram a intenção<br />

de “comparecer”). Até mesmo o site de<br />

rádio last.fm foi utilizado, para divulgação<br />

de músicas selecionadas para o baile de<br />

máscaras, incluindo sucessos de nomes<br />

atuais como Lady Gaga, Amy Winehouse<br />

e Franz Ferdinand, que figuram entre os<br />

artistas favoritos da aniversariante Julieta.<br />

Além dos diversos recursos virtuais<br />

utilizados, os usuários-personagens da<br />

RSC interagiram uns com os outros por<br />

meio dos tweets. Para tanto, eles tornaramse<br />

seguidores dos outros personagens,<br />

aprendendo (às vezes com más intenções)<br />

sobre o que estava acontecendo com cada<br />

participante da história. Os personagens<br />

dialogavam entre si e comentavam as<br />

atividades, declarações e postagens<br />

uns dos outros – e até bloqueavam<br />

um dado personagem, temporária ou<br />

definitivamente, para proteger sua<br />

privacidade. Esse tipo de interação entre os<br />

próprios personagens foi um dos principais<br />

fatores para o desenvolvimento da história,<br />

especificamente à medida que estabeleceu<br />

relações entre o que cada usuáriopersonagem<br />

dizia, fazia e publicava, e<br />

como isso impactava ou conectava-se com<br />

as atividades e declarações dos outros<br />

usuários-personagens.<br />

Tão importante quanto a interação<br />

entre os personagens foi o fato de os atores<br />

envolvidos serem incentivados pela RSC<br />

a interagirem também com a audiência<br />

do projeto, expandindo a dimensão do<br />

mesmo para além do controle da própria<br />

companhia. A título de exemplo, alguns<br />

seguidores no Twitter deram sugestões<br />

quanto ao tema da festa de aniversário, e<br />

quando Julieta convidou seus seguidores a<br />

“comparecerem” ao baile usando máscaras<br />

confeccionadas por eles mesmos, diversos<br />

usuários engajaram-se na “brincadeira”<br />

e publicaram fotos com máscaras<br />

improvisadas ou fotos pessoais antigas de<br />

ocasiões em que utilizaram máscaras na<br />

vida real. Em outro dado momento, Romeu,<br />

testemunhando uma briga entre seus pais,<br />

deliberadamente direcionou-se aos seus<br />

seguidores no Twitter e perguntou o que é o<br />

amor. Em ainda outra ocasião, após Romeu<br />

ter sido deixado de castigo, Mercútio<br />

iniciou uma campanha chamada “Romeu<br />

livre” no Twitter, convocando seus followers<br />

a reforçarem o pedido de fim do castigo<br />

– as ocasiões citadas ganharam adeptos<br />

e proporcionaram troca de mensagens<br />

de Romeu e Mercútio diretamente com<br />

o público real. Nesse sentido, pode-se<br />

dizer que um dos principais objetivos<br />

da produção foi alcançado, pois, como<br />

coloca o diretor artístico da RSC, Michael<br />

Boyd, a companhia sempre buscou colocar<br />

atores e espectadores juntos, e aproximar<br />

a audiência de Shakespeare (declarado em<br />

reportagem de Charlotte Newman).<br />

Terminado o projeto, podemos tecer<br />

várias considerações, entre avaliações<br />

positivas e ressalvas ou críticas.<br />

Primeiramente, uma observação: Brian<br />

Feldman, diretor artístico da Amway<br />

Shakespeare Opportunity, parece ter sido<br />

o pioneiro em recontar Shakespeare via<br />

Twitter. Em 2009 ele realizou o “Twitter of<br />

the Shrew” (“O Twitter da Megera”), que<br />

contou no microblog o equivalente a uma<br />

cena-chave por dia da peça A Megera<br />

Domada. Esse projeto, no entanto, foi mais<br />

limitado em termos de recursos virtuais<br />

utilizados e também de tamanho (12 dias,<br />

apenas), e não teve tanta repercussão (Such<br />

Tweet Sorrow possui mais do triplo de<br />

ocorrências do que Twitter of the Shrew no<br />

Google), e isso se dá possivelmente por a<br />

Amway se tratar de uma companhia menos<br />

conhecida e com menor visibilidade.<br />

Agora, algumas considerações. Apesar<br />

de não ser a primeira iniciativa de combinar<br />

Shakespeare com Twitter, o projeto da RSC<br />

deve ser louvado por sua criatividade e<br />

ousadia. Esse projeto certamente passa<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

a fazer parte da história de adaptações/<br />

apropriações de Shakespeare, bem como de<br />

Shakespeare em performance – mesmo que<br />

performance virtual. É interessante destacar<br />

também que Such Tweet Sorrow atraiu<br />

seguidores que não apenas acompanharam<br />

como também comentaram, engajaramse<br />

e participaram ativamente da história,<br />

garantindo um caráter interativo em uma<br />

obra desenvolvida abertamente (isto é,<br />

com a possibilidade de edição a partir<br />

do feedback recebido). Deve-se louvar<br />

ainda o fato que o projeto inegavelmente<br />

proporcionou uma visão renovada (embora<br />

passível de críticas) da peça, como coloca<br />

Roxana Silbert, diretora da performance<br />

(em reportagem de Mark Prigg). Para<br />

Silbert, o projeto forneceu uma versão<br />

completamente nova de Romeu e Julieta,<br />

e há certo frenesi de se ver uma história<br />

excelente desdobrar-se passo a passo,<br />

momento a momento, conforme a mesma<br />

é escrita e tuitada.<br />

Outro ponto a ser valorizado na<br />

empreitada refere-se às suas possíveis<br />

implicações para o meio teatral futuro.<br />

Such Tweet Sorrow desenvolve numerosas<br />

maneiras para a inclusão de tecnologia<br />

no fazer teatral, incentivando o uso de<br />

diferentes ferramentas cibernéticas para a<br />

criação de peças – vídeo, álbum de fotos,<br />

tweets, rádio, chat, etc. Com a inclusão de<br />

tais ferramentas virtuais, outra implicação<br />

do projeto é conseguir estreitar as<br />

possibilidades de criação coletiva, e não<br />

apenas entre os atores, mas destes em<br />

parceria com o público, uma vez que esse<br />

público comenta e assim, inevitavelmente,<br />

participa da própria criação do espetáculo.<br />

Além disso, a proposta da RSC também<br />

mostra como o desenvolvimento de um<br />

tipo de linguagem modernizada para textos<br />

clássicos pode atrair novas audiências –<br />

inclusive audiências jovens, principais<br />

usuárias do Twitter, e que poderiam ter<br />

pouco interesse ou encontrar dificuldade<br />

para conhecer textos clássicos em suas<br />

formas originais.<br />

No entanto, olhando-se o resultado do<br />

projeto com mais detalhe, é necessário<br />

que se faça alguns apontamentos críticos.<br />

Um primeiro aspecto problemático<br />

referente ao projeto deve-se a combinação<br />

potencialmente falha entre o Twitter, uma<br />

rede social e um dos meios mais rápidos<br />

de divulgação pública de informações, e uma<br />

peça justamente como Romeu e Julieta,<br />

notoriamente marcada por falhas de<br />

comunicação. Após Julieta aparentemente<br />

falecer, com a ajuda de Friar, o dono da<br />

lanhouse, é difícil acreditar que Jess e Friar<br />

conectaram-se no site “tarde demais”<br />

para avisar Romeu do plano (conforme<br />

publicado na seção The Story So Far no dia<br />

11 de maio). Além disso, lembrando que<br />

os personagens são usuários do Twitter e<br />

supostamente pessoas do mundo real (que<br />

estudam, vão a pubs e lanhouses, fazem<br />

festa de aniversário, etc), é ainda mais<br />

problemático acreditar que o romance<br />

proibido entre pessoas de duas famílias<br />

inimigas seria exposto (e, portanto,<br />

colocado em risco) em uma página de<br />

relacionamentos! Ou, ainda, dificilmente<br />

alguém faria como Friar (em 12 de maio),<br />

que mandou uma mensagem pública para<br />

Julieta anunciando que o plano secreto deu<br />

errado. Um último exemplo dentro dessa<br />

mesma linha é ser inverossímil que Romeu<br />

(em 11 de maio), pensando sua amada<br />

estar morta, iria imediatamente tuitar<br />

seu sofrimento e anunciar seu suicídio<br />

no site. Em outras palavras, talvez pela<br />

inexperiência no formato virtual utilizado<br />

e pela ânsia em “contar a história,”<br />

os personagens publicaram tweets<br />

extremamente não-realistas, apenas para<br />

garantir que a “informação” seria dada.<br />

Um segundo aspecto passível de críticas<br />

refere-se às transformações ocorridas em<br />

termos de linguagem. No processo de<br />

apropriação dos fatos básicos da trama para<br />

serem recontados de forma modernizada<br />

(a fim de proporcionar uma comunicação<br />

efetiva com o público alvo), é inegável<br />

constatar que, além de certa banalização<br />

da linguagem, também ocorreram perdas,<br />

especificamente em termos de poesia,<br />

estilo, nuances, sutileza, suspense e<br />

caracterização. Sem esses elementos, que<br />

Aline de Mello Sanfelici Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta em até 140 caracteres 31


<strong>Urdimento</strong><br />

32<br />

possuem um papel imenso em contribuir<br />

para a grandeza da qualidade da obra<br />

shakespeariana, pode-se argumentar que<br />

a obra desenvolvida no Twitter tornou-se<br />

menor, isto é, menos gloriosa ou engenhosa.<br />

Além disso, o texto criado na performance<br />

online transformou-se em uma narração<br />

explícita e urgente, na maior parte das<br />

vezes. Assim, constata-se que há uma boa<br />

trama, porém a mesma não foi desenvolvida<br />

e mostrada de forma instigante e criativa,<br />

e foi, ao invés, meramente contada, e com<br />

linguagem precária e até mesmo duvidosa,<br />

se comparada com o brilho e majestade da<br />

linguagem no texto original.<br />

A fim de justificar o argumento de que<br />

a linguagem foi banalizada e trouxe perdas<br />

significativas para Romeu e Julieta na sua<br />

versão online, apresento a seguir algumas<br />

ocorrências, traduzidas livremente, das<br />

liberdades desenvolvidas com a linguagem.<br />

Apenas para reiterar, essas liberdades são<br />

problemáticas não por elas mesmas, mas<br />

especialmente por impedirem a poesia, a<br />

sutileza e o suspense tão bem orquestrados<br />

por Shakespeare, e por fazerem a produção<br />

em debate uma mera narração, irreal e<br />

difícil de acreditar ou emocionar. Eis os<br />

exemplos selecionados: “me sentindo<br />

muito muito sonolenta... mal posso esperar<br />

para ver Romeu” (Julieta, em 11 de maio),<br />

“miiiiiiiiiiisture leite e whisky e você terá...<br />

leisky ouuuuuu whiste... hahaha” (Julieta,<br />

em 11 de maio), “vejo que você fez as pazes<br />

com seu amigo, seu bundão!” (Tibaldo<br />

para Mercútio, em 3 de maio), “de saco<br />

cheiooooooo...” (Romeu, em 7 de maio),<br />

“ATENDA SEU TELEFONE! Ele atacou a<br />

mim e ao Mercútio. Ele matou meu melhor<br />

amigo na frente dos meus olhos. Achei<br />

que ele iria me matar. Por favor!” (Romeu<br />

para Julieta, em 6 de maio), “suas palavras<br />

estão me fazendo vomitar cada vez que<br />

as leio” (Jess para Friar, em 30 de abril),<br />

“que diabos está acontecendo? O que você<br />

está fazendo? LARRY, FAçA ALGO!”<br />

(Jess para Friar, em 3 de maio), e “estou<br />

horrivelmente apaixonada... minha cabeça<br />

está ficando toda deformada...” (Julieta, em<br />

11 de maio).<br />

Os exemplos citados mostram<br />

claramente como o conteúdo e estilo<br />

original de Shakespeare foram retorcidos<br />

e banalizados, e como Romeu e Julieta na<br />

reescrita via Twitter tornou-se um texto<br />

mais ordinário, cujo grau de esmero e<br />

qualidade linguística é significativamente<br />

menor em relação ao texto original.<br />

Ainda assim, é essencial lembrar que<br />

o projeto em discussão entrou em um<br />

terreno pouquíssimo explorado (aquele<br />

que une o Bardo inglês e Twitter), e talvez<br />

por isso mesmo o projeto seja frágil e tão<br />

suscetível a problemas e críticas. Em outras<br />

palavras, uma proposta como Such Tweet<br />

Sorrow merece ser reconhecida por sua<br />

criatividade e ousadia, mas certamente ela<br />

exige ainda uma dose de refinamento para<br />

vir a ser executada mais satisfatoriamente.<br />

Em resumo, portanto, a proposta da RSC<br />

é brilhante, porém deve ser amadurecida,<br />

isto é, ela deve aprender a lidar melhor<br />

com seu formato, escopo e potencial.<br />

Finalmente, a título de conclusão, sabese<br />

que a RSC sempre foi desafiada pelo peso<br />

do mito de Shakespeare (CHAMBERS,<br />

2004, p. 115), principalmente em função do<br />

senso comum de que a companhia é uma<br />

entidade supostamente indispensável para<br />

o entendimento da obra shakespeariana<br />

(CHAMBERS, 2004, p. 123). Assim, parece<br />

persistir certa expectativa cultural em<br />

torno de quais novas cores e formas a<br />

RSC conseguirá encontrar pra o Bardo<br />

inglês. Nesse sentido, Chambers (2004,<br />

p. 191) questiona a possibilidade de a<br />

companhia saber regenerar-se no centro<br />

das possibilidades de criatividade teatral.<br />

Ao que tudo indica, e apesar das críticas<br />

e ressalvas destacadas, parece que Such<br />

Tweet Sorrow responde positivamente a<br />

esse questionamento, sendo um projeto<br />

que, mesmo requerendo revisão, é, sim,<br />

um exemplo a ser seguido.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS:<br />

CHAMBERS, Colin. Inside the Royal Shakespeare Company: creativity and the institution.<br />

London and New York: Routledge, 2004.<br />

NEWMAN, Charlotte. The Bard goes digital: Such Tweet Sorrow. New Statesman, Londres,<br />

Abril 2010. Disponível em: http://www.newstatesman.com/blogs/cultural-capital /2010/04/<br />

performance-production Acesso em 10 Jan 2011, 10h00.<br />

OSNES, Beth. Acting: an international encyclopaedia. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2001.<br />

PRIGG, Mark. RSC uses Twitter to ‘perform’ Romeo and Juliet scenes. London Evening<br />

Standard, Londres, Abril 2010. Disponível em: http://www.thisislondon.co.uk/standard/article-<br />

23823525-rsc-uses-twitter-to-perform-romeo-and-juliet-scenes.do Acesso em 10 Jan 2011,<br />

12h00.<br />

Aline de Mello Sanfelici Shakespeare no Twitter: Romeu e Julieta em até 140 caracteres 33


N° 18 | Setembro de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />

«Eu gostaria de fazer uma arte que abordasse as coisas mais profundas e<br />

importantes e durasse mil anos: e que não fosse tão séria.»<br />

(BRECHT, Bertolt. Anotações autobiográficas, 1927)<br />

«Nós, geração leviana, vivemos em casas supostamente eternas.»<br />

(BRECHT, Bertolt. Sobre o pobre B.B.)<br />

Resumo<br />

Fatzer, texto inacabado escrito por Bertolt Brecht na<br />

década de 1920, é um material fecundo tanto para avaliar<br />

um momento chave do percurso artístico e político de<br />

Brecht, como para fomentar discussões contemporâneas em<br />

torno do teatro épico e dialético e das representações da<br />

revolução através de recursos dramatúrgicos e cênicos.<br />

PALAVRAS-ChAVE: Fatzer, peça didática, teatro brechtiano.<br />

Abstract<br />

Fatzer, unfinished text written by Bertolt Brecht in the<br />

1920s, is a fertile material for assessing a key moment of<br />

the artistic and political life of Brecht, such as to promote<br />

contemporary discussions around the epic and dialectic<br />

theater and the revolution representations through<br />

dramaturgical and scenic resources.<br />

KEywORDS : Fatzer, didactic play, brechtian theater.<br />

1 Diretor e pesquisador teatral. Doutor em Teatro pela Sorbonne Nouvelle e Universidade de São Paulo.<br />

Fatzer e o espectro<br />

Fernando Kinas 1<br />

Fatzer e o espectro 35


<strong>Urdimento</strong><br />

36<br />

1. UM ACIDEnTE DE TRAbALhO<br />

Em uma anotação autobiográfica de<br />

1935, Brecht escreveu:<br />

Quando já fazia anos que eu era um escritor<br />

de renome, nada sabia de política e não tinha<br />

visto nenhum livro ou ensaio de Marx ou<br />

sobre Marx. Já havia escrito quatro dramas e<br />

uma ópera que eram representados em muitos<br />

teatros, tinha ganho prêmios literários e nas<br />

entrevistas onde se perguntava a opinião de<br />

intelectuais progressistas, podia-se ler com<br />

frequência também a minha. Mas continuava<br />

sem compreender o ABC da política e tinha<br />

tão pouca noção do funcionamento dos<br />

assuntos públicos de meu país quanto qualquer<br />

simples camponês de um vilarejo deserto.<br />

[...] Ao começar com a literatura, nunca<br />

fui além de uma crítica bastante niilista da<br />

sociedade burguesa. Nem mesmo os grandes<br />

filmes de Eisenstein que exerceram em mim<br />

uma tremenda influência, e as primeiras<br />

apresentações teatrais de Piscator pelas quais<br />

minha admiração não era menor, me levaram<br />

ao estudo do marxismo. [...] Então, fui ajudado<br />

por uma espécie de acidente de trabalho. 2<br />

O<br />

acidente de trabalho é a pesquisa<br />

para Jan der Fleischhacker, peça<br />

que não chegou a ser escrita<br />

(“em vez disso, comecei a ler<br />

Marx”, diz Brecht). Para entender<br />

o funcionamento da Bolsa de Trigo<br />

de Chicago, Brecht acabou se debruçando<br />

sobre os mecanismos e o funcionamento<br />

da sociedade capitalista. E as respostas estavam<br />

no marxismo. A compreensão da<br />

(ir)racionalidade capitalista, do mundo da<br />

especulação e da exploração de classe não<br />

dependia mais das intuições nascidas da<br />

prática rebelde do jovem Brecht. Em 1935,<br />

aos 37 anos, Brecht avalia seu percurso de<br />

aprendizagem para dimensionar uma obra<br />

já extensa e em constante evolução. Através<br />

desse exercício retrospectivo ele identifica<br />

as características das peças do período<br />

(1918-1926), destacando suas qualidades e<br />

limitações.<br />

As peças niilistas a que se refere Brecht,<br />

quando ainda não compreendia “o ABC<br />

da política”, são Baal, Tambores na noite<br />

2 Brecht, Bertolt, Diários de Brecht, São Paulo, L&PM, 1998, pp. 159-160.<br />

e Na selva das cidades. Tanto O casamento<br />

do pequeno burguês, como Um homem é um<br />

homem, além de A pequena Mahagonny<br />

(primeira parceria com Kurt Weill), escritas<br />

na época do «acidente», também podem<br />

ser incluídas nesta conta (não sabemos ao<br />

certo quais são as quatro peças às quais<br />

Brecht se refere). O importante é que<br />

Brecht situa na segunda metade da década<br />

de 1920 uma virada fundamental na sua<br />

maneira de compreender a sociedade<br />

e no modo de escrever sobre ela. Não<br />

casualmente, estes são anos intensos<br />

de produção dramatúrgica. Intensos na<br />

quantidade de obras e na experimentação<br />

de formas e conteúdos. São os anos dos<br />

lehrstücke, conhecidos no Brasil como<br />

«peças didáticas», embora seja preferível<br />

a expressão «peças de aprendizagem» ou<br />

«peças pedagógicas». Ambas as expressões<br />

têm a vantagem de evitar a interpretação<br />

redutora segunda a qual estaria em jogo<br />

um voluntário didatismo simplificador da<br />

realidade.<br />

Fatzer inscreve-se, justamente, nesta<br />

linhagem do Lehrstück. O material foi<br />

sendo trabalhado – é o que nos indicam<br />

anotações e registros de diversas fontes,<br />

incluindo os diários de Brecht –, entre<br />

1926 e 1930 (ou 1931), e não chegou a ser<br />

concluído. Ele corresponde à efervescência<br />

artística europeia que levou, por exemplo,<br />

a explorações teatrais pouco convencionais,<br />

inclusive com a utilização de materiais<br />

considerados não dramáticos. Tanto na<br />

Alemanha (Piscator), como na União<br />

Soviética (Meyerhold), o fenômeno foi<br />

particularmente importante. Embora não<br />

seja possível desenvolver aqui este aspecto,<br />

que mais tarde ganhou importância<br />

com o chamado «teatro documentário»<br />

(Peter Weiss é a principal referência), é<br />

fácil concordar com a hipótese de Judith<br />

Wilke, segundo a qual «o documento é uma<br />

construção, mais do que uma descrição». 3<br />

Debate contemporâneo, a utilização do<br />

documento – ou a reivindicação do real em<br />

cena – é objeto de análises contraditórias,<br />

3 Wilke, Judith. The Making of a Document: An Approach to Brecht’s<br />

Fatzer Fragment, TDR: The Drama Review - Volume 43, Number 4 (T<br />

164), Winter 1999, pp. 122-128.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

indicando tanto a submissão à lógica pósmoderna<br />

da impossibilidade de construção<br />

do sentido, quanto seu exato oposto,<br />

a rejeição crítica do fluxo de imagens<br />

ficcionais banalizadas pela indústria<br />

cultural.<br />

A primeira publicação de Decadência<br />

do egoísta Johann Fatzer se deu nos cadernos<br />

de ensaios (Versuche), em 1930, incluindo<br />

uma pequena parte do material, que na<br />

totalidade contém cerca de 500 folhas<br />

manuscritas. Foram publicadas a cena «O<br />

passeio de Fatzer pela cidade de Mülheim»,<br />

duas outras cenas curtas e alguns textos<br />

para coro. 4 Até a morte de Brecht, em 1956,<br />

nada mais veio a público e o texto não<br />

foi encenado. A redescoberta aconteceu<br />

somente nos anos 1970 e Heiner Müller<br />

desempenhou papel importante ao propor<br />

uma forma aos fragmentos do Material<br />

Fatzer. 5<br />

Não se trata, no entanto, de caricaturar<br />

a transição de Brecht, imaginando uma<br />

passagem mecânica do associal Baal ao<br />

Fatzer propagandista da revolução. Fatzer,<br />

inclusive, mostra-se pouco disposto a abrir<br />

mão da liberdade individual, de uma certa<br />

independência materializada pela recusa<br />

em renunciar aos prazeres do corpo, como<br />

a comida e o sexo. A realidade é complexa o<br />

suficiente para que não se reduza o debate<br />

à transição do jovem Brecht impetuoso e<br />

mais ou menos anarquista para o Brecht<br />

marxista da maturidade. No entanto,<br />

o período de enorme agitação política<br />

que vai do início da Primeira Guerra<br />

Mundial à instauração da República de<br />

Weimar, exerceu influência inegável<br />

sobre sua produção. À visão rebelde, mas<br />

politicamente ingênua e subjetivista, que<br />

vai até meados dos anos 20, substituise<br />

uma visão claramente materialista e<br />

marxista, que utiliza um método de análise<br />

da realidade muito mais consistente,<br />

ainda que Brecht preserve o espaço para<br />

liberdades que a deformação dogmática do<br />

marxismo dificilmente tolerava.<br />

4 Cf. a edição brasileira em Brecht, Bertolt. Teatro completo nº 12, Rio<br />

de janeiro, Civilização Brasileira, 1995, pp. 205-223.<br />

5 Cf. a edição brasileira: Brecht, Bertolt. O declínio do egoísta Johann<br />

Fatzer (org. Heiner Müller), São Paulo, Cosac Naify, 2002.<br />

Para o Brecht do final da década de 1920,<br />

o sujeito é fruto de uma construção social.<br />

Nas famosas notas sobre Mahagonny esta<br />

ideia ganha forma: o ser social determina a<br />

consciência. E não o contrário. Livrando-se,<br />

em grande medida, da metafísica hegeliana<br />

e do niilismo, Brecht adota uma perspectiva<br />

marxista, esforçando-se, entretanto, para<br />

evitar platitudes filosóficas, políticas ou<br />

estéticas.<br />

Fatzer, exemplar sob este ponto de<br />

vista, é um exercício de liberdade radical<br />

com múltiplas inspirações, do Woyzeck<br />

de Büchner, ao agitprop, passando pelas<br />

atrações populares de sua época (como<br />

o boxe e o circo) e pelo classicismo<br />

alemão. Os versos iâmbicos, os esboços<br />

nunca finalizados, a coexistência de<br />

cenas com comentários teóricos e<br />

indicações cênicas, revelam um intenso<br />

procedimento exploratório que se afasta<br />

da tradicional realização estética para dar<br />

lugar à autoinformação ou autoconhecimento.<br />

Segundo Francine Maier-Schaeffer, «o<br />

fragmento de Brecht dá ao fragmento<br />

tradicional seu sentido moderno: a busca<br />

não concluída de uma forma acabada<br />

(inédita) se transforma progressivamente,<br />

sob a resistência do material, em um tipo<br />

de fragmento que, no processo de produção,<br />

toma valor de Selbstverständigung». 6<br />

Esta questão é capital para a<br />

compreensão dos lehrstücke. Uma citação<br />

extraída do próprio Fatzer reforça a ideia:<br />

«O propósito de um trabalho não<br />

é idêntico ao propósito ao qual deve<br />

ser utilizado. Assim antes de tudo, o<br />

documento Fatzer serve principalmente ao<br />

aprendizado de quem escreve. Se depois<br />

servir como material de estudo, os alunos<br />

aprendem dele de maneira completamente<br />

diversa do que quem escreveu. Eu, o<br />

escritor, não preciso concluir nada. Basta<br />

que tenha servido para me ensinar. Eu<br />

simplesmente conduzo a análise e é o<br />

método que eu utilizo para este fim que o<br />

6 Maier-Schaeffer, Francine. Le Méchant Baal, l’asocial et la poétique<br />

des genres chez Brecht. Fragment, pièce didactique, théâtre épique,<br />

Revue de littérature comparée 2004/2, N°310, p. 193.<br />

Fernando Kinas Fatzer e o espectro 37


<strong>Urdimento</strong><br />

38<br />

espectador poderá analisar. 7 »<br />

Fatzer não poderá ser, então,<br />

segundo Brecht, um Schaustück, uma peça<br />

tradicional. Com a liberdade que a nova<br />

forma lhe permite, mantendo a ambição de<br />

fazer tanto a análise social quanto a da ação<br />

artística, duas questões se destacam e são<br />

desenvolvidas sem os condicionantes que<br />

o formato posterior da peça épica ou dialética<br />

imporiam: 1. a tensão entre indivíduo<br />

e coletivo; 2. a violência no ambiente<br />

revolucionário. Dito isto, valeria a pena<br />

lembrar das ressalvas que Bernard Dort<br />

faz às chamadas peças didáticas. Segundo<br />

o ensaísta francês, Brecht ainda estaria<br />

preso a uma análise moral da realidade.<br />

Seu marxismo, até o começo dos anos<br />

1930, não levaria em conta o conteúdo<br />

concreto das situações cujas mudanças<br />

eram reivindicadas. A necessidade de<br />

transformar o mundo «continua abstrata»,<br />

diz Dort. A ação seria concebida de maneira<br />

muito geral, «ela não é deduzida da<br />

situação real de um país em um momento<br />

preciso, tendo levado em conta a relação de<br />

forças existente». 8<br />

2. InDIVÍDUO E COLETIVO<br />

O primeiro tema pode ser visto<br />

como um passo adiante daquele dado em<br />

Baal, peça expressionista da juventude. O<br />

exame do binômio «liberdade individual/<br />

interesse comum» consumiu muita reflexão<br />

de Brecht e foi traduzido em várias peças<br />

desse período, como Aquele que diz sim/<br />

Aquele que diz não e A decisão, mas também<br />

em fragmentos como o próprio Fatzer e A<br />

padaria. A relação entre indivíduo e coletivo<br />

expressa tanto a crise política dos anos 1920<br />

(é preciso lembrar que a Alemanha esteve<br />

à beira do colapso em 1923 e às voltas com<br />

uma hiperinflação de proporções surreais<br />

no final desta década), como uma indagação<br />

mais profunda sobre a crise do sujeito.<br />

7 Brecht, Bertolt. Fatzer, traduzido por Christine Röerig, não publicado,<br />

p. 108 (tradução ligeiramente modificada).<br />

8 Dort, Bernard. Lecture de Brecht, Paris, Arche, 1993, p. 89.<br />

Portanto, não é casual que nos últimos<br />

trinta ou quarenta anos tenha ressurgido<br />

o interesse por estes trabalhos de Brecht.<br />

Embalados por teorias sobre o suposto fim<br />

da história e das ideologias; ou seduzidos<br />

por teorias extravagantes, sintetizadas nos<br />

cultural studies e na chamada french theory,<br />

enfim, aproveitando um ambiente de<br />

desilusão política e ambições intelectuais<br />

rebaixadas, pensadores e artistas se<br />

socorreram na tábua de salvação disponível<br />

e conveniente. No lugar de projetos<br />

coletivos e da inteligibilidade, desejos<br />

ritualizantes, aporias e relativismos.<br />

O pavor da totalidade (confundida,<br />

propositalmente ou não, com totalitarismo)<br />

abriu a porta para o «vale tudo» pósmoderno,<br />

aos modismos teóricos e a todo<br />

tipo de confusão conceitual. Esta situação<br />

permitiu um adesismo cínico ao status<br />

quo, travestido de sofisticação intelectual.<br />

O fragmento, brechtiano ou outro, serviu<br />

como uma luva para aqueles que negavam<br />

(ou negam) a possibilidade de um exame<br />

razoável do mundo. A operação lembra<br />

Margaret Thatcher negando a existência<br />

da sociedade… Mas é preciso se dar conta,<br />

como faz muito bem Terry Eagleton, que a<br />

política pós-moderna «significou ao mesmo<br />

tempo enriquecimento e evasão». 9 Raymond<br />

Willians, para citar um caso no campo<br />

do marxismo, seria exemplar, segundo<br />

Eagleton, no quesito «enriquecimento».<br />

Muitos outros, entretanto, enquadram-se<br />

na rubrica «evasão».<br />

No Fatzer, Koch/Keuner (Brecht<br />

usou os dois nomes, em momentos<br />

diferentes da composição do texto, para a<br />

mesma figura ou personagem), representa<br />

a ideia do coletivo, do funcionário aplicado,<br />

do burocrata que aplica o programa<br />

ou do militante que segue a linha do<br />

partido (disciplina e terror associados,<br />

dirá Heiner Müller). Já Fatzer expressa a<br />

energia incontrolada do rebelde, indivíduo<br />

insubmisso, às voltas com o conflito entre<br />

ordem e anarquia, disciplina e liberdade.<br />

O tema é aprender, ou não, a estar de<br />

9 Eagleton, Terry. As ilusões do pós-modernismo, Rio de Janeiro,<br />

Zahar, 1998, p. 33.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

acordo (Einverständnis)! Mas mesmo estas<br />

oposições, este mecanismo antitético, não<br />

é tão transparente quanto pode parecer.<br />

Somente na quarta fase de trabalho sobre<br />

o Fatzer, Brecht parece desenvolver de<br />

maneira mais clara este conflito, sem, no<br />

entanto, resolvê-lo completamente. E a<br />

não resolução se explica para além da<br />

incompletude da peça. Esta não resolução<br />

parece ser um princípio dramatúrgico<br />

e conceitual inerente ao trabalho. A<br />

«dramatização da dialética», segundo<br />

expressão de Fredric Jameson, não admite<br />

simplificações. 10<br />

Uma montagem contemporânea do<br />

Fatzer pode aproveitar tanto a riqueza<br />

deste método de investigação proposto<br />

por Brecht, quanto suas dúvidas sobre<br />

o próprio método e o arsenal teórico<br />

que ele mobilizou, confrontando-os com<br />

leituras contemporâneas. Ao escolher<br />

outras vias (jogos de referências, lirismos,<br />

instabilidades irresolvíveis, pragmatismo<br />

resignado etc.), o risco mais evidente é o de<br />

transformar a ambiguidade e a contradição<br />

produtivas de Brecht, em experiência<br />

estética estéril, reproduzindo cacoetes pósmodernos<br />

como se fossem experiências<br />

críticas.<br />

Fatzer, em princípio, não cabe no<br />

figurino do «teatro culinário» denunciado,<br />

exatamente, por Brecht; nem tampouco<br />

no teatro que recusa a rica dialética entre<br />

matéria social e opções formais.<br />

3. O PREÇO DA REVOLUÇÃO<br />

Associado ao tema da renúncia do<br />

indivíduo (da abdicação de si mesmo), há em<br />

Fatzer uma investigação sobre a necessidade<br />

da revolução. Ou sobre o preço da revolução.<br />

O papel da violência revolucionária,<br />

sobretudo quando escapa ao controle, ou<br />

quando está submetida a uma força política<br />

que funciona, ela mesma, sem regulação<br />

externa (o processo de retroalimentação<br />

é potencialmente entrópico), percorre<br />

o fragmento. Esta conclusão é válida<br />

10 Jameson, Frederic. O método Brecht, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 98.<br />

mesmo que a revolução, propriamente<br />

dita, seja a grande ausente do fragmento,<br />

que se organiza em torno da deserção<br />

e da espera, da fome e do medo. Mas a<br />

indagação permanece: em que momento a<br />

revolução passa a se alimentar dela mesma,<br />

esquecendo o horizonte que forneceu seu<br />

sentido original, sua razão de ser? Mauser,<br />

de Heiner Müller, que dialoga criticamente<br />

com Fatzer, faz, a seu modo, interrogação<br />

semelhante:<br />

«Você lutou no front da guerra civil<br />

O inimigo não encontrou fraqueza alguma<br />

em você<br />

Nós não havíamos encontrado fraqueza<br />

alguma em você<br />

Agora você mesmo é uma fraqueza<br />

Que o inimigo não pode encontrar em nós.<br />

Você aplicou a morte na cidade de Vitebsk<br />

Aos inimigos da revolução, por nosso encargo<br />

Sabendo que o pão de cada dia da revolução<br />

Na cidade de Vitebsk como em outras cidades<br />

É a morte dos seus inimigos, sabendo ainda que<br />

Precisamos arrancar a relva para que o verde<br />

permaneça<br />

Nós os matamos com a sua mão.<br />

Mas certa manhã na cidade de Vitebsk<br />

Você mesmo matou com a sua mão<br />

Não os nossos inimigos, não de acordo com<br />

a instrução<br />

E agora você precisa ser morto, você mesmo<br />

é agora um inimigo.<br />

Cumpra sua tarefa no posto derradeiro<br />

Onde a revolução te colocou<br />

De onde não haverá de sair sobre seus<br />

próprios pés<br />

No paredão, que haverá de ser o seu último<br />

Assim como cumpriu sua outra tarefa<br />

Sabendo que o pão de cada dia da revolução<br />

Na cidade de Vitebsk como em outras cidades<br />

É a morte de seus inimigos, sabendo ainda que<br />

Precisamos arrancar a relva para que o verde<br />

permaneça. 11 »<br />

Ancorados na história, tanto Brecht<br />

quanto Müller investigaram as entranhas<br />

da política revolucionária do século vinte.<br />

Müller usa Vitebsk e a revolução russa<br />

com o olho no tempo presente. 12 Brecht<br />

situa a ação de Fatzer no final da Primeira<br />

Guerra Mundial, mas mira a situação<br />

11 Müller, Heiner. Mauser, São Paulo, Hucitec, 1987, p. 3.<br />

12 “A cidade de Vitebsk localiza-se em todos os lugares onde a<br />

revolução foi e será obrigada a matar os seus inimigos”. Ibidem, p. 21.<br />

Fernando Kinas Fatzer e o espectro 39


<strong>Urdimento</strong><br />

40<br />

especialíssima da Alemanha na segunda<br />

metade dos anos 1920. É preciso lembrar<br />

que entre 1923 e 1925 o Ruhr foi ocupado<br />

por forças francesas e belgas sob a alegação<br />

de que reparações referentes à Guerra<br />

de 14-18 não teriam sido cumpridas pela<br />

Alemanha. Mülheim, onde se passa a<br />

história de Fatzer e seus três companheiros,<br />

está localizada nesta região.<br />

Além do processo pré-revolucionário<br />

de 1918/1919, marcado tragicamente pelos<br />

assassinatos, em janeiro de 1919, de Rosa<br />

Luxemburgo e Karl Liebknecht, outra grave<br />

crise política, quatro anos mais tarde, foi<br />

igualmente controlada pela reação socialdemocrata<br />

e de direita. Brecht, nos anos de<br />

elaboração do Fatzer, não era indiferente a<br />

estes acontecimentos, entre os quais estava<br />

a proclamação da República dos Conselhos<br />

da Baviera, em 7 de abril de 1919 (na qual<br />

se envolveu diretamente). O debate entre<br />

a visão conselhista (baseada nos soviets)<br />

e a que defendia o caminho parlamentar<br />

da Assembleia Constituinte não podia lhe<br />

deixar alheio.<br />

Tambores na noite é a tradução teatral<br />

de Brecht para esta situação política,<br />

especialmente em relação ao movimento<br />

espartaquista (o soldado pequenoburguês<br />

Kragler anuncia, em alguma<br />

medida, o desertor egoísta Fatzer). A<br />

duríssima repressão sofrida pelas forças<br />

políticas da esquerda revolucionária<br />

e o enfraquecimento do KPD (Partido<br />

Comunista Alemão, criado em 1919)<br />

durante a década de 1920 é um material<br />

valioso para Brecht, assim como o estudo<br />

da obra de Büchner, especialmente A morte<br />

de Danton. Esta época, excepcionalmente<br />

rica em debates e em agitação social,<br />

coincide com os anos de formação política<br />

de Brecht. Observador ativo do panorama<br />

político alemão, que ia do SPD (partido<br />

que defendia a política conservadora da<br />

República de Weimar), ao KAPD (Partido<br />

Comunista Operário da Alemanha, criado<br />

em 1920, que representava posições<br />

consideradas esquerdistas), Brecht viveu<br />

um momento de efervescência política rara.<br />

A criação da 3ª Internacional em 1919 e o<br />

processo revolucionário russo confirmam<br />

a existência de um complexo e explosivo<br />

quadro político na época.<br />

Não é negligenciável o fato de que<br />

a Baviera, tão cara a Brecht (que nasceu<br />

em Augsburgo e estudou filosofia em<br />

Munique), tenha se tornado um lugar<br />

privilegiado para as organizações fascistas<br />

após as repressões contrarrevolucionárias.<br />

Este confronto de posições políticas tinha<br />

também sua expressão estética. É neste<br />

caldeirão que Brecht gesta e experimenta<br />

sua visão de mundo. Nela não cabem<br />

facilidades típicas do sectarismo ideológico,<br />

mas tampouco omissões políticas. Por isso,<br />

ao utilizar Fatzer para a discussão sobre<br />

o preço (ou a necessidade) da revolução,<br />

deve-se levar em conta que há nele uma<br />

tomada de posição clara, ainda que não<br />

se possa aplicar a esta atitude rótulos e<br />

explicações simplistas. Isto não significa<br />

dizer que o processo de «desmarxização»<br />

de Brecht (semelhante ao que aconteceu com<br />

Benjamin 13 ) tenha alguma credibilidade.<br />

Descobrir um «outro Brecht», via de regra,<br />

não passa de revisionismo de segunda<br />

categoria. Parte da riqueza do pensamento<br />

brechtiano desta época é explicada<br />

exatamente pela leitura atenta que ele fez<br />

da obra de Marx.<br />

O legado de Brecht – submetido a<br />

intempéries dialéticas produtivas – parece<br />

corresponder de perto às características que<br />

ele, pouco antes de sua morte, recomendou<br />

ao Berliner Ensemble, que se preparava<br />

para uma turnê inglesa. Contra a arte<br />

«terrivelmente pesada, lenta, laboriosa e<br />

pedestre», disse ele, é preciso ser «rápido,<br />

leve e forte». 14<br />

13 Cf. Clark, T. J. «Será que Benjamin devia ter lido Marx?», in<br />

Modernismos, São Paulo, Cosac Naify, 2007, pp. 281-305.<br />

14 Brecht, Bertolt. Écrits sur le théâtre, v. 2, Paris, Arche, 1979, p. 595.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />

BRECHT, Bertolt. Diários de Brecht. São Paulo: L&PM, 1998.<br />

________ Fatzer (trad. de Christine Roerig). Não publicado.<br />

________ Teatro completo nº 12. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1995.<br />

________ Écrits sur le théâtre, v. 2, Paris, Arche, 1979<br />

________ O declínio do egoísta Johann Fatzer (org. Heiner Müller). São Paulo: Cosac Naify, 2002.<br />

CLARK, T. J. «Será que Benjamin devia ter lido Marx?», in Modernismos. São Paulo: Cosac<br />

Naify, 2007.<br />

DORT, Bernard. Lecture de Brecht. Paris: Arche, 1993.<br />

EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.<br />

JAMESON, Fredric. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999.<br />

MAIER-SCHAEFFER, Francine. «Le Méchant Baal, l’asocial et la poétique des genres chez<br />

Brecht. Fragment, pièce didactique», in: Théâtre épique, Revue de littérature comparée, 2004/2,<br />

N°310.<br />

MÜLLER, Heiner. Mauser. São Paulo: Hucitec, 1987.<br />

WILKE, Judith. «The Making of a Document: An Approach to Brecht’s Fatzer Fragment», in:<br />

TDR: The Drama Review - Volume 43, Number 4 (T 164), Winter 1999, pp. 122-128.<br />

Fernando Kinas Fatzer e o espectro 41


N° 18 | Setembro de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Fontes para os Estudos Teatrais I:<br />

contribuições de A. Appia e E. Piscator.<br />

Marcus Mota 1<br />

Resumo<br />

Neste artigo apresento algumas reflexões a partir da<br />

releitura das ideias de A. Appia e E. Piscator. O objetivo é<br />

propor uma retomada de textos fundamentais de teoria do<br />

teatro. O contato direto com esses textos reafirma a relação<br />

entre reflexões em artes cênicas e processos criativos.<br />

PALAVRAS-CHAVE: A. Appia, E.Piscator, Teorias do teatro.<br />

Abstract<br />

In this paper I propose a fresh contact with sources of<br />

Theatre Studies by re-eading some basic texts as A.Appia’s<br />

and E. Piscator’s. In these texts a close relationship between<br />

ideas and effective creative process is found.<br />

KEywORDS: A.Appia, E. Piscator, Theatre Theories.<br />

1 Professor da Universidade de Brasília e Coordenador do Laboratório de Dramaturgia da UnB.<br />

Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 43


<strong>Urdimento</strong><br />

44<br />

O<br />

incremento de pesquisas e publicações<br />

em artes cênicas não pode<br />

prescindir do estudo e análise de<br />

fontes primárias, de obras e contribuições<br />

basilares que muitas vezes<br />

não frequentam os modismos acadêmicos<br />

e nem a eles se resumem.<br />

Tal atividade é fundamental na capacitação<br />

intelectual de estudantes e pesquisadores<br />

em Artes Cênicas. A leitura dessa<br />

obras demonstra que as preocupações desses<br />

hoje pioneiros em escrever sobre teatro<br />

baseava-se no enfrentamento de situações<br />

concretas de processos criativos.<br />

Ou seja, mais que pensar o próprio<br />

pensamento, tais pioneiros desbravavam<br />

um campo em formação e expansão integrando<br />

discurso a contextos imediatos de<br />

atividades cênicas.<br />

Dessa forma, ao se reler esses textos do<br />

passado sem a preocupação de formar uma<br />

história linear, uma narrativa que os transforma<br />

em nossos predecessores, podemos<br />

praticar um útil estranhamento que se verifica<br />

na percepção do seguinte fato: mesmo<br />

que muitos dos tópicos da agenda crítica<br />

contemporânea se aproximem de propostas<br />

e soluções pretéritas, a herança moderna<br />

da ruptura com a tradição consagra<br />

sempre o momento atual como única instância<br />

avaliativa de conhecimento, fazendo<br />

com que todo movimento de semelhança<br />

seja visto como algo negativo. Assim, a<br />

possibilidade de se entrar em contato com<br />

experiências prévias torna-se um anátema,<br />

pois o antigo sempre é visto algo a ser ultrapassado<br />

ou negado. Daí a clausura modernista<br />

não ter memória, ou lutar contra<br />

a construção de uma memória de práticas<br />

e vivências e se refugiar nas abstrações, no<br />

discurso sobre si mesma.<br />

Ora, quando se propõe uma volta aos<br />

textos fundamentais o que se quer não é localizar<br />

em algum momento do tempo um<br />

locus privilegiado para a construção de um<br />

espaço cômodo de observância. O que se<br />

quer é justamente intervir nessa geometrização<br />

da História, liberando o intérprete<br />

para formar diálogo com quem ele quiser.<br />

No lugar de se postular um ou outro<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

ponto no tempo ou uma e outra produção<br />

como modelar, procede-se a um contato/<br />

contágio com as mais diversas estéticas e<br />

eventos, para que, a partir daí, o intérpreteartista-<br />

pesquisador possa alçar o seu vôo.<br />

Se não, o que restará além de repetir o<br />

mesmo, refazer a mesma cantilena do que<br />

é melhor e do que dever ser reproduzido,<br />

confundindo novidade com originalidade?<br />

Dentro dos cursos superiores de teatro<br />

e em suas pós-graduações, tal contato<br />

com as fontes, com as diversas experiências<br />

expressivas sem a indicação de uma<br />

cartilha prévia, é uma atitude basilar para<br />

a ultrapassagem do fosso abstrato entre<br />

invenção e história. Para tanto, neste artigo<br />

discuto e analiso algumas das ideias<br />

de Adolphe Appia e de Erwin Piscator,<br />

valendo-me de parte de seus percursos e<br />

ideias para uma iniciação à inserção do intérprete<br />

nas fontes de teoria e história do<br />

teatro, com a motivação de que os estudos<br />

dessas fontes impulsionem o pensar-fazer<br />

cênico.<br />

A Appia: a encenação como<br />

renovação da prática teatral<br />

O visionário Adophe Appia (1862-<br />

1928) bem caracteriza a emergência da figura<br />

do encenador como fator determinante<br />

para a teoria e prática do teatro do século<br />

XX 2 .<br />

Com a crise do espaço de representação<br />

baseado no chamado palco italiano,<br />

que preconizaria uma relação frontal, unidirecional,<br />

estática e apassivadora entre<br />

palco e platéia em um lugar fechado, todo<br />

o processo de se conceber e fazer espetáculos<br />

entra em crise 3 . O espaço de representação<br />

necessita ser reestruturado, levando<br />

em conta a constituição do espetáculo e sua<br />

realização. Um espetáculo não tem de se<br />

2 V. BEACHAN. Para suas obras completas em volumes, v., 2004. APPIA. Para<br />

uma seleção de seus escritos, v., 1986-1990.BEACHAM. Para lista de escritos de<br />

A. Appia, v., 1993. A coleção Donald Oenslageer na Yale University. Link http://webtext.library.yale.edu/xml2html/beinecke.OENSLAG.con.html#a8.<br />

A coleção contém<br />

cartas, manuscritos, artigos, ensaios que documento a vida e a carreira de A.Appia.<br />

Ainda, para bibliografia de e sobre Appia, v. http://w3.uniroma1.it/cta/file/testi/appia/<br />

pdf/20.pdf.<br />

3 PELLETIER, 2006; WEST-PAVLOV, 2006; WILES, 2003; McAULEY, 2000; CARL-<br />

SON, 1989.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

amoldar a um espaço fixo 4 . A pluralidade<br />

de formas de representação é correlativa à<br />

diversidade de espaços de exibição.<br />

A contradição entre a dinâmica representacional<br />

da cena e a pressão por normalidade<br />

da forma de apresentação abre a<br />

possibilidade de não restringir o representado<br />

aos ditames extracompositivos, mas<br />

de se determinar a representação por fatores<br />

de composição e performance. Não é o<br />

espetáculo que tem de encontrar um espaço<br />

no teatro, mas é o teatro que tem de estar<br />

contido no espetáculo.<br />

Para resolver esta contradição (ou mesmo<br />

torná-la representável), é preciso uma<br />

mediação entre a fisicalidade do espetáculo<br />

e a constituição de uma situação integrada<br />

de observância, que possibilite a realidade<br />

da ficção como algo factível de ser<br />

assenhorado pela recepção. O encenador é<br />

o agente desta mediação. Uma outra criatividade,<br />

diferente da criatividade do autor,<br />

co-opera na realização do espetáculo.<br />

E, com ele, todo o mundo extramental da<br />

função autoral é positivado.<br />

De forma que, na emergência do encenador,<br />

a relação autor/texto/público é<br />

desconstruída, havendo a descentralização<br />

das prerrogativas criativas e expressivas<br />

que repousavam exclusivamente nas mãos<br />

do autor e de seu texto. A representação<br />

deixa de ser extensão das ideias de um centro<br />

e monopólio de sentido e o texto perde<br />

sua função exclusivista de fixação de um<br />

mundo homogêneo e fechado.<br />

A. Appia ficou sendo mais conhecido<br />

pelas aplicações técnicas de sua obra, relacionadas<br />

com a iluminação (luz móvel, focos<br />

precisos e variáveis) e a tridimensionalidade<br />

da cena (espaço de atuação em relações concretas<br />

entre o corpo do ator e os objetos de<br />

cena), padrões mínimos de encenação hoje<br />

largamente adotados. Mas seus escritos revelam<br />

um horizonte de questões que se tornaram<br />

fundamentais para pensar a realização<br />

teatral 5 .<br />

Ele partiu de uma situação bem deter-<br />

4 Tema recorrente em autores como V. Meyerhold, Brecht ou Grotowski.<br />

5 WIENS. Para a recepção de A. Appia, v. 2010; SALVADEO, 2006; VOLBACH,<br />

1961; VOLBACH, 1968; MONAGAN, 2008; LINDNER, s/d; BEACHAM, 1985;<br />

BEACHAM, 1985; BEACHAM, 1994.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

minada para, a partir disso, construir suas<br />

programáticas reflexões 6 . Repensando as<br />

limitações da revolução estética produzida<br />

pela obra de Richard Wagner (1813-1883),<br />

Appia soube caracterizar o contexto de<br />

ruptura que estava se formando, fundamentando<br />

teoricamente o que o futuro iria<br />

reivindicar para ser efetivado como inovação.<br />

A proposta de Wagner, que ia além da<br />

ópera, preconizava uma concepção integrada<br />

de efeitos para a construção do drama<br />

musical. Ele via nas complexidades inerentes<br />

à realização multimídia da tragédia grega<br />

(canto, dança, palavra) o impulso de reeducação<br />

estética do povo alemão. A obra<br />

de arte do futuro deveria ser uma obra de<br />

arte total, sendo a dramaturgia uma consciência<br />

dos meios para se atingir essa integração.<br />

Wagner polemiza contra o sucesso<br />

das óperas de G. Meyerbeer(1791-1864) e<br />

dos libretos de E. Scribe(1791-1861), mais<br />

preocupados em manter a platéia atenta<br />

através de isolados e pontuais truques musicais<br />

e narrativos, que não aprofundam a<br />

tensão dramática e a estruturação da obra.<br />

Wagner quer expandir o efeito do drama<br />

e suas potencialidades representacionais<br />

através da extensão dos parâmetros composicionais.<br />

O convencionalismo dramático da<br />

ópera do tempo de Wagner então é atacado<br />

como forma de se diversificar as possibilidades<br />

da expressão musical. A música,<br />

antes dependente de um enredo esquemático,<br />

previsível e limitado, agora se oferece<br />

como condutora do espetáculo. A estrutura<br />

musical e seus efeitos afetivos poderiam<br />

romper com o ilusionismo da cena convencionalizada.<br />

Ações musicais tornadas visíveis<br />

– eis um emblema para a dramaturgia<br />

musical de Wagner 7 .<br />

Mas aí onde a música se torna visível,<br />

em sua exteriorização, é que reside a con-<br />

6 Com se vê em sua primeiras publicações: Le mise en scène du drama wagnérie(1895)<br />

e Die Music und die Inscenierung/ Le musique et a mise en scène<br />

(1899). Esta última está disponível em tradução inglesa no site www. archive.<br />

org. V. BEACHAM, 1989, DUDEQUE, 2009.<br />

7 No ensaio “Über die Benennung ‘Musikdrama’”( A respeito da denominação ‘Drama<br />

musical’), de 1872. V. DEATHRIDGE&DAHLHAUS, 1988; GREY, 1995 e MIL-<br />

LER, 2002. Para textos de R. Wagner, v. http://users.belgacom.net/wagnerlibrary/.<br />

Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 45


<strong>Urdimento</strong><br />

46<br />

tradição de Wagner 8 . As soluções pictóricas<br />

extremamente suntuosas sonegam ao<br />

espectador uma participação maior nessas<br />

ações musicais. O extremo realismo da<br />

encenação traduzia o caráter espetacular<br />

da encenação, sem efetivar o espaço para<br />

uma dramatização maior 9 . A intensidade<br />

da música era vazada em uma cena inerte<br />

e reprodutiva. Como um quadro com legenda,<br />

a exuberância visual torna-se uma<br />

explicação e um direcionamento do que se<br />

pretende representar.<br />

Um novo espaço cênico é preciso, pois.<br />

Para as obras performativas não basta mudar<br />

os temas, as imagens ou a estruturação.<br />

Não basta mudar o texto sem alterar aparato<br />

cênico. A obra nova de Wagner necessita<br />

de um novo espaço. O alargamento das<br />

dimensões imaginativas proporcionados<br />

pela dramaturgia musical de Wagner reivindica<br />

uma correlata extensão representacional.<br />

Foi o que Appia viu. A emergência do<br />

encenador está diretamente relacionada<br />

com a mudança de nossas concepções de<br />

obra de arte, sempre associadas com a literatura,<br />

com a escrita. O efetivo modo de ser<br />

da encenação ilumina o além-texto, a presença<br />

irrefutável de um contexto de produção<br />

de sentido. A faticidade do que não<br />

é só linguagem e estados mentais torna-se<br />

determinante. A dramaturgia defronta-se<br />

com esse intervalo entre obra e realização.<br />

A materialidade e suas irremediáveis contingências<br />

saltam aos olhos não só como<br />

dificuldades e apêndices à ideia artística.<br />

Tal descontinuidade entre texto e representação,<br />

motiva Appia a pensar as<br />

implicações estéticas de se levar em conta<br />

as especificidades de uma expressão cênica.<br />

O pressuposto de uma imediata transparência<br />

da fisicidade da cena é refutado.<br />

Exigências físicas não podem ser refutadas,<br />

mas devem ser integradas à representação.<br />

Dispositivos técnicos são marcas de uma<br />

revisão de programas idealistas. A inadequação<br />

entre a fluidez musical e informações<br />

visuais estritas aponta para o desgaste<br />

8 APPIA, 1981:104-130.<br />

9 V. CARNEGY, 2006; ROTH, 1980.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

da maneira como a ficção audiovisual era<br />

concebida e realizada. O provimento de<br />

um drama absoluto - nas palavras de P.<br />

Szondi, por meio do qual o percurso narrativo<br />

de um agente é preenchido totalmente<br />

e o espetáculo é o mundo ordenado no qual<br />

ele habita - não mais pode perseverar 10 . A<br />

rigorosa distribuição de relações entre personagens<br />

e referências espaço-temporais,<br />

proporcionando a ilusão cênica da continuidade<br />

entre mundo e vida, chega ao seu<br />

limite. Wagner havia composto o drama<br />

musical, mas não o espaço técnico e representacional<br />

deste drama 11 .<br />

Chega ao limite também a narratividade<br />

do drama. Na dramatização não se está<br />

contando uma história. Procedimentos não<br />

narrativos são utilizados. A arte dramática<br />

não se confina à continuidade causal de<br />

acontecimentos pertencentes a uma trama<br />

que transcende à representação. O que<br />

acontece em cena pertence à outra ordem<br />

que a confirmação e encadeamento finalísticos<br />

da narrativa. A unidade da realização<br />

dramática reside na sustentação de sua recepção<br />

e efetividade.<br />

Podemos acompanhar melhor a argumentação<br />

de Appia seguindo seu livro La<br />

musique et la mise en scène 12 , de 1899. O livro<br />

divide-se em três partes interligadas como<br />

tarefas e reflexões que devem ser executadas<br />

para a renovação das artes de cena:<br />

respectivamente, Appia critica a concepção<br />

realista do teatro de seu tempo (século<br />

XIX), revê a encenação de Wagner e propõe<br />

uma teoria da encenação.<br />

A orientação musical da dramaturgia,<br />

uma dramaturgia poético-musical, como<br />

Wagner tentou realizar, produz a reconsideração<br />

do espectador e do espetáculo de<br />

um drama falado - veículo predominante<br />

de ideias e comportamentos no século XIX<br />

- ao mesmo tempo que, pela partitura musical,<br />

rompe com a centralidade do texto e<br />

dos atos verbais.<br />

A marcação partiturizada dos contex-<br />

10 SZONDI, 2001: 29-37.<br />

11 APPIA, 1981: 10-103.<br />

12 Sigo a tradução em APPIA 1981. A partir de APPIA 1986-1990, orientei a tradução<br />

de La musique et la mise en scène realizada por Flávio Café em seu projeto de<br />

iniciação científica entre 2008-2009.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

tos emocionais da personagem altera o<br />

foco da representação. Ao invés de se sobrecarregar<br />

a atuação com as informações<br />

que compõem e caracterizam o mundo do<br />

palco, uma poética musical para a cena<br />

interpreta e mantém a dinâmica que individualiza<br />

os motivos pré-actanciais, o debate<br />

interno da personagem antes do agir,<br />

bem como as respostas emocionais frente<br />

aos acontecimentos. A representação não<br />

reproduz uma constância referencial, mas<br />

produz a interpretação de sua forma através<br />

da marcação emocional e cognitiva da<br />

audiência. Do projeto de reproduzir com<br />

verossimilhança o mundo da vida partimos<br />

para a exploração de uma ambiência<br />

extracotidiana onde a construção do espectador<br />

é desenvolvida. A satisfação do olhar<br />

sustentada pelos comentários do ator é bloqueada.<br />

O uso da música como operador dramático<br />

determinante refuta os hábitos do<br />

chamado teatro literário o qual, desde o<br />

Classicismo francês (sec. XVIII) até os rescaldos<br />

do Realismo-Naturalismo, propunha<br />

que o mundo representado viesse a ser um<br />

aperfeiçoamento do mundo vivido.<br />

Rompendo com a subordinação da<br />

cena a um tipo de texto que organizava os<br />

modos de percepção do mundo, o drama<br />

musical exige a coordenação de esforços<br />

da platéia para uma experiência singular a<br />

ser representada. O foco passa a ser a ficção<br />

partilhada.<br />

Em uma obra dramático-musical essa<br />

partilha só ocorre através da continuidade<br />

da cena em suas variações temporais e<br />

afetivas. Todos os heterogêneos elementos<br />

do espetáculo (canto, dança, fala, luz, música,<br />

pintura) precisam se submeter à duração<br />

singularizada de seus efeitos. A mútua<br />

implicação dos elementos no espetáculo<br />

postula novas atribuições e funções para o<br />

material utilizado levando em conta as particularidades<br />

físicas desses materiais. Para<br />

durar, o espetáculo precisa da integração de<br />

seus vários níveis representacionais. O momento<br />

de cena é a articulação dessa pluralidade<br />

convergente 13 .<br />

13 Sobre o tema, v. GUIDO, 2007; BREMNER, 2008; ROBERTSON, 2009.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Para ficar mais claro, Appia toma o<br />

uso dos cenários pintados como contraexemplo<br />

ao que almeja 14 . Este problema<br />

plástico faculta o desenvolvimento de<br />

uma nova arte. Por meio destes objetos<br />

bidimensionais enfatizava-se uma ilusão<br />

abstrata de realidade, pressupondo no<br />

que se mostra uma generalizada visãosuporte<br />

como subsídio ao que se representa.<br />

Não levando em conta a própria<br />

realidade de cena e sua configuração<br />

para o espectador, ficava-se convencionado<br />

que ali existiria algo sem que efetivamente<br />

houvesse. Limitava-se o que<br />

devia ser visto ao que é mostrado, o que<br />

diminui o real representado. O controle<br />

do campo perceptivo da platéia está estipulado<br />

neste acordo tácito. As grandezas<br />

são constantes e absolutas: o grande<br />

e o pequeno só podem ocorrer alternadamente.<br />

A simulação de terceira dimensão<br />

nas estáticas pinturas de cenários é facilmente<br />

destruída pela realidade material<br />

dos corpos, pelo movimento da luz e do<br />

corpo humano.<br />

Para fazer valer essa óptica redutora<br />

foi preciso arrefecer o próprio alcance do<br />

espetáculo. A continuidade da ilusão de<br />

um espaço nivelador exigiu a representação<br />

de um mundo ficcional compatível.<br />

Tudo que é posto em cena leva a marca<br />

dessa conformação. A solução visual dos<br />

cenários pintados é decorrente de uma<br />

proposta dramática que reduz a realidade<br />

visual do espetáculo à sua imediata<br />

apresentação. Daí os arroubos emocionais<br />

e as trucagens de enredo.<br />

Contudo, quando se coloca algo em<br />

cena é preciso sustentar sua visão. Para<br />

tornar crível aquele painel, verdadeiro discurso<br />

da imagem, é preciso que os outros<br />

elementos de cena comunguem da mesma<br />

orientação. Appia bem explicitou que uma<br />

descrição da atividade cenográfica proporciona<br />

a compreensão de um produto que<br />

não é gratuito, mas que se determina pela<br />

orientação estética que o instaura. A fenomenologia<br />

da cena nos faz reconhecer que<br />

a atividade estética da recepção preconiza<br />

14 APPIA, 1981:103-130.<br />

Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 47


<strong>Urdimento</strong><br />

48<br />

uma hierarquia e a cooperação dos diversos<br />

elementos integrantes do espetáculo. A<br />

complexidade do visto é um fazer tornado<br />

possível.<br />

Dessa maneira, melhor que o cenário<br />

pintado é a atividade da luz. Luz e superfície<br />

pintada se anulam ao invés de se reforçarem<br />

mutuamente. O dramaturgo musical<br />

pinta com a luz. A flexibilidade e a extensão<br />

imaginativa do espetáculo reverberam<br />

na plasticidade da iluminação. Em cena<br />

objetos físicos reais e presentes desnudam<br />

o ilusionismo convencional dos cenários<br />

pintados. Objetos não podem ser fictícios<br />

porque a luz não tem existência fictícia. O<br />

corpo vivo e rítmico do ator contradiz a<br />

massa imóvel e distante que se equilibra<br />

atrás dele. Os contextos emocionais e suas<br />

seqüências e as proporções de sua visualização<br />

entrechocam-se com uma bidimensionalidade<br />

isolada. À um corpo vivo, à<br />

uma música dramatizada, corresponde<br />

um espaço temporalizado. A luz, com sua<br />

capacidade de revelar nuances multivariadas,<br />

proporciona o reconhecimento de<br />

profundidades, modificações e fusões que<br />

a representação sugere. A luz é matéria e<br />

intérprete do espetáculo.<br />

A flexibilidade da luz e as cores a ela<br />

associadas possibilitam a pluralidade coerente<br />

do novo princípio cênico que Appia<br />

teoriza 15 . A intensificação dramática é proporcional<br />

a uma economia visual. Distribuem-se<br />

as funções entre os elementos que<br />

contracenam entre si. Os atores contracenam<br />

com a luz a qual, por sua vez, contracena<br />

com a música.<br />

A desubstancialização das formas libera<br />

a dramaturgia musical para as particularidades<br />

do espaço cênico. A visualidade<br />

deixa de ser uma evidência para se postar<br />

como problematização de qualquer roteiro<br />

representacional. A controlada luz no palco<br />

unifica e realiza as intenções expressivas<br />

Dali em diante, o espaço cênico é o espaço<br />

de experimentação e de concretude<br />

estética do artista cênico. Não é anterior ao<br />

que realiza, mas é indissociável à representação.<br />

Paradoxalmente, a ficção cênica não<br />

15 APPIA, 1981: 131-193.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

é uma ilusão, uma atividade mental imposta<br />

e sim a proposição de materiais bem escolhidos<br />

e correlacionados. O espaço cênico<br />

corrige as oposições entre ficção e realidade<br />

e refuta uma estética filosófica em prol de<br />

uma estética operatória e exploratória. A<br />

teatralidade emerge como situação extrema<br />

ficcional que, no precário modo de sua<br />

existência – visualidade –, mobiliza uma<br />

complexa atualidade material e afetiva. A<br />

unidade do teatro não está mais assinalada<br />

nas intenções e ideias do texto de um autor.<br />

Em torno do espaço cênico a visibilidade<br />

do que se objetiva não será apenas um<br />

meio, mas sua própria possibilidade.<br />

Em L’Ouvre d’Art Vivant 16 , de 1921,<br />

considerado seu testamento estético, Appia,<br />

agora mais livre do ideal wagneriano,<br />

consolida sua teoria do teatro 17 . O contato e<br />

a colaboração com os experimentos da Euritimia<br />

de Emile Jaques Dalcroze fizeram<br />

com que Appia coordenasse a centralidade<br />

do espaço cênico com o corpo humano. O<br />

ritmo do espaço é interpretado pelo corpo<br />

e este modifica seus movimentos e suas<br />

formas 18 . Pois, como o corpo humano torna<br />

formas pintadas irrelevantes, é a sua performance<br />

que cria o espetáculo 19 . O ator e<br />

seu treinamento e desenvolvimento físicoexpressivo<br />

são agora o foco da reforma da<br />

encenação de Appia. A música cede sua<br />

imagem para a defesa de um espaço rítmico<br />

a ser individualizado pelo intérprete.<br />

Para chegar ao ator, Appia perguntase<br />

se tempo e espaço possuem algum denominador<br />

comum: uma forma no espaço<br />

pode se manifestar em sucessivas durações<br />

de tempo e essas sucessivas durações de<br />

tempo podem ser expressas em termos de<br />

16 Sigo aqui a tradução inglesa de APPIA, 1997. Também no site www.archive.org<br />

encontra-se diponível uma edição original da obra, dedicada a Emile Dalcroze.<br />

17 Neste livro encontramos a famosa afirmação “a stage is an empty and more or<br />

less iluminated space of arbitrary dimensions”(APPIA, 1997:8).<br />

18 APPIA, 1997:9.<br />

19 APPIA, 1997:9-10.”The body is not only mobile: it is plastic as well. This plasticity<br />

naturally gives it an immediate kinship with architecture and brings it close to sculptural<br />

form - without, however, fully identifying itself sith sculpture, which is immobile.<br />

On the other hand, it is alen to the nature of painting. A plastic object demands lights<br />

and shadows that are real and positive. Placed before a painted ray of light or a painted<br />

shadow projection, the plastic body stubbornly remains in its own atmosphere,<br />

its own light and shadow. The same is true of forms expressed in painting. These<br />

forms are not plastics, but two-dimensional, and the body is three-dimensional; their<br />

juxtaposition is out of question. The human body makes painted forms and painted<br />

light irrelevant on the stage”<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

espaço 20 . Vendo que, no espaço, unidades<br />

de tempo são expressas por sucessão de<br />

formas em movimento e que, no tempo, espaço<br />

é expresso por sucessão de palavras e<br />

sons, Appia promove o corpo vivo do ator,<br />

sujeito às suas determinações físicas reais,<br />

a intérprete do tempo em forma de espaço.<br />

Diferente de formas inanimadas, o corpo<br />

reage e realça um paradoxo fundamental<br />

da cena: se a música prescreve os movimentos<br />

do corpo, o corpo transforma o espaço<br />

em tempo 21 . A visualidade do espaço<br />

cênico demanda que o corpo torne factível<br />

a experiência de uma temporalidade. Há a<br />

cena somente quando o corpo materializa<br />

essa interação. O corpo do ator contracena<br />

com durações e extensões. Existe um momento<br />

pré-representacional que atravessa<br />

a construção do espetáculo e sobredetermina<br />

o horizonte de tudo que vai ser encenado:<br />

a fisicidade do corpo.<br />

O espaço cênico é o espaço rítmico no<br />

qual o corpo vivo do ator confronta-o (e<br />

provoca-o), transformando constrições em<br />

possibilidades criativas. Segundo Appia,<br />

então, em razão de o corpo ser o ponto de<br />

partida e sustentação da realização dramática,<br />

como o corpo expressa espaço e, para<br />

proporcionar espaço, precisa de tempo, sua<br />

atividade é expressão de espaço durante o<br />

tempo e tempo no espaço. O corpo é o autor<br />

dramático, pois “Nós somos a peça e a<br />

cena”, de acordo com Appia. A produção<br />

de tempo e espaço pelo corpo é que torna<br />

realizável o evento cênico 22 .<br />

Desse modo entramos no palco moderno.<br />

A voz de Appia não só ecoou nos<br />

trabalhos e teorias dos encenadores como<br />

Gordon Craig (1872-1966), Max Reinhardt<br />

(1873-1943), Erviw Piscator (1893-1966)<br />

20 APPIA, 1997:7,8,13. “Do time and space possess some reconciling element,<br />

some common denominator? Can form in space be manifested in successive<br />

time-durations, and can these time[durations, in turn, be expressed in terms of<br />

space? [...] In space, units of time are expressed by a sucession of forms, hence<br />

by movement. In time, space is expressed by a sucession of words and sounds,<br />

that is to say by varying time-durations prescribin the extent of the movement. [...]<br />

Movement is the reconciling principle that formally unites space and time”.<br />

