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A herança maldita de FHC – Sérgio Miranda - Cultura Brasileira

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A <strong>herança</strong> <strong>maldita</strong> <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> <strong>–</strong> <strong>Sérgio</strong> <strong>Miranda</strong><br />

O FMI foi co-gestor da economia do país no último mandato <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, que <strong>de</strong>ixou o país quebrado,<br />

a inflação alta e o futuro comprometido pela ruína da infra-estrutura, como estradas e energia<br />

elétrica.<br />

Não é o julgamento <strong>de</strong> um homem; é o <strong>de</strong> um caminho. O neoliberalismo, o<br />

pensamento político que serviu <strong>de</strong> inspiração a Fernando Henrique, é uma corrente<br />

po<strong>de</strong>rosa. Não surgiu no Brasil; não empolgou apenas <strong>FHC</strong> e os políticos e intelectuais<br />

que o acompanharam no governo. E nem será <strong>de</strong>rrotado apenas porque ele sai do<br />

Planalto. Po<strong>de</strong>-se dizer que o neoliberalismo tirou do fundo do baú, num contexto<br />

histórico preciso, a partir do final da segunda meta<strong>de</strong> dos anos 70, idéias velhas que<br />

pareciam ter sido <strong>de</strong>rrotadas pelos avanços socialistas. Essas idéias foram se<br />

aprimorando com o governo neofascista <strong>de</strong> Pinochet no Chile, com seus experimentos<br />

com os monetaristas <strong>de</strong> Milton Friedman, da “Escola <strong>de</strong> Chicago”; com o governo<br />

antitrabalhista e anti-sindical <strong>de</strong> Margareth Thatcher e seu plano <strong>de</strong> privatizações, na<br />

Inglaterra; e, finalmente, ganharam o mundo com os dois governos <strong>de</strong> Ronald Reagan<br />

(1981-1988) <strong>–</strong> o operador da recuperação política do império americano que, em<br />

meados dos anos 70, fora fragorosamente <strong>de</strong>rrotado pelos guerrilheiros no Vietnã.<br />

Fernando Henrique Cardoso é um neoliberal tardio; não foi o primeiro político<br />

brasileiro famoso a a<strong>de</strong>rir à onda neoliberal que varreu o mundo já <strong>de</strong> modo<br />

avassalador a partir da queda do Muro <strong>de</strong> Berlim, em 1989. No segundo turno da<br />

eleição presi<strong>de</strong>ncial daquele ano, <strong>FHC</strong> estava do lado oposto: juntou-se à campanha<br />

da esquerda para eleger Lula, contra Fernando Collor <strong>de</strong> Mello.<br />

Collor, sim, merece o título <strong>de</strong> o verda<strong>de</strong>iro precursor do neoliberalismo político no<br />

País. Foi ele que tornou popular a campanha pela redução do tamanho do Estado, com<br />

sua guerra <strong>de</strong> mídia contra os marajás do serviço público, já antes <strong>de</strong> ser eleito. Foi<br />

Collor que criou o Plano Nacional <strong>de</strong> Desestatização, nos seus primeiros meses <strong>de</strong><br />

governo. E foi ele também que, no começo <strong>de</strong> 1991, com a ajuda <strong>de</strong> Jorge Bornhausen<br />

e Antônio Carlos Magalhães, comandantes do PFL, reorganizou o comando do setor<br />

financeiro do Brasil, colocando três financistas essenciais nos postos-chave: Marcílio<br />

Marques Moreira como ministro da Economia; Francisco Gros, como presi<strong>de</strong>nte do


Banco Central; e Armínio Fraga, como diretor da Área Externa do BC. Marcílio e Gros<br />

já eram então homens ligados à gran<strong>de</strong> finança global. De lá vieram e para lá<br />

retornaram. Marcílio <strong>de</strong>ixou o governo Collor e foi para o banco <strong>de</strong> investimentos<br />

americano Merril Lynch. Gros <strong>de</strong>ixou o BC brasileiro e foi para o Morgan Stanley, outra<br />

casa financeira <strong>de</strong> Wall Street. E Armínio seguiu para Nova Iorque para ser o diretor<br />

para os países emergentes dos hedge-funds <strong>de</strong> George Soros, os agressivos fundos<br />

<strong>de</strong> investimento do mais conhecido megaespeculador global.<br />

É essa trinca que dá forma final aos mecanismos para integrar o Brasil na gran<strong>de</strong><br />

finança global. “Os investimentos são como o vento: não entram em casa on<strong>de</strong> não<br />

exista uma brecha para a saída”, dizia Marcílio. Para isso, o Ministério da Fazenda e o<br />

BC brasileiro mo<strong>de</strong>rnizaram o regulamento para as chamadas CC-5, contas <strong>de</strong> não<br />

resi<strong>de</strong>ntes, pessoas físicas e empresas instaladas no Brasil mas com controle do<br />

exterior, que passaram a ter direito <strong>de</strong> enviar dinheiro para fora sem aviso prévio às<br />

autorida<strong>de</strong>s monetárias. Para isso também foram criados os seis anexos do Banco<br />

Central que iriam facilitar a vinda para o Brasil dos capitais <strong>de</strong> estrangeiros e <strong>de</strong><br />

brasileiros legal ou ilegalmente instalados em paraísos fiscais ou escondidos por traz<br />

<strong>de</strong> fundos e trusts <strong>de</strong> investimento.<br />

A peça final para a atração <strong>de</strong>sses capitais foi a elevação espetacular dos juros<br />

promovida pela trinca Marcílio-Gros-Armínio, em outubro <strong>de</strong> 1991. Fernando Henrique,<br />

que passou a ser uma figura estratégica na política brasileira a partir <strong>de</strong> meados <strong>de</strong><br />

1993, quando assume o Ministério da Fazenda no governo <strong>de</strong> Itamar Franco, foi um<br />

continuador <strong>de</strong>ssa política e uma espécie <strong>de</strong> mentor político <strong>de</strong>sses financistas. Para<br />

enten<strong>de</strong>r melhor suas ações, é preciso ver o contexto mais específico em que as<br />

<strong>de</strong>sempenhou. Como diz Marx, os homens fazem a história, mas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> condições<br />

<strong>de</strong>terminadas. E essas eram as do <strong>de</strong>smoronamento final do império soviético, por um<br />

lado, e, por outro, da ampla recuperação do império e da economia americana.<br />

Fernando Henrique, no entanto, pega o bon<strong>de</strong> quando ele já está perto <strong>de</strong> sair dos<br />

trilhos, perto da fase na qual, como disse <strong>de</strong>pois Alan Greenspan, o presi<strong>de</strong>nte do<br />

Fe<strong>de</strong>ral Reserve, o banco central americano, os mercados seriam acometidos da<br />

“exuberância irracional” e da “ganância infecciosa”.<br />

Destruir a <strong>herança</strong><br />

Numa primeira fase, <strong>de</strong> meados <strong>de</strong> 1993 a meados <strong>de</strong> 1994, os financistas <strong>de</strong><br />

Fernando Henrique terminaram com as oscilações <strong>de</strong> política monetária que


persistiram no Brasil após a ditadura militar e armaram o Plano Real. No governo <strong>de</strong><br />

José Sarney (1985-1989) e mesmo nos dois primeiros anos <strong>de</strong> governo Collor (1990-<br />

1991) houve períodos <strong>de</strong> juros reais muito baixos e mesmo negativos. Como ministro<br />

da Economia <strong>de</strong> Itamar e tendo Pedro Malan como presi<strong>de</strong>nte do Banco Central, <strong>FHC</strong><br />

consolidou a política <strong>de</strong> juros altos do final do governo Collor para atrair dólares. As<br />

reservas em dólar do país cresceram espetacularmente. E sobre elas <strong>FHC</strong> construiu o<br />

Plano Real, lançado em julho <strong>de</strong> 1994, e que o elegeu presi<strong>de</strong>nte logo a seguir.<br />

Já presi<strong>de</strong>nte eleito, quando se <strong>de</strong>spediu do Senado com um discurso no dia 14 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1994, Fernando Henrique Cardoso disse com clareza que um dos<br />

objetivos centrais do seu governo era <strong>de</strong>struir a <strong>herança</strong> <strong>de</strong> Getúlio Vargas. “Resta um<br />

pedaço do nosso passado que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da<br />

socieda<strong>de</strong>. Refiro-me ao legado da era Vargas, ao seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

autárquico e ao seu Estado intervencionista”. <strong>FHC</strong> consi<strong>de</strong>rava o Estado brasileiro<br />

fechado para o exterior, in<strong>de</strong>vidamente envolvido na produção <strong>de</strong> bens e serviços e<br />

antiquado na sua concepção. No discurso, apontou os alvos para a sua operação <strong>de</strong><br />

reforma: era preciso abrir a economia aos capitais estrangeiros, principalmente no setor<br />

<strong>de</strong> energia elétrica, mineração, petróleo, telecomunicações, então dominados pelas<br />

empresas estatais. “No ciclo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que se inaugura, o eixo dinâmico da<br />

ativida<strong>de</strong> produtiva passa <strong>de</strong>cididamente do setor estatal para o setor privado (...) O<br />

processo <strong>de</strong> privatização <strong>de</strong>ve ser acelerado e estendido a outras ativida<strong>de</strong>s e<br />

empresas <strong>de</strong> energia, transporte, telecomunicações e mineração”, disse ele, aprovando<br />

o esforço <strong>de</strong> privatização iniciado com Collor, mas mantido em câmara lenta por Itamar<br />

Franco. Itamar <strong>–</strong> é verda<strong>de</strong>, permitiu a venda da Companhia Si<strong>de</strong>rúrgica Nacional,<br />

gran<strong>de</strong> símbolo da Era Vargas; mas se recusou, por exemplo, a abrir o setor elétrico e<br />

o <strong>de</strong> telecomunicações.<br />

Além disso, disse <strong>FHC</strong> no Senado, era preciso acabar com a distinção entre<br />

“empresa brasileira” e “empresa brasileira <strong>de</strong> capital nacional”. Com isso, apontava<br />

essencialmente para a revisão dos critérios <strong>de</strong> financiamento dos bancos públicos<br />

brasileiros, especialmente o Banco do Brasil e o Banco Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />

Econômico e Social (BNDES), voltados para o apoio das empresas nacionais. No caso<br />

do BNDES, especificamente, o banco era proibido <strong>de</strong> financiar empresas <strong>de</strong> capital<br />

estrangeiro.<br />

Com uma maioria <strong>de</strong> quase 400 parlamentares em pouco mais <strong>de</strong> 500, o governo<br />

passou como um rolo compressor n não só sobre aspectos essenciais da <strong>herança</strong> <strong>de</strong><br />

Vargas mas também sobre aspectos <strong>de</strong>sse legado que haviam sido reformulados e<br />

aprimorados pela Constituinte <strong>de</strong> 1988, que surgira da luta contra a ditadura militar.<br />

Em 1995, foi praticamente refeito o Título VII da Constituição, que trata “Da Or<strong>de</strong>m<br />

Econômica e Financeira”. A Emenda Constitucional nº 6, <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> agosto, revogou todo


o artigo 171, que estabelecia a distinção entre “empresa brasileira” e “empresa<br />

brasileira <strong>de</strong> capital nacional” e <strong>de</strong>finia diversas situações nas quais a lei po<strong>de</strong>ria<br />

estabelecer privilégios para as nacionais. A mesma Emenda alterou o artigo 176, que<br />

assegurava a pesquisa e a lavra <strong>de</strong> recursos minerais apenas “por brasileiros ou<br />

empresa brasileira <strong>de</strong> capital nacional”, trocando a expressão “empresa brasileira <strong>de</strong><br />

capital nacional” por “empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua se<strong>de</strong><br />

e administração no país”. A Emenda nº 7, promulgada também em 15 <strong>de</strong> agosto,<br />

eliminou ainda o privilégio que era dado às “embarcações nacionais” na navegação <strong>de</strong><br />

cabotagem, no interior do país.<br />

Em processo rapidíssimo, o Congresso Nacional também que alterou o inciso XI e<br />

a alínea "a" do inciso XII do art. 21 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, dando margem à<br />

privatização do Sistema Telebrás. Em 16 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1995, o presi<strong>de</strong>nte da<br />

República enviou ao Legislativo a Mensagem nº 191/95, com a Proposta <strong>de</strong> Emenda<br />

Constitucional nº 03-A/95. Dessa proposta resultou a Emenda Constitucional nº 8,<br />

promulgada também em 15 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1995, que permitiu à União explorar,<br />

diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços <strong>de</strong><br />

telecomunicações.<br />

Já perto do final do seu primeiro ano <strong>de</strong> mandato, em 9 <strong>de</strong> novembro, foi aprovada<br />

a Emenda número nº 9, que mudou os incisos <strong>de</strong> I a IV do artigo 177: o monopólio da<br />

pesquisa e lavra <strong>de</strong> petróleo e gás; o refino <strong>de</strong> petróleo nacional ou importado; a<br />

importação e a exportação; e o transporte marítimo e por meio <strong>de</strong> dutos do petróleo e<br />

gás. Foi acrescentado um parágrafo: “a União po<strong>de</strong>rá contratar com empresas estatais<br />

ou privadas a realização das ativida<strong>de</strong>s previstas nos incisos <strong>de</strong> I a IV <strong>de</strong>ste artigo”.<br />

Após esse conjunto <strong>de</strong> medidas, as privatizações foram <strong>de</strong>satadas em todos os<br />

setores. E o BNDES, além <strong>de</strong> dar suporte à venda do patrimônio público, passou, cada<br />

vez mais, a financiar o capital estrangeiro: em 1995 estiveram em 2,7% dos<br />

financiamentos do banco; em 96 foram 2,9%; em 97, 3,7%; em 98, 4,6%; em 99 já<br />

estavam mais <strong>de</strong> 10%; em 2000, 16,1%; e em 2001 chegaram a 20,9%.<br />

Des<strong>de</strong> os seus primeiros pronunciamentos, o presi<strong>de</strong>nte <strong>FHC</strong> investiu também<br />

contra outro aspecto da <strong>herança</strong> Vargas: a legislação trabalhista. Como a<br />

<strong>de</strong>snacionalização foi acompanhada também do crescimento do <strong>de</strong>semprego e da<br />

precarização das relações <strong>de</strong> trabalho, ele usou sua autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> presi<strong>de</strong>nte e<br />

sociólogo famoso para ven<strong>de</strong>r a tese <strong>de</strong> que esses males advinham, principalmente, <strong>de</strong><br />

posições atrasadas dos partidos <strong>de</strong> esquerda e do movimento sindical, que se<br />

opunham à chamada “flexibilização das leis trabalhistas”.<br />

De fato, a legislação trabalhista no Brasil se transformou num emaranhado ao longo<br />

das décadas. Hoje, são 197 leis, 71 portarias, 361 <strong>de</strong>cisões do Tribunal Superior do


Trabalho, 22 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho e 42 dispositivos da<br />

Constituição atual. Mas <strong>FHC</strong> não apresentou nenhum plano, nenhum estudo<br />

merecedor do nome que procurasse dar forma nova, organizar o conjunto <strong>de</strong>ssas leis e<br />

regulamentos. Em conseqüência, as mudanças que fez, ajudaram a reduzir o custo da<br />

mão-<strong>de</strong>-obra e ampliaram o <strong>de</strong>semprego e a precarização do trabalho (texto nas<br />

páginas <strong>de</strong> 40 a 43).<br />

A teoria e a prática<br />

A nova moeda promoveu uma queda abrupta da inflação e uma euforia nos<br />

mercados. E foi um sinal ver<strong>de</strong> para o endividamento externo. Quem trouxesse dólares<br />

para o país tinha a garantia do governo <strong>de</strong> que, por um ano, po<strong>de</strong>ria retirá-lo a hora<br />

que quisesse, comprando, no Banco Central, dólares a um real, pois o banco tinha<br />

acumulado uma montanha <strong>de</strong> moeda americana como lastro.<br />

Por mais que os nacionalistas e a oposição <strong>de</strong> esquerda protestassem, o<br />

<strong>de</strong>smanche do Estado promovido por Fernando Henrique tinha uma lógica aparente.<br />

Em tese, o governo estava ven<strong>de</strong>ndo as estatais para tirar o Estado <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s nas<br />

quais seria ineficiente e concentrá-lo nas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fiscalização e <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong><br />

serviços públicos essenciais, como educação, saú<strong>de</strong>, cultura.<br />

A terrível política <strong>de</strong> juros reais gigantes, por sua vez, <strong>de</strong>stinava-se a consolidar a<br />

estabilida<strong>de</strong> monetária e atrair capitais, que promoveriam a mo<strong>de</strong>rnização industrial e<br />

elevariam a competitivida<strong>de</strong> do país, com o que seriam pagos os juros <strong>de</strong>vidos no<br />

período <strong>de</strong> estabilização. Esses capitais <strong>de</strong>veriam ser pagos, é claro, com remessas <strong>de</strong><br />

juros, lucros ou amortizações. Mas a dívida externa, em princípio, não <strong>de</strong>veria ser um<br />

problema: o país havia renegociado, no início <strong>de</strong> 1993, a dívida velha, contraída no<br />

tempo dos militares. O trabalho fora iniciado e concluído pelo ministro Pedro Malan,<br />

indicado para a função por Marcílio Marques Moreira, ainda no governo Collor.<br />

Além disso, como repetia sistematicamente Gustavo Franco, diretor do Banco<br />

Central e uma das maiores estrelas do corpo <strong>de</strong> financistas <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, o mundo teria<br />

entrado numa nova conjuntura, <strong>de</strong> abundância <strong>de</strong> capitais. Não havia no horizonte<br />

qualquer ameaça <strong>de</strong> uma contração na economia global, como a <strong>de</strong> 1930; os ciclos<br />

econômicos eram passado na história do capitalismo <strong>–</strong> “1929, nunca mais”, dizia<br />

Franco.


Na prática, o plano só <strong>de</strong>u certo em parte. Em 6 anos da política <strong>de</strong> atração <strong>de</strong><br />

capitais, <strong>de</strong> 1992 a 1998, as empresas privadas instaladas no país <strong>–</strong> <strong>de</strong> capital nacional<br />

e estrangeiras <strong>–</strong> tomaram no exterior cerca <strong>de</strong> 120 bilhões <strong>de</strong> dólares. Com o crédito<br />

interno caríssimo, capitalistas e empresas que tinham crédito ou dinheiro lá fora<br />

trouxeram esses capitais para o Brasil, por meio <strong>de</strong> diversos tipos <strong>de</strong> empréstimos e<br />

das contas especiais permitidas pelo Banco Central. Isso fez a fortuna <strong>de</strong> alguns e<br />

<strong>de</strong>spertou muitas ilusões <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização.<br />

No conjunto, para o país, no entanto, o resultado foi diferente. Aqui vale uma<br />

comparação. Tome-se a China, por exemplo. Brasil e China fizeram políticas visando<br />

atrair capitais estrangeiros. Aparentemente elas foram iguais. Na prática, foram<br />

radicalmente diferentes. A China, como diz o Prêmio Nobel <strong>de</strong> Economia e ex-diretor<br />

do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, foi um dos poucos países que resistiu à <strong>de</strong>vastação<br />

provocada por sucessivas crises financeiras no mercado mundial a partir <strong>de</strong> 1995.<br />

Continua crescendo a mais <strong>de</strong> 7% anuais há 20 anos. E continua atraindo capitais <strong>de</strong><br />

fora, ao contrário do Brasil, que está sem crédito, crescendo a taxas baixíssimas e há<br />

quatro anos está pendurado no FMI. A razão para isso, diz Stiglitz, é o fato <strong>de</strong> a China<br />

ter adotado uma política <strong>de</strong> abertura financeira completamente oposta à do Brasil.<br />

Enquanto o Brasil abriu completamente as suas duas contas do balanço <strong>de</strong><br />

pagamentos <strong>–</strong> a <strong>de</strong> transações correntes e a <strong>de</strong> capitais <strong>–</strong>, a China abriu apenas uma,<br />

<strong>de</strong>ixou sob controle a conta <strong>de</strong> capitais. É uma diferença muito gran<strong>de</strong>.<br />

O óbvio: como pagar?<br />

As transações correntes <strong>de</strong> um país com o exterior incluem suas importações e<br />

exportações; os fretes que paga por mercadorias transportadas em navios <strong>de</strong> outras<br />

ban<strong>de</strong>iras e os que recebe quando o transportador é nacional; as diferenças entre os<br />

juros, os lucros, os royalties, as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> assistência técnica que paga e as que<br />

recebe; e também o saldo entre as remessas dos migrantes seus que enviam dinheiro<br />

para o país e dos imigrantes que o país tem e enviam dinheiro para o exterior.<br />

A outra conta é a dos capitais propriamente ditos e é a mais crítica: nela são<br />

contabilizados os empréstimos e os investimentos. Os capitais estrangeiros vão para<br />

um país para obter lucros, no caso dos investimentos, ou juros, no caso dos<br />

empréstimos. Os chineses viram o que é óbvio: se recebem investimentos ou<br />

empréstimos, têm <strong>de</strong> saber como pagá-los.