21 APPIA, 1997:38-57.<br />

22 APPIA, 1997:53-54:” Space is our life; our life creates Space; our body express<br />

it.[...] In order to proportion Space, our body needs time! The time-duration of our<br />

movements, consequently, has determined their extent in space. Our life creates<br />

space and time, one through the other. Our living body is the expression of Space<br />

during Time, and of Time in Space. [...] We are the play and the stage, because it is<br />

our living body that creates them. Dramatic art is a spontaneous creation of the body;<br />

our body is the dramatic author”.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

como também em outras direções que o<br />

teatro foi promovendo (teoria e treinamento<br />

do ator). A abertura de perspectivas<br />

promovida pela abordagem de Appia, ao<br />

formular sua teoria sem se valer somente<br />

de estéticas filosóficas ou programáticas,<br />

reconsiderando a faticidade da linguagem<br />

de cena, impulsionou a chamada autonomia<br />

da teatralidade, autonomia esta baseada<br />

no conhecimento de suas especificidades.<br />

A materialidade da cena não é uma<br />

ilustração da expressão dramática, mas um<br />

pressuposto de sua realização. A partir da<br />

modernidade é preciso corrigir as ideias<br />

por meio do concreto contexto da expressão<br />

em cena. O processo criativo agora é<br />

um complexo estético-físico.<br />

Erwin Piscator e o fim da ilusão<br />

da ilusão teatral<br />

John Heartfield, contra-regra encarregado<br />

de preparar um telão para ‘ O mutilado’,<br />

atrasado como sempre, aparece à porta<br />

de entrada da sala quando a peça já estava<br />

na metade do primeiro ato, com o telão enrolado<br />

e metido debaixo do braço.<br />

Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 49


<strong>Urdimento</strong><br />

50<br />

HEARTFIELD<br />

Erwin, pare! Estou aqui!<br />

Atônitos, todos voltam-se para aquele homenzinho,<br />

de rosto fortemente avermelhado que<br />

acabara de entrar. Não sendo possível continuar o<br />

trabalho, Piscator levanta-se e abandona por um instante<br />

o seu papel de mutilado e grita:<br />

PISCATOR<br />

Por onde você andou? Esperamos quase<br />

meia hora (murmúrio de assentimento do público)<br />

e começamos sem o seu trabalho.<br />

HEARTFIELD<br />

Você não mandou o carro! A culpa é sua!<br />

(crescente hilaridade no público)<br />

PISCATOR<br />

(Interrompendo - o): Fique quieto, Johnny,<br />

precisamos continuar o espetáculo.<br />

HEARTFIELD<br />

(Extremamente excitado) Nada disso, antes<br />

vamos erguer o telão!<br />

Como HEARTFIELD não cede, PISCA-<br />

TOR volta-se para o público, perguntando-lhe<br />

o que deveria ser feito: continuar o espetáculo<br />

ou pendurar o telão. A grande maioria decide<br />

pela última alternativa. Cai o pano, monta-se o<br />

telão e, para contentamento geral, espetáculo<br />

recomeça. 23<br />

O trecho acima é uma adaptação de um<br />

episódio que, segundo as palavras jocosas<br />

de E. Piscator (1893-1966), foi a fundação<br />

do Teatro Épico. Concluindo o relato, Piscator<br />

afirma: “Considero John Heartfield o<br />

fundador do teatro épico.” 24<br />

Em nossa adaptação, convertemos a<br />

nota de rodapé que apresenta o episódio,<br />

em um roteiro teatral, com o objetivo de<br />

tornar mais compreensíveis os procedimentos<br />

relativos a este Teatro Épico.<br />

Seguindo o roteiro, notamos que a interrupção<br />

de uma representação proporciona<br />

o contexto para diversas ações do<br />

ator, do público e do agente invasor. É a<br />

partir da ampliação dessa interrupção que<br />

temos estes diversos atos estritamente vinculados<br />

entre si.<br />

23 PISCATOR, 1968:53.<br />

24 Idem, ibidem.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

A extensão da duração do que se interrompe<br />

vai formando um novo momento<br />

dentro do espetáculo, providenciando novos<br />

nexos, outro padrão de interação entre<br />

cena e platéia, revisando o padrão anterior.<br />

À frontalidade da cena - manifesta na unidirecionalidade<br />

entre o mundo dos atores e<br />

o mundo do público - contrapõe-se a correlação<br />

entre o cênico e o não cênico, simultaneamente.<br />

Dessa maneira, a intrusão de Heartfield<br />

possibilita não somente a ruptura com a<br />

‘ilusão’ do que se representa. A unidade<br />

da representação e seu padrão de interação<br />

são colocados em xeque.<br />

Mas, ao mesmo tempo e irreversivelmente,<br />

esta intrusão é integrada a uma<br />

continuidade que redefine tanto a unidade<br />

da representação quanto seu padrão de interação.<br />

À diferenciação de eventos representados<br />

corresponde uma diversificação<br />

das respostas da audiência.<br />

Os chamados ‘prejuízos’ causados pela<br />

interrupção da representação - a dispersão<br />

recepcional e a falha na continuidade actancial<br />

- são incorporados pelo curso subsequente<br />

das novas participações do público<br />

no espetáculo. Ou seja, a ruptura com<br />

o espetáculo, a descontinuidade, produz<br />

uma nova continuidade.<br />

Ora este espetáculo dentro do espetáculo<br />

amplia os nexos recepcionais ao<br />

mesmo tempo em que amplia o mundo<br />

representado e a própria representação. O<br />

público quer tudo, o telão e o espetáculo.<br />

E é para essa ampliação da cena que<br />

ruma a proposta de Piscator.<br />

Se a descontinuidade pode produzir<br />

tanto novos atos recepcionais quanto actanciais,<br />

ampliando a cena, isso só se torna<br />

possível em virtude de haver o descentramento<br />

do centro de orientação do espetáculo<br />

quanto a um ponto unificador do que<br />

é mostrado.<br />

Ora, a expansão e diversificação dos<br />

nexos agem diretamente sobre uma proposta<br />

de homogeneidade. Se considera-se<br />

imprescindível coordenar atos e eventos<br />

heterogêneos em seqüência e simultaneidade,<br />

então volta-se a totalidade desses<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

procedimentos contra o totalitarismo da<br />

cena fechada sobre sua forma de apresentação.<br />

Assim, a proposição de uma cena<br />

expandida reage diretamente contra procedimentos<br />

redutores da cena.<br />

Contudo, a diferença de Piscator não<br />

está na substituição de formas. Para ele,<br />

“o critério não está no formal, está no<br />

problemático.” 25<br />

Como então compreender esta diferença<br />

que tem um parâmetro composicional,<br />

mas que ao mesmo tempo não se limita à<br />

composição?<br />

Justamente, quando se inserem questões<br />

composicionais que controlam opções<br />

formais em questões outras não puramente<br />

estéticas é que começamos a nos aproximar<br />

da amplitude que Piscator advoga.<br />

Há, pois, uma estreita conexão entre procedimentos<br />

de composição e realização e a<br />

definição de espetáculo.<br />

O impulso para esta conexão reivindica<br />

um contexto reativo, um claro posicionamento<br />

contra o conluio entre esteticismo<br />

e subjetivismo que permeava a cultura teatral<br />

alemã dos primeiro decênios do século<br />

XX. Conquistas técnicas do teatro, como<br />

luz elétrica e palco giratório são incorporadas,<br />

por Max Reinhardt, por exemplo,<br />

no fortalecimento do lirismo dramático,<br />

em uma naturalização do mundo representado<br />

como registro e clausura da ‘alma<br />

individual’. 26<br />

Dessa forma, o dispositivo cênico magnetiza<br />

o observador, isolando-o, ao figurar<br />

ações, pensamentos e emoções que não<br />

ultrapassam a instância do próprio sujeito<br />

que as performa. O incremento técnico<br />

da cena, ou este uso da técnica, consagra<br />

a apresentação de referências desprovidas<br />

de situações que não se reduzem a ações/<br />

reações individuais.<br />

Mas há outras maneiras de se efetivar<br />

as aplicações do dispositivo cênico. As<br />

modificações técnicas ao invés de naturalizarem<br />

uma cena subjetiva podem capacitar<br />

um deslocamento do “indivíduo com<br />

25 Idem, 43.<br />

26 Idem, 37-38. “Essa arte dramática é lírica, quer dizer não é dramática. São obras<br />

líricas dramatizadas. Na miséria da guerra, que foi, na realidade, uma guerra da máquina<br />

contra o homem, procurou-se, pela negação, pesquisar a alma do homem.”<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

seu destino particular pessoal” para uma<br />

amplitude histórico-social. “A criatura no<br />

palco tem para nós o significado de uma<br />

função social. No ponto central não está<br />

sua relação consigo próprio, nem sua relação<br />

com Deus, mas sim a sua relação com a<br />

sociedade.” 27<br />

Mas que histórico-social é este? A mera<br />

adoção de uma perspectiva política capacita<br />

este teatro multidimensional que Piscator<br />

objetiva?<br />

De volta ao episódio. As confusões entre<br />

Piscator, Heartfield e o público durante<br />

a peça ‘O mutilado’, de K.A. Wittfogel<br />

aconteceram dentro das limitações do Teatro<br />

Proletário. Sindicatos e centrais trabalhistas<br />

apoiavam um palco de propaganda,<br />

determinado em promover “apelos para se<br />

intervir no fato atual e fazer política”. 28<br />

Este teatro popular, performado em<br />

salas e locais de assembléia, distinguia-se<br />

tanto dos teatros comerciais quanto dos<br />

teatros socialistas de seu tempo: “não se<br />

tratava de um teatro que pretendia proporcionar<br />

arte aos proletários, e sim uma propaganda<br />

consciente”. 29<br />

Um outro espaço, um outro nexo entre<br />

a cena e o auditório: estes dois parâmetros<br />

de composição, realização e recepção teatrais<br />

projetam-se contra a definição de arte<br />

existente e ratificam uma diversa definição<br />

de espetáculo. Dos espaços fechados, suntuosos<br />

e consagrados, para as salas e ambientes<br />

acanhados com cheiro de “cerveja<br />

velha e urina”, com cenários de “telões simples,<br />

pintados às pressas” explicita-se uma<br />

verdadeira simplificação dos meios e das<br />

posturas, que proporciona o foco naquilo<br />

mesmo que deveria ser a atividade de representação<br />

dramática: a interação entre<br />

cena/audiência.<br />

Em condições mínimas, em dificuldades<br />

flagrantes, temos o teatro mínimo:<br />

“o teatro não devia mais agir apenas sentimentalmente<br />

no espectador, não devia<br />

especular apenas a sua disposição emocional;<br />

pelo contrário, voltava-se para a razão<br />

27 Idem, 156.<br />

28 Idem, 51.<br />

29 Idem, IbIdem.<br />

Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 51


<strong>Urdimento</strong><br />

52<br />

do espectador. Não devia tão somente comunicar<br />

elevação, entusiasmo, arrebatamento,<br />

mas também esclarecimento, saber,<br />

reconhecimento”. 30<br />

A pedagogia do espectador é impulsionada<br />

pela diferenciação dos materiais que<br />

lhe são apresentados. Simultaneamente, a<br />

economia dos meios de expressão efetivava<br />

tanto o rigor da aplicação desses meios<br />

quanto o controle e a compreensão de seus<br />

efeitos. Aquilo que se mostra não é mais<br />

algo apenas para se contemplar. A contiguidade<br />

entre objetos, ações e situações em<br />

cena com as fora de cena acarreta uma interação<br />

palco/platéia que concretiza este deslocamento<br />

da esfera subjetiva/ilusionista<br />

do teatro para uma arena interindividual<br />

dos eventos representados e conseqüente<br />

excitação cognitivo-afetiva do público.<br />

Alterando-se o que se mostra a partir<br />

dos nexos recepcionais, fundamenta-se um<br />

conjunto de metas e procedimentos que<br />

podem ser explorados e se tornar operacionalizáveis,<br />

e que não mais se circunscrevem<br />

ao lugar e ao público onde foram utilizados<br />

e testados. Como a interação palco/<br />

platéia relaciona-se com os meios empregados<br />

na realização do espetáculo e com<br />

o deslocamento da cena individual para a<br />

cena sócio-histórica, vemos que a mútua<br />

implicação desses elementos é o que ratifica<br />

a amplitude do que se representa e não<br />

apenas um somatório ou escolha aleatória<br />

dos meios empregados. A cooperação entre<br />

meios técnicos, referências transubjetivas<br />

e nexos recepcionais mais cognitivos<br />

providencia um programa de atividades<br />

representacionais que transcendem o ponto<br />

origem de seu encontro e manipulação.<br />

Eis os procedimentos e parâmetros do processo<br />

criativo de Piscator rumo a uma cena<br />

expandida e ampla.<br />

No espetáculo Bandeiras (1924) estamos<br />

longe das assembléias, de seus odores<br />

e dos atores não profissionais. De acordo<br />

com Piscator, “pela primeira vez tinha eu<br />

em mãos um teatro moderno, o teatro mais<br />

moderno de Berlim, com todas suas possiblidades,<br />

e eu estava resolvido a aproveitá-<br />

30 Idem, 53.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

las em função do sentido da peça, a qual,<br />

no tema, correspondia a minha atitude polícia<br />

fundamental”. 31<br />

O texto de Bandeiras, de Paquet, era escrito<br />

em forma intermediária entre conto e<br />

drama onde “um frio sentimento do autor<br />

o proíbe de participar intimamente da sorte<br />

de suas personagens e do curso da ação.” 32<br />

Assim, a impessoalidade no tratamento do<br />

material narrativo libera o escritor a trabalhar<br />

mais as cenas, descentrando a voz<br />

autoral como guia e condutor da atividade<br />

interpretativa do leitor. Concentrandose<br />

mais no que mostra que no que julga ou<br />

diz sobre o que mostra, o narrador aplica-se<br />

melhor ao planejamento e concatenação<br />

das cenas e do desafio de sua inteligibilidade,<br />

ao invés de unificá-las em prol de uma<br />

mensagem prévia autoral.<br />

Essa situação do escritor é homóloga<br />

ao do diretor. Piscator com este material<br />

narrativo tinha a oportunidade de efetivar<br />

no palco o seu romance-drama, o seu teatro<br />

épico. E no que consistia sua atividade de<br />

diretor? “Ampliação da ação e do esclarecimento<br />

dos seus segundo planos; uma continuação<br />

da peça para além da moldura da<br />

coisa apenas dramática.” 33<br />

Ou seja, frente à eliminação de uma<br />

perspectiva central que unifica toda a representação<br />

no próprio mundo apresentado,<br />

no mundo da mensagem autoral e<br />

sua interpretação restrita do que se mostra,<br />

Piscator diversifica as referências produzidas<br />

em cena valendo-se de meios e procedimentos<br />

que dilatam o horizonte atual. Os<br />

atores contracenavam com telões que exibiam<br />

ora fotografias, ora textos.<br />

Dessa maneira, o espectador simultaneamente<br />

interagia com as figuras em cena<br />

e com os meios. A visibilidade dos meios<br />

não se limitava à duplicação redundante<br />

do mundo representado. Antes, no mesmo<br />

espaço e ao mesmo tempo o espetáculo se<br />

desdobrava em níveis de referência pertencentes<br />

a mídias e performances diversas<br />

que expandiam o presente de cena. A<br />

presença dos meios técnicos fornecia uma<br />

31 Idem, 67-68.<br />

32 Idem,69.<br />

33 Idem,IbIdem.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

abertura imaginativa da representação,<br />

contrariando o pressuposto do apagamento<br />

das marcas de ficção presentes no uso<br />

ilusionista dos novos recursos cênicos. A<br />

exibição tanto dos meios quanto de seus<br />

efeitos in loco, frente às personagens e à<br />

platéia, proporcionava um recrudescimento<br />

da pluralidade representada e da pluralidade<br />

de atos receptivos. A heterogeneidade<br />

dos níveis referenciais co-presentes em<br />

cena faculta o mútuo aprofundamento dos<br />

horizontes da representação e da audiência.<br />

Assim, retome-se o episódio da peça O<br />

mutilado: a interrupção da representação, a<br />

descontinuidade provocada pela presença<br />

dos meios é produtora de uma nova continuidade<br />

que atravessa o espetáculo - a<br />

continuidade da metareferência. O espetáculo<br />

demonstra-se como espetáculo para<br />

assegurar o vinculo entre os materiais que<br />

disponibiliza e os extensos contextos que<br />

busca apresentar para a audiência.<br />

Esse uso da metareferência, incorporando-a<br />

a atividade representacional, favorece<br />

a construtividade da cena, a orientação<br />

da seleção, combinação e distribuição dos<br />

meios em função dos atos de entendimentos<br />

da recepção. A inteligibilidade da cena<br />

conjuga-se à inteligibilidade da audiência.<br />

Em sua forma de representação, o espetáculo<br />

Bandeiras era dividido em “numerosas<br />

cenas individuais, algo de revista”. 34<br />

Seguindo o descentramento de uma<br />

perspectiva autoral privilegiada, que unificava<br />

o mundo representado e o unificava<br />

empaticamente à recepção, vimos que<br />

Piscator optara por procedimentos que<br />

verticalizavam a interação cena/platéia<br />

através de múltiplos e heterogêneos níveis<br />

de referência e de meios. Não subjugado<br />

à apropriação e reprodução de uma individualidade<br />

restrita ao particularismo de<br />

sua presença e contexto, a forma de revista<br />

forneceria um modelo de realização que<br />

poderia efetivar a liberação do processo<br />

criativo para a cena de uma unificação personativa-<br />

actancial.<br />

Assim, a forma revista com seus nú-<br />

34 Idem, 73.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

meros diversos compostos de mídias e performances<br />

diversas culminaria a definição<br />

plural do espetáculo de Piscator contra a<br />

homogeneidade reprodutiva do ilusionismo<br />

individualista anterior.<br />

Note-se que a abertura às possibilidades<br />

de representação operada pelo processo<br />

criativo de Piscator, ao radicalizar a<br />

heterogeneidade da cena como forma de<br />

se abarcar contextos de ação mais amplos,<br />

acaba por justapor performances diversas,<br />

subvertendo e refutando uma pretensa<br />

unidade midiática do espetáculo. Assim,<br />

“música, canção, acrobacia, desenho<br />

instantâneo, esporte, projeção de cinema,<br />

estatísticas, cena de ator alocução” - tudo<br />

vem à cena. A diversidade midiática corresponde<br />

à diversidade dos contextos de<br />

ação representados.<br />

Ora essa diversidade midiática da definição<br />

do espetáculo de Piscator em muito<br />

ultrapassa a dramaturgia de seu tempo e<br />

se converte em um ponto de partida para<br />

a dramaturgia ulterior. A circunscrição da<br />

dramaturgia à escritura das falas e à distribuição<br />

das ações e das partes da peça<br />

em função de um enredo havia reduzido<br />

as possibilidades expressivas do espetáculo.<br />

Sempre tudo convergia para um centro<br />

subjetivo, para um hipersujeito arquimodelo<br />

de todos atos, pensamentos os desempenhos<br />

em cena e na platéia.<br />

Com a diversidade multimidiática do<br />

espetáculo de Piscator, a dramaturgia se<br />

confronta com novas tarefas - a ilusão da<br />

ilusão do centro subjetivo é refutada desde<br />

o processo criativo. Ao isolacionismo do<br />

autor, fechado em seu gabinetismo idealtípico,<br />

temos agora a inserção de seu trabalho<br />

em outros trabalhos, um processo criativo<br />

coletivo e colaboracionista. “os diversos<br />

trabalhos de autor, diretor, artístico,<br />

músico, cenógrafo e ator se entrosavam<br />

incessantemente”. 35<br />

Desse modo, conjugam-se processo<br />

criativo, mundo representado e atos recepcionais<br />

na heterogeneidade de referencias<br />

e interreferências que produzem.<br />

A forma revista, dispondo eventos mi-<br />

35 Idem, 80.<br />

Marcus Mota Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 53


<strong>Urdimento</strong> N° 18 | Março de 2012<br />

54<br />

diáticos diversos em sucessão, apresenta-se<br />

como exibição dessa heterogeneidade que<br />

abarca tanto a composição quanto a realização<br />

e a recepção do espetáculo. Ao mesmo<br />

tempo a forma revista não é uma resultante<br />

simples de atitudes ou procedimentos. Tal<br />

forma aberta delimita o horizonte problemático<br />

de sua realização: os limites de sua<br />

inteligibilidade a partir do posicionamento<br />

dos materiais exibidos. Toda forma que recusa<br />

uma continuidade imediata, atua sobre<br />

a continuidade mesma. A expectativa<br />

de acabamento do material exposto exige<br />

estratégias complexas de exibição mesmo<br />

deste acabamento. Com a abertura da forma,<br />

temos a prerrogativa dos suportes recepcionais.<br />

O êxito do espetáculo Apesar de tudo<br />

(1925) manifesta o ímpeto de solução de<br />

problemas impostos pela forma revista. Em<br />

destaque temos o uso de filmes em cena. A<br />

sincronização de mídias diversas era o problema<br />

a ser enfrentado. Nas palavras de<br />

Piscator “pela primeira vez a fita de cinema<br />

se ligaria organicamente aos fatos desenrolados<br />

no palco”. 36 Pois a forma de revista<br />

não diz respeito apenas ao seqüenciamento<br />

de partes diferentes, mas sim à estruturação<br />

mesma de cada parte.<br />

Os filmes estavam distribuídos por<br />

toda a peça. Eram imagens de arquivos,<br />

“filmagens que apresentavam brutalmente<br />

todo o horror da guerra: ataques com lançachamas,<br />

multidões de seres esfarrapados,<br />

cidades incendiadas; ainda não se estabelecera<br />

a moda dos filmes de guerra”. 37<br />

Juntos com os filmes eram apresentados<br />

ao público discursos, recortes de jornal,<br />

conclamações, folhetos, fotografias.<br />

Tudo bem disposto com os atores em um<br />

palco giratório, efetivando “uma unidade<br />

da construção cênica, um desenrolar ininterrupto<br />

da peça, comparável a uma única<br />

corrente de água”. 38<br />

Assim, essa unidade advinda da montagem<br />

e da sucessão de eventos midiáticos<br />

diversos era o espetáculo mesmo de sua<br />

36 Idem, 8z0.<br />

37 Idem,81<br />

38 idem, 82.<br />

possibilidade de realização e compreensão.<br />

Piscator tinha uma dupla ansiedade:<br />

“primeiro, de que modo resultaria a mútua<br />

ação condicionadora dos elementos empregados<br />

no palco; segundo, se realmente se<br />

chegaria a realizar-se algo do que forma<br />

projetado”. 39<br />

A dupla perplexidade frente à composição<br />

e realização do espetáculo foi resolvida<br />

pelo papel ativo da recepção em dar acabamento<br />

às cenas. Durante a performance<br />

da peça, Piscator afirma que “a massa incumbiu-se<br />

da direção artística. [...] O teatro,<br />

para eles, transforma-se em realidade. Em<br />

pouco tempo cessou de haver um palco e<br />

uma platéia, para começar a existir uma só<br />

grande sala de assembléia, um único grande<br />

campo de luta.[...] foi essa unidade que,<br />

naquela noite, provou definitivamente a<br />

força de incitamento do teatro político”. 40<br />

Note-se que ao se expor os meios e materiais<br />

em cena, incrementou-se a interação<br />

palco-platéia. A comum-unidade dessa interação<br />

difere de uma projeção emotiva do<br />

público à mensagem do individualismo estético<br />

e o ilusionismo de sua representação.<br />

A motivação afetiva foi impulsiona pelo<br />

esforço cognitivo. A contracenação das<br />

mídias entre si facultou a magnitude da<br />

apreensão recepcional. A audiência podia<br />

conjugar fatos diversos no diferencial tanto<br />

midiático quanto referencial e disto compreender<br />

e reunir a totalidade do que era<br />

exibido. A tensão do espetáculo estava na<br />

disparidade dos meios e dos contextos e no<br />

modo como esta disparidade é enfrentada<br />

em prol de nexos recepcionais. A contracenação<br />

entre mídias concretizava a contracenação<br />

entre palco e platéia. A ‘resolução’<br />

da disparidade, pois, não é a sua anulação,<br />

o mero cancelamento do heterodoxo, mas o<br />

provimento de atos vinculantes, de nexos.<br />

Assim, o espetáculo atua em função de<br />

sua interação ao invés de ser um veículo<br />

para ideias autorais. A realidade multimidiática<br />

da cena é o que possibilita a interpretação<br />

de contextos de ação extremos.<br />

Atos representacionais e atos da audiência<br />

39 Idem, 83.<br />

40 Idem, 83-84.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

colaboram. O projeto composicional culmina<br />

no acabamento recepcional. Nas palavras<br />

de Piscator: “no palco tudo é calculável,<br />

tudo se entrosa organicamente. Para<br />

mim, igualmente, o ator que eu vejo no<br />

efeito total do meu trabalho deve, sobretudo,<br />

exercer uma função, tal qual a luz, a cor,<br />

a música o cenário, o texto”. 41<br />

Mais importante: o documento exposto,<br />

difundido estava em mesmo nível com<br />

o documento examinado, fraturado, reordenado.<br />

A montagem colocava em mesmo<br />

plano o documento e o figurativo, de modo<br />

a possibilitar a intervenção recepcional no<br />

que era representado e não simplesmente<br />

a paráfrase de um original, de uma fonte<br />

autoral da informação. Nesse entre-lugar,<br />

nessa região limítrofe onde os limites do<br />

objetivo e do subjetivo projetam áreas impessoais<br />

e desconhecidas é que a peça é<br />

executada. A imponderabilidade dos extremos<br />

absolutos converte esse entre-lugar em<br />

um choque contra toda e qualquer ortodoxia.<br />

A obra total que o processo criativo<br />

de Piscator realizava exigia um teatro total.<br />

O sucesso de público determinou a<br />

abertura do Teatro e Estúdio Piscator, nos<br />

quais espetáculos e pesquisas sobre a arte<br />

teatral seriam efetivados. Com W. Gropius(1883-1969),<br />

o teatro total pode ser<br />

construído.<br />

Piscator justificava essa máquina teatral<br />

nova, “um aparelhamento dotado<br />

dos meios mais modernos de iluminação,<br />

de remoção e rotação no sentido vertical e<br />

horizontal, com um sem número de cabines<br />

cinematográficas, instalações de altofalantes”<br />

como algo que possibilitasse tecnicamente<br />

“a execução do novo principio<br />

dramatológico”. 42<br />

Esta máquina teatral refutava a câmara<br />

ótica que por meio do pano e cova da<br />

orquestra mantinha o espectador separado<br />

do palco. Ao invés de único centro de atenção,<br />

multiplicavam-se os palcos em cena<br />

(um central e dois laterais) e engrenagens<br />

que envolviam e cercavam o público dis-<br />

41 Idem, 98.<br />

42 Idem. 146.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

tribuído em torno desses palcos. Assim, de<br />

todas as direções as performances se abatiam<br />

sobre o público. A audiência pertence<br />

espacialmente ao palco, e vê-se confrontada<br />

e tomada pelas performances, meios<br />

mecânicos e projeções luminosas.<br />

Assim, é na atividade exercida sobre a<br />

recepção que este teatro total encontra sua<br />

efetividade.<br />

Posteriormente, a cena expandida e<br />

multimidiática de Piscator se defrontaria<br />

com a representação de figuras isoladas,<br />

com a representação do herói, como em As<br />

aventuras do bravo soldado Schwejk. Seria um<br />

recuo, como disseram de Alexander Nieviski,<br />

de S. Eisenstein? Ora na amplitude do espetáculo<br />

de Piscator a desconstrução da figura<br />

individual não se torna a revalidação<br />

de centro subjetivo. Antes, há o reforço das<br />

magnitudes teatrais quando da desconstrução<br />

dessa figura. O isolacionismo do herói<br />

e o recurso à máquina da faixa corrente,<br />

na qual desfilam as partes todas de um escárnio,<br />

complementa-se na globalidade do<br />

que foi mostrado.<br />

Assim, as reflexões e os procedimentos<br />

do teatro político de Piscator ultrapassam<br />

as motivações ideológicas e conjuntura<br />

histórico-política de sua ocorrência. Mas aí,<br />

temos uma nova história.<br />

Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 55


REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />

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Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A. Appia e E. Piscator 57


N° 18 | Setembro de 2012<br />

Resumo<br />

Leo Sykes fala sobre sua formação e seu trabalho como<br />

diretora de teatro. Conta sobre seus 5 anos como assistente<br />

de direção do Eugenio Barba, diretor do Odin Teatret.<br />

Depois explica como ela trabalha para criar espetáculos<br />

clown com Circo Teatro Udi Grudi no Brasil e com Teatret<br />

OM na Dinamarca. Ela mostra como ela desenvolve<br />

material com os atores e depois estrutura e elabora este<br />

material para virar um espetáculo.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Leo Sykes, Eugenio Barba, Clown/Palhaço<br />

Abstract<br />

Leo Sykes speaks about her training and her work as a<br />

theatre director. She tells of her five years as assistant director to<br />

Eugenio Barba, director of Odin Teatret. She explains how she<br />

works to make clown performances with Circo Teatro Udi Grudi<br />

in Brazil and with Teatret OM in Denmark. She shows how she<br />

works with the actors to develop the material and then elaborates<br />

and structures it into a performance.<br />

KEywORDS: Leo Sykes, Eugenio Barba, Clown<br />

1 Diretor e atriz. Diretora do grupo Circo Teatro Udi Grudi/Brasília.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA<br />

Leo Sykes 1<br />

A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 59


<strong>Urdimento</strong><br />

60<br />

Eu vivo uma saudável esquizofrenia<br />

profissional. Atuo entre os mundos<br />

de teatro e cinema, atores e palhaços.<br />

Não sei se isso reflete o teatro contemporâneo,<br />

onde todas as fronteiras<br />

formais estão borradas, ou se isso é uma<br />

viagem puramente subjetiva. Com certeza<br />

é porque tive dois pais. Um era meu pai de<br />

verdade, que me fez e me criou. Ele era cineasta,<br />

diretor de filmes de terror. O outro<br />

foi Eugenio Barba, a quem eu conheci aos<br />

meus 18 anos de idade, sobre quem escrevi<br />

meu doutorado, para quem trabalhei como<br />

assistente de direção durante cinco anos e<br />

que me ajuda nos meus processos criativos<br />

até hoje. A relação entre cinema e teatro então<br />

para mim é ancestral. A relação entre<br />

o ator e o palhaço existe, porque dirijo um<br />

grupo de atrizes, Teatret OM, na Dinamarca<br />

e um grupo de palhaços, Circo Teatro<br />

Udi Grudi, no Brasil.<br />

Chamo estas mudanças de “ambientes”<br />

de esquizofrenia profissional, porque<br />

cada um exige um comportamento diferente<br />

meu como diretora. Quando trabalho<br />

com filmes, sendo que só dirijo meus<br />

próprios roteiros, sou uma diretora conceitual.<br />

Tudo é pré-concebido, escrito em<br />

forma de roteiro e desenhado em forma<br />

de story-board. Chego no set sabendo não<br />

somente o que quero que o ator faça, mas<br />

também o que a câmera faça e, com isso, o<br />

que o espectador veja. É claro que, da minha<br />

cabeça até os olhos do público, o projeto<br />

sofre uma série de modificações nos ensaios,<br />

conversas com colegas e improvisos<br />

de última hora, sugeridos por todos no set,<br />

mas o produto final é geralmente bastante,<br />

se não exatamente, igual ao que eu tinha<br />

imaginado. Quando trabalho no teatro,<br />

sou estranhamente incapaz de conceber.<br />

Não consigo imaginar cenas, não consigo<br />

entender desenhos de figurinos e cenários<br />

ou idéias contadas. Preciso ver tudo ao<br />

vivo e elaboro meu trabalho com base no<br />

que está na minha frente. Neste sentido,<br />

acho que o teatro é a arte do ator e o cinema<br />

é a arte do diretor. No cinema, começo<br />

com o produto final, no teatro começo com<br />

a semente inicial.<br />

Começar do começo<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Quando adolescente, minha mãe me<br />

levava para ver os espetáculos de criação<br />

coletiva dos anos 70, em Londres, onde os<br />

atores estavam pelados e jogavam gelatina<br />

na platéia. Eu fiquei encantada e escolhi o<br />

teatro como minha profissão, porque, além<br />

do mais, era um mundo longe dos filmes<br />

de terror que meu pai dirigia. Aos 18 anos,<br />

depois de uma viagem de vários meses na<br />

Índia, voltei para Europa e ainda faltavam<br />

uns meses para começar a faculdade. Meu<br />

pai me falou “por quê você não vai visitar<br />

a Julia? Parece que ela tem um grupo bem<br />

interessante lá na Dinamarca”. Peguei o<br />

barco e fui. Pisei no foyer do Odin Teatret<br />

e entrei num outro mundo. De repente,<br />

achei um lugar no qual eu me reconhecia,<br />

eu, imigrante, filha de imigrantes, me senti<br />

em casa. O Odin é sobre tudo uma poderosa<br />

tribo de artistas que eram para mim<br />

totalmente assustadores e fascinantes. Assisti<br />

aos últimos ensaios de Oxyrhincus<br />

Evangeliet e vi, pela primeira vez, o tipo de<br />

teatro que eu queria fazer. Não tinha nada<br />

de nudez e gelatina. Eu vi, principalmente,<br />

magia, e talvez não a das brancas. Aos 18<br />

anos, eu pouco imaginava que tudo aquilo<br />

poderia ser fruto de muita disciplina e<br />

muito tempo de trabalho. Eu saí de lá sabendo<br />

que tinha este exemplo na minha<br />

frente. Mas não imaginava que iria voltar<br />

para lá, muito menos que eu viraria assistente<br />

daquele distante e poderoso diretor,<br />

Eugenio Barba.<br />

Diretor feminino<br />

Estou muito interessada no diretor ou<br />

diretora feminino. Este é um termo que utilizamos<br />

dentro da Magdalena Project (uma<br />

rede internacional de mulheres que fazem<br />

teatro) para definir um tipo de diretor que<br />

procede através da escuta do material, reagindo<br />

ao que o ator cria, em vez de um<br />

diretor que predetermina tudo e usa o ator<br />

para realizar suas ideias.<br />

Quando fiz o meu pedido para a bolsa<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

de doutorado, escrevi que iria pesquisar o<br />

diretor/diretora feminina. Coloquei os nomes<br />

de três mulheres diretoras que eu ia<br />

estudar para elucidar esta pesquisa. Logo,<br />

logo descobri que o fato de ser homem ou<br />

mulher não tem nada a ver com ser um diretor<br />

feminino ou masculino. Descartei as<br />

três mulheres e fui estudar o processo de<br />

direção de um homem, porque o seu jeito<br />

de trabalhar me parecia fundamentalmente<br />

feminino. Trabalhei cinco anos como<br />

assistente de Eugenio Barba e escrevi meu<br />

doutorado sobre sua maneira de dirigir.<br />

No doutorado, tentei extrair princípios de<br />

prática do denso caos do quotidiano dos<br />

ensaios do Odin Teatret.<br />

ODIn TEATRET<br />

E EUGEnIO bARbA<br />

Para poder falar do trabalho do Eugenio<br />

como diretor do Odin é preciso falar<br />

não somente de suas ações dentro de sala<br />

e suas tendências estéticas e técnicas como<br />

diretor. É necessário esboçar uma imagem<br />

da vida de grupo dele como líder de pessoas<br />

entre os quais atores, técnicos, administradores,<br />

produtores, colegas intelectuais e<br />

parceiros políticos. Para poder manter um<br />

grupo por mais de 40 anos, com as mesmas<br />

pessoas trabalhando juntas, é necessário ter<br />

uma sabedoria que vai muito além da direção<br />

de um forte espetáculo. Com certeza,<br />

o que aprendi com ele como ser humano e<br />

como gerente de gente foi tão fundamental<br />

quanto o que aprendi como artista.<br />

Quando comecei a trabalhar no Odin,<br />

eu estava muito atrapalhada pelo fato de<br />

não falar dinamarquês, uma língua na<br />

qual demorei dois anos para conseguir<br />

distinguir onde acabava uma palavra e<br />

onde começava outra. Finalmente, dominando<br />

o dinamarquês, descobri que este<br />

grupo de pessoas, juntas a mais de 30 anos<br />

na época (hoje em dia há mais de 40 anos),<br />

não precisava de palavras para se comunicar.<br />

Todas as frases eram ditas pela metade,<br />

uma única palavra indicava um baú<br />

inteiro de referências e memórias do qual<br />

eu não fazia parte. Os integrantes do Odin<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

são verdadeiros tubarões, antigos guerreiros,<br />

e eu era um peixinho de aquário,<br />

tentando nadar junto, sem ser comida. Era<br />

uma vida um pouco estressante, mas muito<br />

estimulante.<br />

Éramos quatro jovens que entramos<br />

no grupo nesta época, eu, um outro assistente<br />

de direção e duas atrizes. Todos<br />

os jovens tinham um ator mais velho que<br />

era seu mentor. Eugenio não se responsabilizava<br />

diretamente por nenhum de nos.<br />

Julia Varley era a minha fada-irmã.<br />

No primeiro dia de ensaio, Eugenio<br />

falou longamente sobre o novo espetáculo.<br />

“Vamos trabalhar sobre a temática do<br />

mar”. Eugenio começou a dar os estímulos<br />

para as primeiras improvisações: “vocês<br />

são uma onda, cada um tem que estar em<br />

cena ou tocando na banda acompanhando<br />

a cena, vocês são velhos...” depois perguntou<br />

“como se mata um livro?”. Eu congelei<br />

um livro num gigante bloco de gelo, outros<br />

queimaram ou rasgaram livros, mas,<br />

no final, o livro do espetáculo ficou intacto,<br />

sem maiores atentados contra sua vida.<br />

Depois de um mês de improvisações coletivas,<br />

interrompemos para sair em tournée.<br />

Eu estava no Odin porque queria aprender<br />

a dirigir teatro, mas primeiro tive que<br />

aprender a dirigir um caminhão. Saímos<br />

em tournée pela Europa com um caminhão<br />

cheio de cenário. Os atores mais velhos iam<br />

de avião e a gente tinha dia marcado em<br />

cada país para chegar para a montagem.<br />

Assim conheci não somente o Leste Europeu<br />

pela primeira vez, mas também um<br />

palhaço brasileiro que estava fazendo seu<br />

mestrado em Londres e que, anos depois,<br />

viraria meu marido, Marcelo Beré, o Deus<br />

ex Machina que me levou para o Brasil.<br />

Depois de uma tournée de várias semanas,<br />

voltamos para Holstebro. Agora<br />

tudo mudou. Íamos trabalhar em cima do<br />

Livro da Selva de Kipling. Eu comprei o livro<br />

e fiquei muito feliz de ter algo concreto<br />

e compreensível para seguir. Mas logo<br />

o livro sumiu. Entendi que não é preciso<br />

começar um processo trabalhando sobre o<br />

que se vai acabar trabalhando. É preciso ter<br />

um estimulo para começar, uma desculpa,<br />

um trampolim, mas que o espetáculo pode<br />

Leo Sykes A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 61


<strong>Urdimento</strong><br />

62<br />

se transformar tanto no processo que as<br />

origens ficam totalmente enterradas. Isso<br />

não quer dizer que o material gerado na<br />

primeira etapa dos ensaios não foi aproveitado.<br />

Naquele momento, os ensaios coletivos<br />

foram repostos por ensaios individuais.<br />

Estávamos trabalhando com os contos<br />

de Andersen, com danças de Michael Jackson,<br />

com trigo...<br />

Os meses de ensaios seguiam por um<br />

ritmo simultaneamente vertiginoso e, ao<br />

mesmo tempo, terrivelmente repetitivo,<br />

com o acúmulo e modificação de detalhes.<br />

Cada ator tinha que lembrar muita informação,<br />

que cada dia mudava de uma forma<br />

bastante abstrata, ou talvez coreográfica:<br />

três passos para frente, vire a esquerda,<br />

olhe para baixo... Uma das minhas tarefas,<br />

que eu mesma inventei, pois nada concreto<br />

nunca me foi pedido como assistente, foi<br />

de anotar cada detalhe das ações dos nove<br />

atores em cada ensaio, assim criando um<br />

roteiro de ações. Tive que inventar uma<br />

maneira de anotar e comunicar estas informações.<br />

Essas anotações viraram a memória<br />

coletiva do grupo e, uma vez a cada<br />

três semanas, mais ou menos, eu fazia uma<br />

cópia para todo mundo.<br />

Mas eu precisava saber como eu poderia<br />

contribuir para este processo de uma<br />

forma mais ativa, eu precisava de um papel<br />

concreto e de ter a sensação de participação<br />

e não somente observação. Acho, na<br />

verdade, que o papel de assistente é muito<br />

passivo, criativamente, e isso ironicamente<br />

é o oposto de aquilo se deve ser como diretor.<br />

Eu não conseguia nem conversar com<br />

Eugenio, ele estava sempre ocupado. A Julia<br />

me falou, “pega ele na saída da reunião<br />

semanal”. Esta reunião é o único momento<br />

em que toda a equipe do Odin se reúne<br />

para dar noticias e fazer perguntas. São em<br />

torno de 20 pessoas (nove atores, Eugenio<br />

e a equipe de administração, produção e<br />

técnica). Quando finalmente acabou a reunião,<br />

Eugenio saiu rapidamente. Consegui<br />

alcançar ele no fundo do corredor. Juntei<br />

toda minha coragem e falei “Eugenio, preciso<br />

falar com você”. Ele me olhou, divertido<br />

e respondeu “será que não é melhor<br />

a gente marcar outra hora?” No que eu ia<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

protestar, percebi que, na pressa, eu tinha<br />

seguido ele até o banheiro e agora ele estava<br />

espremido contra uma parede, eu contra<br />

a outra e tinha uma privada entre nós.<br />

Eu fui ter a reunião com ele no seu escritório,<br />

mais tarde. Ele me falou que tinha<br />

três coisas que eu poderia fazer para ajudar.<br />

Eu aprontei meu caderno de anotações...<br />

"um... ter paciência, dois... ter paciência<br />

e três............ ter paciência.”<br />

Desisti de tentar ser uma boa assistente.<br />

Eu não estava agüentando mais, me<br />

senti invisível, como um moleque que joga<br />

pedrinhas contra as paredes de um imenso<br />

castelo medieval na esperança que o rei o<br />

deixe entrar. Decidi não mais tentar ajudar,<br />

mas provocar Eugenio. Se eu era um moleque,<br />

iria me comportar como um. Achei o<br />

ponto fraco do castelo: os adereços. Não tinha<br />

ninguém que os produzisse ou cuidasse<br />

deles. Cada ator fazia o que podia e só.<br />

No Odin, não tinha figurinista nem cenógrafo,<br />

mas estes dois elementos já estavam<br />

sendo produzidos, com os atores orientando<br />

uma costureira e Eugenio orientando os<br />

técnicos na montagem de uma cenografia<br />

muito simples de duas telas brancas, cada<br />

uma numa ponta do palco, e o público sentando<br />

dos dois lados do palco, como quase<br />

sempre nas produções do Odin.<br />

À noite, quando todos os atores iam<br />

para casa, eu pegava os adereços da sala<br />

e os transformava. No dia seguinte, eu os<br />

levava para dentro da sala com a pretensão<br />

de pelo menos ser percebida, talvez até<br />

de conseguir atingir o Eugenio de alguma<br />

forma e com a esperança muito distante de<br />

que finalmente alguma proposta minha,<br />

algum pedaço de mim, poderia entrar no<br />

processo de criação de Kaosmos.<br />

Para minha surpresa, descobri que os<br />

atores eram resistentes a esses novos adereços.<br />

Eu achei que eles iriam ficar felizes<br />

com as novas possibilidades que tinham.<br />

Eu tinha recortado um buraco nas páginas<br />

do livro da Iben, que ela tanto lia durante<br />

o espetáculo, dentro do buraco coloquei<br />

outro livro um pouco menor, e dentro dele<br />

um outro livro ainda menor, até chegar<br />

num livrinho minúsculo. Peguei a pá do<br />

Jan e coloquei uma corda de violão, assim,<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

cada vez que ele batia com a pá ela ressonava,<br />

um pouco como um berimbau. Enfeitei<br />

a casinha de sombras do Frans com palha.<br />

Mas os atores, que eu achava que iam ser<br />

meus colaboradores em mostrar as novidades<br />

para Eugenio, se mostrarem conservadores.<br />

Atores muitas vezes não gostam de<br />

mudanças. Não querem perder o domínio<br />

de algo conhecido para entrar no risco de<br />

novas possibilidades de erro e trabalho. Foi<br />

o próprio Eugenio que acolheu as novidades.<br />

Ele gostou de ser provocado.<br />

Todas as instruções que Eugenio dava<br />

eram modificações de improvisações que<br />

os atores tinham feito. Vendo o material<br />

do ator, o diretor começou a erguer as cenas.<br />

Eu tentava entender o que ele queria,<br />

o que ele estava pensando, para onde ele<br />

queria ir e como eu podia contribuir para<br />

o que ele estava querendo. Foi uma tarefa<br />

impossível. Depois de muito tempo, percebi<br />

que ele não sabia o que queria antes da<br />

coisa aparecer, ele não estava querendo ir<br />

numa certa direção, mas estava seguindo a<br />

direção da evolução dos ensaios. Ele era o<br />

capitão de um barco perdido na tempestade.<br />

Não importava saber para onde queria<br />

ir, importava saber lidar com as ondas e<br />

as correntes, que aos poucos ia nos levando<br />

para algum lugar. Era um ato de fé. Fé<br />

no diretor, fé na qualidade das ações dos<br />

atores e fé que os deuses do teatro iam nos<br />

abençoar com um espetáculo.<br />

O MEU TRAbALhO<br />

O fato de ter sido criada, profissionalmente,<br />

pelo Eugenio tem efeitos tão complexos<br />

e completos que eu o chamo de pai<br />

profissional. Pai porque ele me criou, porque<br />

sem ele eu realmente seria outra artista.<br />

E pai porque tive que rejeitá-lo para<br />

achar minha própria identidade. Eu fugi<br />

de casa, ou seja, do Odin, e comecei a trabalhar<br />

com um tipo de teatro bem diferente<br />

de tudo que eu tinha visto no Odin. Saí da<br />

Dinamarca, vim para o Brasil e comecei a<br />

trabalhar com os palhaços musicais do Circo<br />

Teatro Udi Grudi.<br />

O Circo Teatro Udi Grudi faz 30 anos<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

em 2012 e eu sou diretora do grupo há 14<br />

anos. Já viajamos mundos e fundos, 16 países<br />

pelo mundo afora e quase todos os estados<br />

brasileiros. Ganhamos prêmios nacionais<br />

e internacionais, tivemos patrocínio de<br />

manutenção da Petrobras e muitos outros,<br />

mas ainda assim, cada dia é uma batalha.<br />

Três dos fundadores ainda formam<br />

o cerne do time de atores; Luciano Porto,<br />

Marcelo Beré e Márcio Vieira. Quando cheguei<br />

no grupo, eu era a única mulher, única<br />

estrangeira, única que não conhecia todos<br />

desde a adolescência e única com um senso<br />

de disciplina.<br />

Quando comecei a trabalhar com o Udi<br />

Grudi, eu não tinha uma metodologia ou<br />

uma linha específica de trabalho. Eu só tinha<br />

uma grande experiência no Odin, algumas<br />

experiências de direção minhas e uma<br />

tendência pessoal para o cômico. Quando<br />

estes palhaços brasileiros me chamaram<br />

para dirigir eles me falaram “somos muito<br />

difíceis de dirigir”. A sala de ensaio era<br />

praticamente um campo de batalha, um<br />

conflito rico de estilos, atitudes e habilidades.<br />

Fui achando maneiras de lidar com o<br />

que estava na minha frente. Hoje, depois<br />

de tantos anos dirigindo o mesmo grupo de<br />

atores, posso refletir e tentar ver um pouco<br />

o caminho que desenvolvemos juntos.<br />

A formação dos palhaços do Udi Grudi<br />

foi no circo tradicional, eles sabem fazer<br />

malabares, acrobacia, trapézio, mágicas,<br />

cantar, dançar, tocar e representar. Ou seja,<br />

um pouco de tudo, e mais importante de<br />

tudo, sabem criar uma relação com o público.<br />

Márcio, além de palhaço, é luthier, ele<br />

inventa e constrói os nossos instrumentos<br />

musicais, e Luciano é palhaço-cenógrafo.<br />

Então, as nossas cenografias viram instrumentos<br />

e os instrumentos são também objetos.<br />

Tudo fica num processo de metamorfose.<br />

Acho que a linguagem que a gente foi<br />

desenvolvendo juntos ao longo dos últimos<br />

anos se calca em tudo isso. Eu vim<br />

com minha estética de teatro europeu,<br />

um senso de humor que nada tinha a ver<br />

com as piadas de circo tradicional brasileiro<br />

e minha desconfiança na palavra<br />

falada. Então mantivemos todas as técni-<br />

Leo Sykes A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 63


<strong>Urdimento</strong><br />

64<br />

cas que eles já tinham, mas modificamos<br />

a maneira de usá-las. Tiramos o conceito<br />

do virtuoso, da técnica como o auge do<br />

número, típica do circo tradicional, e começamos<br />

a transformar as técnicas.<br />

Malabares não podiam ser simples<br />

malabares, mas a técnica podia ser usada<br />

para outros efeitos, como os canos que<br />

voam através do palco no começo do espetáculo<br />

Cano ou as verduras que são puxadas<br />

da terra e jogadas na peça Devolução<br />

Industrial. Acrobacia agora usamos para<br />

cair, para entalar, para aparecer de repente.<br />

Mágicas não são mais números feitos<br />

de cartola e com truques comprados em<br />

loja de mágica, pegamos o conceito do<br />

mágico, da surpresa, do inesperado e do<br />

impossível e usamos isso: homens que<br />

caem e somem dentro de um barril, plantas<br />

que surgem do nada quando derramamos<br />

água, plástico comestível, fogo que<br />

aparece de dentro de uma bacia vazia.<br />

Os palhaços do circo tradicional<br />

são contadores de piadas e de casos e a<br />

brincadeira com a palavra é muito forte.<br />

Mas para mim, que na época mal entendia<br />

o português, só via uns caras parados<br />

falando pelos cotovelos e não fazendo<br />

nada. Tiramos a palavra e colocamos<br />

ações e imagens.<br />

Utilizamos a música como cena e não<br />

como um elemento de fundo musical ou<br />

momento entre uma cena e outra como é<br />

usado no circo tradicional e muitas vezes<br />

no teatro também.<br />

Chegamos numa estética do minimalismo<br />

útil. Temos grandes cenários e instrumentos<br />

musicais, mas tudo que está em<br />

cena tem que ser usado e transformado.<br />

Não tem nada decorativo, redundante ou<br />

estático. Na Devolução Industrial, levamos<br />

esta idéia ao extremo, usando a idéia de<br />

evolução para ir transformando o que está<br />

em cena, e isso é a trama do espetáculo.<br />

O ATOR-fAZEDOR<br />

Numa tentativa de evitar o ator-fingidor<br />

e o ator-falador, trabalho com a idéia<br />

do ator-fazedor. Somos pedreiros.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

No meu trabalho, vou edificando<br />

tudo como uma mestre-de-obras. Preciso<br />

de bons tijolos para construir fortes paredes<br />

para poder desenvolver uma arquitetura<br />

única, harmônica e viva.<br />

O trabalho é baseado numa dinâmica<br />

de reação. Eu dou um estímulo aos atores,<br />

eles criam material através de improvisações<br />

e juntos formamos tijolos deste material.<br />

Um tijolo é um pequeno núcleo de<br />

ações, ou até uma ação só, que eles podem<br />

repetir com precisão e que eu posso usar<br />

como um frame no meu filme. Estes tijolos<br />

que vão definir que tipo de parede vou<br />

construir. Eu muito raramente sei o que<br />

vou fazer antes de ver o material.<br />

Na junção do material, tenho que decidir<br />

qual material vamos juntar, que tipo de<br />

parede vamos construir e depois que tipo<br />

de edifício estas paredes deveriam constituir.<br />

Geralmente, faço um primeiro esboço<br />

do espetáculo, tento perceber o que há de<br />

não harmonioso, de fraco, de perigoso, de<br />

monótono, etc. e modifico a estrutura uma<br />

vez. Depois disso, não trabalhamos mais<br />

com a construção de cenas inteiras, mas<br />

com a qualidade do cimento, a massa corrida,<br />

a tinta, a colocação de janelas e portas.<br />

A massa corrida e a tinta não são elementos<br />

decorativos, são elementos que criam a<br />

harmonia e emenda entre um tijolo e outro.<br />

Ou seja, o que faz com que cenas avulsas<br />

venham a constituir um espetáculo.<br />

Os tijolos<br />

O material inicial do ator teria que<br />

ser vivo e aberto. Vivo, porque tem algo<br />

nele que me instiga, que atrai a atenção e<br />

sugere imagens. Aberto, porque o sentido<br />

do que ele faz não está fechado numa<br />

leitura só.<br />

Geralmente, no Udi Grudi, construímos<br />

os nossos tijolos, ações, usando objetos.<br />

A presença física do objeto obriga o<br />

ator a fazer coisas de verdade. Não pode<br />

fingir carregar um cano; se o cano está, tem<br />

que carregar mesmo. Depois posso até tirar<br />

o cano e manter só a ação, mas é uma<br />

ação que não tem nada de mimética ou re-<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

presentativa.<br />

Neste momento, o diretor tem que decidir<br />

em qual direção vai, qual sentido vai<br />

dar àquela ação, qual sensação quer que o<br />

público tenha e como esta ação vai se juntar<br />

as outras ações, sejam físicas, vocais,<br />

imagéticas, musicais etc. A criação do material<br />

é o momento de mais pura liberdade<br />

do ator, todo o material vale, nenhum<br />

material de construção está sendo descartado,<br />

pelo contrário, nesta fase, tenta-se<br />

adquirir os materiais mais diversos.<br />

O Cimento<br />

Na hora de colocar um pedaço de material<br />

junto a outro, acontecem duas coisas.<br />

Uma é que um tem que grudar bem<br />

no outro, eles têm que virar uma coisa só.<br />

Para conseguir isso, tem que modificar os<br />

dois pedaços de material. Neste momento,<br />

o diretor modifica o ritmo, o comprimento,<br />

a intensidade, o foco de cada pedaço<br />

para que a junta possa ser ao mesmo tempo<br />

forte e imperceptível. Agora a ação,<br />

que claramente pertencia a um ator, vira<br />

propriedade coletiva e, às vezes, é modificada<br />

para ressaltar mais outra ação. Isso<br />

causa um conflito entre diretor e ator. Outro<br />

ponto de conflito é que agora se começa<br />

a perceber quais ações, idéias ou cenas<br />

vão ser descartadas.<br />

Massa Corrida<br />

A massa corrida é, muitas vezes, a<br />

coisa à qual menos damos atenção, botando<br />

ela ali com a única intenção de esconder<br />

emendas. Pode ser uma música que<br />

começa numa cena e vai para outra, pode<br />

ser somente um ator que fica na cena passada<br />

enquanto os outros já estão na próxima<br />

cena. Mas depois, ao longo do tempo,<br />

quando o grosso do espetáculo não nos<br />

ocupa tanto mais, a massa corrida é algo<br />

que requer mais atenção para que ela realmente<br />

emende uma coisa na outra. Às<br />

vezes, ela até cresce e vira quase uma cena<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

em si, de tão interessante que fica. A panela<br />

de pressão na Devolução Industrial saiu de<br />

estado de emenda para virar cena. O som<br />

do vapor saindo era um problema técnico,<br />

porque não acabava no final da cena e ficava<br />

atrapalhando a próxima cena. Então,<br />

colocamos um tempo no qual a atriz, Joana<br />

Abreu, canta uma música de ninar e derrama<br />

água sobre a panela. Aos poucos, a panela<br />

vai se acalmando, até que dá para tirar<br />

a tampa e começar a próxima cena.<br />

Uma vez pronta a nossa construção, temos<br />

que olhar para ela como um todo e nos<br />

perguntar se está harmônica, se está interessante,<br />

se está forte, se está dinâmica. O<br />

charme de passear naqueles povoados antigos<br />

da Europa é a quantidade de surpresas<br />

arquitetônicas que nos esperam a cada<br />

esquina. Os nichos, os chafarizes, as janelas<br />

das cantinas, as portas semi-abertas. Temos<br />

que levar o público adiante através da sua<br />

curiosidade de virar aquela esquina, espiar<br />

aquela janela, entrar por aquela porta. Assim,<br />

são eles que mandam o espetáculo se<br />

revelar através de sua curiosidade.<br />

Saber Cortar<br />

Eugenio sempre diz, “Corte seus queridinhos”.<br />

Para manter esta curiosidade, não<br />

só temos que saber construir surpresas, mas<br />

também saber ter a crueldade necessária<br />

para tirar cenas que não funcionam. Apesar<br />

de todos terem suado muito para construílas,<br />

algumas cenas não funcionam, ou pela<br />

própria qualidade, ou pelo contexto que<br />

não precisa dela. Essa crueldade faz os atores<br />

odiarem o diretor momentaneamente,<br />

mas depois, se formos sábios, vão ver na reação<br />

do público que o espetáculo ficou bom<br />

sem aquela cena, ou ação. E se não conseguem<br />

se conformar, vão tentar re-colocar a<br />

ação enquanto o diretor está impedido de<br />

reagir, ou seja, durante a apresentação, e às<br />

vezes a ação inicialmente retirada, de repente,<br />

acha uma nova maneira de compor<br />

com a cena e agora funciona melhor. Às vezes,<br />

o material cortado pode até reaparecer<br />

em outro espetáculo, porque muitas vezes<br />

Leo Sykes A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 65


<strong>Urdimento</strong><br />

66<br />

não é o material em si que não funciona,<br />

mas o contexto que não precisa dele.<br />

Os meus atores me consideram uma<br />

cruel açougueira que vive com a faca na<br />

mão. Durante os últimos ensaios do Cano,<br />

desenvolvi uma técnica para me proteger<br />

da raiva deles. Um dia, eu sabia que eu tinha<br />

que cortar uma cena inteira e que eles<br />

iriam ficar muito chateados. Cheguei no<br />

ensaio com umas daquelas balinhas bem<br />

grudentas. Eles estranharam muito a minha<br />

gentileza, mas aceitaram as balinhas.<br />

No que os dentes deles grudaram eu falei<br />

“gente, sabe aquela cena do canudinho,<br />

vamos ter que cortar”. Eles começaram a<br />

mastigar desesperadamente para poder<br />

reclamar, faíscas de pânico saíam dos seus<br />

olhos e eles se olhavam como quem estivesse<br />

organizando uma revolta, mas, os segundos<br />

que demorou para mastigar e engolir<br />

a balinha foram tempo suficiente para<br />

a raiva deles se dissipar, e consegui fazer<br />

o corte sem maiores brigas. Hoje em dia,<br />

se eles me vêem chegando com balinha, já<br />

vão falando: “aí vem o corte”. Na Devolução<br />

Industrial, até mandei o corte de uma cena<br />

por email para os atores, assim não só ia<br />

passar um tempo antes de me verem, mas<br />

iam receber a informação sozinhos e não<br />

teriam o imediato apoio um do outro. Não<br />

houve reclamações.<br />

Mas a maior cena que foi tirada de<br />

um espetáculo meu foi no Cano e não foi<br />

tirada por mim, mas por um dos atores<br />

no dia da pré-estréia. Ele simplesmente<br />

esqueceu a cena e começou a tocar a música<br />

da cena seguinte. Os outro atores<br />

ficaram horrorizados, mas foram obrigados<br />

a seguir em frente. O espetáculo<br />

fluía como nunca tinha fluído antes. A<br />

cena, cortada inconscientemente por um<br />

ator, nunca mais voltou.<br />

COMO COnSTRUIR COMICIDADE<br />

É muito importante a idéia da construção<br />

quando se fala em comicidade, porque<br />

de cara se entende que é uma coisa que não<br />

nasce já assim, mas que pode ser alcançada<br />

através de um certo trabalho. Pedir<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

para um ator fazer algo engraçado, ou de<br />

tentar imaginar uma cena engraçada não<br />

costumam ser atividades muito frutíferas.<br />

É claro que existem cenas, idéias, matérias<br />

que já nascem engraçadas, mas isso é quase<br />

uma questão de sorte ou de benção incontrolável,<br />

então, não considero interessante<br />

em termos pedagógicos ou metodológicos.<br />

Existem maneiras pelas quais, aos poucos,<br />

pode-se construir e modificar material até<br />

ele ficar cômico. De cara, isso já alivia todos,<br />

ninguém tem que ser um simples gênio<br />

da comicidade.<br />

Aliás, até os gênios da comicidade<br />

trabalham com a construção. Charles<br />

Chaplin conta como ele montou seu personagem<br />

na sala de figurinos do estúdio,<br />

colocando peça depois de peça da roupa<br />

até, de repente, nascer o Carlitos. Depois<br />

os filmes passaram por um processo de<br />

germinação. Ele não tinha uma história<br />

que preenchia com gags, ele começava<br />

com alguma gag que, ao ser elaborada,<br />

gerava a história do filme.<br />

OPERSOnAGEM<br />

CÔMICO E O CLOwn<br />

Tem duas linhas de trabalho quando<br />

se pensa em comicidade teatral. Uma é<br />

a do personagem cômico e a outra é a do<br />

clown. Tem muitas discussões sobre a diferença<br />

entre o clown e o palhaço, eu não<br />

vejo diferença e acho que cada um usa a<br />

palavra clown ou palhaço dependendo<br />

do seu grau de intimidade com inglês.<br />

Mas, para mim, tem uma grande e importantíssima<br />

diferença entre o clown e o<br />

personagem cômico. Na minha definição,<br />

a diferença é entre um processo autoral<br />

de criação de um personagem – e aqui o<br />

ator pode seguir processos conhecidos<br />

como mímesis, uso de máscaras etc., e<br />

o clown, que trabalha na direção oposta<br />

da construção de um personagem, tira as<br />

máscaras, revela o escondido da própria<br />

pessoa. O clown é o trabalho mais pessoal,<br />

individual e subjetivo que já vi. O<br />

treino do clown parece ser no palco. É<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

difícil ver um clown que treina, igual um<br />

ator se treina, fora do contexto público. É<br />

quase como se aquele estado dependesse<br />

do fato de ser visto, da interação com<br />

público, para estar presente. Tanto é que<br />

os clowns treinam muito as gags, músicas,<br />

mas dificilmente conseguem trabalhar<br />

exatamente em cima da questão de<br />

sua própria comicidade sem a presença<br />

de pelo menos uma pessoa, ou algo, para<br />

reagir. Eu digo algo, porque já vi Marcelo<br />

Beré, com seu clown Gorgônio, trabalhando<br />

na rua e usando cachorros transeuntes<br />

como seus parceiros.<br />

Os aquecimentos do clown e do ator<br />

são bem diferentes e mostram a diferença<br />

de culturas entre um estado de ser e o<br />

outro. O ator aquece a voz e o corpo antes<br />

do espetáculo, se concentra em preparar<br />

o seu organismo para manifestar o<br />

personagem. O clown, enquanto se veste<br />

no camarim, já começa a se comportar<br />

diferentemente, começa a falar e se comportar<br />

como este ser que a pessoa é na<br />

hora que se veste daquele jeito. Fuma<br />

um cigarro, fala besteira, brinca com os<br />

faxineiros atrás das cenas, ele entra no<br />

estado de ser e parece pouco concentrado<br />

na questão do espetáculo em si, porque<br />

já está perdido no estado de ser que,<br />

por acaso, em seguida vai se contextualizar<br />

nas cenas que o público percebe<br />

como espetáculo.<br />

O clown existe fora do contexto do espetáculo,<br />

podendo ir para a rua, atuar em<br />

vários espetáculos. O personagem cômico<br />

já tem uma tendência mais forte de dependência<br />

do contexto e das ações executadas.<br />

Se pedir para ele sair do espetáculo,<br />

ele não existe. O essencial do clown é sua<br />

maneira de pensar. Tem a ver com uma<br />

lógica ilógica, uma execução anti-eficaz,<br />

uma ingenuidade safada, um estar correto<br />

no erro.<br />

Nós diretores também temos que achar<br />

um pensamento paralelo para nos ajudar a<br />

perceber e estimular o cômico, pois nos diretores<br />

de clowns somos parteiros de deliciosas<br />

faíscas intangíveis do absurdo, da<br />

surpresa e do prazer.<br />

Leo Sykes, brasília, Outubro 2011<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Leo Sykes é doutora em teatro pela<br />

Universidade de Warwick, diretora do Circo<br />

Teatro Udi Grudi no Brasil há 14 anos e<br />

diretora convidada do Teatret OM na Dinamarca<br />

há 21 anos. Trabalhou 5 anos como<br />

assistente de direção do Eugenio Barba, diretor<br />

do Odin Teatret. Alem de dirigir espetáculos<br />

teatrais escreve roteiros e artigos<br />

para revistas de teatro e dirige filmes. É<br />

também diretora do Encontro de Diretores,<br />

evento organizado pelo Circo Teatro Udi<br />

Grudi.<br />

Leo Sykes A TRAJETORIA DE UMA DIRETORA 67


PEDAGOGIA DO TEATRO<br />

Odisseia (2011) Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Paulo Balardim. O barco de Odisseu navega entre serias. FOTO: Nina Medeiros.


N° 18 | Março de 2012<br />

Resumo<br />

A Ferida Woyzeck foi encenada no Curso de Licenciatura<br />

em Teatro da UNISO – Universidade de Sorocaba e faz parte<br />

das pesquisas na área de Pedagogia do Teatro, que investiga<br />

procedimentos didáticos e artisticos, fundamentais àqueles<br />

que pretendem trabalhar com o ensino e a aprendizagem<br />

teatral, seja em ambientes escolares ou em espaços culturais<br />

onde o teatro se faz presente.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Teatro; Dramaturgia; Pedagogia do Teatro; Coro<br />

Resumo<br />

Ferida Woyzeck was performed by students of the Theatre<br />

Teaching Degree of UNISO – University of Sorocaba. It was part of<br />

a research in the field of Theatre Pedagogy centred on investigations<br />

about didactict and artistic procedures required by those who intend<br />

to work with theatre teaching and learning processes, whether in<br />

schools or cultural spaces.<br />

KEywORDS: Theatre; Dramaturgy; Theatre Pedagogy; Choir<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

TEATRO DE FIGURAS ALEGÓRICAS:<br />

A FERIDA WOYzEK 1<br />

Ingrid Dormien Koudela 2<br />

1 Essa apresentação, coordenada por Ingrid Dormien Koudela, se inspirou na publicação de textos de Büchner “Na Pena<br />

e na Cena”, Ed. Perspectiva, 2004.<br />

2 Professora aposentada da ECA/USP e tradutora, com inúmeros trabalhos teóricos e práticos sobre a Pedagogia Teatral,<br />

a partir das propostas de Viola Spolin e principalmente de Bertolt Brecht.<br />

TEATRO DE FIGURAS ALEGÓRICAS: A FERIDA WOYzECK 71


<strong>Urdimento</strong><br />

O<br />

Teatro de Figuras Alegóricas, desenvolvidas<br />

na UNISO, propõe a<br />

possibilidade de criar encenações<br />

que rompam com a forma linear<br />

de contar histórias. A história<br />

é apresentada de maneira fragmentada,<br />

alinhando quadros de cenas que buscam<br />

romper o limite entre o palco e a platéia.<br />

Na encenação de A Figura Woyzeck a opção<br />

pedagógica e estética dialoga com cantigas<br />

de roda dançadas, criando uma inusitada<br />

relação entre o texto de Büchner e a cultura<br />

popular brasileira. Trata-se de um teatro<br />

no qual a coreografia, a pantomima, o canto<br />

e o texto são articulados na estruturação<br />

das cenas. A encenação de A Ferida Woyzeck<br />

utiliza o coro, alegorizando assim os personagens.<br />

Através do gesto e da palavra<br />

estendidos, o coletivo constrói o Gestus da<br />

experiência da coisificação, na qual o corpo<br />

é visto em seu presente de dissolução.<br />

De acordo com Sábato Magaldi (Magaldi,<br />

1963, p. 23):<br />

72<br />

Admiramos muitas peças e muitos<br />

personagens. Reconhecemos intelectualmente<br />

a genialidade de muitas<br />

obras. A Woyzeck, ama-se, como<br />

a um semelhante. Sem ser profeta,<br />

pode-se imaginar que, no futuro, ele<br />

encarnará uma nova mitologia – a<br />

mitologia de nosso tempo.<br />

O drama de farrapos, na feliz expressão<br />

cunhada por Anatol Rosenfeld é uma obra<br />

que se oferece ao encenador e aos atuantes<br />

desfazendo as perspectivas de tempo<br />

e espaço. As cenas podem ser deslocadas<br />

e rearranjadas em novo continuo. Cada<br />

cena representa um momento substancial<br />

que encerra variados aspectos do mesmo<br />

tema – o desamparo de Woyzeck que se<br />

agita e contorce enredado no labirinto do<br />

mundo, balbuciando toscamente em seu<br />

desespero mudo.<br />

Mais do que buscar uma solução prévia<br />

para o arranjo das cenas, com vistas à<br />

leitura e representação nos termos comumente<br />

realizados pelos diferentes editores<br />

da obra, a escritura buchneriana talvez<br />

devesse ser considerada, quanto ao<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

modo de estruturá-la, no sentido em que<br />

Brecht (Brecht, BBGW vol.18, p.10; tradução<br />

minha) colocou a questão:<br />

É permitido perguntar se o esboço<br />

de uma peça deve ser representado<br />

quando ela existe em forma mais<br />

completa. É permitido responder<br />

que por si só a grande importância<br />

do complexo textual, no caso do<br />

Fausto justifica a encenação do Ur-<br />

Faust (Primeiro Fausto). Mas existe<br />

ainda uma outra justificativa. O Ur-<br />

Faust tem vida própria. Pertence,<br />

juntamente com o Robert Guiskard,<br />

de Kleist e o Woyzeck de Büchner a<br />

um gênero muito especial de fragmentos.<br />

Eles não são incompletos,<br />

porém obras de arte feitas na forma<br />

de esboços.<br />

A influencia de Heiner Müller se fez<br />

presente na encenação de A Ferida Woyzeck,<br />

através das provocações radicais de<br />

seu universo reflexivo e poético que figura<br />

como referencia do teatro pós-dramatico.<br />

No programa anunciamos um comentário<br />

sobre o Woyzeck que deu o titulo à<br />

encenação. Nas palavras de Heiner Müller<br />

(Müller, 1990 p. 114, tradução minha):<br />

Woyzeck é a ferida aberta. Woyzeck<br />

vive onde o cachorro está enterrado,<br />

o cachorro chama-se Woyzeck.<br />

Esperamos a sua ressurreição com<br />

medo e/ou esperança. Que ele volte<br />

como lobo. O lobo vem do sul.<br />

Quando o sol está no zênite, quando<br />

se torna uno com a nossa sombra,<br />

inicia a hora da incandescência, a<br />

história. Somente quando a história<br />

acontece vale a pena a decadência<br />

coletiva na geada da entropia ou,<br />

abreviado politicamente, no raio<br />

atômico que é o fim das utopias e<br />

será o inicio de uma realidade para<br />

além do homem.<br />

A tradição do fragmento remonta, na<br />

literatura alemã, a Schlegel e Novalis. Visto<br />

por Schlegel como uma pequena obra<br />

de arte a estender, qual um ouriço, seus<br />

espinhos críticos e provocadores em todas<br />

Ingrid Dormien Koudela<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

as direções, e por Novalis como projeto,<br />

conotando a idéia de espontaneidade e<br />

não acabamento, o fragmento é potencialmente<br />

uma semente literária, estimulando<br />

também o leitor a refazer ou levar adiante<br />

o ato de reflexão. A estética do fragmentário<br />

está, por sua vez, ligada a critica do otimismo<br />

do progresso, e se processa dentro<br />

dos horizontes do materialismo histórico,<br />

nas obras de Bloch, Adorno, Horkheimer<br />

e Benjamin. A montagem moderna de<br />

fragmentos é vista como reflexo da desordem<br />

real, permitindo uma visão critica da<br />

totalidade.<br />

De acordo com Röhl (Röhl, 2006) o<br />

trabalho com o fragmento tem para Muller,<br />

várias funções. Uma delas, de grande<br />

importância, é a de impedir a indiferenciação<br />

das partes numa totalidade e<br />

ativar a participação do espectador. Na<br />

verdade, trata-se de uma continuação radicalizada<br />

do teatro praticado por Brecht,<br />

visando igualmente a uma abertura para<br />

efeitos, de forma a evitar que a história<br />

se reduza ao palco. O fragmento tornase<br />

produtor de conteúdos, abrindo-se à<br />

subjetividade do receptor, correspondendo<br />

ao que Muller chama de espaços livres<br />

para a fantasia, em sua opinião uma tarefa<br />

primariamente política, uma vez que age<br />

contra clichês pré-fabricados e padrões<br />

produzidos pela mídia.<br />

O trabalho com o fragmento provoca a<br />

colisão instantânea de tempos heterogêneos,<br />

possibilitando a revisão critica do presente<br />

à luz do passado.<br />

Os Jogos Teatrais de Viola Spolin tiveram<br />

neste contexto de formação de professores<br />

um papel fundamental para o desenvolvimento<br />

de habilidades de processo.<br />

A partir da experimentação com os jogos<br />

teatrais e do confronto com o texto buscouse<br />

construir a autonomia do grupo e a sua<br />

leitura do fragmento de Büchner.<br />

A capacidade imaginativa desenvolvida<br />

no jogo oferece um número muito<br />

maior de hipóteses do que aquelas que a<br />

realidade física nos permite experimentar.<br />

Característica antropológica mais marcante<br />

do homem, o jogo é o núcleo incan-<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

descente para a capacidade de exercitar o<br />

convívio e construir significados através de<br />

experimentos de caráter lúdicos e estéticos<br />

de teatro.<br />

Os eixos de aprendizagem do jogo<br />

teatral como foco, instrução e avaliação formaram<br />

a base metodológica do processo.<br />

A instrução, que é um comando dado pelo<br />

coordenador enquanto o jogo está em movimento,<br />

possibilitou o direcionamento do<br />

processo em função do texto a ser experimentado<br />

pelo grupo. A avaliação, realizada<br />

sistematicamente após o término do jogo<br />

às vezes era feita com os jogadores na platéia<br />

e outras, quando o grupo todo estava<br />

envolvido na cena, simplesmente em roda<br />

através de perguntas colocadas pelo coordenador.<br />

O acento do foco do jogo teatral foi a<br />

construção de uma atitude neutra em cena.<br />

Os Jogos de Espelho e Siga o Seguidor (Spolin,<br />

2008) permearam todos os ensaios instaurando<br />

o processo colaborativo no grupo.<br />

Neste sentido, as cantigas de roda auxiliaram<br />

na construção das relações de parceria<br />

entre os atuantes e foram elaborados como<br />

material cênico para a construção do produto<br />

apresentado para a platéia.<br />

Outro foco enfatizado na experimentação<br />

com o grupo foi o espaço (Onde) com<br />

suas inúmeras variantes. A apresentação<br />

se deu em um espaço de arena. A cenografia<br />

da encenação era constituída através do<br />

objeto no espaço (Spolin, 2008), sendo que<br />

atitude corporal e linguagem gestual eram<br />

configuradas pelos atuantes que criavam<br />

o espaço imaginário da tenda, do quarto,<br />

do pântano etc. Também os personagens<br />

foram construídos através de jogos teatrais<br />

que tinham o quem como foco. Jogos como<br />

Quem sou eu? (Spolin, 2008) que mantém<br />

embutido o principio da charada foram<br />

fundamentais para a criação dos coros de<br />

Woyzeck e Marie. Nascidos destas relações<br />

de jogo foi possível realizar com o grupo<br />

de vinte e oito atuantes uma encenação que<br />

classificamos como singela, mas que guardava<br />

a pulsão do jogo na qual teve origem.<br />

A encenação de A Ferida Woyzeck partiu<br />

de uma busca nas pistas de linguagem<br />

oferecidas pelo próprio texto. O confronto<br />

TEATRO DE FIGURAS ALEGÓRICAS: A FERIDA WOYzECK 73


<strong>Urdimento</strong><br />

74<br />

de Woyzeck com seus superiores, representantes<br />

dos estratos sociais dominantes,<br />

é indicado pelos vários padrões de linguagem<br />

utilizados por Büchner. Enquanto o<br />

Capitão, o Médico e o Professor empregam<br />

com moderação o dialeto de Darmstadt,<br />

as personagens populares falam o dialeto<br />

puro: Woyzeck, Marie, Margareth, Karl,<br />

avó crianças. Woyzeck, soldado e barbeiro,<br />

faz a barba do Capitão tagarela e bitolado.<br />

O Médico, o Tambor-mor e o Capitão podem<br />

dar ordens a Woyzeck, enquanto a<br />

este só é dado cumpri-las sem manifestar<br />

vontades.<br />

Surpreende a inserção de versos e cantigas<br />

populares inseridas por Büchner nas<br />

várias versões do fragmento. Foi com o<br />

intuito de expandir esse gesto presente no<br />

texto que trabalhamos inicialmente com<br />

cantigas de roda no processo da encenação.<br />

Essas cantigas viriam a substituir os<br />

versos alemães por referencias populares<br />

brasileiras sendo que o canto, os versos e a<br />

dança introduziam e faziam o comentário<br />

das cenas.<br />

Woyzeck sucumbe sob o peso de um<br />

universo cujos mistérios não consegue<br />

apreender nem articular e em relação ao<br />

qual sua ação nada pode, estando à mercê<br />

de forças que o manipulam como os fios a<br />

um títere. Esta visão do ser humano, que<br />

o converte em fantoche e automatiza a sua<br />

atuação, imprime-lhe, pela perda das modulações<br />

e mecanização de suas ações, uma<br />

feição grotesca. Mas neste viés, Woyzeck<br />

é acompanhado tanto pelo Capitão como<br />

pelo Doutor e pelo Tambor-mor, personagens<br />

construídas com perfis esquemáticos<br />

e que vivem, cada qual, em função de<br />

suas idéias fixas. Woyzeck atravessa a peça<br />

em agitação desesperada, contorcendose<br />

como um boneco suspenso nas cordas.<br />

Corre pelo mundo como uma navalha aberta.<br />

Vendo-o chispar pela rua, seguido aos<br />

pulinhos pelo Doutor, o magro pelo gordo,<br />

o Capitão exclama às gargalhadas: Grotesco!<br />

Grotesco!<br />

O elemento grotesco, tão presente no<br />

texto, foi explorado de variadas formas. Os<br />

personagens do Doutor e do Capitão foram<br />

encenados através de máscaras, acentuan-<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

do o Gestus da dominação do pobre e coitado<br />

Woyzeck, submetido aos experimentos<br />

medicinais e à exploração. O ventríloquo,<br />

sugerido por Büchner, foi expandido através<br />

da construção de um boneco (Jaime Pinheiro,<br />

também responsável pelo figurino<br />

da encenação) que recebeu o apelido de Sir<br />

Woyzeck e acompanhava a encenação do<br />

coro de quatorze Maries e onze Woyzecks<br />

sentado em poltronas destinadas à platéia<br />

do teatro, ao lado do Pregoeiro, do Charlatão<br />

(e do Bobo), anunciados pelo nosso<br />

autor na cena Tendas, Luzes, Povo (3). Essa<br />

cena, em nossa releitura do texto, recebeu<br />

o titulo de Prólogo. O coro de Maries e<br />

Woyzecks foi a forma encontrada para a<br />

alegorização das personagens. Através do<br />

gesto, do canto e da palavra estendidos, o<br />

coletivo dos atuantes construiu o Gestus<br />

da experiência da coisificação. Na nossa<br />

cena final, o Epilogo, o Charlatão, o Pregoeiro,<br />

o Bobo e Sir Woyzeck levantavam<br />

das poltronas para fazer o comentário das<br />

cenas mostradas pelo coro:<br />

BOBO: Um bom assassinato, um<br />

autêntico assassinato, um belo assassinato,<br />

mais belo como não se<br />

poderia desejar, faz tempo que não<br />

tínhamos nada igual.<br />

PREGOEIRO: No mundo não há<br />

permanência, todo devemos morrer,<br />

disso sabemos muito bem. Pobre<br />

homem, velhinho! Pobre criança!<br />

Criancinha! Preocupações e festas!<br />

CHARLATÃO: Um homem precisa<br />

ser também tolo por entender, para<br />

que possa dizer: mundo tolo, mundo<br />

bonito!<br />

O Bobo, um personagem do fragmento<br />

que tem algumas falas esporádicas, também<br />

foi expandido, sendo que a atriz (Fernanda<br />

Brito) que fazia o papel pesquisou<br />

falas de Bobos em Shakespeare as quais foram<br />

inseridas em algumas cenas. O resultado<br />

era um comentário caustico dos acontecimentos<br />

como o assassinato de Marie.<br />

Nas culturas teatrais ancestrais a fala<br />

é parte indissolúvel de uma expressão que<br />

Ingrid Dormien Koudela<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

engloba a palavra, o canto e a dança. No<br />

mimos grego existiam formas de teatro improvisacional<br />

que utilizavam a fala cotidiana.<br />

A partir destas tradições deriva a fala<br />

em versos do teatro clássico de Büchner a<br />

Brecht e Heiner Müller que devem ser creditados<br />

à forte ligação do teatro europeu<br />

com a literatura teatral, mas também com<br />

a fala cotidiana até ao extremo das várias<br />

formas de teatro improvisacional na história<br />

do teatro até a década de setenta. A<br />

Peça Didática de Brecht e o jogo teatral<br />

desenvolvido a partir desta dramaturgia<br />

mostram uma relação dialética entre a fala<br />

gestual (Gestische Sprache) dos originais<br />

brechtianos e as inserções de variantes de<br />

invenção própria criados pelos coletivos de<br />

atuantes em oficinas de criação.<br />

A primeira frase do Evangelho de João<br />

reza (...) no inicio era a palavra. No Fausto<br />

de Goethe encontramos (...) no inicio era o<br />

ato. Ou seja, no processo da fala o ato adquire<br />

primazia. A fala se baseia, portanto<br />

em ações em determinadas situações e<br />

contextos de significados ao mesmo tempo<br />

em que por si só possui a qualidade de<br />

ser ação. Este aspecto actancial da fala é de<br />

grande importância em todo evento cênico<br />

e em especial quando a teatralidade recorre<br />

a textos literários. Pois a fala em cena não<br />

é de forma alguma a enunciação correta ou<br />

bem sucedida de um texto literário. As palavras<br />

necessitam ser antes de faladas, pensadas<br />

e percebidas de novo para serem ancoradas<br />

novamente na ação. Elas precisam<br />

ser novamente vividas.<br />

Este caminho é indicado pelas teorias<br />

de interpretação, através de diferentes<br />

abordagens. Stanislavski introduz o conceito<br />

de sub-texto através do qual nasce<br />

o sentido da obra. Brecht vê a fala como<br />

instrumento da ação. Através do conceito<br />

de linguagem gestual (Gestische Sprache)<br />

Brecht acentua que toda fala é uma<br />

ação dos homens entre os homens. Uma<br />

questão fundamental para todo enunciado<br />

através da fala é, portanto o que move<br />

aquele que atua e de que forma interage<br />

com o outro.<br />

A fala caminha por atalhos tanto quan-<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

do parte de textos literários como quando<br />

se trata de repetições de falas que nascem<br />

do teatro improvisacional. Estes atalhos<br />

podem partir de modelos de ação (Handlungsmuster,<br />

Koudela, 1991) prefigurados no<br />

teatro dramático, narrativo e/ou poético,<br />

mas retornam para o espaço do sentir, do<br />

pensar e principalmente da fisicalização<br />

que incorpora as motivações e impulsos de<br />

ação. É somente a partir destes muitos atalhos<br />

de experimentação no jogo que o modelo<br />

literário assume a dimensão de uma<br />

ação, de uma atitude, de um gesto – a corporificação<br />

de uma intenção.<br />

TEATRO DE FIGURAS ALEGÓRICAS: A FERIDA WOYzECK 75


<strong>Urdimento</strong><br />

76<br />

REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS:<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

BRECHT, BERTOLT Gesammelte Werke, Frankfurt: Suhrkamp, 1967.<br />

Brecht, Bertolt Aus den Notizbüchern 1920-26. Zur Literatur und Kunst, BBGW 18-10.<br />

GUINSBURG, J. e KOUDELA, I.D. Georg Büchner. Na Pena e na Cena SP: Ed. Perspectiva,<br />

2004.<br />

KOUDELA, INGRID D. HEINER MÜLLER. O Espanto no Teatro (org) SP: Ed. Perspectiva,<br />

2003.<br />

---. Brecht: um jogo de aprendizagem SP: Ed. Perspectiva, 1991.<br />

---. Brecht na Pós-Modernidade SP: Ed. Perspectiva, 2001.<br />

---. Texto e Jogo SP: Ed. Perspectiva, 1996.<br />

MÜLLER, HEINER. Heiner Müllermaterial Leipzig, Reclam, 1990.<br />

RÖHL, RUTH. Literatura da República Democrática Alemã SP: Ed. Perspectiva, 2006.<br />

---. O Teatro de Heiner Müller, SP: Perspectiva, 1997.<br />

ROSENFELD, ANATOL. O Teatro Moderno SP: Perspectiva, 1977.<br />

SPOLIN, VIOLA. Jogos Teatrais na Sala de Aula SP: Perspectiva, 2008.<br />

MAGALDI, SÁBATO. O Texto no Teatro SP: Perspectiva, 1989.<br />

Ingrid Dormien Koudela


N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />

POSSIBILIDADES E DESAFIOS DA INICIAçãO à<br />

DOCêNCIA EM TEATRO NA EDUCAçãO BáSICA 1<br />

Resumo<br />

O texto traz um apanhado do trabalho de iniciação docente realizado<br />

no Subprojeto de Teatro da UFRGS do Programa Institucional de Bolsas<br />

de Iniciação à Docência (PIBID), que compreende uma proposta de<br />

qualificação da formação profissional do professor de teatro através da<br />

interação entre estudantes Bolsistas do Curso de Licenciatura em Teatro da<br />

UFRGS e a realidade de uma escola da Rede Pública Estadual de Ensino<br />

do Rio Grande do Sul. As ações do Subprojeto de Teatro desenvolvem-se<br />

na cidade de Porto Alegre, no Instituto de Educação General Flores da<br />

Cunha (IE), e têm por objetivo central restabelecer as funções do núcleo<br />

teatral da escola – o TIPIE. Nesse sentido, consideram-se as possibilidades<br />

e os desafios às ações de iniciação à docência em teatro, dentre as quais<br />

se destacam: o conhecimento acerca da estrutura e do funcionamento da<br />

escola; a inserção dos futuros professores no ambiente escolar; a pesquisa<br />

acerca da memória da escola, com ênfase no seu papel precursor para o<br />

ensino de teatro em âmbito local e nacional; o desenvolvimento de oficinas<br />

de iniciação teatral oferecidas à comunidade do IE; e a retomada das<br />

funções artísticas e culturais do TIPIE.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de teatro; formação de professores; escola; pesquisa.<br />

Abstract<br />

This paper gives a critical overview on the Institutional Undergraduate<br />

Scholarship Program on Teaching Internship in Public Schools (PIBID), as carried<br />

out by the Theatre Departmente at the Federal University of Rio Grande do Sul<br />

(UFRGS) at the State School General Flores da Cunha in Porto Alegre. It evaluates<br />

the contribution of the project in reactivating the theatrical activities at this school,<br />

recovering its theatrical memory and integrating pedagogical and artistic activities.<br />

KEYWORDS: Theatre Education, Teacher Training, School , Research<br />

1 Este artigo constitui uma versão ampliada e atualizada do trabalho publicado nos anais do VI Congresso da<br />

ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (em 2010), sob o título de<br />

Iniciação à docência em teatro: a experiência do PIBID/UFRGS.<br />

2 Professora da Universidade Federal de Rio Grande do Sul no Departamento de Arte Dramática. Pesquisa há mais<br />

de 20 anos as relações entre Teatro e Educação, do ponto de vista tanto pedagógico quanto institucional.<br />

Vera Lúcia Bertoni dos Santos 2<br />

Possibilidades e desafios da iniciação à docência em teatro na Educação Básica 77


<strong>Urdimento</strong><br />

78<br />

Neste texto reflete-se sobre um<br />

conjunto de ações de inserção<br />

escolar, ensino e pesquisa<br />

em teatro, processadas no<br />

decorrer do primeiro ano de<br />

funcionamento do Subprojeto da área de<br />

Teatro do Programa Institucional de Bolsas<br />

de Iniciação à Docência (PIBID), em colaboração<br />

entre o Curso de Licenciatura em<br />

Teatro do Departamento de Arte Dramática<br />

do Instituto de Artes da Universidade<br />

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e<br />

a comunidade escolar do Instituto de Educação<br />

General Flores da Cunha (IE), uma<br />

tradicional Instituição de Ensino da Rede<br />

Pública Estadual de Porto Alegre.<br />

O texto inicia-se pela caracterização<br />

mais ampla do PIBID, através de uma explanação<br />

sobre os propósitos gerais do<br />

Projeto Institucional da UFRGS e sobre os<br />

objetivos específicos do Subprojeto da área<br />

de Teatro, tendo em vista as possibilidades<br />

e desafios que o contexto da Educação Básica<br />

Pública e a realidade da Instituição na<br />

qual o trabalho se insere significam à ação<br />

pedagógica em teatro; a seguir, são descritos<br />

e analisados diferentes tipos de atividades<br />

realizados pelos estudantes Bolsistas<br />

do PIBID Teatro da UFRGS no sentido da<br />

sua iniciação docente, que se processam na<br />

perspectiva de valorização da prática e da<br />

reflexão do teatro no meio escolar e de inserção<br />

da disciplina de teatro na Educação<br />

Básica.<br />

Dos objetivos<br />

O Programa Institucional de Bolsas de<br />

Iniciação à Docência (PIBID) constitui uma<br />

iniciativa pioneira de estímulo à docência<br />

em âmbito nacional, implementada pela<br />

Coordenação Geral de Desenvolvimento<br />

de Conteúdos Curriculares e de Modelos<br />

Experimentais da Diretoria de Educação<br />

Básica (DEB) Presencial, da Coordenação<br />

de Aperfeiçoamento de Pessoal (CAPES)<br />

de Nível Superior do Ministério da Educação<br />

(MEC), desde 2007, que abrange atualmente<br />

diversos estados do Brasil, integrando<br />

o Ensino Superior e a Educação Básica<br />

através da interação entre estudantes e docentes<br />

de cursos licenciatura de diferentes<br />

áreas do conhecimento e a realidade edu-<br />

cacional das Instituições de Ensino da Rede<br />

Pública Estadual.<br />

Nesse sentido, o Projeto Institucional<br />

da UFRGS 3 tem por propósito central o<br />

fortalecimento das atividades de formação<br />

continuada de seus licenciandos, mediante<br />

o incentivo precoce dos futuros professores<br />

em relação à carreira docente junto à escola<br />

pública e o estímulo ao magistério na Educação<br />

Básica da Rede Estadual de Ensino.<br />

A esse propósito alinham-se as ações<br />

específicas da equipe do Subprojeto de Teatro<br />

da UFRGS, que é composta por onze<br />

estudantes Bolsistas de Iniciação à Docência,<br />

discentes de Licenciatura em Teatro, e<br />

pelo professor Supervisor, integrante do<br />

quadro docente da escola atendida pelo<br />

Subprojeto, que atuam sob orientação da<br />

professora Coordenadora, pertencente ao<br />

quadro docente da UFRGS, responsável<br />

pela área do teatro 4 .<br />

A escolha do Instituto de Educação<br />

General Flores da Cunha (IE) como escola<br />

sede do Subprojeto de Teatro determinou a<br />

formulação dos objetivos do Plano de Trabalho<br />

e orientou a formulação das ações do<br />

PIBID. De modo geral, a motivação por desenvolver<br />

o trabalho no IE originou-se de<br />

fatores relacionados, por um lado, à quantidade<br />

de possibilidades de ação políticopedagógica<br />

e investigativa em teatro que<br />

o envolvimento com uma instituição educacional<br />

do seu porte e da sua relevância<br />

histórica significa ao futuro professor de<br />

teatro, em especial as ações referentes ao<br />

núcleo de teatro do IE – o Teatro Infantil<br />

Permanente do Instituto de Educação (TI-<br />

PIE); e, por outro lado, à perspectiva de superação<br />

de desafios impostos à ação docente<br />

em teatro nessa escola, dentre os quais<br />

se destacam: a inexistência de professores<br />

de teatro no seu quadro funcional, que se<br />

3 Na sua segunda edição, que obteve aprovação a partir do resultado do Edital<br />

CAPES/DEB N° 02/2009 – PIBID e cumpre-se no período compreendido entre os<br />

anos de 2010 e 2012.<br />

4 Desde o início das atividades (em 2010), integraram a equipe do Subprojeto de<br />

Teatro: a docente da UFRGS Vera Lúcia Bertoni dos Santos (Coordenadora do<br />

Subprojeto); o docente do IE Geraldo Bueno Fischer (Supervisor); e os estudantes<br />

do Curso de Licenciatura em Teatro da UFRGS André de Souza Macedo, Clarice<br />

Dorneles Nejar, Gabriela Tarouco Tavares, Iassanã Martins da Silva, Ítalo Cassará,<br />

Janaina Moraes Franco, Mariana Silva Freitas, Mauricio Pezzi Casiraghi, Priscila<br />

da Silva Correa, Priscila Soares Morais, Renata Teixeira Ferreira da Silva, Suzana<br />

Cristina Witt e Tássia Pfeifer de Almeida (Bolsistas de Iniciação à Docência).<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Vera Lúcia Bertoni dos Santos<br />

reflete na carência de projetos curriculares<br />

de qualidade voltados à prática do teatro e<br />

à apreciação de espetáculos; as condições<br />

precárias em que se encontrava da sala de<br />

teatro da escola; e a desativação do TIPIE.<br />

Desde a sua fundação, em 1956, pela<br />

professora Olga Reverbel (1917-2008) e<br />

suas alunas do Curso de Magistério, o TI-<br />

PIE desempenhou papel de destaque no<br />

movimento de teatro estudantil do estado,<br />

tendo sido reconhecido nacionalmente entre<br />

os anos de 1960 e 1970, como um marco<br />

referencial à reflexão sobre o teatro na<br />

escola, pelo seu pioneirismo no que tange<br />

à inclusão do teatro como disciplina curricular<br />

e pela sua projeção como um espaço<br />

teatral na cidade de Porto Alegre, responsável<br />

pela difusão de espetáculos e pela<br />

promoção de eventos de natureza artística<br />

e cultural.<br />

Entretanto, com o passar dos anos, por<br />

força do descaso histórico das políticas públicas<br />

relacionadas à educação, que parece<br />

pesar ainda mais no caso das disciplinas<br />

artísticas 5 , o trabalho dos docentes que sucederam<br />

Reverbel à frente da disciplina de<br />

teatro viu-se cerceado pela falta de estrutura<br />

e respaldo à ação pedagógica. Destituído<br />

de iniciativas em prol da manutenção das<br />

funções do TIPIE, esvaziado de projetos em<br />

favor da prática e da apreciação teatrais no<br />

meio escolar e, mais recentemente, privado<br />

de um professor de teatro no seu quadro<br />

docente, o IE encontra-se atualmente impedido<br />

de oferecer a disciplina de teatro no<br />

seu currículo, o que significa um retrocesso<br />

da condição precursora de escola em relação<br />

ao ensino da arte.<br />

Nesse contexto, cabe ressaltar as condições<br />

adversas ao trabalho pedagógico,<br />

comuns a maior parte das instituições públicas<br />

de ensino no nosso país, ocasionadas<br />

pela carência de investimentos na ampliação<br />

(por concurso público), manutenção<br />

(mediante planos de carreira adequados e<br />

condições salariais dignas) e qualificação<br />

(através do incentivo à pesquisa e à pós-<br />

5 Especialmente a de teatro, devido às controvérsias que cercam a sua regulamentação<br />

como “disciplina” obrigatória no currículo escolar; e considerando os<br />

problemas causados no cotidiano da escola em função da especificidade prática<br />

dos seus conteúdos.<br />

graduação) dos quadros docentes e funcionais<br />

das escolas e na estruturação e conservação<br />

das suas dependências e instalações.<br />

Como reflexos dessa lamentável situação<br />

têm-se aspectos que dificultam o<br />

processo de ensino e aprendizagem em<br />

qualquer área do conhecimento, tais como<br />

a superlotação das turmas e a depauperação<br />

crescente dos espaços escolares; e, no<br />

caso das disciplinas de artes (desdobradas<br />

em artes visuais, dança, música e teatro),<br />

cuja carga-horária é restrita em relação às<br />

demais disciplinas do conhecimento (visto<br />

que as propostas curriculares costumam ser<br />

organizadas de modo a contemplar apenas<br />

uma dessas especificidades, na perspectiva<br />

de cumprir minimamente os ditames da<br />

lei), esses aspectos constituem entraves ao<br />

trabalho pedagógico, porquanto dificultam<br />

o estabelecimento de vínculos entre professores<br />

e alunos e comprometem o desenvolvimento<br />

e a continuidade do processo de<br />

conhecimento; além disso, os professores<br />

de artes, que costumam lecionar em mais<br />

de uma instituição (como alternativa de<br />

complementação salarial), enfrentam problemas<br />

no estabelecimento de relações de<br />

identidade com as diferentes realidades em<br />

que atuam, bem como na sua legitimação<br />

como membro das comunidades escolares<br />

com as quais convivem. E particularmente<br />

no caso da disciplina de teatro somam-se<br />

os problemas decorrentes da carência de<br />

recursos humanos e materiais, enfrentada<br />

pelas escolas, que as impossibilita de oferecer<br />

condições específicas 6 às atividades<br />

corporais e cênicas.<br />

É no sentido da retomada e da manutenção<br />

das funções artísticas, culturais e patrimoniais<br />

do TIPIE que se configuram as<br />

ações do Subprojeto de Teatro da UFRGS,<br />

cuja equipe assume, temporariamente 7 , a<br />

responsabilidade pelo desenvolvimento de<br />

atividades teatrais no IE, mediante experiências<br />

de ensino, aprendizagem, pesquisa,<br />

6 Ou seja: um espaço amplo, que favoreça a movimentação dos alunos, livre de<br />

móveis e objetos e com piso de madeira, limpo, de modo a permitir o trabalho corporal<br />

no chão, e arejado.<br />

7 Os Subprojetos que integram o Edital 2009 desenvolvem-se de maio de 2010 a<br />

maio de 2012, ou seja, pelo período de dois anos (que pode ser ampliado, no caso<br />

de aprovação em novo Edital).<br />

Possibilidades e desafios da iniciação à docência em teatro na Educação Básica 79


<strong>Urdimento</strong><br />

80<br />

produção e difusão do teatro, protagonizadas<br />

pela comunidade escolar do IE, sob<br />

orientação de estudantes de Licenciatura<br />

em Teatro da UFRGS.<br />

Das ações<br />

O momento preliminar da interação<br />

entre os estudantes Bolsistas e o PIBID<br />

ocorreu no primeiro semestre de 2010,<br />

motivado pela leitura coletiva e da discussão<br />

do Projeto Institucional e do Subprojeto<br />

de Teatro e de por uma primeira<br />

apreciação de documentos oficiais que<br />

regem a educação em âmbito nacional<br />

e estadual 8 . Tais iniciativas possibilitaram<br />

à equipe do PIBID definir formas<br />

de articulação em relação às metas propostas<br />

pelo Subprojeto de Teatro frente<br />

a objetivos específicos da área do teatro<br />

compreendidos em relação às demais<br />

áreas do conhecimento e a princípios<br />

mais amplos que norteiam os planos de<br />

estudos e as propostas pedagógicas das<br />

nossas escolas.<br />

Como ponto de partida para o planejamento<br />

do trabalho no IE realizou-se um<br />

trabalho de sondagem, mediante o levantamento<br />

dos interesses da escola em relação<br />

ao teatro, à restauração do espaço físico do<br />

TIPIE e à identificação de tempos e espaços<br />

potenciais ao trabalho teatral. O trabalho<br />

envolveu também uma avaliação do<br />

ambiente e do funcionamento da escola, a<br />

fim de possibilitar a apreensão da sua realidade,<br />

o conhecimento do Projeto Político<br />

Pedagógico da escola e do Calendário Escolar,<br />

e um primeiro contato com o corpo<br />

docente da área de artes do IE.<br />

A coleta desses dados desenvolveu-se<br />

através de visitas dos estudantes Bolsistas e<br />

da Coordenadora à escola, da participação<br />

em reuniões de professores da área de artes<br />

e de conversas com a Direção e com funcionários<br />

responsáveis por diferentes setores,<br />

que possibilitaram o reconhecimento do<br />

espaço físico da escola, especialmente da<br />

8 Plano Nacional de Educação; Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional;<br />

Diretrizes Curriculares Nacionais; Parâmetros Curriculares Nacionais; e Referenciais<br />

Curriculares do RS.<br />

sala de teatro do TIPIE, e a avaliação das<br />

possibilidades e dos desafios da escola à<br />

prática do teatro.<br />

Um dos primeiros fatores identificados<br />

como desafiador às ações do Subprojeto<br />

é o fato do quadro docente do IE não<br />

dispor de um professor de teatro, que inviabilizou<br />

a possibilidade de estabelecer<br />

parceria com um docente especializado na<br />

área para desempenhar a função de Supervisor<br />

dos estudantes Bolsistas em atividades<br />

na escola. Nesse sentido, conta-se com<br />

a colaboração do professor da disciplina<br />

de artes visuais (também responsável pela<br />

disciplina de música, pois possui formação<br />

nas duas áreas) na equipe do PIBID,<br />

o que configura um trabalho de mediação<br />

mais restrito ao acompanhamento dos estudantes<br />

Bolsistas em atividades artísticas<br />

de cunho interdisciplinar e a aspectos estruturais<br />

e funcionais das relações entre as<br />

propostas do PIBID e a comunidade do IE,<br />

em detrimento do diálogo efetivo acerca<br />

de elementos específicos do teatro que a<br />

participação que um docente da área poderia<br />

implicar.<br />

Outra limitação eram as condições em<br />

que se encontrava o TIPIE, que prejudicavam<br />

seriamente o desenvolvimento das<br />

atividades teatrais previstas no PIBID. A<br />

situação de abandono e depredação da sala<br />

do teatro, que se agravava pela falta de manutenção<br />

e limpeza e pelo uso inapropriado<br />

e desregrado do seu espaço, foi tratada<br />

a partir de reuniões com a Direção do IE<br />

e ocasionou algumas providências imediatas<br />

9 para contornar os problemas evidenciados,<br />

até que a recuperação do espaço do<br />

TIPIE se concluísse.<br />

Acerca dos resultados da sondagem<br />

foram desenvolvidos registros e relatórios<br />

e elaborou-se o mapeamento (planta baixa<br />

detalhada) do espaço escolar e uma planilha<br />

com horários e contatos dos professores<br />

das disciplinas artísticas, o que facilitou<br />

9 Tais providências compreenderam o esclarecimento ao corpo docente da escola<br />

em relação à mudança das normas de funcionamento do TIPIE e a instauração de<br />

medidas de controle do uso sala (que passou a restringir-se a atividades acompanhadas<br />

por professores) e de manutenção do seu espaço físico (retirada de entulhos<br />

e quinquilharias que estavam depositadas na sala, substituição de lâmpadas<br />

queimadas e estabelecimento de uma agenda de limpeza).<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Vera Lúcia Bertoni dos Santos<br />

a localização e o trânsito dos estudantes<br />

Bolsistas do PIBID no IE e viabilizaram a<br />

sua inserção em projetos curriculares desenvolvidos<br />

na escola.<br />

Paralelamente a esse levantamento,<br />

outra proposta buscou a inserção dos<br />

estudantes Bolsistas no cotidiano do IE,<br />

mediante a participação cooperativa em<br />

experiências metodológicas atreladas a<br />

diversas disciplinas do currículo da escola<br />

(tais como: artes visuais, música, língua<br />

portuguesa e história). O planejamento<br />

dessas experiências realizou-se em conjunto<br />

com os professores das disciplinas<br />

e o trabalho envolveu observações e propostas<br />

de colaboração e intervenção pedagógica,<br />

através da abordagem de jogos<br />

tradicionais, dramáticos e teatrais, improvisações<br />

e criações cênicas a partir de elementos<br />

formais do teatro, que foram registradas,<br />

avaliadas e compartilhadas no<br />

grupo, permitindo a compreensão de aspectos<br />

do funcionamento da sala de aula<br />

e a reflexão sobre o ensino de teatro numa<br />

perspectiva global, focalizada na relação<br />

entre conhecimentos de diversas disciplinas<br />

do currículo da escola.<br />

Outra atividade que envolveu os estudantes<br />

Bolsistas compreendeu o estudo<br />

da memória do IE e do TIPIE. O propósito<br />

dessa atividade de cunho eminentemente<br />

investigativo era favorecer a implementação<br />

de ações de revitalização da atividade<br />

teatral no contexto da escola, mediante o<br />

fortalecimento das relações de identidade<br />

entre a comunidade e o TIPIE. O trabalho<br />

envolveu uma pesquisa histórica e documental<br />

que consistiu em investigar o processo<br />

de constituição do TIPIE e a trajetória<br />

de Reverbel.<br />

Nessa busca, os estudantes Bolsistas<br />

recorreram a documentos disponíveis no<br />

arquivo histórico da escola, com a colaboração<br />

da funcionária responsável, e ao<br />

material existente em relação à autora, o<br />

que incluiu suas publicações e outras obras<br />

que mencionam o seu trabalho, e realizaram<br />

resenhas e relatórios de leitura, que<br />

abrangeram: as temáticas das publicações,<br />

o contexto histórico em que elas foram concebidas<br />

e as suas relações com a carreira da<br />

autora e com o público alvo, e os vínculos<br />

das obras com o trabalho desenvolvido no<br />

TIPIE.<br />

No decorrer das leituras constatouse<br />

que a maioria dos livros de Reverbel<br />

compreende jogos dramáticos e teatrais e<br />

encerra reflexões sobre o ensino do teatro<br />

em diferentes níveis, abarcando desde a<br />

Educação Infantil até a formação de professores;<br />

notou-se, também, a preocupação<br />

constante da autora por ressaltar a importância<br />

do teatro como um componente curricular<br />

e os benefícios da prática teatral no<br />

desenvolvimento de crianças e jovens, bem<br />

como a busca pela construção de um método<br />

de ensino de teatro, que se desenvolve<br />

a partir das suas experiências em sala de<br />

aula. Também foram lidas obras dramatúrgicas<br />

de Reverbel, concebidas durante seu<br />

trabalho no TIPIE, junto a estudantes do<br />

Magistério.<br />

Após o trabalho de sondagem referente<br />

à estrutura da escola e às atividades<br />

artísticas desenvolvidas em diferentes<br />

disciplinas e a avaliação das intervenções<br />

pedagógica ocorridas na sala de aula de<br />

alguns professores que se prontificaram<br />

a colaborar com o PIBID, e, tendo concluído<br />

a coleta de dados para a reconstituição<br />

do memorial do TIPIE, os estudantes<br />

Bolsistas puderam dedicar-se ao trabalho<br />

de iniciação docente de cunho especificamente<br />

teatral, que se desenvolveu através<br />

de oficinas oferecidas a alunos do IE, em<br />

horários alternativos (turno inverso) às<br />

suas atividades “de classe”.<br />

A proposta inaugural de oficina foi<br />

desenvolvida logo no primeiro semestre do<br />

Subprojeto e denominou-se Degustação Teatral,<br />

por se constituir uma pequena mostra<br />

das possibilidades de trabalho teatral a<br />

serem experimentadas no decorrer do Subprojeto.<br />

Nesse sentido, desenvolveram-se<br />

propostas de exploração das capacidades<br />

motoras, corporais, lúdicas, expressivas,<br />

dramáticas e representativas inerentes à<br />

formalização e à comunicação cênicas, com<br />

ênfase na aprendizagem da socialização e<br />

da cooperação, fundamental ao processo<br />

de construção de conhecimento e à constituição<br />

de um grupo de jogo, e na formação<br />

Possibilidades e desafios da iniciação à docência em teatro na Educação Básica 81


<strong>Urdimento</strong><br />

82<br />

de espectadores, primordial à reflexão sobre<br />

o fenômeno teatral.<br />

Essa experiência docente inicial permitiu<br />

estimar os interesses dos alunos do IE<br />

em relação ao teatro e estabelecer um programa<br />

de oficinas que viesse ao encontro<br />

das necessidades da comunidade escolar<br />

como um todo. O primeiro módulo do programa<br />

realizou-se no segundo semestre de<br />

2010, através do oferecimento de oficinas<br />

nos turnos da manhã, tarde e noite, “assumidas”<br />

por duplas, ou trios, de Bolsistas,<br />

revezados nas funções de ministrantes, observadores<br />

e relatores.<br />

O planejamento e a avaliação dos encontros<br />

das oficinas foram compartilhados<br />

em reuniões sistemáticas, o que possibilitou<br />

a combinação prévia de atividades e a<br />

troca de informações e experiências entre as<br />

diferentes oficinas. No término das atividades<br />

desse primeiro módulo (em dezembro<br />

de 2010) realizou-se um evento intitulado<br />

Troca de figurinhas, no qual foram apresentados<br />

resultados cênicos obtidos em cada<br />

turma. O evento reuniu os integrantes de<br />

todas as turmas e envolveu membros da<br />

comunidade escolar e da Direção do IE;<br />

contou também com a participação especial<br />

do grupo de teatro estudantil da Fundação<br />

Municipal de Artes de Montenegro<br />

(FUNDARTE-RS).<br />

A ação docente nas oficinas do primeiro<br />

ano de atuação do PIBID no IE mobilizou<br />

a equipe em torno dos problemas concernentes<br />

à manutenção do espaço físico<br />

do TIPIE, que, embora tivessem sido amenizados<br />

em função das medidas em relação<br />

à manutenção e ao uso mais criterioso da<br />

sala, ainda impunha sérias dificuldades à<br />

prática teatral. Frente a isso, a equipe do<br />

PIBID passou a investir esforços na instauração<br />

de uma “política de conscientização”<br />

da comunidade escolar como um todo em<br />

relação aos cuidados com o espaço do teatro.<br />

O trabalho de recuperação do TIPIE<br />

realizou-se no período de recesso das atividades<br />

letivas do IE (janeiro e fevereiro de<br />

2011), a partir de uma tomada de orçamentos<br />

para os reparos no espaço físico da sala,<br />

avaliados, desde a concepção do Subpro-<br />

jeto, como fatores imprescindíveis à retomada<br />

do núcleo teatral da escola. De modo<br />

geral, os reparos 10 envolveram medidas<br />

simples e poucos recursos, mas o resultado<br />

do trabalho foi decisivo ao fortalecimento<br />

das ações do PIBID.<br />

Assim, no segundo ano de trabalho no<br />

IE, as atividades do PIBID passaram a desenvolver-se<br />

num ambiente mais saudável<br />

e mais acolhedor à prática do teatro, o que<br />

favoreceu sobremaneira a ação pedagógica<br />

e o processo de ensino e aprendizagem nas<br />

oficinas.<br />

Desdobradas em cinco turmas, organizadas<br />

de modo a contemplar demandas<br />

de horário de diferentes segmentos da<br />

comunidade do IE, as oficinas de teatro<br />

do segundo módulo do programa de oficinas,<br />

realizado no primeiro semestre de<br />

2011, também são oferecidas no turno inverso<br />

das atividades de classe dos alunos<br />

interessados. Os objetivos, conteúdos e<br />

procedimentos metodológicos do trabalho<br />

pedagógico desenvolvido em cada turma<br />

são estabelecidos e sistematizados levando<br />

em conta os interesses dos alunos e as necessidades<br />

que surgem no andamento do<br />

trabalho, num processo de avaliação permanente<br />

das ações dos estudantes Bolsistas<br />

na condução das propostas de ensino<br />

do teatro e do processo de aprendizagem<br />

dos sujeitos aos quais elas se dirigem.<br />

Num rápido resumo dos objetivos traçados<br />

pelos estudantes Bolsistas em seus<br />

Planos de Ensino: na Turma A (da qual participam<br />

alunos em faixa etária entre 10 e 15<br />

anos), evidencia-se o propósito de “estimular<br />

a criatividade e a imaginação através da<br />

proposição de jogos e improvisações” e a<br />

perspectiva de desenvolvimento de uma<br />

“dramaturgia do ator”, que permita aos<br />

alunos compreenderem-se como “sujeitos<br />

do processo de criação teatral”; na oficina<br />

com a Turma B (que integra jovens das<br />

séries finais do Ensino Fundamental e do<br />

Ensino Médio do IE), o objetivo pretendido<br />

é a “interação dos alunos com os elementos<br />

da ação dramática, por meio de jogos<br />

10 Reboco e pintura das paredes e aberturas, reforma e lavagem de cortinas e<br />

recuperação do piso.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Vera Lúcia Bertoni dos Santos<br />

e improvisações teatrais”; na Turma C (da<br />

qual participam crianças, jovens e adultos)<br />

tem-se por objetivos “desenvolver a<br />

construção de personagens através de improvisações”<br />

de “composições de figuras e<br />

máscaras que estimulem o imaginário dos<br />

alunos” e que favoreçam o surgimento de<br />

“um corpo vivo expressivo e presente capaz<br />

de envolver-se por inteiro nas ações”<br />

e de “inserir-se no jogo e na cena teatral”;<br />

junto à Turma D (que integra alunos do Ensino<br />

Fundamental em faixas etárias diversas),<br />

o objetivo evidenciado é a ampliação<br />

da percepção, da sensibilidade e do engajamento<br />

dos participantes através do jogo,<br />

do jogo dramático e do jogo teatral; e, por<br />

fim, a oficina da Turma E, intitulada “Oficina<br />

de Voz para Professores”, que cumpre<br />

uma demanda do corpo docente da escola<br />

por um trabalho de aprimoramento e sustentação<br />

vocal.<br />

Diferentemente do sistema de oferecimento<br />

das oficinas, o trabalho dos estudantes<br />

Bolsistas do PIBID na Educação<br />

Infantil ocorre no turno regular em que as<br />

crianças frequentam a escola e realizam-se<br />

no espaço da sala de aula, e as ações pedagógicas<br />

junto aos alunos das quatro turmas<br />

contempladas são acompanhadas pelas<br />

suas respectivas professoras regentes de<br />

classe. Nessa perspectiva, o trabalho “busca<br />

incentivar a exploração de capacidades<br />

criativas dentro do faz-de-conta, através da<br />

experimentação de figuras e situações que<br />

alimentem o jogo simbólico das crianças”,<br />

com vistas a desenvolver a “percepção, a<br />

expressividade corporal, a imaginação e a<br />

ludicidade”.<br />

Em conclusão às atividades das oficinas<br />

do segundo módulo está previsto<br />

um momento de compartilhamento de experiências<br />

que marcará a re-inauguração<br />

da sala de teatro do TIPIE. Nessa “segunda<br />

edição” do evento Troca de Figurinhas<br />

planeja-se contar com a apresentação de<br />

trabalhos cênicos desenvolvidos pelos estudantes<br />

Bolsistas nas disciplinas de atuação<br />

e direção em teatro que compõem currículo<br />

do Curso de Licenciatura em Teatro<br />

da UFRGS, configurando uma proposta<br />

de integração de conhecimentos em tea-<br />

tro aberta à comunidade escolar e apoiada<br />

pela Direção do IE.<br />

A expectativa dos integrantes do Subprojeto<br />

de Teatro do PIBID é que a continuidade<br />

das ações implementadas no IE<br />

motive o surgimento de novos projetos<br />

em torno do ensino e da aprendizagem de<br />

conhecimentos teatrais no IE, evidencie a<br />

necessidade de professores da área do teatro<br />

no quadro docente da escola, possibilitando<br />

o oferecimento da disciplina de<br />

teatro no seu currículo, bem como a manutenção<br />

das funções sociais, artísticas e culturais<br />

do TIPIE, e reflita-se na ampliação<br />

do trabalho em teatro e no fortalecimento<br />

do teatro estudantil noutras Instituições<br />

de Ensino Público do Rio Grande do Sul<br />

e do Brasil.<br />

Possibilidades e desafios da iniciação à docência em teatro na Educação Básica 83


N° 18 | Setembro de 2012<br />

A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA: OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA:<br />

Resumo<br />

Este artigo discute a ação reflexiva do professor de teatro. O potencial<br />

da inclusão de estudos sobre os canais de percepção (auditivo,<br />

sinestésico e visual) é considerado como parte desta ação. O texto irá<br />

argumentar que a inserção dos canais perceptivos no contexto educativo<br />

colabora para um melhor desenvolvimento nos estilos de aprendizagem<br />

dos alunos e nos estilos de ensinar de seus professores.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Ensino do teatro, canais de<br />

percepção, formação de professor.<br />

Abstract<br />

This text discusses the reflexive action of the drama teacher.<br />

The potential inclusion of studies on the channels of perception<br />

(auditory, kinesthetic and visual) is considered as part of this action.<br />

The text argues that the inclusion of perceptual channels in the<br />

educational context contributes to a better development of the students’<br />

learning styles and their teachers’ teaching styles..<br />

KEywORDS: Theatre teaching, perception<br />

channels, teacher’s training.<br />

1 Mestre em Teatro pela Universidade Estadual de Santa Catarina - UDESC, professor do Curso de Licenciatura em<br />

Teatro da Faculdade de Artes do Paraná - FAP, membro do GT Pedagogia do Teatro & Teatro e Educação da Associação<br />

Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas - ABRACE e integrante do Grupo de Pesquisa Arte, Educação<br />

e Formação Continuada na Linha de Pesquisa Arte, Sociedade e Diversidade Cultural na FAP. rossetorobson@gmail.com.<br />

OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />

Robson Rosseto 1<br />

85


<strong>Urdimento</strong><br />

86<br />

Atualmente, em qualquer referência<br />

que se faça ao ensino, é com frequência<br />

mencionada a reflexão como<br />

algo a ser alcançado, como um<br />

determinismo no espaço da Academia,<br />

especialmente nas licenciaturas. O<br />

refletir é premissa básica para a construção<br />

do saber, a prática reflexiva deve ser uma<br />

ação permanente e adjacente aos conhecimentos<br />

propostos no currículo. O objetivo<br />

deste trabalho, nesse sentido, é questionar<br />

o processo de formação pedagógica do professor<br />

a partir da necessidade da inclusão<br />

de uma prática reflexiva, para ponderar,<br />

a seguir, sobre como as implicações que o<br />

conhecimento sobre os canais de percepção<br />

poderá auxiliar nesta ação, qual seja, o ensino<br />

do teatro.<br />

Após concluir a graduação, o professor<br />

muitas vezes reproduz os encaminhamentos<br />

metodológicos apreendidos<br />

durante o processo de formação. Conforme<br />

Hernandez (1998), quando o professor<br />

aprende um esquema de ação tenta logo<br />

aplicá-lo, baseando-se apenas na sua própria<br />

experiência. Deste modo, evidencio<br />

que um dos grandes desafios do trabalho<br />

pedagógico é incluir na formação deste<br />

profissional o hábito de uma prática reflexiva,<br />

de modo que ele não se torne um<br />

mero reprodutor de teorias e técnicas de<br />

ensino.<br />

Infelizmente, as condições de trabalho<br />

oferecidas para o professor não produzem<br />

o apoio necessário para uma ação com qualidade,<br />

especialmente no que diz respeito à<br />

disponibilidade de tempo. Não importa a<br />

área do professor, em se tratando de educação<br />

básica, ele administra, em geral, várias<br />

turmas. Esclareço que no administrar<br />

está implícito o planejar as aulas, as reuniões<br />

pedagógicas, a correção de provas e<br />

trabalhos, além de cursos de capacitação e<br />

ou pesquisas próprias; pois um profissional<br />

que se diz reflexivo, não pode parar de<br />

estudar. No entanto, às vezes não há tempo<br />

para continuar a aprender, uma vez que<br />

muitos professores lecionam nos três turnos:<br />

manhã, tarde e noite.<br />

Mas, em relação ao trabalho específico<br />

do professor de artes/teatro no contex-<br />

N° 18 | Setembro de 2012<br />

to escolar, essa jornada tende a dobrar. O<br />

currículo da escola contempla duas aulas<br />

semanais de arte, isso ocorre quando a escola<br />

cumpre com a legislação e compreende<br />

a seriedade das artes no currículo. De<br />

outro modo, é recorrente notar, escolas<br />

configuram os conteúdos artísticos unicamente<br />

numa aula semanal, e, infelizmente,<br />

no ensino médio às vezes são suprimidas<br />

as aulas de arte. Diante desta constatação,<br />

é preciso ainda registrar que para o professor<br />

de arte almejar um digno salário, será<br />

preciso que ele lecione em várias escolas,<br />

com o intuito de obter uma carga horária<br />

por volta de 40 horas semanais. Nesse sentido,<br />

contando com o deslocamento entre<br />

as escolas, e o elevado número de alunos<br />

devido ao aumento de turmas, a jornada de<br />

trabalho de fato dobra.<br />

Perante este panorama, como o professor<br />

conduz a reflexão em sua prática docente?<br />

Perrenoud afirma que “[...] uma parte<br />

da ação pedagógica é feita de urgência e<br />

improvisação, por meio da intuição, sem<br />

realmente apelar a conhecimentos, seja por<br />

falta de tempo, seja por pertinência” (2002,<br />

p. 81). Para que isso não ocorra, o saber<br />

analisar deve permear todo o processo de<br />

formação de um professor, para que este<br />

profissional entenda o processo reflexivo<br />

dentro do espaço acadêmico, e assim possa<br />

empreender a reflexão durante a sua permanência<br />

na prática do ensino.<br />

Nos cursos de Licenciatura em Teatro,<br />

com recorrência ouço comentários dos<br />

acadêmicos afirmando que as disciplinas<br />

de estágio e as voltadas para o ensino do<br />

teatro ficam compreendidas como matérias-‘chave’<br />

com enfoque reflexivo para a<br />

formação do licenciado. No entanto, a formação<br />

do professor requer disciplinas que<br />

envolvam conhecimentos mais amplos das<br />

ciências humanas e disciplinas especializadas<br />

na prática do fazer teatral, tais como interpretação<br />

e improvisação. O que os alunos<br />

entendem de forma gradativa, é que o<br />

professor de teatro precisa ter uma formação<br />

teórica e prática em disciplinas específicas<br />

do campo teatral, associadas a outras<br />

disciplinas de áreas distintas. A ponte entre<br />

o fazer teatral com o ensino e sua análi-<br />

Robson Rosseto<br />

N° 18 | Setembro de 2012<br />

se será feita por cada aluno-professor, que<br />

constituirá sua abordagem a partir do que<br />

mais lhe interessou no rol dos conteúdos,<br />

uma interface entre o conhecimento específico<br />

e geral. Nesse sentido, o aluno desfaz<br />

as fronteiras rígidas que, muitas vezes,<br />

marcam as disciplinas.<br />

Os conteúdos contemplados no ementário<br />

das disciplinas de um currículo<br />

compõem a produção cultural humana e,<br />

portanto, estão constantemente sendo elaborados<br />

e discutidos. Por isso, exige de<br />

professores e alunos a permanente competência<br />

de refletir. Para tanto, requer de<br />

todos os envolvidos no processo educativo<br />

a capacidade de ouvir, dialogar, decodificar,<br />

cruzar, organizar, processar. Destaco<br />

que todos esses verbos são uma operação<br />

aprendida, que devem envolver de forma<br />

integral a formação docente.<br />

Mesmo assim, o estágio curricular é<br />

a priori a primeira aproximação à prática<br />

profissional em que o aluno se coloca frente<br />

à realidade e, nessa perspectiva, permite<br />

a aquisição de um saber, de um saber-fazer<br />

e de um saber julgar. Nesse sentido, as atividades<br />

de estágio requerem uma reflexão<br />

a todo o momento, um examinar constante<br />

sobre os limites e as possibilidades. Inclusive<br />

é possível presumir mudanças na nomenclatura<br />

da disciplina denominada de<br />

estágio supervisionado, título já arraigado<br />

nas licenciaturas do Brasil. Mas,<br />

A mudança de terminologia da palavra<br />

supervisionado para estágio<br />

reflexivo ou prática reflexionada ou<br />

orientada somente terá sentido se a<br />

compreensão do conceito de estágio<br />

estiver levando em conta a reflexão<br />

da prática como ponto de partida e de<br />

chegada (PIMENTA; LIMA, 2004,<br />

p. 114, grifos das autoras).<br />

Embora a denominação da disciplina<br />

de estágio ainda permaneça a mesma, o<br />

que realmente importa é que o estágio se<br />

confirma como um campo fértil para a pesquisa.<br />

O estágio é o espaço por excelência<br />

onde o aluno irá refletir sobre o ensino e a<br />

aprendizagem a partir dessa vivência.<br />

A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA: OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Os alunos em processo de formação<br />

inicial, segundo Perrenoud (2002), estarão<br />

desenvolvendo uma atitude reflexiva: “[...]<br />

ao analisar protocolos, ao assistir a vídeos,<br />

ao observar planejamento didático, ao<br />

convidar a escrever um diário, ao trabalhar<br />

com situações ou com dilemas ou ao organizar<br />

debates.” (p. 67). O autor acrescenta<br />

ainda que outras atividades provocam<br />

uma percepção mais crítica e analítica: “[...]<br />

seminários de análise de práticas, grupos<br />

de trocas sobre problemas profissionais,<br />

acompanhamento de projetos, supervisão<br />

e auxílio metodológico” (p. 70).<br />

As propostas mencionadas são partícipes<br />

dos procedimentos teatrais nos cursos<br />

de Licenciatura em Teatro e nas orientações<br />

para a prática docente. Por exemplo,<br />

no momento da avaliação da linguagem<br />

teatral, utiliza-se de protocolos (escrita e<br />

desenho), vídeos e fotografias (das improvisações<br />

e encenações), situações de dilemas<br />

mostrados na cena (discussão sobre<br />

as questões culturais, sociais e políticas).<br />

Além disso, seminários, diálogos sobre<br />

problemas profissionais, orientação de projetos<br />

e auxílio metodológico, são atividades<br />

já desenvolvidas nas disciplinas de estágio<br />

e demais disciplinas voltadas para a pedagogia<br />

teatral. No entanto, a compreensão<br />

destas práticas reflexivas ocorre especialmente<br />

em função da postura do professor<br />

formador. Concordando com Perrenoud,<br />

“Só um formador reflexivo pode formar<br />

professores reflexivos, não só porque ele<br />

representa como um todo o que preconiza,<br />

mas porque ele utiliza a reflexão de forma<br />

espontânea em torno de uma pergunta, de<br />

um debate, de uma tarefa ou de um fragmento<br />

de saber” (2002, p. 72).<br />

Nesse sentido, primeiramente é fundamental<br />

analisar as nossas atitudes enquanto<br />

professores formadores dentro de sala<br />

de aula, para se obter uma percepção mais<br />

acurada das nossas ações. Caso contrário,<br />

o professor formador pode restringir-se a<br />

um discurso automático, pautado em fazeres<br />

de ‘fórmula certa’, sem avaliar constantemente<br />

as implicações dos métodos utilizados.<br />

87


<strong>Urdimento</strong><br />

88<br />

Como base teórica que norteia essa reflexão,<br />

tenho me utilizado da teoria dos canais<br />

de percepção, a partir dos estudos da<br />

neurolinguística como uma ampliação na<br />

possibilidade de análise das proposições<br />

metodológicas para a pedagogia teatral<br />

junto aos estudantes do Curso de Licenciatura<br />

em Teatro da Faculdade de Artes do<br />

Paraná – FAP.<br />

OS CAnAIS DE PERCEPÇÃO E<br />

A PRáTICA TEATRAL<br />

Segundo Robbins (2009), recebemos as<br />

informações do mundo através de nossos<br />

sentidos, visual, auditivo e sinestésico; as<br />

pessoas que não possuem algum tipo de<br />

deficiência utilizam todos os sentidos e<br />

podem ser classificadas de acordo com o<br />

sistema representacional que mais se manifesta<br />

nelas. Assim, “muitas têm acesso a<br />

seus cérebros principalmente por uma estrutura<br />

visual. Reagem às cenas que veem<br />

em suas cabeças. Outras, principalmente<br />

pela auditiva, outras pelas sinestésicas” (p.<br />

97).<br />

O autor aponta que dentre os canais de<br />

percepção 2 revelamos um com maior destaque,<br />

tendo nosso comportamento e nossa<br />

comunicação muito ligados a este canal.<br />

Usamos os sentidos externos para perceber<br />

o mundo e, internamente, reapresentamos<br />

o mundo com os mesmos sentidos ao nosso<br />

cérebro.<br />

Diante do exposto, sugiro uma hipótese:<br />

as preferências de professores e alunos<br />

no que concerne à utilização de seus canais<br />

de percepção influenciam nos estilos<br />

de aprendizagem dos alunos, e os estilos<br />

de ensinar de seus professores são um fato<br />

gerador de dificuldades de aprendizagem<br />

no ensino do teatro. Esta afirmação aponta<br />

para o potencial de envolvimento dos<br />

canais de percepção no contexto da educação,<br />

e enseja a importância da compreensão<br />

por parte dos professores das princi-<br />

2 Pessoas visuais têm mais facilidade de entender e captar as coisas ao seu redor<br />

olhando-as, pessoas auditivas captam melhor as informações ouvindo sobre<br />

as coisas e pessoas sinestésicas, em geral, precisam tocar e sentir as coisas para<br />

melhor percebê-las.<br />

N° 18 | Setembro de 2012<br />

pais tendências de seus alunos em relação<br />

às manifestações dos canais perceptivos<br />

para uma reflexão sobre as estratégias de<br />

ensino implementadas nas aulas.<br />

Por regra, no início do ano letivo, aplico<br />

o teste dos canais de percepção com os<br />

alunos para traçar um panorama em função<br />

dos canais mais e menos representativos<br />

na turma. A partir disso, consigo melhor<br />

planejar as aulas em virtude dos dados<br />

apontados no teste. Geralmente, não há um<br />

canal predominante numa turma. Nesse<br />

sentido, o intuito é ‘falar’ a mesma língua<br />

do aluno, e também estimular/aguçar 3 o<br />

canal menos utilizado por este ou aquele<br />

aluno. Na prática, o trabalho não é simples,<br />

pois se há a incidência de alunos com predominância<br />

em diferentes canais, este fato<br />

exige do educador uma atenção maior nos<br />

encaminhamentos metodológicos.<br />

É possível afirmar que o professor deveria<br />

ter os três canais perceptivos com<br />

porcentagens iguais, pois assim este profissional<br />

iria atuar e propor trabalhos a partir<br />

do auditivo, sinestésico e visual. Robbins<br />

(1987) afirma que uma mudança qualitativa<br />

no processo de ensino e na aprendizagem<br />

acontece quando o professor propõe “[...]<br />

alguma coisa visual, alguma coisa auditiva<br />

e alguma coisa sinestésica. Deve mostrarlhes<br />

coisas, fazer com que ouçam coisas e<br />

dar-lhes sensações. [...] deve ser capaz de<br />

variar sua voz e entonações, para prender<br />

todos os três tipos” (p. 142). Ainda o autor<br />

acrescenta que “Quase todos os garotos<br />

que fracassam em nossos sistemas educacionais<br />

são capazes de aprender. Nós,<br />

simplesmente, nunca aprendemos como<br />

ensiná-los. Nunca estabelecemos harmonia<br />

com eles e nunca igualamos suas estratégias<br />

de aprendizado” (p. 236).<br />

Previamente, no ensino do teatro os<br />

três canais de percepção são utilizados a<br />

todo tempo, pois, em geral, as atividades<br />

cênicas envolvem os recursos auditivos, sinestésicos<br />

e visuais. Embora o teatro já trate<br />

de englobar os canais perceptivos por exce-<br />

3 Os estudos da neurolinguística apontam atividades para desenvolver um canal de<br />

percepção subdesenvolvido. O trabalho é equilibrar os três canais para ampliar a<br />

percepção sensorial com base numa consciência dos sentidos.<br />

Robson Rosseto<br />

N° 18 | Setembro de 2012<br />

lência, esse fato não garante o emprego de<br />

todos os canais pelo professor. De certo, o<br />

docente que tiver um dos canais menos dominante<br />

pouco irá envolver este canal em<br />

suas práticas. Como se nota, a autoanálise<br />

com base nos canais de percepção poderá<br />

fazer a diferença na profissão de professor.<br />

A propósito, sugiro algumas questões para<br />

reflexão:<br />

• Como meu próprio perfil de percepção<br />

afeta meu estilo de ensino<br />

na sala de aula?<br />

• Como os meus canais de percepção<br />

desenvolvidos e subdesenvolvidos<br />

afetam aquilo que eu<br />

coloco no meu trabalho como<br />

educador, ou mantêm fora dele?<br />

• Que tipos de métodos ou materiais<br />

de ensino eu evito porque envolvem<br />

o uso do meu canal de percepção<br />

subdesenvolvido?<br />

• Que coisas eu faço especialmente<br />

bem em virtude de um ou de dois<br />

de meus canais mais desenvolvidos?<br />

Essas indagações poderão orientar os<br />

processos de formação, com o intuito de<br />

priorizar uma uniformidade de uso dos canais<br />

de percepção no processo de ensino.<br />

Tomando-se por base o momento que comecei<br />

a pôr em prática o estudo dos canais<br />

de percepção, os resultados foram significativos<br />

no meu exercício docente. O auditivo<br />

é o canal perceptivo menos aguçado<br />

e por consequência o menos utilizado por<br />

mim, portanto, no processo de preparar<br />

uma aula prática de teatro, por exemplo,<br />

dava maior importância para os recursos<br />

visuais (imagens projetadas, fotografias,<br />

observação do espaço, etc.) e para os estímulos<br />

sinestésicos (trabalho com o corpo,<br />

respiração, manipulação de objetos, cheiros,<br />

etc.).<br />

A partir disso, percebi que poucas vezes<br />

a minha atenção se direcionou para as<br />

questões auditivas no ato de preparar as<br />

aulas. Com frequência, no momento da<br />

aula prática, os recursos sonoros que utilizava<br />

eram aleatórios, ou seja, simplesmente<br />

colocava uma música durante a dinâmi-<br />

A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA: OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

ca ou jogo teatral. Posteriormente, a partir<br />

de um trabalho reflexivo sobre as minhas<br />

escolhas para a preparação das atividades,<br />

ficou evidente a minha carência de atenção<br />

para o som nas minhas opções.<br />

Atualmente, após contínuo esforço<br />

para aguçar o meu canal auditivo, ao delinear<br />

uma aula, priorizo uma música ou um<br />

ruído de acordo com os objetivos do jogo,<br />

da cena, do exercício. Nesse sentido, consigo<br />

melhores resultados. De acordo com<br />

Barbosa,<br />

A atividade de aprendizagem vai<br />

ser fortemente influenciada pelo<br />

uso dos canais de percepção preferenciais<br />

do educando, por exemplo,<br />

um educador precisa saber falar no<br />

canal auditivo (“auditivêz”), quando<br />

explica algo para um educando<br />

que prioriza o ouvido para receber<br />

informação. O mesmo educador<br />

precisará saber falar no canal visual<br />

(“visualêz”), quando tenta ensinar<br />

algo para um educando que prioriza<br />

o canal visual para internalizar o<br />

conhecimento. Também precisará<br />

saber falar no canal sinestésico (“sinestesiquêz”)<br />

para conseguir uma<br />

compreensão adequada daquilo que<br />

está tentando ensinar para um educando<br />

que prefere aprender fazendo,<br />

sentindo a matéria, cheirando ou<br />

provando o conteúdo (2008).<br />

Portanto, é muito importante aprender<br />

a identificar o canal prioritário do aluno e<br />

usá-lo para a emissão de mensagem, tornando<br />

mais fácil o processo de recepção e<br />

entendimento, aumentando a compreensão<br />

e a aprendizagem. No ensino do teatro,<br />

no momento da explicação de um jogo ou<br />

exercício, por exemplo, explicar os direcionamentos<br />

com exatidão é fundamental,<br />

pois se alguma dúvida estiver presente, a<br />

proposta poderá não surtir o efeito esperado.<br />

4 Nesse sentido, o professor, ao fa-<br />

4 Durante as aulas laboratório, em que alunos ministram atividades teatrais para<br />

seus colegas de sala, é importante notar que no final do processo, durante o momento<br />

da avaliação em grupo, os apontamentos geralmente são referentes à falta<br />

de clareza nas explicações das metodologias por aquele que está ministrando a<br />

aula. Quando isso ocorre, torna-se evidente no decorrer da aula que os alunos<br />

partícipes não permanecem concentrados, numa tentativa de compreender melhor<br />

o direcionamento dado pelo aluno/docente.<br />

89


<strong>Urdimento</strong><br />

90<br />

zer uso dos canais de percepção durante o<br />

processo de ensino, sem dúvida, estimula<br />

o interesse e o entendimento do aluno, um<br />

auxílio a mais para um melhor encaminhamento<br />

das atividades teatrais.<br />

Além disso, utilizar recursos da engrenagem<br />

teatral para criar a atmosfera da<br />

cena na escola, com instrumentos de percussão,<br />

luz, cenários, figurinos, etc., engaja<br />

mais o aluno nas proposições da aula.<br />

Com uma prática que busca determinar o<br />

mesmo universo do espetáculo no espaço<br />

da escola, certamente, o professor estará<br />

estimulando um efeito estético, obtido com<br />

base numa determinada organização de<br />

elementos sensoriais. Em decorrência do<br />

clima alcançado, os alunos serão envolvidos,<br />

provavelmente, através dos canais de<br />

percepção por uma recepção subsidiada<br />

pelas cores, formas, timbres, movimentos,<br />

etc.<br />

Deste modo, os impactos causados na<br />

elaboração de encaminhamentos teatrais<br />

tomando-se por base as possibilidades sensoriais,<br />

em razão das carências artísticas<br />

que a escola declara, permitem uma implicação<br />

de propostas cênicas mais convincentes.<br />

A sedução deve permear o trabalho<br />

com o teatro na escola, caso contrário, as<br />

propostas cênicas dificilmente atingirão<br />

plenamente o envolvimento dos alunos.<br />

O professor em processo de formação<br />

precisa valer-se desse desenvolvimento<br />

para pesquisar: experimentar e checar alternativas<br />

metodológicas. Se os canais de<br />

percepção forem utilizados em pesquisa<br />

contínua – primeiramente, por meio do autoconhecimento<br />

do docente e de seus alunos,<br />

para em seguida através de um melhor<br />

entendimento sobre os processos de<br />

interpretar e organizar os estímulos sensoriais<br />

recebidos –, certamente, a qualidade<br />

da aula será outra.<br />

Diante disso, faz sentido buscar o desenvolvimento<br />

e uma consciência desse<br />

processo sob uma forma reflexiva. As experiências<br />

significativas provêm das ações<br />

diante das sensações, basta identificarmos<br />

os caminhos pelos quais foram utilizados<br />

os canais perceptivos pelos docentes em<br />

N° 18 | Setembro de 2012<br />

nossa trajetória de aprendizagem. É preciso<br />

a disposição do professor para rever<br />

e avaliar constantemente tradições pedagógicas,<br />

uma vez que elas parecem insuficientes<br />

para responder aos novos desafios<br />

da educação. Nesta perspectiva, acredito<br />

que o ensino do teatro sendo pensado em<br />

conjunto com os canais de percepção pode<br />

contribuir e ser um caminho para refletir<br />

a formação inicial do professor na linguagem<br />

teatral e do professor em exercício.<br />

Robson Rosseto<br />

N° 18 | Setembro de 2012<br />

REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS<br />

A FORMAçãO DOS PROFESSORES E A PRáTICA REFLEXIVA: OS CANAIS DE PERCEPçãO NO ENSINO DO TEATRO<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

BARBOSA, Adelson Cândido. Tecnologias de Transformação do ser. Blumenau: [s.n.], 2008. (Apostila do Curso<br />

Estratégias de Aprendizagem, TECTRANS)<br />

HERNÁNDEZ, Fernando. Como os docentes aprendem. Pátio revista pedagógica, Ano 1, nº 4, Fevereiro/Abril,<br />

p.9-13, 1998.<br />

PERRENOUD, Philippe. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionalização e razão pedagógica. Tradução<br />

de Cláudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2002.<br />

PIMENTA, Selma Garrido; LIMA; Maria do Socorro Lucena. Estágio e Docência. São Paulo: Cortez, 2004. (Coleção<br />

docência em formação. Série saberes pedagógicos)<br />

ROBBINS, Anthony. Poder sem limites. Tradução de Muriel Alves Brazil. 11. ed. São Paulo: Best Seller, 2009.<br />

91


N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE,<br />

Resumo<br />

Este artigo apresenta uma revisão bibliográfica dos<br />

conceitos de identidade, subjetividade e diferença a partir<br />

da perspectiva educacional pós-crítica, com o intuito<br />

de refletir sobre os paradigmas com os quais o professor<br />

se depara no contexto escolar e cogitar de que<br />

maneira a prática teatral pode se relacionar com estas<br />

questões e dar voz social ao estudante.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Identidade; subjetividade; teatro na escola.<br />

Resumo<br />

This article presents a review of the concepts of identity,<br />

subjectivity and difference from the post-critical<br />

educational perspective, in order to reflect on the<br />

paradigms that the teacher faces in the school context and<br />

to consider how the theatrical practice can relate to these<br />

social issues and give voice to the student.<br />

KEywoRdS: Identity; Subjectivity; Theatre in the school.<br />

1 Texto revisado da dissertação “O espaço sonoro em processos de drama: a voz e os ruídos na construção<br />

de narrativas teatrais no contexto escolar”, defendida no PPGT/UDESC em 2010.<br />