Para eles, por exemplo, seria absurdo permitir que se instalasse no país uma<br />

indústria <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> aparelhos <strong>de</strong> telefonia celular que importasse mais <strong>de</strong> 90%<br />

dos componentes <strong>de</strong>sses aparelhos, como a brasileira. Como iriam pagar essas<br />

importações? No caso do Brasil, com uma política <strong>de</strong> abertura sem esses princípios, a<br />

diferença entre importações e exportações <strong>de</strong> componentes eletro-eletrônicos criou um<br />

buraco crescente no balanço <strong>de</strong> pagamentos do país, que atingiu cerca <strong>de</strong> 8 bilhões <strong>de</strong><br />

dólares em 2001.<br />

Para os chineses, também, seria absurdo ven<strong>de</strong>r ao capital estrangeiro empresas<br />

do setor <strong>de</strong> serviços, como as elétricas e as <strong>de</strong> telecomunicações, que não exportam<br />

nada. De que forma o país iria obter os dólares <strong>de</strong> que elas necessitariam para remeter<br />

os seus lucros ao exterior?<br />

Os chineses <strong>de</strong>cidiram tornar sua moeda amplamente conversível por etapas, a<br />

partir <strong>de</strong> 1978. Só em 1996 completaram a abertura da conta <strong>de</strong> transações correntes,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitas experiências. E <strong>de</strong>ixaram fechada a conta <strong>de</strong> capitais: quem quiser<br />

investir, comprar empresas ou emprestar às empresas na China, não po<strong>de</strong> agir no<br />

mercado; tem <strong>de</strong> passar pelo governo, cuja preocupação central é saber como os<br />

dólares que entrarem serão pagos.<br />

Como se po<strong>de</strong> ver hoje, a abertura do Plano Real não foi como a dos chineses.<br />

Gustavo Franco, diretor da área externa do Banco Central no lançamento do Plano<br />

Real, or<strong>de</strong>nou aos operadores do banco, no primeiro dia <strong>de</strong> vigência da nova moeda,<br />

que passassem a trocar livremente dólares por reais na conta financeira, <strong>de</strong> capitais.<br />

De início, pareceu um milagre. Atraídos por juros monumentais, os dólares<br />

<strong>de</strong>saguaram no Brasil. O real, que vinha sendo <strong>de</strong>svalorizado todos os dias, há mais <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>z anos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o país quebrara sob os militares, <strong>de</strong> repente, tornou-se uma<br />

moeda forte. Chegou a valer 1,25 dólares por alguns meses, entre o final <strong>de</strong> 94 e o<br />

início <strong>de</strong> 95. E ficou valendo mais que um dólar até o começo <strong>de</strong> 1996, graças a<br />

<strong>de</strong>terminação do Banco Central <strong>de</strong> sustentar a sua cotação com juros estratosféricos.<br />

Isso, no entanto, provocou uma <strong>de</strong>vastação na economia do país. Com o dólar<br />

barato, as importações dispararam, foram <strong>de</strong> 33 bilhões <strong>de</strong> dólares, em 1994, para 50<br />

bilhões <strong>de</strong> dólares, em 1995, e o saldo <strong>de</strong> comércio exterior, que girava em torno dos<br />

10 bilhões <strong>de</strong> dólares anuais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1984 e era gasto pagando a velha dívida externa<br />

estatal, <strong>de</strong>sapareceu. Os outros gastos da chamada conta <strong>de</strong> transações correntes <strong>–</strong><br />

as <strong>de</strong>spesas dos turistas no exterior, a contratação <strong>de</strong> fretes marítimos estrangeiros, as<br />

remessas <strong>de</strong> lucros, juros, royalties e divi<strong>de</strong>ndos <strong>–</strong>, foram todos, em pouco tempo, para<br />

a casa <strong>de</strong> alguns bilhões <strong>de</strong> dólares anuais.


Para cobrir esse rombo, o capital estrangeiro era atraído com juros altos,<br />

indiscriminadamente, sem se saber como pagá-los. A entrada <strong>de</strong>ssa massa <strong>de</strong> dólares<br />

e a política <strong>de</strong> juros altos tiveram um efeito arrasador sobre a dívida interna pública.<br />

Boa parte dos dólares foi comprada pelo governo: as reservas internacionais do<br />

país, que estavam em 9 bilhões <strong>de</strong> dólares, em 1991, abaixo do mínimo exigido pela<br />

Constituição <strong>–</strong> o equivalente a três meses <strong>de</strong> importações <strong>–</strong> foram para 60 bilhões <strong>de</strong><br />

dólares, em 1996. O governo comprou esses dólares emitindo dívida pública. Até<br />

mesmo os dólares vindos para a compra <strong>de</strong> empresas privadas nacionais por<br />

empresas brasileiras ou estrangeiras instaladas no país, ficavam parados por bom<br />

tempo nos seus caixas para serem aplicados nos títulos públicos e aproveitar o maná<br />

<strong>de</strong> juros oferecido pelo BC. De qualquer modo, entravam nas contas dos então exempresários<br />

nacionais que, em muitos casos, passaram a viver <strong>de</strong> rendas em títulos<br />

públicos e da especulação financeira.<br />

E, pior que tudo, o cenário internacional róseo pintado por Gustavo Franco não<br />

prevaleceu. A partir <strong>de</strong> 1995, a expansão do capitalismo global começou a se dar aos<br />

solavancos. Para o Brasil, a entrada <strong>de</strong> dinheiro pela conta <strong>de</strong> capitais, que significava<br />

gran<strong>de</strong>s compromissos para o futuro, mas, a curto prazo, fechava o balanço <strong>de</strong><br />

pagamentos, começou a minguar.<br />

O primeiro gran<strong>de</strong> golpe nas teorias dos financistas do Plano Real foi a quebra do<br />

México, que ocorreu antes mesmo <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> tomar posse, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1994. Os<br />

reflexos <strong>de</strong>ssa crise no Brasil foram quase imediatos. Em março, o movimento líquido<br />

<strong>de</strong> capitais em direção ao Brasil, que vinha sendo sempre positivo, sempre maior que 1<br />

bilhão <strong>de</strong> dólares por mês, tornou-se negativo, em 2 bilhões <strong>de</strong> dólares. O Banco<br />

Central fez o que faz sempre: elevou <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scomunal os juros, para uma taxa<br />

anual perto <strong>de</strong> 60% reais <strong>–</strong> ou seja, <strong>de</strong>scontada a inflação. Essa taxa se manteve por<br />

muitos dias. Depois, caiu. Mas não muito: permanecendo acima <strong>de</strong> 40% <strong>de</strong> juros reais<br />

ao ano. Manteve-se nesse patamar até meados do ano. E o dinheiro <strong>de</strong> fora começou<br />

a voltar. As reservas internacionais do país, que tinham caído quase <strong>de</strong>z bilhões <strong>de</strong><br />

dólares entre <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 94 e abril <strong>de</strong> 95, voltaram a subir, para mais <strong>de</strong> 40 bilhões<br />

<strong>de</strong> dólares, em julho. A crise, <strong>de</strong> qualquer modo, provocou <strong>de</strong>sentendimentos <strong>de</strong>ntro da<br />

equipe econômica, que levariam à saída <strong>de</strong> Pérsio Arida da presidência do Banco<br />

Central, em junho. Em outubro, após um interregno em que o presi<strong>de</strong>nte do banco foi<br />

Gustavo Loyola, ascen<strong>de</strong>u Gustavo Franco, o financista mais radical.<br />

Entre julho <strong>de</strong> 95 e <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1996, as coisas pareciam ter-se ajeitado e o plano<br />

dos financistas finalmente dado certo. O governo montou um gran<strong>de</strong> esquema <strong>de</strong><br />

incentivos para as montadoras <strong>de</strong> automóveis internacionais e também para seus<br />

fornecedores externos. Inúmeras indústrias <strong>de</strong> autopeças nacionais foram compradas<br />

pelos estrangeiros que vieram para o país. O governo facilitou também a captação <strong>de</strong>


dinheiro externo pelos bancos das montadoras ou aqueles ligados a elas. Foram<br />

tomados uns bilhões <strong>de</strong> dólares <strong>de</strong> empréstimos no exterior para financiar alguns<br />

investimentos e a compra <strong>de</strong> carros fabricados no país ou importados.<br />

Isso provocou uma espécie <strong>de</strong> novo milagre brasileiro. O anterior, ocorrido entre<br />

1968 e 1973, sob o governo dos militares, teve como uma <strong>de</strong> suas características<br />

essenciais o crescimento da produção e do consumo <strong>de</strong> automóveis. Sob os militares,<br />

o Brasil, que fabricava menos <strong>de</strong> 100 mil automóveis por ano, passou a produzir mais<br />

<strong>de</strong> 1 milhão. Com Fernando Henrique, também em pouco tempo a produção <strong>de</strong> carros<br />

duplicou. E passou a haver muito mais opções <strong>–</strong> não só praticamente todas as gran<strong>de</strong>s<br />

montadoras internacionais passaram a receber terrenos e benefícios para se instalar<br />

no país como a importação <strong>de</strong> carros novos se ampliou.<br />

A estabilida<strong>de</strong> interna da moeda brasileira provocou um outro efeito <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

repercussão popular: o restabelecimento do crédito que tinha <strong>de</strong>saparecido quase que<br />

totalmente com a inflação galopante.<br />

Esses milagres mantiveram alto o prestígio <strong>de</strong> Fernando Henrique perante a<br />

opinião pública até sua reeleição em 1998. Ele tinha se elegido em 1994 <strong>de</strong>rrotando<br />

Lula já no primeiro turno, com 54% dos votos. E se reelegeu, em 1998, da mesma<br />

forma, com 53% dos votos, na primeira votação.<br />

A reeleição foi uma violação das regras republicanas do país. Há suspeitas graves<br />

<strong>de</strong> que <strong>de</strong>putados ven<strong>de</strong>ram seus votos (artigo nas páginas <strong>de</strong> 22 a 25). Mas nada<br />

disso parecia ter muita importância naquela conjuntura.<br />

A burguesia traída<br />

Já no final <strong>de</strong> 1996, no entanto, o milagre <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> começava a falhar. Em<br />

<strong>de</strong>zembro daquele ano, as reservas brasileiras começaram a cair novamente. Em<br />

janeiro <strong>de</strong> 1997, houve nova crise no mercado <strong>de</strong> capitais global, a chamada Crise da<br />

Ásia. E o movimento líquido <strong>de</strong> capitais para o Brasil voltou a ficar negativo: menos 350<br />

milhões <strong>de</strong> dólares. O Banco Central tornou a receitar a medicina <strong>de</strong> sempre: mais<br />

juros. E o governo passou a incentivar ainda mais a tomada <strong>de</strong> dinheiro no exterior. A<br />

análise da privatização da Vale do Rio Doce, ocorrida em maio <strong>de</strong> 1997, ajuda a<br />

compreen<strong>de</strong>r essa conjuntura.


O governo <strong>de</strong>cidiu ven<strong>de</strong>r o controle da Vale por 3,2 bilhões <strong>de</strong> dólares. Dois<br />

grupos foram incentivados a fazer o negócio, o <strong>de</strong> Antônio Ermírio <strong>de</strong> Morais, dono da<br />

Votorantim, e o <strong>de</strong> Benjamin Steinbruch, que já havia comprado a Companhia<br />

Si<strong>de</strong>rúrgica Nacional. No fundo, ganhava quem conseguisse trazer mais moeda<br />

estrangeira. Ganhou Steinbruch, que conseguiu trazer para o país 1,6 bilhão <strong>de</strong> dólares<br />

<strong>–</strong> 1,2 bilhão que tomou emprestado do Nations Bank (hoje Bank of America) e mais 400<br />

milhões <strong>de</strong> dólares que conseguiu <strong>de</strong> sócios para o negócio. Entre esses parceiros<br />

estavam George Soros <strong>–</strong> representado por Armínio Fraga, seu operador para os países<br />

emergentes <strong>–</strong>, o próprio Nations e duas gran<strong>de</strong>s casas financeiras <strong>de</strong> Wall Street,<br />

Goldman Sachs e a Lehman Brothers. Para assegurar que Steinbruch tivesse o<br />

controle da companhia, o governo fez com que o BNDES e a Previ, o fundo <strong>de</strong> pensão<br />

dos funcionários do Banco do Brasil, manobrado pelo Palácio do Planalto,<br />

mantivessem fora da Valepar, a companhia criada por Steinbruch para controlar a Vale,<br />

parte das ações ordinárias que tinham na empresa e que, juntas, dariam ao Estado<br />

mais <strong>de</strong> 50% do controle do capital da companhia. Até hoje esse esquema se mantêm:<br />

embora tenha maioria das ações ordinárias <strong>–</strong> <strong>de</strong> controle <strong>–</strong> da Vale, o governo<br />

transfere sua direção para a iniciativa privada.<br />

Outra história sintomática <strong>de</strong>sse período <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero por dólares é contada pelo<br />

ex-banqueiro José Eduardo Andra<strong>de</strong> Vieira, que se sente traído por Fernando Henrique<br />

no episódio da venda <strong>de</strong> seu banco, o Bamerindus, aos ingleses do Hong Kong and<br />

Shanghai Banking Corporation, em 1997. Andra<strong>de</strong> Vieira foi um dos primeiros a<br />

acreditar em <strong>FHC</strong>. No início da sua primeira campanha para presi<strong>de</strong>nte, o então<br />

senador estava lá embaixo nas pesquisas. Lula tinha gran<strong>de</strong> vantagem e <strong>FHC</strong> não<br />

encontrava doadores. Seu escritório político ficou ameaçado <strong>de</strong> fechamento, porque<br />

não tinha dinheiro sequer para pagar as secretárias. O banqueiro garantiu a<br />

sobrevivência da candidatura doando a <strong>FHC</strong> 800 mil reais.<br />

Em 1997, a crise financeira levou à liquidação e à venda <strong>de</strong> sete bancos brasileiros<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte <strong>–</strong> Bamerindus, Excel-Econômico, Banco Geral <strong>de</strong> Comércio, Noroeste,<br />

América do Sul e Real. Andra<strong>de</strong> Vieira, na época, procurou Fernando Henrique junto<br />

com um banqueiro brasileiro com o qual iria associar-se na perspectiva <strong>de</strong> salvar o<br />

Bamerindus. O presi<strong>de</strong>nte disse-lhe, no entanto, que nada po<strong>de</strong>ria fazer. De fato, <strong>FHC</strong><br />

não aceitou a proposta <strong>de</strong> salvar o Bamerindus com capital nacional porque a<br />

priorida<strong>de</strong> oficial era ven<strong>de</strong>r empresas estatais e empresas privadas nacionais ao<br />

capital estrangeiro, e não aos nacionais, para que entrassem dólares no país para<br />

cobrir os buracos do balanço <strong>de</strong> pagamentos.<br />

Essa política explica um dos mais curiosos traços do governo <strong>FHC</strong>: embora tenha<br />

sido eleito duas vezes como o homem da burguesia brasileira que iria salvar o país das<br />

ameaças representadas pelo candidato dos trabalhadores, Lula, <strong>de</strong> certo modo ele<br />

traiu a burguesia nacional.


Sabe-se que o Regime Militar <strong>–</strong> 1964-1984 <strong>–</strong> levou ao po<strong>de</strong>r grupos ligados ao<br />

capital estrangeiro que conspiravam contra o getulismo nacionalista <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 40.<br />

Esses grupos militares eram francamente favoráveis à elevação da participação do<br />

capital estrangeiro na economia do país. O primeiro surto <strong>de</strong> crescimento econômico<br />

sob os militares (1968-1974), aliás, <strong>de</strong>u-se em boa parte graças ao investimento direto<br />

estrangeiro. Os militares, além disso, embora <strong>de</strong> início tenham criado uma multidão <strong>de</strong><br />

estatais, após a quebra do país, em 1982, começaram a <strong>de</strong>smantelar o setor estatal e<br />

a promover um crescimento da participação estrangeira.<br />

A traição <strong>de</strong> <strong>FHC</strong><br />

A novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fernando Henrique, portanto, não é a continuação do<br />

<strong>de</strong>smantelamento do setor produtivo estatal e o favorecimento aos grupos estrangeiros.<br />

A verda<strong>de</strong>ira novida<strong>de</strong> dos anos <strong>FHC</strong> é o <strong>de</strong>smantelamento do setor privado da<br />

economia nacional, com a venda <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empresas <strong>de</strong> capitalistas nacionais ao<br />

capital estrangeiro. Dizia-se <strong>de</strong> Getúlio que ele tinha sido o pai dos pobres e a mãe dos<br />

ricos. Salvo algumas exceções, como Antônio Ermírio <strong>de</strong> Moraes que ficou com<br />

Fernando Henrique até o fim e foi um dos poucos e explícitos apoiadores <strong>de</strong> José Serra<br />

nas eleições passadas, a burguesia brasileira, com <strong>FHC</strong>, ficou sem pai e sem mãe.<br />

No final <strong>de</strong> 1997, o Brasil começou a quebrar. Em setembro daquele ano, o<br />

movimento <strong>de</strong> capitais para o Brasil refluiu em função da chamada Crise da Rússia:<br />

houve uma saída líquida do país <strong>de</strong> 4,5 bilhões <strong>de</strong> dólares. O governo apelou para o<br />

remédio <strong>de</strong> sempre: por alguns meses, puxou os juros para além <strong>de</strong> 30% reais ao ano.<br />

De novembro <strong>de</strong> 97 a abril <strong>de</strong> 1998, a receita funcionou. A entrada líquida <strong>de</strong> capitais<br />

foi <strong>de</strong> 2 bilhões <strong>de</strong> dólares, em novembro, para 12 bilhões em março e 10 bilhões <strong>de</strong><br />

dólares em abril. Em maio, no entanto, começou uma sangria <strong>de</strong>satada que iria levar<br />

para fora do Brasil, em setembro, um saldo líquido <strong>de</strong> 17 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />

Para injetar dólares na economia que se esvaía, o governo radicalizou na<br />

privatização. Mudou as regras que anunciara para a privatização da Telebrás. <strong>Sérgio</strong><br />

Motta, o ministro das Comunicações e braço direito <strong>de</strong> Fernando Henrique, falava em<br />

manter o controle nacional. Com a crise, a consigna mudou: ven<strong>de</strong>r tudo,<br />

preferencialmente para o capital estrangeiro. O discurso ressaltava que somente os<br />

estrangeiros po<strong>de</strong>riam mo<strong>de</strong>rnizar nossas telecomunicações. De fato, buscava-se<br />

<strong>de</strong>sesperadamente dólares para fechar o vazamento gigante do nosso balanço <strong>de</strong><br />

pagamentos.


Em agosto <strong>de</strong> 1998, Stanley Fischer, então diretor-gerente do FMI, visitou o<br />

presi<strong>de</strong>nte no Palácio do Planalto. Quem contou o episódio, recentemente, foi o próprio<br />

Fernando Henrique numa entrevista à imprensa. O presi<strong>de</strong>nte e o homem do FMI<br />

examinaram o quadro político. Haveria eleições em poucos meses. Fernando Henrique<br />

era candidato à reeleição contra Lula. Só que o país estava praticamente falido. A<br />

avaliação <strong>de</strong> Fischer, segundo <strong>FHC</strong>, é <strong>de</strong> que o país po<strong>de</strong>ria quebrar antes das<br />

eleições, em setembro.<br />

<strong>FHC</strong> não contou até hoje e dificilmente contará as negociações que fez para se<br />

reeleger nessa conjuntura. Há indicações claras, no entanto, <strong>de</strong> que nessa época se<br />

<strong>de</strong>senvolveu uma das histórias políticas mais vergonhosas <strong>de</strong> seus dois mandatos,<br />

envolvendo o seu alto comando financeiro. Eles começaram a negociar secretamente,<br />

com o Tesouro dos EUA e com o FMI, um acordo que foi barganhado por novas regras<br />

<strong>de</strong> funcionamento do governo brasileiro. Essencialmente, ficou acertado que sairia um<br />

gran<strong>de</strong> empréstimo logo após as eleições, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>FHC</strong>, antes do pleito, anunciasse<br />

formalmente as novas normas para o gasto do dinheiro público. Foi planejada, assim, a<br />

Lei <strong>de</strong> Responsabilida<strong>de</strong> Fiscal (LRF), que o presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>lineou em um discurso no<br />

Itamaraty, em 23 <strong>de</strong> setembro. A LRF estabelece, basicamente, que o orçamento<br />

público passa a ter uma priorida<strong>de</strong>: o superávit entre receitas e <strong>de</strong>spesas, <strong>de</strong>stinado ao<br />

pagamento dos credores.<br />

A essa altura, meados <strong>de</strong> 1998, grupos nacionais <strong>de</strong>scontentes com a política <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>pendência do capital externo estavam gravando secretamente as conversas do<br />

presi<strong>de</strong>nte do BNDES, André Lara Resen<strong>de</strong>. Essas gravações, ao que tudo indica,<br />

estão em <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> fitas. Muitas <strong>de</strong>las ainda não foram reveladas. As gravações<br />

foram feitas por participantes do leilão das empresas do Sistema Telebrás, que foi<br />

conduzido pelo BNDES. O conteúdo das gravações que foram divulgadas até agora<br />

mostra, nitidamente, que o ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça <strong>de</strong><br />

Barros, o presi<strong>de</strong>nte do BNDES, e mesmo o presi<strong>de</strong>nte da República, tinham<br />

preferência pela vitória dos grupos estrangeiros no leilão.<br />

Graças a essas revelações se soube, por exemplo, que Malan disse a Resen<strong>de</strong>,<br />

que redigiu o discurso <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> no Itamaraty, no dia 23 <strong>de</strong> setembro, que dirigentes do<br />

FMI e do Tesouro dos Estados Unidos queriam ver o discurso. Resen<strong>de</strong> diz na<br />

gravação que ia falar com Stanley Fischer, diretor-adjunto do FMI. E Malan lhe explica:<br />

“Eles estão, tanto o Fundo quanto o Tesouro, dizendo, pedindo, assim, quase que<br />

dizendo: 'Nos <strong>de</strong>ixem ler antes ...'. Porque a idéia é que eles saiam com expressão <strong>de</strong><br />

apoio. Eles querem ter acesso antes ... Para po<strong>de</strong>r expressar apoio”, diz Malan.<br />