2 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Teatro da UDESC. Atriz e Arte – educadora, atua em<br />

escolas e projetos de educação sociocultural.<br />

SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 1<br />

Raquel Guerra 2<br />

A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 93


<strong>Urdimento</strong><br />

94<br />

I – Introdução: a ruptura de paradigmas<br />

A<br />

pesquisa bibliográfica está desenvolvida<br />

a partir de duas<br />

questões amplas: como o processo<br />

educacional se relaciona com<br />

a constituição da subjetividade e<br />

identidade do educando? Quais as convergências<br />

destes aspectos para a experiência<br />

artística/teatral desenvolvida no contexto<br />

escolar?<br />

Segundo conceituações contemporâneas<br />

em torno da primeira questão, já não<br />

é possível pensar os conceitos de identidade<br />

e subjetividade como uma parte estável<br />

e centrada do sujeito. Tomaz Tadeu<br />

(2000; 1994) e Stuart Hall (2000; 2001), em<br />

abordagens acerca do pós-estruturalismo<br />

e pós-modernismo3 revelam que o descentramento<br />

da consciência e do sujeito indica<br />

a instabilidade das próprias estruturas<br />

nas quais os sujeitos contemporâneos estão<br />

constituídos, noutras palavras, o mundo<br />

globalizado imprimiu às sociedades mudanças<br />

constantes e rápidas, ao mesmo<br />

tempo em que as diversidades existentes<br />

entre as sociedades e dentro delas foram<br />

expostas. A respeito da segunda questão, é<br />

pertinente considerar que “o ensino do teatro,<br />

na escola e na comunidade, reflete as<br />

formas teatrais contemporâneas ao mesmo<br />

tempo em que responde aos avanços das teorias<br />

da educação.” (CABRAL, 2009, p.39).<br />

Neste sentido, o texto apresenta o pensamento<br />

da teoria educacional pós-crítica na<br />

intenção de confrontá-lo com o ensino do<br />

teatro na escola.<br />

Ao discorrer sobre a diversidade cultural<br />

no contexto da escola obrigatória e da<br />

educação em tempo de globalização, Gimeno<br />

Sacristán (2001) destaca um dos desafios<br />

educacionais contemporâneos: como abordar<br />

a diversidade quando o processo de<br />

escolarização se apresenta rígido quanto às<br />

normas igualadoras, ou seja, “uma escola comum<br />

que satisfaça o ideal de uma educação<br />

igual para todos [...] na paisagem social das<br />

sociedades modernas, acolhendo sujeitos<br />

3 Sobre os termos e sua relação com campo educacional, ver TADEU (1994;<br />

2000) e GIROUX (1999).<br />

muito diferentes, parece uma contradição<br />

ou uma impossibilidade.” (SACRISTáN,<br />

2001, p. 71-72).<br />

Somos únicos porque somos ‘variados’<br />

internamente, porque somos<br />

uma combinação irrepetível de condições<br />

e qualidades diversas, não de<br />

todo estáticas, o que nos torna também<br />

diferentes em relação a nós mesmos<br />

ao longo do tempo e segundo<br />

as circunstâncias em mudanças que<br />

nos afetam. Nas condições sociais e<br />

culturais da pós-modernidade, essa<br />

complexidade e instabilidade de cada<br />

pessoa são acentuadas consideravelmente,<br />

diante da variedade de relações<br />

que estabelecemos em contextos<br />

mutantes. (SACRISTÁN, 2001,<br />

p. 73-74).<br />

O termo diversidade comumente aparece<br />

associado à noção de identidade pós-moderna,<br />

sobretudo nos escritos do movimento<br />

multiculturalista, que considera a diversidade<br />

como uma “coexistência de diferentes e<br />

variadas formas (étnicas, raciais, de gênero,<br />

sexuais) de manifestação da existência humana,<br />

as quais não podem ser hierarquizadas<br />

por nenhum critério absoluto ou essencial”<br />

(TADEU, 2000, p.44). Nesse caso, a diversidade<br />

está entendida como uma característica<br />

da sociedade contemporânea. O autor<br />

ressalta, porém, que o termo pode perder<br />

relevância teórica em função da ideia que<br />

“a diversidade está dada, que ela preexiste<br />

aos meios sociais pelos quais – numa outra<br />

perspectiva – ela foi, antes de qualquer coisa,<br />

criada” (TADEU, 2000, p. 44). Desse modo,<br />

sugere a utilização do conceito de diferença,<br />

“por enfatizar o processo social de produção<br />

da diferença e da identidade em suas conexões,<br />

sobretudo, com relações de poder e autoridade.”<br />

(TADEU, 2000, p. 45). Portanto, a<br />

diversidade cultural não deve ser compreendida<br />

como um fenômeno social dado, estático,<br />

mas sim, deve estar associada ao processo<br />

social de formação da identidade, posto que<br />

este seja atrelado às questões de diferença.<br />

Para Henry Giroux (1997), a diversidade<br />

cultural nos processos educacionais<br />

deve ser valorizada como uma forma de<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Raquel Guerra<br />

luta contra a hegemonia cultural, esta compreendida<br />

como a estruturação de “um<br />

aparato cultural que promove o consenso<br />

através da reprodução e distribuição dos<br />

sistemas dominantes de crenças e atitudes.”<br />

(GIROUX, 1997, p.113). O autor atenta<br />

para a ocorrência desta relação de dominação/subordinação<br />

no meio escolar e<br />

reforça a necessidade de o educador situarse<br />

diante dela ciente de sua existência nas<br />

experiências pedagógicas.<br />

As Escolas são lugares sociais constituídos<br />

por um complexo de culturas<br />

dominantes e subordinadas, cada<br />

uma delas caracterizada por seu poder<br />

em definir e legitimar uma visão<br />

específica da realidade. Os professores<br />

e aqueles interessados em educação<br />

devem passar a compreender<br />

como a cultura dominante funciona<br />

em todos os níveis de ensino escolar<br />

para invalidar as experiências<br />

culturais das ‘maiorias excluídas’.<br />

(...) para os professores isso significa<br />

examinar seu próprio capital cultural<br />

e examinar o modo no qual este<br />

beneficia ou prejudica os estudantes.<br />

(GIROUX, 1997, p. 38).<br />

Consoante o pensamento destes autores,<br />

o texto expõe algumas definições para<br />

os conceitos de identidade e subjetividade<br />

que expressam conexões com as experiências<br />

pedagógicas na escola e que implicam<br />

uma atitude auto reflexiva do professor<br />

sobre sua própria prática e as relações que<br />

nela se estabelecem, muitas vezes, de forma<br />

silenciosa. Nesse sentido, as colocações teóricas<br />

são referentes ao papel do professor<br />

em geral, mas o contexto deve ser lido também,<br />

e principalmente, considerando-se o<br />

professor de teatro.<br />

II- Identidade, subjetividade e diferença<br />

A subjetividade, para Edgar e Sedgwick<br />

(2003, p. 326), pode ser entendida como<br />

“a propriedade de ser sujeito”, todavia, tal<br />

propriedade não é dada e sim “constituída<br />

por formas e relações sociais”, ou seja, “as<br />

concepções de subjetividade são dependentes<br />

de fatores políticos, sociais e culturais”,<br />

de modo que “a subjetividade não<br />

pode ser tomada como algo independente<br />

das formas de linguagem; pelo contrário,<br />

a subjetividade é constituída tanto dentro<br />

quanto por meio do ato da fala”. (EDGAR<br />

E SEDGWICK , 2003, p. 326). Segundo Tomaz<br />

Tadeu (2000), o entendimento contemporâneo<br />

para subjetividade e identidade<br />

indica mobilidade e fragmentação,<br />

diferenciando-se da concepção humanista<br />

do sujeito, que via o indivíduo “constituído<br />

de um núcleo autônomo, racional, consciente<br />

e unificado”. (TADEU, 2000, p. 102).<br />

As velhas identidades, que por<br />

tanto tempo estabilizaram o mundo<br />

social, estão em declínio, fazendo<br />

surgir novas identidades<br />

e fragmentando o indivíduo moderno,<br />

até aqui visto como um sujeito<br />

unificado. A assim chamada<br />

‘crise da identidade’ é vista como<br />

parte de um processo mais amplo<br />

de mudança, que está deslocando<br />

as estruturas e processos centrais<br />

das sociedades modernas e abalando<br />

os quadros de referência que<br />

davam aos indivíduos uma ancoragem<br />

estável no mundo social.<br />

(HALL, 2001, p. 7)<br />

Consoante Tadeu (2000, p. 100), as críticas<br />

pós-moderna e pós-estruturalista efetuam<br />

um duplo descentramento do sujeito<br />

cartesiano: primeiro, o homem não ocupa<br />

mais a posição de centro do universo, já que<br />

este lugar foi cedido à sociedade, à linguagem<br />

e à história; segundo, a subjetividade<br />

perde seu sentido enquanto uma propriedade<br />

que pertence ao sujeito e passa a ser<br />

vista como resultante de processos inconscientes<br />

que o interpelam. A racionalidade e<br />

a consciência de ‘si’ mesmo já não tem lugar<br />

na teoria educacional pós-crítica, posto<br />

que o ‘si’ mesmo, o self, não é propriedade<br />

ou domínio do sujeito, mas resultante de<br />

suas relações socioculturais. “O Self é socialmente<br />

‘construído’, no sentido de ser<br />

moldado através de interação com outras<br />

pessoas e por utilizar materiais sociais sob<br />

A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 95


<strong>Urdimento</strong><br />

96<br />

a forma de imagens e ideias culturais. [...]<br />

o indivíduo não é um participante passivo<br />

desse processo, e pode exercer uma influência<br />

muito forte sobre a maneira como o<br />

processo e suas consequências se desenvolvem.”<br />

(EDGAR e SEDGWICK, 2003, p.<br />

204). Sacristán (2001), ao discutir sobre estas<br />

relações que marcam o indivíduo e que<br />

se formam no processo de escolarização,<br />

reflete acerca do conceito de identidade e<br />

acrescenta que:<br />

A partir de um ponto de vista pósmoderno,<br />

a identidade não é algo<br />

unificado, definitivo e fixado de uma<br />

vez por todas, mas sim algo em constante<br />

transformação, de sorte que o<br />

sujeito assume diferentes identidades<br />

em momentos e lugares distintos. Se<br />

o sujeito se crê dotado de uma identidade<br />

determinada não é porque a<br />

possua. Mas sim consequência da<br />

narração de sua vida que se representa<br />

diante de si. Essa forma de entender<br />

a identidade é coerente com<br />

o tipo de sociedade em mudança na<br />

pós-modernidade. (SACRISTÁN,<br />

2001, p.44)<br />

Diante das definições que cercam estes<br />

conceitos, como pensar a identidade e<br />

a subjetividade que se deixa evidenciar na<br />

sala de aula? Seria possível identificar estas<br />

questões na prática teatral? Sacristán (2001)<br />

reflete sobre as relações que, no interior escolar<br />

dão suporte a essa representação de si<br />

e de uma suposta identidade fixa do sujeito:<br />

o menino ‘lento’ passa a crer que é pouco inteligente,<br />

que não é capaz. A escola (colegas<br />

e professores) reforça esta característica que<br />

lhe é atribuída. Mas será que essa é realmente<br />

a sua identidade? Será que ela não tem<br />

voz ou não tem uma escuta que reconheça<br />

essa voz com suas particularidades, diferenças<br />

e peculiaridades culturais? Nesse caso,<br />

compreende-se a identidade através das<br />

inter-relações com os locais históricos e institucionais<br />

que as produzem “e são, assim,<br />

mais o produto da marcação da diferença e<br />

da exclusão do que o signo de uma unidade<br />

idêntica, naturalmente constituída, de uma<br />

identidade em seu significado tradicional”<br />

(HALL, 2000, p.109).<br />

A educação não pode ser uma tentativa<br />

de homogeneizar, pois as diferenças<br />

podem interagir umas com as outras<br />

e o conflito oriundo delas não pode ser<br />

ignorado. A problemática do processo<br />

de escolarização, presente em Giroux<br />

(1997) e em Sacristán (2002), é o contraste<br />

oriundo de uma cultura dominante e a<br />

diversidade de manifestações que fazem<br />

obstáculos a ela – tal oposição é definida<br />

como resistência 4 por Henry Giroux.<br />

Noutras palavras, a escola é um espaço<br />

de convívio sociocultural que produz<br />

uma infinidade de narrativas, estas autorizam/aprovam<br />

uma série de atitudes<br />

e valores culturais ao mesmo tempo desaprovam<br />

e recriminam outros. Consoante<br />

Henry Giroux (1999), a noção de<br />

diferença pode ser explorada através de<br />

uma pedagogia que dê voz ao aluno e<br />

não reduza o comportamento humano<br />

a padrões determinantes nem legitime<br />

apenas um modo de ser. “A noção da<br />

diferença tem desempenhado um papel<br />

‘importante em tornar visível como o<br />

poder é inscrito de maneiras diferentes<br />

em e entre as zonas de cultura, como as<br />

fronteiras culturais suscitam questões<br />

importantes com respeito às relações de<br />

desigualdade, luta e história, e como as<br />

diferenças são expressas de maneiras<br />

múltiplas e contraditórias dentro dos indivíduos<br />

e entre grupos diferentes.” (GI-<br />

ROUX, 1999, p.197).<br />

Diante deste contexto teórico, lanço<br />

algumas perguntas: poderia o teatro na<br />

escola, com sua poética subversiva, ser<br />

pensado como resistência? A variedade<br />

de práticas teatrais e suas poéticas podem<br />

contribuir como resistência a uma<br />

possível hegemonia cultural? A constante<br />

reprodução, durante as improvisações<br />

teatrais com alunos de ensino fundamental,<br />

dos modelos televisivos e cine-<br />

4 O conceito de resistência desenvolveu-se na teoria educacional crítica em<br />

contraste às teorias da reprodução e à ideia da passividade da ação humana<br />

diante das forças sociais opressoras. “Mais recentemente, algumas análises<br />

têm-se voltado para a concepção de resistência oferecida por Michel Foucault,<br />

para quem o poder implica, sempre, resistência”(Tadeu, 2000, p. 98). Esta é,<br />

particularmente, a análise de Giroux, que se apoia nas noções foucaultianas<br />

do contradiscurso e do poder como força positiva para pensar o conceito<br />

de resistência na escola.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Raquel Guerra<br />

matográficos, de personagens e modos<br />

de interpretação, poderia ser vista como<br />

uma forma de hegemonia cultural? Qual<br />

o papel do professor de teatro diante<br />

desta situação? Longe de esgotar as possibilidades<br />

de respostas a estas questões<br />

amplas, a citação abaixo aponta para<br />

possíveis pontos a partir dos quais tais<br />

questões possam ser [re]pensadas.<br />

Quer se fale de jogo dramático,<br />

jogo teatral ou drama, não<br />

há como deixar de reconhecer o<br />

papel central das interações do<br />

fazer teatral com outras áreas<br />

de conhecimento. Processos de<br />

montagem, criação coletiva, investigações<br />

cênicas, interagem<br />

com temáticas, ideias, imagens.<br />

Seu diretor/professor media as<br />

interações entre os participantes,<br />

e destes com o espaço, o tempo,<br />

a cena, o contexto da ficção. É<br />

a partir desta constatação que se<br />

deve pensar no papel do professor.<br />

O cruzamento de áreas e subáreas<br />

do conhecimento no fazer<br />

teatral, aponta para a interdisciplinaridade.<br />

A heterogeneidade<br />

do grupo indica uma abordagem<br />

intercultural. Entretanto, o professor<br />

de teatro, por um lado, é<br />

pressionado a decorar e animar<br />

as datas comemorativas, por outro<br />

lado, vê seu espaço de atuação<br />

ser considerado descartável (...).<br />

A complexidade deste quadro,<br />

que persiste nos dias atuais, requer<br />

uma reflexão sobre a postura,<br />

atitudes e ações do professor<br />

no campo da escola. (CABRAL,<br />

2008, p.43).<br />

No pensamento de Giroux (1999; 1997),<br />

a experiência pedagógica na escola está associada<br />

à prática do professor como um Intelectual<br />

Transformador 5 que, para o autor, refere-se<br />

à construção de uma pedagogia em sala de<br />

5 A noção de Intelectual Transformador (educadores e pesquisadores<br />

educacionais) de Henry Giroux (1997) está associada a uma série de<br />

considerações em torno de uma Política Educacional que reavalie a<br />

participação do professor em diversas esferas, desde a elaboração de<br />

currículo e normativas às práticas em sala de aula. Em minha pesquisa, detiveme<br />

às considerações do autor sobre o Intelectual Transformador e sua<br />

relação com a experiência pedagógica.<br />

aula que seja uma experiência que dá voz ao<br />

estudante, por isso, o educador deve atentar<br />

para as formas pelas quais as subjetividades<br />

são construídas e legitimadas, como a experiência<br />

dentro da escola é moldada, como certos<br />

aparatos de poder legitimam uma versão<br />

particular do conhecimento como verdade<br />

(GIROUX, 1997, p.31).<br />

O ensino de Teatro na Escola, quando<br />

reproduzido segundo as “inúmeras<br />

visões preconcebidas que reduzem a atividade<br />

artística na escola a um verniz de<br />

superfície, que visa as comemorações de<br />

datas cívicas” (PCN/ARTES, 1997, p.31)<br />

não seria uma forma de inibir a voz social<br />

do aluno? Nesse sentido, a reflexão sobre<br />

o ‘como ensinar’ o teatro na escola é tão<br />

indispensável de ser revisto e repensado<br />

como ‘o que ensinar’ ou ‘que técnica usar’.<br />

Nessa reflexão, os Parâmetros Curriculares<br />

Nacionais indicam que o professor de<br />

artes deve ser visto como um observador<br />

das questões de interesse dos alunos,<br />

como um criador das situações de aprendizagem<br />

do conhecimento arte. Segundo<br />

Fusari e Ferraz (1993, p. 53) o professor<br />

que ministra uma disciplina de artes não<br />

deve apenas saber o que é ou como fazer<br />

arte, ele também precisa ‘saber ser professor<br />

de arte’ e compreender as particularidades<br />

que o processo de aprendizagem<br />

criativa em um grupo demanda: “O<br />

professor de arte precisa saber o alcance<br />

de sua ação profissional, ou seja, saber<br />

que pode concorrer para que seus alunos<br />

também elaborem uma cultura estética e<br />

artística que expresse com clareza a sua<br />

vida na sociedade.” (FUSARI E FERRAZ,<br />

1993, p. 53). A prática na sala de aula, a<br />

forma como a experiência pedagógica<br />

é moldada e as posições e papéis que o<br />

professor assume são poderosos vetores<br />

na legitimação das experiências subjetivas<br />

dos alunos no cotidiano escolar, seja<br />

ela uma forma de emancipação ou reprodução<br />

de um capital dominante. Por isso,<br />

o teatro como disciplina do conhecimento<br />

escolar também necessita refletir tais<br />

questões em sua prática pedagógica.<br />

Segundo Gadotti (1998, p.192), a teo-<br />

A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 97


<strong>Urdimento</strong><br />

98<br />

ria de Giroux não se limita à constatação<br />

de que a escola é um órgão institucional<br />

que apenas reproduz a sociedade dominante,<br />

pois ele toma “os conceitos de conflito<br />

e resistência como ponto de partida<br />

para suas análises” para compreender as<br />

relações entre escolarização e sociedade<br />

dominante e evidenciar que, mesmo não<br />

fazendo parte de uma ‘cultura dominante’<br />

e, portanto institucionalizada, as<br />

expressões culturais diferentes, ou seja,<br />

aquelas que não fazem parte do rol de<br />

‘manifestações da cultura dominante’,<br />

elas também têm voz. No âmbito destas<br />

colocações, visualizo o processo artístico<br />

na escola como uma prática pedagógica<br />

que gera um espaço para estas diversas<br />

vozes. Gimeno Sacristán (2001) acentua<br />

que “as práticas educativas – sejam as da<br />

família, as das escolas ou as de qualquer<br />

outro agente – enfrentam a diversidade<br />

como um dado da realidade.” (SACRIS-<br />

TáN, 2001, p.75). Esta diversidade cultural,<br />

no processo da escolarização, não<br />

pode ser homogeneizada por uma norma<br />

padrão.<br />

Na vida social, governada por<br />

procedimentos democráticos, a<br />

diversidade social, de opiniões<br />

quanto a modelos de vida, etc.<br />

é abordada com a prática da tolerância,<br />

da aceitação de normas<br />

compartilhadas que obrigam os<br />

indivíduos a algumas renúncias,<br />

respeitando espaços para a expressão<br />

e cultivo das individualidades<br />

singulares. A escola, cuja<br />

estruturação é anterior à aceitação<br />

do modelo democrático, elegeu o<br />

caminho da submissão do diferente<br />

à norma homogeneizadora.<br />

(SACRISTÁN, 2001, p. 76).<br />

A voz do aluno diante deste contexto<br />

representa, ou pode representar a diversidade,<br />

a peculiaridade e particularidade<br />

de opiniões, crenças, modelos de<br />

vida, etc. jamais uma norma padrão. Será<br />

o processo artístico capaz de dar vazão a<br />

essa variedade? Que voz do estudante é<br />

essa? Uma voz institucionalizada? A voz<br />

de cada aluno na sala de aula? Henry Giroux<br />

(1997) analisa, a partir da teoria da<br />

reprodução, as formas pelas quais as escolas<br />

transmitem, reproduzem e legitimam<br />

a cultura dominante. O Capital Cultural 6 ,<br />

segundo a teoria da reprodução de Pierre<br />

Bourdieu, refere-se aos bens culturais que<br />

são fornecidos como o capital material,<br />

mas que se referem a valores, estilos, práticas<br />

de linguagens, etc. Conforme Gadotti<br />

(1998, p. 195), o ponto de partida para a<br />

análise de Bourdieu está na relação entre<br />

os sistemas social e escolar. No entanto,<br />

não é a mera diferenciação de classe que<br />

irá definir o sucesso ou o fracasso escolar<br />

dos indivíduos, mas sim sua relação com<br />

a herança cultural: “a cultura das classes<br />

superiores estaria tão próxima da cultura<br />

da escola que a criança originária de um<br />

meio social inferior não poderia adquirir<br />

senão a formação cultural que é dada aos<br />

filhos da classe culta. Portanto, para uns,<br />

a aprendizagem da cultura escolar é uma<br />

conquista duramente obtida; para outros é<br />

uma herança ‘normal’, que inclui a reprodução<br />

das normas. O caminho a percorrer<br />

é diferente, conforme a classe de origem.”<br />

(GADOTTI, 1998, p.195).<br />

Diante da hegemonia cultural que tende<br />

a igualar os sujeitos, uma alternativa<br />

elencada por Giroux (1997) está na constante<br />

reflexão que o educador deve ter<br />

sobre si e suas experiências pedagógicas.<br />

Tomaz Tadeu (1994, p. 251), ao analisar o<br />

papel do professor, reforça que “é sua própria<br />

relação com os estudantes que deve<br />

ser mantida constantemente em xeque,<br />

tendo em vista seu possível envolvimento<br />

em processos de regulação e controle”.<br />

Nesse caso, o professor enquanto um intelectual,<br />

“não se reconhece tanto pelo grau<br />

de sua crítica em relação às posições de poder<br />

e dos outros quanto pelo grau de sua<br />

6 Na teoria de Bourdieu, associados ao conceito de capital cultural, estão o<br />

capital simbólico e o capital social. Segundo definições de Tomaz Tadeu<br />

(2000, p. 24-25): “O capital cultural pode se apresentar de forma objetivada<br />

(objetos culturais como obras de arte, livros, discos); institucionalizada<br />

(títulos, certificados e diplomas); ou incorporada (disposições e capacidade<br />

culturais internalizadas)”; o capital simbólico é “a autoridade, a legitimidade<br />

e o prestígio sociais conferidos ao agente possuidor de capital econômico,<br />

social ou cultural”. E o capital social “refere-se às conexões sociais – redes<br />

de amizade, parentesco, influência e troca de favores – através dos quais as<br />

classes sociais dominantes garantem suas posições de dominação”.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Raquel Guerra<br />

auto reflexividade.” (TADEU, 1994, p. 252).<br />

Nesse contexto, quais as condições que o<br />

professor de teatro encontra na escola para<br />

a reflexão de sua própria ação pedagógica?<br />

Infelizmente,<br />

“o ensino do teatro (e a escola em<br />

geral) padece com a falta de investimento<br />

em formação continuada e<br />

atualização do professor. Com sobrecarga<br />

de turmas e uma disciplina que<br />

envolve movimento, som, reformulação<br />

do espaço disponível e trabalho<br />

em grupos, o professor de teatro acaba<br />

reproduzindo uma relação ensinoaprendizagem<br />

que vai gradualmente<br />

estabelecendo uma rotina e se afastando<br />

da reflexão teórica e prática.”<br />

(CABRAL, 2008, p.43).<br />

III - Experiência pedagógica<br />

e processo artístico<br />

No tocante ao ‘dar a voz’ ao aluno, a<br />

sua expressão e presença no processo artístico<br />

podem indicar que o aluno assume um<br />

lugar, um espaço. Talvez possa dizer que<br />

seu envolvimento no fazer artístico revele<br />

inclusive uma forma de estar se posicionando<br />

diante do mundo, na proporção que<br />

tal fazer revela suas concepções de mundo,<br />

suas referências, seu capital cultural. No entanto,<br />

a participação do aluno no processo<br />

artístico será garantia que ele ‘tenha voz’<br />

no processo educacional? Não! O processo<br />

artístico como qualquer outra experiência<br />

pedagógica pode revelar-se ‘normatizante’<br />

e longe de valorizar as diferenças existentes<br />

no interior de uma classe de alunos. Quer<br />

dizer, a participação e expressão artística<br />

do aluno/ator não indicam ou garantem ao<br />

educador ‘dar voz social’ ao aluno. É nesse<br />

sentido que a citação anterior de Tomaz<br />

Tadeu (1994) está inserida: a necessidade de<br />

o educador, no caso o professor de teatro<br />

na escola, produzir uma autorreflexão de<br />

seu trabalho é o que lhe confere a condição<br />

de ‘intelectual transformador’. Questionado<br />

quanto à aprendizagem que ‘cala’ as vozes<br />

dos alunos, que não ‘dá voz’, Giroux (1999,<br />

p. 25) posiciona-se da seguinte forma: “Será<br />

que pode ocorrer aprendizagem se na verdade<br />

ela silencia as vozes das pessoas que<br />

pretende ensinar? E a resposta é: sim. As<br />

pessoas aprendem que elas não importam”.<br />

Trago um caso discutido junto ao grupo<br />

de estudos 7 que pode exemplificar esta<br />

exposição. Em um processo de Drama desenvolvido<br />

por Beatriz Cabral, com alunos<br />

de um colégio municipal de Florianópolis,<br />

há alguns anos, havia um menino maior<br />

que os demais da classe. Não apenas seu<br />

tamanho, mas também seu comportamento<br />

agitado e o fato de ter reprovado algumas<br />

vezes, faziam com que tal aluno fosse<br />

constantemente tido como ‘problema’, o<br />

aluno ‘reprovado’. No trabalho prático ele<br />

apresentou seu comportamento habitual<br />

em sala de aula: agitação, desordem, conversas<br />

para chamar a atenção, entre outras<br />

ações. Então lhe foi proposto outro papel:<br />

ele ganhou uma função importante, que<br />

nenhum outro aluno possuía, adquirindo<br />

uma função de status e responsabilidade<br />

frente aos demais. Ao fim do processo, o<br />

aluno surpreende: participa com envolvimento<br />

e escreve um texto sobre a atividade<br />

com muito empenho – o que veio a surpreender<br />

os profissionais da escola. Certamente,<br />

com esta descrição não pretendo<br />

concluir que o processo artístico modificou<br />

o comportamento do aluno, seria reducionista<br />

demais, porém, é possível dizer que<br />

o processo artístico permitiu uma variação<br />

no comportamento habitual do aluno.<br />

Este relato não descreve a mudança<br />

de comportamento do aluno em si, mas o<br />

sentido de ‘dar voz’ ao aluno. O exemplo<br />

pode analisar duas coisas: a primeira é o<br />

fato de que muitas vezes se atribui uma<br />

característica fixa a um aluno e toma-se<br />

isso como parte de sua identidade, ou<br />

seja, ‘ele é assim mesmo’. Outra questão é<br />

a inversão deste contexto no processo artístico<br />

e, talvez aí resida o poder do teatro<br />

na constituição subjetiva e de formação<br />

do aluno. Ou seja, o professor quando<br />

capaz de refletir e identificar as relações<br />

de poder, subordinação e exclusão que se<br />

7 Grupo de Estudos Pedagogia do Teatro e Teatro como<br />

Pedagogia DAC/UFSC e UDESC, 2007/2008.<br />

A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 99


<strong>Urdimento</strong><br />

100<br />

estabelecem na sala de aula pode propor<br />

atitudes/papéis/enquadramentos que<br />

possam romper ou gerar um conflito nestas<br />

‘identificações marcadas’, posto que o<br />

próprio conceito de identidade já não é<br />

mais visto como algo unificado.<br />

A ênfase no engajamento do professor<br />

em questões de ordem cultural e<br />

social é indispensável para a escola, ou<br />

seja, o educador não pode ignorar como<br />

essas questões dão condições a alguns e<br />

excluem outros no processo educacional.<br />

Moacyr Gadotti (1998) posiciona-se da seguinte<br />

maneira:<br />

Dadas as diferenças em formação<br />

e informação que a criança recebe,<br />

conforme sua posição na hierarquia<br />

social, ela traz um determinado<br />

‘capital cultural’ para a escola.<br />

Já que na escola a cultura burguesa<br />

constitui a norma, para as crianças<br />

das classes dominantes a escola<br />

pode significar continuidade, enquanto<br />

que para os filhos da classe<br />

dominada a aprendizagem se torna<br />

uma verdadeira conquista. (GA-<br />

DOTTI, 1998, p. 189)<br />

Estas relações, estabelecidas no interior<br />

da vida escolar, reforçam a importância de<br />

reavaliar a experiência pedagógica, local e<br />

particular ao grupo de indivíduos que participam<br />

na construção de um saber, o saber<br />

da experiência, conforme Jorge Larrosa<br />

Bondía (2001):<br />

A experiência, a possibilidade de<br />

que algo nos aconteça ou nos toque,<br />

requer um gesto de interrupção, um<br />

gesto que é quase impossível nos<br />

tempos que correm: requer parar<br />

para pensar, parar para olhar, parar<br />

para escutar, pensar mais devagar,<br />

olhar mais devagar, e escutar mais<br />

devagar; parar para sentir, sentir<br />

mais devagar, demorar-se nos detalhes,<br />

suspender a opinião, suspender<br />

o juízo, suspender a vontade,<br />

suspender o automatismo da ação,<br />

cultivar a atenção e a delicadeza,<br />

abrir os olhos e os ouvidos, falar<br />

sobre o que nos acontece, aprender<br />

a lentidão, escutar aos outros, cultivar<br />

a arte do encontro, calar muito,<br />

ter paciência e dar-se tempo e espaço.<br />

(BONDÍA, 2001, p.24).<br />

O sujeito desta experiência é definido<br />

segundo sua passividade, disponibilidade<br />

e abertura ao acontecimento da experiência.<br />

Contudo, Jorge Larrosa Bondía (2002,<br />

p. 25) destaca que tal passividade não é<br />

contrária ao sujeito ativo, mas anterior à<br />

própria oposição passividade-atividade.<br />

Trata-se, portanto, de uma passividade que<br />

concerne à paciência, atenção e disponibilidade<br />

à experiência. Na experiência teatral<br />

na escola, é necessário que o professor seja<br />

capaz de colocar-se também como sujeito<br />

desta experiência, para que possa construir<br />

um saber junto aos seus alunos, e isto poderá<br />

ser possível, mediante sua capacidade<br />

de olhar para seu papel e função dentro da<br />

escola e as possibilidades de o teatro existir<br />

dentro dela como uma experiência.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Raquel Guerra<br />

REfEREnCIAL<br />

BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais/Artes. Brasília: MEC,<br />

1997.<br />

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira<br />

de Educação. n. 19, p. 20-28, Jan/Fev/Mar/Abr, 2002.<br />

CABRAL, Biange. O professor-artista: perspectivas teóricas e deslocamentos históricos. (39- 48).<br />

URDIMENTO, Revista do Programa de Pós-Graduação em Teatro/UDESC. 2009.<br />

EDGAR, Andrew; SEDGWICK, Peter. Teoria social de A a Z. São Paulo: [s. n.], 2003.<br />

FUSARI, Maria de Rezende; FERRAZ, Maria Heloísa. A arte na educação escolar. São Paulo:<br />

Ed. Cortez, 1993.<br />

GADOTTI, Moacyr. História das Ideias Pedagógicas. São Paulo: ática, 1998.<br />

GIROUX, Henry A. Cruzando as fronteiras do discurso educacional: novas políticas em educação.<br />

Tradução de Magda França Lopes. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.<br />

_____________ Os professores como intelectuais: rumo a uma nova pedagogia crítica da aprendizagem.<br />

Tradução de Daniel Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.<br />

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.<br />

_____________ Quem precisa de Identidade? Artigo in Identidade e diferença, org. Tomaz<br />

Tadeu da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000.<br />

SACRISTáN, Gimeno. A Educação obrigatória. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.<br />

___________ Educar e conviver na cultura global. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.<br />

TADEU, Tomaz. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica,<br />

2000.<br />

_______________ (org) O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994.<br />

A VOz SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR: IDENTIDADE, SUBJETIVIDADE E DIFERENçA 101


N° 18 | Março de 2012<br />

A EXPERIMENTAçãO VOCAL NA COMPOSIçãO DA PERSONAGEM TEATRAL. CONFRONTANDO AS BARREIRAS DA PRECONCEPçãO DO TEXTO<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

A EXPERIMENTAçãO VOCAL NA COMPOSIçãO DA PERSONAGEM TEATRAL.<br />

CONFRONTANDO AS BARREIRAS DA PRECONCEPçãO DO TEXTO.<br />

Ágata Baú 1<br />

A fala não é um comentário, uma sombra do real, a<br />

moedagem do mundo em palavras, mas algo vindo ao<br />

mundo como que para nos arrancar dele.<br />

Resumo<br />

Este artigo trata de algumas questões sobre o trabalho vocal do<br />

ator que surgiram durante o processo de experimentação prática<br />

da pesquisa para a Dissertação de Mestrado “Imagens da pintura<br />

como estímulo para a composição da personagem teatral”. Trata<br />

principalmente do momento quando as atrizes que trabalharam<br />

nesta investigação começaram a colocar o texto junto com as matrizes<br />

corporais que haviam criado a partir de imagens da pintura. Indica os<br />

problemas e as estratégias utilizadas para contornar as dificuldades.<br />

Palavras-chave: teatro, ator, composição de personagem, voz.<br />

Resumo<br />

This article addresses some questions about the actor’s vocal<br />

work that emerged during the trial practice of research for<br />

the Dissertation “Images of the painting as a stimulus for the<br />

composition of theatrical character”. This is especially the<br />

moment when the actresses who worked on this research have<br />

begun to put the text together with the matrices that body had<br />

created from images of the painting. Indicates the problems<br />

and the strategies used to circumvent the difficulties.<br />

KEywoRdS: theater, acting, composing character, voice.<br />

1 Atriz e Mestre em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS, sob orientação da<br />

Professora Doutora Mirna Spritzer.<br />

2 NOVARINA, Valère. Diante da Palavra. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003. p.15.<br />

103


<strong>Urdimento</strong><br />

104<br />

São muitas as variáveis na relação<br />

entre a palavra escrita (o texto dramático,<br />

neste caso) e a palavra falada<br />

(a encenação). Quando começamos<br />

3 as leituras do texto “A Filha<br />

do Teatro”, de Luís Reis, tentamos ser o<br />

mais neutras possível na forma como o fazíamos,<br />

sem buscar intenções neste primeiro<br />

momento. Descobrimos, no entanto, quão<br />

difícil era desvincular aquelas palavras de<br />

uma preconcepção das personagens que o<br />

habitavam. O texto escrito sempre esteve<br />

bastante presente no processo, com as leituras,<br />

os cortes, as anotações feitas em todos<br />

os dias de trabalho, mas mesmo assim,<br />

trabalhar com ele exigiu mais cuidado.<br />

Depois que as atrizes já haviam feito<br />

suas explorações sobre imagens da pintura<br />

(foco da pesquisa) e depois que caracterizamos<br />

as personagens, pedi que fossem<br />

brincando com as palavras que as definiam,<br />

junto com as explorações corporais.<br />

Aqui as dificuldades apareceram bastante<br />

tímidas ainda. Quando juntamos o texto<br />

em si (e não mais palavras soltas) com estes<br />

corpos em tensão e movimento é que pudemos<br />

sentir que era um ponto que precisava<br />

de maior atenção, que seriam necessárias<br />

algumas estratégias para unir os corpos às<br />

palavras, já que, num primeiro momento,<br />

estes ainda pareciam dissociados:<br />

A palavra pronunciada não existe<br />

em um contexto puramente verbal:<br />

ela participa necessariamente de um<br />

processo geral, operando numa situação<br />

existencial que ela altera de<br />

alguma forma e cuja tonalidade engaja<br />

os corpos dos participantes (ZU-<br />

MTHOR, 2005, p.147).<br />

Tínhamos que trabalhar mais a fala do<br />

texto. A forma como o estavam dizendo<br />

era cheia de intenções vazias, construídas<br />

e cristalizadas com as primeiras leituras,<br />

antes de qualquer aprofundamento ou entendimento<br />

sobre as personagens. As falas<br />

eram repletas de entonações desconexas<br />

com suas composições físicas e estava muito<br />

difícil quebrá-las. Precisávamos torná-las<br />

3 Trabalharam comigo nesta pesquisa as atrizes Luiza Sperb e Vívian Salva.<br />

maleáveis, torná-las disponíveis para aqueles<br />

seres que estavam sendo criados, para<br />

deixá-los críveis, inteiros, verdadeiros.<br />

Começamos com alguns exercícios para<br />

tentar romper com a métrica pré-concebida<br />

da fala. Sempre em movimento, dizer o texto<br />

de várias formas, alternando velocidade,<br />

ritmo, duração. Dizer este texto em uma<br />

determinada trajetória na sala de trabalho,<br />

alterar o volume da voz, como se estivesse<br />

sussurrando ou gritando:<br />

O trabalho vocal que se desenvolve<br />

pela adoção e imitação de um<br />

modelo, por meio da repetição de<br />

formas acabadas, fórmulas prontas,<br />

soluções permanentes, é limitado<br />

e torna-se limitador, quer seja proposto<br />

sobre si mesmo, quer seja na<br />

relação com uma linguagem. Percorrer<br />

esta via é admitir que uma<br />

técnica existe por si mesma, sem<br />

depender de um organismo vivo,<br />

consciente e dotado de imaginário,<br />

que adote seus procedimentos e a<br />

construa em seu corpo, a seu modo,<br />

criando, pela matéria que lhe é própria,<br />

a individuação da forma.<br />

A identificação, o reconhecimento<br />

e a apreensão física do funcionamento<br />

dos mecanismos do corpo<br />

leva, mesmo que mais lentamente,<br />

a um aprendizado diferenciado: relaciona<br />

a estrutura corporal interna<br />

à existência e à ocorrência da sensação,<br />

da emoção, do movimento e<br />

libera uma voz pronta para revelar<br />

essas relações. É um percurso que<br />

permite organizar o saber para além<br />

das formas, incorporando os conteúdos<br />

(LOPES, 2005, p. 94).<br />

Acredito que qualquer trabalho tenha<br />

maior êxito quando o fazemos com prazer.<br />

Então, depois destes “aquecimentos”, decidi<br />

propor um jogo que me acompanhou no<br />

processo de criação e apropriação do texto<br />

no meu trabalho de Graduação e que me foi<br />

muito prazeroso e produtivo: pedi que as<br />

atrizes cantassem seus textos. E fui propondo<br />

estilos de música. Depois, dando continuidade<br />

à experimentação, dava alguns<br />

temas para que servisse de mote enquanto<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

ágata Baú<br />

diziam o texto: melodrama, cantor de churrascaria,<br />

monstrinhos, criança, fazendo<br />

manha, político em campanha, bruxa. Enfim,<br />

uma infinidade de propostas que elas<br />

realizavam com prazer e que nos levavam<br />

a descobertas bastante interessantes, já que<br />

brincavam com a sonoridade das palavras<br />

e não somente com o seu significado.<br />

Sara Lopes diz que:<br />

[...] uma voz responde mais propriamente<br />

à sua função, na representação,<br />

quando se desprende dos significados<br />

abstratos contidos na palavra<br />

para se ligar à concretude da materialidade<br />

sonora.<br />

A geração dessa voz está diretamente<br />

ligada à identificação e ao<br />

reconhecimento de sua corporalidade,<br />

e a um redimensionamento<br />

físico pela expansão do corpo (LO-<br />

PES, 2005, p. 93).<br />

O próximo passo era ir para a cena levando<br />

em conta estas experiências. Não<br />

para que reproduzissem alguma forma<br />

que haviam trabalhado, mas que esta abertura,<br />

este estado de disponibilidade vocal,<br />

estivesse presente. Um “estado de entrega,<br />

no qual seria adotado um comportamento<br />

similar ao de uma criança que procura<br />

o entendimento das palavras através de<br />

brincadeiras com os próprios sons das palavras”<br />

(FORTUNA, 2000, p. 120).<br />

E foi o que aconteceu. As atrizes se<br />

permitiram brincar com a voz e deixaram<br />

que o corpo influenciasse diretamente na<br />

vocalidade de seus textos. E o mais interessante<br />

é que acabamos identificando características<br />

das personagens que não havíamos<br />

cogitado anteriormente, quando<br />

fizemos uma análise do texto. Deixamos as<br />

“primeiras impressões” em segundo plano<br />

e nos agarramos a estas novas facetas<br />

que descobrimos. Todas aquelas mulheres<br />

(do texto) foram ganhando aos poucos<br />

mais “humanidade” e, confesso, tínhamos<br />

mais argumentos para defendê-las e para<br />

entendê-las. Foi realmente muito bonito e<br />

gratificante ver essa transformação.<br />

Percebemos também que seus corpos<br />

ganharam força quando inserimos as falas:<br />

[...] é em torno do gesto que se organiza<br />

a cena inteira, subordinando<br />

a palavra. Mas ele, em vez de<br />

sufocá-la, vai valorizá-la, enquanto<br />

ela explicita seu significado, pois,<br />

ao que o olhar registra, falta a espessura<br />

concreta da voz, a percepção<br />

do sopro, a urgência da respiração;<br />

falta a condição de retomar,<br />

sempre, o jogo de presentificar um<br />

objeto ausente, pelo som da palavra<br />

(LOPES, 2005, p. 92).<br />

Acredito que o caminho contrário<br />

também se fez presente: a fala valorizando<br />

o gesto. Tanto que algumas cenas me<br />

emocionavam todas as vezes que eu as<br />

via. Mesmo já sabendo exatamente o que<br />

aconteceria, mesmo estando presente em<br />

todas as vezes que a cena era feita, meus<br />

olhos se enchiam de lágrimas em alguns<br />

momentos específicos. Sentimento que eu<br />

não podia controlar, tamanha era a força<br />

adquirida na união dessas corporeidades<br />

com as vocalidades:<br />

O som vocal gera sensações e impressões,<br />

pela vibração, e as mantém<br />

presentes, em emoção, no movimento.<br />

É o princípio da voz como<br />

materialização da ação física, permeando<br />

da pele ao sistema nervoso,<br />

sendo percebida através dos poros e<br />

dos ossos, e não apenas pelos ouvidos;<br />

esse atributo que estabelece o<br />

contato físico entre seres humanos<br />

distantes um do outro: a manifestação<br />

de uma interioridade livre para<br />

invadir outros corpos, provocando<br />

respostas fisiológicas internas, profundas<br />

(LOPES, 2005, p. 94).<br />

Houve uma modificação, ou melhor,<br />

uma amplificação dos significados das cenas.<br />

Onde antes se via uma sequência de<br />

movimentos tensos, por exemplo, com o<br />

texto pode-se perceber a dor da mulher<br />

que não pode criar a filha; onde se via antes<br />

movimentos de derretimento, vimos<br />

depois o cansaço e tristeza da mulher que<br />

A EXPERIMENTAçãO VOCAL NA COMPOSIçãO DA PERSONAGEM TEATRAL. CONFRONTANDO AS BARREIRAS DA PRECONCEPçãO DO TEXTO<br />

105


<strong>Urdimento</strong><br />

106<br />

tinha sonhos que não realizou. E ao contrário,<br />

que aquela que, com as primeiras leituras,<br />

acreditávamos ser uma menina mimada<br />

e chata, descobrimos ser uma jovem<br />

com dificuldades de expor sua intimidade.<br />

É importante salientar que este ganho<br />

não é somente para as personagens, mas<br />

também para as atrizes que vão colorindo<br />

seu trabalho e enriquecendo suas personagens.<br />

É um momento de crescimento e reconhecimento<br />

de suas capacidades e potencialidades<br />

para explorar a sua arte. É confronto<br />

com seus bloqueios e seus medos, já que a<br />

fala não permite correções imediatas:<br />

A vocalidade existe, efetivamente, na<br />

publicação. [...] Esse momento supõe<br />

competência: saber fazer, saber dizer,<br />

saber ser no espaço e na duração.<br />

Corporifica-se então, uma ação vocal<br />

que oferece, a quem ouve, uma palavra<br />

na qual não há lugar para dúvidas<br />

ou indecisões: a publicação oral não<br />

tem rascunho: não permite ao ouvinte<br />

qualquer possibilidade de volta<br />

– independente do efeito buscado,<br />

a comunicação é imediata (LOPES,<br />

2003, p. 21).<br />

O processo de trabalho teatral exige<br />

atenção a todos seus componentes com<br />

igual dedicação. Corpo e voz são um só e o<br />

envolvimento deste com o texto deve estar<br />

afinado e coeso para que seja possível ampliar<br />

os seus sentidos e para que tenham o<br />

tamanho e força desejados. Este equilíbrio<br />

e esforço em favor de uma representação<br />

verdadeira facilitará a comunicação com o<br />

espectador.<br />

Em um dos encontros, quando propus<br />

aliar a movimentação criada com a pintura<br />

com uma personagem, ocasião em que<br />

Luiza juntou a imagem de Van Gogh com<br />

o texto da “prostituta” e Vívian trabalhou a<br />

imagem de Van Gogh com o texto da “menina”,<br />

anotei: “é impressionante como se<br />

soltam/libertam quando brincam, quando<br />

não se preocupam com ‘o que deve ser a<br />

personagem’, inclusive deixam o movimento<br />

do corpo influenciar mais na voz”. 4<br />

4 Diário de trabalho de Ágata Baú, dia 06 de maio de 2009.<br />

Foi bastante clara a diferença positiva que<br />

produziam as brincadeiras com o texto na<br />

relação delas com esse. Ainda naquele dia,<br />

começaram a intercalar as composições de<br />

texturas, 5 alternando uma e outra, tentando<br />

recuperar rapidamente as conquistas.<br />

Sobre esse trabalho, Luiza escreveu:<br />

“Foi legal brincar com o texto, dá uma soltada<br />

na voz e no corpo e tira essa preocupação<br />

de querer fazer direito. Essa preocupação<br />

que deixa o corpo e voz tensos e o texto<br />

meio mórbido, sério demais. Nesse exagero<br />

(melodrama, teatrão, musical) vem várias<br />

imagens do texto que ficam mais aparentes<br />

na hora de dizer”. 6<br />

E Vívian exemplifica: “Os exageros<br />

ajudaram a eliminar alguns vícios de texto.<br />

‘Eu não quero ser doméstica’ ficou com<br />

tom quase de birra, de manha, mas com<br />

muita tristeza. Acho que consegui uma naturalidade<br />

maior [...]” 7<br />

Em meu diário de trabalho, escrevi:<br />

“Faço estes trabalhos com o texto para quebrar<br />

os ‘vícios de leitura’ delas e para facilitar<br />

o entendimento do que é dito. E ainda<br />

para ajudar a lembrá-lo”. 8<br />

A partir daí, o trabalho com a voz ganhou<br />

mais atenção e as composições físicas<br />

já possuíam desde o princípio um valor vocal<br />

mais evidente. As intensões físicas (corpo<br />

e vocalidades) se tornaram mais coesas<br />

e o entendimento sobre as personagens e<br />

as relações entre elas (as personagens do<br />

texto) ganharam novas cores, o que contribuiu<br />

bastante para o desenvolvimento do<br />

trabalho.<br />

Estes procedimentos que selecionei<br />

para utilizar para o trabalho com as atrizes<br />

se compôs durante os meus anos de experiência<br />

como atriz e como aluna de teatro.<br />

Não é uma fórmula ou indicações de um<br />

autor que segui, mas a colagem de diversas<br />

vivências que fui me apropriando, tentan-<br />

5 Textura foi o nome proposto pelas atrizes para denominar o que estavam<br />

compondo: a união de um texto e uma pintura, que criam uma textura, algo<br />

palpável, moldável, tramado com esses dois elementos. Remete ao tátil, ao<br />

não plano, ao fluido, à consistência, enfim, um terceiro elemento, que não<br />

é composto nem somente pelo texto, nem somente pela imagem da pintura,<br />

algo que mistura os dois e que não prioriza nenhum dos dois. Estão juntos, se<br />

completando e se complementando.<br />

6 Diário de trabalho de Luiza Sperb, dia 04 de maio de 2009.<br />

7 Diário de trabalho de Vívian Salva, dia 04 de maio de 2009.<br />

8 Diário de trabalho de Ágata Baú, dia 15 de maio de 2009.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

ágata Baú<br />

do fazer com que tivesse em seu conjunto<br />

um efeito positivo no trabalho das atrizes.<br />

Sempre considerei importante levar-se em<br />

conta as particularidades das pessoas envolvidas<br />

em um processo de criação e é por<br />

isso que afirmo que o meu depoimento é<br />

sobre um momento específico, que rendeu<br />

bons frutos com aquelas pessoas envolvidas<br />

e que pode ou não ter o mesmo efeito<br />

com um outro grupo de pessoas ou em<br />

uma outra experiência.<br />

O que quero dizer é que um procedimento<br />

não deve ser absoluto. Precisa ter e<br />

dar a liberdade para ser adaptada, experimentada,<br />

adequada, desobedecida, reformulada<br />

e reconstruída. Acredito que ela só<br />

tem validade quando oferece mais do que<br />

a técnica em si, mais do que um momento<br />

de criação. Deve conseguir servir para uma<br />

continuidade e o desenvolvimento artístico<br />

de quem a vivencia. REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />

FORTUNA, Marlene. A performance da oralidade<br />

teatral. São Paulo: Annablume, 2000.<br />

LOPES, Sara P. In: Cadernos da Pós-Graduação.<br />

Instituto de Artes UNICAMP Ano 7<br />

Vol. 7 nº1. Campinas: UNICAMP, 2005.<br />

______. In: Expressão – Revista do Centro de<br />

Artes e Letras. Santa Maria: UFSM, jan/jun<br />

2003.<br />

NOVARINA, Valère. Diante da palavra. Rio<br />

de Janeiro: 7 Letras, 2003.<br />

ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo.<br />

São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.<br />

A EXPERIMENTAçãO VOCAL NA COMPOSIçãO DA PERSONAGEM TEATRAL. CONFRONTANDO AS BARREIRAS DA PRECONCEPçãO DO TEXTO<br />

107


<strong>Urdimento</strong><br />

108<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

ágata Baú


N° 18 | Março de 2012<br />

Resumo<br />

Este texto aproxima a psicologia fenomenológica ao teatro<br />

contemporâneo discutindo as noções de espacialidade e<br />

corporalidade, a partir do pensamento do filósofo Maurice<br />

Merleau-Ponty. Com base no princípio fenomenológico de<br />

que somos “seres em situação”, a autora propõe que nosso<br />

corpo pode ser, ele mesmo, cenário de uma teatralidade<br />

intensamente experienciada por meio de estados, lugares e<br />

atmosferas, algo que pode nos fazer prescindir de cenografias<br />

estruturadas e dadas de antemão.<br />

Palavras-chave: Teatralidade; espacialidade; corporalidade.<br />

Abstract<br />

This article brings together phenomenological psychology<br />

and contemporary theater through the philosopher Maurice<br />

Merleau-Ponty’s concepts of spatiality and corporality.<br />

Starting from the phenomenological principle that we<br />

are “beings in situation”, the author suggests that our<br />

bodies can be, in themselves, the stage of a theatricality<br />

that is intensely experienced thanks to states, places, and<br />

ambiences, thereby freeing ourselves from the need of preestablished,<br />

structured scripts.<br />

Key-words: Theatricality; spatiality; corporality.<br />

1 Marina Marcondes Machado é docente da Escola Superior de Artes Célia Helena, formadora de professores<br />

de teatro e escritora. É psicoterapeuta com mestrado em Artes (ECA/USP), doutora em Psicologia da Educação<br />

(PUC/SP) com pós-doutorado em Pedagogia do Teatro (ECA/USP). Sua pesquisa gira em torno das relações entre<br />

infância e cena contemporânea.a<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Teatralidades no Corpo: O espaço cênico somos nós.<br />

A fala não é um comentário, uma sombra do real, a<br />

moedagem do mundo em palavras, mas algo vindo ao<br />

mundo como que para nos arrancar dele.<br />

Marina Marcondes Machado 1<br />

TEATRALIDADES NO CORPO: O ESPAçO CêNICO SOMOS NÓS 109


<strong>Urdimento</strong><br />

110<br />

• Introdução<br />

Esta reflexão é fruto de minha pesquisa<br />

das relações entre infância<br />

e cena contemporânea, iniciada<br />

na pesquisa de Mestrado e continuada<br />

no Pós-doutoramento,<br />

dois momentos de pesquisa acadêmica sob<br />

supervisão da Profa. Dra. Maria Lucia de<br />

Souza Barros Pupo (ECA/USP) e com subsídios<br />

da bolsa FAPESP. Estive bastante<br />

ocupada, por cerca de dez anos, com as interações<br />

entre a primeira infância e a gênese<br />

constitutiva de um “eu”, percebendo a<br />

possibilidade de um retorno a este estado<br />

por meio das artes cênicas, em especial do<br />

teatro agora nomeado “não espetacular”.<br />

No Mestrado 2 minha preocupação era<br />

a de procurar desconstruir todo e qualquer<br />

estereótipo acerca da infância no teatro,<br />

especialmente no corpo do ator que “representasse”<br />

a personagem criança. Anos<br />

depois, ergui outro campo dramatúrgico,<br />

a partir de observação dos modos de ser<br />

e estar das crianças em situações de espera,<br />

na cidade de São Paulo (2009): parte<br />

da pesquisa “Territórios do brincar”, meu<br />

pós-doutorado reuniu etnografia e criação<br />

dramatúrgica, sempre na direção dos<br />

modos de vida da criança, tomando distância<br />

de idealizações ou construtos acerca<br />

da criança, dados de antemão. Entre<br />

Mestrado e Pós-doutorado em Artes realizei<br />

o Doutorado 3 no campo da Psicologia<br />

da Educação (PUC/SP), debruçando-me<br />

sobre a obra de Maurice Merleau-Ponty<br />

(1990a; 1990b) para tematizar as relações<br />

entre fenomenologia e infância.<br />

Com base em meus estudos acerca<br />

dos existenciais – a saber: a corporalidade,<br />

a outridade, a linguisticidade, a espacialidade,<br />

a temporalidade e a mundaneidade<br />

da criança – desdobrarei neste<br />

artigo a gênese de construção das relações<br />

eu-espaço, buscando paralelos com<br />

a arte não representacional: elo mais caro<br />

2 Pesquisa publicada na forma de livro sob o título Cacos de infância /<br />

teatro da solidão compartilhada (São Paulo: Annablume / FAPESP, 2004).<br />

3 Também meu doutorado transformou-se em livro: Merleau-Ponty & a<br />

Educação (Belo Horizonte: Autêntica, 2010).<br />

entre a maneira de ser da primeira infância<br />

e o teatro contemporâneo.<br />

Que me perdoem os leitores a forma<br />

de bricolagem, mas penso ser necessária<br />

uma pitada de nonsense e outra pitada de<br />

elementos poético-caóticos para fazer ver<br />

a riqueza da fenomenologia da criança.<br />

• Chorar e rir no imaginário<br />

O homem normal e o ator<br />

não tomam por reais<br />

as situações imaginárias,<br />

mas, inversamente,<br />

destacam seu corpo real<br />

de sua situação vital<br />

para fazê-lo respirar, falar e,<br />

se necessário,<br />

chorar no imaginário.<br />

Maurice Merleau-Ponty<br />

Uma das noções mais interessantes para<br />

pensar o “si mesmo” do ponto de vista fenomenológico,<br />

com foco especial na filosofia<br />

merleau-pontiana, é a corporalidade compreendida<br />

como “espaço corpo-próprio”<br />

(Merleau-Ponty, 1999). Pensar quem somos<br />

a partir das relações espaciais é instigante –<br />

e pode nos transpor, facilmente, para o campo<br />

do teatro: hipótese inicial que desembocou<br />

nesta reflexão. Trata-se de experienciar<br />

nosso corpo não a partir da espacialidade de<br />

posição (sem partir de um “onde”), mas antes<br />

de conceber nossa corporalidade como<br />

“uma espacialidade de situação” (Merleau-<br />

Ponty, 1999, p.146) – partiremos, então, de<br />

um “quem” e seu contorno/entorno desenhado<br />

em gesto e palavra:<br />

O espaço corporal pode distinguirse<br />

do espaço exterior e envolver<br />

suas partes em lugar de desdobrálas,<br />

porque ele é a obscuridade da<br />

sala necessária à clareza do espetáculo,<br />

o fundo de sono ou a reserva<br />

de potência vaga sobre os quais<br />

se destacam o gesto e sua meta,<br />

a zona de não-ser diante da qual<br />

podem aparecer seres precisos, figuras<br />

e pontos.<br />

(Merleau-Ponty, idem ibidem)<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Marina Marcondes Machado<br />

A expressão “zona de não-ser”, localizada<br />

no “fundo de sono”, nos remete<br />

àquilo que Merleau-Ponty nomeia o<br />

“onirismo” da vida infantil: um lugar entre<br />

fantasia e realidade, vivido cotidiana<br />

e ordinariamente na infância; uma experiência<br />

“híbrida”, própria das crianças<br />

pequenas.<br />

Como acontece, em cada um de nós, a<br />

distinção daquilo nomeado “espaço exterior”?<br />

Se a fenomenologia nos convida à<br />

noção de ser-no-mundo, como trabalhar<br />

em nós uma gênese do “eu” como “espaço<br />

corpo-próprio”, sem dicotomias nem<br />

apego ao espaço do geômetra ou do alfaiate<br />

que nos tira medidas? O que é um<br />

“contorno”?<br />

Merleau-Ponty nos ensina que “não<br />

há contorno sem um sujeito que estruture<br />

elementos dados para fazer deles figuras”<br />

(1990a, p.209). No entanto haveria<br />

um momento pré-reflexivo, anterior ao<br />

surgimento<br />

(…) de um limite entre o “fora” e<br />

o “dentro”, distinção que só existe<br />

para um sujeito, ele p r ó p r i o<br />

situado no espaço, que vê de um<br />

certo ponto de vista (seu corpo)<br />

em relação ao qual a distinção de<br />

fora e de dentro toma um sentido.<br />

(idem ibidem)<br />

Nosso contorno é portanto construído<br />

e vivenciado lentamente, na relação<br />

adulto-criança, nos cuidados cotidianos:<br />

alimentação, banho, toque, trocas de fraldas<br />

e de roupas. Experienciamos nosso<br />

espaço corpo-próprio por meio da proximidade<br />

e do distanciamento dos adultos<br />

cuidadores, especialmente. Sintonizamos<br />

com o psiquiatra existencial Guimarães<br />

Lopes:<br />

Dentro da extensão entre mim e<br />

o outro podem sobrevir dois momentos<br />

significativos: o próximo<br />

e o distante. O próximo situa-se<br />

entre o eu e o tu, o distante entre<br />

o eu e o ele. O que é “distante”<br />

reflete-se no uso do “se” – como<br />

nas frases “ama-se”, “procura-<br />

se”, muito diferente de “amo-te”,<br />

“procuro-te”, em que o “te” reflete<br />

diretamente o tu. /grifos do autor/<br />

(Guimarães Lopes, 1993, p. 85)<br />

Próximos ou distantes, estamos sempre<br />

implicados: encontramo-nos em relação;<br />

em termos espaciais, estamos em relação…<br />

a nós mesmos, ao outro, às coisas<br />

do mundo.<br />

Procurando compreender os advérbios<br />

de lugar e a maneira de ser própria<br />

de quem fala o português do Brasil, de<br />

modo a ampliar a reflexão sobre a espacialidade<br />

humana, encontrei um interessante<br />

texto do linguista Márcio Eduardo<br />

Viaro (2003), que nos diz que é próprio<br />

da nossa língua a “metaforização do locativo”.<br />

A cultura católica, por exemplo,<br />

pode ser responsável pelas imagens<br />

do que temos “por cima” e “por baixo”;<br />

mas “o aparecimento da mesma oposição<br />

numa cultura não-cristã poderia apontar<br />

para uma associação natural entre o que<br />

é bom e aquilo que está no céu límpido,<br />

voando ou entre o que é mau e aquilo que<br />

está no chão sujo, rastejando (…)” (2003,<br />

p.2). Viaro conversa com uma espécie de<br />

“gramática espacial”, onde “associam-se<br />

valores às direções”; comenta o que é próprio<br />

de traços culturais – algo “que não<br />

se associa necessariamente a uma única<br />

língua, mas vale como uma herança da<br />

visão de mundo” (idem ibidem).<br />

Se o leitor quiser ficar “por dentro”…<br />

que nos acompanhe, por favor!<br />

• O espaço povoado pelo outro<br />

Apaixonite aguda<br />

Itamar Assumpção<br />

Quando estou longe<br />

Quero ficar perto<br />

Quando estou perto<br />

Quero ficar dentro<br />

Quando estou dentro<br />

Quero ficar mudo<br />

Quando estou mudo<br />

Quero dizer tudo<br />

TEATRALIDADES NO CORPO: O ESPAçO CêNICO SOMOS NÓS 111


<strong>Urdimento</strong><br />

112<br />

A noção fenomenológica de espacialidade,<br />

traduzida como relação “eu-espaço”<br />

em termos estritamente humanos, nos<br />

remete a espaços ocupados, povoados<br />

por outros, o que inclui todos os “nãoeu”<br />

que ali já se encontravam antes de<br />

mim: inicialmente, aqueles que me conceberam;<br />

em seguida, aquele que me cuida;<br />

depois, aquele a quem procuramos:<br />

para estar perto, para brincar junto, para<br />

ir e voltar conosco… O espaço esvaziado<br />

de sentido, ausente do não-eu, nos anos<br />

iniciais, é habitualmente experienciado<br />

de modo doloroso, psiquicamente prejudicado,<br />

possuidor de silêncio cortante;<br />

pois ali, ninguém me espera.<br />

Experienciar o espaço povoado é,<br />

portanto, habitar um lugar mais ou menos<br />

ruidoso onde alguém me espera, me<br />

aguarda: alguém espera que eu acorde –<br />

e guarda meu sono; e se uma porta bate<br />

inesperadamente pelo vento, e eu acordo<br />

um tanto assustado, alguém comunica,<br />

carinhosamente: “Foi o vento!”.<br />

Os espaços entre-corpos são preenchidos<br />

por gesto e palavra – e por muitos<br />

tipos de silêncio. Enxerga-se isso em<br />

um exercício teatral muito recorrente em<br />

oficinas e workshops: propõe-se aos atores<br />

andar pelo espaço, procurando, com seu<br />

movimento e com sua presença, preencher<br />

espaços “vazios” entre eles. Vazio<br />

entre aspas, pois em uma sala onde está<br />

acontecendo esse tipo de exercício, não há<br />

de fato um vazio – ou antes, haveria um<br />

vazio “grávido” de possibilidades, parafraseando<br />

a psicanalista Marion Milner<br />

(1991). A criadora dos assim chamados<br />

“Jogos Teatrais”, Viola Spolin, pede ao<br />

ator que dê “substância ao espaço”. Em<br />

sua técnica para o ator, as caminhadas e<br />

os exercícios que auxiliam a “perceber o<br />

corpo todo” o levam a uma fenomenologia<br />

do espaço, vivido cenicamente; são<br />

exemplos de seus comandos para o ator:<br />

Sinta a forma de seu corpo quando<br />

se move pelo espaço! Agora<br />

deixe que o espaço sinta você!<br />

O seu rosto! Os seus braços! O<br />

seu corpo todo! Mantenha os<br />

olhos abertos! Espere! Não force!<br />

Você atravessa o espaço e deixa<br />

que o espaço o atravesse! (Spolin,<br />

1999, p.135)<br />

Também Kazuo Ohno, dançarino<br />

criador do butoh, noutra chave de direção<br />

cênica, afirmou a inexistência do vazio<br />

para o ator, dançarino ou performer:<br />

De maneira nenhuma pode-se dizer<br />

que não haja nada num palco<br />

vazio, num palco que se pise de<br />

improviso. Pelo contrário, existe<br />

ali uma infinidade de coisas e<br />

acontecimentos, sem que se saiba<br />

como e quando. (Ohno, 1997)<br />

Mas condições de adoecimento psíquico<br />

podem revelar um corpo encarnado<br />

de vazio e solidão, sofrimento e silêncio,<br />

nos remetendo a outros lugares, muitos<br />

dos quais extremamente assombrosos;<br />

surgem assim habitantes dos palcos psiquicamente<br />

vazios:<br />

Dentro do horizonte da espacialidade<br />

observamos por vezes um<br />

caminhar em viés, esquinado, por<br />

outras vezes em círculo. Ou seja,<br />

no primeiro caso, quase nunca<br />

encontrando o outro a não ser por<br />

casualidade, no segundo caso, fazendo<br />

uma aproximação<br />

mas logo se distanciando para<br />

repetir o mesmo movimento.<br />

Noutras situações verificamos<br />

a primazia da vivência do vazio<br />

nada havendo, do ponto de vista<br />

humano, que o preencha ou, então,<br />

a corporalidade procurando<br />

abertura no outro para extravasar<br />

a espacialidade cerrada. Ainda<br />

outras vezes verificamos hiperordenação:<br />

o relacionamento segue<br />

pré-determinações quase rígidas,<br />

fixas, meticulosas, postas<br />

umas a seguir às outras, ou, então,<br />

a espacialidade é vertiginoso buraco<br />

negro onde tudo se consome<br />

nada restando afinal das possibilidades<br />

de relação. Pode também<br />

a espacialidade aparecer à superfície<br />

atrativa, chamativa, cheia de<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Marina Marcondes Machado<br />

engodos descontínuos, dando lugar<br />

ao saltitar sem um verdadeiro<br />

salto para a passagem a um outro<br />

modo de ser. (Guimarães Lopes,<br />

1993, p.85).<br />

• Lugares de mundaneidade e faz de conta<br />

Sou o espaço onde estou<br />

Noel Arnaud<br />

Outro dia, dentro de um ônibus em<br />

São Paulo, presenciei um acontecimento<br />

interessante entre uma mãe e seu bebê:<br />

uma cena. A nenê devia ter entre 7 e 9<br />

meses. A mãe queria “ensinar” sua filha<br />

a dizer: “Mamãe”. Repetia, por diversas<br />

vezes: “Mamãe”; “mã mã mã”;<br />

“Mamãe”. Certamente a mãe não percebia<br />

a situação como eu a percebia: ela<br />

dizia “Mamãe, mã mã mã” e sua filhinha<br />

respondia com seu corpo: dando tapinhas<br />

suaves nela, apontando quem é a<br />

mamãe. Vi, no gesto da criança, beleza<br />

e amorosidade únicas. A espacialidade<br />

viva e preenchida entre elas, o dizer da<br />

mãe e a resposta não-verbal da filha, os<br />

corpos dizendo que se complementavam<br />

e se compreendiam… com certeza é<br />

a isso que os psicanalistas nomeiam uma<br />

experiência de “amor incondicional”! Se<br />

aquele bebê pudesse se perguntar, “Qual<br />

o meu lugar no mundo?”, a resposta certa<br />

seria: “O colo da minha mãe”.<br />

Haveria uma sequência espacial<br />

comum a quase todos nós, humanos e<br />

mamíferos… sequência espacial/existencial:<br />

habitar a barriga da mamãe; sair<br />

da barriga da mamãe; andar de colo; repousar<br />

no berço; arrastar-se, engatinhar,<br />

para depois andar. Assim, o espaço corpo-próprio<br />

mostra-se como um lugar a<br />

ser habitado em relação: relaciona-se,<br />

comunica-se com outros contornos, limites<br />

e espaços, os outros e as coisas do<br />

mundo.<br />

A espacialidade vivida, a espacialidade<br />

existencial (“estar por dentro!”, “estar<br />

por fora”…) dialoga todo o tempo com a<br />

espacialidade de posição:<br />

Estou escondido<br />

Debaixo da mesa;<br />

Ninguém sabe, porém,<br />

Onde estou. Que beleza!<br />

Este é o início de um ingênuo poema<br />

que lia e relia na minha infância. Tratavase<br />

de um bebê escondido dos pais…: “já<br />

ouvi o papai perguntar / (…) / -- Onde<br />

está o nenê? / Já olhou na cozinha?” (Aldis<br />

apud Machado, 1998). Esconde-esconde!<br />

Uma prática ancestral de brincadeira<br />

de espacialidade – aparecer e sumir,<br />

desaparecer e ser encontrado – muito<br />

interessante para pensarmos as possíveis<br />

descobertas de “qual o meu lugar no<br />

mundo?”.<br />

Esconder-se para ser achado: convite<br />

ao deslocamento do outro até mim,<br />

quando o espaço ganha outra dimensão;<br />

quero e não quero ser achado, e a visita<br />

do outro ao meu espaço-esconderijo é o<br />

fim do jogo… mas pode significar também<br />

um alívio: continuar existindo! Poder<br />

sair correndo! Gritar! Libertar-se da<br />

imobilidade anterior, necessária para não<br />

ser achado.<br />

Para D. W. Winnicott (1994), a mãe<br />

que esconde seu bebê por detrás de um<br />

pano ou fralda e depois o redescobre<br />

(“Achou!”) revive uma das primeiras<br />

formas culturais humanas, algo relacionado<br />

a saber “brincar de ilusão”: ilusão<br />

de estar escondido mas “achado” bem inteirinho<br />

ali, diante da mãe; e a resposta<br />

adulta, na forma de jogo, é também ilusória:<br />

“acreditar” que seu nenê havia sumido…<br />

Este mote “simples assim” está,<br />

para Winnicott, na origem de todas as<br />

atividades criativas/criadoras – teatro,<br />

cinema, poesia, filosofia, ciência e religiosidade:<br />

a ponto do psicanalista inglês<br />

nomear seu conceito de espaço potencial<br />

também como “espaço de ilusão” e “área<br />

do consolo”.<br />

De que me consolo? Do fato de minha<br />

mãe não ser “eu”; do fato de que sou<br />

totalmente dependente dos cuidados, dizeres<br />

e ações dos adultos ao meu redor;<br />

da fagulha, acesa ao nascer, de que “tudo<br />

que nasce, morre”. Tudo isso é ingredien-<br />

TEATRALIDADES NO CORPO: O ESPAçO CêNICO SOMOS NÓS 113


<strong>Urdimento</strong><br />

114<br />

te do brincar de faz de conta – ou, como<br />

propõe Sarmento (2004), da “fantasia do<br />

real” própria da primeira infância.<br />

De que me iludo? Me iludo de ser o<br />

criador do mundo.<br />

• Situações e imagens de teatralidades<br />

Há uma espécie de construção sintática<br />

em português e outras línguas<br />

românicas que não tem tido<br />

a atenção que merece. Trata-se de<br />

sintagmas em que um verbo é seguido<br />

de um advérbio de lugar ou de<br />

uma locução adverbial equivalente.<br />

Tal combinação forma uma imagem<br />

básica, donde se derivam outros significados<br />

menos evidentes.<br />

Márcio Eduardo Viaro<br />

Ampliar o horizonte da espacialidade,<br />

da relação eu-espaço, nos faz visitar,<br />

adultos que somos, a linguisticidade e o<br />

campo gramatical de nossa lingua-mãe.<br />

Proponho concretizarmos essa boa ampliação<br />

de vocabulário: não algo feito por<br />

meio do dicionário, mas antes, no seu espaço<br />

corpo-próprio e megulhado nas relações.<br />

Será rico perceber a gramática das<br />

ações espaciais, visitando os advérbios<br />

de lugar em seu corpo vivido. Jean-Pierre<br />

Ryngaert (1992), ao discutir as marcas<br />

espaciais de textos teatrais, diz, sobre a<br />

noção de “espaço metafórico”: “O lugar<br />

da palavra é talvez o verdadeiro espaço<br />

do confronto já que visitar o outro é, na<br />

peça, conversar” (1992, p.101).<br />

Wim Wenders escreveu um poema<br />

que homenageia Pina Bausch e que pode<br />

ser uma estrela guia em como as palavras<br />

nos convidam a “algures” – outros espaços,<br />

que podem “nascer progressivamente<br />

da linguagem” (Ryngaert, 1992):<br />

Levantar, cair,<br />

cambalear, desabar,<br />

escorregar, agarrar, soltar,<br />

saltar, avançar às pressas, dar<br />

uma cambalhota,<br />

tombar,<br />

rolar, buscar proteção,<br />

se endurecer, se contrair,<br />

fincar as garras, deitar o braço em<br />

torno de alguém,<br />

se tocar e se afastar de novo.<br />

(…)<br />

Wenders conduz sua homenagem a Pina<br />

Bausch a uma espécie de jogo de palavras:<br />

(…)<br />

Homens se mexem<br />

e enquanto esses gestos, saltos,<br />

passos…<br />

levados à ribalta por Pina, são encenados,<br />

destacados<br />

e conscientizados,<br />

muitas vezes com graça, mas<br />

sempre leves e jamais “prenhes<br />

de significado”,<br />

de repente se vê assim,<br />

como se jamais ante se tivesse<br />

compreendido, nem de longe,<br />

como cada um de nossos movimentos<br />

internos, de nossas<br />

emotions<br />

Se anunciam para fora, prosseguem,<br />

se entranham,<br />

se transformam em motions.<br />

O texto poético de Wim Wenders também<br />

é convite para pensar teatralmente:<br />

seus dizeres nos levam para longe do psicologismo<br />

– ou, noutro modo de dizer,<br />

para longe de um tipo de representação<br />

emotiva – e nos propõe entranhas transformadas<br />

em movimento e ação. O cineasta<br />

procura palavras e cria um texto que revela<br />

a enorme contribuição de Pina Bausch à<br />

cena contemporânea – a encenação que não<br />

representa: é, encarna no corpo um leque<br />

de emoções, não mais “interpretadas”, mas<br />

agora mostradas, escancaradas ao espectador,<br />

de modo que ele mesmo se entranhe<br />

naquilo que a dança assistida lhe propõe.<br />

Desse modo o espectador levará<br />

embora o cenário em seu espaço corpopróprio,<br />

“motions”, forma de memória e<br />

possibilidade de digressão daquilo que se<br />

assistiu no teatro. Pontuo ao leitor que as<br />

crianças fazem isso o tempo todo, em suas<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Marina Marcondes Machado<br />

ações cotidianas mais ordinárias: impregnam-se;<br />

corporificam prazer e medo, advindos<br />

da experiência de viver o mundo.<br />

Reside especialmente neste paralelo entre<br />

ser criança e ser performer minha contribuição<br />

como pesquisadora de teatro 4 .<br />

• Estados, atmosferas e<br />

temporalidade: nosso corpo<br />

próprio é lugar de teatralidades<br />

A linguagem estabelece uma relação<br />

com o espaço,<br />

a ação dá-lhe um sentido<br />

Jean-Pierre Ryngaert<br />

Considerar que o espaço não está<br />

cheio de significações dadas de antemão,<br />

como relembrou Wim Wenders, ou ainda,<br />

procurar significações nos espaços, nos<br />

lugares, transformando-os em “cenários”<br />

simples, cotidianos, como paisagens de<br />

nossa relação com o outro e mergulhados<br />

no mundo, seria próprio de todos aqueles<br />

que viveram o que Winnicott (1994)<br />

nomeia “um bom começo”. “Um bom começo”<br />

é um início de vida com boa maternagem,<br />

ou seja, indício da vitalidade<br />

de bebês que são cuidados por adultos<br />

responsáveis e responsivos: adultos que<br />

cuidam para que a realidade nos seja<br />

apresentada em pequenas doses; adultos<br />

que, concomitantemente, nos preservam<br />

e nos levam a novos lugares para vivenciar<br />

novas situações.<br />

A noção de “mãe suficientemente<br />

boa”, proposta por Winnicott, revela um<br />

adulto que carrega uma certa sabedoria<br />

zen: ausente e presente ao mesmo tempo;<br />

significa estar sempre por ali, mas sem<br />

interferir na maneira de ser e estar da<br />

criança diretamente ou invasivamente.<br />

No vazio-cheio entre um adulto presente<br />

e ausente e uma criança pequena está<br />

aquilo que Winnicott nomeou “espaço<br />

potencial”. Algo que ele mesmo disse ser<br />

4 Para saber mais ver MACHADO, Marina Marcondes. “A criança é performer”.<br />

Revista Educação & Realidade. V.35, n.2. P.115-137. Porto Alegre:<br />

UFRGS, 2010.<br />

“um lugar conceitual”; modo de dizer<br />

algo sobre o afeto entre a mãe e o bebê,<br />

quando as coisas estão indo bem.<br />

O espaço potencial não é um lugar no<br />

sentido da espacialidade de posição, mas é<br />

um lugar psíquico compartilhado, habitado<br />

pelo bebê com sua mãe. É o lugar da brincadeira<br />

(playground); é o lugar da ilusão de<br />

que somos, sim, os criadores do mundo! Fechar<br />

os olhos fazendo o mundo desaparecer<br />

é uma ação infantil que não deve ser questionada<br />

ou replicada pelo adulto realista. É<br />

fundamental ser cúmplice da capacidade<br />

criativa da criança pequena, cumplicidade<br />

que deixará rastro e lastro: rumo à experiência<br />

estética, filosófica e religiosa; rumo à<br />

invenção na arte, ciência e poesia. Assim, a<br />

noção de “espaço potencial” não quer revelar<br />

apenas uma geografia; é também história<br />

e mundaneidade, é lugar de existir:<br />

Espacialidade e corporalidade estão<br />

tão intimamente ligadas que<br />

por vezes se confundem. Heidegger<br />

falava duma topologia do ser.<br />

Em psico(pato)logia é importante<br />

a consideração simbólica do “topus”<br />

no acontecer corporal. (Guimarães<br />

Lopes, 1993, p. 85)<br />

Proponho, para finalizar, que o cenário<br />

central para os acontecimentos performativos<br />

cotidianos é o performer ele mesmo,<br />

ou seja, o espaço corpo-próprio. Sua<br />

corporalidade em relação: fora, dentro,<br />

entre; profunda ou superficialmente implicado.<br />

Experienciar teatralidades, nesta<br />

chave, prescinde de cenários no sentido<br />

tradicional do termo. E, no sentido da<br />

sociologia que trabalha com as noções<br />

de papéis sociais, quanto mais autêntica<br />

a experiência daquele que “performa”,<br />

menos máscaras sociais, figurinos rebuscados,<br />

dramaturgia pronta e requisitos<br />

cenográficos prévios seriam necessários<br />

para a comunicação transformadora entre-humanos:<br />

aquela que nos supreende<br />

por não ser previsível, algo capaz de nos<br />

“tirar o chão” – bem como nos colocar<br />

“para cima” na hora da queda.<br />

TEATRALIDADES NO CORPO: O ESPAçO CêNICO SOMOS NÓS 115


<strong>Urdimento</strong><br />

116<br />

REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.<br />

LOPES, Raul Guimarães. Clínica Psicopedagógica / Perspectiva da antropologia fenomenológica<br />

e existencial. Hospital do Conde Ferreira: Porto, 1993.<br />

MACHADO, Marina Marcondes. A Poética do Brincar. São Paulo: Edições Loyola, 1998.<br />

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes,<br />

1999.<br />

MERLEAU-PONTY, Maurice. Merleau-Ponty na Sorbonne/Resumo de cursos: Filosofia e Linguagem.<br />

Campinas: Papirus, 1990a.<br />

MERLEAU-PONTY, Maurice. Merleau-Ponty na Sorbonne/Resumo de cursos: Psicossociologia<br />

e Filosofia. Campinas: Papirus, 1990b.<br />

MILNER, Marion. A loucura suprimida do homem são. Rio de Janeiro: Imago, 1991.<br />

OHNO, Kazuo. Catálogo da “Temporada SESC Outono 97”. SESC SP: Maio, 1997.<br />

ORLANDI, Eni. As formas do silêncio. Campinas: Editora UNICAMP, 2007.<br />

RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Porto: Edições ASA, 1992.<br />

SARMENTO, Manuel. As Culturas da Infância nas Encruzilhadas da 2ª Modernidade. Disponível<br />

em:<br />

http://cedic.iec.uminho.pt/Textos_de_Trabalho/textos/encruzilhadas.pdf<br />

Acesso em 26/04/2011<br />

SPOLIN, Viola. O jogo teatral no livro do diretor. São Paulo: Perspectiva, 1999.<br />

VIARO, Márcio Eduardo. “Estruturas cristalizadas de verbo+advérbio de lugar no português.”<br />

Boletim da Associação Brasileira de Lingüística. Fortaleza: UFC/Imprensa Universitária,<br />

2003. v. 26, p. 464-466.<br />

WENDERS, Wim. “Que tesouro mora dentro de nossos corpos…” Revista Humboldt.<br />

Bonn: Goethe Institut, 2010. N. 102, ano 51. P. 30-33.<br />

WINNICOTT, Donald Woods. Playing and Reality. Londres e Nova Iorque: Tavistock/<br />

Routledge, 1994.<br />

Marina Marcondes Machado


Resumo<br />

O artigo apresenta reflexões sobre princípios filosóficos<br />

e procedimentos metodológicos do Teatro-fórum, técnica<br />

mais conhecida do Teatro do Oprimido. A escolha desta<br />

técnica se deu pela sua ampla inserção em movimentos<br />

populares e em redes de Teatro do Oprimido existentes em<br />

dezenas de países. Apesar da difusão, dúvidas persistem<br />

sobre a atuação do ator, do espectador e da encenação do<br />

fórum. Estas são as principais questões tratadas no texto.<br />

Palavras-chave: Teatro-fórum – Teatro do Oprimido - Encenação.<br />

Theater-forum: proposals and procedures<br />

Abstract<br />

The article presents reflections about philosophical<br />

principles and methodological procedures of theater-forum,<br />

the most known Theater of the Oppressed’s technique.<br />

The choice of this technique was due your wide insertion<br />

in popular movements and at Theater of the Oppressed’s<br />

networks existing in dozens of countries. Despite the wide<br />

dissemination, doubts persist about the performance of<br />

actor, spectator and forum staging. These are the main<br />

questions treated in the text.<br />

Key-words: Theater-forum - Theater of the Oppressed – Liberating Education<br />

1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia/<br />

UFBA. Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia/ UFRB.<br />

Teatro-fórum: propósitos e<br />

procedimentos.<br />

Cilene Nascimento Canda 1<br />

TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS 119


<strong>Urdimento</strong><br />

120<br />

1. Caminhos introdutórios<br />

A<br />

crescente utilização do Teatrofórum<br />

é resultado da popularização<br />

do arsenal estético-político<br />

do Teatro do Oprimido<br />

e nos remete à reflexão sobre<br />

seus princípios políticos e procedimentos<br />

metodológicos. O Teatr o-fórum é uma<br />

modalidade expressiva e reflexiva bastante<br />

empregada como uma das armas de fortalecimento<br />

de práticas culturais de grupos<br />

populares. O presente texto faz a revisão<br />

de suas características estéticas e políticas<br />

e baseia-se em estudos teóricos desenvolvidos<br />

por Augusto Boal (2005), Paulo Freire<br />

(2001), Nunes (2004), dentre outros. Buscase,<br />

neste artigo, contribuir para a compreensão<br />

sobre os procedimentos metodológicos<br />

da referida técnica, visando desmistificar<br />

algumas dúvidas existentes sobre o exercício<br />

artístico do Teatro do Oprimido. Cabe<br />

salientar que a reflexão sobre tais procedimentos<br />

é sustentada pela dimensão política<br />

e humanística do teatro popular.<br />

Atuo com Teatro do Oprimido há alguns<br />

anos e, nessa trajetória em diversas<br />

redes sociais, observo dificuldades de grupos<br />

e de militantes com a utilização da<br />

técnica do Teatro-fórum, no que se refere<br />

especialmente à atuação do curinga, à participação<br />

da plateia e à direção artística do<br />

espetáculo-fórum. Por esta razão, torna-se<br />

necessária a ampliação da discussão sobre<br />

o Teatro-fórum, tanto no campo social,<br />

quanto no contexto acadêmico, como<br />

possibilidade de repensar práticas e reafirmar<br />

a função política do teatro. O próprio<br />

Augusto Boal assegurou a necessidade de<br />

revisão das formas de aplicação da técnica<br />

do Teatro-fórum, por conta de sua utilização<br />

em lugares mais longínquos de todo o<br />

mundo:<br />

O desenvolvimento de múltiplas direções<br />

do Teatro-fórum em tantos países do<br />

mundo determina, inevitavelmente, uma<br />

revisão de todos os conceitos, de todas as<br />

formas, estruturas, técnicas, métodos e processos.<br />

(...) Dentro das múltiplas formas e<br />

maneiras de se praticar o Teatro-fórum,<br />

contudo, surgem muitas dúvidas, mas também<br />

muitas certezas. (BOAL, 2007, p. 319).<br />

Apesar dos estudos de Boal serem bastante<br />

difundidos por meio de livros e das<br />

redes de multiplicação 2 do Teatro do Oprimido,<br />

convém afirmar a necessidade de divulgação<br />

da base metodológica do Teatrofórum,<br />

revendo dúvidas e certezas, desafios<br />

e possibilidades de atuação teatral. Para<br />

isso, partimos do seguinte questionamento:<br />

quais os propósitos políticos e os procedimentos<br />

da técnica do Teatro-fórum?<br />

Para iniciar tal debate, cabe contextualizar,<br />

brevemente, o cenário filosófico e<br />

artístico do Teatro do Oprimido como um<br />

sistema de técnicas e jogos destinados ao<br />

exercício teatral, com o propósito de fortalecer<br />

a formação política e estética de sujeitos<br />

oprimidos. Tal formação visa a humanização<br />

e a busca pela superação das opressões,<br />

seja de ordem social, psicológica ou simbólica.<br />

O Teatro do Oprimido pode ser visto<br />

como um campo de expressões humanas,<br />

de produção de sentidos, de vivências coletivas<br />

e de formação política.<br />

Evidentemente, é importante ponderar<br />

os limites enfrentados nessa formação, de<br />

modo a evitar a consideração de que os sujeitos<br />

se tornam automaticamente livres e<br />

autônomos, por participarem de um fórum<br />

ou de um breve processo de formação política<br />

em Teatro do Oprimido. Para Paulo<br />

Freire, o processo formativo é caracterizado<br />

pela revisão permanente de posturas, concepções<br />

e práticas sociais, e não é dado a<br />

priori, tampouco é transferido por outrem.<br />

Do mesmo modo, o processo formativo em<br />

Teatro do Oprimido é marcado pelo contato<br />

constante do sujeito com a obra de arte<br />

e pela inserção em espaços de debates e de<br />

criação artística.<br />

Convém, então, dimensionar que este<br />

arsenal dirige-se a uma formação consistente,<br />

não restringida ao acúmulo de técnicas<br />

para o desempenho de personagens,<br />

2 O Projeto Teatro do Oprimido de ponto a ponto, desenvolvido<br />

pelo Centro de Teatro do Oprimido, do Rio de Janeiro, vem<br />

formando centenas de instituições, pontos de cultura e de<br />

grupos multiplicadores. Dentre outras redes sociais, é importante<br />

destacar o Movimento dos Sem Terra, como um dos principais<br />

movimentos sociais que utilizam o Teatro do Oprimido em<br />

trabalhos artísticos e políticos.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

mas voltada para (re)pensar o contexto<br />

de produção cultural, artística e crítica de<br />

grupos economicamente excluídos. O Teatro<br />

do Oprimido trata de uma formação<br />

que integra a dimensão estética à reflexão<br />

política, tendo em vista a mudança das<br />

relações abusivas de poder, expressas em<br />

formas distintas de opressão social. Esta é<br />

mais uma possibilidade de formação, e não<br />

pode ser a única, visto que outros meios de<br />

produção cênica precisam ser ampliados; e<br />

o Teatro do Oprimido atua no sentido dessa<br />

democratização, por compreender que<br />

tais meios precisam ser utilizados por todo<br />

ser humano e não restritos a determinados<br />

grupos sociais hegemônicos.<br />

2. A técnica do Teatro-fórum:<br />

perspectiva filosófica e metodológica<br />

O Teatro-fórum é considerado por<br />

Boal como um ensaio para a vida, por meio<br />

do qual o espect-ator 3 experimenta as possibilidades<br />

de atuação, de reivindicação da<br />

resolução de opressões vividas ou testemunhadas<br />

no contexto social. Em cena, o sujeito<br />

é portador da voz, do ato cênico e visa<br />

colocar em prática as ideias e as sugestões<br />

de ações para a superação do problema de<br />

opressão, para que possa ensaiar possibilidades<br />

de atuação no contexto social.<br />

Em breves linhas, descrevemos os<br />

procedimentos de um espetáculo de Teatro-fórum.<br />

Em um processo de oficina<br />

ou de laboratório de um grupo de teatro,<br />

os participantes (atores e/ou não-atores)<br />

compartilham histórias de vida que serão<br />

discutidas, avaliadas e selecionadas para a<br />

montagem. Esta técnica consiste em apresentar<br />

um problema social em cena, um<br />

anti-modelo (ou seja, um modelo de vida<br />

não desejado, que não deve ser visto como<br />

modelo), no qual o oprimido é impedido<br />

de realizar um desejo, fruto da necessidade<br />

clara de cunho pessoal ou social. Na<br />

cena, apresentam-se diferentes motivações<br />

do opressor e do oprimido. Em um jogo<br />

3 Espect-ator significa espectador + ator, ou seja, aquele que<br />

assiste e intervém na ação cênica.<br />

Cilene Nascimento Canda TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS<br />

de conflitos, nos quais se apresentam forças,<br />

muitas vezes desiguais, o protagonista<br />

busca resolver o problema apresentado.<br />

Sem conflito, não há fórum, por isso,<br />

é preciso que os diferentes quereres<br />

dos diferentes personagens entrem<br />

em choque, caracterizando o conflito<br />

dramático. Esse conflito não<br />

se resolve nem se dissolve em cena,<br />

ele, na verdade, se acirra. A peça<br />

termina - sempre inacabada - geralmente<br />

quando o protagonista, após<br />

algumas tentativas, praticamente<br />

desiste de lutar pelo que deseja.<br />

(NUNES, 2004, p. 58).<br />

Nesse jogo de conflitos, torna-se evidente<br />

que a tentativa do oprimido de realizar<br />

o seu desejo não se efetivou, por conta<br />

da força opositora do opressor e não por<br />

mera desistência do oprimido. O problema,<br />

ou o conflito, deve ser claro e apresentar-se<br />

como uma pergunta a ser levada ao fórum.<br />

Boal ressalta a clareza da pergunta que<br />

norteará a discussão, afirmando que o desejo<br />

do oprimido deve ficar evidente para<br />

todos; só a partir disso, é possível construir<br />

um fórum de debate - político e estético!<br />

Com o término do anti-modelo, o curinga<br />

4 questiona o público a respeito do que<br />

se apresentou no palco e convida-o a entrar<br />

em cena e a propor novos esquemas<br />

possíveis de atuação do oprimido para a<br />

realização do seu desejo no ato cênico e<br />

para, principalmente, superar ou amenizar<br />

a opressão ali apresentada. Independente<br />

de obter um resultado satisfatório, o<br />

espect-ator estará experimentando o espaço<br />

da atuação estética e política, como um ensaio<br />

para a vida social. No fórum, o sujeito<br />

está testando concretamente, ainda que de<br />

modo metafórico, as possibilidades de atuar<br />

no cotidiano.<br />

Salientamos que o mais importante não<br />

é solucionar o problema, destruir a opressão<br />

ou realizar o desejo do oprimido; o que<br />

importa é o debate estético e a busca por<br />

4 O Curinga é o mediador do debate entre palco e plateia,<br />

entre atores e espectadores. É ele o responsável por provocar<br />

questões e estimular o espect-ator a subir no palco e mostrar<br />

sua versão para a resolução do problema.<br />

121


<strong>Urdimento</strong><br />

122<br />

alternativas, revelando que a questão implica<br />

em várias formas de atuação do oprimido<br />

e não somente uma intervenção no<br />

anti-modelo. Todo problema sugere meios<br />

diferentes de intervenção e de resolução;<br />

anunciar apenas uma alternativa possível é<br />

também uma atitude autoritária. Isto pode<br />

ser reafirmado por Nunes:<br />

Não se procura a melhor solução, mas<br />

conhecer mecanismos de poder presentes<br />

na situação, experimentando e buscando<br />

saídas, do ponto de vista do protagonista.<br />

As alternativas são analisadas pela platéia,<br />

cujas pessoas, ativadas - para usar um termo<br />

de Boal -, se transformam de espectadores<br />

em espect-atores - aqueles que vêem e<br />

agem. (NUNES, 2004, p. 44).<br />

Esta questão é, ainda, endossada pelo<br />

próprio Boal, ao tratar sobre os propósitos<br />

do Teatro-fórum: “mais importante do que<br />

chegar a uma boa solução é provocar um<br />

bom debate. Na minha opinião, o que conduz<br />

à auto-ativação dos espect-atores é o debate,<br />

não a solução que porventura possa<br />

ser encontrada”. (BOAL, 2007, p. 326). Esta<br />

auto-ativação proferida por Boal diz respeito<br />

à possibilidade do espectador virar<br />

um espect-ator, mobilizado para a atuação<br />

em cena e, possivelmente, para a intervenção<br />

na vida concreta.<br />

A técnica do Teatro-fórum foi bastante<br />

inovadora no campo do fazer teatral, do<br />

ponto de vista da criação/consolidação de<br />

uma metodologia profícua de mobilização<br />

social. O Teatro-fórum é visto por diversos<br />

segmentos sociais, como “a mais radical na<br />

socialização dos meios de produção teatral,<br />

pois rompe completamente a barreira palco<br />

e platéia” (COLETIVO NACIONAL DE<br />

CULTURA, 2006, p. 19). Por visar romper<br />

as barreiras existentes entre palco e plateia<br />

e entre opressores e oprimidos, o Teatro-fórum<br />

integra, dialogicamente, no ato teatral<br />

aqueles que, convencionalmente, dizem e<br />

fazem (os atores) e aqueles que escutam e<br />

assistem (o público).<br />

Propõe-se, por meio desta técnica, a<br />

ruptura entre o lugar de falar e de comandar<br />

o fenômeno teatral: o palco; e o local de<br />

ouvir: a plateia. Porém, diante da prolifera-<br />

ção de diversos procedimentos metodológicos<br />

de quebra da quarta parede, a partir<br />

das técnicas de distanciamento desenvolvidas<br />

por Bertold Brecht, seria incorreto dizer<br />

que a principal característica (e exclusiva!)<br />

do Teatro-fórum é o diálogo efetivo<br />

entre palco e plateia.<br />

Embora a proposta de participação do<br />

público no ato teatral seja uma característica<br />

primordial do Teatro-fórum, sem a<br />

qual este deixaria de existir, convém destacar<br />

que a mera participação do público<br />

no palco não contempla os princípios de<br />

humanização e de libertação almejados por<br />

Augusto Boal. O que difere o Teatro-fórum<br />

de outras técnicas de teatro interativo é justamente<br />

o seu objetivo político de emancipação<br />

humana e social, atendendo a dois<br />

princípios primordiais: “a) transformação<br />

do espectador em protagonista da ação teatral;<br />

b) tentativa de, através dessa transformação,<br />

modificar a sociedade, e não apenas<br />

interpretá-la” (BOAL, 2007, p. 319). Ao<br />

estimular a intervenção efetiva do espectator,<br />

busca-se provocar reflexões sobre as<br />

formas de opressão social apresentadas e a<br />

revisão das possibilidades de modificação<br />

da realidade, no espaço cênico.<br />

O Teatro-fórum não é um mero jogo<br />

de entretenimento e de apresentação das<br />

virtudes e das habilidades de improvisação<br />

do ator no palco. O Teatro-fórum é<br />

considerado por Augusto Boal como uma<br />

metáfora teatral, que pode ser recriada e<br />

reinterpretada na vida social de cada sujeito<br />

presente na plateia. Assim, visa-se com<br />

o Teatro do Oprimido “ajudar o espectador<br />

a se transformar em protagonista da ação<br />

dramática, para que, em seguida, utilize<br />

em sua vida as ações que ensaiou na cena”.<br />

(DESGRANGES, 2006, p. 70). É o sentido<br />

da formação política configurada em atuação<br />

cênico-reflexiva que está em jogo. Este<br />

é um processo formativo do ator em cena<br />

e da plateia que assiste, opina, intervém e<br />

avalia a ação do sujeito, podendo propor<br />

outros modos de atuação cênica para a resolução<br />

da questão apresentada.<br />

Ressaltamos que o oprimido não é<br />

aquele que perdeu a batalha e resignou-<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

se; oprimido é o sujeito que está sempre<br />

em luta, em conflito com o opressor, mas<br />

não atingirá êxito por não ter condições de<br />

visualizar/implementar possíveis estratégias<br />

para resolver o problema tratado.<br />

Abre-se, então, o espaço para o fórum, enquanto<br />

oportunidade dos participantes que<br />

assistem à cena opinarem, discordarem,<br />

expressarem suas ideias, mas, ao invés de<br />

simplesmente dizerem o que a personagem<br />

deve fazer, o próprio público entra em<br />

cena para mostrar a sua alternativa ante a<br />

resolução do problema.<br />

Nesse momento, o espect-ator ingressa<br />

efetivamente (corpo, voz, pensamento e<br />

ação) no palco para ensaiar possibilidades<br />

de realização do desejo e da superação da<br />

relação dicotômica entre opressor e oprimido<br />

apresentada em cena. Se uma mulher<br />

decide separar-se de um marido violento,<br />

por exemplo, ela precisará visualizar/ativar<br />

os mecanismos de poder (a denúncia,<br />

a delegacia da mulher, a legislação, a família,<br />

a lei Maria da Penha, etc.) para pôr em<br />

cena. O palco é um espaço metafórico, mas<br />

enquanto atua, o espect-ator estará concretamente,<br />

em cena, simulando as possíveis<br />

estratégias de atuação.<br />

3. Desmistificando algumas<br />

questões do Teatro- fórum<br />

Esta parte do texto destina-se à revisão<br />

de princípios e procedimentos metodológicos<br />

do Teatro-fórum, partindo de dúvidas<br />

encontradas em práticas 5 de militância social<br />

e nas orientações de Boal (2007) na sistematização<br />

do referido arsenal. O primeiro<br />

equívoco a se desconstruir diz respeito<br />

à afirmação de que o Teatro do Oprimido<br />

não se preocupa da abordagem técnica e<br />

estética da encenação teatral, colocando o<br />

conteúdo como uma parte mais relevante<br />

do que a forma artística. Esta questão pre-<br />

5 Estas experiências foram observadas, especialmente, na<br />

atuação no Projeto Teatro do Oprimido de ponto a ponto,<br />

coordenado pelo Centro de Teatro do Oprimido e apoiado pelo<br />

Ministério da Cultura, que visa a disseminação do Teatro do<br />

Oprimido em diversas regiões, estados e municípios brasileiros,<br />

por meio da formação de multiplicadores em Pontos de Cultura,<br />

movimentos sociais e organizações não-governamentais.<br />

Cilene Nascimento Canda TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS<br />

cisa ser desmistificada, pois Boal, em toda<br />

sua obra, aborda a importância do belo, do<br />

rigor técnico e do vigor estético da experiência<br />

teatral. Com este posicionamento,<br />

afirmava que<br />

O importante é que o Teatro do Oprimido<br />

seja bom teatro, antes de mais nada.<br />

Que a apresentação do anti-modelo seja,<br />

em si, fonte de prazer estético. Deve ser<br />

um bom e belo espetáculo, antes de ter<br />

início a parte do fórum, isto é, a discussão<br />

dramática, teatral, do tema proposto.<br />

(BOAL, 2007, p. 322).<br />

Na fonte de prazer estético, desencadeada<br />

pela forma cênica, residem os meios<br />

para a leitura da cena e da realidade social.<br />

Com este mesmo posicionamento, a dissertação<br />

de mestrado de Carolina Vieira (2009)<br />

endossa que o espetáculo de Teatro-fórum<br />

visa “estimular os participantes do grupo<br />

quanto às suas capacidades de pensar não<br />

só política, mas esteticamente o espetáculo.<br />

A teatralidade deve conviver com a reflexão”<br />

(p. 72), evitando a supervalorização de<br />

um aspecto sobre outro.<br />

O teatro, apontado aqui como prática<br />

cultural para a liberdade, é fruto da interação<br />

estética e política do sujeito com seu<br />

meio. Para ser político, o teatro não precisa<br />

ser destituído de beleza, afinal o direito<br />

ao belo e à qualidade da experiência cênica<br />

deve ser assegurado nas práticas culturais.<br />

O teatro precisa ser vibrante para estimular<br />

o exercício humano do sonho, da liberdade<br />

e da emancipação; afinal, visa-se, com<br />

esta técnica, incentivar a participação ativa<br />

do público, com todas as suas ferramentas<br />

estéticas disponíveis. No espaço cênico do<br />

Teatro-fórum, os elementos cênicos são utilizados<br />

como qualquer forma de teatro: sonoplastia,<br />

cenário, adereços, figurino, maquiagem<br />

e a construção rigorosa de bons<br />

personagens.<br />

Investir na formatividade da cena é<br />

também um ato político, pois, “o perigo de<br />

uma encenação pobre é induzir os espectatores<br />

participantes a apenas falar, discutir<br />

verbalmente as soluções possíveis, em vez<br />

de fazê-lo teatralmente” (BOAL, 2007, p.<br />

123


<strong>Urdimento</strong><br />

124<br />

324). O objetivo de fazer teatro é soberano;<br />

sem o ato cênico, não haverá Teatrofórum.<br />

Boal ainda acentua que<br />

Muitas vezes, os grupos que praticam o<br />

Teatro-fórum são pobres, de poucos recursos<br />

econômicos. Em geral, vêem-se cenografias<br />

constituídas por mesa e cadeiras, e<br />

nada mais. Isso é uma contingência, não<br />

deve ser considerada opção. O ideal é que<br />

a cenografia seja o mais elaborada possível,<br />

com todos os detalhes que julguem<br />

necessários, com toda a complexidade<br />

que se considerar importante. O mesmo é<br />

válido para os figurinos. É importante que<br />

os personagens sejam reconhecidos pelas<br />

roupas que vestem e pelos objetos que<br />

utilizam. Muitas vezes, a opressão está na<br />

roupa, nas coisas: é preciso que coisas e<br />

roupas sejam presentes, atuantes, claras,<br />

estimulantes (BOAL, 2007, p. 333).<br />

Os princípios políticos não contradizem<br />

a experiência estética ou a diversão.<br />

Ao contrário: é importante considerar<br />

que o teatro cumprirá, de modo cada vez<br />

mais intenso, o seu potencial educativo,<br />

na medida em que garantir o vigor estético<br />

da experiência. Ou seja, quanto mais<br />

rica em imagens e intensa em cenas for a<br />

experiência estética, mais o sujeito produzirá<br />

sentidos para a compreensão da<br />

vida em sociedade. A democratização do<br />

espaço para a experiência livre de criação,<br />

reservado a determinadas classes<br />

sociais, deve ser considerada uma atitude<br />

política de grande relevância para a<br />

dinâmica social emancipatória.<br />

Outra série de dúvidas presente<br />

nesta discussão diz respeito ao papel e<br />

à atuação do curinga no Teatro-fórum.<br />

Cabe salientar que o curinga é o sujeito<br />

atuante da coordenação dos espetáculos<br />

de Teatro-fórum, que trabalha também<br />

nas funções de diretor das cenas e de<br />

educador das oficinas práticas, utilizando<br />

os jogos e exercícios deste arsenal.<br />

Assim,<br />

A coordenação artística reúne funções<br />

que passam pelas escolhas dos elementos<br />

da cena até o ensaio do espetáculo. É<br />

válido ressaltar que o curinga quase nun-<br />

ca está sozinho exercendo essas funções<br />

e não deve ser revestido de autoridade.<br />

(VIEIRA, 2009, p. 71).<br />

A atuação do curinga é bastante complexa,<br />

pois este é o responsável por substituir<br />

qualquer um dos sujeitos envolvidos<br />

no fenômeno teatral, inclusive os atores.<br />

Porém, o seu principal papel foca-se na<br />

mediação entre o palco e a plateia, questionando<br />

e provocando o debate, as reflexões<br />

e a participação plena do público em cena.<br />

Boal faz diversas orientações para a<br />

atuação do curinga, porém afirma a nãoexistência<br />

de um modelo certo a ser seguido.<br />

Porém, alguns equívocos precisam ser<br />

evitados, como forma de assegurar a participação<br />

plena do público, bem como para<br />

evitar o direcionamento das questões para<br />

o espect-ator. Este tipo de postura diretiva<br />

seria um modo de alienar o sujeito em seu<br />

processo livre e libertador de pensar, analisar,<br />

ponderar e decidir. Por isso, o curinga<br />

não deve manipular as questões provenientes<br />

das cenas no debate, com o suposto<br />

objetivo de traduzir para o outro o que a<br />

cena “quis dizer ou mostrar”.<br />

É importante valorizar a polissemia de<br />

interpretações e de contribuições daqueles<br />

que fazem a leitura do espetáculo teatral,<br />

especialmente porque é por meio das diferentes<br />

leituras que surgem mais possibilidades<br />

de intervenção cênico-social. O<br />

curinga não deve expor conclusões do fórum,<br />

mas questionar a platéia e provocar<br />

reflexões, problematizando o que foi visto<br />

e (re)feito pelo espect-ator. A atuação do<br />

curinga se dá na mediação da construção de<br />

novas perguntas sobre as intervenções do<br />

público, a serem respondidas pela plateia<br />

por meio do ato cênico.<br />

A interpretação pessoal deve ser feita<br />

com cuidado, para evitar a manipulação do<br />

pensamento do outro, visto que o curinga<br />

está situado em uma postura privilegiada de<br />

coordenação das atividades. É importante<br />

salientar que o seu papel de provocar o debate<br />

não lhe dá o direito de tomar decisões por<br />

conta própria, sem o aval da plateia. Nesse<br />

caso, ele “enuncia as regras do jogo, mas, a<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

partir daí, deve aceitar até mesmo que a plateia<br />

as modifique, se isso for julgado conveniente”<br />

(BOAL, 2007, p. 330).<br />

É válido salientar, ainda, a importância<br />

do corpo do curinga na ação de coordenação<br />

do fórum. Sem vigor e intensidade,<br />

dificilmente haverá fórum, ainda que o<br />

anti-modelo apresente inquietações e motivações<br />

à plateia. O curinga não intervém<br />

dizendo o que o espet-ator deve fazer, mas<br />

também deve estimulá-lo, ativando-o para<br />

entrar em cena, de modo a promover o debate<br />

estético-político. Para isso, o curinga<br />

precisa estar inteiro em sua ação, com a<br />

atitude física vigorosa, pois ele é também<br />

um sujeito de teatro, sua atuação também é<br />

cênica, ainda que sua função no momento<br />

do fórum seja a de coordenação do debate.<br />

Logo, seu corpo e sua voz devem estar focalizados<br />

no evento teatral. Sobre este aspecto,<br />

Boal alerta que alguns curingas<br />

têm a tendência de se diluir na platéia,<br />

sentando-se ao lado dos demais espectatores<br />

– isso pode ser desmobilizante. Outros,<br />

com o próprio corpo revelam dúvida,<br />

indecisão e até timidez. (...) Se o curinga<br />

em cena está cansado ou desorientado,<br />

sua cansada e desorientada imagem será<br />

transmitida aos espect-atores. Se, pelo<br />

contrário, o curinga está atento, dinâmico,<br />

também esse dinamismo não deve significar<br />

ser impositivo! (BOAL, 2007, p. 332).<br />

Outra questão a ser discutida na prática<br />

do Teatro-fórum, diz respeito ao papel<br />

dos atores na encenação. Diferentemente<br />

do teatro convencional, o ator do Teatrofórum<br />

deve apresentar uma estrutura dialética,<br />

mostrar a complexidade do personagem,<br />

que muitas vezes aparece em cena<br />

dizendo “não”, mas pode mudar de opinião<br />

e vir a dizer “sim”, assim como ocorre<br />

na vida. O ator do Teatro-fórum “deve<br />

expressar sobretudo a dúvida: cada gesto<br />

deve conter sua negação; cada frase deve<br />

deixar pressupor a possibilidade de dizer<br />

o contrário daquilo que se diz, cada sim<br />

pressupõe o não, o talvez” (BOAL, 2007,<br />

p. 335). O personagem é complexo e traz<br />

em si as contradições da vida social e da<br />

Cilene Nascimento Canda TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS<br />

relação opressor/oprimido, por isso o ator<br />

deve estar aberto ao diálogo, à troca mútua<br />

e aos aprendizados que as intervenções da<br />

plateia podem produzir.<br />

Assim, “o ator deve ser dialético, dar<br />

e receber, dialogar, medir-se, ser estimulante,<br />

criador. Não deve ter medo (coisa<br />

que acontece com freqüência, quando se<br />

trata de atores profissionais) de perder<br />

seu posto no palco” (BOAL, 2007, p. 335).<br />

Esta perspectiva permite-nos refletir que o<br />

Teatro-fórum é uma técnica de cunho dialético,<br />

promotora de novas sínteses para o<br />

entendimento do ato teatral e da realidade<br />

social.<br />

A fim de garantir a aproximação entre<br />

a cena e a realidade social, a preparação<br />

dos atores do Teatro-fórum perpassa por<br />

técnicas sistematizadas por Stanislavski,<br />

de representação naturalista da realidade,<br />

adaptada aos anseios marxistas de superação<br />

das relações de opressão nesta mesma<br />

realidade. Boal, em sua formação inicial<br />

em teatro, teve sua marca stanislavskiana,<br />

como anteparo para se pensar o trabalho<br />

do ator no teatro de cunho popular. No entanto,<br />

a representação naturalista não é a<br />

única alternativa cênica possível no Teatrofórum.<br />

Boal, em diversos livros, trata sobre<br />

a possibilidade de travar um diálogo estético<br />

e político por meio de diferentes estilos<br />

e de abordagens cênicas, sendo que o conteúdo<br />

libertador não deve ser dispensado.<br />

Porém, Nunes lembra que<br />

Apesar dessa antiga advertência de Boal, às<br />

vezes, alguns praticantes do Teatro do Oprimido,<br />

por ignorância ou insensibilidade, se<br />

mantêm fixados nesse tipo de ilusão objetivista,<br />

julgando fazer “uma pintura” fidedigna<br />

da realidade. Ou, mesmo que acreditem<br />

que concretizam sua leitura de mundo, sua<br />

versão de uma dada situação, pretendem<br />

que ela seja ou pareça real, como se “parecer<br />

real” fosse a única forma de construir uma<br />

peça. Entretanto é a forma dada aos personagens,<br />

aos diálogos, a muitas encenações<br />

de Teatro-fórum que tem uma intenção de<br />

semelhança com a realidade cotidiana. Até<br />

porque uma das pretensões do Teatro-fórum<br />

é que ele seja um ensaio para a realidade<br />

– para sua transformação... (NUNES,<br />

2004, pp. 82 e 83).<br />

125


<strong>Urdimento</strong><br />

126<br />

As considerações feitas por Nunes são<br />

pertinentes para a afirmação da autonomia<br />

e da liberdade do sujeito – o diretor, o ator<br />

e o público - no processo criativo do Teatro<br />

do Oprimido. Compreendemos que o estilo<br />

teatral é fruto de investigação criativa e<br />

coletiva, não é dado a priori por um conjunto<br />

de modelos e padrões cênicos. Afinal,<br />

“o modelo é uma peça de teatro como<br />

tantas outras, com a única diferença de que<br />

não pode ser evangélica, não pode ser portadora<br />

de mensagem, da boa palavra, e sim<br />

da dúvida” (BOAL, 2007, p. 333). Tanto<br />

no conteúdo, quanto na forma, o Teatrofórum<br />

não pode impor padrões de atuação<br />

cênica/social.<br />

Com base nisso, compreendemos que<br />

a técnica do Teatro-fórum, apesar de apresentar<br />

claramente princípios éticos e procedimentos<br />

metodológicos, pode ser recriada<br />

pelos seus participantes de forma ampliada,<br />

sem a imposição de um estilo único ou<br />

“correto” de encenação. Não se deve, entretanto,<br />

perder de vista o horizonte político<br />

de transformação da realidade, conforme<br />

já anunciamos no início do texto. Acreditamos<br />

que quanto mais a investigação de<br />

um estilo de encenação for marcada pela<br />

liberdade de criação, mais libertador este<br />

processo será. Para que a liberdade seja<br />

um fim, ela deve ser assegurada em seus<br />

meios, no bojo do processo de formação.<br />

Muitas vezes, por desconhecimento<br />

de outras possibilidades de encenação teatral,<br />

alguns grupos militantes do Teatro do<br />

Oprimido tomam uma possível interpretação<br />

da palavra de Boal como sendo a definitiva,<br />

a mais correta; e isso pode incidir<br />

na restrição da compreensão do próprio<br />

processo de teatro de cunho libertador.<br />

Em sua vida, Boal sempre foi defensor da<br />

democratização das práticas culturais de<br />

liberdade, compreendendo que o teatro<br />

tem um significativo papel na emancipação<br />

humana e social de sujeitos. Portanto,<br />

o maior propósito do Teatro do Oprimido<br />

é o de humanização e de fortalecimento<br />

da ação/intervenção cultural, com vistas à<br />

superação de todas as formas de opressão,<br />

até mesmo em seu contexto de militância.<br />

4. Algumas conclusões<br />

(ou outras provocações)<br />

O presente artigo tratou da revisão dos<br />

princípios filosóficos e de alguns procedimentos<br />

metodológicos do Teatro-fórum,<br />

técnica mais difundida do Teatro do Oprimido.<br />

Por compreender que todo método é<br />

fruto de um posicionamento ético-filosófico,<br />

esta discussão ancorou-se no ponto de<br />

vista teórico de Augusto Boal, em consonância<br />

com as formas de concretização do<br />

Teatro-fórum. A preocupação de Boal em<br />

sistematizar uma técnica se deu pela necessidade<br />

de assegurar que esta não fosse<br />

utilizada como modo a atender a objetivos<br />

divergentes ou contraditórios ao Teatro do<br />

Oprimido. Pois sua própria obra, a depender<br />

dos usos e das adaptações sofridas, poderia<br />

contribuir para a conservação do autoritarismo<br />

e da dicotomia entre opressor e<br />

oprimido.<br />

Rever propósitos e orientações didáticas,<br />

longe de ser uma receita a ser seguida,<br />

permite-nos investigar problemas e tentar<br />

desmistificar alguns preconceitos enfrentados<br />

no âmbito da atuação em Teatro do<br />

Oprimido. A forma de interpretação dos<br />

atores, a mediação do curinga e o estilo de<br />

encenação são questões que não se esgotam<br />

no presente texto. Ao contrário, acreditamos<br />

que questionar a prática do Teatro<br />

do Oprimido é possibilitar a sua atualização<br />

e relevância para o contexto social contemporâneo.<br />

Evidentemente, outras questões pertinentes<br />

poderiam ser citadas e enfocadas<br />

neste artigo. Entretanto, não nos dedicamos<br />

a esgotar todos os problemas de interpretação<br />

da obra de Boal, porque acreditamos<br />

que o debate e a polissemia de<br />

interpretações são saudáveis para a reflexão<br />

e a historicidade de qualquer proposta<br />

de cunho emancipador. Porém, para que<br />

qualquer técnica ganhe validade social, o<br />

debate sobre o assunto precisa ser fomentado.<br />

Visamos, de modo conciso, levantar<br />

questionamentos acerca da utilização deste<br />

significativo arsenal, compreendendo que<br />

se o Teatro do Oprimido serve como arma<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

de fortalecimento da participação social do<br />

sujeito, os princípios de liberdade tanto na<br />

reflexão, na atuação social e na produção<br />

cênica devem ser considerados em sua totalidade.<br />

Dessa forma, afirmamos, contundentemente,<br />

que, se o princípio de liberdade não<br />

se consolidar nas práticas de militantes do<br />

Teatro do Oprimido, este arsenal corre o<br />

risco de vir a ser dogmático e tão opressor<br />

quanto às formas conservadoras de ação<br />

por nós criticadas, por restringir as potencialidades<br />

de criação e de invenção estética<br />

do ato cênico. A criação de um estilo não<br />

implica em uma receita a ser seguida. Ao<br />

contrário: o percurso de criação estética se<br />

desenvolve no próprio modo de caminhar<br />

de seus atuantes.<br />

Contudo, algumas orientações de Boal<br />

aqui expressas visam sistematizar uma técnica<br />

de teatro, com a finalidade de possibilitar<br />

a consistente utilização da mesma por<br />

grupos populares, porém tais orientações<br />

não podem ser vistas como passos rígidos<br />

a serem seguidos. Devem ser, na verdade,<br />

questionadas e recriadas a cada processo de<br />

encenação, a cada novo passo dado... a busca<br />

pelo vigor estético implica na concepção,<br />

criação, diálogo e concretização do produto<br />

cênico e isto tudo pode ser mediado em um<br />

processo educativo crítico e humanizador.<br />

Por fim, asseveramos que a sensibilidade,<br />

a liberdade criativa e as peculiaridades de<br />

cada elenco, de cada grupo, constituirão a<br />

poesia e a beleza do ato cênico com todas as<br />

potencialidades estéticas e políticas mencionadas.<br />

Cilene Nascimento Canda TEATRO-FÓRUM: PROPÓSITOS E PROCEDIMENTOS<br />

127


<strong>Urdimento</strong><br />

128<br />

REfERênCIAS UTILIZADAS:<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.<br />

_____, _______. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.<br />

_____, _______. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 2005.<br />

BRECHT, Bertold. Estudos sobre teatro. Tradução de Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira, 1978.<br />

COLETIVO NACIONAL DE CULTURA. Teatro e Transformação Social; Teatro Fórum e Agitprop.Vol.<br />

1. CEPATEC/FNC/MINC/00463. São Paulo, 2006.<br />

DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: Provocação e Dialogismo. São Paulo: Ed. Hucitec,<br />

2006.<br />

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a prática da liberdade e outros escritos. 9ª ed. São Paulo: Paz<br />

e Terra, 2001.<br />

_______, _____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:<br />

Paz e Terra, 1996.<br />

_______, _____. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora<br />

UNESP, 2000.<br />

Nunes, Sílvia Balesteri. Boal e Bene: contaminações para um teatro menor. Tese de doutorado.<br />

Doutorado em Psicologia clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC).<br />

São Paulo: 2004. Orientação: Luiz Benedicto Lacerda Orlandi.<br />

VIEIRA, Carolina Silva. Curinga uma carta fora do baralho: a relação diretor/espectador nos<br />

processos e produtos de espetáculos fórum. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação<br />

em Artes Cênicas. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2009. Orientação:<br />

Antonia Pereira Bezerra.<br />

Cilene Nascimento Canda


N° 18 | Setembro Março de 2012 de 2012<br />

TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />

<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />

TEATRO COMUNITáRIO E<br />

DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO.<br />

Juliano Borba 1<br />

Resumo<br />

O espaço público é tema e foco de trabalho de um grupo de<br />

teatro comunitário da cidade de Buenos Aires, na Argentina,<br />

chamado Pompapetryasos. A partir do seu espetáculo Visita<br />

Guiada é possível relacionar algumas teorias que permitem<br />

compor uma noção de dramaturgia territorial. Para tanto é<br />

necessário compreender a relação entre a cidade e a ação do<br />

grupo como forma de intervenção cultural e política.<br />

PALAVRAS-CHAVES: teatro comunitário, dramaturgia do espaço, cidade<br />

Abstract<br />

Public space is theme and focus of a community theatre<br />

group from Buenos Aires, Argentina, called Pompapetryasos.<br />

From the spectacle Visita Guiada, it is possible to relate some<br />

theories that allow the composition of a notion of territory<br />

dramaturgy. Therefore, it is necessary understanding the<br />

relationship between the city and the group actions as a form<br />

of cultural and political intervention.<br />

KEY WORDS: community theatre, dramaturgy of space, city<br />

1 Juliano Borba é investigador de teatro comunitário. Egresso do curso de Artes Cênicas da<br />

UDESC, o autor fez mestrado em Teatro Aplicado pela Universidade de Exeter, Inglaterra e<br />

está finalizando seu doutoramento em Teoria das Artes na Universidade de Buenos Aires,<br />

Argentina, com tese sobre a Ação Cultural do Teatro Comunitário. É atualmente professor<br />

substituto do Departamento de Artes Cênicas da UDESC.<br />

129


<strong>Urdimento</strong><br />

130<br />

Entre as transformações do teatro<br />

contemporâneo, as que se referem<br />

à dramaturgia e ao espaço como<br />

sistema significante são as que<br />

nos possibilitam pensar uma dramaturgia<br />

do espaço no teatro realizado pelo<br />

grupo de palhaços do bairro Parque Patricios,<br />

em Buenos Aires, chamando Los Pompapetryasos.<br />

O grupo surgiu em 2002, período<br />

de maior expansão do teatro comunitário<br />

na Argentina, quase vinte anos depois do<br />

surgimento do primeiro grupo desse movimento,<br />

Catalinas Sur, em 1983, no bairro<br />

La Boca, em Buenos Aires. Entre os grupos<br />

de teatro comunitário que foram criados no<br />

ano de 2002, além da motivação artística e<br />

social, podemos inferir que também houve<br />

uma motivação para participar politicamente<br />

e mudar os destinos trágicos que a nação<br />

argentina estava experimentando, uma crise<br />

econômica e política que deixou 57% da<br />

população em situação de pobreza e a taxa<br />

de desemprego chegou aos 25%. Los Popapetryasos<br />

se reuniram a partir de um encontro<br />

de vizinhos do bairro Parque Patricios organizado<br />

pelos grupos teatrais seminais como<br />

Catalinas Sur, e o grupo Circuito Cultural<br />

Barracas do bairro de Barracas.<br />

A linguagem estética e teatral é<br />

desenvolvida em função de problemas<br />

concretos como o treinamento e a incorporação<br />

contínua de novos membros e a<br />

criação de espetáculos de qualidade artística.<br />

Por isso evitam os conflitos psicológicos<br />

na necessidade de uma construção<br />

dramatúrgica própria, que possa dar conta,<br />

ao mesmo tempo, de dar espaço para<br />

um grande número de atores, cantores e<br />

músicos, e de envolver as histórias locais<br />

na construção das cenas e do espetáculo.<br />

O grupo trabalha mais com as imagens e<br />

situações criadas pelos personagens-tipo<br />

e pelas canções cantadas em coro, do<br />

que compor uma história linear a partir<br />

de conflitos psicológicos de personagens<br />

individualizados. Tal perspectiva estética<br />

surge dessas necessidades específicas<br />

desse teatro inclusivo e realizado por um<br />

grupo com muitos integrantes. Música e<br />

personagens-tipo bem desenhados facili-<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

tam a construção de um espetáculo baseado<br />

na imagem e no som, em que o texto<br />

literal proposto nas letras das músicas<br />

ajuda a uma composição visual caricatural<br />

e grotesca. Ao invés de uma linearidade<br />

aristotélica, as cenas são episódicas e se relacionam<br />

entre si a partir da temática, e é<br />

a partir desse pré-texto, uma visita guiada<br />

no parque, que o espetáculo é construído<br />

de forma orgânica.<br />

O espaço público é o lugar escolhido<br />

para ensaio, apresentação e tema dos espetáculos.<br />

No espaço público o grupo busca<br />

novas abordagens cênicas para comportar<br />

novos vizinhos que se integram ao grupo e<br />

outros antigos que se afastam. A improvisação<br />

teatral e musical também prepara o grupo<br />

para a espontaneidade e isso quer dizer<br />

que estão gradualmente mais hábeis para<br />

encontrar soluções emergentes relacionadas<br />

com as intervenções e rupturas inesperadas<br />

causadas em decorrência das contingências<br />

desse ambiente.<br />

O segundo espetáculo do grupo chamado<br />

Visita Guiada é um musical itinerante,<br />

percorre alguns pontos da Praça Ameghino<br />

e em cada um constrói teatralmente um<br />

pouco da história, da cultura, e das práticas<br />

de desenvolvimento do poder público e dos<br />

habitantes do bairro. A cidade é o tema da<br />

obra, precisamente seu deterioro físico e insegurança<br />

dos seus espaços públicos 2 .<br />

O Espetáculo Visita Guiada<br />

Algumas horas antes do início do espetáculo,<br />

os membros do grupo ocupam<br />

um determinado lugar no centro da praça<br />

e preparam o espaço para a festa teatral.<br />

Eles armam barraca e tendas, expõem fotos,<br />

e disponibilizam comida e bebida a<br />

preços módicos e depois vão preparando<br />

2 Tal problema foi evidenciado quatro anos depois da estréia do<br />

espetáculo, em uma reportagem do diário Clarin no dia 07-02-<br />

2008, que termina com a seguinte conclusão: “Como contraste,<br />

aún conservan el esplendor de las reformas, la plaza Almagro,<br />

en Bulnes y Perón; las plazas Noruega y Castelli, en Belgrano;<br />

y el Parque Ameghino, en Parque Patricios. Por su parte, los<br />

vecinos esperan que las plazas dejen de dividirse, como las películas,<br />

en clase A y clase B y que todas vuelvan a ser un lugar<br />

para disfrutar”. Para mais da matéria ver: http://www.clarin.com/<br />

diario/2008/02/07/laciudad/h-03801.htm<br />

Juliano Borba<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

cenografias, objetos de cena, pondo figurino,<br />

se maquiando e se compondo para o<br />

espetáculo junto ao público, a vista de todos.<br />

As pessoas chegam, saúdam e conversam<br />

com os integrantes do grupo que estão<br />

em processo de preparação do espetáculo,<br />

compram bebida e comida, e conversam<br />

enquanto esperam o início da obra.<br />

Esse momento inicial e depois final<br />

de confraternização e comemoração entre<br />

espectadores e membros do grupo é uma<br />

das características fundamentais do teatro<br />

comunitário na Argentina. Diz respeito à<br />

necessidade de restabelecer as redes de relação<br />

social. Nesses momentos do evento,<br />

antes e depois da obra espetacular propriamente<br />

dita, existe um espaço de relacionamento<br />

humano acolhedor criado através do<br />

clima de festa familiar. O princípio chave é<br />

estar entre amigos. Existe uma perspectiva<br />

de estreito contato com o público e com a<br />

realidade social que os circunda, de forma<br />

que uma apresentação é um momento para<br />

atrair mais colaboradores e participantes.<br />

Existe uma rotatividade de integrantes, ingressam<br />

novos, se afastam outros antigos.<br />

Neste espetáculo existe uma situação<br />

interessante na qual o espetáculo começa<br />

antes de começar propriamente. Os atores<br />

e músicos se reúnem para realizar um<br />

aquecimento antes de começar o espetáculo<br />

propriamente, realizam esse feito em<br />

frente ao público. Essa prática se configura<br />

como um elemento espetacular, coerente<br />

com a preparação do espaço e dos atores<br />

também em frente ao público. Uma forma<br />

de desmistificar a preparação e os meios de<br />

produção e estabelecer uma relação horizontal<br />

e ritual.<br />

Em formação, ao som do violão, os<br />

atores e músicos cantam e se movimentam<br />

de forma a aquecer corpo e voz e ativar a<br />

concentração necessária à ação teatral. Todos<br />

os atores juntos se aproximam gradualmente<br />

e se apresentam ao público com<br />

uma canção:<br />

TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

En Parque Patricios no hay teatros<br />

Pero los vecinos no nos quedamos<br />

atrás,<br />

Mientras salga el sol sobre este<br />

barrio<br />

Nuestra función debe comenzar.<br />

No tenemos luces ni escenarios<br />

Menos hay telón tampoco hay que<br />

pagar,<br />

Nuestra mejor paga es su aplauso<br />

Y que quiera usted participar.<br />

(Refrão)<br />

Abran bien los ojos<br />

Atentos los sentidos<br />

El teatro ha venido<br />

Y es de todos por igual.<br />

Rompan las caretas<br />

Y que broten las sonrisas<br />

Acomódense de prisa<br />

La función va a comenzar.<br />

Nuestro telón es imaginario<br />

Nuestras luces vienen todas desde<br />

el sol,<br />

Los colores de nuestro escenario<br />

La naturaleza los pinto.<br />

No tendremos luces ni escenario<br />

Pero les mostramos nuestro corazón,<br />

Es sencillo como es este barrio<br />

Y es alegre como esta canción.<br />

(Refrão)<br />

Esta tarde vamos a mostrarles<br />

Para que usted vea lo que no siempre se ve,<br />

Cosas que encontramos en el parque<br />

Cosas que inventamos para usted.<br />

Esta plaza es más que un escenario<br />

Es nuestro poema fiel de inspiración,<br />

Esta historia que hoy representamos<br />

Esta plaza nos la confesó.<br />

(Refrão)<br />

Depois da canção os atores e músicos<br />

se integram ao público enquanto uma policial<br />

se destaca deste e convoca a todos a colocarem<br />

a mão na cabeça para se preparar<br />

para a apresentação com um pensamento<br />

positivo. Pede a todos para repetirem junto<br />

com ela um exercício de pensamento positivo:<br />

“Meu vizinho não vai me roubar”.<br />

Esse momento parece ironizar a situação<br />

de insegurança gerada no processo gradativo<br />

de empobrecimento da população. Em<br />

seguida uma mulher e um homem, em tom<br />

131


<strong>Urdimento</strong><br />

132<br />

solene, vestidos formalmente, se apresentam<br />

ao público como os guias da visita ao<br />

Parque Ameghino. Eles pedem desculpas<br />

pela demora e iniciam falando sobre a importância<br />

da praça como símbolo do processo<br />

de transformação do bairro, de um<br />

lugar rural para um lugar metropolitano.<br />

Do ponto de partida, no centro da praça,<br />

o grupo se desloca cerca de vinte metros<br />

para o norte onde estava um monumento<br />

da praça que possui uma história curiosa.<br />

Era uma linda fonte que foi roubada e representava<br />

as distintas pessoas que habitavam<br />

o bairro, professores, operários, trabalhadores<br />

da saúde, comerciantes e artistas.<br />

O monumento que restou, situado no centro<br />

da praça, é uma homenagem ás vítimas<br />

da febre amarela e aos que ajudaram<br />

a cuidar e a enterrar suas vitimas. A cena<br />

mostra uma versão da situação do roubo<br />

do monumento. A cena termina com a chegada<br />

impactante de um grupo carnavalesco<br />

que vem de longe para ocupar o espaço<br />

antes ocupado pela fonte. A chegada desse<br />

grupo de murga do time de futebol local, o<br />

Huracán, faz uma alusão a duas dimensões<br />

muito importantes da cultura argentina, o<br />

futebol e a murga 3 . Ao som da bateria de<br />

percussão e com uma dança enérgica na<br />

qual predominam chutes para o alto ao ritmo<br />

da bateria eles cantam em tom sarcástico<br />

para que devolvam a estátua.<br />

Somos levados a um caminho no centro<br />

da praça, uma espécie de passagem por<br />

entre as árvores que liga duas faces opostas<br />

da praça, uma que encara o antigo presídio<br />

e outra que encara o Hospital Muníz. Ali encontramos<br />

quatro rapazes em cima de bancos<br />

cantando um tango em tom de serenata,<br />

um deles com uma viola em punho.<br />

A guia convidou a todas as mulheres<br />

para passar pelo corredor humano e os<br />

homens foram convidados a ficar de cada<br />

lado do caminho para compor tal corredor.<br />

Essa cena propõe um jogo com a platéia.<br />

Ao dar cada passo, as mulheres são alvo<br />

dos gracejos lisonjeiros característico do típico<br />

porteño boêmio. Pode-se experimentar<br />

3 Murga argentina é uma agrupação local carnavalesca com<br />

bateria de percussão cantada no coro dos dançarinos e instrumentistas.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

nesse momento um pouco de um comportamento<br />

tradicional.<br />

No fim do espetáculo somos guiados<br />

ao fundo da praça e nos dispomos ao redor<br />

de uma plataforma de concreto na qual se<br />

recompõe uma estátua viva com os atores<br />

em personagens de anjos, e nas extremidades<br />

laterais os atores como os personagens<br />

característicos do bairro e os demais músicos<br />

e atores que criam com a voz e o corpo<br />

uma dança que se dinamiza em ritmo<br />

de hip-hop. Como pano de fundo da ação<br />

teatral, um grande edifício branco de quatro<br />

andares com imensas janelas de vidro,<br />

uma antiga fábrica transformada em apartamentos<br />

e ao lado uma arborizada construção<br />

colonial de cor amarelada, o Hospital<br />

Muníz. Todos os atores e músicos do grupo<br />

estão reunidos no ritmo cantando:<br />

Encontramos la plaza<br />

Así como se ve<br />

Con monumentos en ruina<br />

Y la mugre de ayer<br />

Con voluntad y trabajo<br />

Juntos pudimos lograr<br />

Esta, nuestra historia<br />

Un sueño colectivo<br />

Hecho realidad<br />

Esta, nuestra historia<br />

Un sueño colectivo<br />

Hecho realidad<br />

Este sueño logrado<br />

Puede crecer mucho más<br />

El tiempo no se detiene<br />

No nos quedemos atrás<br />

Para seguir construyendo<br />

Y para nunca olvidar<br />

Depois do hip-hop eles terminam o<br />

espetáculo e respondem aos aplausos com<br />

uma música de encerramento. É possível<br />

perceber algumas pessoas da platéia cantando<br />

com eles:<br />

Los Pompapetriyasos<br />

con todo su amor<br />

En retirada dejamos esta canción;<br />

Con bombo y platillo señor<br />

Con todo nuestro corazón<br />

Porque la Visita Guiada ya<br />

se terminó<br />

Juliano Borba<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Pasen a ver, acérquense,<br />

Porque esta fiesta vecino<br />

Es para usted<br />

Si les gusto nuestra función<br />

Hasta el domingo<br />

Les decimos adiós<br />

Los Pompapetriyasos con todo su<br />

amor<br />

En retirada dejamos esta canción;<br />

Con bombo y platillo señor<br />

Con todo nuestro corazón<br />

Porque la Visita Guiada ya se terminó<br />

Pasen a ver, acérquense,<br />

Porque esta fiesta vecino<br />

Es para usted<br />

Si les gusto nuestra función<br />

Hasta el domingo<br />

Les decimos adiós<br />

Ao fim da música, uma nova sessão de<br />

aplauso que a diretora Agustina Ibarrea<br />

interrompe ao tomar a dianteira do grupo<br />

para agradecer ao público sua presença.<br />

Avisa que os atores irão passar o chapéu<br />

para recolher as contribuições voluntarias.<br />

Ela explica de forma sintética que o grupo<br />

é comunitário e todos são bem vindos<br />

a participar e avisa que o grupo se reúne<br />

para trabalhar nas quartas-feiras à noite no<br />

Clube Atlético Parque Patricios e aos sábados<br />

à tarde na praça, se o tempo está bom,<br />

ou no clube se estiver muito frio ou chovendo.<br />

Grande parte das pessoas fica junto<br />

aos membros do grupo por mais muito<br />

tempo entre saudações e conversas, e os<br />

ajudam a levar cenografia e instrumentos<br />

musicais até o quartel general do grupo no<br />

outro lado da praça.<br />

Dramaturgia, espaço público e<br />

participação política<br />

Para entender como um espaço público<br />

da cidade ofereceu uma possível dramaturgia<br />

para espetáculo Visita Guiada, parece<br />

necessário tecer as bases teóricas de uma<br />

possível relação entre dramaturgia e o espaço<br />

público da cidade. No que se refere à<br />

dramaturgia, a utilização canônica do texto<br />

dramático para a composição do espetácu-<br />

TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

lo experimentou uma crise que possibilitou<br />

novas perspectivas dramatúrgicas para<br />

além da mise en escéne. Pudemos perceber<br />

novos olhares teóricos e práticos sobre a<br />

complexa rede de significados emitidos e<br />

recebidos no espetáculo, que podem ser<br />

entendidos como processos de codificação<br />

e decodificação. Ao pensar o espetáculo,<br />

os críticos e encenadores contemporâneos<br />

migraram seu interesse do objeto dramatúrgico<br />

em si, o texto dramático, para as<br />

possíveis relações dramatúrgicas que poderiam<br />

ser geradas na relação entre as diversas<br />

dimensões da manifestação teatral.<br />

De modo geral não se negou totalmente a<br />

importância da dramaturgia. No entanto,<br />

expandiram-se suas possibilidades através<br />

de redes de relação e significação operando<br />

em regime de complexidade. Ao invés<br />

da utilização do texto dramático canônico<br />

sob direção de um ensaiador, as histórias<br />

surgem de vários pontos e perspectivas,<br />

porque os diversos componentes do teatro<br />

podem comunicar sob a direção de um diretor<br />

compositor que se permite fraturar e<br />

recompor o texto base da ação. Os espectadores<br />

também aprimoraram suas ferramentas<br />

de leituras e esse diálogo entre ação<br />

e recepção está possibilitando agregar conhecimentos<br />

sobre o que funciona e o que<br />

não funciona na relação com o público, ainda<br />

mais quando se refere à ação teatral que<br />

acontece no espaço que é dele (do público),<br />

como no teatro de rua.<br />

A partir desta nova relação semântica<br />

proposta na dramaturgia do espectador,<br />

foi possível pensar no caráter dramatúrgico<br />

de outros elementos compositores do<br />

espetáculo. Ao pensar na recepção, se pensou<br />

também nas diversas formas de significar<br />

e comunicar. Cada elemento poderia<br />

dar sua “fala” no espetáculo e propor conflitos<br />

e significados. Os encenadores, a partir<br />

de novas fronteiras, se propõem a criar e<br />

adentrar novos territórios para orquestrar<br />

o espetáculo. Surgiram dramaturgias do<br />

diretor, do ator, da cenografia, da iluminação,<br />

e da cidade.<br />

No que se refere ao espaço público da<br />

cidade, pensar a cidade é de algum modo<br />

133


<strong>Urdimento</strong><br />

134<br />

pensar a modernidade e vice-versa. A cidade<br />

como conhecemos hoje pode ser<br />

considerada uma realização humana que<br />

se identifica com o processo histórico que<br />

chamamos Modernidade. Surgiu como resultado<br />

da transformação nos modos de<br />

vida, nos processos de produção, circulação<br />

e consumo de bens simbólicos e materiais,<br />

bem como de novas formas de pensar<br />

e agir sobre o mundo, através do processo<br />

de secularização, desmistificação e teatralização.<br />

No entanto, podemos pensar a cidade<br />

desde a civilização grega clássica que foi<br />

construída ao redor da polis e sua promessa<br />

de vida coletiva com ordem, segurança<br />

e participação.<br />

Sobre o surgimento da polis a partir da<br />

transição da sociedade tribal, isto é organizada<br />

a partir de laços e privilégios consangüíneos,<br />

Harvey Cox propõe que o<br />

homem, quando surge na história, já é um<br />

animal social, vivendo num grupo coletivo,<br />

principalmente na tribo onde ele podia<br />

se entender enquanto homem. Para ele o<br />

surgimento da polis grega, da transição da<br />

tribo para a cidade, foi uma das eclosões<br />

mais decisivas da história. “Esta apareceu<br />

quando os clãs belicosos e as casas rivais<br />

se reuniram aqui e ali para formarem um<br />

novo tipo de comunidade. Então a lealdade<br />

às leis e aos deuses desta substituiu os<br />

laços de parentesco mais elementares que<br />

outrora eram fortes (1971, p.20)”. O teatro<br />

foi uma linguagem importante no surgimento<br />

da polis para preparar culturalmente<br />

aos cidadãos para essa dramática transição<br />

da lógica tribal para a lógica da polis. A tragédia<br />

de Sófocles, Antígona evidencia esse<br />

conflito entre lealdades e relações a partir<br />

dos laços de sangue na tribo e a justiça<br />

mais impessoal da polis. O drama da cidade<br />

e sua transposição para o palco não é novo<br />

e compõe os rizomas teatrais do ocidente.<br />

Mais de dois mil anos depois do surgimento<br />

da polis, a cidade ainda enfrenta<br />

o dilema da relação humana e da participação<br />

política na coletividade: como viver<br />

em comunidade e não participar politicamente?<br />

Hanna Arendt construiu uma<br />

noção de participação política e citou a<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

contribuição de Sócrates, que sintetizava<br />

o ideal político na doxa, que não significava<br />

mera opinião, mas também esplendor e<br />

fama nas relações humanas na esfera pública,<br />

onde cada um pode mostrar quem<br />

é. A convicção de Sócrates era que todo<br />

homem possui sua própria abertura ao<br />

mundo, e, portanto, a metodologia de interação<br />

humana seria a dialética, na qual a<br />

pergunta é a forma inicial de se assegurar<br />

da posição do outro diante de um mundo<br />

comum. Para Arendt, resultava óbvio que,<br />

dentro de tais circunstâncias, esse clássico<br />

diálogo que não necessitava de conclusão<br />

era mais apropriado entre amigos, que falam<br />

do que têm em comum (2008, p. 54-<br />

56).<br />

Num contexto de uma polis se formando<br />

em transição conflituosa com o paradigma<br />

tribal, essa relação de amizade, no curso<br />

do tempo e da vida começa a construir<br />

um pequeno mundo capaz de fortalecer a<br />

comunidade ameaçada pela competição.<br />

De acordo com Aristóteles, a comunidade<br />

nasce da igualdade política fruto da amizade,<br />

da philia, y de acordo Sócrates, esse<br />

mundo comum criado entre os amigos não<br />

necessita de governo (Ibid., p. 52-56).<br />

A partir do teatro gerado não pela<br />

relação profissional, mas pela relação de<br />

amizade, que tem poder de gerar festas e<br />

celebrações, uma voz coletiva é articulada<br />

e emite opiniões na esfera pública da sociedade.<br />

Além de comunicar, essa voz espetacular<br />

gera interação social dentro da comunidade<br />

e com o público.<br />

Por outro lado, a cidade, no contexto<br />

da Modernidade espetacular contemporânea,<br />

constitui uma rede de falas que, ao<br />

serem articuladas entre si e com as outras<br />

dramaturgias possíveis do espetáculo, podem<br />

fornecer uma dramaturgia do espaço<br />

e incrementar a teatralidade do espetáculo<br />

que ocupa esse espaço. Como propõe<br />

André Carreira, a dramaturgia da cidade<br />

é emergente da explicitação dos contextos<br />

relacionais deste espaço territorial que<br />

são expressos em sua silhueta, seus fluxos,<br />

seus usos, suas histórias, suas contradições<br />

(2008). Tal polissemia tece uma dramatur-<br />

Juliano Borba<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

gia muitas vezes difícil de ser identificada,<br />

más que pode ser utilizada de forma reveladora<br />

no jogo espetacular do teatro de rua.<br />

A dramaturgia da cidade explicita uma<br />

possibilidade do teatro de rua perceber a<br />

relação entre a cidade e obra teatral que a<br />

ocupa.<br />

Nesse contexto, tal ação artística territorial<br />

do teatro comunitário pode ser entendida<br />

se conjugarmos essa noção crítica<br />

de Modernidade junto à noção cunhada<br />

por Nicolás Bourriaud como Estética Relacional.<br />

O autor propõe o surgimento de<br />

propostas estéticas que surgem no âmbito<br />

das relações sociais articuladas a partir e<br />

em função da obra artística, que é gerada<br />

e fruída em um interstício social (2005, p.<br />

13). Ao articular a arte não a partir de cânones<br />

estéticos, mas a partir das relações humanas<br />

evidenciadas e estimuladas na vida<br />

urbana, a estética relacional parece ajudar<br />

a construir a noção de dramaturgia territorial.<br />

Neste sentido, não apenas a urbe, mas<br />

o território como geradora de inúmeras e<br />

variadas relações, se torna o ambiente propício<br />

para uma arte relacional. Poderíamos,<br />

com a premissa acima, pensar a cidade<br />

como obra relacional em si, assim como<br />

uma dramaturgia de obras, relações, usos e<br />

fluxos que ocupam o seu espaço.<br />

O fenômeno do teatro comunitário se<br />

efetiva na canalização das forças produtivas,<br />

na organização dos saberes artísticos<br />

e culturais que existem em determinado<br />

território. Essas manifestações de territorialidade<br />

se efetivam a partir de uma localização,<br />

da uma definição de fronteiras e<br />

territórios. Esta atuação territorial nos espaços<br />

públicos, praças, calçadas, esquinas,<br />

permite a esse teatro comunitário dialogar<br />

diretamente com textos emanados na cidade<br />

e construir uma articulação dramatúrgica<br />

a partir de novas relações de significação.<br />

O espaço público da comunidade é<br />

articulado artisticamente pelos atores-vizinhos.<br />

Como vizinhos eles já ocupavam o<br />

espaço público e o teatro comunitário permitiu<br />

que esse domínio comum fosse alvo<br />

de suas dramaturgias.<br />

A arte do encontro de vizinhos do bair-<br />

TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

ro Parque Patricios parece ser uma propulsora<br />

estética capaz aproximar o teatro do<br />

ritual. Existe uma capacidade de envolver<br />

a comunidade através de um evento teatral<br />

que tem características de uma festa pública<br />

no espaço da cidade. As relações de cooperação<br />

do teatro estariam possibilitando<br />

um cimento gerador de aglutinação social,<br />

de capital social e simbólico e de ação conjunta<br />

que capacita e motiva os membros de<br />

uma comunidade para participar politicamente<br />

e para ler a cidade já espetacularizada<br />

pela cultura visual, como texto útil<br />

ao teatro e à cidade. Sem necessariamente<br />

buscar o novo ou o inédito, proposta da<br />

arte moderna por excelência, ou sem buscar<br />

uma relação polar entre produtores e<br />

consumidores de arte e cultura, o teatro<br />

comunitário subverte a ordem e a lógica<br />

dominante exposta pela cidade e a prepara<br />

para essa transformação latente da arte e<br />

da cultura como ordinária como bem propôs<br />

Raymond Williams.<br />

O espetáculo permite perceber o<br />

espaço público como espaço cultural. O<br />

espetáculo fala para os membros da comunidade<br />

e essa interlocução precisa indica<br />

que é sobre todos eles que pesa a responsabilidade<br />

de tornar os espaços públicos<br />

preparados para o uso-fruto da população,<br />

uma voz artística sobre a política, questiona<br />

a relação do Estado e do próprio vizinho<br />

com o espaço público.<br />

A característica territorial do teatro<br />

comunitário é fundamental para entender<br />

teoricamente como se manifesta sua dramaturgia<br />

espacial. No caso do teatro comunitário<br />

talvez fosse apropriado entender<br />

como dramaturgia territorial. Perspectivas<br />

teóricas atuais referentes ao território, territorialidade<br />

e desenvolvimento territorial<br />

encaram o território não como simplesmente<br />

uma realidade geográfica ou física,<br />

mas uma realidade complexa, ao mesmo<br />

tempo humana, social, cultural e histórica.<br />

Por um lado, a formação de um território<br />

resulta do encontro e da mobilização dos<br />

atores sociais que integram um dado espaço<br />

geográfico e que procuram identificar<br />

e resolver problemas comuns. Por outro<br />

135


<strong>Urdimento</strong><br />

136<br />

lado, um “território dado”, cuja delimitação<br />

é político-administrativa, pode abrigar<br />

vários “territórios construídos” Assim, o<br />

território pode ser visto como uma configuração<br />

mutável, provisória e inacabada,<br />

e a sua construção pressupõe a existência<br />

de uma relação de proximidade dos atores.<br />

Um “território é ao mesmo tempo uma<br />

construção coletiva e um recurso institucional.”<br />

(Carriere & Cazella 2001, p. 33).<br />

Mais do que terminar esse artigo com<br />

conclusões, me parece que o exercício para<br />

refletir a dramaturgia do espaço no teatro<br />

comunitário possibilitou encontrar novos<br />

problemas e espaços de investigação. Portanto,<br />

para aprofundar no entendimento<br />

de como a cidade pode contribuir enquanto<br />

dramaturgia seria necessário definir uma<br />

compreensão do conceito de território e<br />

dessa relação territorial que compõe o ethos<br />

desses grupos. Essa relação territorial pela<br />

definição de um território e de suas fronteiras<br />

gera relações de pertencimento e não<br />

significa na prática impermeabilidade, mas<br />

diferencia essa prática comunitária das outras<br />

nesse campo teatral, com possibilidades<br />

de intercâmbios entre outros grupos,<br />

seus territórios, características.<br />

Aqui estamos relacionando duas dimensões<br />

de territorialidade: por um lado,<br />

uma dimensão territorial que se refere à<br />

localização territorial de cada grupo, sua<br />

comunidade que pode ser seu bairro, povoado,<br />

instituição, interesse. Por exemplo,<br />

o grupo Pompapetryasos é do bairro Parque<br />

Patrícios e o grupo Catalinas Sur é um grupo<br />

de teatro comunitário do bairro La Boca.<br />

Por outro lado, existe uma territorialidade<br />

que diz respeito ao teatro comunitário<br />

como categoria teatral específica dentro<br />

do vasto campo teatral argentino, esses<br />

grupos ligados a comunidades específicas<br />

constituem um território teatral, posto em<br />

relação com outros como o teatro oficial,<br />

teatro comercial, teatro independente e teatro<br />

de rua. Nesse espaço territorial complexo<br />

da comunidade e do teatro comunitário,<br />

esses vizinhos exercem sua criatividade e<br />

sua produção teatral.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Juliano Borba<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

REfERênCIAS:<br />

TEATRO COMUNITáRIO E DRAMATURGIA DO ESPAçO PÚBLICO<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

ARENDT, Hanna. La Promesa de la Política. Barcelona: Paidós, 2008.<br />

CAPACCIOLI, Héctor & TROTTA, Nicolás. Comunas: participando transformemos Buenos<br />

Aires. Prólogo de Daniel Filmus. Buenos Aires: Fundación Caminos del Sur, 2007.<br />

COX, Harvey. A Cidade do Homem. Rio de Janeiro: Record, 1971.<br />

CARRIERE, Jean-Paul, & CAZELLA, Ademir, A. “Abordagem introdutória ao conceito<br />

de desenvolvimento territorial”. In: Revista Eisforia, Florianópolis, UFSC V1, N.1, Jan-jun<br />

de 2003, pp. 23-47.<br />

CARREIRA, André e BOURRIAUD. “Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade.”<br />

In: LIMA, Evelyn F.W. (Org.) Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de<br />

Janeiro: Sete Letras, 2008, pp. 67-78.<br />

BOURRIAUD, Nicolás. La Estética Relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo editorial,<br />

2006.<br />

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Imaginarios Urbanos. 3ª. Ed. Buenos Aires: Eudeba, 2005.<br />

137


ENCONTRO COM DRAMATURGO<br />

BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente Concilio. ATRIz: Emanuele Mattiello. Foto: Guilherme Santos.