No seu discurso, Fernando Henrique anuncia um ajuste rápido, para o país voltar a<br />

crescer aos níveis a<strong>de</strong>quados, o mais cedo possível. Quase dois meses <strong>de</strong>pois, no dia<br />

13 <strong>de</strong> novembro, Malan anunciou o acordo com o Fundo <strong>de</strong> 41,5 bilhões <strong>de</strong> dólares,


que previa que o país economizaria, para pagar juros e evitar que a dívida crescesse e<br />

se tornasse impagável, o equivalente a 2,6% do PIB em 1999, 2,8% em 2000, e 3,0%<br />

em 2001. Com isso, afirmavam, a dívida pública ficaria estabilizada em 44,5% do PIB.<br />

A <strong>de</strong>cadência<br />

Mas, apesar <strong>de</strong> ter passado a governar em parceria com o Fundo, o ajuste<br />

anunciado por <strong>FHC</strong> em 1998 não bastou. No início <strong>de</strong> 1999, o governo tentou organizar<br />

uma retirada or<strong>de</strong>nada da política cambial anterior, que consistia em manter o real<br />

valorizado. Trocou Gustavo Franco por Chico Lopes na presidência do Banco Central e<br />

anunciou uma política cambial <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalorização controlada da moeda brasileira. Os<br />

mercados atropelaram os planos do novo presi<strong>de</strong>nte do BC e o real foi <strong>de</strong>svalorizado<br />

abruptamente, à força, <strong>de</strong> 1,3 por dólar para mais <strong>de</strong> 2 reais por dólar. Chico Lopes<br />

caiu sem sequer ter sido sabatinado pelo Senado para se confirmar no cargo. Sabe-se<br />

hoje, também pela fitas gravadas com conversas do presi<strong>de</strong>nte do BNDES, André Lara<br />

Resen<strong>de</strong>, que Lopes não agradava ao FMI e aos americanos. Depois, ele seria<br />

envolvido em <strong>de</strong>núncias espetaculares <strong>de</strong> corrupção. Para o seu lugar veio Armínio<br />

Fraga, diretamente <strong>de</strong> Wall Street.<br />

As fitas do BNDES, com sinais visíveis das operações dos mais altos dirigentes do<br />

governo para favorecer grupos estrangeiros no leilão da Telebrás e da trama feita com<br />

o FMI para a reeleição <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, fortaleceram, na oposição, o plano <strong>de</strong> afastar o<br />

presi<strong>de</strong>nte por meio da mobilização popular, como se havia feito na campanha do “Fora<br />

Collor”, em 1992. Desenvolveu-se então a campanha do “Fora <strong>FHC</strong>”, que pedia o seu<br />

impeachment e acabou realizando, em agosto <strong>de</strong> 1999, uma Marcha a Brasília, com<br />

cerca <strong>de</strong> 100 mil pessoas.<br />

O governo, no entanto, resistiu. E a partir do final <strong>de</strong> 1999, o PT, reunido em<br />

Congresso, <strong>de</strong>cidiu afastar-se da li<strong>de</strong>rança da campanha do “Fora <strong>FHC</strong>”, que aos<br />

poucos se extinguiu.<br />

Houve uma relativa estabilida<strong>de</strong> monetária internacional entre o segundo trimestre<br />

<strong>de</strong> 1999 e o terceiro trimestre <strong>de</strong> 2000. Foram feitas algumas gran<strong>de</strong>s privatizações<br />

pelos governos estaduais: a do Banespa, o banco oficial do governo <strong>de</strong> São Paulo,<br />

vendido ao Santan<strong>de</strong>r; a do Banestado, do governo do Estado do Paraná, vendido ao<br />

Itaú; a da Eletropaulo, distribuidora <strong>de</strong> energia elétrica <strong>de</strong> São Paulo, vendida à<br />

americana AES.


A partir do final do ano 2000, no entanto, as crises na periferia do império<br />

americano, que vinham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1995 e que pareciam problemas internos das economias<br />

emergentes, se revelaram parte <strong>de</strong> algo maior, muito mais perturbador e perigoso: o<br />

fim <strong>de</strong> um ciclo <strong>de</strong> expansão do sistema capitalista, centrado na economia dos EUA. A<br />

economia americana, como toda economia capitalista, evolui por ciclos, com altos e<br />

baixos <strong>–</strong> períodos <strong>de</strong> expansão e <strong>de</strong> contração. Entre um ciclo e outro há recessões,<br />

períodos em que a produção anual cai em relação ao ano anterior. Isso é assim <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que o capitalismo surgiu. De 1920 para cá, por exemplo, a economia dos Estados<br />

Unidos teve 15 ciclos, mediados por recessões. O fato que entusiasmava os<br />

neoliberais mais radicais do governo <strong>de</strong> Fernando Henrique era, no entanto, ver que,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>de</strong> 1992, a economia americana vinha se expandindo sem parar. Entre o<br />

início <strong>de</strong> 1991, logo <strong>de</strong>pois da Guerra do Golfo, e o final <strong>de</strong> 1999, a Bolsa <strong>de</strong> Nova<br />

Iorque teve o seu período histórico <strong>de</strong> maior crescimento. O valor total dos papéis<br />

negociados elevou-se <strong>de</strong> forma inédita: foi <strong>de</strong> 3 trilhões <strong>de</strong> dólares para 15 trilhões <strong>de</strong><br />

dólares. Des<strong>de</strong> 1999, essa expansão estava paralisada e o índice da Bolsa parecia<br />

estagnado, em torno <strong>de</strong> 11.000 pontos. No último trimestre do ano 2000, esse índice<br />

<strong>de</strong>sabou. Na crise, começou a cair drasticamente o movimento <strong>de</strong> capitais para o<br />

Brasil. O dólar, que entre 1999 e 2000 esteve estacionado na casa <strong>de</strong> 2 reais, começou<br />

a subir.<br />

No plano político, os neoliberais terminaram 2000 <strong>de</strong>rrotados por um amplo<br />

crescimento do PT nas eleições municipais. Alguns analistas compararam esse feito<br />

com a vitória oposicionista no Senado em 1974, quando, logo após o “milagre<br />

econômico” dos anos 1968-73, começou a ser abalada a ditadura militar. Assim como<br />

em 1974 o povo escolheu o MDB, o partido do movimento <strong>de</strong>mocrático brasileiro, como<br />

canal para extravasar seu <strong>de</strong>scontentamento, em 2000, nas eleições municipais das<br />

gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> o pleito se dá em dois turnos, o povo escolheu o PT para<br />

<strong>de</strong>rrotar os candidatos da frente governista. O PT saiu das eleições municipais com as<br />

prefeituras <strong>de</strong> São Paulo, Porto Alegre, Recife, Goiânia e Belém, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />

outras, e em condições <strong>de</strong> ser a viga-mestra da articulação oposicionista para eleger<br />

um presi<strong>de</strong>nte da República em 2002.<br />

No começo <strong>de</strong> 2001, o governo sofreria outro golpe político institucional ao tentar<br />

rearticular-se para as eleições <strong>de</strong> 2002. Antônio Carlos Magalhães, talvez o mais<br />

<strong>de</strong>stacado lí<strong>de</strong>r do PFL, que ajudara Fernando Henrique <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua primeira eleição em<br />

1994 e se tornara uma espécie <strong>de</strong> co-piloto do governo, abandonou o barco,<br />

disparando contra o presi<strong>de</strong>nte e seus principais assessores. ACM era presi<strong>de</strong>nte do<br />

Senado e viu seu tapete puxado quando o PSDB formou uma aliança com o PMDB,<br />

visando às eleições <strong>de</strong> 2002. No período 2001-2002, um dos caciques peeme<strong>de</strong>bistas,<br />

Ja<strong>de</strong>r Barbalho, do Pará, assumiria a presidência do Senado e o peesse<strong>de</strong>bista Aécio<br />

Neves a presidência da Câmara, <strong>de</strong>ixando o PFL <strong>de</strong> fora do comando do Congresso.


ACM não caiu sozinho. Renunciou para não ser cassado <strong>–</strong> manobrou para conhecer a<br />

votação nominal <strong>de</strong> senadores na sessão secreta <strong>de</strong> cassação do senador Luiz<br />

Estevão <strong>–</strong>, mas disparou contra Ja<strong>de</strong>r uma bateria <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> corrupção que<br />

acabaram acuando o peeme<strong>de</strong>bista, que também se viu obrigado a renunciar para não<br />

ser cassado.<br />

No final <strong>de</strong> 2001, o campo governista era uma espécie <strong>de</strong> terra arrasada, dividido<br />

em facções, sem um candidato a presi<strong>de</strong>nte forte, capaz <strong>de</strong> reuni-las. Para agravar as<br />

coisas, a Argentina, on<strong>de</strong> as teses neoliberais tinham atingido o paroxismo com o<br />

estabelecimento na Constituição do país da parida<strong>de</strong> entre o dólar e o peso, começou<br />

a <strong>de</strong>smoronar.<br />

Para agravar a situação, num setor essencial, o <strong>de</strong> energia elétrica, as mudanças<br />

introduzidas com as privatizações produziram um <strong>de</strong>sastre nacional: o primeiro<br />

racionamento nacional da história mo<strong>de</strong>rna da energia elétrica no Brasil. A privatização<br />

do setor visava, na opinião <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>fensores, criar um ambiente <strong>de</strong> competição entre<br />

os preços <strong>de</strong> compra e venda <strong>de</strong> eletricida<strong>de</strong>, liberando-os e estabelecendo um<br />

mercado, em que a lei da oferta e da procura se encarregaria <strong>de</strong> fixar as tarifas a<br />

serem praticadas. Os investimentos para expandir o setor, diziam, viriam como<br />

conseqüência natural do novo mo<strong>de</strong>lo.<br />

Porém, o resultado foi exatamente o contrário: os investimentos externos não<br />

chegaram, a expansão do sistema não foi feita e o país teve <strong>de</strong> racionar energia a<br />

partir do segundo semestre <strong>de</strong> 2001. Com as sucessivas crises econômicas e sem<br />

apoio popular o mo<strong>de</strong>lo não po<strong>de</strong>ria sobreviver sem a co-gestão do FMI para dar<br />

credibilida<strong>de</strong> ao governo junto aos credores.<br />

Em 3 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2001, o Ministério da Fazenda anunciava novo acordo com o<br />

Fundo. O FMI subiu à cabine <strong>de</strong> comando da economia brasileira, on<strong>de</strong> ainda<br />

permanece. O compromisso, em troca <strong>de</strong> um empréstimo <strong>de</strong> 15 bilhões <strong>de</strong> dólares, era<br />

com superávits maiores: <strong>de</strong> 3,35% do PIB em 2001 e 3,5% em 2002. Em 2001, a dívida<br />

pública estava em 51% do PIB.<br />

Mesmo isso não bastou. Um terceiro acordo foi feito no dia 4 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2002,<br />

nas vésperas da eleição <strong>de</strong> Lula: um empréstimo <strong>de</strong> 30 bilhões <strong>de</strong> dólares, com o<br />

compromisso <strong>de</strong> um superávit primário <strong>de</strong> 3,88% do PIB em 2002 e <strong>de</strong> 3,75% do PIB<br />

em 2003, 2004 e 2005.


Uma guerra social que mata a juventu<strong>de</strong> pobre do<br />

país<br />

O crescimento da violência é um forte indício da <strong>de</strong>gradação social. O preço mais caro<br />

pela <strong>de</strong>sestruturação social tem sido pago pela juventu<strong>de</strong> pobre das periferias dos gran<strong>de</strong>s<br />

centros urbanos.<br />

Antônio Nascimento trabalha há 10 meses como porteiro no posto <strong>de</strong> uma central<br />

sindical no bairro operário <strong>de</strong> Santo Amaro, zona sul da capital paulista. Há 8 anos não<br />

consegue trabalho para exercer seu ofício <strong>de</strong> fresador, função especializada na<br />

metalurgia que lhe ren<strong>de</strong>u empregos na Bosh, na empresa <strong>de</strong> autopeças UPT, na<br />

fábrica <strong>de</strong> bicicletas Caloi e na fábrica <strong>de</strong> armas Taurus. Na última década, a Taurus<br />

<strong>de</strong>ixou a zona sul <strong>de</strong> São Paulo, a UPT faliu, as outras empresas <strong>de</strong>mitiram. “Isso tudo<br />

graças ao sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que fechou o país”, diz Antônio. “E<br />

você viu ele lá fora outro dia, recebendo o 'prêmio nobel da paz'? Que vergonha! Com<br />

aquela comitiva <strong>de</strong>le! Com a família! Até a com Regina Duarte! Representar o país lá<br />

fora, ganhar prêmio? E a gente aqui?”<br />

O prêmio a que Antônio se refere não é o Nobel da Paz, mas o Mahbub ul Haq,<br />

recém-instituído pelas Nações Unidas para con<strong>de</strong>corar personalida<strong>de</strong>s públicas que<br />

promovam a questão social na agenda política dos países. A premiação <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, em 9<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002, em Nova York, seria merecida pelos supostos méritos dos<br />

programas sociais <strong>de</strong> seu governo.<br />

Antônio po<strong>de</strong> até se embaralhar sobre as con<strong>de</strong>corações recebidas pelo expresi<strong>de</strong>nte,<br />

mas ele sente o pulso da situação social do país. Recebe diariamente uma<br />

legião <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados na porta da central sindical, todos ansiosos por se<br />

cadastrarem nas listas da agência <strong>de</strong> emprego da entida<strong>de</strong>. Todos os dias aparecem<br />

mais <strong>de</strong> mil pessoas, mas Antônio tem apenas 600 senhas para distribuir a partir das 5<br />

horas da manhã, quando já tem gente dormindo na fila.<br />

Mahbub ul Haq, o título do prêmio dado a <strong>FHC</strong>, é o nome do economista<br />

paquistanês que criou o Índice <strong>de</strong> Desenvolvimento Humano (IDH) empregado pela<br />

ONU para medir a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no mundo e que é calculado a partir <strong>de</strong> um<br />

cruzamento <strong>de</strong> dados <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (a esperança <strong>de</strong> vida ao nascer), <strong>de</strong> educação (uma<br />

combinação <strong>de</strong> taxas <strong>de</strong> matrícula e <strong>de</strong> alfabetização) e da renda per capita <strong>de</strong> um<br />

país. Mais <strong>de</strong> uma vez durante os seus mandatos, <strong>FHC</strong> argumentou que todo o esforço<br />

<strong>de</strong> privatização e busca da estabilida<strong>de</strong> tinha por objetivo liberar a máquina estatal para<br />

tratar melhor das questões sociais. A questão central, porém, é: melhorou, <strong>de</strong> fato, a


situação social do país? Pela medição do IDH a resposta é, sim. De fato, o IDH<br />

brasileiro passou <strong>de</strong> 0,737 em 1995, para 0,757, no ano 2000. Mas essa melhoria, <strong>de</strong><br />

0,2, não é diferente, aliás é ligeiramente inferior, da que houve <strong>de</strong> 1985 para 1990,<br />

quando o índice foi <strong>de</strong> 0,692 para 0,713 <strong>–</strong> melhoria <strong>de</strong> 0,21 <strong>–</strong> e da que houve <strong>de</strong> 1990<br />

para 1995, quando o índice passou <strong>de</strong> 0,713 para 0,737 <strong>–</strong> melhoria <strong>de</strong> 0,24. Ou seja:<br />

na área social <strong>FHC</strong> nada fez <strong>de</strong> diferente <strong>de</strong> José Sarney ou <strong>de</strong> Fernando Collor e<br />

Itamar Franco.<br />

A fórmula para o cálculo do IDH foi revista em 1999 para dar menos peso à renda<br />

per capita. A renda per capita, como se sabe, mascara as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais pois<br />

divi<strong>de</strong> as riquezas produzidas no país pelo número <strong>de</strong> habitantes, como se todos as<br />

pessoas da nação ganhassem exatamente o mesmo quinhão ao final <strong>de</strong> um ano. A<br />

mudança no cálculo fez com que países mais pobres, mas com maiores cuidados com<br />

educação e saú<strong>de</strong>, como Cuba, evoluíssem para posições melhores no ranking do IDH.<br />

Do posto 85, o país <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro foi alçado para o posto 58. Já o Brasil passou do<br />

posto 62 numa fila <strong>de</strong> 173 países, para o posto 79, 17 lugares para trás. É claro que o<br />

fato <strong>de</strong> ter havido uma mudança nos critérios <strong>de</strong> classificação não significa que o país<br />

piorou. Mesmo assim, o rearranjo metodológico foi alvo <strong>de</strong> críticas oficiais do governo<br />

brasileiro. O presi<strong>de</strong>nte do Instituto <strong>de</strong> Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na época,<br />

Roberto Martins, reagiu com grosseria: “Esse informe é in<strong>de</strong>fensável do ponto <strong>de</strong> vista<br />

lógico. Há algo muito errado nele, pois não se enten<strong>de</strong> como países miseráveis como a<br />

Índia, o Paquistão e o Lesoto tenham evoluído para o grupo médio enquanto o Brasil foi<br />

rebaixado. Não é sem razão que o inspirador <strong>de</strong>ssas mudanças, o dr. Sen [Amartya<br />

Sen, prêmio Nobel <strong>de</strong> Economia] seja um indiano”. O fato é que, com fórmula velha ou<br />

fórmula nova, o IDH brasileiro continuou vários pontos abaixo do da Argentina <strong>–</strong> que<br />

está na 39ª posição, com IDH 0,827 <strong>–</strong> e mesmo da média da América Latina e do<br />

Caribe, que foi <strong>de</strong> 0,767 no ano 2000.<br />

Provavelmente os cinco jurados escolhidos pela ONU para selecionar o lí<strong>de</strong>r<br />

mundial ou chefe <strong>de</strong> nação que receberia o Mahbub ul Haq consi<strong>de</strong>raram louváveis a<br />

chamada re<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção social que <strong>FHC</strong> freqüentemente <strong>de</strong>staca em seus<br />

pronunciamentos. Fernando Henrique refere-se a um conjunto <strong>de</strong> 11 programas sociais<br />

que teriam sido <strong>de</strong>senvolvidos nos seus oito anos <strong>de</strong> governo. Oito <strong>de</strong>les faziam parte<br />

da Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Proteção Social. O Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Programa <strong>de</strong><br />

Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), Agente Jovem e Auxílio-Gás são programas <strong>de</strong><br />

transferência direta <strong>de</strong> renda por meio do chamado Cartão do Cidadão, que permite às<br />

famílias cadastradas sacarem o benefício diretamente nos bancos autorizados.


90% eram obrigação<br />

Os valores dos repasses para o Bolsa-Escola são <strong>de</strong> 15 reais mensais. Segundo<br />

relatório do governo, o programa atingiu 10,2 milhões <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> 6 a 15 anos, com<br />

freqüência escolar acima <strong>de</strong> 85%. O mesmo vai para os inscritos no Bolsa Alimentação<br />

<strong>–</strong> cedida a 1,6 milhão <strong>de</strong> gestantes, mães lactantes e crianças com risco nutricional <strong>de</strong><br />

até 6 anos e 11 meses. O Auxílio-Gás paga 15 reais a cada 2 meses para a família<br />

selecionada <strong>–</strong> a previsão era aten<strong>de</strong>r 9,3 milhões famílias em 2002. As crianças entre 7<br />

e 14 anos beneficiadas pelo Peti <strong>–</strong> 810 mil contabilizados <strong>–</strong> recebem mensalmente 25<br />

reais se <strong>de</strong>ixarem o trabalho no campo e 40 reais se pararem <strong>de</strong> trabalhar na cida<strong>de</strong>. O<br />

Programa Agente Jovem paga 65 reais por mês a jovens entre 15 e 17 anos (100 mil<br />

registrados) que prestam serviços à comunida<strong>de</strong>.<br />

Ainda na Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Proteção Social estão três programas, que pagam um salário<br />

mínimo mensal, com recursos da Segurida<strong>de</strong> Social. O Benefício <strong>de</strong> Prestação<br />

Continuada é <strong>de</strong>stinado a <strong>de</strong>ficientes físicos e idosos com mais <strong>de</strong> 67 anos que<br />

pertençam a famílias cuja renda per capita mensal seja menor do que ¼ do salário<br />

mínimo <strong>–</strong> 1,5 milhão beneficiados. A Renda Mensal Vitalícia é para idosos acima <strong>de</strong> 70<br />

anos e inválidos <strong>–</strong> 724 mil contemplados. E a Aposentadoria Rural <strong>de</strong>stina-se a<br />

trabalhadores e trabalhadoras rurais com mais <strong>de</strong> 60 e 55 anos, respectivamente <strong>–</strong> 6,4<br />

milhões atendidos. Os dois últimos são pagos pelo Instituto Nacional <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong><br />

Social (INSS).<br />

O governo consi<strong>de</strong>ra também benefício social programas para os <strong>de</strong>sempregados<br />

que <strong>de</strong>pendam dos recursos do Fundo <strong>de</strong> Amparo ao Trabalhador (FAT), que tem a<br />

maior parte <strong>de</strong> sua receita originada no recolhimento do PIS-PASEP. O Abono Salarial<br />

garante um salário mínimo anual a trabalhadores que têm média salarial anual <strong>de</strong> até 2<br />

salários mínimos <strong>–</strong> 5,2 milhões <strong>de</strong> beneficiados. O Bolsa-Qualificação é pago a<br />

trabalhadores que têm contrato <strong>de</strong> trabalho suspenso temporariamente <strong>–</strong> 10,4 mil<br />

beneficiados. E o Seguro-Desemprego é entregue àqueles que tenham trabalhado<br />

formalmente 6 meses seguidos <strong>–</strong> foram 4,4 milhões beneficiados. É bom lembrar que<br />

para gozar os benefícios dos três programas sociais o cidadão precisa ter tido emprego<br />

formal, com registro na carteira, condição <strong>de</strong> apenas 47% dos trabalhadores do país.<br />

Gran<strong>de</strong> foi a publicida<strong>de</strong> governamental sobre o crescimento dos recursos<br />

<strong>de</strong>stinados aos programas sociais. Entretanto, é preciso <strong>de</strong>stacar que 90,3% dos<br />

recursos <strong>de</strong>dicados ao “social” são vinculados a direitos assegurados pela Constituição<br />

<strong>de</strong> 1988, como a aposentadoria rural, por exemplo. Ao contrário do que afirma o<br />

governo passado, não resultam da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, que ainda os restringiu.