N° 18 | Setembro de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Meta-textualidade, instâncias<br />

de enunciação e conflitos<br />

não-narrativos – reflexões<br />

sobre impulsos não-dramáticos na<br />

dramaturgia brasileira contemporânea<br />

Stephan Baumgärtel 1<br />

Resumo<br />

Este artigo analisa o texto contemporâneo como proposta<br />

de um arranjo cênico para expor o trabalho formativo da<br />

linguagem quando encontra o ser humano e passa por seu<br />

corpo na concretude dos corpos dos atores. Ele exemplifica<br />

essa visão por meio de uma leitura estrutural e temática de<br />

dois exemplos da dramaturgia textual brasileira: Vida de<br />

Márcio Abreu e Pinokio de Roberto Alvim.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia brasileira contemporânea –<br />

performatividade textual – Márcio Abreu – Roberto Alvim<br />

Abstract<br />

This paper analises the contemporary theatre text as a<br />

proposal for scenique arrangements whose goal is to expose the<br />

formative work of language when it meets the human being e<br />

passes through his body the concreteness of the actors’ bodies. It<br />

exemplifies this vision through a structural and thematic reading of<br />

two examples of contemporary Brazilian textual dramaturgy: Vida<br />

by Márcio Abreu and Pinokio by Roberto Alvim.<br />

KEYWORDS: Contemporary Brazilian dramaturgy – textual<br />

performativity – Márcio Abreu – Roberto Alvim<br />

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC.<br />

META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 141


<strong>Urdimento</strong><br />

142<br />

Um convite a vivenciar a escrita<br />

teatral. Em 2011, criei o projeto<br />

Encontro com Dramaturgo,<br />

em parceria com Fábio Salvatti<br />

do Departamento de Artes Cênicas<br />

da UFSC e com apoio financeiro do<br />

CNPq e da SecArte da UFSC. O projeto<br />

consistia em palestras e oficinas de criação<br />

de textos teatrais oferecidas por dramaturgos<br />

brasileiros de renome com o intuito de<br />

possibilitar para as pessoas interessadas<br />

de Florianópolis, sejam elas acadêmicas<br />

ou membros da comunidade, um contato<br />

com representantes da dramaturgia brasileira<br />

contemporânea; estimular a discussão<br />

acerca dos desafios e tensões formais que<br />

determinam essa dramaturgia no que diz<br />

respeito à sua contemporaneidade; e fazer<br />

os participantes experimentarem as propostas<br />

cênicas e textuais contemporâneas<br />

trazidas pelos dramaturgos convidados(<br />

os quais trabalham todos também como<br />

diretores teatrais). Participaram como oficineiros<br />

e palestrantes do projeto em 2011<br />

os dramaturgos/diretores Márcio Abreu<br />

(PR), Grace Passô (MG), Roberto Alvim<br />

(SP) e Samir Yazbek (SP). Posteriormente,<br />

pedi aos artistas para responderem a um<br />

questionário, com o intuito de oferecer ao<br />

público mais amplo, leitores da revista UR-<br />

DIMENTO, um panorama comparativo<br />

dos temas levantados nas palestras e oficinas.<br />

As oficinas e palestras atestaram a diversidade<br />

das preocupações formais tanto<br />

dos autores convidados quanto dos participantes<br />

locais. Talvez por serem em grande<br />

parte alunos dos dois cursos de Artes Cênicas<br />

(UDESC/UFSC) e por participarem<br />

há bastante tempo das oficinas contínuas<br />

oferecidas por mim na UDESC, nas oficinas<br />

surgiram propostas que juntaram no<br />

mesmo texto elementos dramáticos (diálogo,<br />

intersubjetividade), épicos (narrativa,<br />

contação de história) e líricos (linguagem<br />

autorreferencial, devaneios subjetivos). 2 As<br />

oficinas corrobaram neste sentido a afirmação<br />

de Patrice Pavis (2003, p.405) de que<br />

um texto teatral se define pelo simples fato<br />

de ser falado em cena.<br />

Um arranjo textual para expor a língua<br />

em cena. Entretanto, o fato de que não<br />

faz mais sentido qualificar de texto teatral<br />

somente os textos com personagem e diálogos<br />

intersubjetivos que levam a narrativa<br />

ficcional até uma solução final, exige que se<br />

repense as características de um texto para o<br />

palco. A função principal deste texto, então,<br />

não é mais criar um mundo ficcional mimético,<br />

mas talvez, como propõe Theresia Birkenhauer<br />

(2005), expor a língua. Nessa visão de<br />

teatro contemporâneo, a prática teatral exibe<br />

nas qualidades materiais, temporais e espaciais<br />

da cena a estrutura lingüística, poética<br />

e sonora de um texto específico. O que os espectadores<br />

contemplariam é o encontro da<br />

língua com a materialidade e corporeidade<br />

da cena. Nesse sentido, Pavis define jocosa<br />

e ambiguamente esta exposição da língua<br />

como um colocar “em jogo” do texto. 3 Esse<br />

por-em-jogo do texto concretiza o potencial<br />

especificamente estético do verbo e do texto<br />

escrito no contexto do palco. Theresia Birkenhauer<br />

frisa como tarefa de uma encenação<br />

desses textos evidenciar, por meio do palco,<br />

qualidades específicas da língua do texto:<br />

N° 18 | Setembro de 2012 N° 18 | Setembro de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

A encenação realiza uma dimensão da<br />

língua que se livra da função descritiva<br />

e comunicativa da fala dramática.<br />

Ela gera novos espaços de significação,<br />

de modo que a língua não é mais<br />

somente parte funcional da narrativa<br />

dramática, mas desenvolve um movi-<br />

2 Devido a esta mistura de gêneros literários, Jean-Pierre Sarrazac<br />

chama o narrador deste tipo de texto de “rapsodo”. O que me interessa<br />

neste artigo é apontar desdobramentos formais que essa estrutura<br />

rapsódica provoca na contemporaneidade, tanto no que diz respeito à<br />

noções representacionais – “a personagem”, “a narrativa” – quanto à<br />

relação entre texto e cena. Sarrazac esboça como essa escrita que se<br />

distancia da escrita dramática leva não à totalidade e homogeneidade<br />

do texto, mas a combinações de elementos ficcionais heterogêneos e<br />

ao realce da situação teatral: “Em suma, apagar da obra a relação de<br />

interdependência, inscrever no seu lugar a de estranhamento. E, antes<br />

de mais, problematizando a relação primordial do teatro dramático, a<br />

sua partitura original: a dicotomia do espaço intracênico (o microcosmo)<br />

e do espaço extracênico (o macrocosmo) que o engloba.” (2002, p.38)<br />

3 Pavis, 2011, p. 105.<br />

Stephan Baumgärtel<br />

mento próprio, que por sua vez transforma<br />

o acontecimento cênico. Desse<br />

modo, a encenação possibilita uma<br />

transformação e uma modelagem da<br />

fala teatral e com isso uma prática da<br />

linguagem própria do teatro. 4 .<br />

Atrás dessa redefinição do papel da<br />

língua existe não só uma concepção nãorealista<br />

da língua e do verbo no palco, mas<br />

um entendimento da língua humana enquanto<br />

estrutura e espaço experiencial que<br />

excede o indivíduo e que simultaneamente<br />

o conecta com uma dimensão transindividual.<br />

Graças a essa concepção, a exposição<br />

da língua não se limita a um fetichismo formal<br />

para com a língua humana. A língua<br />

enquanto mimese de uma in/consciência é<br />

um fenômeno libidinal, social e histórico;<br />

dialógico em si, por tanto incessantemente<br />

marcado por tensões e pressões internas<br />

que lhe dão seu contorno específico. Mas a<br />

comunicação cotidiana ofusca essa dimensão<br />

social e histórica quando faz de conta<br />

de que o sujeito é um indivíduo no sentido<br />

literal da palavra; que ele domine a estrutura<br />

da língua e pode organizar e mimetizar<br />

o mundo racionalmente ao transformá-lo<br />

em fragmentos de informação controlável.<br />

Expor a língua no encontro com a cena implica<br />

expor, na materialidade da cena, essas<br />

inscrições libidinais, históricas e sociais<br />

no sujeito contemporâneo. Tornar visível<br />

no palco a marca da língua no corpo e na<br />

existência humana<br />

Essa concepção não logocêntrica influencia<br />

não só a estrutura de textos de<br />

autores como Handke, Koltés, Müller e<br />

Novarina. Ela também está incipiente na<br />

construção estrutural de textos teatrais de<br />

Maeterlinck e até de Tchechov, cujos diálogos<br />

monológicos possuem menos uma<br />

função comunicativa que expositiva. 5<br />

O que interessa nesse contexto teatral é<br />

o encontro entre língua e subjetividade humana:<br />

mostrar como essa subjetividade é<br />

atravessada pelas forças da língua. Por isso<br />

o enfoque no encontro entre o sujeito artís-<br />

4 Birkenhauer, 2012.<br />

5 Ver Birkenhauer (2005) e os ensaios reunidos em Autant-Mathieu,<br />

1995.<br />

tico e o material ganha destaque: criar uma<br />

língua, um verbo em cena, que amostra os<br />

conflitos entre subjetividade artística (autor,<br />

ator, personagem) e os contextos sincrônicos<br />

e diacrônicos da história no âmbito da<br />

linguagem, por meio da construção do texto<br />

teatral. Parece-me ser uma função primordial<br />

no trabalho textual desses autores configurar<br />

esse encontro cênico; propor o trabalho<br />

com a língua como um trabalho com a<br />

subjetividade humana que está em conflito<br />

consigo mesmo. Tradicionalmente, este trabalho,<br />

por seu caráter formal autorreflexivo<br />

e seu enfoque na subjetividade de uma figura<br />

autoral, foi reservado ao gênero lírico, o<br />

que explica porque, nas primeiras reflexões<br />

sobre este uso novo da língua no teatro contemporânea,<br />

este trabalho foi qualificado de<br />

“poético”. Observa Theresia Birkenhauer:<br />

No teatro dramático, o texto apresenta<br />

os esboços de ação para um<br />

acontecimento ficcional e é texto<br />

de um personagem (portanto, fala<br />

figurativa). Textos teatrais além do<br />

drama, no entanto, mostram uma<br />

tematização autorreflexiva da língua<br />

e deveriam ser lidos enquanto<br />

“poesia”: Libertado da polifuncionalidade<br />

fundamental da comunicação<br />

cotidiana, ou seja, da comunicação<br />

puramente referencial<br />

de informações, a linguagem no<br />

texto teatral pode ativar preferencialmente<br />

a função poética de seus<br />

signos. 6<br />

Para logo fazer uma ressalva acerca<br />

dessas teorias que definem a autorreflexão<br />

como poética:<br />

6 Ver Birkenhauer (2012)<br />

Mas o que qualifica uma fala<br />

dramática enquanto “texto para um<br />

papel”? O que a qualifica enquanto<br />

“poesia”? A tese dos gêneros diz<br />

que é a referência da fala dramática<br />

a um contexto de ações, que a torna<br />

“texto para um papel”. Onde se<br />

renuncia “as axiomas dramáticas<br />

de ação”, onde a linguagem<br />

dramática é libertada da função de<br />

caracterizar e diferenciar pessoas,<br />

META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 143


<strong>Urdimento</strong><br />

144<br />

onde a fala não se refere mais<br />

a personagens, ali há ‘poesia’.<br />

Mas isso significa, inversamente,<br />

que não há “poesia” onde existe<br />

um contexto dramático de ação,<br />

personagens ficcionais, indicações<br />

de fala referentes a pessoas? Essa<br />

conclusão inversa mostra o quanto<br />

tal definição conceitual é discutível.<br />

Ela aponta a dificuldade de uma<br />

delimitação que torna o “poético”<br />

uma característica de textos teatrais<br />

que desconhecem a fala figurativa e<br />

um contexto de ação. 7<br />

Portanto, mais importante do que definir<br />

um texto enquanto poético ou dramático<br />

é entender como e com que finalidade<br />

um texto sugere e manipula essas características,<br />

inserindo, por meio desse jogo, o<br />

verbo e possíveis figuras teatrais no duplo<br />

contexto teatral: da situação teatral (de<br />

apresentação física aqui e agora) e da situação<br />

ficcional (fisicamente ausente, mas<br />

presente no imaginário), a comunicação<br />

palco-platéia e a comunicação intra-ficcional<br />

(que não precisa ser entre personagens,<br />

pois pode constituir-se também entre blocos<br />

temáticos textuais ou modos verbais<br />

discursivos diferentes).<br />

As três entrevistas por escrito, incluídas<br />

neste volume da URDIMENTO, mostram<br />

tanto um incômodo comum entre os dramaturgos<br />

para com o formato do drama burguês<br />

quanto uma diversidade formal muito<br />

grande de como responder a essa insatisfação.<br />

Embora seja um consenso que o formato<br />

do drama burguês dificilmente consiga<br />

oferecer um contexto formal adequado<br />

para expressar os conflitos relevantes da<br />

subjetividade contemporânea, cada artista<br />

entrevistado apresenta um estilo particular<br />

de como intervir criticamente na escrita<br />

dramática ou até deixá-la para trás, e como<br />

colocar a própria língua em jogo.<br />

A produção textual desses três dramaturgos<br />

mostra opções formais bem diversas.<br />

Roberto Alvim iniciou sua carreira<br />

com textos relativamente tradicionais em<br />

7 Idem.<br />

termos de suas técnicas miméticas, 8 para<br />

ultimamente criar textos que rompem radicalmente<br />

com os pilares da forma do<br />

drama: personagem, ação ficcional linear<br />

e diálogo intersubjetivo. Márcio Abreu<br />

possui um interesse especial nos desafios<br />

da situação teatral para a escrita dramatúrgica.<br />

Como incluir a performatividade do<br />

encontro teatral também na escrita dramatúrgica<br />

e torná-la tão importante quanto os<br />

recursos narrativos em forma dialogados?<br />

Seu texto Vida 9 pode ser lido como resposta<br />

tentativa à questão de como criar deslizes<br />

significativos entre o ficcional e o performativo,<br />

entre o representacional e o autoreferencial<br />

da escrita teatral. Samir Yazbek,<br />

por sua vez, aproveita a forma dramática<br />

para problematizar o personagem tradicional<br />

autônomo, e com isso cria perfurações<br />

oníricas e reflexivas em seus textos que revelam<br />

a crise da subjetividade moderna.<br />

Predomina nesses autores a tentativa de<br />

usar criticamente o modo dramático um fio<br />

comum, mesmo que os experimentos formais<br />

recentes de Roberto Alvim apresentem<br />

tentativas de deixar o formato do drama<br />

burguês definitivamente para trás.<br />

No que segue quero discutir três aspectos<br />

formativos que, entre outros, me parecem<br />

importantes para confrontar textos<br />

da dramaturgia brasileira contemporânea<br />

com seu contexto formal e histórico atual.<br />

Primeiro, o enfoque na situação teatral,<br />

não no sentido de definir por meio de<br />

didascálias as ações cênicas, mas no sentido<br />

de manipular sutilmente os dois eixos<br />

comunicativos na textualidade da escrita.<br />

Articular uma textualidade mimética<br />

e uma textualidade autorreferencial, ou<br />

uma meta-textualidade, para convocar a<br />

montagem a expor a estrutura lingüística,<br />

o verbo fixado e o verbo falado, como um<br />

elemento integral de sua poética performativa.<br />

Como é que certos textos configuram<br />

e manipulam as interseções e os confrontos<br />

entre a partilha do ficcional e a partilha do<br />

real (para variar Ranciére), “a dicotomia<br />

do espaço intracênico (o microcosmo) e do<br />

8 Por exemplo o texto Ás Vezes É Preciso Usar um Punhal<br />

para Atravessar o Caminho, de 2003.<br />

9 Cito deste texto a partir da versão final, eletrônica e não publicada.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Stephan Baumgärtel<br />

espaço extracênico (o macrocosmo) que o<br />

engloba” (Sarrazac, 2002, p.38), a partilha<br />

do imaginário e do sensível? Como posso<br />

entender a finalidade dessa manipulação;<br />

dessa proposta de uma dupla e conflituosa<br />

partilha?<br />

Segundo, um impulso que em seu extremo<br />

leva à dissolução de personagens<br />

e dramatis figurae em meras instâncias de<br />

enunciação. Como é que certos textos brasileiros<br />

solapam os fundamentos do personagem<br />

dramático, mesmo que ainda usem<br />

um conjunto de signos lingüísticos que o<br />

definem (o pronome “eu”, uma problemática<br />

psicológica, a fala individual enquanto<br />

impulso para desencadear ações dramáticas,<br />

o choque com um antagonista, etc.)?<br />

Qual é a finalidade disso, e qual é o objetivo<br />

quando se dissolve quase por completo<br />

a instância individualizada de enunciação?<br />

Terceiro, a dissolução do conflito narrativo<br />

e a construção de um conflito interno<br />

à consciência textual; a configuração de<br />

um conflito entre consciência artística e o<br />

material trabalhado: conflito este agora incorporado<br />

pelo texto teatral. Como é que<br />

textos não-dramáticos perfuram o conflito<br />

ficcional narrativo e o deslocam para um<br />

agon formal, mais impessoal e estrutural,<br />

que remete à tensão entre a consciência (ou<br />

percepção humana) e um mundo maior<br />

que esta consciência e por isso parcialmente<br />

indisponível à dominação formal.<br />

De fato, nos exemplos comentados<br />

mais adiante, podemos verificar que estes<br />

três aspectos são interligados, sendo que<br />

em cada caso seria necessário avaliar o status<br />

de cada um bem como sua função poética<br />

e crítica no conjunto dos procedimentos<br />

de escrita teatral. A escrita teatral ‘além<br />

do drama’ possui algumas características<br />

formais em comum, mas não por isso constitui<br />

um corpus homogêneo.<br />

O que permeia essas três questões e justifica<br />

as reflexões para além de seu status<br />

enquanto exercício de análise teatral-literária<br />

é a questão da necessidade de mediar o<br />

impulso artístico vanguardista de realizar<br />

uma ruptura formal com o horizonte de expectativa<br />

mais tradicional de uma boa par-<br />

te do público, em um país que praticamente<br />

desconhece o apoio material e financeiro<br />

do Estado para realizar esses experimentos<br />

formais. Esta questão se coloca também por<br />

outro motivo histórico: será que a forma de<br />

incorporar o capitalismo globalizado na<br />

realidade brasileira não é um modo antropofágico<br />

de pós-modernizar o país? Qual<br />

seria o valor de uma estrutura simbólica<br />

pós-moderna nessa situação? Será que um<br />

pouco de narrativa linear, de sobriedade<br />

semântica, de personagem agente na situação<br />

ficcional, não constitui um ingrediente<br />

imprescindível para uma arte que se pretende<br />

como crítica para com o status quo?<br />

Não para afirmar essas possibilidades, mas<br />

para discutir suas condições? Nesse sentido,<br />

acredito que é a construção de uma<br />

tensão conflituosa entre drama e teatralidade,<br />

entre as dimensões representacionais<br />

e performativas que produz os resultantes<br />

mais instigantes e provocadores na dramaturgia<br />

atual.<br />

Interseções entre textualidade mimética<br />

e meta-textualidade. O texto Vida de<br />

Marcio Abreu apresenta já no início uma<br />

pequena estrutura verbal que tanto formalmente<br />

quanto semanticamente evidencia<br />

com quais desafios a manipulação dos dois<br />

eixos de comunicação se depara. O texto<br />

inicia com um ator, que passa pela platéia<br />

e, subindo ao palco, diz as seguintes palavras<br />

(Abreu, 2010, p.1):<br />

Rodrigo - Quem brilha? (Pausa)<br />

foneticamente, a pergunta é uma<br />

modulação ascendente, na emissão<br />

da frase. Perceberam? Quem<br />

brilha? Eu pergunto. Se eu pergunto<br />

e vocês me respondem, alguém<br />

me responde, podemos começar o<br />

diálogo. Você pode me dizer, alguém<br />

pode me dizer, minha testa<br />

brilha quando eu suo e eu digo<br />

sim está calor aqui, abafado, quer<br />

um lenço? Podemos abrir as janelas,<br />

se tiver janelas. Não, não há<br />

janelas, não me parece que tenha<br />

janelas aqui. Você vê uma janela?<br />

Eu pergunto. E continuamos nosso<br />

diálogo e você diz alguém diz,<br />

META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 145


<strong>Urdimento</strong><br />

146<br />

eu daqui vejo uma janela, ela está<br />

aberta, eu gosto de janelas abertas,<br />

a noite está linda, fresca e nós podemos<br />

olhar o céu, você vem olhar<br />

o céu? E por aí vai. [...]<br />

Pelas convenções da escrita dramática,<br />

entendemos que o texto marca um personagem<br />

chamado Rodrigo. Além disso, sabemos<br />

pelo site do grupo que um dos atores<br />

se chama Rodrigo Ferrarini. Primeira indicação<br />

que o texto busca manipular sutilmente<br />

nossa percepção da relação entre o<br />

ficcional e o real, entre o microcosmo ficcional<br />

e o macrocosmo empírico. Logo depois<br />

encontramos o jogo com a estrutura “vocêalguém”.<br />

Deste modo, deduzo que o texto<br />

propõe uma questionamento das identidades<br />

dos “eu”, “vocês”, “alguém” e de suas<br />

relações no contexto da situação teatral.<br />

Essa investigação também é inscrita na frase<br />

“podemos abrir as janelas”, confundindo o<br />

‘nós’ do grupo de atores com o ‘nós’ de todas<br />

as pessoas presentes. Entendemos que o<br />

foco desse texto de abertura talvez não seja<br />

em primeiro lugar estabelecer características<br />

de um mundo ficcional, mas direcionar<br />

a atenção do leitor/espectador para a proposta<br />

situacional do teatro: “Você vê uma<br />

janela? Eu pergunto.” Essa redundância de<br />

informação se explica melhor se sua função<br />

é lida como meta-teatral e meta-textual: um<br />

texto teatral é um texto ficcional e descrição<br />

de um momento concreto, compartilhado<br />

entre pessoas reais.<br />

A particularidade contemporânea dessa<br />

função reside no fato de que nada disso<br />

é informado como didascália. Não se trata<br />

de um projeto que pretende estabelecer<br />

um autor onisciente que define e controla<br />

as características ficcionais e materiais da<br />

cena; que pretende manter a percepção do<br />

espectador ligado na ficção e interpelar seu<br />

olhar de modo a sugerir uma interpretação<br />

da cena ficcional. A ausência desse autor,<br />

junto com o foco perceptual cambiante –<br />

uma vez nas qualidades de uma ficção, outra<br />

vez na situação concreta e empírica –,<br />

faz com que o espectador sutilmente toma<br />

consciência de sua presença e participação<br />

na construção do significado do espetácu-<br />

lo. Neste sentido há uma proposta perceptual<br />

decididamente contemporânea para o<br />

espectador.<br />

Na apresentação do espetáculo VIDA,<br />

o ator Rodrigo Ferrarini dilui na fala a cesura<br />

entre “você me diz alguém me diz”,<br />

ou seja, embora o texto dialogue com uma<br />

proposta do “a parte” ou de um endereçamento<br />

direto do público, o modo como o<br />

texto é dito, frontalmente para todos e simultaneamente<br />

para ninguém, evoca características<br />

de um texto coral. De fato, a<br />

dimensão coral já é proposta pela estrutura<br />

da célula lingüística como uma possibilidade<br />

entre várias de instalar o texto em cena.<br />

Ao longo do texto (e da apresentação) fica<br />

mais claro que essa alternância entre ficção<br />

e situação pragmática, entre um nós ficcional<br />

e um nós real, articula também um eixo<br />

temático da narrativa: a relação tensa entre<br />

o indivíduo e a comunidade, entre o elemento<br />

particular e o contexto geral; mais<br />

especificamente entre a vontade livre do<br />

indivíduo e o peso de sua inserção em um<br />

contexto social, que é o assunto das autorrevelações<br />

dos personagens-atores e das<br />

conversas entre os personagens-membros<br />

da banda ficcional. Essa dimensão temática<br />

é fundamental para salvar o texto e a montagem<br />

de um mero jogo formal privado.<br />

Não se trata aqui de argumentar em<br />

prol de um novo textocentrismo, mas de<br />

entender que um texto contemporâneo<br />

sugere uma poética da cena por meio de<br />

indicações estruturais às vezes bastante<br />

sutis. Deslocamento da atenção de um<br />

eixo comunicativo para outro, expor uma<br />

dimensão temática por meio das estruturas<br />

autorreferenciais do texto, confrontar o<br />

espectador com forma e tema do texto ao<br />

estabelecer uma tendência coral das falas,<br />

são algumas das consequências da inserção<br />

de momentos meta-teatrais e meta-textuais<br />

no texto teatral mimético.<br />

O solapamento do personagem. Já<br />

nos anos 80, teóricos constataram a dissolução<br />

da noção de personagem nos textos<br />

teatrais. Este impulso certamente está presente<br />

nos textos do Beckett tardio, nos pri-<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Stephan Baumgärtel<br />

meiros textos teatrais de Peter Handke. A<br />

partir dos anos 70, isso levava a uma diversidade<br />

formal muito rica na escrita teatral.<br />

A investigação na crise do sujeito burguês<br />

leva a experimentos formais que buscam<br />

colocar no primeiro plano da escrita a dinâmica<br />

psíquica e a sobredeterminação da<br />

personalidade humana por forças sóciohistóricas.<br />

Em muitos casos, como de Heiner<br />

Müller, Bernard-Marie Koltés ou Sarah<br />

Kane, a busca por novas formas de escrita<br />

implica na tematização da relação entre o<br />

autor e seu material, focando a tensão mimética<br />

entre a capacidade de descrever e<br />

simbolicamente dominar o mundo, por um<br />

lado, e a incapacidade estrutural de fazêlo,<br />

pois o critério de autenticidade e veracidade<br />

não permite a necessária distância<br />

para uma mimese objetiva. Surgem, então,<br />

escritas altamente performativas que expõem<br />

por meio de uma mimese de produção,<br />

como denominou Luiz Costa Lima<br />

este procedimento, 10 sobretudo a relação<br />

de uma consciência ou subjetividade para<br />

com o mundo (o material artístico), e não<br />

sua imagem objetiva ou correta.<br />

Jean-Pierra Sarrazac descreveu o fenômeno<br />

no contexto da escrita teatral como a<br />

entrada do narrador épico enquanto rapsodo<br />

para o interior do texto. 11 Este manifesta<br />

qualidades não só dramáticas, mas também<br />

narrativas e líricas. Aqui no Brasil, foi<br />

Luis Alberto de Abreu quem teorizou as<br />

possibilidades formais e éticas desse procedimento.<br />

Seu textos teatrais, desde os anos<br />

90, possuem uma característica fortemente<br />

rapsódica, com a restrição de que ela raramente<br />

é levada para uma crise do discurso<br />

textual como um todo. Ou seja, mesmo<br />

que a fala de um personagem oscila entre<br />

primeira e terceira pessoa, entre afirmação<br />

dramática e narrativa, este recurso não é<br />

usado por Abreu para colocar em crise a<br />

finalidade mimética e racionalizante de<br />

10 ver Costa Lima, Luiz. Mimesis e Modernidade: A forma das<br />

sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.<br />

11 Em O futuro do drama (2002), Sarrazac define várias estruturas<br />

dinâmicas que realizam a “desconstrução do personagem<br />

individualizado” (2002, p. 97) ou a desfiguração do personagem<br />

dramático. No Brasil, Maria Lúcia Levy Candeias se debruçou sobre o<br />

problema em sua tese de doutorado A fragmentação do personagem<br />

na dramaturgia de 1997, publicada em forma de livro em 2012.<br />

seu texto. Antes, é um procedimento para<br />

construir e garantir a objetividade da mimese<br />

num momento da crise da subjetividade<br />

pós-moderno. 12<br />

Tecnicamente falando, encontramos o<br />

mesmo procedimento de dividir um personagem<br />

em uma voz dramática e outra narrativa,<br />

entre uma identificação para consigo<br />

mesmo e um distanciamento desse eu,<br />

em um corpo e uma voz que representa e<br />

outro/a que abertamente chama atenção<br />

á performance cênica, como por exemplo<br />

no texto Corte Seco de Christiane Jatahy. A<br />

autora e diretora separa claramente as funções,<br />

por meio de cadeiras que impõem ao<br />

ator a relação com sua figura teatral quando<br />

sentar em uma delas: “Narrar, descrever,<br />

caracterizar, dialogar, interiorizar”<br />

(Jatahy, 2010, p.2), mesmo que na apresentação<br />

nem sempre esse função seja respeitada<br />

pelos atores. Ao mesmo tempo em<br />

que as cadeiras dão uma inteligibilidade<br />

às falas, elas determinam o jogo textual e<br />

performativo com a relação ao ator-figura,<br />

sujeito-texto. Inicialmente, o texto expõe o<br />

material mimético (por exemplo as figuras<br />

do avô e da avó) como composto de uma<br />

multiplicidade de olhares, mas nem a subjetividade<br />

da autora/dramaturga nem dos<br />

atores transparece em relação ao seu material,<br />

uma vez que o material é dominado<br />

pela organização das cadeiras. A reorganização<br />

das cenas proposta segundo as indicações<br />

do público pode levar a essa perda<br />

de controle, como também pode revelar<br />

certa desimportância da ordem das cenas<br />

no que diz respeito ao solapamento das<br />

subjetividades ficcionais e reais (dos artistas<br />

em cena).<br />

Entretanto, aos poucos, aparecem, no<br />

texto falado e nas didascálias, pequenas<br />

frestas na camada ficcional que sugerem<br />

um leve descontrole dos atores sobre seu<br />

material (como, por exemplo, na conversa<br />

entre DU e BRANCA (Jaratahy, 2010,<br />

p.16/17) sobre sua história, e a saída filmada<br />

de BRANCA do palco para a rua). Surge<br />

na cena da ficção teatral um efeito do real<br />

12 Ver, por exemplo, seus textos teóricos publicados em ABREU, Luís<br />

Alberto de. Um Teatro de Pesquisa. (org. Adélia Nicolete). São Paulo:<br />

Perspectiva, 2011.<br />

META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 147


<strong>Urdimento</strong><br />

148<br />

(Sanches), o que faz o material textual e a<br />

situação apresentada oscilar entre o campo<br />

do inconsciente dos artistas e o campo da<br />

ficção, entre o campo da performatividade<br />

e da teatralidade. Estamos perante um<br />

procedimento que produz uma erupção do<br />

real – o foco no contexto empírico e material<br />

do trabalho dos atores – para focar a<br />

situação teatral e, deste modo, problematizar<br />

a construção controlada de um personagem.<br />

Talvez seja a busca por procedimentos<br />

que expressem um descontrole sobre a<br />

própria escrita ficcional sem recorrer a um<br />

efeito do real que marca o projeto dramatúrgico<br />

de Roberto Alvim. Em seus trabalhos<br />

teóricos, 13 defende a escrita textual e<br />

palavra pronunciada como cerne de um<br />

fazer teatral que rompe com o legado mimético<br />

da dramaturgia dramática. 14 Sua<br />

noção do ‘transhumano’ promove, com<br />

toda insistência possível, a escrita teatral<br />

como força imaginária e criadora de novas<br />

subjetividades, de novas formas humanas<br />

de estar-no-mundo, 15 e não como força representacional<br />

de pessoas e sociedades já<br />

existentes, passíveis a serem reconhecidas<br />

no palco como um espelho nosso. Mesmo<br />

que sua escrita arrisque a impressão de<br />

uma arbitrariedade semiótica, de um caos<br />

enigmático, o ponte forte me parece ser o<br />

reconhecimento de que somente aquela<br />

dramaturgia que exige do leitor/espectador<br />

um esforço de deslocamento para dialogar<br />

com ela, vale a pena de ser inventada<br />

e posta no papel.<br />

Do ponto de vista teórico, seu projeto<br />

poético se coloca claramente além da mo-<br />

13 Por exemplo, na entrevista incluída nesta edição da URDIMENTO,<br />

ele afirma: “A palavra (e, por inevitável extensão performativa, a fala)<br />

é o tijolo fundamental das dramáticas contemporâneas; a palavra, e<br />

não a imagem.”<br />

14 Por causa dessa ruptura, uma acusação de textocentrismo não se<br />

aplica, apesar da linguagem taxativa que Alvim gosta de usar. Este<br />

texto não mimético é central para seu teatro, mas strictu sensu não<br />

constitui um centro semântico, que controla o sentido da apresentação.<br />

Esta, entretanto, é a implicação do discurso textocentrista que<br />

argumenta com noções como fidelidade ao texto, concretização do<br />

texto em cena, e até “interpretação” do texto por meios cênicos. Todas<br />

essas noções não se aplicam à proposta de Alvim. A centralidade do<br />

texto se dá mais no sentido de ser o impulso provocador, exigindo<br />

respostas artísticas das outras linguagens cênicas.<br />

15 Para uma breve discussão da diferentes implicações inscritas nas<br />

noções de “subjetividade” e de “estar-no-mundo”, com uma ênfase no<br />

fazer artístico, ver Gumbrecht (2010).<br />

derna subjetividade burguesa e dramaturgicamente<br />

além da idéia de personagem,<br />

trama e conflito ficcional: “Uma escrita não<br />

se dá a partir de um sujeito estável, mas<br />

sim a partir de diferentes modos de subjetivização.<br />

[...] O deslocamento é o centro da<br />

gravidade” (2011, p. 19). No entanto, este<br />

sujeito estável é a base empírica e a condição<br />

para possibilitar tanto uma mimese<br />

representacional quanto a criação de um<br />

personagem. Segue a frase que deixa bem<br />

claro que esta proposta conceitualmente se<br />

posiciona fora do campo do personagem:<br />

“Deslocamento entre diferentes arquiteturas<br />

lingüísticas que promovem, cada uma,<br />

habitações distintas da vida.” (Alvim, 2011,<br />

p.19). O importante para o nosso subtema<br />

da diluição da noção de personagem, não é<br />

a defesa de uma multiplicidade de olhares,<br />

mas a descrição de suas instâncias de enunciação<br />

como “arquiteturas lingüísticas”.<br />

Vejo nessa retórica a tentativa de dissolver<br />

o ‘eu psicológico’, sua fala marcada por<br />

motivações e intenções pessoais, em um tecido<br />

de vozes que em seu conjunto expressam<br />

o que o autor toma (e experimenta na<br />

própria pele) como o vetor da dinâmica do<br />

mundo atual agindo sobre a subjetividade<br />

humana; sobre a consciência do ser ficcional<br />

tanto quanto sobre a consciência dele.<br />

Segundo Alvim, o mundo atual é vivenciado<br />

e expresso pelo artista como um<br />

mundo não dominável por meio de um<br />

trabalho mimético. Entretanto, esse trabalho<br />

mimético é inevitável e indispensável<br />

para a vida humana. É por meio dele que<br />

organizamos nossa relação com o mundo,<br />

criamos uma imagem do mundo que permite<br />

a transformação deste segundo nossas<br />

necessidades e nossas buscas. As propostas<br />

miméticas contemporâneas me parecem<br />

ser buscas por parte dos autores contemporâneos<br />

(no sentido forte da palavra) de<br />

relacionar-se com esta tensão; de plasmar<br />

as angústias, conflitos e esperanças que resultam<br />

dessa contradição existencial.<br />

O sujeito centrado, estável, científico<br />

e dominador é enfraquecido a ponto de<br />

se tornar irrelevante, com todas as conseqüências<br />

problemáticas para a agência<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Stephan Baumgärtel<br />

humana: os seres humanos sofrem a história<br />

mundana como se fosse unicamente<br />

uma história natural, enquanto processo<br />

independente de sua vontade. O que resta<br />

é, por um lado, registrar o choque, e por<br />

outro, buscar uma mimese camaleônica de<br />

lançar-se nessa dinâmica.<br />

O projeto de Alvim visa, entre outros, a<br />

“construção de mimeses cognoscíveis apenas<br />

como a instauração de solos para saltos<br />

em direção a mimeses incognoscíveis (a<br />

proposição de novas mitologias, de novos<br />

moldes arquetípicos)” (2011, p. 20). É patente<br />

a busca por uma escrita que proporcione,<br />

na “arquitetura lingüística” marcada<br />

por uma polissemia aberta, uma experiência<br />

de alteridade aos leitores/espectadores.<br />

Alvim aposta na possibilidade de criar, por<br />

meio da experiência de alteridade, uma experiência<br />

comum, uma vivência da “nossa<br />

humanidade” no âmbito de um imaginário<br />

além do eu. Entretanto, há certo individualismo<br />

inscrito no projeto quando diz que<br />

essa escrita visa “produzi[r] experiências<br />

singulares e autônomas por parte de cada<br />

receptor” (2011, p.19).<br />

Para avaliar essa tensão – que me parece<br />

ser constitutiva para essa escrita que<br />

oscila entre o registro do deslocamento<br />

contínuo de percepções e sensações, ou<br />

seja, uma mimese performativa, e a representação<br />

de um mundo compartilhado, ou<br />

seja, uma mimese representacional – faz-se<br />

necessário entender concretamente o que<br />

engloba a noção da “arquitetura lingüística”<br />

para além do sujeito empírico. Como<br />

ela articula materialidade e significado da<br />

língua, a dimensão sócio-histórica da linguagem<br />

verbal e a dimensão individual,<br />

as marcas da dependência e da libertação<br />

no processo que Alvim chama de deslocamento?<br />

Já podemos adiantar que a dissolução<br />

do personagem em uma arquitetura<br />

lingüística tende a dissolver o conflito ficcional<br />

narrativo para um conflito entre a<br />

consciência artística (do autor e do leitor)<br />

e as características do material plasmado.<br />

O texto PINOKIO 16 foi escrito por ele em<br />

16 Acessível em http://www.novasdramaturgias.com/conteudo/<br />

roberto_alvim/pinokio_roberto_alvim.pdf, Acesso 25/01/2011.<br />

2009/2010, ou seja, surge no contexto dessas<br />

propostas das dramáticas do transumano. O<br />

texto apresenta seus “personagens” enquanto<br />

figuras, denominadas como A MULHER<br />

VELHA, O HOMEM VELHO, O MENINO,<br />

A MULHER DE AZUL, O GRILO FALAN-<br />

TE e A AGENTE DA LEI (Alvim, 2010, p. 3).<br />

Este distanciamento do personagem psicológico<br />

por meio de denominações tipificantes<br />

ainda é relativamente convencional. Estabelece<br />

também certa (meta-)teatralidade ao falar<br />

em figuras, e aproxima essa teatralidade<br />

a um mimetismo tipificante. Inicialmente, as<br />

didascálias propõem uma “mimese cognoscível”,<br />

o que está enfatizado pela primeira<br />

fala do texto, proferida da figura O GRILO<br />

FALANTE que se apresenta como uma espécie<br />

de narrador, talvez um mestre de cerimônias<br />

dado a teatralidade não-realista<br />

inscrita na denominação figura. Diz o texto<br />

(2010, p.4):<br />

O GRILO FALANTE<br />

no princípio<br />

um boneco<br />

veioseivasmadeira<br />

do jardim<br />

a madeira<br />

e o vento lá fora<br />

só<br />

o céu<br />

raízes no céu<br />

vazio<br />

e as raízes<br />

raízes no céu no ventre as raízes<br />

do céu<br />

no princípio um<br />

só<br />

do jardim um eco<br />

e a vertigem<br />

vertigem<br />

perguntas?<br />

O texto afirma um início só para presentificar<br />

o fluxo do tempo ficcional nas modulações<br />

formais da escrita. O movimento que a<br />

narração realiza é de uma constante oscilação<br />

META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 149


<strong>Urdimento</strong><br />

150<br />

entre descrever uma ficção, por meio de um<br />

uso representacional da linguagem, e imitar<br />

performativamente as qualidades da realidade<br />

descrita, de modo a criar no leitor a vertigem<br />

que se atribui a esta. As duas modalidades<br />

miméticas se entrelaçam e permitem uma<br />

leitura semiótica e consequentemente uma<br />

interpretação: há um boneco que no princípio<br />

existia junto com terra e céu, pois a madeira<br />

da qual é feita está intimamente ligada a ambos.<br />

Descreve-se um movimento de soltar a<br />

madeira de seu contexto natural, mas a madeira<br />

mantém marcas de sua união original:<br />

“veioseivasmadeira”. Interpreto essas informações<br />

como indicações em direção a uma<br />

história de individuação, talvez mal sucedida,<br />

talvez propondo tipos de individuação ‘holística’.<br />

Importante perceber que a figura do<br />

grilo falante assimila sua fala ao fenômeno<br />

descrito, ou seja, o modo performativo dilui a<br />

exterioridade do narrador para com seu material,<br />

o boneco. Algo semelhante acontece com<br />

o leitor/espectador quando perde a orientação<br />

em relação ao eixo temporal e à dimensão<br />

semântica do texto.<br />

Não se trata simplesmente de uma proposta<br />

tipificante para o personagem, mas de<br />

uma dissolução do ponto de vista exterior,<br />

seja ele individualizado ou ‘típico’, para o<br />

funcionamento interno do texto. O leitmotif<br />

formal do texto me parece ser este: expressar<br />

o tema da individuação por meio de um processo<br />

de escrita performativa que simultaneamente<br />

o problematiza e dilui. Esta característica<br />

formal explica porque temos a presença<br />

simultânea de dois tipos de instâncias de<br />

enunciação: uma voz de um narrador e uma<br />

voz temática que expressa estruturalmente o<br />

tema do texto. Antes de qualquer interpretação,<br />

a tarefa de análise é diferenciar entre essas<br />

duas modalidades, para posteriormente<br />

relacioná-las. 17 Pois nessa transformação do<br />

centro actancial, das relações intersubjetivas<br />

dos personagens ficcionais para o funcionamento<br />

performativo do texto, estamos perante<br />

o deslocamento seu do centro agônico:<br />

17 A temática já foi esboçada por Matteo Bonfitto (2002, p.132-137) na<br />

sua diferenciação entre “personagem-indivíduo”, “personagem-tipo”,<br />

“actante-estado” e “actante-texto”, com o foco nos desafios propostas<br />

para o trabalho do ator. É a relação dinâmica entre actante-texto e<br />

personagem-mâscara que está em jogo aqui.<br />

da narrativa ficcional para a dinâmica textual<br />

enquanto expressão da relação entre consciência<br />

humana e material empírico, expresso<br />

talvez um pouco explícito demais na pontuação<br />

final desse trecho: “perguntas?”. Pela lógica<br />

estrutural do texto, me parece claro que<br />

a palavra não implica em oferecer respostas,<br />

mas em perceber por parte do leitor/espectador<br />

as próprias perguntas e dúvidas, ou mais<br />

amplamente, em perceber por parte do leitor/espectador<br />

a própria relação desestabilizada<br />

para com o texto. A intenção de fazer<br />

um levantamento das perguntas se sobrepõe<br />

na minha leitura ao convite de tirar dúvidas.<br />

Há um segundo momento texto que quero<br />

analisar no que diz respeito ao solapamento<br />

do personagem e o conseqüente deslocamento<br />

do conflito ficcional para o ato de criação<br />

e recepção do material plasmado. Após duas<br />

falas das figuras HOMEM VELHO e MU-<br />

LHER VELHA (pai e mãe? Anciões? Sábios<br />

ou figuras de autoridade repressora?), aparece<br />

O MENINO. Ele apresenta, por meio do<br />

texto falado, um processo temático de reconhecimento<br />

de uma casa, a falta de uma chave<br />

para sair, da consequente impossibilidade<br />

de habitar a casa, da casa enquanto prisão, da<br />

vontade inútil de fugir da casa, uma vez que<br />

não há chave, para afirmar que fugir da casa<br />

é fugir do próprio corpo e do próprio tempo<br />

existencial também. Descreve esse percurso<br />

de sua consciência e percepção às vezes balbuciando,<br />

às vezes com vocabulário extremamente<br />

rebuscado como se selecionado após<br />

de uma consulta ao dicionário, simultaneamente<br />

comete erros gramaticais que sugerem<br />

um espírito indefeso e desamparado perante<br />

a situação paradoxal. O texto é consistente enquanto<br />

cria uma estrutura performativa para<br />

marcar linguisticamente os sintomas de uma<br />

consciência enclausurada, mas abre uma lacuna<br />

explicativa quando define a casa como<br />

sendo o próprio corpo (2010, p.7-8).<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Stephan Baumgärtel<br />

só agora você só agora<br />

percebe compreende você<br />

que não há chave não veio com a<br />

casa não chave? não há só agora eu<br />

compreende? está trancadoele eu<br />

compreendo<br />

dentro<br />

vocêvocê<br />

compreendeu?<br />

mesmo?<br />

porque a casa enfim<br />

porque a casa finalmente a casa porque<br />

é o corpo<br />

celacorpo<br />

cubículo<br />

carne lacrada prisão da pele os órgãos<br />

algemas<br />

Podemos perceber aqui a dissolução<br />

do personagem em uma escrita performativa.<br />

Ela utiliza procedimentos ortográficos<br />

(trancadoele), deslizamentos de pronomes<br />

(eu-você), neologismos (celacorpo), não só<br />

para marcar a realidade descrita, mas para<br />

expressar a consciência que percebe e sofre<br />

esta realidade; para inscrever no texto<br />

o estado de imersão dessa consciência no<br />

fenômeno descrito. De fato, ao meu ver, as<br />

denominações dos personagens não consolidam<br />

mais a dinâmica da fala em torno de<br />

um centro textual estável ou de uma estrutura<br />

que pode ser descrita como personagem-mâscara.<br />

Elas funcionam muito mais<br />

como indicações intertextuais em relação<br />

aos personagens da história Pinocchio de<br />

Carlo Collodi, transformando estes em figuras<br />

arquetípicas dentro de um contexto<br />

discursivo despersonalizado. Esta tensão<br />

entre um fluxo discursivo e seu enquadramaneto<br />

(arque)típico configura neste texto<br />

a “arquitetura lingüística” da qual fala Alvim.<br />

Esta observação me permite algumas<br />

reflexões acerca da terceira característica<br />

que levantei: a dissolução do conflito narrativo<br />

em um conflito estrutural da escrita.<br />

Dito de outra forma, o modo de articular o<br />

conflito temático se desloca do meio narrativo<br />

para um meio estrutural da escrita, do<br />

eixo temporal para um eixo espacial.<br />

A dissolução do conflito narrativo. No<br />

conto de Collodi, o processo de individuação<br />

de Pinocchio, do boneco de madeira<br />

e preso nos instintos de sua natureza para<br />

um menino ‘de verdade’, se desenvolve<br />

em uma narrativa impulsionada por figuras<br />

que cada uma tem sua função agencial<br />

e metafórica para levar a cabo a viagem do<br />

pequeno buscador, seja ela interpretada<br />

como viagem de uma atitude egoísta para<br />

uma atitude altruísta, de uma atitude sem<br />

presença de uma energia maternal feminina<br />

para uma atitude que integrou essas<br />

energias, etc. Tematicamente, Alvim elege<br />

com conflito central do texto a relação de<br />

Pinokio com seu próprio corpo (“celacorpo”),<br />

para inverter a solução proposta por<br />

uma possível leitura cristã dessa narrativa:<br />

não é o corpo, mas a ditadura do enfoque<br />

na alma que criou as angústias da figura.<br />

Diz a Mulher de Azul, que remete à fada<br />

turquesa de Collodi (2010, p.19):<br />

porque não era o corpo a prisão<br />

o corpo? não<br />

a prisão era a alma ela compreende<br />

finalmente antes de morrer<br />

e o tumor um bebê ela compreende<br />

um instante antes de morrer<br />

parindo o corpo novo<br />

sem cabeça<br />

Este corpo é um corpo que desconhece<br />

uma separação da alma ou do espírito<br />

(2010, p.20):<br />

O corpo hibridado três dias em fim<br />

glorioso o corpoanfíbio surgindo do<br />

mar eterno<br />

sobe à terra desce dos céus espíritoemcorpo<br />

encarnado glorioso<br />

META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 151


<strong>Urdimento</strong><br />

152<br />

Mas ele não faz seu boneco passar por<br />

uma série de situações para vivenciar o<br />

surgimento desse insight. Antes, ele evoca<br />

alguns aspectos temáticos. O que as figuras<br />

apresentam são mais teses ou interpretações<br />

do dilema do menino que se desdobram<br />

discursivamente, sempre tentando<br />

seguir a prerrogativa da escrita performativa<br />

de fazer com que sobretudo a estrutura<br />

do texto (da fala) exprima o que se quer dizer<br />

tematicamente. Menos em dois trechos<br />

que marcam os momentos ontológicos do<br />

discurso: a afirmação do Menino que o corpo<br />

é uma cela e a resposta final da Mulher<br />

em Azul de que a alma era de fato a prisão.<br />

Não há muita polissemia inscrita nestes<br />

momentos de fazer prevalecer uma escrita<br />

discursiva, não-performativa.<br />

Perante o que Alvim afirma (e realiza<br />

em boa parte) como projeto poético performativo,<br />

os trechos convencionalmente<br />

discursivos que falam racionalmente sobre<br />

um estado, ao invés de não expressar os<br />

sintomas do corpo na consciência, surgem<br />

quase como uma decepção, marcando dois<br />

momentos ‘zero’ e fundadores desse texto.<br />

Entretanto, do ponto de vista estrutural<br />

e performativo, vimos como a escrita<br />

performativa dissolve o fundamento da<br />

afirmação do Menino. Ela também continua<br />

em tensão com a afirmação da Mulher<br />

Azul, de modo que a escrita volta a expor<br />

traços performativos para expressar o impacto<br />

da morte da alma legislativa sobre o<br />

corpo: corpoanfíbio, espíritoemcorpo. Perante<br />

a tensão entre escrita performativa e escrita<br />

racional-descritiva, o que era fixo revela<br />

seu estatus de processo. Qualquer fundamentação<br />

da perspectiva sobre o ser humano,<br />

privilegiando uma vez o corpo, outra<br />

vez o espírito/mente/alma, é fruto de um<br />

auto-engano epistemológico. Esta tensão<br />

formal apresenta e modula o conflito temático<br />

básico do texto, desestabiliza a rigidez<br />

de uma oposição binária entre corpo e alma<br />

(ou Eros e Lei, como uma outra camada do<br />

texto afirma) e articula a crítica do texto à<br />

qualquer posição ontológica fixa. Vejo nessa<br />

tensão também uma tentativa da figura<br />

do autor de se posicionar claramente em<br />

um vetor cultural (descrito também no manifesto<br />

Dramaturgias do Transhumano), e simultaneamente<br />

minar o fundamento dessa<br />

posição. Ou seja, a escrita performativa<br />

coloca em cheque a instância do autor, ao<br />

mesmo tempo que afirma a inevitibilidade<br />

de sua existência.<br />

O texto desafia uma possível encenação<br />

para atender cenicamente a estas instabilidades;<br />

atenuar a tendência para um teatro<br />

abstrato de teses ao expor os corpos dos<br />

atores que performativamente passam por<br />

um processo que é escrito tematicamente<br />

no texto teatral.<br />

Mas o projeto poético do texto fica claro:<br />

expressar linguisticamente um processo<br />

físico, criar uma escrita sintomática e não<br />

representacional, que pode ser lida pelo<br />

receptor em primeiro lugar a partir do impacto<br />

que este recebe pelo ato de recepção.<br />

Isso implica em decisões cênicas sobre a<br />

poética do texto, mas não necessariamente<br />

em decisões acerca do significado dos signos,<br />

ou seja, das palavras e frases. Como<br />

tornar concreto e interessante em cena<br />

o jogo textual entre, por um lado, os elementos<br />

discursivos e narrativos com seus<br />

fortes traços de representação e descrição<br />

racionalista, fechando e fixando as leituras<br />

simbólicas, e por outro lado, os elementos<br />

performativos, com seu funcionamento<br />

sintomático, fisiológico e libidinal, desestabilizando<br />

interpretações esclarecedoras<br />

dos signos?<br />

Entre vanguarda e tradição. O texto<br />

de Alvim talvez seja hermético e abstrato<br />

demais para interessar à maioria do público<br />

brasileira. Mas ele apresenta uma clara<br />

tentativa de um dramaturgo brasileiro de<br />

atender em sua forma de escrita à impossibilidade<br />

contemporânea de separar claramente<br />

sujeito e objeto, corpo e espírito,<br />

fenômenos de sentido e fenômenos de presença.<br />

18 É claro que são possíveis propostas<br />

mais tradicionais de expressar o colapso<br />

18 Ver o livro de Gumbrecht (2010), que contém uma série de impulsos<br />

para refletir sobre a relação entre estruturas representacionais e<br />

performativas na escrita teatral contemporânea, especialmente no<br />

que diz respeito a suas motivações epistemológicas e culturais.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Stephan Baumgärtel<br />

desses binarismos por meio da escrita. 19<br />

O texto de Alvim não afirma a incapacidade<br />

mimética do autor acerca de seu<br />

material, ou uma possível libido polimorfa<br />

como nova verdade sobre a subjetividade,<br />

mas antes expõe uma tensão crítica entre<br />

mimese representacional e mimese performativa.<br />

Neste sentido, ele pode servir como<br />

ponto de partida para discutir as necessidades<br />

de uma escrita não-antropomórfica<br />

no Brasil de hoje; para refletir sobre as possibilidades<br />

de como transformar manifestos<br />

poéticos em escrita teatral.<br />

Trata-se de um projeto de colocar em<br />

cheque não só o centro racional da mimese,<br />

mas também uma suposta verdade do processo<br />

libidinoso ou inconsciente. Por isso,<br />

os textos que expõem ao longo da leitura a<br />

premissa do mundo como caótico e/ou da<br />

subjetividade humana como irracional não<br />

ultrapassam a lógica mimética monológica<br />

da escrita moderna. Mas uma escrita que<br />

não expressa e dinamiza um conflito entre<br />

o centro semântico e o centro performativo,<br />

entre intersubjetividade e singularidade,<br />

entre história e psique, entre consciência e<br />

inconsciência, experiência e sensação, dificilmente<br />

consegue criar uma visão complexa<br />

e multi-dimensional dos prazeres e<br />

angustias, das possibilidades de liberdade<br />

e das restrições da existência humana hodierna.<br />

19 Podemos, por exemplo, incluir o texto As Folhas do Cedro de<br />

Samir Yazbek como um exemplo de uma proposta que media mais<br />

cautelosamente exigências de uma poética contemporânea com as<br />

normas da tradição,tensionando as em uma tentativa de expressar<br />

não só crises dos personagens, mas também as crises do autor para<br />

com o material e o mundo contemporâneo.<br />

META-TEXTUALIDADE, INSTâNCIAS DE ENUNCIAçãO E CONFLITOS NãO-NARRATIVOS 153


<strong>Urdimento</strong><br />

154<br />

REfERênCIAS bIbLIOGRAfIAS:<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

ABREU, Luís Alberto de. Um Teatro de Pesquisa. (org. Adélia Nicolete). São Paulo: Perspectiva,<br />

2011.<br />

Abreu, Márcio. Vida. Manuscrito inédito. Arquivo do autor. 40 páginas. 2010.<br />

Alvim, Roberto. “Dramáticas do Transhumano”. Revista Antro Positivo, No. Zero, 2011,<br />

http://issuu.com/antropositivo/docs/ed_zero/19?zoomed=&zoomPercent=&zoomX=<br />

&zoomY=&noteText=&noteX=&noteY=&viewMode=magazine, acesso em 05/11/2011.<br />

---. Pinokio. Versão pdf disponível em www.novasdramaturgias.com. Acesso em<br />

18/12/2011.<br />

AutAnt-mAthieu, Marie-Christine. Écrire pour le théâtre. Les enjeux de l’écriture dramatique.<br />

Paris: CRNS Editions, 1995.<br />

bonfitto, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002.<br />

birkenhAuer, Theresia. Schauplatz der Sprache – das Theater als Ort der Literatur. Maeterlinck,<br />

Čechov, Genet, Beckett, Müller. Berlin: Vorwerk 8, 2005.<br />

---. “Entre fala e linguagem“. Trad. Stephan Baumgärtel. In: <strong>Urdimento</strong> 18, 2012.<br />

CANDEIAS, Maria Lúcia Levy. A fragmentação da personagem. São Paulo: Perspectiva,<br />

2012.<br />

CostA limA, Luiz. Mimesis e Modernidade: A forma das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.<br />

GumbreCht, Hans-Ulrich. Produção de Presença. O que o sentido não pode expressar. Rio<br />

de Janeiro: Contraponto, 2010.<br />

JAtAhy, Christiane. Corte Seco. Versão pdf disponível em: www.novasdramaturgias.com.<br />

Acesso em 18/12/2011.<br />

PAvis, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. de Guinsburg, J., Pereira M.L. et al., São Paulo:<br />

Perspectiva, 2003.<br />

---. A encenação contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2011.<br />

sArrAzAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002.<br />

Stephan Baumgärtel


ENTREVISTAS<br />

BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente Concilio. ATRIzES: Priscila Marinho e Mirella Granucci. FOTO: Lucas Heymanns.


N° 18 | Março de 2012<br />

Quais são os impulsos cênicos e/ou<br />

sociais que possuem mais impacto em<br />

seu trabalho enquanto dramaturgo?<br />

Antes de tudo, a relação com o ator é<br />

o principal estímulo para o meu trabalho<br />

enquanto dramaturgo. Estar próximo do<br />

ator, experimentar com o ator, dirigir o<br />

ator, todas essas atividades chegam a determinar,<br />

no meu caso, o ato de escrever<br />

para teatro. Também considero o teatro<br />

como um fórum privilegiado para aprofundar<br />

questões humanas relevantes em<br />

nossa época.<br />

Qual é a função da palavra e do texto<br />

teatral em suas montagens (ou dispositivos<br />

cênicos)?<br />

Levando em conta que tenho dirigido<br />

algumas de minhas peças, a palavra<br />

e o texto teatral costumam nascer de um<br />

imaginário denso, para depois amadurecer<br />

a partir do contato com a cena. Não<br />

apenas a palavra, mas o silêncio, o gesto,<br />

as movimentações etc., são elementos que<br />

constituem a natureza do texto teatral.<br />

Qual é a função e a importância da<br />

tradição dramática em seu processo dramatúrgico?<br />

A tradição dramática teve fundamental<br />

importância em minha formação, mas,<br />

hoje em dia, já não representa um modelo<br />

válido para a minha escritura, que se<br />

pauta muito mais por intuições e necessidades<br />

criativas, livres de quaisquer imposições.<br />

O que pode ocorrer, eventual-<br />

CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Caminhos da Dramaturgia<br />

Brasileira Contemporânea<br />

Entrevista com Samir Yazbek 1<br />

mente, é que se estabeleça algum tipo de<br />

diálogo com esta tradição, normalmente<br />

para problematizá-la.<br />

Do seu ponto de vista, quais são as<br />

barreiras e riscos mais iminentes que a<br />

dramaturgia brasileira contemporânea<br />

precisa enfrentar?<br />

É saudável que os autores sejam permeáveis<br />

à pluralidade de caminhos que<br />

a criação dramatúrgica contemporânea<br />

oferece, além de se deixarem contaminar<br />

por outras linguagens artísticas, sem<br />

perderem de vista o amadurecimento de<br />

suas próprias individualidades. Ao mesmo<br />

tempo, como parte de uma estratégia<br />

de valorização da palavra, é preciso evitar<br />

que a proliferação dos processos colaborativos,<br />

por todo o país, ofusque o fato<br />

de que boa parte dos textos considerados<br />

antiquados, hoje em dia, nasceu de um<br />

contato estreito do autor com a cena de<br />

sua época.<br />

Como você vê a importância das oficinas<br />

de dramaturgia as quais você administrou<br />

e como você vê os resultados<br />

concretos delas?<br />

Cada vez mais considero as oficinas<br />

que dou como extensos diálogos sobre<br />

dramaturgia, teatro, arte em geral, além<br />

de outros assuntos, como filosofia etc.,<br />

com o intuito de ajudar a despertar a<br />

consciência e a vontade criadora de cada<br />

aluno. Acreditar que os melhores resultados<br />

possam surgir rapidamente, só impede<br />

que os processos artísticos tenham<br />

1 Samir Yazbek é dramaturgo e diretor. Ganhador do Prêmio Shell 1999 por “O Fingidor” e do prêmio ABCA 2010 por “As Folhas<br />

do Cedro”. A presente entrevista foi realizada por e-mail.<br />

157


<strong>Urdimento</strong><br />

158<br />

tempo suficiente para se desenvolver.<br />

Como você vê o papel do Estado no<br />

processo de construir e consolidar uma<br />

Dramaturgia brasileira Contemporânea?<br />

Ainda falta muito para o Estado ocupar<br />

o seu papel de incentivar a nossa dramaturgia,<br />

por meio de oficinas, editais,<br />

montagens, publicações etc. Além disso,<br />

a política cultural brasileira, em geral,<br />

quase não se interessa em promover nossos<br />

dramaturgos no exterior. O que tem<br />

sido feito, neste sentido, ocorre muito<br />

mais por conta de iniciativas de indivíduos<br />

ou de instituições privadas.<br />

Tem algo que você considera importante<br />

para complementar estas questões?<br />

É preciso sempre lembrar que o fortalecimento<br />

de nossa dramaturgia depende<br />

não apenas do desenvolvimento de uma<br />

técnica de escrita específica, ou mesmo<br />

de fatores de ordem econômica, que asseguram<br />

a montagem dos textos, mas,<br />

sobretudo, da existência de uma visão de<br />

mundo que seja suficientemente consistente<br />

para se impor nos dias de hoje.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Entrevista com Samir Yazbek


N° 18 | Março Setembro de 2012 de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />

1. Quais são os impulsos cênicos<br />

e/ou sociais que possuem<br />

mais impacto em seu trabalho enquanto<br />

dramaturgo?<br />

O que imediatamente me<br />

mobiliza é a tentativa de diálogo<br />

com o outro. Como articular elementos<br />

de escritura - escrita, inscrição,<br />

composição - teatral que<br />

sejam determinantes enquanto<br />

propostas endereçadas a alguém<br />

e que tenham possibilidade de<br />

sequência, na medida em que se<br />

abrem também a respostas e reações.<br />

Este princípio aparentemente<br />

óbvio está na base de tudo e não<br />

se confunde em nenhum momento<br />

com fazer aquilo que o outro<br />

espera, confirmar expectativas ou<br />

fazer concessões ao que se supõe<br />

ser aceitável. Ao contrário, busca<br />

criar conexões múltiplas com as<br />

pessoas do público e expandir o<br />

campo de percepção. Ao longo<br />

de tempo tenho percebido que<br />

insisto em alguns estímulos que<br />

se articulam em conceitos como<br />

polissemia, polifonia, expansão,<br />

endereçamento, permeabilidade<br />

e presença.<br />

1 Márcio Abreu é ator, diretor e dramaturgo, natural<br />

de Rio de Janeiro, radicado em Curitiba. Ministra<br />

regularmente desde os anos 1990 oficinas, cursos,<br />

seminários e palestras relacionados ao teatro. O trabalho<br />

VIDA recebeu três indicações ao prêmio Shell<br />

(SP), entre eles autor e direção,<br />

Caminhos da Dramaturgia Brasileira<br />

Contemporânea<br />

Entrevista com Márcio Abreu 1<br />

2. Qual é a função da palavra<br />

e do texto teatral em suas montagens<br />

(ou dispositivos cênicos)?<br />

A palavra é um elemento, entre<br />

tantos outros, a integrar o amplo<br />

território de articulação e de<br />

linguagem que é a dramaturgia.<br />

Não há, necessariamente, hierarquia<br />

entre os elementos. No entanto,<br />

se considerarmos o âmbito da<br />

cultura, a palavra, historicamente,<br />

revela muitos condicionamentos<br />

sociais. Para me referir apenas a<br />

dois deles, aos quais o teatro está<br />

intrinsecamente ligado, posso pensar<br />

na tirania dos discursos, num<br />

extremo, e na surdez social no outro<br />

extremo. Como pensar a função<br />

da palavra sabendo disso? Como<br />

tentar reinaugurar sua potência<br />

sem sobrepujar os outros elementos<br />

da linguagem?<br />

Como tomar a palavra mais<br />

uma vez sem ser tirano? Como estimular<br />

uma escuta descondicionada?<br />

Como escapar do âmbito da<br />

cultura? São questões que me coloco<br />

sempre. A dimensão utópica<br />

desses desafios alimentam minha<br />

lida com a palavra, me levando,<br />

muitas vezes, a explorar seu campo<br />

de sonoridade: palavra como<br />

som, como música; mas também<br />

seu campo de concretude: palavra<br />

como pedra, objeto, matéria.<br />

CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 159


<strong>Urdimento</strong><br />

160<br />

3. Qual é a função e a importância<br />

da tradição dramática em seu processo<br />

dramatúrgico?<br />

Fundamental. Invenção e consciência<br />

histórica estão profundamente vinculadas<br />

aos meus processos criativos. É evidente<br />

que estamos num tempo em que a<br />

vivência da pluralidade se impõe. Temos<br />

a chance de conviver simultaneamente<br />

com experiências inauguradas em épocas<br />

distintas. Para mim é cada vez mais difícil<br />

considerar algo como ultrapassado.<br />

Não é apenas uma relação cronológica a<br />

que eu busco com o tempo. No pós-tudo,<br />

podemos conviver com essas experiências<br />

fora do tempo. Podemos lidar quase<br />

arqueologicamente com algumas ideias,<br />

sem ingenuidade e de maneira legítima.<br />

4. Do seu ponto de vista, quais são<br />

as barreiras e riscos mais iminentes que<br />

a dramaturgia brasileira contemporânea<br />

precisa enfrentar?<br />

Os simulacros são sempre um risco.<br />

Reproduzir discursos, “métodos” e<br />

“técnicas”, criar “manuais”, tudo isso<br />

enfraquece a possibilidade de experiências<br />

genuínas. É também uma barreira<br />

e um risco iminente a auto-caricatura, o<br />

afirmar-se “contemporâneo”, o fechar-se<br />

à alteridade. As dramaturgias no Brasil<br />

ocupam um lugar inédito historicamente.<br />

É preciso não mistificar essa dimensão,<br />

mas alimentar esse campo do pensamento<br />

e da invenção e trabalhar para que ele<br />

permaneça existindo com potência, em<br />

transformação dinâmica, sem mortes súbitas<br />

ou banalizações sociais.<br />

5. Como você vê a importância das<br />

oficinas de dramaturgia as quais você<br />

ministrou e como você os resultados<br />

concretos deles?<br />

No ponto em que estamos, vejo com<br />

muito otimismo as oportunidades de oficinas,<br />

núcleos e encontros de dramaturgia.<br />

São, objetivamente, momentos em<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

que as experiências de alguns criadores,<br />

práticas e de estudo, podem ser abertas,<br />

compartilhadas, repensadas. Podem ser<br />

realmente trocas frutíferas, estímulos<br />

fundamentados e acredito que contribuem<br />

muito nos processos de formação.<br />

Tenho tido a sorte acompanhar as reverberações<br />

desses trabalhos. Meus e de alguns<br />

colegas. Faz realmente diferença.<br />

Principalmente se conseguem ir além de<br />

um simples evento que acontece só uma<br />

vez. É preciso insistir no tempo, na continuidade.<br />

6. Como você vê o papel do Estado<br />

no processo de construir e consolidar<br />

uma Dramaturgia brasileira Contemporânea?<br />

Essa é uma questão difícil de responder<br />

em poucas linhas. Tentando ser objetivo:<br />

o compromisso do Estado deve ser<br />

primordialmente com o que não é gerido<br />

pelo mercado. Formação não é e nem<br />

pode ser mercado, arte de ponta também<br />

não. É dever do Estado, portanto, fomentar<br />

e dar acesso a essas experiências; é<br />

um direito nosso. As pesquisas no teatro<br />

recente no Brasil, os movimentos dos<br />

grupos e companhias, os núcleos de dramaturgia<br />

tem uma enorme e entusiasmada<br />

resposta da sociedade. Isso legitima<br />

ainda mais o compromisso que o Estado<br />

deve ter.<br />

7. Tem algo que você considera importante<br />

para complementar estas questões?<br />

As pontes que o projeto “Encontro<br />

com Dramaturgo” está tentando construir<br />

entre a academia e a pratica do ofício<br />

são muito estimulantes e imprescindível<br />

para o amadurecimento de ambas<br />

as partes. A re-elaboração teórica de uma<br />

experiência teatral, a proximidade e a<br />

pratica mesmo dentro da universidade,<br />

enfim, tudo isso amplia a experiência e<br />

ajuda a afirmar o nosso espaço.<br />

Entrevista


N° 18 | Março de 2012<br />

1. Quais são os impulsos cênicos<br />

e/ou sociais que possuem mais<br />

impacto em seu trabalho enquanto<br />

dramaturgo?<br />

Trabalho com o conceito de<br />

dramáticas do transumano: transumano<br />

é a invenção de desenhos<br />

(im)possíveis que propiciam experienciarmos<br />

a vida de outros (e<br />

imprevisíveis) modos. É a recusa<br />

de uma idéia, surgida no renascimento<br />

(com ecos da Grécia do<br />

século V a.C e do ethos cristão<br />

do século IV d.C), que se expandiu<br />

(no iluminismo, e paradoxalmente<br />

também no romantismo) e<br />

vigorou até o final do século XX<br />

acerca do que seja o humano (e<br />

que tem agido como o maior mecanismo<br />

de controle jamais concebido);<br />

é a criação de outros modos<br />

de subjetivação, em desenhos<br />

1 Roberto Alvim é dramaturgo, diretor e professor<br />

de Artes Cênicas. Em 2010, foi o Curador do<br />

FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO de São<br />

José do Rio Preto. Foi Curador da Mostra DRA-<br />

MATURGIAS, realizada no CENTRO CULTURAL<br />

BANCO DO BRASIL (RJ) em 2009. Em 2011, foi<br />

convidado a lecionar dramaturgia em Bruxelas,<br />

para um grupo de 12 autores europeus de diversas<br />

nacionalidades, pela Cifas – La Bellone (Maison<br />

du Spectacle). Desde 2006 reside em São Paulo,<br />

onde dirige a companhia CLUB NOIR, dedicada a<br />

encenar obras de dramaturgos contemporâneos.<br />

Além de diversas indicações para os prêmios mais<br />

importantes do teatro brasileiro, foi o vencedor do<br />

Prêmio BRAVO! 2009 de Melhor Espetáculo Teatral<br />

de São Paulo, por sua encenação da peça O<br />

QUARTO, de Harold Pinter.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Caminhos da Dramaturgia<br />