O crescimento <strong>de</strong> recursos foi <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 20% nos 8 anos do Plano Real. No<br />

mesmo período, a receita do governo fe<strong>de</strong>ral subiu 31% e a participação dos gastos<br />

sociais nas <strong>de</strong>spesas correntes caiu <strong>de</strong> 60% para 55%, <strong>de</strong> 1995 a 2001.<br />

Um estudo do Ipea, com base na Pesquisa Nacional <strong>de</strong> Amostra por Domicílios<br />

(Pnad) <strong>de</strong> 2001, aponta a existência <strong>de</strong> 24,73 milhões <strong>de</strong> brasileiros vivendo na<br />

miséria, ao final <strong>de</strong> 2001, com renda inferior a 55 reais por mês <strong>–</strong> menos <strong>de</strong> 2 reais por<br />

dia, quantia consi<strong>de</strong>rada insuficiente para suprir as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alimentação. A<br />

proporção <strong>de</strong> miseráveis teria subido <strong>de</strong> 14,51% em 2000 para 14,60% em 2001.<br />

Esses miseráveis fazem parte dos 54 milhões <strong>de</strong> pessoas consi<strong>de</strong>radas pobres,<br />

integrantes <strong>de</strong> famílias que têm renda mensal média per capita menor do que ½ salário<br />

mínimo. Isso correspon<strong>de</strong> a 32,1% da população. Esses números surgem <strong>de</strong> um<br />

relatório feito pelo IBGE para o Fundo das Nações Unidas para a População, também<br />

com dados da Pnad.<br />

Pela soma do número <strong>de</strong> beneficiados listados, tirando o Vale-Gás, que paga a<br />

média <strong>de</strong> 7,5 reais por mês às famílias e é bem recente, os programas alar<strong>de</strong>ados por<br />

<strong>FHC</strong> teriam atingido 30.954.400 <strong>de</strong> pessoas. O que se vê, portanto, é que, em oito<br />

anos <strong>de</strong> ação social con<strong>de</strong>corada, o governo fe<strong>de</strong>ral conseguiu aten<strong>de</strong>r, muitas vezes<br />

com a mo<strong>de</strong>sta quantia <strong>de</strong> 15 reais mensais, apenas 57,2% da população carente.<br />

Entre os indicadores sociais do governo Fernando Henrique <strong>de</strong>veria ser inserido o<br />

que mostra a situação do <strong>de</strong>semprego no país. De um total <strong>de</strong> 108 nações<br />

selecionadas, o Brasil foi da 10ª pior posição em 1985 para a sexta pior em 1995 e<br />

para a segunda, em 2000, com 11, 4 milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados. O <strong>de</strong>semprego na<br />

região metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte em 1996 (quando o Dieese começou a coletar<br />

dados sobre o assunto na cida<strong>de</strong>) era <strong>de</strong> 12,7% da PEA (População Economicamente<br />

Ativa). Em 2001, esse índice saltou para 18,3% <strong>–</strong> ver texto nas páginas <strong>de</strong> 40 a 43.<br />

Além da <strong>de</strong>struição do emprego no país, o trabalhador que ainda encontra ocupação<br />

sofre, agora, com o que tem sido consi<strong>de</strong>rado seu pior momento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a implantação<br />

do Plano Real. Segundo o Ipea, o rendimento médio do trabalhador brasileiro vai<br />

chegar ao fim <strong>de</strong> 2002 com perda estimada <strong>de</strong> 0,74% durante os oito anos do Real. Os<br />

ganhos obtidos nos anos 93 a 95, quando o país saiu da gran<strong>de</strong> recessão <strong>de</strong> 90 a 92,<br />

foram sendo progressivamente corroídos. No final <strong>de</strong> 1994, o salário médio do<br />

trabalhador no Brasil era <strong>de</strong> 664,93 reais e, no fim <strong>de</strong> 2002, terá chegado a 660 reais,<br />

em valores <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2000.<br />

Pela fila <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados atendidos por Antônio na porta da central sindical em<br />

Santo Amaro, São Paulo, um salário <strong>de</strong> 660 reais é um sonho. Os salários e vagas<br />

publicados nos classificados do jornal distribuído pelo sindicato não são nada<br />

animadores. A melhor renda oferecida era <strong>de</strong> 2 mil reais, para diplomados em medicina


que se candidatassem à vaga <strong>de</strong> médico do trabalho. Os outros salários eram <strong>de</strong> 300<br />

reais para uma costureira <strong>de</strong> máquina reta; 200 reais, a um borracheiro; 350 reais para<br />

balconista <strong>de</strong> papelaria; 467 reais para manobrista; 730 reais <strong>de</strong>stinados a mecânico<br />

<strong>de</strong> refrigeração; 282 reais a um auxiliar <strong>de</strong> limpeza; 400 reais para um açougueiro; 640<br />

reais para vigilante. Dasilton, um dos operários atendidos, diz que uma vaga <strong>de</strong><br />

vigilante seria bem vinda.<br />

Dasilton é chefe <strong>de</strong> família e sua filha é beneficiada com os 15 reais mensais do<br />

programa Bolsa-Escola. Mas o que segura as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> casa, incluindo o aluguel <strong>de</strong><br />

200 reais, é a pensão <strong>de</strong> 400 reais que sua mulher recebe por estar sofrendo <strong>de</strong><br />

tendinite <strong>de</strong>vido a seu trabalho <strong>de</strong> frentista em posto <strong>de</strong> gasolina. Dasilton sabe que<br />

po<strong>de</strong> ser preterido pelos candidatos que fizeram algum curso para a função. Ele não<br />

po<strong>de</strong> fazer um curso assim. “Os cursos <strong>de</strong> 15 dias custam 300 reais, mais a condução,<br />

um lanche... Ali você apren<strong>de</strong> a usar uma arma, <strong>de</strong>fesa pessoal, mas para quem está<br />

<strong>de</strong>sempregado, como vai arrumar quase 500 reais? E o curso não garante que você vai<br />

ganhar a vaga”.<br />

Desemprego<br />

Desemprego e baixo rendimento salarial sem dúvida marcaram a última década,<br />

sobretudo no interior do país e nas periferias das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s. A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />

Paulo, responsável por 15% do PIB nacional, sentiu o baque da abertura da economia,<br />

das políticas <strong>de</strong> incentivo fiscal e da estagnação no ritmo <strong>de</strong> crescimento. A taxa <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>semprego na cida<strong>de</strong> passou <strong>de</strong> 8,9% em 1989 para 17,6% em 2001. O número <strong>de</strong><br />

domicílios pobres paulistanos subiu 19,6%. Uma visita à chamada “Zona Sul 2” <strong>de</strong> São<br />

Paulo ajuda a enten<strong>de</strong>r a questão social no país. A região abriga bairros sempre<br />

pontilhados <strong>de</strong> favelas, mas consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong> classe média e remediados. E reúne<br />

também distritos como Parelheiros, Jardim Ângela, Capão Redondo, Grajaú, Jardim<br />

São Luís e outros on<strong>de</strong> o aumento do número <strong>de</strong> domicílios pobres entre 1991 e 2000<br />

foi maior do que o aumento médio na cida<strong>de</strong>. No Jardim Ângela, por exemplo, o<br />

número <strong>de</strong> domicílios pobres cresceu 103% <strong>–</strong> <strong>de</strong> 9.940, em 1991, para 20.173, em<br />

2000 <strong>–</strong> e o aumento populacional no período foi <strong>de</strong> apenas 36,7%. Em Parelheiros, o<br />

aumento do número <strong>de</strong> lares pobres foi <strong>de</strong> 167,7% (<strong>de</strong> 3.418 para 9.148) e o<br />

crescimento da população <strong>de</strong> 84,4%. Capão Redondo teve 42,1% <strong>de</strong> aumento no<br />

número <strong>de</strong> lares pobres e o Jardim São Luís, 51,5%, com crescimento populacional no<br />

mesmo período, entre 1991 e 2000, <strong>de</strong> 25,3% e 16%, respectivamente.


A Associação dos Moradores do Jardim Comercial (AMJC), no Capão Redondo,<br />

representa a tábua <strong>de</strong> salvação para muitas famílias do bairro. A Associação concentra<br />

ações sociais e a distribuição <strong>de</strong> benefícios dos governos estadual e municipal. Do<br />

governo fe<strong>de</strong>ral, a diretoria da Associação conseguiu apenas uma bolsa do Peti. Em<br />

conjunto com a prefeitura, a Associação abriga o Espaço Gente Jovem, que oferece<br />

recreação e alimentação para cerca <strong>de</strong> 250 crianças, <strong>de</strong> 6 a 15 anos. A creche,<br />

também em convênio com a prefeitura, aten<strong>de</strong> 60 crianças. Cerca <strong>de</strong> 80% dos meninos<br />

e meninas matriculadas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m completamente das refeições na creche. A<br />

Associação faz também a distribuição do programa Leve Leite da prefeitura (2 litros <strong>de</strong><br />

leite, distribuídos duas vezes por semana, para 300 famílias) e da cesta básica, do<br />

governo estadual <strong>–</strong> 100 famílias. A AMJC cadastrou a população que pleiteava receber<br />

os benefícios sociais. É claro que a <strong>de</strong>manda foi bem maior do que a oferta e muita<br />

gente ficou <strong>de</strong> fora.<br />

Guerra Social<br />

A família <strong>de</strong> José Joaquim da Silva é uma das que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da ajuda<br />

governamental. O motivo principal da penúria é o <strong>de</strong>semprego. Falta emprego para<br />

José e para sua mulher, Ana. Há mais <strong>de</strong> 12 anos, ele não tem a carteira <strong>de</strong> trabalho<br />

assinada. Antes teve registro <strong>de</strong> empregos na construção civil e em restaurantes. José<br />

Joaquim chegou no Jardim Comercial em 1987, quando a favela on<strong>de</strong> mora estava<br />

sendo formada, sobre um terreno que minava água. O povo foi fazendo aterros,<br />

levantando os barracos e hoje a casa <strong>de</strong> alvenaria <strong>de</strong> poucos cômodos abriga ele, a<br />

mulher e 4 filhos <strong>de</strong> 5 a 14 anos. A família é beneficiada com cerca <strong>de</strong> 200 reais do<br />

programa Renda Mínima da prefeitura municipal, que exige a freqüência das crianças<br />

na escola. Dona Ana também recebe o Leve Leite <strong>–</strong> a filha Jaiane ainda tem 5 anos.<br />

Devido à gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>manda, as famílias po<strong>de</strong>m per<strong>de</strong>r a ajuda quando houver uma nova<br />

avaliação dos programas ou quando as crianças ultrapassarem a ida<strong>de</strong> limite. “Quando<br />

acabar, acabou”, diz José Joaquim, que sabe que a única saída é encontrar trabalho,<br />

pelo menos uns bicos com mais assiduida<strong>de</strong>. “Trabalho em construção por aí durante<br />

um mês, ganho uns 300 reais, mas <strong>de</strong>pois fico dois parados. Pego a bicicleta e vou até<br />

Santo Amaro, Pinheiros, buscando serviço. No caminho fico fazendo muito parafuso<br />

que não cabe em nenhuma porca: você sabe, muito pensamento para nenhuma<br />

solução”.<br />

O cemitério municipal São Luís, que aten<strong>de</strong> toda a periferia sul da cida<strong>de</strong>,<br />

representa uma cicatriz da violência na região. Gran<strong>de</strong> parte das vítimas <strong>de</strong> homicídios,


que marcaram os bairros do entorno na última década, jaz naquele local. Não há<br />

números exatos, estatísticas precisas, mas estimativas <strong>de</strong> funcionários indicam que o<br />

serviço funerário público já chegou a realizar <strong>de</strong> 40 a 50 sepultamentos por dia <strong>–</strong> mais<br />

da meta<strong>de</strong>, vítimas <strong>de</strong> mortes violentas. Há também relatos <strong>de</strong> histórias<br />

impressionantes acontecidas <strong>de</strong>ntro dos muros do cemitério, como a invasão <strong>de</strong> um<br />

velório por um bando para confirmar o <strong>de</strong>stino do rival morto. Para não haver dúvidas,<br />

um revólver foi <strong>de</strong>scarregado sobre o caixão. Entre a população dos bairros próximos<br />

corre a história <strong>de</strong> que bandidos pe<strong>de</strong>m às famílias para não serem enterrados ali, caso<br />

venha a fatalida<strong>de</strong>. Dizem que mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morto, o cidadão não tem <strong>de</strong>scanso<br />

naquele cemitério, vulnerável à ação <strong>de</strong> bandidos e vândalos.<br />

O estigma do cemitério já chegou às “pessoas <strong>de</strong> bem”. No portão <strong>de</strong> entrada do<br />

cemitério, Evelyn se empenha para ven<strong>de</strong>r túmulos aos visitantes. Os jazigos à venda,<br />

por meio <strong>de</strong> plano funerário com prestações comparáveis às <strong>de</strong> um plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />

simples, são <strong>de</strong> um cemitério particular não muito longe dali. Segundo a ven<strong>de</strong>dora, as<br />

famílias <strong>de</strong> mortos enterrados no São Luís não têm sossego. “Quando chove tem até<br />

risco dos ossos serem levados pela enxurrada. Além disso, sempre po<strong>de</strong> entrar alguém<br />

e fazer mais uma malda<strong>de</strong> ao morto”, diz. Seu próprio pai esteve enterrado ali, também<br />

vítima <strong>de</strong> “morte matada”, em 1995. “Foi morto quando chegava em casa em uma noite<br />

<strong>de</strong> carnaval”. Evelyn, evangélica, dá graças a Deus que sua família conseguiu comprar<br />

um jazigo e removeu os restos do pai e <strong>de</strong> sua avó para o cemitério particular.<br />

Hoje, afirmam os administradores do São Luís, o local está mais bem cuidado e o<br />

número <strong>de</strong> enterros caiu muito, variando <strong>de</strong> 10 a 15 por dia. Mesmo assim, a meta<strong>de</strong><br />

continua sendo <strong>de</strong> enterros <strong>de</strong> vítimas por morte violenta. Muitos moradores preferem<br />

creditar a diminuição dos enterros à diminuição da violência na região. A população faz<br />

questão <strong>de</strong> dizer que há muita imprecisão no noticiário que insiste em apontar os<br />

distritos <strong>de</strong> Jardim Ângela, Jardim São Luís, Capão Redondo, Parelheiros como os<br />

mais violentos da cida<strong>de</strong>. No caso do Capão Redondo e em outros 4 distritos da “Zona<br />

Sul 2” realmente os números <strong>de</strong> mortes violentas variou para baixo, se comparado<br />

1991 com 2000. No Capão foram <strong>de</strong> 180 mortes a 173. No distrito <strong>de</strong> Campo Limpo, o<br />

número coincidiu em 116 nos dois anos. No entanto, em outros 8 distritos da região<br />

houve a alta nesse índice e a soma total das estatísticas <strong>de</strong> mortes violentas no total <strong>de</strong><br />

14 distritos resulta em 1.469 mortes em 1991 e 1.781 em 2000.<br />

Ausência <strong>de</strong> Estado


Nesse período, São Paulo passou <strong>de</strong> 6.209 mortes violentas para 7.147. A taxa <strong>de</strong><br />

homicídios geral no país subiu <strong>de</strong> 21 mortes para 100 mil habitantes em 1990 para 27<br />

mortes por 100 mil habitantes em 2000. Em Minas Gerais, a explosão da violência foi<br />

ainda mais significativa. Entre 1991 e 2000, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> homicídios aumentou<br />

76%, passando <strong>de</strong> 1.227 para 2.165 assassinatos por ano. Do total <strong>de</strong> crimes violentos<br />

ocorridos no Estado em 1991, a região metropolitana <strong>de</strong> Belo Horizonte respondia por<br />

44%. Em 2000, a capital passou a sediar 61% dos homicídios mineiros.<br />

No mesmo período houve sobretudo o aumento da vitimização <strong>de</strong> jovens e<br />

adolescentes. No Brasil, no ano 2000, foram assassinados 17.662 jovens entre 15 a 25<br />

anos. A mortalida<strong>de</strong> média nacional para os jovens nessa faixa <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> foi <strong>de</strong> 52 por<br />

100 mil. A média da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, foi <strong>de</strong> 139 mortes por 100 mil jovens. Mas<br />

como as mortes não atingem <strong>de</strong> modo igual as diversas camadas sociais, na Vila<br />

Mariana, bairro <strong>de</strong> classe média da capital paulista, a média foi <strong>de</strong> 22 para 100 mil<br />

jovens; em Capão Redondo, foi <strong>de</strong> 298; e na cida<strong>de</strong> Dutra, outro bairro pobre da capital<br />

paulista, foi <strong>de</strong> 441 <strong>–</strong> taxa quatro vezes a média paulistana, quase <strong>de</strong>z vezes a média<br />

nacional e 20 vezes maior que a taxa da Vila Mariana.<br />

Em todo o país a mortalida<strong>de</strong> entre os jovens disparou <strong>de</strong> 35 mil para 52 mil entre<br />

1990 e 2000, um aumento <strong>de</strong> quase 50%, que levou o Brasil a subir para a condição <strong>de</strong><br />

terceiro pior país do mundo nesse aspecto <strong>–</strong> acima do Brasil estão apenas a Colômbia<br />

e Porto Rico.<br />

A ausência do Estado na periferia, po<strong>de</strong>-se dizer, é uma das causas centrais da<br />

violência. A falta <strong>de</strong> acesso à saú<strong>de</strong>, ao lazer, à cultura e ao trabalho faz aumentar a<br />

violência, particularmente entre os adolescentes, que atravessam o período da vida <strong>de</strong><br />

maior turbulência e são mais propensos a se envolver com a vida breve, mas com<br />

algum dinheiro, oferecida pelo narcotráfico.<br />

Levantamento feito pelo Centro <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> Criminalida<strong>de</strong> e Segurança Pública<br />

(Crisp), órgão da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais (UFMG), indica que quase<br />

25% dos crimes violentos ocorridos em vilas e favelas estão ligados ao tráfico <strong>de</strong><br />

drogas e seus conseqüentes “acertos <strong>de</strong> contas”. Nas seis favelas mais violentas <strong>de</strong><br />

Belo Horizonte, as taxas <strong>de</strong> homicídios chegam a ser sete vezes maior que em um<br />

bairro <strong>de</strong> classe média. No Morro das Pedras, por exemplo, entre março e julho <strong>de</strong><br />

2002, ocorreram 99,72 homicídios por 100 mil habitantes. Na cida<strong>de</strong>, exlcuindo-se os<br />

crimes das seis regiões dominadas pelo narcotráfico, o índice foi <strong>de</strong> 12,08 no mesmo<br />

período.<br />

O governo <strong>FHC</strong>, é claro, não criou esse problema. Entre 1980 e 1990 esses índices<br />

também cresceram. Mas em ritmo menos acelerado: a mortalida<strong>de</strong> por homicídio entre<br />

os jovens no período, por exemplo, foi <strong>de</strong> 30 para 35 para cada grupo <strong>de</strong> 100 mil. Mas


a responsabilida<strong>de</strong> dos dois governos <strong>FHC</strong> fica evi<strong>de</strong>nte diante <strong>de</strong> um estudo feito pela<br />

Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidarieda<strong>de</strong> da Prefeitura <strong>de</strong> São Paulo,<br />

que <strong>de</strong>monstra que a violência acompanhou <strong>de</strong> perto o aumento da pobreza. A<br />

variação média anual no número <strong>de</strong> mortes violentas na cida<strong>de</strong> foi <strong>de</strong> 2,4%, entre 1994<br />

e 2000, enquanto a variação média anual na quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> chefes <strong>de</strong> domicílios<br />

pobres esteve em 2% entre 1991 e 2000.<br />

Há sete anos, uma procissão no dia <strong>de</strong> finados reúne milhares <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> toda<br />

zonal sul <strong>de</strong> São Paulo que convergem em caminhada até o Cemitério São Luís. A<br />

Caminhada da Paz, organizada pelo Fórum <strong>de</strong> Defesa da Vida, formado por vários<br />

movimentos sociais da zona sul, foi um jeito que a população encontrou para expressar<br />

sua dor e indignação com os altos índices <strong>de</strong> violência e, porque não, com os altos<br />

índices <strong>de</strong> exclusão social. É justo que as comunida<strong>de</strong>s queiram se livrar do estigma da<br />

violência e, sobretudo, da violência <strong>de</strong>corrente da exclusão. Os distritos da região sul<br />

concentram mais <strong>de</strong> 400 entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> moradores organizados num sinal inequívoco da<br />

vonta<strong>de</strong> das comunida<strong>de</strong>s. No entanto, como afirma Vera Neves, do Centro <strong>de</strong> Direitos<br />

Humanos e Educação Popular <strong>de</strong> Campo Limpo <strong>–</strong> que tem entre suas ativida<strong>de</strong>s a<br />

missão <strong>de</strong> formar e orientar li<strong>de</strong>ranças comunitárias <strong>–</strong>, por mais que a população se<br />

organize, por mais que os governos dêem programas sociais como esmolas aos<br />

pobres, o ritmo acelerado com que a exclusão vem englobando as famílias já<br />

empobrecidas é o que vai <strong>de</strong>terminar o agravamento da verda<strong>de</strong>ira guerra social que<br />

dizima a juventu<strong>de</strong> pobre <strong>de</strong> extensas áreas urbanas do país.<br />

E se Fernando Henrique não é o responsável pelo surgimento <strong>de</strong>sse problema, foi<br />

nos seus dois governos que se viu o agravamento <strong>de</strong>ssa guerra social, que dizima a<br />

juventu<strong>de</strong> pobre, sem que nenhuma gran<strong>de</strong> iniciativa fosse feita para combatê-la. Não<br />

se trata <strong>de</strong> um problema <strong>de</strong> fácil solução. A consolidação da pobreza, da violência e da<br />

<strong>de</strong>sesperança dos jovens em extensas áreas pobres dos maiores centros urbanos é,<br />

com certeza, uma das maiores dificulda<strong>de</strong>s para um novo governo que queira<br />

efetivamente mudar o país.<br />

Democracia plena, para o gran<strong>de</strong> capital<br />

<strong>FHC</strong> foi responsável por 34 alterações na Constituição e assinou 5.300 Medidas Provisórias. O<br />

paralelo com os <strong>de</strong>cretos-lei dos militares é inevitável.


O chanceler alemão Otto von Bismarck disse que os cidadãos não po<strong>de</strong>riam<br />

dormir tranqüilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis. No Brasil, a<br />

afirmação proce<strong>de</strong>, pois gran<strong>de</strong> parte da legislação tem sido elaborada por um método<br />

prussiano, por meio <strong>de</strong> Medidas Provisórias <strong>–</strong> semelhantes aos <strong>de</strong>cretos-lei dos<br />

militares, que têm valor legal a partir da data <strong>de</strong> sua edição e, até setembro <strong>de</strong> 2001,<br />

podiam ser reeditadas quantas vezes fossem necessárias para aten<strong>de</strong>r à vonta<strong>de</strong> do<br />

presi<strong>de</strong>nte da República.<br />

Quando foram <strong>de</strong>lineadas na Constituinte <strong>de</strong> 1988, as Medidas Provisórias eram<br />

vistas como instrumentos excepcionalíssimos, a serem usados em situações <strong>de</strong><br />

extrema gravida<strong>de</strong>. A Constituição colocou como requisitos à sua edição a urgência e a<br />

relevância da matéria. A banalização <strong>de</strong>ssas Medidas tirou qualquer significado a<br />

esses requisitos. “Urgente” e “relevante” passou a ser o que o chefe do Executivo<br />

quisesse. Para completar, o Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral endossou essa interpretação.<br />

O abuso na edição <strong>de</strong> MPs foi tal que, em fins <strong>de</strong> 2001, as regras foram<br />

mudadas para coibir sua proliferação. Des<strong>de</strong> sua criação, em 1988, até 11 <strong>de</strong> setembro<br />

<strong>de</strong> 2001, data da promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 32, que alterou as<br />

regras <strong>de</strong> emissão, foram editadas 700 MPs originais e feitas 5.572 reedições. Algumas<br />

MPs foram revalidadas mais <strong>de</strong> 70 vezes, como é o caso da MP 2.074-73, que<br />

complementa dispositivos do Plano Real. Como praticamente toda reedição mudava a<br />

anterior, <strong>de</strong>ve-se contabilizar para cada presi<strong>de</strong>nte suas edições e reedições.<br />

Comparando as médias mensais <strong>de</strong> MPs e suas reedições, <strong>FHC</strong> é, <strong>de</strong> longe, o<br />

campeão no seu uso e abuso: José Sarney editou 6,13 por mês; Fernando Collor, 5,22;<br />

Itamar Franco, 18,8; Fernando Henrique, no primeiro mandato, 38,74 e, no segundo,<br />

81,51 medidas por mês.<br />

Edições sucessivas<br />

Até a EC-32, o presi<strong>de</strong>nte da República podia editar MPs para legislar sobre<br />

qualquer assunto. Se não fossem votadas no prazo <strong>de</strong> 30 dias, po<strong>de</strong>riam ser<br />

reeditadas in<strong>de</strong>finidamente, com as mudanças que o presi<strong>de</strong>nte quisesse,<br />

configurando, assim, um sistema legiferante completamente extravagante e<br />

praticamente à margem do Congresso Nacional. Um exemplo disso é a MP 1.669, <strong>de</strong><br />

19 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1998. Ela foi editada com a seguinte ementa: “altera a Lei 9.649, <strong>de</strong>


maio <strong>de</strong> 1998, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos<br />

Ministérios, e dá outras providências”.<br />

A MP foi reeditada sucessivamente, com um novo número a cada 30 dias. A<br />

alteração na sistemática das MPs fez com que passassem a ser reeditadas com o<br />

mesmo número, seguidas <strong>de</strong> dígitos informando a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reedições. Nessa<br />

nova sistemática, a MP 1.669 mudou para o número 2.225 e foi reeditada 45 vezes<br />

(2.225-45) antes <strong>de</strong> ser convertida em lei. A regra <strong>de</strong>veria ser a reedição nos mesmos<br />

termos do texto original, apenas com as alterações necessárias ao <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> tempo.<br />

No entanto, não foi isso que aconteceu. Nessas sucessivas reedições, a medida foi<br />

profundamente alterada.<br />

No original, a MP 1.669 criava órgãos <strong>de</strong> prevenção e repressão ao narcotráfico<br />

e ao tráfico <strong>de</strong> outras substâncias ilícitas e organizava o Sistema Nacional Antidrogas.<br />

Numa <strong>de</strong> suas reedições foi incluída, <strong>de</strong> contrabando, matéria sobre os servidores<br />

públicos em geral. A MP 1.669 continha sete artigos, na sua última reedição, como MP<br />

2.225-45, trazia 15, mais do que o dobro.<br />

Em suas sucessivas reedições, além do Sistema Antidrogas, regulou também a<br />

reversão <strong>de</strong> servidores aposentados à ativida<strong>de</strong>, débitos, reposições e in<strong>de</strong>nizações <strong>de</strong><br />

servidores ao erário, licenças para trato <strong>de</strong> interesse particular, vantagens pessoais,<br />

normas processuais relativas à ação <strong>de</strong> improbida<strong>de</strong> administrativa nos tribunais,<br />

quarentena <strong>de</strong> ministros e <strong>de</strong> servidores <strong>de</strong> Direção e Assessoramento Superior (DAS),<br />

reajuste <strong>de</strong> vencimentos <strong>de</strong> servidores e outros.<br />

É sintomático que a maioria <strong>de</strong>ssas normas restringiam direitos tradicionais dos<br />

servidores públicos. Na última reedição, por exemplo, a MP revogou o art. 26 da lei<br />

8.112/90, extinguindo o adicional por tempo <strong>de</strong> serviço, <strong>de</strong>vido à razão <strong>de</strong> 1% por ano<br />

<strong>de</strong> exercício do serviço público e incorporado a cada cinco anos à remuneração dos<br />

servidores. Essa alteração não po<strong>de</strong>ria sequer ser feita por MP, uma vez que o art. 246<br />

da Constituição Fe<strong>de</strong>ral veda a regulamentação por meio <strong>de</strong> medida provisória <strong>de</strong><br />

matéria que tenha sido alterada por Emenda Constitucional. Foi o caso dos arts. 37 e<br />

39 da Constituição, alterados pela EC-19. Os dois artigos dispõem sobre o sistema<br />

remuneratório dos servidores públicos, do qual é parte o adicional <strong>de</strong> tempo <strong>de</strong> serviço.<br />

Portanto, na época em que foi reeditada, posterior à EC-19, a MP não po<strong>de</strong>ria sequer<br />

tratar <strong>de</strong>sse adicional.<br />

Outro efeito daninho das medidas provisórias foi o caos jurídico. A cada mês, a<br />

reedição trazia novida<strong>de</strong>s em relação à sua versão anterior. Como no caso citado,<br />

algumas alterações implicavam no acréscimo <strong>de</strong> assuntos que não guardavam a menor<br />

relação com o texto original. Isso aconteceu também com a esdrúxula MP 2.077, <strong>de</strong><br />

2001, que reeditava matéria sobre auxílio-transporte e, <strong>de</strong> quebra, alterou a data <strong>de</strong>


pagamento dos servidores para o primeiro dia do mês seguinte <strong>–</strong> a intenção foi<br />

repassar a folha <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro para o outro exercício financeiro e garantir um superávit<br />

primário nominal.<br />

Foi por MP, também, que o governo <strong>FHC</strong> tentou, por duas vezes, implantar a<br />

inconstitucional e vergonhosa cobrança previ<strong>de</strong>nciária inci<strong>de</strong>nte sobre os proventos<br />

dos aposentados, matéria que foi <strong>de</strong>rrotada judicialmente e, excepcionalmente,<br />

também no Congresso.<br />

As medidas provisórias impuseram ao Congresso Nacional a pauta do<br />

Executivo. Tornou-se comum o atropelo da tramitação <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> lei, pela<br />

superveniência <strong>de</strong> medida provisória sobre o mesmo tema. O governo tornou-se o<br />

gran<strong>de</strong> legislador, usurpando as funções do parlamento.<br />

Para os operadores do direito, juízes, membros do Ministério Público e<br />

advogados, tornava-se cada vez mais difícil acompanhar a verborragia legislativa do<br />

Executivo. Era praticamente impossível dizer que normas estavam em vigor, quais<br />

novos institutos jurídicos tinham passado a valer e quais diplomas legais tinham sido<br />

revogados. Para a população, isso significava a falta <strong>de</strong> segurança das relações<br />

jurídicas, que é um dos valores fundamentais do direito.<br />

O mundo jurídico brasileiro da era <strong>FHC</strong> tornou-se um caos e o paraíso das<br />

gran<strong>de</strong>s bancas <strong>de</strong> advocacia, especialmente em matéria tributária. Os novos limites<br />

<strong>de</strong>finidos para as MPs não são suficientes para constituir a “<strong>de</strong>mocracia plena” que<br />

Fernando Henrique diz ter <strong>de</strong>ixado.<br />

Entulhando o STF<br />

O governo <strong>FHC</strong> foi também o autor <strong>de</strong> um dilúvio <strong>de</strong> <strong>de</strong>cretos regulamentadores,<br />

<strong>de</strong> portarias, editais e normas da Presidência, ministérios e do Banco Central.<br />

Foi também o governo responsável por inundar o Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral e<br />

outros tribunais superiores com uma enxurrada <strong>de</strong> processos, muitas vezes meramente<br />

protelatórios. No Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça (STJ), nos anos 92-94, foram recebidos<br />

cerca <strong>de</strong> 35 mil processos. Somente no primeiro ano <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> já chegavam a quase 70<br />

mil, disparando para 185 mil em 2001.


O Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, no mesmo período, 1992 a 1994, recebeu, em<br />

média, 25 mil processos por ano. No governo <strong>FHC</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um crescimento<br />

progressivo, ano após ano, o STF registrou mais <strong>de</strong> 110 mil processos em 2001. O<br />

Supremo <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> atualizar os números que <strong>de</strong>talhavam a origem <strong>de</strong>sses processos.<br />

Mas, pelas informações disponíveis até 1996, sabe-se que mais <strong>de</strong> 50% <strong>de</strong>sses são<br />

proce<strong>de</strong>ntes do governo fe<strong>de</strong>ral. Em boa parte, foram ações do po<strong>de</strong>r Executivo <strong>de</strong><br />

caráter meramente protelatório: sempre que vencido em uma ação judicial, mesmo que<br />

a jurisprudência contrária às suas pretensões fosse avassaladora, mesmo quando a<br />

apelação era contraproducente do ponto <strong>de</strong> vista financeiro por implicar em encargos<br />

cada vez maiores, o governo recorria. Isso também se insere na lógica <strong>de</strong> assegurar<br />

superávits primários a curto prazo e ao viés, sempre presente na ação <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, <strong>de</strong> não<br />

reconhecer ou retardar ao máximo o reconhecimento <strong>de</strong> direitos sociais.<br />

Tudo foi objeto <strong>de</strong> MP<br />

Não há ramo do direito brasileiro que não tenha sofrido com a fúria legiferante<br />

<strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, que dispôs, com força <strong>de</strong> lei, sobre tudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a liquidação extrajudicial <strong>de</strong><br />

instituições financeiras até a meia-entrada para estudantes. É verda<strong>de</strong> que isso foi<br />

facilitado pela docilida<strong>de</strong> com que o Congresso aceitou <strong>de</strong>sempenhar um papel<br />

secundário e, em alguns momentos, até subserviente, amoldando-se a uma função<br />

meramente homologatória, em <strong>de</strong>corrência da folgada maioria governista entre os<br />

parlamentares. Essa subserviência ficou muito nítida no episódio da votação da<br />

proposta <strong>de</strong> instituir a reeleição, cuja vitória continua associada a <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> que o<br />

governo teria instalado um verda<strong>de</strong>iro “balcão <strong>de</strong> negócios”, em que teriam sido<br />

trocados votos <strong>de</strong> parlamentares por vantagens e até por dinheiro em espécie.<br />

De acordo com gravações obtidas pela Folha <strong>de</strong> S. Paulo, a votação da Emenda<br />

Constitucional que permitiu a reeleição <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, datada <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1996, foi<br />

precedida por uma gran<strong>de</strong> operação <strong>de</strong> aliciamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>putados por parte dos<br />

governistas no Congresso. Segundo as gravações, feitas com os <strong>de</strong>putados João Maia<br />

e Ronivon Santiago, ambos do PFL do Acre, foi montado um esquema que envolvia o<br />

<strong>de</strong>putado Pau<strong>de</strong>rney Avelino, na época da votação filiado ao PPB do Amazonas e,<br />

<strong>de</strong>pois, ao PFL, o ministro das Comunicações <strong>Sérgio</strong> Motta, do PSDB, o presi<strong>de</strong>nte da<br />

Câmara dos Deputados, Luís Eduardo Magalhães, do PFL, e os governadores do<br />

Amazonas, Amazonino Men<strong>de</strong>s, e o do Acre, Orleir Cameli. “Esse dinheiro é do<br />

Amazonino. Promessa do Pau<strong>de</strong>rney aqui. No nosso corredor aqui, falou em 200 paus,<br />

via Serjão,” disse Maia na gravação.


Os <strong>de</strong>putados dizem nas fitas que a barganha pelo voto previa o recebimento <strong>de</strong><br />

200 mil reais do governo fe<strong>de</strong>ral e <strong>de</strong> outros 200 mil reais do governo do Acre. “Pelo<br />

que eu sei bem é o seguinte: eram os 200 [mil reais] do Serjão, via Amazonino, que era<br />

a cota fe<strong>de</strong>ral, aí do acordo ...”, diz Maia. Ronivon Santiago diz que os 200 mil reais<br />

pagos pelo voto a favor da emenda da reeleição foram distribuídos amplamente. Afirma<br />

que o dinheiro vinha do “outro lado”, sugerindo que seria do ministro das<br />

Comunicações, <strong>Sérgio</strong> Motta. “Todo mundo pegou na faixa <strong>de</strong> 200, 300... Todo mundo<br />

pegou... Teve gente que negociou pagamento <strong>de</strong> banco, negociou todo <strong>de</strong>putado aí...<br />

Todo mundo”, diz Ronivon. O <strong>de</strong>putado acreano concluiu com um frase emblemática,<br />

porque parece fazer uma crítica ao esquema do qual participou e foi beneficiário: “É<br />

uma barbárie isso aí”.<br />

Blindagem<br />

O governo <strong>FHC</strong> impediu a apuração <strong>de</strong>ssa e <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>núncias<br />

semelhantes, que davam conta <strong>de</strong> que o avassalamento do Po<strong>de</strong>r Legislativo teria sido<br />

conseguido com a prática generalizada <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> influência e propinas,<br />

amesquinhando e <strong>de</strong>turpando a vida política no país. Assim, a maioria governista no<br />

Congresso, aten<strong>de</strong>ndo aos interesses <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, impediu a instalação da CPI da<br />

Reeleição e da CPI da Corrupção, usando todas as manobras possíveis para<br />

inviabilizá-las, apesar dos fortes indícios <strong>de</strong> ilicitu<strong>de</strong>s veiculados pela imprensa.<br />

Fernando Henrique foi ainda o presi<strong>de</strong>nte que praticamente <strong>de</strong>smontou a Carta<br />

Magna feita pela Assembléia Constituinte que re<strong>de</strong>mocratizou o país, em 1988. Hoje, a<br />

Constituição é uma colcha <strong>de</strong> retalhos, com 38 Emendas, 34 <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>. Foram alterados<br />

77 artigos constitucionais (alguns, alterados mais <strong>de</strong> uma vez), acrescidos 16 novos e<br />

revogados outros dois. Cerca <strong>de</strong> um terço do texto original foi, portanto, alterado, fruto<br />

da revisão neoliberal. Ou seja: a Constituição foi esquartejada e praticamente reescrita<br />

à imagem e semelhança <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> e seu governo.<br />

Para eles, os interesses <strong>de</strong> mercado sempre estiveram em primeiro lugar. É isso<br />

que significa a chamada “blindagem institucional” que retirou po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> “políticos” para<br />

entregar a “técnicos”, com ligações estreitas com mercado. Para isso foram criadas as<br />

agências <strong>de</strong> fiscalização (Anatel, Aneel, ANA etc) e se programou a autonomia do<br />

Banco Central, como se a in<strong>de</strong>pendência que já goza hoje não fosse suficiente. O<br />

significado, em todos esses casos, é sempre subtrair do Estado po<strong>de</strong>r político e<br />

aumentar o do mercado.


As alterações na Constituição visavam, obsessivamente, a suprimir direitos<br />

sociais ou a abrir caminho para a supressão <strong>de</strong>sses direitos por leis infraconstitucionais<br />

(ou mesmo medidas provisórias), quando não tinham por objetivo enfraquecer a<br />

soberania nacional ou entregar nosso patrimônio. Quase sempre foi este o conteúdo<br />

daquelas emendas: anti-social, antinacional e privatizante.<br />

O sentido <strong>de</strong>ssas alterações foi, em geral, o contrário do pretendido pelo<br />

constituinte originário. Não é sem razão que um dos nossos maiores juristas<br />

contemporâneos, Celso Antônio Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Mello, representando a consciência<br />

jurídica progressista, disse que a Constituição <strong>de</strong> 1988, “<strong>de</strong> um lado, sofreu um<br />

processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfiguração por via <strong>de</strong> emendas que lhe subtraíram características<br />

básicas, amputando aspectos fundamentais <strong>de</strong> seu projeto. De outro, foi<br />

sistematicamente afrontada no que tinha <strong>de</strong> mais elementar; isto é, em seu<br />

comprometimento com os valores <strong>de</strong>mocráticos substanciados na tripartição do<br />

exercício do po<strong>de</strong>r. Ou seja: as normas que consagravam essa noção rudimentar,<br />

própria do Estado <strong>de</strong> Direito, sofreram e vêm sofrendo, diuturnamente, as mais<br />

<strong>de</strong>sabridas e rotineiras afrontas”. E conclui: “sem embargo, o que realmente se está a<br />

assistir são seus discretos funerais” .<br />

O estilo concentrador e autoritário <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> foi o responsável, também, por outra<br />

vítima: o pacto fe<strong>de</strong>rativo. O governo fe<strong>de</strong>ral concentrou, <strong>de</strong> forma maciça, a<br />

arrecadação tributária e os po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão em todos os assuntos relevantes, em<br />

<strong>de</strong>trimento dos estados e municípios, dando passos largos para um Estado, <strong>de</strong> fato,<br />

unitário, em que os as unida<strong>de</strong>s fe<strong>de</strong>radas tornar-se-iam meras divisões<br />

administrativas da União.<br />

Estado mínimo para o povo e máximo para o<br />

gran<strong>de</strong> capital<br />

O Estado brasileiro foi <strong>de</strong>sestruturado e reduzido com as privatizações, o aumento do<br />

endividamento e a diminuição nos gastos sociais. Já as <strong>de</strong>spesas com juros e serviços da dívida<br />

foram ampliadas.