Brasileira Contemporânea<br />

Entrevista com Roberto Alvim 1<br />

instáveis que problematizam de<br />

modo radical uma idéia hegemônica<br />

acerca do que seja o sujeito.<br />

O “trans” aqui não implica em<br />

transcendência, mas sim na invenção<br />

de desenhos transitórios<br />

da condição (não)humana, em<br />

instabilidade e hibridação permanentes.<br />

A invenção de outros, de<br />

infinitos modos de subjetivação,<br />

aparentemente impossíveis, imprevisíveis.<br />

Significa a criação de<br />

novos moldes arquetípicos, a serem<br />

preenchidos por pulsões que<br />

teremos que inventar, expandindo<br />

nossa experiência em veredas<br />

insuspeitadas. É importante perceber<br />

que uma questão estética é<br />

sempre uma questão existencial<br />

(por existencial entenda-se, inevitavelmente,<br />

a integralidade do<br />

estar no mundo). Toda técnica,<br />

procedimento, ou operação, está<br />

ligada a uma determinada visão<br />

de mundo. Neste sentido, empregar<br />

uma técnica existente significa<br />

compactuar com (e subordinar-se<br />

a) uma visão específica da<br />

condição humana. Nenhuma das<br />

técnicas existentes no campo da<br />

dramaturgia se fundamenta na<br />

transumanidade; todas corroboram<br />

e se fundam em uma idéia<br />

estratificada de sujeito. Novas<br />

visões de mundo pressupõe, ine-<br />

CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 163


<strong>Urdimento</strong><br />

164<br />

vitavelmente, a invenção de outras técnicas<br />

que as traduzam e, sobretudo, que<br />

as expandam em direções inconcebíveis<br />

(para o receptor e para o próprio artista).<br />

Para mim, a finalidade do teatro é a reinvenção<br />

da anatomia humana. (Emprego<br />

o conceito de dramáticas no sentido de sistemas<br />

dramatúrgicos: dramaturgia como<br />

reinvenção do homem - recusa do ser,<br />

aporte no estar).<br />

Quanto tempo e espaço cabem em<br />

uma pequena porção de tempo e espaço?<br />

Quantos modos de subjetivação cabem<br />

em um único emissor? A tentativa<br />

de responder a estas perguntas configura<br />

as operações dramatúrgicas que instauro.<br />

É deste modo que invento obras<br />

que promovem miríades de deslocamentos<br />

(de tempo, de espaço, de modos de<br />

subjetivação) a cada frase. Peças muito<br />

mais próximas da lógica da poesia que<br />

da lógica da prosa. Os neologismos (e<br />

arquiteturas lingüísticas inusuais) presentes<br />

nos textos apontam para outras<br />

formas de habitarmos a linguagem,<br />

para a criação de significantes que expandem<br />

e instigam nosso imaginário na<br />

invenção de novos significados (inexistentes<br />

até então); são potência, liberdade<br />

e arbítrio, possibilitando a redefinição<br />

de nossa estrutura de pensamento,<br />

de sensibilidade, reconstruindo nosso<br />

modo de vermos a nós mesmos e de nos<br />

relacionarmos e estarmos no mundo. E,<br />

em termos temáticos, corroboram para<br />

a construção de uma nova mitologia, de<br />

uma outra humanidade, através do desenho<br />

de criaturas-linguagem que se constituem<br />

como alteridades radicais: novos<br />

moldes arquetípicos. Textos nos quais<br />

a linguagem transita todo o tempo entre<br />

as instâncias da evocação e da invocação.<br />

Trata-se de um teatro que recusa o<br />

“conhece-te a ti mesmo” e que propõe um<br />

“constrói-te a ti mesmo”. A cena não é um<br />

espelho no qual nos reconheceremos,<br />

mas uma tecelagem norteada por outras<br />

possibilidades de vir-a-ser, para além do<br />

homem cultural, normatizado, estático,<br />

conformado. Tudo tem a ver com forças<br />

inconscientes, invenção, desejo (a dramaturgia<br />

como máquina desejante) e hibridações,<br />

em permanente instabilidade<br />

e mutação.<br />

2. Qual é a função da palavra e do texto<br />

teatral em suas montagens (ou dispositivos<br />

cênicos)?<br />

A palavra (e, por inevitável extensão<br />

performativa, a fala) é o tijolo fundamental<br />

das dramáticas contemporâneas; a palavra,<br />

e não a imagem. A fala é ação: criação de<br />

tempos, de espaços, de modos de subjetivação.<br />

A fala é criação de mundos e de<br />

modos de habitarmos a vida, haja vista que<br />

uma linguagem é uma forma de vida. Mas<br />

a palavra só se instaura como ação quando<br />

cria mundos, não quando comunica ou<br />

expressa. eu falo: eu existo – é o modo como<br />

eu falo que me faz existir desta ou daquela<br />

(ou de infinitas) maneiras. O poder epifânico<br />

de criação e recriação perpétua do<br />

mundo que as palavras tem, na medida em<br />

que para cada nova arquitetura linguística<br />

corresponde uma nova e imprevisível habitação<br />

do mundo (gerando outras formas<br />

de ação e de modelação do tempo/espaço).<br />

3. Qual é a função e a importância da<br />

tradição dramática em seu processo<br />

dramatúrgico?<br />

Todos os grandes dramaturgos (clássicos<br />

e contemporâneos) são exemplos,<br />

não modelos. Percebo a pulsão de ruptura<br />

com uma lógica cultural banalmente limitadora<br />

e redutora da condição humana em<br />

seus trabalhos, e procuro esta mesma pulsão<br />

na construção de minha obra. Analiso<br />

suas estratégias, o modo admirável como<br />

tensionam suas obras, mas não as reproduzo;<br />

utilizo-os como exemplos de como<br />

a dramaturgia pode ser revolucionária,<br />

pode nos levar a uma renovação completa<br />

de nossa noção de sentido, e tento criar,<br />

à minha maneira, com estratégias tão poderosas<br />

quanto as deles, a minha própria<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Entrevista com Roberto Alvim<br />

instância de deslocamento. São exemplos,<br />

volto a dizer, não modelos; mas são nomes<br />

como H. Pinter, G. Motton, S. Kane,<br />

Heiner Muller, M. Vinaver, R. Maxwell,<br />

V. Novarina, E. Bond, J. Fosse, J. Orton,<br />

Enda Walsh, S. Beckett, Arne Lygre, D.<br />

Harrower, que provam que é possível,<br />

sim, reconstruir o mundo inteiro sobre o<br />

palco. Entender e vivenciar a nossa humanidade<br />

de outros modos, transfigurando<br />

os significados, configurando outros modos<br />

de subjetivação. Para isso, o trabalho<br />

de poetas como F. Hölderlin e Robert Creeley,<br />

de romancistas como W. Faulkner,<br />

Herta Müller e Antônio Lobo Antunes, de<br />

filósofos como L. Wittgenstein, M. Heidegger,<br />

J. Lacan, G. Deleuze e Heráclito, de<br />

pintores como J. Pollock, W. de Kooning,<br />

M. Rothko, Barnett Newman, F. Bacon, Cy<br />

Twombly, e de teóricos da arte como David<br />

Sylvester, Clement Greenberg, A. Danto,<br />

T. J. Clark, Paulo Sérgio Duarte, Mário<br />

Pedrosa, Ronaldo Brito, Paulo Herkenhoff,<br />

Luiz Fernando Ramos, Sílvia Fernandes<br />

e Harold Rosemberg também são estímulos<br />

fundamentais. Harold Bloom escreveu<br />

um livro (Shakespeare: a Invenção do Humano)<br />

no qual nos mostra como o autor<br />

inglês percebeu que um novo homem estava<br />

começando a se desenhar no renascimento,<br />

e como traduziu este novo homem<br />

(o sujeito moderno) em suas obras, não<br />

só retratando-o, mas expandindo-o em<br />

múltiplas direções e complexidades, conformando<br />

em definitivo a idéia de humano.<br />

E a obra de Shakespeare é tão imensa<br />

que fez sentido até o final do século XX.<br />

Estamos hoje em um período similar ao<br />

renascimento, e estamos diante da oportunidade<br />

de invenção de outras possibilidades<br />

de experiênciação (o que eu chamo<br />

de transumano: outros modos de subjetivação,<br />

para além do homem). Assim como<br />

Shakespeare (não um filósofo, não um<br />

cientista, mas um dramaturgo) inventou<br />

o humano, inventemos (nós) agora<br />

o transumano, que poderá habitar o futuro<br />

de modo absolutamente distinto do<br />

modus operandi que utilizamos nos últimos<br />

400 anos.<br />

4. Do seu ponto de vista, quais são as<br />

barreiras e riscos mais iminentes que a<br />

dramaturgia brasileira contemporânea<br />

precisa enfrentar?<br />

O grande desafio para a dramaturgia,<br />

hoje, é problematizar a idéia de trama, de<br />

conflito, de personagem (esteios do drama<br />

tradicional, ligados ideologicamente a uma<br />

visão hegemônica acerca da condição humana),<br />

e, promovendo o desenvolvimento<br />

de uma obra com outras bases, conseguir<br />

fazer com que ela se tensione, crie ruídos,<br />

deslocamentos, desdobramentos, em suma:<br />

fique de pé, proporcionando uma experiência<br />

estética inaugural que amplie nossas vivências<br />

para além da experienciação que a<br />

cultura nos proporciona.<br />

5. Como você vê a importância das<br />

oficinas de dramaturgia que você<br />

ministra?<br />

Estar formando técnicos que dominam<br />

uma meia dúzia de técnicas do século passado,<br />

que lidam com a condição humana<br />

sem levar em conta tudo o que já produzimos<br />

em todos os campos do conhecimento<br />

humano (sobretudo no século XX); estar<br />

buscando amestrar artistas em potencial<br />

para que realizem a peça bem-feita e tirem<br />

nota 9 na escolinha, isto é um assassinato<br />

neurótico da sensibilidade e da potência<br />

de muitos indivíduos, que poderiam e podem<br />

e devem florescer em direções insuspeitadas.<br />

Nenhuma arte se alimenta de si<br />

mesma – se não se tem um conhecimento<br />

profundo de filosofia, psicanálise, poesia,<br />

pintura, história da arte, linguística, continua-se<br />

lidando com as mesmas ideias e<br />

expectativas acerca do que seja a obra de<br />

arte, porque continua-se lidando com as<br />

mesmas ideias e expectativas acerca do que<br />

seja a condição humana. A informação destrói<br />

o seu próprio conteúdo, e é uma luta<br />

fazer com que nossas palavras não se tornem<br />

informação digerida. Porque não se<br />

trata de ensino, mas de uma anti-didática,<br />

anti-sistemática, na medida em que o que<br />

CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 165


<strong>Urdimento</strong><br />

166<br />

importa é desencadear processos criativos<br />

(incompreensões, entendimentos tortos ou<br />

mesmo equivocados de alguns conceitos<br />

são bem-vindos).<br />

6. Como você vê o papel do Estado no<br />

processo de construir e consolidar uma<br />

Dramaturgia brasileira Contemporânea?<br />

No Brasil, raras são as políticas culturais<br />

que se perpetuam. Isto é catastrófico,<br />

posto que a arte fica ao sabor de eventos,<br />

de vontades que variam ao sabor das circunstâncias.<br />

É imperioso que projetos bem<br />

sucedidos no campo do fomento e desenvolvimento<br />

artístico tenham continuidade,<br />

e se coloquem como mecanismos efetivos e<br />

estruturantes na construção de nossa produção<br />

criativa.<br />

7. Tem algo que você considera importante<br />

para complementar estas questões?<br />

E enquanto isso o naturalismo / realismo<br />

“sincero”, “despojado”, chegando<br />

às raias de um hiper-naturalismo anódino,<br />

infesta os palcos. Atores e diretores acreditando<br />

que esta é uma forma de tornar<br />

o teatro mais “próximo” do público contemporâneo...<br />

As pequenas subjetividades<br />

contemporâneas (subjetividades encarceradoras<br />

de qualquer movimento de reinvenção<br />

do humano) expostas sem “espetacularização”<br />

em cena - na verdade, apenas<br />

anodinia e desejo de vender uma imagem<br />

de sinceridade e singeleza (sem dimensão<br />

poética nenhuma) para o público. Quando<br />

se olha para a pintura moderna (de Iberê<br />

Camargo ou de Jackson Pollock ou de<br />

Barnett Newman ou de Cy Twombly), ou<br />

para a literatura de Antonio Lobo-Antunes<br />

ou de Herta Muller, quando se olha para<br />

a poesia de Robert Creeley ou de F. Holderlin,<br />

ou quando se lê Deleuze ou Derrida<br />

ou Lacan, entende-se porque o teatro não<br />

pode, na maior parte das vezes, ser levado<br />

a sério no debate artístico. Ao mesmo tem-<br />

po, existe uma parcela (ainda) subterrânea<br />

da produção dramatúrgica contemporânea<br />

que está, sim, na ponta, e eu diria que está<br />

mais na ponta que todas as outras artes na<br />

contemporaneidade. Esta parcela está para<br />

vir à tona, nos próximos anos, em escala internacional.<br />

Mas a maior parte do que se vê<br />

nos palcos ainda é tão figurativo e hegemônico<br />

(hegemônico em essência, no sentido<br />

de que não problematiza nenhum dos pilares<br />

do que entendemos por humanidade).<br />

No campo da criação artística, ninguém<br />

impede ninguém de nada, a não ser<br />

o próprio artista. Não, não somos reprodutores,<br />

e é justamente contra esta instância<br />

(de reprodução de sistemas formais reconhecíveis)<br />

que se grita aqui. Ainda que<br />

idéias novas não signifiquem nada fora de<br />

uma prática, de um fazimento, haja vista<br />

que o teatro não é uma arte conceitual. E<br />

sim, é preciso suportar a imensa ansiedade<br />

advinda do fato de que, em processos<br />

de criação, não vai se obter resultados rápidos;<br />

quando não suportamos esta ansiedade,<br />

fazemos uso de procedimentos<br />

conhecidos e funcionais e clichês. Quando<br />

a suportamos, criamos a possibilidade de<br />

invenção de sistemas de relações formais<br />

fundantes. É verdade que o problema é a<br />

compreensão da realidade (do que seja “realidade”).<br />

E é verdade também que o estilo<br />

realista vende uma imagem de realidade<br />

bem específica, que veio a ser comprada,<br />

inclusive, como sendo “a” realidade, como<br />

se o real não fosse construído todo o tempo<br />

por nós (cada real é conformado por um<br />

jogo de linguagem específico). Neste sentido,<br />

o realismo é um problema; mais ainda<br />

a partir do momento em que foi assimilado<br />

pelos mass media, que propagam (vendem)<br />

para milhões de pessoas uma determinada<br />

idéia acerca do que seja a humanidade,<br />

baseada em sensações catalogadas e modus<br />

operandi psíquicos recorrentes (imagem<br />

esta que é comprada, inadvertidamente,<br />

até pelo teatro). Toda técnica traz consigo<br />

uma visão de mundo; se me utilizo de uma<br />

técnica, estou veiculando (e vinculado a)<br />

uma visão de mundo, e estou soterrando<br />

em mim a possibilidade de conquista de<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Entrevista com Roberto Alvim<br />

uma visão de mundo singular, e a possibilidade<br />

de invenção de novas técnicas (isto<br />

é o que é próprio da arte). O realismo é baseado<br />

no desvelamento, como se houvesse<br />

uma verdade por baixo de tudo, verdade<br />

esta que, uma vez vindo à tona, libertará<br />

(ou desgraçará) a todos (vide Ibsen ou Tennessee<br />

Williams). Também é ancorado na<br />

idéia de um sujeito uno. É um estilo que<br />

se pauta pelo diálogo, como se pudéssemos<br />

acreditar no diálogo (sem problematizações).<br />

Enfim, são tantos os pontos de<br />

ignorância profunda que norteiam este estilo,<br />

que só alguém que ignora toda a revolução<br />

dos signos perpetrada pela arte e<br />

pela filosofia no século XX pode continuar<br />

levando-o a sério. Mas não é fácil sair-se<br />

(escapar-se) de seus fundamentos: mesmo<br />

em estéticas ditas pós-dramáticas, cria-se outros<br />

contextos, tudo parece ser uma outra<br />

coisa, mas o ser humano é sempre o ser humano<br />

realista: hiper-psicológico. E é contra<br />

isto, exatamente, que se deve lutar: contra<br />

esta idéia acerca do que seja a vida, e não<br />

contra este ou aquele estilo (embora seja<br />

óbvio que o estilo realista nunca será capaz<br />

de trabalhar para além do sujeito, porque<br />

se o fizer já não será mais realismo). Estas<br />

proposições só poderão realmente se abrir<br />

quando textos que não trabalham com uma<br />

idéia estagnada de vida forem publicados e<br />

encenados, neste nosso século XXI. Aí se fisicalizará<br />

outra(s) opção(ões), com a potência<br />

de experiências estéticas imprevisíveis,<br />

como aconteceu com o próprio realismo<br />

de Ibsen e Tchekov quando do seu surgimento<br />

(insuspeitado naquele período, final<br />

do século XIX/início do século XX). Sem a<br />

problematização radical de todos os esteios<br />

fundamentais das dramáticas estabelecidas,<br />

quais sejam: a personagem (uma determinada<br />

idéia de sujeito estável); o conflito<br />

(como ferramenta para gerar mudança,<br />

isto é, saltos quantitativos gerando saltos<br />

qualitativos); e a narrativa [que não pode<br />

mais existir em primeiro plano, como sentido<br />

(e mecanismo estruturador) da obra,<br />

haja vista que a narrativa está para o teatro<br />

como a figura está para a pintura]; sem a<br />

problematização radical destes esteios, e o<br />

soerguimento de obras que se tensionem<br />

em outras bases, fundadas em outros solos,<br />

não se avançará um milímetro, porque se<br />

permanecerá no mesmo terreno existencial.<br />

Promover mudanças na construção dos<br />

edifícios sem mudar o solo sobre o qual<br />

estas construções se apoiam é uma falácia,<br />

que só engana a quem não percebe o teatro<br />

(e a vida) em profundidade. Não é apenas<br />

de multiplicidade do sujeito que se está<br />

falando aqui, mas da constituição de outros<br />

modos de subjetivação não-humanos,<br />

através de arquiteturas linguísticas outras.<br />

Não tem nada a ver com o sujeito e suas<br />

várias facetas em co-habitação psicológica...<br />

É no estilo realista que a tal “imagem<br />

e semelhança”, o homem como “topo da<br />

criação”, é mais forte. Porque no realismo<br />

tudo em cena é sobre a vida dos homens.<br />

Esta hierarquia na qual uma idéia de humano<br />

está no topo, em relação às outras<br />

formas de imaginarmos e experienciarmos<br />

a vida... Porque são estes outros modos de<br />

subjetivação que interessam agora, e não<br />

o homem e seus relacionamentos idiotas.<br />

Outras formas de experienciarmos a vida,<br />

através de outras arquiteturas linguísticas<br />

(que promovem outras habitações), para<br />

além dos homens discutindo em sua linguagem<br />

hegemônica na sala de estar.<br />

Devemos, finalmente, nos permitir experienciarmos<br />

o mundo através dos olhos<br />

de um pássaro.<br />

Porque o transumano não é uma coisa;<br />

o transumano é o fim de uma coisa, e<br />

a abertura de desconhecidas veredas infinitas.<br />

É o teatro não como descoberta do<br />

passado ou diagnóstico do presente, mas<br />

como invenção do futuro – AQUIAGORA.<br />

CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 167


Odisseia (2011) Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Paulo Balardim. Odisseu e Calipso. FOTO: Nina Medeiros.<br />

TRADUçõES


N° 18 | Março de 2012<br />

Resumo<br />

Este escrito tem por objetivo expor e analisar elementos de<br />

um método de improvisação para a formação do ator. Tais<br />

elementos visam a apresentar ao leitor exercícios práticos<br />

e a proporcionar-lhe um meio de reflexão sobre problemas<br />

decorrentes do trabalho de atuação. É enfatizada a necessidade<br />

de o ator “sentir” antes de procurar expressar, “olhar” e “ver”<br />

antes de descrever, “escutar” e “ouvir” antes de responder ao<br />

interlocutor. A improvisação é aqui considerada como fonte<br />

de expressão essencialmente binária, na qual “Voz do mundo”<br />

e “Voz de si mesmo” se completam. Ela também é vista como<br />

uma arte coletiva, na qual o uso da máscara tem importância.<br />

PALAVRAS-ChAVE: Improvisação – Exercícios de<br />

máscara – Charles Dullin<br />

Résumé<br />

Cet écrit a pour but d´exposer et d´analyser certains eléments d´une méthode<br />

d´improvisation em vue de la formation de l´acteur. Ces éléments<br />

présentent au lecteur dês exercices pratiques et permettent de réfléchir<br />

sur certains problèmes concernant le jeu de l´acteur. Il est mis l´accent ici<br />

sur le besoin de “sentir” avant que de chercher à exprimer, “regarder”<br />

et “voir” avant de décrire, “écouter” et “entendre” avant de répondre à<br />

l´interlocuteur. L´improvisation est ici considérée comme étant une source<br />

d´expression essentiellement binaire, où “Voix Du monde” et “Voix de<br />

soi-même” ne font qu´un. Elle y est vue aussi comme étant un art collectif,<br />

où le port du masque trouve sa place.<br />

MOTS CLÉTS: Improvisation – exercices du masque – Charles Dullin<br />

1 Oringalmente publicado in DULLIN, Charles. Souvenirs et notes de travail d´un acteur [Lembranças e Notas de<br />

Trabalho de um Ator]. Paris: Odette Lieutier, 1946, p. 109-131. — Tradução de José Ronaldo FALEIRO, professor<br />

do Programa de Pòs-Graduação em Teatro da UDESC.<br />

2 Charles DULLIN (1885-1949): ator, encenador e teórico francês. Considera o teatro como uma força de regeneração<br />

social e cultural. Trabalhou na companhia de André Antoine, no Teatro Odeon (1906); ingressou no Teatro das Artes<br />

em 1910, onde cria o papel de Smerdiakov (Os Irmãos Karamazovi) em 1911. Participou da fundação do Teatro do<br />

Vieux-Colombier (1913) e atuou sob a direção de Jacques Copeau até 1919. Abriu seu próprio teatro-escola, L´Atelier,<br />

em 1921. Fez parte do Cartel (1927), juntamente com Jouvet, Baty e Pitoëff. Em 1940, deixou L´Atelier e assumiu a<br />

direção do Teatro da Cidade (ex-Sarah Bernhardt), onde criou As Moscas, de J.-P. Sartre. – Pregou um teatro que não<br />

fosse imitação da vida, mas sua transposição. – Por sua escola e por seus espetáculos, Dullin influenciou atores como<br />

Jean-Louis Barrault, Antonin Artaud, André Barsacq, Roger Blin, Jean Marais, Jean Vilar.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Improvisação 1<br />

Charles Dullin 2<br />

IMPROVISAçãO 171


<strong>Urdimento</strong><br />

172<br />

Agora, meu caro, vou lhe oferecer<br />

não um método pedagógico,<br />

habilmente estabelecido, mas os<br />

elementos de um método, que<br />

poderão abrir para você horizontes<br />

novos e inesperados. Esse método,<br />

que pratico há vinte anos com os meus alunos,<br />

deu resultados; muitos jovens atores<br />

que você admira foram formados, em parte,<br />

por ele; muitas vezes foi feito um uso<br />

abusivo dele, desviado inconsideradamente<br />

da sua finalidade verdadeira, que é essencialmente<br />

escolar.<br />

Sirva-se dele com inteligência, não só<br />

como um exercício prático para lhe dar<br />

desenvoltura, «pertinência», naturalidade,<br />

mas como um meio de introspecção e uma<br />

fonte de meditações sobre os problemas<br />

que surgirão mais tarde a cada passo diante<br />

de você.<br />

Quando se fala em «Improvisação»,<br />

imediatamente se pensa na Commedia<br />

dell´Arte. Ora, o que entendo por «Improvisação»<br />

não é a renovação com uma forma<br />

moderna dessa arte desaparecida, mas um<br />

método vivo para ensinar a teoria e a prática<br />

do «Jogo Dramático» e favorecer o desenvolvimento<br />

da personalidade de cada<br />

aluno.<br />

O ensino corrente do teatro é em grande<br />

parte baseado no mimetismo; o aluno imita o<br />

professor, os mais velhos, e é assim que ele<br />

soçobra no artifício e no convencional.<br />

«A Improvisação» obriga o aluno<br />

a descobrir os seus próprios meios<br />

de expressão.<br />

Mediante alguns exemplos, vou tentar<br />

mostrar as vantagens desse método, que<br />

deveria ser considerado um complemento<br />

indispensável aos estudos comuns.<br />

Quando um aluno faz um teste, fora<br />

das qualidades que retêm a nossa atenção,<br />

que notamos, em geral? Uma voz mal<br />

colocada; uma dicção insegura; desajeitamento<br />

no andar, nas atitudes, nos gestos;<br />

precipitação na fala e uma falta de ritmo; a<br />

entonação aprendida como um papagaio,<br />

com apoio em certas palavras, que ele até<br />

se deu o trabalho de sublinhar com um lá-<br />

pis vermelho no texto, a vontade evidente<br />

de pôr tudo o que ele sabe da personagem<br />

em cada réplica. Ele nem sequer pensa na<br />

situação dramática ou cômica em que se<br />

encontra, mas, se viu a peça representada,<br />

faz esforço para imitar o ator cujo físico lhe<br />

disseram que ele tinha.<br />

Alguns exercícios muito simples de<br />

«improvisação» vão abrir os olhos do aluno<br />

para uma das leis fundamentais de nossa<br />

arte, cujo desconhecimento está na base de<br />

todos aqueles desajeitamentos; sentir antes<br />

de procurar expressar, «olhar» e «ver» antes<br />

de descrever o que se viu, «escutar» e «ouvir»<br />

antes de responder a um interlocutor.<br />

Esses exercícios serão baseados nas<br />

sensações que percebemos auxiliados pelos<br />

cinco sentidos. Aqui estão alguns deles<br />

como exemplo:<br />

Olhe uma paisagem...<br />

Siga o vôo de um pássaro no espaço.<br />

Deitado na relva, observe um inseto...<br />

Escute sinos, ao longe.<br />

Escute o passo de alguém que se aproxima<br />

de você.<br />

Escute uma conversa cujas palavras<br />

chegam indistintamente até você.<br />

Sinta um perfume agradável.<br />

Respire o ar fresco da manhã.<br />

Sinta um cheiro desagradável.<br />

Experimente o calor da água com a mão.<br />

Toque um pano rugoso.<br />

Toque um tecido sedoso, muito suave.<br />

Saboreie um fruto que você colhe de<br />

uma árvore.<br />

Deguste vinhos de diferentes colheitas.<br />

Beba uma bebida amarga.<br />

Essa lição infantil baseada na visão, na<br />

audição, no olfato, no tato, no paladar tem por<br />

objetivo obrigar o aluno a tomar contato com<br />

o mundo exterior, que chamaremos, para a<br />

clareza do que virá adiante, «Voz do Mundo».<br />

Mas eis que essa paisagem que você<br />

olha evoca uma lembrança da infância e o<br />

mergulha numa melancolia passageira.<br />

Os sinos que você ouve lembram o dobre<br />

triste dos funerais de um ser querido.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Charles Dullin<br />

Você pensa em dar a uma amiga o perfume<br />

que você está respirando, etc...<br />

A «Voz do Mundo» vai fazer com que<br />

surja na pessoa a voz que vem do interior<br />

do indivíduo e que chamaremos «Voz de si<br />

mesmo», e desse encontro nascerá «a expressão».<br />

Vemos imediatamente que a improvisação<br />

é binária em sua essência, e, conseqüentemente,<br />

na sua aplicação prática, por<br />

causa dessa dupla corrente que vem do interior<br />

do indivíduo (voz de si mesmo) e da<br />

que vem do exterior do mundo e das coisas<br />

(voz do mundo), a qual, encontrando a contracorrente<br />

interior e individual, o estimula<br />

e o fecunda, e até o cristaliza. Chega um<br />

momento em que ocorre a síntese e é então<br />

que se pode passar à aplicação prática daquela<br />

operação que, é bom lembrar, é feita<br />

em dois tempos: Expressar.<br />

A improvisação é, portanto, uma ação<br />

que se realiza em dois tempos: primeiro tempo,<br />

conceber até à possibilidade extrema,<br />

depois, segundo tempo: expressar com tanta<br />

força quanto se pode; e tal ação é em si<br />

mesma de essência binária, visto que exige:<br />

— Busca de si mesmo.<br />

— Confrontação desse «si mesmo»<br />

com o mundo exterior.<br />

Quais são os elementos do «Si mesmo»<br />

sobre os quais vamos insistir, corrigindo<br />

o trabalho do aluno? Primeiro, tudo o que<br />

constitui a sua «personalidade», os seus dons<br />

particulares, a sua sensualidade artística, a<br />

sua sensibilidade.<br />

No início, tudo isso muitas vezes está<br />

mascarado pela timidez, pelo pudor, pela<br />

contração; é preciso pacientemente deixar<br />

o aluno com confiança e ao mesmo tempo<br />

exigir dele uma sinceridade total...<br />

Quanto aos elementos que vêm de fora,<br />

com os quais essa personalidade deve se<br />

encontrar, serão eles as sensações, as impressões<br />

físicas, estéticas, geográficas, morais, etc.,<br />

etc. — e, por fim, de natureza totalmente<br />

diferente, as emoções.<br />

Levando em conta os limites deste estudo,<br />

é impossível para mim enumerar todos<br />

os exercícios preparatórios. Portanto,<br />

escolhi, como exemplo, um tema que agrupa<br />

certo número deles. Eu o decomponho<br />

na ordem do trabalho a executar:<br />

1º Dois namorados chegam à cena. Caminham<br />

ternamente enlaçados; respiram<br />

confiança, alegria interior sem<br />

mistura; tudo é belo em torno deles.<br />

Vêm sentar-se a um banco encostado<br />

numa grande parede nua.<br />

2º Atrás desse muro imaginário existe<br />

o pátio de uma prisão. Conduzidos<br />

por um guarda, prisioneiros vêm caminhar<br />

em círculo. (Silhuetas dos prisioneiros,<br />

do guarda, atmosfera.)<br />

3º Os namorados percebem o lugar<br />

em que se encontram.<br />

4º A ronda continua.<br />

5º O homem sobe no banco para olhar<br />

por cima da parede.<br />

Impressão penosa que se comunica à<br />

moça, sem que ela ouse olhar.<br />

6º A ronda continua, sinistra.<br />

7º Essa indigência humana aproxima<br />

por um instante os namorados, um<br />

pouco mais ainda, mas joga sobre a<br />

alegria deles um véu de tristeza. Tudo<br />

se torna feio à sua volta; eles se afastam<br />

silenciosos.<br />

8º A ronda continua... Um dos prisioneiros<br />

cai, extenuado. Os outros param.<br />

Olhares hostis para o guarda.<br />

IMPROVISAçãO 173<br />

Fim.<br />

Esse exercício de conjunto permitirá<br />

que se abram os olhos do aluno para uma<br />

multidão de problemas: a descontração muscular,<br />

a caminhada, a atitude, o ritmo, o olhar,<br />

que, após ter escrutado o mundo exterior,<br />

se volta para o mundo interior e lhe traz<br />

seu alimento: o drama.<br />

Mas cada uma dessas partes deverá ser<br />

objeto de um trabalho prático, tão regular,<br />

tão preciso quanto os exercícios de ginástica<br />

ou de dança clássica. Acabo de aludir<br />

à caminhada, à atitude, ao ritmo e à des-


<strong>Urdimento</strong><br />

174<br />

contração. Todo e qualquer ator que tenha<br />

experiência conhece a importância desses<br />

elementos da nossa técnica.<br />

Talvez você pense que é uma idéia estranha<br />

ensinar um aluno a olhar, a ver um<br />

objeto, a prestar ouvidos ao que os outros<br />

dizem ou aos ruídos do exterior, a tocar um<br />

objeto para sentir a sua matéria ou a suavidade<br />

ou a rugosidade que possui, a reconhecer<br />

um cheiro, a sentir o gosto... Será<br />

que ele não faz isso todos os dias da sua<br />

vida, da manhã à noite, e será que não o<br />

fará daqui a pouco tão facilmente, na cena<br />

de um teatro? Não... Esses atos quotidianos<br />

são inclusive aqueles que ele vai pôr o maior<br />

tempo para realizar corretamente. Quantos<br />

atores sabem «escutar»? E isso é pelo menos<br />

tão importante quanto saber falar. O mesmo<br />

ocorre quanto a «ver», quanto a «tocar»<br />

um objeto. Quanto à caminhada, pode-se<br />

afirmar que nem um só principiante sabe<br />

caminhar em cena. Convém fazer com que<br />

executem exercícios do tipo dos seguintes:<br />

Caminhar na rua passeando...<br />

Ir rapidamente de um ponto a outro...<br />

Caminhar dentro do quarto...<br />

Caminhar na neve...<br />

Caminhar na areia de uma praia,<br />

etc., etc.<br />

A vantagem da Improvisação reside<br />

em que, seguindo um método gradativo,<br />

podem-se desvendar os defeitos de um<br />

aluno e tentar corrigi-los imediatamente,<br />

inventando o exercício que lhe convém. De<br />

modo geral, o inimigo nº 1 é a «contração»:<br />

ela equivale a uma espécie de semiparalisia.<br />

No ator de ofício, a contração vem, no mais<br />

das vezes, da preocupação que ele tem com<br />

o «público»... Que será que o público vai<br />

pensar dele? Ao se absorver no jogo é que<br />

conseguirá se descontrair... Quer dizer: ao<br />

opor ao fator de perturbação trazido pela<br />

«Voz do Mundo» a «Voz de si mesmo».<br />

Eu já disse que era esse o próprio princípio<br />

da improvisação... Mas a contração nem sempre<br />

é ditada pela vaidade: ela pode ser ditada<br />

por um pudor muito apreciável, muito<br />

sincero; os verdadeiros «apaixonados» são<br />

aqueles que no início sofrem mais com essa<br />

maldita contração, a ponto de serem muitas<br />

vezes acusados de frieza. O uso da meiamáscara<br />

nos exercícios muitas vezes dá um<br />

resultado apreciável. A timidez é, então,<br />

parcialmente vencida: o aluno acredita estar<br />

protegido; ele «ousa». Escolhidos tanto<br />

quanto possível fora da realidade quotidiana,<br />

exercícios contribuirão para o «liberar».<br />

Dou um exemplo disso. Nós o chamaremos<br />

de «descoberta do mundo»:<br />

«Faça um esforço para esquecer o<br />

mais possível do seu corpo e do<br />

seu peso.<br />

Estendido no chão, com o rosto coberto<br />

por uma meia-máscara, relaxe, procurando<br />

o aniquilamento total.<br />

Um vento leve roça o seu rosto, corre<br />

sobre o seu corpo; você abre os olhos e<br />

«descobre» o mundo: o céu, a terra, a vegetação;<br />

Conforme o seu temperamento, sentirá<br />

uma sensação de plenitude, de alegria ou<br />

de força, ou até de terror. Você se levantará<br />

ainda pesadamente, com as pernas presas<br />

no chão; no céu nuvens passam; vem a vontade<br />

de as alcançar ou o medo do mistério;<br />

Você vê uma fonte, aproxima-se dela, a<br />

água lhe devolve a sua imagem; você quer<br />

pegar a imagem, a água lhe foge por entre<br />

os dedos...<br />

O sol se mostra e o ofusca...<br />

O sangue que circula em suas veias, a<br />

vida que sente dentro de si o levam a reações<br />

físicas violentas; você se desprende da<br />

terra e improvisa uma dança...»<br />

São tantas as dificuldades desse exercício<br />

que a sua realização é raramente satisfatória,<br />

mas o esforço que exige do aluno<br />

desperta nele reflexos que o farão progredir<br />

rapidamente.<br />

Ao mesmo tempo em que leva à descontração,<br />

um exercício desse tipo vai mostrar<br />

ao aluno a importância do Ritmo e da<br />

Plástica.<br />

Quanto ao curso de dicção, o aluno<br />

declama uma cena de tragédia ou recita<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Charles Dullin<br />

uma cena de comédia, se apoia num trabalho<br />

de memória; não tira quase nada de si<br />

mesmo... Na improvisação, ao contrário, o<br />

tempo e a medida lhe são dados pelo seu<br />

próprio mecanismo, que ele põe em movimento;<br />

não pode escapar à lei do ritmo;<br />

bem melhor: depois de ter sentido a sua<br />

importância, chegará rápido a explorá-la; já<br />

não conseguirá tolerar o vazio dentro dele,<br />

ou a inércia dos seus membros; já não fará<br />

esta pergunta absurda que vem aos lábios<br />

de tantos atores, assim que não têm nada<br />

para dizer: «Mas... estou bloqueado, que<br />

devo fazer?» Ele sente que a pessoa fica<br />

bloqueada quando se põe fora do jogo não<br />

vivendo a sua personagem, nos silêncios e<br />

no diálogo. Compreende que o ritmo vivifica<br />

a própria imobilidade, porque comanda<br />

as nossas pulsações, e se manifesta tanto<br />

numa crispação dos dedos da mão quanto<br />

no salto do dançarino; de agora em diante<br />

sentirá a necessidade do ritmo na palavra<br />

como no gesto.<br />

Para favorecer o desenvolvimento do<br />

sentido do ritmo, a maioria dos exercícios<br />

que se inventam são utilizáveis, considerando-os<br />

por esse ângulo particular; no entanto,<br />

é bom variar-lhes a natureza para habituar<br />

o aluno a pôr ritmo em tudo o que faz...<br />

Você caminha com um sentimento de<br />

alegria interior profunda...<br />

Você pára; se levanta...Torna a caminhar.<br />

(As mudanças de atitude não devem perturbar<br />

o ritmo.)<br />

Você caminha dominado por um sentimento<br />

de tristeza... Pare... Sente-se... Caminhe<br />

de novo...<br />

Aí, é a «Voz de si mesmo» que comanda<br />

o ritmo e o preserva de uma agitação<br />

gratuita... Você encontrará no andar dos<br />

animais exemplos excelentes:<br />

Movimento contínuo do felino... (Ritmo<br />

em todo o corpo.)<br />

O gato que espreita um rato... e... pula<br />

sobre ele... (Não deixar o aluno imitar o gato,<br />

mas estimulá-lo a traduzir as imagens por uma<br />

plástica humana.)<br />

Procure exemplos na própria natureza:<br />

«Um caniço balançado pelo vento»;<br />

Na vida quotidiana:<br />

«Você espera alguém lendo... De<br />

vez em quando olha para a porta...<br />

Depois de um tempo... batem...<br />

Você se precipita para abrir...»<br />

Esse exercício o levará a chamar a atenção<br />

do aluno para a «Noção de tempo»...<br />

que, evidentemente, está intimamente ligada<br />

à noção de ritmo. A medida do tempo está<br />

subordinada ao interesse e à intensidade dramática...<br />

Ela é difícil de adquirir no teatro pelo<br />

fato de não ser a mesma da vida:<br />

Escreva uma carta de ruptura... Como<br />

você o faria na vida;<br />

Escreva a mesma carta durante uma<br />

pequena improvisação num tempo possível<br />

no teatro...<br />

A tendência do ator é, em geral, encurtar,<br />

passar rapidamente de uma idéia a outra;<br />

por estar em cena, esquece os valores<br />

reais.<br />

Para lhe lembrar tais valores, é preciso<br />

insistir em exercícios simples...<br />

«Debruçado sobre um poço, deixe<br />

cair uma pedra. Calcule instintivamente<br />

o tempo da queda...»<br />

Quando o aluno tiver captado bem essa<br />

noção de tempo vinculada intimamente à<br />

de ritmo, e que na maior parte dos casos a<br />

comanda, aproveite esse mesmo exercício<br />

para chamar a sua atenção para a plástica.<br />

Aí , a «improvisação» é de longe o melhor<br />

treinamento para adquirir uma plástica<br />

de natureza teatral.<br />

O aluno que executou o exercício da<br />

descoberta do mundo recorreu imediatamente<br />

a atitudes convencionais ou, se tiver<br />

um pouco de talento para a dança, ter-se-á<br />

inspirado mais ou menos numa técnica de<br />

dançarino; ora, a plástica que convém ao<br />

teatro não é a que convém para a dança,<br />

assim como a ciência do cantor não o é para<br />

a do ator.<br />

IMPROVISAçãO 175


<strong>Urdimento</strong><br />

176<br />

Se o circo e o music-hall herdaram a tradição<br />

dos bufões e dos improvisadores da<br />

Commedia dell´Arte (o cantor cômico atribui<br />

importância tão grande às suas atitudes<br />

quanto à sua voz), com demasiada freqüência<br />

o ator de teatro é amorfo; o desejo<br />

de aparecer em cena tal qual é na vida faz<br />

com que não ouse se comportar em cena de<br />

modo diferente que na vida privada. Essa<br />

plástica de teatro vai da atitude nobre da<br />

tragédia à caricatura grotesca.<br />

A improvisação vai-lhe revelar primeiro<br />

a sua utilidade e lhe impor o seu uso. Ela<br />

o obrigará a primeiramente compor toda<br />

silhueta por dentro (voz de si mesmo), enquanto<br />

a arte da dança conduz o gesto pela<br />

simples beleza do gesto. Entretanto, a necessidade<br />

de estilizar gestos quotidianos ou de<br />

expressar um sentimento por uma atitude<br />

fará com que busque expressões corporais<br />

próprias à arte do ator, que não serão redundantes<br />

em relação à palavra, e ao mesmo<br />

tempo realçarão as suas composições.<br />

Para desembaraçar o aluno nessa pesquisa,<br />

dê a ele exercícios muito simples,<br />

mas que vão apelar para a sua imaginação:<br />

Uma rua às 5 horas da manhã...<br />

Cada aluno deve inventar uma silhueta<br />

de personagens que são encontráveis nas<br />

ruas de Paris por volta dessa hora, «aqueles<br />

que se dirigem para o trabalho...»<br />

«Aqueles que estão saindo do trabalho...»<br />

«Folgazões, mendigos, etc...»<br />

Insistir, passando pela influência da<br />

atmosfera (contribuição exterior, Voz do<br />

Mundo):<br />

A mesma rua ao meio-dia, num dia de<br />

verão muito quente...<br />

Às seis horas da tarde, no fim da jornada...<br />

Dê elementos de silhueta:<br />

«Tensão do surdo» que procura ouvir.<br />

«Modo de olhar de um míope... »<br />

«A caminhada de um vaidoso...»<br />

«De um manequim de casa de alta costura.»<br />

Passe depois para uma fonte de inspirações<br />

quase inesgotável: as silhuetas de<br />

animais.<br />

Um dia, alguém perguntava ao arlequim<br />

Thomazi em que escola ele havia<br />

aprendido a utilizar o corpo com tanta<br />

graça, e ele respondeu: «Olhando os gatos<br />

pequenos brincarem»...<br />

Para esses exercícios, cubramos a parte<br />

superior do rosto com uma meia-máscara,<br />

para deixar todo o valor expressivo<br />

para a silhueta.<br />

Já a utilizamos para o ritmo do caminhar<br />

dos felinos...<br />

Entreguemo-nos, agora, a improvisações<br />

a partir do «cisne», do vôo da andorinha,<br />

da águia que paira, do pato, do peru.<br />

O sucesso da apresentação de As Aves<br />

e, mais tarde, de Plutus, no Atelier [Ateliê]<br />

foi em grande parte baseado nesse treinamento<br />

específico, que permitiu que eu<br />

desse ao coro de Aristófanes todo o seu<br />

valor poético.<br />

Para fecundar a imaginação dos alunos,<br />

faça com que leiam entre dois exercícios<br />

poemas ou fábulas de La Fontaine.<br />

Encene uma fábula de La Fontaine... Nunca<br />

tolere a imitação pueril. A fim de fazer<br />

com que seja bem compreendido o vínculo<br />

entre a plástica e o sentimento dramático,<br />

proponha um exercício do tipo deste:<br />

«No verão, na neve. Uma coruja se aproxima<br />

de uma casa, atraída pela luz. A luz<br />

a ofusca. Ela se apaga. A coruja fica sozinha.<br />

Vai morrer. Morre».<br />

Atingimos aqui a arte da pantomima.<br />

Devemos, no entanto, permanecer no plano<br />

teatral, a fim de não nos perdermos misturando<br />

os gêneros. A pantomima tem leis próprias,<br />

regras próprias. Deve expressar tudo<br />

pelo gesto. Pode, deve até, como a dança, se<br />

compor de fora. Ela é o drama inteiro. No teatro,<br />

a plástica está a serviço do drama interior; sua<br />

qualidade, sua raridade dependem dessa nuança<br />

judiciosamente observada. Para obter<br />

tal resultado, repito, o aluno deve ater-se paralelamente<br />

a um treinamento corporal: dança<br />

clássica, sapateado, esgrima, pantomima pura.<br />

Esse treinamento deve ser o equivalente da<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Charles Dullin<br />

dicção mecânica: deve servir para prepará-lo,<br />

para flexibilizá-lo — é um meio, não um fim.<br />

Há pouco chamei a atenção para o interesse<br />

em usar a meia-máscara nos exercícios<br />

plásticos. Dei razões práticas para isso:<br />

1º Proteger o aluno da timidez, favorecer<br />

a sua descontração;<br />

2º Incitá-lo a utilizar todo o corpo para expressar.<br />

A seguir, trataremos, com a improvisação,<br />

do estudo da máscara de teatro. Nem<br />

o trabalho nem os objetivos para serem alcançados<br />

são, aqui, os mesmos.<br />

Uma máscara tem uma vida própria,<br />

que, aliás, nem sempre é a que o escultor<br />

quis dar a ela. Muitas vezes há algo que escapa<br />

ao criador. Pegue uma máscara bem<br />

feita: estude essa máscara em todos os aspectos,<br />

viva com ela; faça dela uma companheira,<br />

seja seu confidente. Nada me<br />

parece mais irritante do que ver um aluno<br />

pular em cima de uma máscara e usá-la<br />

como um vendedor de artigos de moda o<br />

faria com uma máscara de carnaval. Temse<br />

a impressão de um sacrilégio. Porque a<br />

máscara tem um caráter sagrado. Requer<br />

um público de iniciados. Na maior parte<br />

do tempo, a multidão só verá nela um tema<br />

de zombaria. Muitas vezes foi feito um uso<br />

inconsiderado de experiências de escola.<br />

Mas não se buscou mais longe. Quis-se voltar<br />

atrás, ressuscitar formas desaparecidas.<br />

Erro. O uso da máscara no teatro moderno<br />

não precisa ser descoberto, mas precisa ser<br />

criado inteiramente. Ele condiciona uma<br />

dramaturgia que ainda não encontrou o<br />

seu poeta. Nem o diálogo, nem o tom, nem<br />

o ritmo da nossa tragédia convêm a tentativas<br />

desse gênero.<br />

Na «improvisação», o objetivo que vamos<br />

perseguir é mais de ordem psicológica<br />

do que prática.<br />

O uso da «máscara» acarreta uma despersonalização<br />

forçada do ator.<br />

Até hoje, todos os nossos estudos, contrariamente<br />

a isso, procuraram exaltar a<br />

personalidade do ator; tais estudos viveram<br />

com as suas próprias sensações, foram<br />

buscar a sua sensibilidade na forma mais<br />

direta. Vamos momentaneamente, e sem<br />

atacar essa personalidade profunda, pedir<br />

ao ator para fazer tabula rasa de todas<br />

as pequenas comiserações que ele possuía<br />

em relação a si mesmo, dos seus tiques,<br />

das suas manias, inclusive das suas amabilidades.<br />

Trata-se de uma espécie de «despojamento»<br />

que o preparará para uma arte<br />

mais objetiva e de maior envergadura.<br />

Exercícios de máscaras:<br />

Escolha uma máscara, dê essa máscara<br />

a um aluno, para que a estude fora da aula.<br />

Peça que procure primeiro o caminhar que<br />

lhe convém, a posição da cabeça, e, quando<br />

estiver pronto, mande-o executar os<br />

primeiros exercícios, chamando a atenção<br />

para a importância dos músculos da barriga.<br />

De fato: se você observar estampas de<br />

atores japoneses, perceberá que quase todas<br />

as atitudes são comandadas pelos músculos<br />

da barriga, e muitas vezes, ao fazer com que<br />

alunos trabalhassem, eu não podia me impedir<br />

de lembrar os conselhos daquele ator que<br />

fazia o papel principal nos melodramas, o<br />

qual me repetia fastidiosamente: «Enquanto<br />

você não souber se apoiar nos músculos da barriga,<br />

lhe faltará autoridade». Aquele ator certamente<br />

ignorava tudo sobre o teatro do Extremo<br />

Oriente, mas o seu ofício de «incendiário dos<br />

palcos» 2A havia feito com que reencontrasse<br />

uma velha lei, que vem, sem dúvida, das eras<br />

mais recuadas do teatro.<br />

Tema de improvisação com máscara:<br />

«Você é obrigado a atravessar uma torrente<br />

de montanha. Você luta contra a corrente.<br />

Você supervalorizou as próprias forças:<br />

a corrente o está arrastando. Você luta<br />

desesperadamente, perde pé. Você se afoga».<br />

Encontro à margem do meu livro de<br />

bordo da escola: este exercício foi executado<br />

pela primeira vez por Antonin Artaud e<br />

por Marguerite Jamois. Nessa mesma aula,<br />

2A «Brûleur de planches»: aquele que atua com um arrebatamento<br />

comunicativo. ― Nota do Tradutor.<br />

IMPROVISAçãO 177


<strong>Urdimento</strong><br />

178<br />

Marguerite Jamois fazia uma improvisação<br />

plástica inspirada por «La Violette» [A<br />

Violeta]. Ele foi retomado alguns anos mais<br />

tarde por Jean-Louis Barrault.<br />

No trabalho da máscara, o aluno-ouvinte<br />

deve poder tirar por si indicações preciosas<br />

do que vê: os graus de inclinação da<br />

máscara, a direção do olhar, a importância<br />

do primeiro plano que de repente o mínimo<br />

gesto pode adquirir. Ele captará facilmente o<br />

mecanismo particular para o qual todos os<br />

centros de atividade estão deslocados. É raro<br />

que o aluno um pouco prendado não se apaixone<br />

por esses exercícios. Ele experimenta o<br />

seu caráter sagrado: um pouco de «magia»,<br />

um sentimento de grandeza, a atração do<br />

mistério, o ligam um pouco mais àquela arte<br />

do ator desonrada com excessiva freqüência<br />

por miseráveis tarefas de histrião.<br />

Eu disse, acima, que tais exercícios acarretavam<br />

uma despersonalização forçada do<br />

ator. Sim, porque desta vez ele vai parcialmente<br />

compor a partir do exterior, como<br />

o dançarino que trabalha diante de um espelho<br />

grande: os movimentos já não serão<br />

comandados pelas próprias sensações, mas<br />

exigidos pela «máscara», que substitui a<br />

personalidade dele pela dela.<br />

É a arte de composição por excelência:<br />

o ator se tornará forçosamente mais objetivo,<br />

mais mestre da sua arte... Os tiques,<br />

os hábitos, as manias dele, que tinham um<br />

encanto na vida corrente, se dissolverão<br />

pouco a pouco e só reaparecerão como materiais<br />

de construção e não como construções<br />

em si.<br />

*<br />

***<br />

Vimos que o ator tomou conhecimento<br />

de si mesmo; da sua personalidade despojada<br />

e profunda; e até pôde adquirir algumas<br />

luzes sobre a originalidade das suas aptidões,<br />

sobre a raridade dos seus dons.<br />

Aprendeu a não se isolar do mundo<br />

exterior e tangível (embora de convenção)<br />

que é a atmosfera viva de toda e qualquer<br />

arte; a rejeitar tudo o que pode ser imitativo<br />

puro (e, portanto, inoriginal e velho);<br />

adquiriu as noções que lhe permitirão ir até<br />

o limite extremo da expressão da sua perso-<br />

nalidade própria e finalmente acostumou<br />

essa personalidade e a levou ao encontro<br />

do «Drama» (contendo este em si tudo o<br />

que as propostas de exercício abrangiam, a<br />

saber: o mundo e os seus elementos, e a sua<br />

substância dramática). Nesse momento,<br />

ele poderá abordar com uma compreensão<br />

mais aguçada, com uma lucidez de artista,<br />

o estudo dos grandes dramas shakespearianos,<br />

do teatro grego, do teatro espanhol<br />

e do nosso patrimônio em toda a sua variedade<br />

de gêneros.<br />

Se, agora, eu me afastar um pouco do<br />

ensino prático e se procurar um interesse<br />

de ordem geral, direi que esse método de<br />

improvisação é o único que pode formar<br />

atores aptos para uma arte coletiva.<br />

Eu já disse tanto que «a Improvisação»<br />

não queria recomeçar a experiência dos<br />

Atores Italianos, que o teatro era uma arte<br />

completa em si, que não se deviam misturar<br />

os gêneros, a tal ponto que agora posso<br />

me permitir voltar às próprias fontes que me<br />

inspiraram no decorrer desses trabalhos e influenciaram<br />

indiretamente todas as minhas<br />

realizações teatrais: a Commedia dell´Arte, os<br />

teatros do Extremo Oriente e o Cinema.<br />

Tenho o prazer de notar que quando<br />

Riccobini 3B , «o reformador», queria expulsar<br />

da cena os histriões que então a desonravam,<br />

se atinha ao próprio princípio da<br />

Commedia dell´Arte, mas apesar disso reservava<br />

a escola da improvisação para formar verdadeiros<br />

atores.<br />

É muito provável que Luigi Riccobini<br />

tivesse razão quando empreendeu essa<br />

cruzada contra os histriões da Commedia<br />

dell´Arte, então em decadência: tratava-se<br />

duma arte tão ligada à compleição de cada<br />

ator que teria de sofrer, mais cedo ou mais<br />

tarde, a sina de todo corpo vivo: um nas-<br />

3 B A edição de 1946 traz a grafia Riccobini, em vez de Riccoboni, a cada vez que<br />

o nome é citado. —Trata-se de Luigi Riccoboni (Módena,1676 – Paris, 1753).<br />

Ator e escritor italiano da primeira metade do século XVIII. Seu nome artístico<br />

era Lélio. Figura de ator-intelectual, chefe de companhia do Teatro Italiano<br />

em Paris. Autor de Dell´arte rappresentativa. Pedagogia e critica<br />

di un comico italiano a Parigi [Da Arte Representativa. Pedagogia e<br />

critica de um cômico italiano em Paris], livro publicado em Londres, em 1728;<br />

de Nouveau Théâtre Italien [Novo Teatro Italiano]; de Lettre d´un<br />

comédien français au sujet de l´histoire du Théâtre Italien<br />

[Carta de um ator francês sobre a história do Teatro Italiano]. No início do<br />

século XVIII, L.R. queria reformar o teatro italiano e equipará-lo em qualidade<br />

aos teatros francês, inglês e espanhol. Afastou-se da figura do ator italiano<br />

bufão de corte, mas foi obrigado pelo público – habituado com os arlequins – a<br />

retomar os roteiros antigos. — Nota do Tradutor.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Charles Dullin<br />

cimento nos vagidos e numa semiconsciência,<br />

uma adolescência impetuosa, irresistível<br />

em seus ímpetos, uma maturidade<br />

consciente da força e da sabedoria adquirida,<br />

e depois a velhice... A velhice do Velho<br />

Saltimbanco descrito por Baudelaire: «em<br />

cuja tenda já não se entra».<br />

Bufões, farsantes, atores nômades,<br />

herdeiros dos mimos antigos e das Atelanas<br />

se reúnem: formam uma coletividade<br />

de atores que vai criar uma forma de arte<br />

dramática na qual a participação particular<br />

de cada um se fundirá no conjunto. Provenientes<br />

de diversas províncias, essas personagens<br />

bastante informes inicialmente, que<br />

nem sequer falam o mesmo dialeto, se aperfeiçoam,<br />

se esmeram, se enriquecem; com<br />

roteiros inspirados no teatro escrito, ou no<br />

folclore popular, improvisam; num quadro<br />

fixo de caracteres bem definidos, dão livre<br />

curso à imaginação, à fantasia. Enquanto<br />

se esqueceram os nomes de quase todos os<br />

atores da Comédia escrita, famílias inteiras<br />

de «improvisadores» estão ligadas à história<br />

do teatro durante mais de dois séculos;<br />

depois do crescimento laborioso dessa arte<br />

nova, eis a aparição irradiante e quase irreal<br />

de uma Isabela Andreini, a do Arlequim<br />

Dominique, a do Pantaleão Antonio Riccobini,<br />

a do apaixonado Silvio Calderoni<br />

e a de tantos outros; a arte se desenvolve<br />

e se decanta; os figurinos se embelezam, a<br />

plástica se torna cada vez mais rara. Estão<br />

vivas as imagens que, na seqüência, inspiraram<br />

tantos poetas: deambulam pela<br />

Europa toda para levar a todos os países a<br />

sua mensagem... Depois... a coletividade se<br />

desagrega; o público se cansa; é o declínio,<br />

chega Molière... A comédia escrita triunfa...<br />

O último Arlequim de raça, Carlino, velho,<br />

desencantado, por volta de 1777 representa<br />

pobres paradas nos jardins do Trianon, sob<br />

o olhar indiferente das cortesãs e dos criados<br />

de cozinha.<br />

O tempo passa; o mesmo milagre de<br />

arte coletiva se reproduz no cinema.<br />

Será que se pode não ver um parentesco<br />

íntimo entre a primeira companhia de<br />

Charlie Chaplin e uma dessas companhias<br />

da Comédia Italiana?<br />

Mas sendo uma arte nova, o cinema<br />

não se abarrota com tradições: irá cada vez<br />

mais rumo a uma arte coletiva. É a sua força.<br />

Não faz isso para ser «moderno»: faz isso<br />

porque é moderno. No Cinema, o autor ou<br />

os autores do filme têm o seu lugar, o ator<br />

o dele; o operador e os seus auxiliares, maquinistas,<br />

eletricistas, o decorador — todos<br />

os artesãos trabalham sob a direção de um<br />

«mestre de obras», o encenador, que também<br />

está submetido a uma disciplina coletiva.<br />

Será que por isso a obra é impessoal?<br />

Não... Porque apesar de um mercantilismo<br />

odioso, apesar de combinações financeiras<br />

sórdidas, o cinema continua a ser, ainda assim,<br />

atualmente, uma arte cheia de possibilidades<br />

e de futuro.<br />

Eu o situo propositadamente entre a<br />

Commedia dell´Arte e o Teatro do Extremo<br />

Oriente, pois, em sua velha aristocracia,<br />

este último também é uma arte coletiva.<br />

Querer impor ao nosso teatro ocidental<br />

as regras de um teatro feito por uma longa<br />

tradição, que tem uma linguagem simbólica<br />

bem dele, seria um erro grosseiro, mas<br />

não tirar vantagem dos exemplos admiráveis<br />

de transposição ao mesmo tempo<br />

realista e poético, efeitos que ele extrai da<br />

plástica e do ritmo, seria absurdo.<br />

Em arte, todo o mundo pega a sua riqueza<br />

onde a encontra; é a escolha dos materiais<br />

e a utilização que ele consegue fazer<br />

deles que distingue o verdadeiro artista...<br />

O que nos importa, no momento, é que essas<br />

três formas de arte, de épocas diferentes,<br />

que já demonstraram o seu valor, são<br />

formas de arte coletiva.<br />

Se quiser encontrar a sua força e a sua<br />

originalidade, o Teatro do futuro não escapará<br />

a isso.<br />

Estamos sempre clamando por um gênio<br />

dramático, esperamos a cada temporada<br />

«um Messias».<br />

Temos certeza absoluta de que a forma<br />

que nós lhe oferecemos, em 1946, requer<br />

esse gênio? Temos certeza absoluta de que<br />

ele se sente chamado por uma arte que vive<br />

de repetições e, com muita freqüência, soa<br />

oco... A perspectiva de não ser compreendido,<br />

de não ver a sua obra representada, pelo<br />

menos em vida, não estimula o jovem autor<br />

para procurar obras novas.<br />

IMPROVISAçãO 179


<strong>Urdimento</strong><br />

180<br />

As disciplinas coletivas impostas pelo<br />

trabalho «de improvisação», ao mesmo<br />

tempo que a cultura individual, são meios<br />

excelentes para preparar o instrumento favorável<br />

à eclosão de um movimento teatral<br />

moderno.<br />

Para uma coletividade ter uma vida<br />

artística, é preciso que cada indivíduo que<br />

a compõe seja bastante educado para procurar<br />

a perfeição na parcela de colaboração<br />

que lhe está reservada. Não se trata de pedir<br />

ao ator para ser escritor, ao maquinista<br />

para ser encenador, mas ao ator que passe<br />

para o plano vivo o trabalho do escritor,<br />

sem lhe desnaturar o espírito; ao maquinista,<br />

para trazer todos os seus conhecimentos<br />

práticos para a realização do encenador —<br />

tudo isso, ademais, com aquele «algo» que<br />

vai fazer com que a obra teatral que se beneficia<br />

da contribuição de cada um se torne<br />

a obra de todos...<br />

Na organização social, cuja gestação é<br />

tão longa, tão mortífera, o teatro deve considerar<br />

fórmulas novas, se quiser manter o<br />

seu lugar.<br />

Entre as qualidades que a «improvisação»<br />

desenvolve no ator, a integração do<br />

esforço individual num trabalho coletivo é<br />

certamente um dos aspectos mais interessantes<br />

do problema, que posso apenas aflorar<br />

nos limites deste capítulo.]<br />

<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Charles Dullin


N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Entre fala e língua, drama e texto: reflexões<br />

acerca de uma discussão contemporânea 1<br />

Resumo<br />

O presente trabalho discute a pertinência da diferenciação<br />

entre escrita dramática e não-dramática e aponta a<br />

importância de práticas cênicas na criação dessa fronteira. A<br />

autora sugere que nas práti cas tidas como dramáticas, não<br />

se trabalha cenicamente com a linguagem, mas usa o texto<br />

como pré-texto do jogo ficcional. Por outro lado, as práticas<br />

não-dramáticas colocam no centro da atenção o impacto da<br />

estrutura lingüística sobre a percepção humana, bem como o<br />

palco enquanto espaço de expor esse trabalho interpelativo<br />

da língua sobre a percepção e consciência humana.<br />

PALAVRAS-ChAVE: Teatralidade textual – escrita<br />

teatral – teatro dramático – teatro pos-drámático<br />

Abstract<br />

This paper discusses to what extent it is pertinent to diferentiate<br />

between a dramatic and a non-dramatic writing. It points out<br />

the importance of theatrical practices in creating this distinction.<br />

The author suggests that in theatrical practices perceived as<br />

dramatic, language is not the main focus. It is put at the service<br />

of fictional play. On the other hand, non-dramátic practice focus<br />

the impact of linguistic structure on human perception as well<br />

as the stage as the space to expose this interpelation of human<br />

consciousness and perception through language.<br />

KEy wORDS: Textual theatricality – theatrical writing<br />

– dramatic theatre – postdramatic theatre<br />

1 Título original: “Zwischen Rede und Sprache, Drama und Text. Überlegungen zur gegenwärtigen<br />

Diskussion.“ In: BAYERDÖRFER, Hans-Peter et. al. Vom Drama zum Theatertext? Zur<br />

Situation der Dramatik in Ländern Mitteleuropas. Tübingen: Max Niemeyer, 2007. Tradução:<br />

Stephan Baumgärtel, professor do Departamento de Artes Cênicas e do PPGT/UDESC.<br />

Theresia Birkenhauer 1<br />

ENTRE FALA E LíNGUA, DRAMA E TEXTO: REFLEXõES ACERCA DE UMA DISCUSSãO CONTEMPORâNEA 181


<strong>Urdimento</strong><br />

O<br />

título da minha palestra é uma<br />

variação do título desse congresso,<br />

Do drama ao texto teatral?, ao<br />

liberar seus elementos do enquadramento<br />

inscrito neste, especialmente<br />

da relação de uma sucessão<br />

temporal. Desta forma, mantenho-me fiel<br />

ao ponto de interrogação após o título do<br />

congresso.<br />

Desde os anos 60 estão aumentando as<br />

propostas terminológicas para substituir<br />

o conceito de drama: “substrato textual<br />

literário”, 2 “peça teatral” 3 , “texto teatral” 4 ,<br />

“literatura teatral” 5 . Algo semelhante vale<br />

para o conceito de personagem. Sugerese<br />

falar antes em “portadores de texto” 6 ,<br />

“instâncias de discursos” ou “instâncias<br />

locucionais” 7 . Essas substituições apontam<br />

para mudanças fundamentais. O velho juízo<br />

que afirmava que um texto é “inapto<br />

para o palco” não é mais válido. Hoje em<br />

dia, não existem mais textos que seriam<br />

“impossíveis de serem apresentados no<br />

palco” por causa de características específicas<br />

de seu gênero ou de sua forma. Textos<br />

em prosa, romances, epopeias, poemas,<br />

radiodramas: todo tipo de texto está sendo<br />

‘realizado’ no palco, sem passar por uma<br />

‘dramatização’ no sentido usuário – o Velho<br />

Testamento bem como o bestseller da<br />

última temporada, roteiros de filmes ou<br />

textos de autores famosos que não foram<br />

escritos para o palco. Os textos teatrais recentes<br />

não podem mais ser classificados<br />

por meio das características tipológicas do<br />

drama, nem por respeitar estruturas dialógicas,<br />

nem por seguir outros elementos<br />

formais deste.<br />

Frente a essa prática teatral contemporânea,<br />

a questão sobre se o teatro precisa<br />

do texto ou deveria prescindir dele para li-<br />

182<br />

2 Pfister, Manfred. Das Drama. München: Fink, 1988 5 , p.28.<br />

3 Dyes, Klaus-Müller. Gattungsfragen. In: ArnolD, Heinz-Ludwig<br />

e Detering, Heinrich: Grundzüge der Literaturwissenschaft. München:<br />

DTV, 1996, p.343.<br />

4 PoschmAnn, Gerda. Der nicht mehr dramatische Theatertext.<br />

Tübingen: Max Niemeyer, 1997, p.38.<br />

5 lehmAnn, Hans-Thies. Postdramatisches Theater. São Paulo:<br />

Cosac & Naify, 2007, p.51.<br />

6 PoschmAnn, Gerda. Der nicht mehr dramatische Theatertext.<br />

Tübingen: Max Niemeyer, 1997, p. 309.<br />

7 Keim, Katharina. Theatralität in den späten Dramen Heiner Müllers.<br />

Tübingen: Max Niemeyer,1998, p.55<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

bertar a sua própria característica artística,<br />

que era uma polêmica na época das vanguardas<br />

teatrais, não constitui mais uma<br />

alternativa antitética.<br />

Parece que o velho conflito entre teatro<br />

e literatura chegou ao fim. Mesmo as tradicionais<br />

fronteiras culturais, que por muito<br />

tempo propiciaram uma orientação, (que<br />

o teatro do texto seja o teatro institucional,<br />

concebendo-se como instituição da formação<br />

literária, enquanto o teatro experimental<br />

seja “antiliterário” ou “além do texto”)<br />

não servem mais.<br />

Dramático – Pós-dramático<br />

Perante essas transformações, as teorias<br />

recentes do drama propuseram uma<br />

diferenciação que implica concomitantemente<br />

em uma periodização histórica: a<br />

distinção entre formas teatrais dramáticas<br />

e pós-dramáticas, entre textos dramáticos e<br />

textos teatrais não-mais dramáticos.<br />

O que se afirma é uma cesura entre o<br />

teatro dramático – enquanto lugar de personagens<br />

que falam no contexto de ações<br />

ficcionais – e o teatro pós-dramático, enquanto<br />

lugar de discursos polifônicos e<br />

de significantes soltos. A essa concepção<br />

junta-se uma tese sobre a função da língua.<br />

No teatro dramático, assim ela diz, o texto<br />

apresenta os esboços de ação para um<br />

acontecimento ficcional e é texto de um<br />

personagem (portanto, fala figurativa).<br />

Textos teatrais além do drama, no entanto,<br />

mostram uma tematização autorreflexiva<br />

da língua e deveriam ser lidos enquanto<br />

“poesia”: Libertado da polifuncionalidade<br />

fundamental da comunicação cotidiana, ou<br />

seja, da comunicação puramente referencial<br />

de informações, a linguagem no texto<br />

teatral pode ativar preferencialmente a<br />

função poética de seus signos. 8<br />

Essa atribuição retoma uma diferencia-<br />

8 PoschmAnn, 1997, p.323. A “função poética” é compreendida<br />

enquanto “função autorreflexiva” e explicita da seguinte forma:<br />

“O que aflora no centro do interesse [do leitor e do espectador]<br />

por meio da função poética da linguagem, são os processos da<br />

prática semiótica e da constituição de significados no uso de determinado<br />

código. O uso poético da linguagem, enquanto sua<br />

auto-reflexão, é ao mesmo tempo meta-linguístico e meta-teatral.”<br />

Theresia Birkenhauer<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

ção mais antiga, no entanto com outra ênfase.<br />

Tradicionalmente, se relacionava com<br />

a oposição entre “dramático” e “poético”<br />

uma fronteira entre gêneros literários. Uma<br />

vez que a palavra, em textos teatrais, não<br />

possui sua eficácia por si só – como na fala<br />

lírica – mas no diálogo das personagens,<br />

tem-se afirmado uma incompatibilidade<br />

entre a escrita ‘dramática’ e a ‘poética’, 9<br />

respectivamente uma limitação da ‘função<br />

poética’. Neste sentido, Käthe Hamburger<br />

diz: “[…] o drama é aquela obra de arte<br />

verbal, na qual o verbo não está mais livre,<br />

mas contextualizado. […] A fórmula<br />

dramática, que diz que o verbo é colocado<br />

para dentro do contexto da forma, diz que<br />

o lugar do drama deve ser definido, em<br />

primeiro lugar, em relação ao problema da<br />

forma, e não à palavra em si.” 10<br />

As teorias mais recentes do drama também<br />

atestam aos textos teatrais um “uso<br />

poético da linguagem”, no sentido de que<br />

eles não se definem pelo representado, mas<br />

se referem ao seu próprio acabamento formal<br />

e ao processo teatral da representação<br />

e da percepção. 11<br />

Por isso, pode-se perceber nas concepções<br />

teóricas acerca do teatro pós-dramático<br />

um interesse renovado no teatro lírico e<br />

simbolista da virada para o século XX. Dizse<br />

que no drama inicial de Maeterlinck,<br />

“renuncia-se a toda a estrutura de tensão,<br />

drama, ação e imitação” 12 , “não era mais<br />

o texto para os papéis que se considerava<br />

como a essência do texto teatral – como<br />

ocorria no teatro dramático –, e sim o texto<br />

como poesia, que por sua vez deveria corresponder<br />

à própria ‘poesia’ do teatro.” 13<br />

Mas o que qualifica uma fala dramática<br />

enquanto “texto para um papel”? O que<br />

a qualifica enquanto “poesia”? A tese dos<br />

gêneros diz que é a referência da fala dramática<br />

a um contexto de ações, que a torna<br />

“texto para um papel”. Onde se renuncia<br />

9 lArthomAs, Pierre. Le Langage dramatique. Sa nature, ces procédés.<br />

Paris: PUF, 1980, p.438.<br />

10 hAmburger, Käthe, Kate. Die Logik der Dichtung,<br />

Stuttgart, Klett, 19692 , p.161. (A Lógica da Criação Literária,<br />

Perspectiva, São Paulo, 1975.)<br />

11 PoschmAnn, 1997, p.130 e p.340.<br />

12 lehmAnn, 2007, p.95.<br />

13 lehmAnn, 2007, p.97.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

“as axiomas dramáticas de ação”, onde a<br />

linguagem dramática é libertada da função<br />

de caracterizar e diferenciar pessoas, onde<br />

a fala não se refere mais a personagens,<br />

ali há ‘poesia’. Mas isso significa, inversamente,<br />

que não há “poesia” onde existe um<br />

contexto dramático de ação, personagens<br />

ficcionais, indicações de fala referentes a<br />

pessoas? Essa conclusão inversa mostra o<br />

quanto tal definição conceitual é discutível.<br />

Ela aponta a dificuldade de uma delimitação<br />

que torna o “poético” uma característica<br />

de textos teatrais que desconhecem a<br />

fala figurativa e um contexto de ação.<br />

É impossível decidir, pela superfície<br />

formal, se um texto dramático é “poesia”<br />

ou “texto para um papel”. Nas peças de<br />

Tchekhov ou Koltés há “texto de personagem”.<br />

Entretanto, a fala dramática neles<br />

não se refere exclusivamente a personagens<br />

ou ações. Por outro lado, didascálias<br />

de interlocutores que apontam a uma despersonalização<br />

– como, por exemplo, “o<br />

velho”, “o estrangeiro”, “primeiro, segundo,<br />

terceiro cego” nas peças de Maeterlinck<br />

– não diferem fundamentalmente de indicações<br />

figurativas dos papéis em Beckett<br />

ou Thomas Bernhard. Nesses casos, não<br />

é nada óbvio se os interlocutores são, de<br />

fato, pessoas, mesmo que sejam denominados<br />

enquanto tais. Fica explícita a dificuldade<br />

de definir características formais de<br />

textos dramáticos ou não-dramáticos com<br />

categorias fixas. Nenhum texto dramático<br />

prescreve como deve ser lido; se um texto é<br />

denominado “poético” ou não, não é determinado<br />

por um caráter que possa ser definido<br />

conceitualmente como “dramático”<br />

ou “não-dramático” em si. O poético é uma<br />

dimensão da linguagem dos textos que<br />

pressupõe, para ser materializada, uma determinada<br />

prática de leitura ou montagem,<br />

que produz ou revela essa dimensão – ou<br />

não.<br />

A tentativa de uma definição inequívoca<br />

de características do “dramático” corre o<br />

risco de identificar convenções de encenação<br />

com a forma literária dos textos. Uma<br />

caracterização da função de texto no drama<br />

principalmente através das proprieda-<br />

ENTRE FALA E LíNGUA, DRAMA E TEXTO: REFLEXõES ACERCA DE UMA DISCUSSãO CONTEMPORâNEA 183


<strong>Urdimento</strong><br />

184<br />

des “fala de personagem” e “referência do<br />

diálogo à ação”, remete em primeiro lugar<br />

a uma determinada prática de encenação.<br />

Tanto a concepção de que a fala de uma<br />

personagem representa uma expressão natural,<br />

quanto à afirmação de que a linguagem<br />

em textos dramáticos é, sobre tudo,<br />

um meio de comunicação e sua função a<br />

transmissão de conteúdos discursivamente<br />

descritíveis, são atribuições que surgiram<br />

por causa de convenções de encenação do<br />

teatro ilusionista burguês. Somente essa<br />

tradição de montagem criou estas suposições<br />

básicas, supostamente fundamentais,<br />

acerca da função do texto dramático,<br />

segundo as quais a linguagem no drama<br />

implica, em princípio, a fala individual de<br />

uma personagem; fala monológica ou dialógica<br />

de caracteres representados. Determinar<br />

as características de textos por meio<br />

dos modos de apresentação do teatro ilusionista<br />

implica em defini-las através de<br />

uma prática de encenação a qual eles não<br />

pertencem nem exclusivamente, e muito<br />

menos necessariamente.<br />

Enquanto se entende a fala dramática<br />

primordialmente na sua dimensão comunicativa,<br />

ou seja, enquanto mimese de uma<br />

fala individual, o texto falado se referirá<br />

às dramatis personae: Como são criadas as<br />

personagens? O que acontece entre elas? O<br />

que elas revelam sobre si mesmas? Negligencia-se<br />

o fato de que também os textos<br />

dialógicos não são escritos exclusivamente<br />

enquanto textos da fala das dramatis personae,<br />

mas igualmente enquanto textos para<br />

o palco teatral. 14 Enquanto textos para o<br />

teatro, entretanto, eles possuem um duplo<br />

ponto de referência: no que concerne<br />

a seus elementos, os textos dramáticos se<br />

relacionam com uma cena a ser representada,<br />

uma ação, uma interação, mas em seu<br />

cálculo compositório se relacionam com o<br />

processo de apresentação, com a percepção<br />

do espectador. Isso tem a ver com a estrutura<br />

fundamental da apresentação teatral:<br />

a perspectivização dupla da fala dramática.<br />

14 Isso não quer dizer que sejam escritos para uma determinada<br />

encenação e tampouco que os textos implicam em uma encenação,<br />

mas sim afirmar o vínculo da composição dos textos com a<br />

estrutura da apresentação teatral.<br />

A dupla perspectivização<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Segundo um consenso entre todas as teorias,<br />

a simultaneidade de duas perspectivas<br />

é fundamental para o teatro. Ela é descrita<br />

de modo diverso: enquanto “função dupla”<br />

da fala dramática, que é sempre endereçada<br />

duas vezes, às personagens e ao público; 15<br />

enquanto sobreposição da perspectiva das<br />

personagens e dos espectadores; 16 enquanto<br />

“sobreposição imediata dos sistemas comunicativos<br />

interno e externo”; 17 enquanto<br />

“eixo de comunicação intracênico” e “um<br />

eixo ortogonal que diz respeito à comunicação<br />

entre o palco e o local da plateia, diferenciado<br />

(real ou estruturalmente) do palco”. 18<br />

Quais são as consequências dessa perspectivização<br />

dupla? Tradicionalmente, se<br />

atribui o “texto principal” – as falas das<br />

personagens – ao sistema de comunicação<br />

“interno”. O “texto coadjuvante” – as<br />

indicações sobre os interlocutores, as didascálias,<br />

definições de atos, de entradas e<br />

saídas de personagens – é atribuído ao sistema<br />

de comunicação “externo”, como se<br />

as falas das personagens não fossem submetidas<br />

também a um raciocínio formal de<br />

apresentação. Nas citadas abordagens da<br />

teoria do drama, a relação dos dois eixos<br />

se transforma em critério de periodização:<br />

a literatura dramática tradicional deve-se<br />

compreender a partir do sistema de comunicação<br />

interno – enquanto representação<br />

de ações ficcionais no palco, ao passo que<br />

“o tipo textual não-dramático” se refere à<br />

comunicação externa, à plateia. Em relação<br />

às formas teatrais pós-dramáticas, se diz:<br />

“Dessa conhecida duplicidade de todo teatro,<br />

o teatro pós-dramático extraiu a consequência<br />

de que em princípio deve ser possível<br />

levar a primeira dimensão à beira do<br />

desaparecimento e ativar a segunda para<br />

lograr uma nova qualidade de teatro. […]<br />

O teatro é enfatizado como situação, não<br />

como ficção.” 19<br />

15 Larthomas, 1980, p.437: «La replique la plus banale est destinée<br />

à la fois au personnage auquel elle s’adresse et au public.»<br />

16 Hamburger, 1969, p.164.<br />

17 Pfister, 1988, p.24.<br />

18 Lehmann, 2007, p.211.<br />

19 Lehmann, 2007, p. 212.<br />

Theresia Birkenhauer<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Mas esta periodização, que encaixa o<br />

drama em seu universo intraficcional – a<br />

“realidade autônoma da ficção dramática”<br />

– e as formas não dramáticas na comunicação<br />

externa – “a situação teatral real” –,<br />

prescreve, para a literatura dramática, uma<br />

fronteira que dificilmente pode ser sustentada<br />

a partir de uma perspectiva histórica<br />

do teatro. A dupla perspectivização é constitutiva<br />

para o teatro. Se ela é negada por<br />

causa de convenções estéticas do teatro,<br />

por exemplo na reivindicação da quarta<br />

parede no teatro burguês, isso não significa<br />

que não havia a “comunicação externa” –<br />

o endereçamento à plateia. O espectador é<br />

endereçado enquanto observador clandestino,<br />

que é excluído do acontecimento.<br />

A comunicação externa não implica<br />

simplesmente no endereçamento ao espectador<br />

real, mas a formação dessa relação, a<br />

perspectivização daquilo que é representado.<br />

Mesmo a atitude descrita por Szondi de<br />

modo tão drástico, segunda a qual o espectador<br />

do drama congela numa “passividade<br />

total”, “calado, com os braços cruzados,<br />

paralisado pela impressão de um segundo<br />

mundo”, 20 não implica que não haja um<br />

endereçamento da representação para o espectador.<br />

Se e por meio de quais formas se<br />

realiza este endereçamento no eixo palcoplateia,<br />

se de modo explícito ou embutido<br />

em uma estrutura dialógica que parece<br />

endereçar-se exclusivamente aos acontecimentos<br />

representados, depende de convenções<br />

teatrais dramatúrgicas e estéticas.<br />

Se reconhecemos a tematização do eixo<br />

palco-plateia apenas onde há um endereçamento<br />

fatual e explícito ao público – ou seja,<br />

predominantemente nas formas teatrais da<br />

vanguarda e neovanguarda do século XX –<br />

incorremos em ignorar uma das forças formadoras<br />

determinantes fundamentais de<br />

textos dramáticos. Textos escritos na tradição<br />

do drama não são exclusivamente endereçados<br />

à “ação intraficcional”. Quem se<br />

atém a isso identifica determinada prática<br />

de encenação com uma relação desses dois<br />

eixos e a prescreve, posteriormente, como<br />

20 Szondi, Peter. Teoria do drama moderno. 1880-1950. São<br />

Paulo: Cosac & Naify, 2001, p.31.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

a característica formal do drama. Em sua<br />

esteira, a literatura dramática aparenta ser<br />

determinada pelas propriedades de “totalidade,<br />

ilusão e representação do mundo”, 21<br />

ou respectivamente por ficção, ação e mímese<br />

– enquanto “apresentação de uma<br />

história de personagens que se estende no<br />

espaço e no tempo”. 22<br />

Outro entendimento resulta se pensarmos<br />

cada encenação como uma nova determinação<br />

desses eixos. A consequência<br />

disso é diferenciar entre estruturas textuais<br />

e modos de encenação e historizar rigorosamente<br />

as características tipológicas. Faz<br />

uma grande diferença se pensamos o teatro<br />

exclusivamente enquanto “realidade<br />

do palco” – enquanto realização empírica<br />

de textos, segundo certas convenções de<br />

encenação – ou enquanto uma estrutura de<br />

apresentação que organiza textos teatrais<br />

de modo específico. Isso transforma a perspectiva<br />

sobre os textos tanto quanto as encenações.<br />

Em relação a textos dramáticos,<br />

isso significa não imputar-lhes de antemão<br />

uma determinada relação – por exemplo, a<br />

hegemonia do eixo intraficcional – mas desenvolver<br />

uma relação específica entre os<br />

dois eixos a partir de suas estruturas textuais.<br />

Neste caso, os textos dialogados não<br />

lidos de modo intradramático, em relação<br />

às dramatis personae – enquanto falas, que<br />

as caracterizam, que lhes atribuem um contorno<br />

e expressam seu estado de ânimo –<br />

mas simultaneamente enquanto textos que<br />

constituem a estrutura dramática da apresentação<br />

ao configurar a relação dos dois<br />

eixos de modo específico.<br />

Pode-se observar isso tanto no drama<br />

tradicional quanto em textos dramáticos<br />

recentes. Na virada para o século XX, o trabalho<br />

com essas duas camadas é explícito,<br />

por exemplo, em Tchekhov e Maeterlinck.<br />

Mas pode-se percebê-lo igualmente em<br />

Koltés, cujas peças possuem características<br />

– fala de personagem e o vínculo dela<br />

com a ação dramática – de textos dramáticos.<br />

Entretanto, elas manuseiam de modo<br />

muito sutil a dupla perspectivização da<br />

21 Lehmann, 2007, p.26.<br />

22 Poschmann, 1997, p. 47.<br />

ENTRE FALA E LíNGUA, DRAMA E TEXTO: REFLEXõES ACERCA DE UMA DISCUSSãO CONTEMPORâNEA 185


<strong>Urdimento</strong><br />

186<br />

fala dramática. O diálogo nunca se resolve<br />

na sua dimensão referencial intraficcional.<br />

Sempre são expostos também gestos verbais,<br />

retóricas e estratégias que concomitantemente<br />

estruturam nossa percepção do<br />

espaço cênico e as qualidades temporais.<br />

Por outro lado, devemos indagar nas encenações<br />

como cada uma acentua esses dois<br />

eixos do teatro de modo particular. Neste<br />

sentido, devemos compreender encenações<br />

– num sentido mais específico do que<br />

o comum – enquanto leituras que realizam<br />

aquele potencial em textos dramáticos que<br />

uma leitura exclusivamente direcionada à<br />

ficção dramática negligencia: a dupla perspectivização<br />

da fala teatral.<br />

Entre fala e língua<br />

Podemos observar, de modo exemplar,<br />

o potencial cênico 23 de um trabalho com os<br />

dois eixos naquelas encenações que montam<br />

textos que, segundo suas características<br />

tipológicas, seriam textos dramáticos, como<br />

por exemplo a montagem de Woyzeck de<br />

Büchner, realizada por Michael Thalheimer<br />

no Thalia Theater em Hamburgo (2003). A<br />

encenação de Thalheimer expõe a perspectivização<br />

dupla ao distanciar radicalmente<br />

os dois eixos – o intracênico e o extracênico.<br />

Um meio básico do qual a encenação<br />

lança mão consiste em renunciar do modo<br />

de atuação realista, de sua correspondência<br />

entre gestos e voz, entre forma corporal<br />

e fala. Nunca se articula os textos segundo<br />

as regras da entonação semântica – como<br />

se articulassem estados de ânimo ou intenções<br />

dos personagens – mas sempre como<br />

elementos de uma composição de encenação<br />

que a estabelece como dispositivo espacial<br />

abstrato do palco. Isso produz transformações<br />

na relação entre cena e língua.<br />

Ainda que haja uma sequência linear de<br />

cenas, é abandonada a relação de ação dra-<br />

23 Em alemão: Darstellungspotential. O verbo darstellen não<br />

diferencia entre “representar” e “apresentar” e significa principalmente<br />

“tornar concreto ou colocar perante os olhos algo que<br />

existe na mente ou em outro lugar” e nessa dimensão inclui “representar”.<br />

A atividade não se limita à atuação, mas uma das<br />

palavras tradicionais para o ator em alemão é Darsteller. (nota<br />

do tradutor)<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

mática interna. Com isso, as réplicas perdem<br />

seu ponto de referência dialógico; elas<br />

se encontram no espaço sem endereçado e,<br />

mesmo assim, apelam permanentemente<br />

a um outro, carregadas com um afeto que<br />

fica sem ressonância.<br />

Normalmente, o modo específico da<br />

apresentação teatral fica camuflado por<br />

causa da orientação não-questionada<br />

na personagem falante e de uma correspondência<br />

entre situação cênica e texto<br />

falado. Esta encenação subverte essa<br />

orientação ao tornar perceptível não a<br />

correspondência, mas a tensão entre os<br />

dois eixos. As réplicas são tiradas de<br />

qualquer relação intracênica e direcionadas<br />

diretamente para o público, mas não<br />

por meio de procedimentos conhecidos<br />

como o distanciamento, o comentário, o<br />

endereçamento isolado, senão de modo<br />

estranho, pois as frases ficam, ao mesmo<br />

tempo, carregadas da excitação que lhes<br />

pertence a partir da dinâmica cênica.<br />

Os procedimentos cênicos propulsionam<br />

um movimento no qual as frases ditas<br />

perdem seu “significado unilateral” que se<br />

refere à situação cênica. Elas são colocadas<br />

em um espaço que não pertence unicamente<br />

aos interlocutores. Elas se chocam diretamente<br />

com o espectador. Para ele, que não<br />

é interlocutor, mas um observador dessa<br />

fala, elas se tornam perceptíveis enquanto<br />

violência cortante, imploração, emoção que<br />

perdeu os suportes relacionais, afeto puro.<br />

Enquanto ouvinte, o observador é exposto<br />

à violência dessa linguagem, sem a distância<br />

que lhe oferecem um contexto cênico e<br />

uma ambientação dramática.<br />

A encenação realiza uma dimensão da<br />

língua que se livra da função descritiva e<br />

comunicativa da fala dramática. Ela gera<br />

novos espaços de significação, de modo<br />

que a língua não é mais somente parte funcional<br />

da narrativa dramática, mas desenvolve<br />

um movimento próprio, que por sua<br />

vez transforma o acontecimento cênico.<br />

Desse modo, a encenação possibilita uma<br />

transformação e uma modelagem da fala<br />

teatral e com isso uma prática da linguagem<br />

própria do teatro.<br />

Theresia Birkenhauer<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Encenar enquanto prática<br />

da linguagem<br />

Se compreendermos encenações enquanto<br />

leitura, no sentido explicitado por<br />

Michel de Certeau – enquanto “procedimento<br />

necessário para a realização da obra”<br />

– elas não aparecem mais como “interpretações”<br />

da direção, modos de ler pessoais, mas<br />

enquanto leituras que continuam o ato de<br />

escrever um texto dramático e desse modo<br />

transformam permanentemente o olhar sobre<br />

a fala dramática. Uma encenação não<br />

é classificada como leitura por acentuar o<br />

conteúdo de textos de modos diversos – o<br />

que se associa com o “teatro do diretores”<br />

dos anos 70 – mas por organizar os textos<br />

cenicamente, para, dessa forma, “restaurar<br />

um determinado uso, mais abrangente e<br />

mais radical, da palavra.” 24<br />

Se analisarmos os procedimentos de<br />

encenação que geram essa dimensão da<br />

linguagem, perceberemos que realizam<br />

potenciais cênicos genuínos do palco. 25<br />

Os procedimentos são dos mais diversos:<br />

um deslocamento do sentido das palavras<br />

pela imagem, um modo específico de atuação,<br />

formas de espacialização da palavra,<br />

criação de temporalidades heterogêneas.<br />

Entretanto, esses deslocamentos sempre<br />

impactam sobre a língua, colocam-na “em<br />

cena” de forma diversa.<br />

Nesse sentido, o teatro não é o lugar de<br />

uma concretização da literatura – no sentido<br />

comum de um teatro de literatura – mas<br />

ele mesmo é uma prática literária, contanto<br />

que as modalidades próprias do palco<br />

permitam um “trabalho na língua” (Barthes)<br />

que faz com que ela possa ser experimentada<br />

de modo diverso. Na encenação<br />

de Thalheimer, a língua aparece enquanto<br />

afeto condensado que praticamente cancela<br />

a função comunicativa do ato de dizer.<br />

Experiências com a língua totalmente diferentes<br />

foram realizadas pelo teatro de Heiner<br />

Müller, o teatro de Einar Schleef ou de<br />

24 Merleau-Ponty, Maurice. “Der Mensch und die Widersetzlichkeit<br />

der Dinge”. In: Das Auge und der Geist. Philosophische<br />

Essays. Philosophische Essays.“ Hamburg: Rowohlt, 1984.<br />

25 Darstellungspotentiale, ver nota 23.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Elfriede Jelinek. O palco é um lugar em que<br />

surgem novos jogos de linguagem a cada<br />

encenação.<br />

De um ponto de vista histórico, isso<br />

significa que encenações mudam permanentemente<br />

a relação entre os dois eixos<br />

da apresentação teatral. O teatro francês<br />

clássico, por exemplo, podia ser lido diferentemente<br />

após montar as tragédias de<br />

Racine com sensibilidade pelas estruturas<br />

espaciais e pelas relações dos olhares, presentes<br />

nas práticas cênicas do século XVIII.<br />

Isso é válido também para textos teatrais.<br />

Os dramas de Koltés configuram um palco<br />

que renova o olhar para Corneille, os textos<br />

de Jelinek transformam nossa perspectiva<br />

sobre Hauptmann, as peças de Duras a sobre<br />

Maeterlinck.<br />

Entretanto, isso não acontece inevitavelmente.<br />

Uma encenação não acentua automaticamente<br />

a dupla perspectivização na<br />

estrutura da apresentação teatral. Encenações<br />

certamente podem transformar textos<br />

teatrais em textos convencionais por reduzi-los<br />

ao “drama”. Um exemplo recente é a<br />

estreia da peça Blues subterrâneo 26 de Peter<br />

Handke, por Claus Peymann na Berliner<br />

Ensemble em 2004. A encenação aposta<br />

exclusivamente na dimensão intraficcional<br />

do texto; os espectadores veem um placo<br />

que representa, de modo realista e detalhado,<br />

uma daquelas polidas e assépticas<br />

estações de metrô sem nenhum funcionário,<br />

na qual trens dirigidos com controle<br />

remoto emitem sinais automáticos durante<br />

a parada. O “subterrâneo” aqui é brilhante<br />

e bonito; as figuras – todas são vestidas<br />

de modo que já revelam sua tipificação por<br />

meio do figurino – entram no vagão. Lá está<br />

sentado “um homem selvagem”, como diz<br />

a rubrica descritiva da figura. Esse homem<br />

comenta sobre os antigos e novos passageiros<br />

ao falar, sem restrições, o que lhe passa<br />

pela cabeça – palavrões, gentilezas, especulações,<br />

fantasias, pressuposições que lhe<br />

vêm à mente frente às personagens. Até,<br />

em fim, entrar “uma mulher selvagem”<br />

que comprova a misantropia do homem.<br />

“Sim, exatamente assim acontece,” pensa o<br />

26 Em alemão, Untertageblues.<br />

ENTRE FALA E LíNGUA, DRAMA E TEXTO: REFLEXõES ACERCA DE UMA DISCUSSãO CONTEMPORâNEA 187


<strong>Urdimento</strong><br />

188<br />

espectador dessa encenação e rapidamente<br />

fica com tédio. Em nenhum momento criase<br />

uma irritação. A situação visual é interpretada<br />

claramente através do texto, pois<br />

a encenação constrói, já de antemão, uma<br />

congruência entre a fala do homem selvagem<br />

e aquilo a qual ela se refere. A possível<br />

diferença entre a perspectiva do interlocutor<br />

e da situação cênica não é trabalhada<br />

na encenação, de modo que nem a qualificação<br />

da fala dada no título – enquanto<br />

Blues – nem o lugar de sua manifestação<br />

– o subterrâneo – se tornam claros. A personagem<br />

se mantém estranhamente rasa,<br />

não se transforma – nem por instantes – em<br />

uma das figuras metamorfoseadas que o<br />

texto menciona: um Tirésia, um Charon,<br />

um anjo negro. De fato, pouco resta desse<br />

monólogo interior, de sua motivação pelo<br />

outro e pelo próprio, de seu status ficcional<br />

ambivalente enquanto conversa consigo<br />

mesmo e endereçamento. A dupla perspectivização,<br />

embutida no texto de vários modos,<br />

está sendo nivelada em favor de uma<br />

evidência unilateral e inequívoca.<br />

O que vale para as encenações se aplica,<br />

naturalmente, também aos modos de escrita.<br />

Eles também podem contornar ou evitar<br />

o potencial da perspectivização dupla, por<br />

meio de uma orientação direta demais nos<br />

temas a serem comunicados, no material<br />

ou nas teses. Não é por acaso que os festivais<br />

anuais de novas peças criam a impressão<br />

de que se tratam de produções cíclicas<br />

sobre os temas da pedofilia, da identidade<br />

da Alemanha Oriental, do incesto ou do<br />

desemprego. De fato, existem dramaturgos<br />

que se concebem enquanto fornecedores de<br />

temas para o teatro e que escrevem a peça a<br />

ser encenada pensando numa relação com<br />

a atualidade que há tempo é assumida por<br />

outros meios de informação.<br />

Assim, surge a questão se devemos<br />

diferenciar entre textos literários e “textos<br />

teatrais”, que reivindicam um status não<br />

literário, ou seja, de ser “material” ou “matriz”<br />

da atuação.<br />

Propriedades formais (as formas dialogadas,<br />

relação com a ação, ficcionalidade)<br />

ou simples procedimentos dramatúrgicos<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

(repetição, interrupção, modos de fala em<br />

forma de coro, a renuncia a personagens<br />

ou narração) não são critérios para dizer<br />

se um texto é teatral ou não. Antes, isso se<br />

decide pelo modo como e até que ponto<br />

trabalham com o potencial das estruturas<br />

da apresentação teatral. Tais textos, mesmo<br />

sendo dramas, são interessantes para diretores<br />

de hoje. Frank Castorf, por exemplo,<br />

liberta na sua encenação Estação Terminal<br />

América o clássico Um Bonde Chamado Desejo,<br />

de Tennesee Williams, de sua fixação<br />

como clássico do drama psicológico.<br />

Ao invés de insistir no texto literário,<br />

dever-se-ia indagar que tipo de experiência<br />

de linguagem humana ele possibilita. O que<br />

faz do teatro um espaço da literatura não é o<br />

fato de que se montam textos literários. Teatro<br />

também pode se tornar um espaço para<br />

vivenciar a literariedade, onde não se encena<br />

textos literários, como nos trabalhos de<br />

Christoph Marthaler ou Ariane Mnouchkine.<br />

Não existe um significado prévio de textos<br />

que deveria ser “comunicado”, realizado<br />

ou transposto pelas encenações. Tampouco<br />

poderia um conteúdo atribuído a um drama<br />

“desvendar” para o espectador o “sentido”<br />

de uma encenação. Isso pode unicamente a<br />

vivência estética desta.<br />

Literatura, na compreensão de Roland<br />

Barthes, não é um atributo das obras, mas<br />

uma atividade, um “trabalho na língua”<br />

que se distingue da prática verbal comum.<br />

A língua não se revela por vontade própria.<br />

Por vontade própria, ela é o lugar das<br />

mensagens, do poder. Ela se revela, diz<br />

Barthes, “porque as forças de liberdade<br />

que residem na literatura não dependem<br />

da pessoa civil, do engajamento político<br />

do escritor [...] nem mesmo do conteúdo<br />

doutrinário de sua obra, mas do trabalho<br />

de deslocamento que ele exerce sobre a<br />

língua.” 27 Por causa dessa estrutura dupla<br />

da fala dramática, o teatro é o espaço no<br />

qual é possível este “trabalho de deslocamento<br />

sobre a língua” e, com isso, a “revolução<br />

permanente da fala”, que é a literatura.<br />

27 Barthes, Roland. Aula. Aula inaugural da cadeira de semiologia<br />

literária do Colégio de França. São Paulo: Cultrix, 1988,<br />

p.15-16.<br />

Theresia Birkenhauer


N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

De seres humanos reais e<br />

performers verdadeiros 1<br />

Annemarie M. Matzke<br />

Trad. Stephan Baumgärtel 2<br />

Resumo<br />

Este artigo discute noções como autenticidade e veracidade<br />

no trabalho cênico frente ao crescente interesse em usar<br />

depoimentos biográficos de atuantes não-profissionais. O<br />

artigo se questiona sobre as fontes desse interesse bem como<br />

as diferenças dessas práticas teatrais em relação a formatos<br />

televisivos que trabalham com depoimentos biográficos e reflete<br />

sobre diferentes efeitos de autenticidade que se pode produzir<br />

com um teatro documentário que oscila entre ficção e realidade<br />

empírica.<br />

PALAVRAS-ChAVE: teatro documentário – teatro<br />

pós-dramático – prática de atuação teatral - teatralidade<br />

Abstract<br />

Leo Sykes speaks about her training and her work as a<br />

theatre director. She tells of her five years as assistant director to<br />

Eugenio Barba, director of Odin Teatret. She explains how she<br />

works to make clown performances with Circo Teatro Udi Grudi<br />

in Brazil and with Teatret OM in Denmark. She shows how she<br />

works with the actors to develop the material and then elaborates<br />

and structures it into a performance.<br />

KEywORDS: Leo Sykes, Eugenio Barba, Clown<br />

1 In: Fischer-Lichte, Erika et. al. (eds.). Wege der Wahrnehmung. Authentizität, Reflexivität und Aufmerksamkeit<br />

im zeitgenössischen Theater. Berlin: Theater der Zeit, 2006. pp. 39 – 47. Trad. Stephan Baumgärtel,<br />

Prof. do PPGT da UDESC<br />

DE SERES HUMANOS REAIS E PERFORMERS VERDADEIROS 189


<strong>Urdimento</strong><br />

190<br />

Uma mulher entra no palco. Na<br />

mão, ela carrega uma lâmpada<br />

de pé, um modelo de IKEA.<br />

Ela procura um lugar, põe a<br />

lâmpada no chão e começa<br />

a contar: do salário de desemprego, da<br />

redução da assistência social do governo<br />

e as injustiças; da necessidade de cada<br />

um se engajar e do fato que ela está farta;<br />

como é preciso que se faça algo, cada um<br />

de nos. Durante a fala, ela perde a fluência,<br />

chega a parar momentaneamente. Cria-se<br />

a impressão como ela estivesse fala o seu<br />

texto de modo livre, como se ela decidisse<br />

espontaneamente o que dizer. Ouvese<br />

o tictac de um relógio. A luz se apaga<br />

lentamente – um minuto se passou: um<br />

minuto na luz do palco.<br />

Essa cena curta provém da encenação<br />

Tableau com existências marginais<br />

(Standbild mit Randexistenzen) de Björn<br />

Auftrag e Stefanie Lorey de 2004. 3 O conceito<br />

da encenação é buscar, via anúncios nos<br />

jornais, pessoas que gostariam dizer algo no<br />

palco, é colocar a sua disposição um minuto<br />

de tempo cênico. Este minuto pode ser<br />

usado de modo arbitrário. O pressuposto<br />

é que cada um traz consigo a sua própria<br />

lâmpada de pé. Aos poucos configura-se<br />

no palco uma ‘imagem de grupo’ composta<br />

pelos trinta e cinco ‘atores’: alguém conta<br />

uma piada sobre Bush, uma outra pessoa<br />

conta do seu cunhado que morreu de câncer;<br />

uma fica em silêncio por um minuto. Do<br />

lado-a-lado dos diferentes discursos surge<br />

um caleidoscópio de confissões, histórias, e<br />

anedotas pessoais, ou discursos engajados,<br />

que realça a individualidade dos diferentes<br />

representadores (de si mesmo). A previsão<br />

de Andy Warhol que no futuro cada um<br />

de nos poderia ganhar fama por quinze<br />

minutos, é realizado aqui no palco pelo<br />

menos por um minuto.<br />

A organização da encenação é simples<br />

e transparente para o espectador. O palco,<br />

a luz da lâmpada de pé e o limite de tempo<br />

atribuem a cada apresentação uma moldura.<br />

3 Apresentações, entre outras, no Mousonturm em Frankfurt/<br />

Main, no teatro Hebbel am Ufer em Berlin, no Diskurs-Festival<br />

Gießen, e no teatro Die Kammerspiele em München.<br />

As apresentações são organizados segundo<br />

um regulamento reconhecível. A pesar<br />

dessa delimitação formal da encenação,<br />

cria-se um impacto especial de vivencia<br />

imediata. Tudo parece ‘real’, como se a<br />

‘atuadora’ o trouxesse diretamente da sua<br />

vida cotidiana para o palco. No caso da<br />

lâmpada de pé, trata-se de uma lâmpada de<br />

IKEA que pode ser encontrada em muitos<br />

lares, e a roupa tampouco é reconhecível,<br />

de modo específico, como figurino. A<br />

forma da apresentação também subverte<br />

certas convenções de uma apresentação<br />

teatral. Durante a sua fala, a ‘atriz’ é<br />

nervosa, comete erros de pronuncia, mas<br />

exatamente por causa deste modo faltoso<br />

de falar o seu discurso aparenta ser nãoencenado.<br />

Será que tudo que se opõe à<br />

construção do acontecimento teatral, e<br />

por tanto ao seu caráter encenado, produz<br />

um efeito de autenticidade? Com isso,<br />

autenticidade no palco seria aquilo que<br />

parece ser não-encenado, mesmo que a<br />

encenação organiza um visível contexto de<br />

encenação.<br />

Talvez a impressão de autenticidade<br />

seja produzida por uma especial<br />

confiabilidade da ‘atuadora’ que convence a<br />

mim, a espectadora, que ela realmente quer<br />

dizer o que ela fala. À diferença de um ator<br />

que fala em nome de um personagem, ele<br />

formula um assunto pessoal. Ela responde<br />

por aquilo que diz. Pode-se imaginar que<br />

repetiria as suas reivindicações na rua<br />

durante uma manifestação: autenticidade<br />

como uma forma de street credibility.<br />

Será que a impressão de imediatez se<br />

cria exatamente pela contradição entre<br />

a proximidade cotidiana da ‘atriz’ e a<br />

delimitação exposta da encenação?<br />

A formulação do ‘ser humano<br />

real’ com que intitulei o meu ensaio é<br />

propositalmente polêmica: no palco e no<br />

dia-a-dia, todo ser humano é naturalmente<br />

‘real’, independentemente sé é um ator ou<br />

uma funcionária de um banco. Mas perante<br />

a crescente prática no teatro contemporâneo<br />

de colocar atores não-profissionais no<br />

palco, parece necessário realizar algumas<br />

Annemarie M. Matzke / Trad. Stephan Baumgärtel<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

diferenciações. Da onde vem o interesse<br />

na encenação de atores não-profissionais?<br />

Onde encontra-se a diferença em relação<br />

a formatos da mídia como o Talkshow<br />

ou os Reality Soaps? Quais efeitos de<br />

autenticidade são produzidos, quando se<br />

aposta não em atores profissionais, mas na<br />

apresentação de pessoas comuns?<br />

Comparando as encenações que<br />

surgem neste contexto, chama a atenção<br />

que os ‘atuadores’ apresentam a sua<br />

história, a sua situação empírica, e por<br />

tanto, apresentam eles mesmos. Na<br />

maioria das vezes, eles não representam<br />

mais personagens literários ou figuras<br />

dramáticas – e caso que o fazem, é para<br />

refletir sobre a própria situação de vida. 4<br />

Eles são postos em cena como expertos<br />

da própria causa: como ‘especialistas do<br />

cotidiano’. 5 Eles se apresentam a si mesmos<br />

ou um assunto pessoal, como na encenação<br />

descrita no início. É um teatro biográfico<br />

com uma abordagem documentária.<br />

No entanto, essa definição é pertinente<br />

também para muitas apresentações no<br />

âmbito do teatro-performance. Elas também<br />

mostram, a partir de questionamentos<br />

pessoais, encenações de um Eu além da<br />

representação de uma figura. Nenhum<br />

texto literário é ponto de partida para a<br />

montagem, mas os ‘atores’ tornam a si<br />

mesmo, sua biografia ou corporeidade,<br />

o assunto da apresentação. O que se<br />

mostra não é um teatro auto-biográfico.<br />

Estas encenações do Eu são discussões de<br />

formas de encenação sociais e midiáticas,<br />

que são reconhecíveis nos trabalhos. Como<br />

exemplos, pode-se mencionar o Quizshow<br />

da produção QUIZOOLA! do grupo<br />

Forced Entertainment, o Setting Ballsaal<br />

na encenação Warum tanzt ihr nicht?<br />

[Porque vocês não estão dançando?] do<br />

grupo SheShePop, ou o mundo do trabalho<br />

como lugar de um auto-marketing na<br />

performance Work do grupo Gob Squad.<br />

4 Na encenação Wallenstein (2005), do grupo Rimini-Protokoll,<br />

os ‘atores’ não representam as figuras da peça. Ao contrário disso,<br />

é indagado até que ponto pode se reconhecer nos conflitos<br />

na biografia dos ‘atores’ os conflitos do drama.<br />

5 Behrend, Eva. “Die Alltagsspezialisten”, in Jahrbuch Theater<br />

heute (2003), p.52-63. Exemplos para esta forma de teatro são<br />

Rimini Protokoll, Theater Lubricat, Gudrun Herbold, Hofmann e<br />

Lindholm, para mencionar só alguns.<br />

As encenações revelam indagações nos<br />

modos sociais de encenação. São citados<br />

formatos da mídia ou cultural performances,<br />

que precisam uma forma especifica da<br />

auto-apresentação.<br />

Este procedimento se mostra também<br />

nas encenações de atores não-profissionais,<br />

que muitas vezes, sem qualquer tipo de<br />

formação de ator, são profissionais na autoapresentação.<br />

Ao por, na sua encenação de<br />

Wallenstein, na pessoa de Sven-Joachim Otto<br />

um político profissional no palco, o grupo<br />

Rimini-Protokoll não só tematiza modos de<br />

auto-apresentação profissionais – durante<br />

a encenação, Otto revela, por exemplo, as<br />

estratégias da sua campanha publicitária –,<br />

mas os expõe no próprio ato de apresentar<br />

e jogar cenicamente. Uma discussão<br />

parecida com a auto-promoção mostra a<br />

trilogia Perform Performing do bailarina<br />

e performer Jochen Roller, que indaga no<br />

seu trabalho “o sentido e o absurdo de<br />

compreender a dança como trabalho”.<br />

Agui, o negocio com a auto-revelação se<br />

transforma no show propriamente dito.<br />

Portanto, as transições entre o performer,<br />

que torna a própria pessoa assunto da sua<br />

apresentação, e o ‘ator’ não-profissional,<br />

que recorre a suas estratégias pessoais<br />

de representar o próprio Eu, não são<br />

claramente delimitadas. Ambos fazem da<br />

sua competência na auto-encenação o tema<br />

da sua apresentação e com isso aludem<br />

a um fenômeno social: a necessidade de<br />

saber como se auto-promover, e portanto,<br />

a obrigação de apresentar uma imagem<br />

autêntica de si mesmo. Por isso, eles<br />

não tratam do ser humano ‘real’, cuja<br />

proximidade com ao cotidiano deveria<br />

lhe confiar autenticidade, nem de uma<br />

apresentação ‘verdadeiro’ de um suposto<br />

Eu por parte dos performer, mas de um jogo<br />

com estratégias de (auto-)apresentação.<br />

Um desdobramento parecido pode ser<br />

observado também nas mídias de massa.<br />

Nos formatos da televisão encontra-se um<br />

crescente número de ‘representadores’ que<br />

não são mais introduzidos como atores ou<br />

apresentadores profissionais – começando<br />

de biG brother (2000), passando pelos Reality<br />

DE SERES HUMANOS REAIS E PERFORMERS VERDADEIROS 191


<strong>Urdimento</strong><br />

192<br />

Soaps até DeutsChlAnD suCht Den suPerstAr<br />

[Alemanha procura o superstar; um show<br />

de talentos musicais] (2003). Enquanto, no<br />

início, um dos objetivos desses formatos<br />

era, através da criação de configurações de<br />

teste extremas – seja de uma isolação do<br />

mundo afora, ou através de provocações<br />

e desafios – fazer com que os candidatos<br />

se apresentem de modo autêntico, agora<br />

esta busca por autenticidade aparece em<br />

segundo plano. Os formatos mais novos<br />

observam os candidatos no processo de<br />

se tornar auto-apresentadores mais e<br />

mais aperfeiçoados, por exemplo, quando<br />

eles aperfeiçoam a sua auto-encenação<br />

enquanto popstars. O espectador não mais<br />

pontua como os candidatos são além da<br />

câmara, mas como eles constroem uma<br />

imagem em frente e para a câmara que<br />

parece autentico. O objetivo não parece ser<br />

a confecção de autenticidade para além da<br />

encenação, mas a autenticidade no ato da<br />

encenação.<br />

Na descrição das formas teatrais de<br />

representação – tanto no contexto dos<br />

‘atores’ não-profissionais quanto no teatroperformance<br />

– chama a atenção também que<br />

se recorre com tanta freqüência ao conceito<br />

de autenticidade, e simultaneamente o<br />

questiona. 6 Mesmo que se questione a<br />

autenticidade do apresentado e o conceito<br />

seja definido de modo problemático, ele<br />

continua sendo o ponto de referência da<br />

descrição. Deste modo, o conceito sempre<br />

marca também a dúvida acerca do autêntico<br />

e se define em última análise através do seu<br />

oposto: o fingimento ou a falsificação. 7<br />

Esta atitude cética acerca do conceito<br />

de autenticidade encontra-se em discursos<br />

de diversas ciências. A sociologia aponta<br />

a impossibilidade de uma comunicação<br />

não-mediata e direta. As teorias do<br />

gênero indagam com concepções como<br />

performatividade e máscara a autenticidade<br />

do gênero. A teoria literária se despede da<br />

instância do autor recorrendo a conceitos<br />

6 Ver, por exemplo, Diez, Georg. “Das Drama des wirklichen Lebens“<br />

[o drama da vida real], in Frankfurter Allgemeine Zeitung,<br />

5.Juni 2005; Bauer, Detlev. “Echt gespielt“ [representado de verdade],<br />

in: Deutsche Bühne 8 (2004), p.36-39.<br />

7 Römer, Stefan: Künstlerische Strategien des Fake. Kritik von<br />

Original und Fälschung, Köln: DuMont, 2001.<br />

como a intertextualidade. E a etnologia<br />

problematiza qualquer forma de uma<br />

documentação autêntica. Frente a este<br />

contexto, Helmut Lethen questiona a<br />

autenticidade como critério de avaliação:<br />

“Quando não é mais possível denominar<br />

interfaces claras entre natureza e construção<br />

social, a autenticidade parece ser usada no<br />

máximo de forma irônica, como critério<br />

para diferenciar entre vários graus de<br />

artificialidade.” 8<br />

Esta interface entre vários graus<br />

de artificialidade, no entanto, é típico<br />

para a discussão contemporânea sobre<br />

autenticidade e encenação no palco. 9<br />

Investigar e buscar a imediatez com os<br />

meios do palco é uma tentativa um tanto<br />

paradoxal: O contexto ‘palco’ aponta<br />

exatamente para o caráter mediado do<br />

apresentado. Autenticidade no palco<br />

é sempre efeito de uma construção.<br />

Gabriele Brandstetter vê neste fato um<br />

novo paradoxo do ator, na sucessão de<br />

Diderot, um “estar presente sem atuar”. 10<br />

O paradoxo não se articula mais entre<br />

sentimento e representação, mas entre o<br />

desejo por uma representação autêntica e<br />

o saber simultâneo da sua impossibilidade.<br />

Com isso, a autenticidade se transforma<br />

de um problema da representação –<br />

como posso conseguir uma representação<br />

autêntica? – em um problema da retórica:<br />

como posso comunicar ao espectador<br />

a impressão de imediatez no palco, se<br />

qualquer impressão de autenticidade é<br />

resultado de uma construção?<br />

Um breve excursão pela história da<br />

atuação documenta o deslocamento de<br />

conceito de autenticidade em relação a esta<br />

8 Lethen, Helmut. “Versionen des Authentischen. Sechs Gemeinplätze“<br />

[Versões do autêntico: seis chavões], in: Böhme, Hartmut<br />

e Scherpe, Klaus (eds.) Literatur und Kulturwissenschaften:<br />

Positionen, Theorien, Modelle. Reinbek bei Hamburg: Rowohl,<br />

1996., p.205-230, aqui p.209.<br />

9 Ver Fischer-Lichte, Erika e Pflug, Isabel (eds). Inszenierung<br />

von Authentizität [Encenações de autenticidade]. Tübingen e<br />

Basel: Francke, 2000. E também Berg, Jan; Hügel, Hans-Otto;<br />

e Kurzenberger, Hajo. (eds.) Authentizität als Darstellung [Autenticidade<br />

enquanto representação]. Hildesheim: Universität<br />

Hildesheim, 1997.<br />

10 Brandstetter, Gabriele. “Geschichten erzählen im Performance-Theater<br />

der neunziger Jahre.“ In: Fischer-Lichte, Erika et. al.<br />

(eds). Transformationen: Theater der 90ger Jahre [Transformações:<br />

teatro dos anos 90]. Berlin: Theater der Zeit, 1999. p. 27-<br />

42, aqui p.36.<br />

Annemarie M. Matzke / Trad. Stephan Baumgärtel<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

pergunta. Nas teorias de atuação do século<br />

18, se buscou por autenticidade tanto na<br />

expressão do ator quanto na representação<br />

do personagem. Esta exigência focou<br />

uma determinada concepção de uma<br />

representação ‘natural’, em oposição a<br />

uma representação artificial e exagerada. 11<br />

A partir da metade do século XIX, as<br />

exigências ao ator mudam: Ele deve sempre,<br />

na representação da figura, também<br />

representar ele mesmo. 12 Nas teorias do<br />

teatro no início do século XX, a relação<br />

entre palco e realidade é invertida: não o<br />

teatro, mas a realidade social é marcada<br />

pelo fingimento. Stanislavski, por exemplo,<br />

compreende a sua técnica de atuação<br />

como uma tentativa “de como podemos<br />

apreender de eliminar do teatro [...] o<br />

‘teatral’.” 13 Principalmente a concepção de<br />

Grotowski do seu Teatro Pobre define o ato<br />

de atuação como instrumento para atingir<br />

uma veracidade. O ator, através do trabalho<br />

sobre ele mesmo e sobre o personagem,<br />

deve alcançar uma veracidade impossível<br />

na vida cotidiana. O palco é declarado como<br />

o lugar em que esta forma de autenticidade<br />

parece possível.<br />

Os trabalhos contemporâneos, ao<br />

contrário, revelam auto-encenações que<br />

conscientemente não escondem o seu<br />

caráter de serem um jogo construído. As<br />

apresentações investigam as encenações do<br />

cotidiano e suas estratégias de atribuir-lhes<br />

autenticidade. A auto-representação se<br />

apresenta como um jogo com identidades,<br />

como um modo de representação, na<br />

sua multiplicação em imagens mais<br />

diversas de si mesmo. Neste contexto, a<br />

questão do verdadeiro, da veracidade e<br />

da credibilidade se torna inane. Isto faz<br />

com que a percepção do espectador vira<br />

o elemento central: não se coloca mais a<br />

11 Fischer-Lichte, Erika. “Entwicklung einer neuen Schauspielkunst“<br />

[O desenvolvimento de uma nova arte de atuação], in:<br />

Bender, Wolfgang F. (ed). Schauspielkunst im 18. Jahrhundert.<br />

Stuttgart: Steiner, 1998, p.51-70.<br />

12 Emblemático para este fenômeno é o debate sobre a diferença<br />

na atuação da Duse e Sarah Bernhardt. Ver Balk, Claudia.<br />

Theatergöttinnen. Inszenierte Weiblichkeit. Clara Ziegler, Sarah<br />

Bernhardt, Eleonore Duse. Frankfurt/Main: Stroemfeld, 1994.<br />

13 Stanislavski, Konstantin. Die Arbeit des Schauspielers na sich<br />

selbst: Tagebuch eines Schülers. [O trabalho do ator sobre si<br />

mesmo: diário de um aluno]. Vol.1, Berlin:Henschel, 1983.<br />

questão se algo é imediato ou encenado,<br />

mas que impressão de imediatez é<br />

produzida. Se expõe a construção de<br />

efeitos do autêntico. Neste processo, podese<br />

diferenciar várias estratégias.<br />

Um procedimento consiste em<br />

desvendar a construção do acontecimento<br />

teatral propriamente dito. Podemos<br />

mostrar isso de forma exemplar na<br />

encenação stAnDbilD mit rAnDexistenzen,<br />

descrita no início deste artigo. Ao permitir<br />

um conhecimento sobre a seleção dos<br />

‘atores’ e sobre os parâmetros expostos<br />

na encenação, a apresentação revela a<br />

sua estrutura. Esta exposição e revelação<br />

funcionam, no entanto, somente perante<br />

o contexto ‘teatro’ e das suas convenções<br />

inscritas neste. O que se percebe como<br />

autentico é o gesto do desvendamento.<br />

O modo da ‘encenação’ é afirmado como<br />

a realidade comum entre espectadores<br />

e ‘atores’. Esta concepção de realidade<br />

não refere a algo extra-teatral, mas a um<br />

determinado clima de comunicação: o que<br />

importa é uma definição compartilhada<br />

da situação como sendo encenada. Este<br />

procedimento se diferencia da conceito<br />

Brechtiano do distanciamento na medida<br />

em que não há uma ilusão teatral na<br />

situação da apresentação que poderia ser<br />

quebrada, do mesmo modo como não há<br />

figuras fictícias ou uma fábula. Aquilo que<br />

se expõe enquanto encenação é meramente<br />

a situação teatral de representar e observar.<br />

Jogando com estas camadas da encenação,<br />

cria-se a impressão de autenticidade<br />

só a partir da diferença. Quanto menos<br />

encenado, mais autêntico o efeito em<br />

comparação com algo mais encenado.<br />

Um outro procedimento é recorrer a<br />

conhecidos formatos da mídia, ou cultural<br />

performances, nos quais são inscritos<br />

específicas estratégias de encenação,<br />

reconhecíveis pelos espectadores. O grupo<br />

Rimini Protokoll, por exemplo, faz uso,<br />

uma e outra vez, de formas de encenação<br />

sociais para as suas produções, seja isso<br />

o parlamento alemão em DeutsChlAnD<br />

2, ou a sala de um tribunal em zeuGen<br />

[testemunhas]. Se examina a produção e<br />

DE SERES HUMANOS REAIS E PERFORMERS VERDADEIROS 193


<strong>Urdimento</strong><br />

194<br />

recepção de procedimentos e estratégias de<br />

encenação na política e no sistema jurídico,<br />

respectivamente. Neste contexto, levantase<br />

a questão como se produz ‘a verdade’<br />

nessas formas sociais de encenação, e quais<br />

‘papeis’ são assumidos. Procedimentos<br />

de encenação teatrais se misturam com<br />

aqueles da realidade social. Os ‘atores’ nãoprofissionais<br />

legitimam o seu aparecimento<br />

no palco com o fato de serem expertos para<br />

uma forma específica de encenar realidade<br />

empírica – seja por causa de uma predileção<br />

pessoal, da sua profissão ou de uma<br />

determinada experiência biográfica. Eles<br />

causam uma impressão de autenticidade<br />

enquanto expertos, não enquanto ‘atores’<br />

teatrais. Mas a sua competência, por sua<br />

vez, é exposta como uma forma específica<br />

de (auto-) encenação. Na oposição das<br />

diferentes estratégias de encenação surge a<br />

impressão de autenticidade como efeito de<br />

diferenças.<br />

Isso aponta para um terceiro efeito<br />

de autenticidade no palco: o fracasso da<br />

(auto-) encenação bem fabricada. No teatro<br />

tradicional, relaciona-se um momento de<br />

autenticidade com o fracasso do andamento<br />

fluído da apresentação: um ator ‘sai do<br />

personagem’, a técnica não funciona ou<br />

alguém se machuca. A “irrupção do real” 14<br />

causa a impressão de autenticidade dentro<br />

da situação encenada. Em muitas produções<br />

contemporâneas, este fracasso é parte da<br />

encenação. Por um lado, ele é produzido<br />

por uma falta de profissionalismo dos<br />

‘atores’, que muitas vezes aparecem<br />

pela primeira vez num palco. Os ‘atores’<br />

não-profissionais freqüentemente não<br />

conseguem produzir aspectos rotineiros de<br />

atuação – por exemplo uma sensibilidade<br />

em relação ao texto, uma voz audível ou uma<br />

sensibilidade específica pela linguagem e<br />

pelo corpo. Na sua atuação, eles minam as<br />

convenções da representação no palco. Por<br />

causa desta falta de profissionalismo, criase<br />

uma cumplicidade com o público: por<br />

mais que sejam especialistas na sua própria<br />

profissão, eles são ao mesmo tempo não-<br />

14 Lehmann, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo:<br />

Cosac&Naïfy, 2007, p.163<br />

especialistas enquanto atores. Podemos<br />

constatar um diletantismo da forma.<br />

Deste modo, a encenação se transforma<br />

em um arranjo experimental que brinca<br />

de modo consciente com o fracasso na<br />

representação: a atenção se desloca da<br />

capacidade artístico-representacional dos<br />

atores para suas capacidades de autoencenação.<br />

O centro da questão agora<br />

é como eles se apresentam e tratam a<br />

situação da encenação. A impressão de<br />

autenticidade surge pelo modo de minar o<br />

que é esperado, pelo erro da encenação.<br />

Algo parecido acontece quando grupos<br />

performáticos como Forced Entertainment,<br />

Gob Squad ou SheShePop trabalham com<br />

estruturas de jogo no palco, que exigem do<br />

performer a capacidade de improvisação no<br />

palco. A montagem QUIZOOLA! do grupo<br />

Forced Entertainment, por exemplo, é um<br />

jogo de perguntas e respostas que trabalha<br />

com a característica de que a situação do<br />

jogo é aberta. Dois performers se enfrentam<br />

sentados e cara a cara no palco. De um bolo<br />

de mais do que mil perguntas, eles fazem<br />

perguntas um ao outro. As respostas são<br />

improvisadas por ambos. O espectador<br />

pode perceber as regras que organizam<br />

a apresentação. No contexto do teatro se<br />

estabelece um segundo frame do jogo que<br />

coloca o performer numa situação de decisão<br />

concreta. A duração da montagem, entre<br />

quatro a seis horas, faz parte da estratégia<br />

de autenticação. Durante este tempo longo,<br />

os performers passam necessariamente por<br />

dificuldades de concentração. Eles começam<br />

a rir, param no meio da fala, começam<br />

a gaguejar, fazem pausas longas para<br />

refletir (desesperadamente). Cria-se um<br />

momento de sobrecarrego que desencadeia<br />

afetos visíveis nos performers: vergonha e<br />

embaraço. A vergonha, que se caracteriza<br />

pelo desejo de “não estar aqui agora”,<br />

torna a presença inevitável dos ‘atores’<br />

algo obsessivo. Ela não se deixa integrar<br />

(aparentemente) na auto-encenação, e os<br />

‘atores’ perdem o controle sobre a situação<br />

teatral. O tempo de duração parece assim<br />

um truque consciente para conseguir<br />

uma perda de controle e, com isso, uma<br />

Annemarie M. Matzke / Trad. Stephan Baumgärtel<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

imediatez: uma tentativa de produzir afetos<br />

reais através de determinados efeitos. Ao<br />

mesmo tempo, este truque faz parte da<br />

configuração da situação, transparente<br />

para o espectador. O fracasso é e sempre<br />

será parte da encenação.<br />

Neste contexto, os dois pólos ‘autêntico’<br />

e ‘encenado’ referem um ao outro. O<br />

autêntico é encenado desde já, e a encenação<br />

responde a um fracasso autêntico. Este<br />

jogo ambíguo aponta para um conceito de<br />

uma ‘autenticidade irônica’: autenticidade<br />

é afirmada, mas não é aquilo que se quer<br />

dizer. É justamente a diferença entre o<br />

mostrado e o não-afirmado que possibilita:<br />

algo com intenções sérias, uma afirmação<br />

irônica, uma transgressão autêntica de algo<br />

necessariamente mediado, representação<br />

da impossibilidade dessa transgressão.<br />

No entanto, resta a pergunta, porque<br />

a autenticidade continua sendo um<br />

ponto de referência na descrição de<br />

representações teatrais. Se a brincadeira<br />

com os efeitos de autenticidade é mais<br />

do que um mero meio para um fim, deste<br />

tratamento de autenticidade, irônico e<br />

abertamente encenado, resultam novas<br />

reivindicações e esperanças, como<br />

Christoph Schlingensief as define: “O meu<br />

desejo é grande de encontrar um sistema<br />

que é satisfeito consigo mesmo, mas do<br />

qual os participantes sabem que é um<br />

sistema enganoso. Ao afirmar que algo<br />

é teatro, ao apresentar algo e confessar<br />

seu caráter como fake, se cria uma nova<br />

sinceridade.” 15 Aqui surge uma outra<br />

compreensão de autenticidade. Junto à<br />

exposição de ‘atores’ não-profissionais,<br />

ao desvendamento dos parâmetros da<br />

encenação, à brincadeira com o risco<br />

do fracasso, é a própria constituição<br />

do acontecimento teatral que vira foco.<br />

Todos que vão ao teatro sabem do<br />

status do apresentado. O evento teatral<br />

15 Schlingensief, Christoph: “ ‘Wir sind zwar nicht gut, aber wir<br />

sind da’ [‘Não somos bons, mas estamos aqui.] Registrado<br />

depois de uma conversa com Christoph Schlingensief por Julia<br />

Lochte e Wilfried Schulz.” In: Julia Lochte e Wilfried Schulz<br />

(eds). Schlingensief. Notruf für Deutschland; über die Mission,<br />

das Theater und die Welt des Christoph Schlingensief. Hamburg:<br />

Rotbuch, 1998. p. 12-35, aqui p.35.<br />

não funciona através o engano ou o<br />

equívoco entre realidade e ficção. Ao<br />

contrário: a realidade teatral se destaca<br />

pelo conhecimento compartilhado<br />

das condições do apresentado, pela<br />

possibilidade de reconhecer o ato de<br />

mostrar, e pela tentativa produtiva<br />

e compartilhada de estabelecer uma<br />

comunicação sobre este ato. Neste<br />

ponto reside o potencial do teatro no<br />

contexto de uma discussão das formas de<br />

encenação presentes na nossa sociedade,<br />

numa época em que a impossibilidade de<br />

distinguir entre o real e o encenado está<br />

se tornando um problema (do cotidiano).<br />

Não se trata mais se algo é real ou<br />

verdadeiro, mas de uma diferenciação<br />

entre os diferentes graus de encenação;<br />

não do desmascaramento da realidade<br />

social como encenada, mas de uma<br />

tentativa de responder com os meios do<br />

palco e em igual grau de complexidade à<br />

complexidade social.<br />

DE SERES HUMANOS REAIS E PERFORMERS VERDADEIROS 195


<strong>Urdimento</strong><br />

196<br />

REfERênCIAS bIbLIOGRáfICAS<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

bAlk, Claudia. Theatergöttinnen. Inszenierte Weiblichkeit. [Deusas do Teatro. Feminilidade<br />

encenada] Clara Ziegler, Sarah Bernhardt, Eleonore Duse. Frankfurt/Main: Stroemfeld,<br />

1994<br />

bAuer, Detlev. “Echt gespielt“ [representado de verdade], in: Deutsche Bühne 8 (2004)<br />

behrenD, Eva. “Die Alltagsspezialisten”, in Jahrbuch Theater heute (2003)<br />

berG, Jan; hüGel, Hans-Otto; e kurzenberGer, Hajo. (eds.) Authentizität als Darstellung<br />

[Autenticidade enquanto representação]. Hildesheim: Universität Hildesheim, 1997<br />

brAnDstetter, Gabriele. “Geschichten erzählen im Performance-Theater der neunziger<br />

Jahre.“ In: fisCher-liChte, Erika et. al. (eds). Transformationen: Theater der 90ger Jahre<br />

[Transformações: teatro dos anos 90]. Berlin: Theater der Zeit, 1999<br />

Diez, Georg. “Das Drama des wirklichen Lebens“ [o drama da vida real], in Frankfurter<br />

Allgemeine Zeitung, 5. Juni 2005.<br />

fisCher-liChte, Erika e Pflug, Isabel (eds). Inszenierung von Authentizität [Encenações de<br />

autenticidade]. Tübingen e Basel: Francke, 2000<br />

fisCher-liChte, Erika. “Entwicklung einer neuen Schauspielkunst“ [O desenvolvimento<br />

de uma nova arte de atuação], in: benDer, Wolfgang F. (ed). Schauspielkunst im 18.<br />

Jahrhundert. Stuttgart: Steiner, 1998<br />

lehmAnn, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac&Naïfy, 2007<br />

lethen, Helmut. “Versionen des Authentischen. Sechs Gemeinplätze“ [Versões do autêntico:<br />

seis chavões], in: böhme, Hartmut e sCherPe, Klaus (eds.) Literatur und Kulturwissenschaften:<br />

Positionen, Theorien, Modelle. Reinbek bei Hamburg: Rowohl, 1996<br />

römer, Stefan: Künstlerische Strategien des Fake. Kritik von Original und Fälschung. [Estratégias<br />

artísticas do fake. Crítica de original e falsificação]. Köln: DuMont, 2001.<br />

Annemarie M. Matzke / Trad. Stephan Baumgärtel


ESPETáCULOS<br />

BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente Concilio. ATRIzES: Mirella Granucci, Vanessa Civiero, Marina Sell e Julia Oliveira. FOTO: Lucas Heymanns.


BadenBaden<br />

SInOPSE:<br />

O homem ajuda o homem?<br />

badenbaden, inspirado em texto de bertolt brecht, estabelece<br />

um jogo vivo e um acordo sutil entre as atrizes e o espectador.<br />

A proposta é que a plateia seja constantemente convidada<br />

a se posicionar ante as cenas, questionando sua própria função<br />

diante delas. Através de um inquérito no qual se decide se quatro<br />

aviadores recém-acidentados merecem ser ajudados. O espetáculo<br />

suscita a reflexão política sobre a morte, a renúncia, o acordo, a<br />

ajuda e a violência.<br />

BadenBaden<br />

(2011). Espaço<br />

2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO:<br />

Vicente<br />

Concilio.<br />

ATRIzES:<br />

Gabriela<br />

Drehmer e<br />

Nina Bamberg.<br />

FOTO: Lucas<br />

Heymanns.<br />

N° 18 | Março Setembro de 2012 de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />

BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente Concilio.<br />

ATRIzES: Priscila Marinho, Mirella Granucci, Marina<br />

Sell, Vanessa Civiero e Julia Oliveira.<br />

FOTO: Guilherme Santos.<br />

BadenBaden<br />

BadenBaden<br />

(2011). Espaço<br />

2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO:<br />

Vicente<br />

Concilio.<br />

ATRIzES:<br />

Julia Oliveira,<br />

Luísa Bresolin<br />

e Priscila<br />

Marinho.<br />

FOTO: Lucas<br />

Heymanns.<br />

199


<strong>Urdimento</strong><br />

200<br />

BADENBADEN (2011).<br />

Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente<br />

Concilio.<br />

FOTO: Lucas<br />

Heymanns<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Entrevista<br />

FICHA TÉCNICA:<br />

direção: Vicente Concilio<br />

Atrizes: Emanuele Mattiello, Gabriela<br />

Drehmer, Isadora Peruch, Julia<br />

Oliveira, Luísa Bresolin, Marina<br />

Sell, Mirella Granucci, Nina-Carmo<br />

Bamberg, Priscila Marinho e Vanessa<br />

Civiero<br />

Texto: Bertolt Brecht<br />

Assistente de direção: Pedro Coimbra<br />

Monitoria: Camila Mayer Petersen<br />

dramaturgia: Luísa Bresolin, Marina<br />

Sell e Vanessa Civiero<br />

Repertório sonoro: Morgana Martins<br />

Criação do “Funk da Mercadoria”:<br />

Bernardo Flesch e Luísa Bresolin<br />

Figurinos: Alice Assal, Luísa Bresolin<br />

e Mirella Granucci<br />

Criação da alegoria: Fátima Lima,<br />

Emanuele Mattiello e Priscila Marinho<br />

Iluminação: Ivo Godois, Julia<br />

Oliveira e Priscila Marinho<br />

Preparador para tecido: Marlon<br />

Spilhere<br />

Material gráfico: Camila Mayer<br />

Petersen<br />

Produção: Emanuele Mattiello e<br />

Nina-Carmo Bamberg<br />

Produção executiva: Gabriela<br />

Drehmer e Isadora Peruch


<strong>Urdimento</strong><br />

202<br />

BadenBaden (2011).<br />

Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente Concilio.<br />

ATRIzES: Mirella Granucci,<br />

Vanessa Civiero, Marina<br />

Sell e Julia Oliveira.<br />

FOTO: Lucas Heymanns<br />

BadenBaden (2011).<br />

Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente<br />

Concilio.<br />

ATRIzES: Isadora<br />

Peruch, Emanuele<br />

Mattiello e Nina<br />

Bamberg.<br />

FOTO: Lucas<br />

Heymanns.<br />

BadenBaden (2011). Espaço 2.<br />

<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente Concilio.<br />

ATRIzES: Isadora Peruch, Priscila<br />

Marinho, Mirella Granucci, Julia<br />

Oliveira, Nina Bamberg, Vanessa<br />

Civiero e Gabriela Drehmer.<br />

FOTO: Lucas Heymanns.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Sinopse<br />

BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente Concilio.<br />

ATRIzES: Vanessa Civiero, Mirella Granucci,<br />

Marina Sell e Julia Oliveira.<br />

FOTO: Lucas Heymanns.<br />

BadenBaden (2011).<br />

Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente<br />

Concilio.<br />

ATRIz: Priscila<br />

Marinho.<br />

FOTO: Lucas<br />

Heymanns.<br />

BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente Concilio. ATRIzES: Mirella Granucci, Vanessa Civiero,<br />

Marina Sell e Julia Oliveira. FOTO: Lucas Heymanns.<br />

BadenBaden (2011). Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC. DIREçãO:<br />

Vicente Concilio. ATRIz: Emanuele Mattiello. FOTO:<br />

Guilherme Santos.<br />

BADENBADEN 203


<strong>Urdimento</strong><br />

204<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

Sinopse<br />

BadenBaden (2011).<br />

Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO:<br />

Vicente Concilio.<br />

ATRIzES: Luísa<br />

Bresolin.<br />

FOTO:<br />

Lucas Heymanns<br />

BADENBADEN 205


<strong>Urdimento</strong><br />

206<br />

BadenBaden (2011).<br />

Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO: Vicente<br />

Concilio.<br />

ATRIzES:<br />

Mirella Granucci,<br />

Vanessa Civiero e<br />

Marina Sell.<br />

FOTO:<br />

Guilherme Santos.<br />

N° 18 | Março de 2012<br />

Sinopse


ODISSEIA


odISSEIA<br />

SInOPSE:<br />

Odisseia foi o resultado das disciplinas de<br />

Montagem Teatral I e II, da turma ‘X’ de 2011, do Curso<br />

de Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina/<br />

UDESC. na proposta de montagem, a linguagem<br />

do Teatro de Sombras foi utilizada para contar<br />

uma parte do poema épico grego homônimo,<br />

concentrando a narrativa na visualidade e nos recursos<br />

de transformação do espaço da tela.<br />

Odisseia, atribuído a homero, é, em parte, uma<br />

sequência da Ilíada, outra obra creditada ao autor, e é<br />

um poema fundamental ao cânone ocidental moderno. O<br />

poema é um poema de regresso. Tem como protagonista<br />

um herói da Guerra de Troia, Odisseu (ou Ulisses,<br />

como era conhecido na mitologia romana). Odisseu leva<br />

dez anos para chegar à sua terra natal, Ítaca, depois da<br />

Guerra de Troia, que também havia durado dez anos.<br />

nesse ínterim, participa de fantásticas aventuras com<br />

seres mitológicos e deuses.<br />

Odisseia (2011) Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC. DIREçãO:<br />

Paulo Balardim. Experimento com sombras. FOTO:<br />

Nina Medeiros.<br />

N° 18 | Março Setembro de 2012 de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong> <strong>Urdimento</strong><br />

Odisseia (2011)<br />

Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO:<br />

Paulo Balardim.<br />

Odisseu<br />

e seus<br />

companheiros.<br />

FOTO:<br />

Nina Medeiros.<br />

Odisseia (2011)<br />

Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO:<br />

Paulo Balardim. Os<br />

companheiros de<br />

Odisseu.<br />

FOTO:<br />

Nina Medeiros.<br />

CAMINHOS DA DRAMATURGIA BRASILEIRA CONTEMPORâNEA 209


Odisseia (2011)<br />

Espaço 2. <strong>CEART</strong>/<br />

UDESC.<br />

DIREçãO:<br />

Paulo Balardim.<br />

O barco de<br />

Odisseu.<br />

FOTO:<br />

Nina Medeiros.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

FICHA TÉCNICA:<br />

dIREção, dRAMATURGIA E CENoGRAFIA:<br />

Paulo Balardim<br />

ATRIZES:<br />

Elisângela Poletto, Fabiana Lazzari, Izabela Quint, Kátia de<br />

Arruda, Rafaela Ribeiro<br />

PRodUção E dIVULGAção:<br />

Fabiana Lazzari<br />

ASSESSoRIA EM TEATRo dE SoMBRAS:<br />

Alexandre Fávero<br />

PREPARAção VoCAL (ESTáGIo doCêNCIA):<br />

Bárbara Biscaro<br />

CENoTÉCNICA E CoNSTRUção dE SILHUETAS:<br />

Elisângela Poletto, Fabiana Lazzari, Gabriela Paz, Izabela Quint,<br />

Jaqueline Cisne, Luana Mara Pereira, Kátia de Arruda, Paulo<br />

Balardim, Rafaela Ribeiro<br />

CoSTURA dA TELA:<br />

Suzana Silveira e Camila Bressan Ruas<br />

FIGURINoS:<br />

O Grupo<br />

Tema musical “odISSEIA”:<br />

Fábio Saggin (Viola), Tacio Vieira (Cello)<br />

MoNTAGEM dA TRILHA SoNoRA:<br />

Bárbara Biscaro, Paulo Balardim<br />

ESTúdIo:<br />

Departamento de Música - <strong>CEART</strong>/UDESC<br />

TÉCNICo dE ESTúdIo:<br />

Nico Nicodemus<br />

oPERAção dE SoM E LUZ:<br />

Jonas Martins<br />

APoIo:<br />

Caixa do Elefante Teatro de Bonecos e Grupo de Pesquisa Teatro<br />

de Animação - <strong>CEART</strong>/UDESC<br />

FoToS:<br />

Nina Medeiros


<strong>Urdimento</strong><br />

212<br />

Odisseia (2011) Espaço 2. <strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO: Paulo Balardim. Odisseu e Calipso.<br />

FOTO: Nina Medeiros.<br />

N° 18 | Março de 2012 N° 18 | Março de 2012<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

213


214<br />

Odisseia (2011)<br />

Espaço 2.<br />

<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO:<br />

Paulo Balardim.<br />

O barco de<br />

Odisseu navega<br />

entre serias.<br />

FOTO: Nina<br />

Medeiros.<br />

Odisseia (2011)<br />

Espaço 2.<br />

<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

DIREçãO:<br />

Paulo Balardim.<br />

O ciclope<br />

Polifermo.<br />

FOTO:<br />

Nina Medeiros.<br />

Odisseia (2011)<br />

Espaço 2.<br />

<strong>CEART</strong>/UDESC.<br />

Direção: Paulo<br />

Balardim.<br />

Odisseu<br />

encontra Helio.<br />

foto:<br />

Nina Medeiros.<br />

<strong>Urdimento</strong><br />

215


COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO<br />

ESTADO DE SANTA CATARINA<br />

Secretaria de Estado da Administração<br />

Diretoria da Imprensa Oficial e Editora de Santa Catarina<br />

Rua Duque de Caxias, 261 – Saco dos Limões<br />

CEP 88045-250 – Florianópolis – SC<br />

Fone: (48) 3239-6000<br />

O.P. 3342 - PRO 00347

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