Os orçamentos são excelentes instrumentos para mostrar a natureza do Estado.<br />

Neles po<strong>de</strong>-se ver <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem e para on<strong>de</strong> vai o dinheiro; quem paga a conta e quem<br />

se beneficia dos recursos públicos; quais são as priorida<strong>de</strong>s e quais são os interesses<br />

das forças que dominam a ação política.<br />

Como são elaboradas e como são controladas as contas <strong>de</strong> um Estado diz muito<br />

também sobre a natureza do processo <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> um país. Antes, as contas<br />

estatais eram tarefa do monarca. Com as revoluções burguesas, com a <strong>de</strong>rrota total ou<br />

parcial dos regimes monárquicos e o estabelecimento dos regimes republicanos ou das<br />

monarquias constitucionais, parlamentos eleitos passaram a votar as contas <strong>de</strong><br />

governo, estabelecer os tributos e limitar as <strong>de</strong>spesas.<br />

As revoluções socialistas do século 20 procuraram criar Estados <strong>de</strong> natureza<br />

diferente, que controlassem também o planejamento e os principais ramos da geração<br />

<strong>de</strong> riqueza <strong>de</strong> um país, com as empresas públicas. E com parlamentos diferentes <strong>–</strong> não<br />

<strong>de</strong> políticos profissionais, mas formados por trabalhadores comuns, convocados<br />

periodicamente para a tarefa <strong>de</strong> legislar e aprovar o orçamento. É o caso, ainda hoje,<br />

por exemplo, <strong>de</strong> Cuba ou da China. A Assembléia Nacional Popular da China, que se<br />

reúne no próximo mês <strong>de</strong> março, por exemplo, discute um orçamento público que inclui<br />

não apenas as <strong>de</strong>spesas e receitas dos ministérios tradicionais como da Educação,<br />

Saú<strong>de</strong> e outros; mas também o controle <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> empresas<br />

estatais fe<strong>de</strong>rais <strong>–</strong> a China tem, além <strong>de</strong>ssas, mais algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong><br />

empresas estatais estaduais e municipais.<br />

Nas economias <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do Terceiro Mundo, <strong>de</strong>pois da gran<strong>de</strong> crise<br />

capitalista dos anos 30, surgiram Estados burgueses com gran<strong>de</strong> presença na<br />

economia, com um número expressivo <strong>de</strong> empresas estatais no setor produtivo. Carlos<br />

Sobral, coor<strong>de</strong>nador do estudo do IBGE sobre as estatais brasileiras divulgado no final<br />

do ano passado, relembrou, na ocasião, que o país já teve cerca <strong>de</strong> 800 estatais, que<br />

eram responsáveis por mais ou menos 50% do investimento no país.<br />

O Orçamento Geral da União (OGU) compõe-se <strong>de</strong> três orçamentos e reflete,<br />

ainda hoje, essa característica <strong>de</strong> nosso Estado: um dos orçamentos é o dos<br />

investimentos das estatais. Os outros dois são o da Segurida<strong>de</strong> Social, em que estão<br />

as <strong>de</strong>spesas da previdência, saú<strong>de</strong> e da assistência social; e o orçamento fiscal, que<br />

trata das <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>spesas do Executivo (em que estão outros ministérios), do<br />

Legislativo e do Judiciário.<br />

Fernando Henrique, no seu propósito <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir aspectos essenciais da<br />

chamada Era Vargas <strong>–</strong>, dos governos iniciados com a Revolução <strong>de</strong> 30 e que, a<br />

<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> interrupções, <strong>de</strong>terminaram a natureza do sistema econômico brasileiro até


ecentemente <strong>–</strong> empenhou-se, explicitamente, em acabar com as empresas estatais do<br />

setor produtivo. Mesmo assim, o país ainda tem 320 empresas estatais, nos três níveis<br />

da fe<strong>de</strong>ração. O orçamento <strong>de</strong> investimentos das estatais fe<strong>de</strong>rais brasileiras <strong>de</strong> 2003 é<br />

<strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 27 bilhões <strong>de</strong> reais, muito maior do que o investimento previsto nos<br />

orçamentos fiscal e da segurida<strong>de</strong>. Isso, porque nele ainda estão, por exemplo, duas<br />

gigantes da economia do país: a Petrobrás, a maior empresa brasileira, e a Eletrobrás,<br />

a holding que agrupa as gran<strong>de</strong>s geradoras <strong>de</strong> eletricida<strong>de</strong>, que são ainda, em sua<br />

maioria, públicas. No auge da crise <strong>de</strong> energia brasileira, Fernando Henrique, a<br />

<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> toda sua aversão às estatais, criou mais uma: a CBCE <strong>–</strong> Companhia<br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> Comercialização <strong>de</strong> Energia. Estado novo<br />

<strong>FHC</strong> prometeu fazer uma revolução no Estado brasileiro. Con<strong>de</strong>nou, não só sua<br />

intervenção direta na produção, como também o seu papel <strong>de</strong> planejamento. A ação<br />

direta do Estado na economia e o dirigismo estatal, dizia ele, eram entraves ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento do Brasil. Os mercados seriam mais ágeis e por meio <strong>de</strong>les o país<br />

teria novas tecnologias, mais investimentos e menos corrupção. Melhor ainda, estaria<br />

livre das funções <strong>de</strong> produzir ou planejar a ação econômica, concentrado no que<br />

seriam seus serviços essenciais: educação, saú<strong>de</strong>, assistência social <strong>–</strong> o Estado seria<br />

mais eficiente e o povo estaria mais bem atendido. É essencial, portanto, fazer um<br />

balanço do que ele fez e que tipo <strong>de</strong> Estado, transformado, ele <strong>de</strong>ixou. Cinco<br />

observações po<strong>de</strong>m ser feitas:<br />

1) A primeira já foi apresentada: <strong>FHC</strong> reduziu bastante a ação econômica do Estado.<br />

No seu governo, segundo o IBGE, entre 1995 e 2000, foram privatizadas 134 empresas<br />

<strong>–</strong> 52 financeiras e 82 não-financeiras. Em 1995, ao votar o orçamento <strong>de</strong> investimento<br />

das empresas estatais, o Congresso <strong>de</strong>cidia sobre 10,7% do total <strong>de</strong> investimentos da<br />

economia brasileira. Em 2000, esse valor era mais ou menos a meta<strong>de</strong> disso, 5,8%,<br />

segundo os dados <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro do IBGE (veja box na próxima página).<br />

2) A segunda gran<strong>de</strong> mudança po<strong>de</strong>-se ver pela parte financeira do orçamento, não a<br />

que trata dos impostos e contribuições e nem das <strong>de</strong>spesas mais visíveis, como os<br />

gastos com pessoal, investimentos e custeio dos ministérios; mas a que trata da dívida<br />

do Estado, <strong>de</strong> sua amortização e do pagamento <strong>de</strong> seus juros. Essa parte agora é<br />

muito maior: o país paga e arrecada muito mais com a emissão <strong>de</strong> títulos públicos do<br />

que antes. Não porque a arrecadação <strong>de</strong> impostos e contribuições tenha sido pequena<br />

no governo <strong>FHC</strong>. Ao contrário: ele promoveu uma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>rrama fe<strong>de</strong>ral. Depois<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>duzidas as transferências constitucionais, o governo central ficará com cerca <strong>de</strong><br />

20% do produto nacional nas previsões do orçamento <strong>de</strong> 2003. Em valores, um


crescimento <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 50% em relação a 1995. Mas essa sangria não foi suficiente<br />

para cobrir nem mesmo os juros da dívida, que, em termos absolutos e valores<br />

relativos, disparou no período <strong>FHC</strong>.<br />

3) Na parte do orçamento que trata dos serviços públicos, Fernando Henrique <strong>de</strong>ixa<br />

para Lula um orçamento <strong>de</strong>sigual <strong>–</strong> bem maior do que o que encontrou em 1995 em<br />

algumas áreas, menor em outras e, no geral, com gastos bem inferiores àqueles que<br />

se esperaria em <strong>de</strong>corrência do gran<strong>de</strong> aumento da arrecadação. A receita <strong>de</strong><br />

impostos e contribuições, entre o realizado em 1995 e o estimado para 2003, irá<br />

aumentar 82%; mas as <strong>de</strong>spesas com saú<strong>de</strong>, por exemplo, cujos gastos são<br />

protegidos constitucionalmente, crescerá apenas 70%, ficando em 28 bilhões <strong>de</strong> reais.<br />

As verbas para a educação crescerão menos da meta<strong>de</strong> do incremento das receitas,<br />

em 39%, chegando a 14,6 bilhões <strong>de</strong> reais. As verbas para a <strong>de</strong>fesa e segurança<br />

variaram menos ainda, 34%. As verbas para o trabalho, que inclui geração <strong>de</strong> emprego<br />

e renda, ao contrário, <strong>de</strong>cresceram 4% em 2003, comparado a 1995.<br />

4) Um outro item do orçamento que se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>stacar é o das <strong>de</strong>spesas<br />

previ<strong>de</strong>nciárias, que ficam no Orçamento da Segurida<strong>de</strong> Social e cresceram<br />

expressivamente no orçamento <strong>de</strong>ixado para Lula. Para 2003, estão programados<br />

131,8 bilhões <strong>de</strong> reais nessas <strong>de</strong>spesas. O crescimento dos gastos com a previdência<br />

é freqüentemente atribuído por <strong>FHC</strong> à chamada re<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção social <strong>–</strong> que inclui<br />

diversos tipos <strong>de</strong> programas para as pessoas <strong>de</strong> baixa renda, ver matéria nas páginas<br />

<strong>de</strong> 12 a 17 <strong>–</strong> que seu governo teria criado e cujas verbas teriam aumentado muito. De<br />

fato, os gastos com a previdência são a gran<strong>de</strong> fatia <strong>de</strong>ssa re<strong>de</strong> e os principais<br />

responsáveis por seu efetivo crescimento entre 1995 e 2003. Mas não é verda<strong>de</strong> que<br />

<strong>FHC</strong> tenha criado, nem aumentado os gastos previ<strong>de</strong>nciários. A sua parte mais<br />

expressiva é <strong>de</strong> obrigações estabelecidas na época do Regime Militar e na<br />

Constituição re<strong>de</strong>mocratizadora <strong>de</strong> 1988, como o direito a um salário mínimo para os<br />

trabalhadores que se aposentam no campo, por exemplo. <strong>FHC</strong>, ao contrário, ao longo<br />

<strong>de</strong> seu governo, lutou muito para reduzir os gastos com a previdência, conseguindo,<br />

em duas reformas no Estado brasileiro, diminuir o valor das aposentadorias dos setores<br />

público e privado. Além disso, preten<strong>de</strong>u <strong>de</strong>ixar escrito na agenda do próximo governo<br />

a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mais uma reforma previ<strong>de</strong>nciária. Recentemente, o diretor gerente<br />

do FMI esteve em visita ao Brasil e, em conversas com banqueiros em São Paulo,<br />

disse que a meta para o Brasil <strong>de</strong>ve ser a <strong>de</strong> redução do chamado déficit<br />

previ<strong>de</strong>nciário, que estaria em aproximadamente 5% do PIB, e que isso, para o novo<br />

governo, seria mais importante do que aumentar o superávit primário que será cobrado<br />

do governo Lula neste seu primeiro ano <strong>de</strong> mandato, 3,75% do PIB.


5) O quinto aspecto a <strong>de</strong>stacar nas contas do Estado recriado por <strong>FHC</strong> não está no<br />

Orçamento, mas na chamada Conta Única do Tesouro Nacional. Em 1997, o Tesouro<br />

Nacional iniciou o ano com 17 bilhões <strong>de</strong> reais em caixa, um dinheiro que por força da<br />

Constituição fica <strong>de</strong>positado no Banco Central. Ao final <strong>de</strong> 2002, esse saldo<br />

ultrapassava a casa <strong>de</strong> 99 bilhões <strong>de</strong> reais, quase 6 vezes mais.<br />

Por que o governo insiste em cortar gastos na saú<strong>de</strong>, educação e segurança<br />

com tantos bilhões em caixa? Por que continua se endividando mais e mais e pagando<br />

juros ao mesmo tempo que mantém tanto dinheiro parado? Por que não salda pelo<br />

menos uma parcela da sua colossal dívida? Esse dinheiro, em parte, <strong>de</strong>corre <strong>de</strong><br />

recursos <strong>de</strong> impostos e contribuições que não foram gastos. Outra parte significativa<br />

veio do lançamento <strong>de</strong> títulos da dívida em quantida<strong>de</strong>s muito acima das necessida<strong>de</strong>s<br />

do governo <strong>–</strong> mesmo se consi<strong>de</strong>rarmos os enormes gastos com rolagem e juros <strong>de</strong><br />

dívida. Na verda<strong>de</strong>, o Banco Central utilizou esse excesso <strong>de</strong> endividamento<br />

(lançamentos extras) para retirar dinheiro <strong>de</strong> circulação, manter os juros muito altos,<br />

cortar o crédito e as ativida<strong>de</strong>s produtivas, congelando o país numa política recessiva.<br />

Fez isso pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atrair dólares para o país, em função da <strong>de</strong>pendência<br />

externa, que marcou a economia brasileira ao longo <strong>de</strong> todo seu governo. O custo<br />

<strong>de</strong>ssa política, <strong>herança</strong> <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> para Lula, é muito alto.<br />

<strong>FHC</strong> <strong>de</strong>ixa para Lula uma montanha <strong>de</strong> juros e amortizações a pagar. O<br />

pagamento <strong>de</strong> juros registrado no orçamento crescerá 266%, <strong>de</strong> 25,5 bilhões <strong>de</strong> reais,<br />

em 1995, para 93,6 bilhões, para 2003. As amortizações da dívida externa subirão<br />

609%, <strong>de</strong> 5 bilhões <strong>de</strong> reais para 35 bilhões <strong>de</strong> reais; e as da dívida interna vão <strong>de</strong> 155<br />

bilhões <strong>de</strong> reais para 546 bilhões <strong>de</strong> reais, mais 252%. É preciso ressaltar que as<br />

<strong>de</strong>spesas com a dívida serão ainda maiores, pois o orçamento para 2003 foi construído<br />

em meados <strong>de</strong> 2002, prevendo, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002, dólar a 2,73 reais e juros <strong>de</strong><br />

18,3% ao ano. Longe, portanto, da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um dólar a 3,5 reais e <strong>de</strong> juros a 25%<br />

ao ano.<br />

Estado máximo<br />

Lula também terá <strong>de</strong> produzir um gran<strong>de</strong> superávit primário, o conceito chave<br />

nos acordos do Brasil com o FMI. Para enten<strong>de</strong>r esse conceito <strong>de</strong>ve-se fazer uma


conta. A arrecadação <strong>de</strong> impostos e contribuições, aproximadamente 350 bilhões <strong>de</strong><br />

reais, é insuficiente para amortizar 500 bilhões <strong>de</strong> reais <strong>de</strong> dívida interna e pagar mais<br />

100 bilhões <strong>de</strong> reais <strong>de</strong> juros <strong>–</strong> só daria para cerca <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> da dívida, sem contar as<br />

<strong>de</strong>spesas do ano. Para pagar quase tudo o que <strong>de</strong>ve, mostra o orçamento <strong>de</strong> 2003, o<br />

governo Lula emitirá títulos da dívida pública. O governo amortizará os 500 bilhões da<br />

dívida interna realizando o que se chama <strong>de</strong> rolagem da dívida: vai emitir novos títulos<br />

para pagar os que forem vencendo. E vai rolar também gran<strong>de</strong> parte dos juros, com a<br />

emissão <strong>de</strong> títulos. Mas vai pagar uma parte da dívida, para impedir que a dívida<br />

cresça <strong>de</strong>mais. Para isso é que existe o superávit primário, uma parte <strong>de</strong> impostos e<br />

contribuições que ficam reservados para as <strong>de</strong>spesas financeiras.<br />

O governo <strong>FHC</strong> sempre <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u e pôs em prática uma política <strong>de</strong> gerar<br />

superávits primários. Mas houve uma mudança essencial no seu segundo mandato.<br />

Entre 1995 e 1998, os superávits primários do governo ficaram em menos <strong>de</strong> 0,5% do<br />

PIB, quantias equivalentes a um quinto ou um sexto dos orçamentos da saú<strong>de</strong>. A partir<br />

<strong>de</strong> 1999, em função dos acordos com o FMI feitos por Fernando Henrique e legados ao<br />

governo Lula, os superávits passaram a ser <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 2,5% do PIB, e cada vez<br />

maiores, sempre maiores que o orçamento da saú<strong>de</strong>, por exemplo. No último semestre<br />

<strong>de</strong> 2002, o governo fe<strong>de</strong>ral acertou com o FMI <strong>–</strong> e cumpriu <strong>–</strong> um superávit <strong>de</strong> 3,88% do<br />

PIB. Para 2003, Lula <strong>de</strong>ve garantir um superávit <strong>de</strong> 33,7 bilhões <strong>de</strong> reais (o orçamento<br />

da saú<strong>de</strong> é <strong>de</strong> 28 bilhões <strong>de</strong> reais).<br />

A evolução da dívida pública é uma expressão viva do compromisso do Estado<br />

brasileiro, sob os mandatos <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, com os interesses do gran<strong>de</strong> capital. <strong>FHC</strong> sempre<br />

afirmou que a dívida cresce porque o Estado gasta muito mais do que arrecada. Mas a<br />

dívida pública tem muitas outras finalida<strong>de</strong>s, a menor <strong>de</strong>las é custear as <strong>de</strong>spesas da<br />

administração, os gastos não-financeiros.<br />

Com o real mantido em torno <strong>de</strong> um dólar, os altos juros internos levaram as<br />

empresas com crédito lá fora a tomar dinheiro no exterior. O gráfico ao lado mostra<br />

esse fato. Ele apresenta a dívida externa do país dividida em duas partes, a do Estado<br />

e a das empresas particulares. E mostra também a dívida interna pública. Pelo gráfico,<br />

se percebe a relação entre esses três endividamentos. Na fase entre 1994 e começo<br />

<strong>de</strong> 1998, os particulares foram ao exterior e tomaram cerca <strong>de</strong> 150 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />

A dívida interna cresceu porque gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sses dólares foram comprados pelo<br />

Estado, que acumulou gran<strong>de</strong>s reservas para garantir o Plano Real. A partir <strong>de</strong> maio <strong>de</strong><br />

1998, o Brasil começa a quebrar e o crédito para os particulares passa a ser mais<br />

difícil. Eles começam apenas a rolar suas dívidas lá fora, sem aumentá-las, chegando<br />

mesmo a amortizá-las. Mas a dívida continuou aumentando porque, então, é o Estado<br />

brasileiro que saiu para tomar dólares <strong>–</strong> foram mais <strong>de</strong> 80 bilhões <strong>de</strong> dólares nos três<br />

empréstimos <strong>de</strong>sse período com o FMI e outras agências internacionais.


Além dos juros, outro aspecto que levou ao incremento da dívida interna pública<br />

é a proteção do Estado aos gran<strong>de</strong>s capitalistas que estavam endividados no exterior.<br />

A proteção <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>via em dólares está em títulos da dívida pública interna que,<br />

além <strong>de</strong> pagar juros, são in<strong>de</strong>xados à moeda dos EUA. Ou seja, quem tem um título<br />

<strong>de</strong>sses, além <strong>de</strong> ganhar juros, mantém o seu valor em dólar qualquer que seja a<br />

<strong>de</strong>svalorização da moeda americana. Em janeiro <strong>de</strong> 1999, às vésperas da<br />

<strong>de</strong>svalorização do real <strong>–</strong> que chegou a valer mais <strong>de</strong> um dólar e passou a valer cerca<br />

<strong>de</strong> meio dólar <strong>–</strong>, o governo fe<strong>de</strong>ral tinha 113 bilhões <strong>de</strong> reais nesses títulos cambiais,<br />

30% <strong>de</strong> sua dívida mobiliária interna. Apenas um mês antes, esse percentual era <strong>de</strong><br />

21%. Fato similar ocorreu a partir <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2002, quando novamente o dólar se<br />

valorizou, indo <strong>de</strong>sta vez da casa <strong>de</strong> 2,5 reais para perto <strong>de</strong> 4 reais. Títulos fe<strong>de</strong>rais e<br />

contratos do BC, ao final <strong>de</strong> agosto, protegiam então 217 bilhões <strong>de</strong> reais.<br />

Em conseqüência <strong>de</strong>ssa política <strong>de</strong> proteção do gran<strong>de</strong> capital, a dívida pública<br />

líquida explodiu. De 1994 a 1998, como po<strong>de</strong>-se ver no gráfico, a dívida interna bruta<br />

vinha crescendo. Mas o governo tinha dólares <strong>de</strong> reservas que compensavam esse<br />

crescimento. Em maio <strong>de</strong> 1997, a dívida pública líquida atingiu o mais baixo patamar<br />

dos anos noventa, ficou em 27% do PIB. Mas, a partir <strong>de</strong> então cresce<br />

espetacularmente. O efeito dos altos juros e a queda das reservas internacionais<br />

fizeram aparecer um problema que <strong>FHC</strong> pretendia manter longe dos olhares do povo,<br />

que se preparava para ir às urnas. Já em <strong>de</strong>zembro daquele ano, a dívida líquida do<br />

setor público chegou a 33,2%, e cresceu ano a ano para em setembro <strong>de</strong> 2002<br />

estourar a casa <strong>de</strong> 63% <strong>de</strong> todas as riquezas produzidas pelo país.<br />

O problema da dívida não se resume ao seu tamanho. Diversos países têm um<br />

grau <strong>de</strong> endividamento muito maior. Mas poucos têm uma dívida tão cara e com<br />

vencimento tão concentrado. Para se ter noção do custo <strong>de</strong>ssa política <strong>de</strong> proteção do<br />

gran<strong>de</strong> capital basta verificar o relatório com o Resultado do Tesouro Nacional. Ele<br />

aponta que o custo médio da dívida mobiliária fe<strong>de</strong>ral (juros, <strong>de</strong>svalorização e outros<br />

encargos) em 2002 foi <strong>de</strong> 49% para o período janeiro-novembro.<br />

Estado mínimo<br />

Outro dado que <strong>de</strong>monstra que a dívida cresce para proteger o gran<strong>de</strong> capital é<br />

o saldo da conta única do Tesouro Nacional. Como já foi citado, esse saldo cresceu<br />

quase 6 vezes entre o início <strong>de</strong> 1997 e o final <strong>de</strong> 2002. Isso significa, como mostramos,<br />

que o governo emitiu muito mais títulos do que o necessário para pagar todas as suas


contas, mesmo incluindo as colossais <strong>de</strong>spesas com a dívida. Os títulos<br />

correspon<strong>de</strong>ntes aos reais não utilizados são usados pelo Banco Central para executar<br />

sua política monetária e cambial. A partir <strong>de</strong> 1998, além <strong>de</strong> proteger os gran<strong>de</strong>s<br />

capitalistas que tinham tomado empréstimos no exterior <strong>–</strong> entre os quais muitas<br />

multinacionais que usaram o dinheiro para a compra <strong>de</strong> estatais <strong>–</strong> as políticas<br />

monetária e cambial foram usadas para conter o consumo interno e gerar um saldo<br />

comercial alto para obter dólares e pagar os gran<strong>de</strong>s credores externos.<br />

Mas nem todo dinheiro do superávit po<strong>de</strong> ser utilizado para pagamentos da<br />

dívida. O primeiro, por uma questão legal. Uma parcela significativa dos superávits vem<br />

sendo produzida com recursos que a Constituição só permite que sejam gastos com<br />

outras <strong>de</strong>spesas. Em 2001, por exemplo, o superávit foi <strong>de</strong> 21,9 bilhões reais. Dois<br />

bilhões correspondiam no orçamento a recursos do Fundo da Pobreza, que gastou<br />

menos <strong>de</strong> 300 milhões ao longo do ano; outro bilhão pertencia à CPMF; 1,2 bilhão à<br />

educação; mais 1 bilhão à universalização das telecomunicações, para computadores e<br />

Internet que nunca chegaram às escolas e aos postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. O orçamento<br />

preparado para Lula, nesse sentido, vai além. Do superávit <strong>de</strong> 33 bilhões para 2003,<br />

quase 15 bilhões <strong>de</strong> reais, 44%, são <strong>de</strong> recursos vinculados. São verbas que não<br />

po<strong>de</strong>m ser simplesmente alocadas em pagamentos da dívida.<br />

A questão legal nunca foi um impedimento para <strong>FHC</strong>. De tempos em tempos, o<br />

governo editava medidas provisórias para <strong>de</strong>svincular os recursos <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>stinações<br />

legais e vinculá-las à dívida ou outra <strong>de</strong>spesa financeira (a última foi em agosto <strong>de</strong><br />

2002).<br />

O maior constrangimento para o pagamento da dívida é mesmo econômico.<br />

Num cenário recessivo, toda a ação da política monetária tem sido para diminuir a<br />

moeda em circulação, um efeito contrário ao que ocorre quando o Tesouro libera<br />

recursos para gastos sociais ou para liquidação da sua dívida. Sob a ótica monetarista,<br />

que dirige os rumos do país, pagar a dívida exigiria crescimento econômico <strong>–</strong><br />

crescimento que o Real não permite.<br />

Os sucessivos prejuízos do Banco Central, em sua política <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa do gran<strong>de</strong><br />

capital, tornaram-se tão significativos que, em 1997, por medida provisória, <strong>FHC</strong><br />

resolveu que, a partir <strong>de</strong> então, eles seriam assumidos integralmente pelo Tesouro. E,<br />

naturalmente, <strong>de</strong>veriam ser corrigidos antes <strong>de</strong> serem pagos. Em 30 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />

1998, o Tesouro arcou com 51,5 bilhões reais, a preços <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002. No<br />

período posterior, na gestão Armínio Fraga, <strong>de</strong> 1999 até novembro <strong>de</strong> 2002, eles já<br />

custaram outros 42,4 bilhões <strong>de</strong> reais ao Tesouro (em reais <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2002).<br />

Segundo o relatório que o BC apresentou ao Congresso, no segundo semestre<br />

<strong>de</strong> 2002, a dívida do setor público foi <strong>de</strong> 41,7% do PIB, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1998, para


58,1%, em junho <strong>de</strong> 2002. O pagamento <strong>de</strong> juros reais e a variação cambial são<br />

responsáveis por 86% <strong>de</strong>sse crescimento.<br />

Como vimos, no orçamento para 2003, os gastos com a dívida estão<br />

visivelmente subestimados. Dificilmente o dólar cairá ao nível fixado e os juros<br />

acompanharão a queda sugerida na lei orçamentária. Se o governo Lula for proteger os<br />

<strong>de</strong>vedores em dólar e manter a política <strong>de</strong> forjar o superávit primário a qualquer custo,<br />

como <strong>FHC</strong>, o que terá <strong>de</strong> fazer? Deverá fazer o mesmo que <strong>FHC</strong> praticou no fim do<br />

ano que passou. Um balanço realizado em meados <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro mostra que gran<strong>de</strong><br />

parte dos programas previstos no orçamento <strong>de</strong> 2002 não havia saído do papel. De um<br />

total <strong>de</strong> 26 bilhões <strong>de</strong> reais autorizados para a saú<strong>de</strong>, apenas 22 bilhões foram<br />

liberados. Na educação, em que a proteção constitucional é menor, os cortes foram<br />

mais significativos: um quarto dos recursos programados ficou retido. O governo é<br />

obrigado a gastar 4 bilhões <strong>de</strong> reais por ano do Fundo da Pobreza, que recebe 21% da<br />

CPMF arrecadada. No final <strong>de</strong> 2000, essas receitas somavam 4,2 bilhões reais e<br />

apenas 2,1 bilhões haviam sido liberados. Nem mesmo o crescimento da violência<br />

comoveu o governo: os programas <strong>de</strong> segurança pública somente utilizaram 63% do<br />

previsto. O <strong>de</strong>semprego também não mudou a política <strong>de</strong> cortes. Geração <strong>de</strong> emprego<br />

e renda, erradicação do trabalho escravo e formação profissional receberam 69% do<br />

total imaginado. Programas sem proteção constitucional foram literalmente<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rados por <strong>FHC</strong>. Os <strong>de</strong> saneamento liberaram apenas 2,26% das verbas<br />

previstas; os <strong>de</strong> infra-estrutura urbana, só 6,71%. Dessa forma, o Tesouro acabou por<br />

apresentar um resultado recor<strong>de</strong>. O superávit primário acumulado até novembro foi <strong>de</strong><br />

34,6 bilhões <strong>de</strong> reais.<br />

Mas algumas <strong>de</strong>spesas não po<strong>de</strong>m ser simplesmente cortadas. O governo não<br />

po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pagar uma aposentadoria já concedida, nem se esquecer <strong>de</strong> fazer um<br />

repasse obrigatório a um município. Essas <strong>de</strong>spesas precisam ser controladas antes<br />

<strong>de</strong> se formarem esses direitos. Entram em cena leis e medidas provisórias para<br />

diminuir direitos, restringir acessos... e gastar menos. Nas universida<strong>de</strong>s públicas, a<br />

falta <strong>de</strong> substituição dos professores que aposentaram e o corte sistemático <strong>de</strong> verbas,<br />

criaram uma situação <strong>de</strong> penúria. Baixos salários levaram pessoas com gran<strong>de</strong><br />

qualificação para os inúmeros cursos particulares que o governo licenciou sem a menor<br />

preocupação com a qualida<strong>de</strong>. No ensino fundamental, parte dos recursos vem do<br />

Fundo <strong>de</strong> Valorização do Magistério, <strong>de</strong> dinheiro público rateado entre estados e<br />

municípios <strong>de</strong> acordo com o número <strong>de</strong> alunos matriculados no ensino fundamental.<br />

Graças a uma manipulação no cálculo do valor mínimo por aluno, que <strong>de</strong>ve ser<br />

complementado pela União, o governo reduziu sua contribuição a menos <strong>de</strong> 1,4% do<br />

total <strong>de</strong> recursos.<br />

Na saú<strong>de</strong>, a aprovação da Emenda Constitucional nº 29, que <strong>de</strong>termina o<br />

mínimo <strong>de</strong> recursos mínimos a serem aplicados no setor, não solucionou o problema.


Antes <strong>de</strong> a Emenda surtir efeito, <strong>FHC</strong> referendou um parecer da Advocacia Geral da<br />

União que diminuiu os recursos para o setor em cerca <strong>de</strong> 2 bilhões <strong>de</strong> reais em 2003 e<br />

mais <strong>de</strong> 5 bilhões acumulados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2000.<br />

As <strong>de</strong>ficiências na saú<strong>de</strong> pública serviram para favorecer os serviços e os<br />

planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> privada. Na previdência, ocorreu o mesmo. Na reforma da<br />

previdência, por exemplo, o governo <strong>FHC</strong> inseriu no texto constitucional um teto para<br />

os benefícios previ<strong>de</strong>nciários, com um valor fixado em reais, na época, 10 salários<br />

mínimos. Decorridos apenas 4 anos, esse valor representa pouco mais <strong>de</strong> 7 salários<br />

mínimos. As limitações a direitos e a certeza <strong>de</strong> que esse valor vai se <strong>de</strong>teriorar ainda<br />

mais fizeram florescer os planos privados <strong>de</strong> previdência. São ações dirigidas com o<br />

nítido propósito <strong>de</strong> criar público cativo, refém dos interesses privados.<br />

Hoje quase 50 milhões <strong>de</strong> brasileiros trabalham sem registro, são autônomos,<br />

cooperativados ou <strong>de</strong>sempregados. Estão excluídos da cobertura previ<strong>de</strong>nciária e não<br />

têm como prover o próprio sustento quando forem obrigados pela velhice ou pelo<br />

<strong>de</strong>semprego a pararem <strong>de</strong> trabalhar.<br />

Reformas neoliberais<br />

No caso da previdência social, gran<strong>de</strong> parte do enorme déficit <strong>de</strong> hoje <strong>de</strong>ve-se<br />

ao elevado e crescente <strong>de</strong>semprego e a um número cada vez menor <strong>de</strong> contribuintes<br />

para os fundos públicos <strong>de</strong> previdência <strong>–</strong> nítida expressão do fracasso na política <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento econômico prometida por <strong>FHC</strong>. No seu governo, o país registrou as<br />

menores taxas <strong>de</strong> crescimento econômico e as maiores taxas <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego <strong>de</strong> sua<br />

história.<br />

O gran<strong>de</strong> contrato social prometido por <strong>FHC</strong> em seu discurso <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1994 no Senado <strong>–</strong> menos Estado, mais liberda<strong>de</strong> para o capital, mais<br />

<strong>de</strong>senvolvimento, tecnologia e melhores condições sociais <strong>–</strong> fracassou.<br />

O “príncipe dos sociólogos” fez sua escolha sobre quais contratos <strong>de</strong>veriam ser<br />

cumpridos integralmente. Enquanto insiste na completa manutenção dos contratos das<br />

dívidas interna e externa, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> alteração nos contratos anteriores ao seu governo<br />

que garantem aos trabalhadores direito a aposentadorias e pensões dignas, garantidas<br />

pelo Estado. A opção <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> foi pelo gran<strong>de</strong> capital.


Telecomunicações diante do oligopólio estrangeiro<br />

A privatização no setor <strong>de</strong> telecomunicações provocou gran<strong>de</strong>s perdas para o país: o nosso<br />

déficit comercial no setor explodiu e a pesquisa e o <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico foram<br />

<strong>de</strong>struídos.<br />

Qualquer brasileiro mais ou menos informado já ouviu dizer mais <strong>de</strong> uma vez<br />

que a venda do sistema <strong>de</strong> empresas da Telebrás, que correspon<strong>de</strong> à privatização das<br />

telecomunicações no Brasil, foi um sucesso. E que a prova do sucesso da privatização<br />

das telecomunicações brasileiras é o fato <strong>de</strong> que ela ampliou o número <strong>de</strong> telefones no<br />

país <strong>de</strong> 20 para 48 milhões. Verda<strong>de</strong> ou mentira? Mentira, que por ser tantas vezes<br />

repetida, é aceita como verda<strong>de</strong>.<br />

O Brasil tinha 48 milhões <strong>de</strong> linhas telefônicas fixas instaladas no início <strong>de</strong> 2002,<br />

mas 11,5 milhões <strong>de</strong>ssas linhas não correspondiam a telefones fixos efetivamente<br />

instalados nas casas das pessoas, nos escritórios, nas empresas. Isso porque a re<strong>de</strong><br />

telefônica é construída por centrais <strong>de</strong> comutação, com suas linhas <strong>de</strong> acesso, mas<br />

nem sempre esses acessos correspon<strong>de</strong>m a linhas telefônicas efetivas, a cabos<br />

conectados a aparelhos <strong>de</strong> usuários. Como se po<strong>de</strong> ver pelos números oficiais, as<br />

companhias telefônicas privadas investiram na implantação <strong>de</strong> centrais <strong>de</strong> comutação<br />

mas não investiram nas mesmas proporções na instalação <strong>de</strong> cabos, fios e terminais<br />

que fizessem funcionar a capacida<strong>de</strong> disponível.<br />

O motivo para a ociosida<strong>de</strong> das linhas é a falta <strong>de</strong> mercado <strong>–</strong> no fundo, a<br />

baixíssima renda do povo brasileiro. Em 2001, por exemplo, a Telemar anunciou ter<br />

conectado 3 milhões <strong>de</strong> linhas telefônicas novas. Não anunciou, no entanto, que, no<br />

mesmo período, cortou 2,3 milhões <strong>de</strong> linhas por falta <strong>de</strong> pagamento. Para o conjunto<br />

das operadoras, apenas 30% das linhas são lucrativas; as outras 70% mal empatam as<br />

receitas das contas telefônicas com as <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong> operação e manutenção. Como os<br />

preços da telefonia são muito altos, as pessoas não po<strong>de</strong>m usá-las. Quando <strong>FHC</strong><br />

assumiu, a tarifa da assinatura resi<strong>de</strong>ncial era <strong>de</strong> 44 centavos <strong>de</strong> real. Em fins <strong>de</strong> 2001,


era <strong>de</strong> 14,11 reais <strong>–</strong> um aumento <strong>de</strong> quase 1.500%! O pulso resi<strong>de</strong>ncial era <strong>de</strong> 2<br />

centavos <strong>de</strong> real; passou a 6,6 centavos <strong>de</strong> real, 3,3 vezes mais. Déficit comercial<br />

As telecomunicações privatizadas provocaram além disso um gran<strong>de</strong> déficit no<br />

comércio externo do país por trazerem a maior parte dos seus equipamentos e<br />

tecnologias <strong>de</strong> maior valor do exterior. A Telebrás estatal, <strong>de</strong> meados dos anos 70 até<br />

os anos 90, graças ao seu gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra e a uma política industrial <strong>de</strong>finida,<br />

tinha incentivado a formação <strong>de</strong> uma indústria brasileira <strong>de</strong> equipamentos, que<br />

empregava cerca <strong>de</strong> 100 mil pessoas e tinha faturamento em torno dos 300 milhões <strong>de</strong><br />

dólares anuais. Desenvolvera inclusive, no seu centro <strong>de</strong> pesquisa, o CPqD em<br />

Campinas (on<strong>de</strong> tinha 1.800 pesquisadores), uma tecnologia original: as centrais<br />

Trópico <strong>de</strong> comutação digital.<br />

A liquidação da Telebrás arrasou o CPqD, hoje com menos <strong>de</strong> um terço <strong>de</strong> seus<br />

pesquisadores, que sobrevive com pequenos serviços para as operadoras que aqui se<br />

instalaram. Em conseqüência, o déficit comercial do setor voltou à casa dos 700<br />

milhões <strong>de</strong> dólares em valores <strong>de</strong> 1999 <strong>–</strong> que correspon<strong>de</strong> ao déficit <strong>de</strong> meados dos<br />

anos 70, quando o país importava praticamente <strong>de</strong> tudo.<br />

Essa política <strong>de</strong> abertura comercial <strong>de</strong>scontrolada do setor teve outras<br />

implicações. O país passou a importar praticamente um novo tipo <strong>de</strong> bem <strong>de</strong> consumo,<br />

o telefone celular, que não tem mais que 5% <strong>de</strong> seus componentes fabricados aqui. O<br />

Brasil não dispõe <strong>de</strong> nenhuma fábrica dos eletro-eletrônicos indispensáveis aos<br />

celulares e a praticamente todos os equipamentos industriais mo<strong>de</strong>rnos. O nossos<br />

déficit comercial nesse setor chegou a 8 bilhões <strong>de</strong> dólares em 2000 e só passou a cair<br />

em função da crise na área <strong>de</strong> telecomunicações.<br />

As empresas que compraram os pedaços do sistema Telebrás usaram em boa<br />

parte dólares emprestados. A MCI, americana, por exemplo, que comprou a Embratel,<br />

tomou no exterior perto <strong>de</strong> 1 bilhão <strong>de</strong> dólares, na época em que a moeda americana<br />

estava barata, valendo cerca <strong>de</strong> um real. Hoje, com o dólar a 3,5 reais, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

reais necessários para pagar os dólares emprestados mais que triplicou e praticamente<br />

quebrou a empresa, que já está falida também no exterior.<br />

Sem concorrência (*)


A concorrência que se prometeu no setor também nunca existiu. As chamadas<br />

empresas-espelho das três gran<strong>de</strong>s operadoras <strong>de</strong> telefonia fixa confessam que se<br />

dispõem apenas a oferecer serviços sofisticados para famílias ricas e empresas em<br />

algumas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s brasileiras. A Vésper, por exemplo, que seria a concorrente<br />

da Telemar nos 3.052 municípios em que a fixa opera, está presente apenas em 112<br />

cida<strong>de</strong>s.<br />

O investimento no setor atualmente não é maior do que antes da privatização.<br />

Entre 1994 e 1995, com a Telebrás, os investimentos cresceram 38%. Entre 1995 e<br />

1996, cresceram 47%. Em 1997, já preparando a privatização e sob gran<strong>de</strong> pressão<br />

dos credores externos, o governo <strong>FHC</strong> limitou os investimentos da Telebrás em 7<br />

bilhões <strong>de</strong> dólares. As empresas privadas só registraram crescimento significativo <strong>de</strong><br />

seus investimentos, <strong>de</strong> 35%, <strong>de</strong> 1999 para 2000. De 2000 para 2001 o crescimento já<br />

foi menor e em 2002 houve uma queda no montante dos investimentos. O número <strong>de</strong><br />

empregos na área <strong>de</strong> telecomunicações também <strong>de</strong>sabou: mais <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> dos 83 mil<br />

trabalhadores contratados quando o sistema era estatal foi <strong>de</strong>mitida.<br />

A quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> telefones instalados cresceu após a privatização, embora a um<br />

ritmo não muito superior ao havido, por exemplo, entre 1994 e 1998, sob a Telebrás <strong>–</strong> o<br />

número <strong>de</strong> celulares, por exemplo, foi <strong>de</strong> 800 mil para 7,4 milhões nesse período; e <strong>de</strong><br />

7,4 milhões para 28,7 milhões entre 1978 e 2001. Mas os serviços continuaram<br />

praticamente tão concentrados como estavam antes. A média <strong>de</strong> telefones fixos por<br />

100 habitantes no país é <strong>de</strong> 21, contra 12 telefones por 100 habitantes antes da<br />

privatização. Entretanto, mais <strong>de</strong> 90% dos municípios estão abaixo <strong>de</strong>ssa média e<br />

perto <strong>de</strong> 20% tem menos <strong>de</strong> 6 telefones por 100 habitantes, entre esses, alguns<br />

municípios das gran<strong>de</strong>s regiões metropolitanas. A maior parte do país ainda não conta<br />

com serviços <strong>de</strong> telefonia celular.<br />

Hoje, os próprios empresários <strong>de</strong> telecomunicações sustentam que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento que a privatização implantou no setor precisa ser revisto. De um<br />

modo geral, falam em reduzir o número <strong>de</strong> operadoras, das cerca <strong>de</strong> 50 atuais para<br />

menos <strong>de</strong> meia dúzia. Ou seja, que o mo<strong>de</strong>lo propagan<strong>de</strong>ado como a gran<strong>de</strong><br />

realização das privatizações brasileiras fracassou e precisa ser substituído por outro.<br />

* Este texto foi feito com base no folheto O Sucesso do Fracasso, produzido pelo Comitê<br />

<strong>de</strong> Telecomunicações do Distrito Fe<strong>de</strong>ral, sob coor<strong>de</strong>nação dos engenheiros Brígido<br />

Ramos, José Guimarães Neto e Nilberto <strong>Miranda</strong>. E com a consultoria do professor<br />

Marcos Dantas.


O gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre da privatização do setor elétrico<br />

A privatização no setor foi um fiasco, provocou um racionamento <strong>de</strong> sete meses e<br />

<strong>de</strong>sorganizou um sistema <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> energia barata e limpa, sem paralelo no mundo.<br />

O Mercado Atacadista <strong>de</strong> Energia (MAE) era para ter sido a peça-chave da<br />

política <strong>de</strong> privatização adotada pelo governo Fernando Henrique para o setor <strong>de</strong><br />

energia elétrica. Depois <strong>de</strong> privatizadas todas as empresas, o Mercado regularia o<br />

preço e os investimentos do setor: com a falta ou a perspectiva <strong>de</strong> escassez <strong>de</strong><br />

energia, os preços subiriam e os investimentos seriam atraídos para a área. Com<br />

sobra, os preços caíram e os investimentos seriam contidos.<br />

Po<strong>de</strong>-se contar o fracasso <strong>de</strong>ssa política por quatro fatos:<br />

1) houve o apagão nacional e um racionamento <strong>de</strong> energia por sete meses, a partir <strong>de</strong><br />

junho <strong>de</strong> 2001;<br />

2) anunciou-se a extinção do MAE e a criação <strong>de</strong> um MBE (Mercado Brasileiro <strong>de</strong><br />

Energia), não mais livre, mas regulado;<br />

3) em 7 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2002, o MAE foi recriado com nova direção, sem duas <strong>de</strong>zenas<br />

<strong>de</strong> empresários que supostamente lhe dariam o caráter autônomo;<br />

4) por último, no final <strong>de</strong> 2002, as geradoras <strong>de</strong> energia, as distribuidoras, o governo<br />

que saiu e o que entrou fizeram acordo para acertar parte das contas <strong>de</strong> parcela das<br />

operações feitas no MAE, graças, essencialmente, a uma verba <strong>de</strong> 2,3 bilhões <strong>de</strong> reais<br />

do BNDES, que já havia liberado 5,2 bilhões <strong>de</strong> reais com propósito semelhante. O<br />

restante da bagunça do MAE foi <strong>de</strong>ixado para o próximo governo resolver, no começo<br />

<strong>de</strong> 2003, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma auditoria.<br />

Os problemas atuais do setor elétrico são, em gran<strong>de</strong> parte, responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>FHC</strong>. O sistema estatal <strong>de</strong> energia já havia sido <strong>de</strong>bilitado, a partir do final dos anos 70<br />

e começo dos 80, por uma <strong>de</strong>scabida política <strong>de</strong> preços e <strong>de</strong> captação <strong>de</strong> recursos<br />

externos. Mas foi <strong>FHC</strong> que promoveu o gran<strong>de</strong> salto para o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mercado. Em 14<br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1994, ao <strong>de</strong>spedir-se do Senado, já presi<strong>de</strong>nte eleito, Fernando Henrique


prometera “dividir com capitais privados os pesados investimentos na expansão da<br />

infra-estrutura econômica. Numa estimativa conservadora do crescimento da<br />

economia, o Brasil terá <strong>de</strong> investir 20 bilhões <strong>de</strong> reais por ano nos próximos quatro<br />

anos, para que não surjam gargalos na oferta <strong>de</strong> energia, transportes e<br />

telecomunicações”. A entrega do setor à iniciativa privada, afirmava, atrairia novos<br />

investimentos, que o Estado não po<strong>de</strong>ria fazer. As tarifas seriam reduzidas pela<br />

concorrência.<br />

No primeiro ano do governo <strong>FHC</strong> dois <strong>de</strong>cretos cassaram 33 concessões <strong>de</strong><br />

hidrelétricas concedidas a estatais fe<strong>de</strong>rais e estaduais. A seguir, ainda em 1995, viria<br />

o Decreto nº 1.503 possibilitando a privatização <strong>de</strong> Furnas, Chesf, Eletrosul e<br />

Eletronorte. A maioria das distribuidoras era formada por empresas estaduais. Os<br />

estados, endividados, sofreram pressão do governo, que começou a privatização por<br />

essas empresas, em troca <strong>de</strong> empréstimos e facilida<strong>de</strong>s.<br />

Depois <strong>de</strong> começar a ven<strong>de</strong>r, o governo <strong>de</strong>cidiu fazer a mo<strong>de</strong>lagem do setor.<br />

Em 1996, foi contratado o consórcio li<strong>de</strong>rado pela inglesa Coopers & Lybrand<br />

Consultant Ltd para elaborar o novo mo<strong>de</strong>lo. Apresentado em junho <strong>de</strong> 1997, tinha a<br />

proposta do MAE como uma <strong>de</strong> suas peças centrais. Des<strong>de</strong> 1997, no entanto, havia<br />

um agravamento das contas do governo <strong>–</strong> que, como se sabe, quebrou em meados <strong>de</strong><br />

1998 e foi socorrido pelo FMI no final daquele ano. Por esse motivo, as estatais tiveram<br />

seus investimentos contidos. Depois do acordo com o Fundo, a contenção foi ainda<br />

mais ampla.<br />

Nesse contexto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>de</strong> 1999, começou a surgir a perspectiva <strong>de</strong> falta<br />

<strong>de</strong> energia. Em 2000, o governo apresentou uma proposta <strong>de</strong> emergência, o Programa<br />

Prioritário <strong>de</strong> Termeletricida<strong>de</strong> (PPT), que previa a construção <strong>de</strong> 53 usinas térmicas,<br />

que gerariam energia uns 40% mais cara que a do sistema existente, 95% baseado em<br />

hidrelétricas, mas que <strong>de</strong>veriam entrar em funcionamento rapidamente, para prevenir o<br />

<strong>de</strong>sastre <strong>–</strong> hoje, o plano tem apenas 25 usinas, nove em operação, cinco em fase <strong>de</strong><br />

testes e 11 em construção.<br />

Apesar <strong>de</strong> todos os indicadores <strong>de</strong> esvaziamento dos reservatórios das<br />

hidréletricas, <strong>FHC</strong> e seu governo negariam até fevereiro <strong>de</strong> 2001 que a crise que se<br />

avizinhava. Resultado: um racionamento que durou <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2001 a fevereiro <strong>de</strong><br />

2002 e que só havia sido registrado no país à época da Segunda Guerra.<br />

O sistema brasileiro <strong>de</strong> empresas estatais <strong>de</strong> energia elétrica, que <strong>FHC</strong><br />

preten<strong>de</strong>u <strong>de</strong>smontar, e em parte o fez, é uma conquista <strong>de</strong> muitos anos. O projeto da<br />

Eletrobrás foi enviado ao Congresso por Getúlio Vargas em 1954, mas somente sete<br />

anos <strong>de</strong>pois, já no governo Jânio Quadros, com o apoio da Frente Parlamentar<br />

Nacionalista, a estatal foi criada. Mesmo assim, foi preciso esperar o governo João


Goulart para, em 6 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1962, instituir, <strong>de</strong> fato, a empresa que iniciou sua<br />

função <strong>de</strong> holding das estatais fe<strong>de</strong>rais que já existiam: Furnas e Chesf. Foi na ditadura<br />

militar, ao longo da década <strong>de</strong> 1960, que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão do setor elétrico brasileiro<br />

<strong>de</strong>slanchou: o planejamento central foi aprimorado, a estrutura fortalecida, novas<br />

tecnologias <strong>de</strong>senvolvidas e o esquema <strong>de</strong> financiamento foi mais bem organizado.<br />

Cláusulas secretas<br />

Em 1962 a capacida<strong>de</strong> geradora do país alcançava 5.728.800 KW, sendo 3,5<br />

milhões KW <strong>de</strong> origem privada, que já atuava no país há 60 anos. Em 1995,<br />

gerávamos 60 milhões KW. Em 33 anos, o Estado brasileiro gerou 15 vezes mais do<br />

que a iniciativa privada em 60 anos.<br />

O governo <strong>de</strong> Collor <strong>de</strong> Melo, por meio da Lei 8.031, <strong>de</strong> 1990, já havia criado o<br />

Plano Nacional <strong>de</strong> Desestatização. Com o impeachment <strong>de</strong> Collor, Itamar Franco<br />

resistiu à privatização do setor. Mais tar<strong>de</strong>, como governador <strong>de</strong> Minas Gerais, Itamar<br />

iria enfrentar a americana AES na Justiça para retomar o controle acionário da Cemig<br />

para o estado. Com a venda da Escelsa (ES) e da Light (RJ), no começo <strong>de</strong> seu<br />

governo, <strong>FHC</strong> <strong>de</strong>u início à privatização das distribuidoras.<br />

O MAE começou a operar em setembro <strong>de</strong> 2000, na conjuntura <strong>de</strong> pré-apagão.<br />

Os seus preços dispararam com o racionamento e estavam em 684 reais por MWh em<br />

junho <strong>de</strong> 2001, quando o governo foi obrigado a intervir, congelando o valor da tarifa.<br />

Além disso, a administração do MAE estava <strong>de</strong>smoralizada em função <strong>de</strong> gastos<br />

abusivos, entre eles <strong>de</strong>spesas com salários e assessorias.<br />

Somente com o racionamento tornou-se amplamente conhecida a cláusula dos<br />

contratos da privatização que garantia lucros às distribuidoras no caso da falta <strong>de</strong><br />

energia. Todos eles têm um Anexo V que prevê que as geradoras (97% estatais)<br />

<strong>de</strong>veriam pagar às distribuidoras (privatizadas), a preços do MAE, a energia contratada<br />

que <strong>de</strong>ixasse <strong>de</strong> ser fornecida. Como as quantias envolvidas ficavam na casa <strong>de</strong> duas<br />

<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> bilhões <strong>de</strong> reais e quebrariam as geradoras, foi feito um acordo entre as<br />

empresas e o governo. Criou-se uma tarifa extra <strong>de</strong> energia que cobriria o montante a<br />

ser pago às distribuidoras ao longo <strong>de</strong> alguns anos. E o BNDES foi escalado para<br />

adiantar o dinheiro aos <strong>de</strong>vedores. A Medida Provisória 14, editada pelo governo <strong>FHC</strong><br />

para socorrer as distribuidoras <strong>de</strong> energia elétrica, gerou condições para transferir dos<br />

consumidores às concessionárias <strong>de</strong> energia até 24 bilhões reais.


As medidas provisórias 59 e 60, aprovadas em 15 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2002, também<br />

foram usadas para beneficiar as elétricas. Sete bilhões <strong>de</strong> reais foram retirados do<br />

superávit primário <strong>de</strong> 2001, <strong>de</strong>svinculando recursos das mais diversas fontes, para<br />

favorecê-las.<br />

Embora o principal argumento apresentado pelo governo para justificar o seguro<br />

antiapagão seja compensar as empresas do setor por presumíveis perdas, causadas<br />

pelo racionamento do ano passado, quase todas tiveram seus balanços publicados<br />

com lucros. Segundo o Banco Central, entre janeiro e julho <strong>de</strong> 2002, as distribuidoras e<br />

geradoras privadas enviaram ao exterior, para suas controladoras, um total <strong>de</strong> 918<br />

milhões <strong>de</strong> dólares contra 99 milhões <strong>de</strong> dólares no primeiro semestre <strong>de</strong> 2001.<br />

Por enquanto, a ameaça <strong>de</strong> um novo racionamento está afastada pela queda do<br />

consumo. No final <strong>de</strong> 2002, a Eletrobrás estimou que o consumo resi<strong>de</strong>ncial <strong>de</strong> energia<br />

elétrica anterior ao apagão somente será retomado em 2008. Em 2000, antes do<br />

racionamento, cada consumidor resi<strong>de</strong>ncial gastava em média 173 KWh por mês. Hoje,<br />

a média <strong>de</strong> consumo mensal é 22,5% menor <strong>–</strong> 134 KWh por mês. Os hábitos<br />

mudaram, mas foi principalmente o preço proibitivo das tarifas que impediu a retomada<br />

do consumo. O exemplo da Light é significativo: na faixa <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong> baixa renda,<br />

<strong>de</strong> zero a 30 KWh, a variação da tarifa entre janeiro <strong>de</strong> 1995 e setembro <strong>de</strong> 2002 foi <strong>de</strong><br />

1.104,41%. Quem consome menos foi mais penalizado. De 31 a 100 KWh a elevação<br />

foi <strong>de</strong> 404,17%. Na faixa <strong>de</strong> 0 a 100 KWh houve um aumento médio <strong>de</strong> 752,5%, contra<br />

uma inflação (IPC-FIPE) <strong>de</strong> 75,99%.<br />

Reduzir beneficios e favorecer a previdência<br />

privada<br />

A reforma da previdência <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> tinha dois objetivos: reduzir gastos, cortando direitos, e<br />

favorecer o o gran<strong>de</strong> capital, liberando clientes para a previdência privada.<br />

Analisar a reforma da previdência <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> é importante para se <strong>de</strong>svendar sua<br />

política e suas reais priorida<strong>de</strong>s. Alterar as regras <strong>de</strong> um sistema previ<strong>de</strong>nciário não é<br />

tarefa simples. Para que uma reforma liberal fosse feita com apoio <strong>de</strong> setores<br />

importantes da socieda<strong>de</strong> foi preciso distorcer informações, <strong>de</strong>sacreditar o sistema


vigente e transformar o sonho <strong>de</strong> várias gerações em incertezas. Essa ameaça ao<br />

futuro é que estigmatizou a previdência pública como algo inviável. Assim, as reformas<br />

parecem inevitáveis.<br />

A propaganda oficial, com o apoio sistemático dos meios <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong><br />

setores da intelectualida<strong>de</strong>, utilizou-se <strong>de</strong> dados da crise do sistema, mas escamoteou<br />

o <strong>de</strong>bate e produziu supostas verda<strong>de</strong>s sem que os reais problemas tenham sido<br />

abordados.<br />

A reforma, portanto, tinha objetivo certo e sabido. Por <strong>de</strong>trás da crise, mais do<br />

que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> resolver os problemas da previdência estiveram os compromissos do<br />

governo <strong>FHC</strong> <strong>de</strong> entregar ao gran<strong>de</strong> capital financeiro os trabalhadores que têm renda<br />

suficiente para arcar com os custos da previdência privada. Pretendia-se ainda reduzir<br />

os gastos, cortando direitos. O <strong>de</strong>bate ficou restrito à questão fiscal. Foi abandonado o<br />

papel histórico da previdência, cobrir riscos <strong>de</strong> longo e curto prazos (velhice, morte,<br />

invali<strong>de</strong>z, <strong>de</strong>semprego, doenças, maternida<strong>de</strong> e aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trabalho).<br />

Toda a questão social, em que se sustenta numa proposta <strong>de</strong> previdência<br />

pública, redistributiva e solidária foi relegada para prevalecer apenas o <strong>de</strong>bate fiscal.<br />

Foi, assim, esquecida sua função fundamental <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> renda para os setores<br />

mais pobre do campo e das cida<strong>de</strong>s, que têm garantido o recebimento <strong>de</strong> um salário<br />

mínimo.<br />

A ausência do <strong>de</strong>bate e a pesada campanha i<strong>de</strong>ologizada em torno do tema,<br />

levou a um cenário <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinformação, que escon<strong>de</strong>u as razões maiores da crise. Em<br />

particular, a perversa conjugação da queda da renda média do brasileiro, com o<br />

<strong>de</strong>semprego, a precarização das relações <strong>de</strong> trabalho, o incremento da informalida<strong>de</strong><br />

da economia e as renúncias, isenções fiscais e facilida<strong>de</strong>s concedidas a sonegadores e<br />

fraudadores <strong>de</strong> receitas da previdência.<br />

Apoiado na insegurança gerada pela campanha contra a previdência pública,<br />

<strong>FHC</strong> passou a editar uma série <strong>de</strong> medidas provisórias cortando direitos e ampliando<br />

exigências para a obtenção <strong>de</strong> benefícios, o que dificultou e retardou a aposentadoria<br />

<strong>de</strong> muitos. Já no começo <strong>de</strong> seu primeiro mandato, enviou ao Congresso uma emenda<br />

constitucional para modificar mais profundamente o mo<strong>de</strong>lo previ<strong>de</strong>nciário brasileiro,<br />

abrangendo a previdência dos trabalhadores do setor privado e a dos servidores<br />

públicos. Durante os seus 8 anos <strong>de</strong> governo, ocorreram muitas modificações, sempre<br />

para viabilizar a previdência privada e reduzir gastos sociais.<br />

Sob a orientação do Banco Mundial, diversos países da América Latina<br />

realizaram, com variações específicas, profundas mudanças nos sistemas <strong>de</strong><br />

segurida<strong>de</strong> social. A reforma pioneira foi implementada na ditadura <strong>de</strong> Pinochet, no<br />

Chile <strong>–</strong> a mais radical das alterações. Muitas nações mudaram <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo público


em direção a outro privado, <strong>de</strong> contribuição <strong>de</strong>finida. Assim fizeram países como<br />

Argentina, Bolívia, Colômbia, Peru, Uruguai. Na imensa maioria das vezes o alvo<br />

<strong>de</strong>clarado foi o <strong>de</strong> equacionar problemas fiscais, afirmando que uma nova realida<strong>de</strong><br />

econômica e <strong>de</strong>mográfica resultava em escassas fontes <strong>de</strong> financiamento para<br />

sustentar um alegado excesso <strong>de</strong> benefícios. Ocultavam também o real sentido das<br />

reformas, que era a privatização do sistema.<br />

Seguindo esse mol<strong>de</strong> <strong>de</strong> reformulação, no Brasil <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> todos os direitos<br />

ficaram sujeitos ao pressuposto do equilíbrio financeiro e atuarial. Um <strong>de</strong>staque <strong>de</strong>ssa<br />

mudança foi a introdução do fator previ<strong>de</strong>nciário, que rebaixa as aposentadorias<br />

daqueles que buscam esse benefício antes dos 60 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Atingir esse<br />

equilíbrio entre receitas e <strong>de</strong>spesas passou a ser a principal diretriz. Mas, pouco ou<br />

quase nada se disse sobre as causas <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sequilíbrio, nem muito menos sobre<br />

quais receitas e <strong>de</strong>spesas <strong>de</strong>veriam ser levadas em conta para apuração do resultado.<br />

Para viabilizar a privatização da cobertura previ<strong>de</strong>nciária, as reformas buscavam<br />

criar um mercado cativo para os fundos <strong>de</strong> previdência complementar. A previdência<br />

existe para satisfazer uma necessida<strong>de</strong> futura e é preciso acreditar que ela proverá o<br />

sustento na ida<strong>de</strong> avançada ou diante <strong>de</strong> infortúnio. Assim, reafirmou-se<br />

continuadamente a falência da previdência social, colocando em dúvida a capacida<strong>de</strong><br />

do sistema <strong>de</strong> assegurar o futuro, ao mesmo tempo em que medidas concretas<br />

levaram a previdência pública a um <strong>de</strong>scrédito. Alteraram-se as regras, <strong>de</strong>srespeitando<br />

direitos e frustando a expectativa <strong>de</strong> milhões; os aposentados viram seus recursos<br />

minguarem diante <strong>de</strong> reajustes insuficientes para manter seu po<strong>de</strong>r aquisitivo,<br />

principalmente os que ganham mais do que o salário mínimo. O texto constitucional,<br />

modificado, passou a registrar, em moeda corrente, um valor máximo para os<br />

benefícios. Em escassos 60 meses os 10 salários mínimos iniciais foram reduzidos<br />

para pouco mais <strong>de</strong> 7 mínimos. Levando, assim, o teto a se aproximar do mínimo. Essa<br />

realida<strong>de</strong> induz àqueles que querem e po<strong>de</strong>m buscar segurança em um benefício<br />

previ<strong>de</strong>nciário maior a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da a<strong>de</strong>são aos fundos <strong>de</strong> pensão. Tendência privatista<br />

Mas, para aprofundar a tendência privatista, o mercado <strong>de</strong> previdência privada<br />

precisava também atingir os servidores públicos. Os trabalhadores do setor privado,<br />

quer seja pela baixa média <strong>de</strong> renda ou pela alta rotativida<strong>de</strong>, não asseguram os lucros<br />

que as seguradoras preten<strong>de</strong>m. Foi preciso então que toda a incerteza e a afronta aos<br />

direitos atingissem os servidores públicos, em especial os <strong>de</strong> maior renda. A EC nº 20<br />

possibilita que o teto <strong>de</strong> benefícios do regime geral seja estendido aos servidores,<br />

acabando com a integralida<strong>de</strong> e a parida<strong>de</strong>. Assim, o governo enviou um projeto <strong>de</strong> lei<br />

complementar (PLP nº 9, <strong>de</strong> 1999) para implementar essa diretriz. Mas, como esse teto<br />

apenas atinge os novos servidores, <strong>FHC</strong> <strong>de</strong>ixou na agenda do próximo governo a<br />

continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas reformas. Por isso, o acordo com o FMI <strong>de</strong> fins <strong>de</strong> 2002 intima os<br />

candidatos a continuarem a reforma <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>.


O governo Lula retoma a ban<strong>de</strong>ira da reforma da previdência. A socieda<strong>de</strong>, que<br />

alimentou e ainda nutre o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mudanças, precisa mobilizar-se para impor uma<br />

nova pauta, fugindo das reformas ditadas pelos interesses do gran<strong>de</strong> capital. É preciso<br />

re<strong>de</strong>scobrir sua própria agenda <strong>de</strong> mudanças, voltada para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico e social, para a repartição da renda, a valorização do trabalho e a dignida<strong>de</strong><br />

humana.<br />

A previdência precisa <strong>de</strong> mudanças sim. Mas sob novo signo. Mudanças que<br />

resgatem o seu prestígio e restabeleçam a confiança do trabalhador no seu sistema <strong>de</strong><br />

proteção social. Um aspecto fundamental é <strong>de</strong>sconstruir gran<strong>de</strong> parte das mudanças<br />

introduzidas por <strong>FHC</strong>. Mudar <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> é estabelecer um teto <strong>de</strong> benefícios que,<br />

expresso em salários mínimos, dê ao trabalhador a segurança <strong>de</strong> uma aposentadoria<br />

digna; é recuperar o valor das aposentadorias; é assegurar a cobertura a 60% dos<br />

trabalhadores do setor privado, que, hoje, pelo <strong>de</strong>semprego, informalida<strong>de</strong> ou<br />

<strong>de</strong>sconfiança, estão afastados da cobertura previ<strong>de</strong>nciária.<br />

Para regimes próprios da previdência, é necessário fugir da lógica insana <strong>de</strong><br />

Collor e <strong>FHC</strong> <strong>–</strong> eles nas costas dos servidores todos os males do Esta do nacional. É<br />

preciso, sim, corrigir distorções <strong>de</strong>sses regimes previ<strong>de</strong>nciários e respeitar as<br />

diferenças entre as relações que o trabalhador mantém com a empresa privada e<br />

aquelas que existe entre o servidor e a administração pública.<br />

Estamos convencidos <strong>de</strong> que é na mobilização popular, no <strong>de</strong>spertar da força<br />

criadora do povo brasileiro que resi<strong>de</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> êxito do governo <strong>de</strong> Lula.<br />

Cabe ao movimento social influenciar executivo, legislativo e judiciário, exigir reformas<br />

afinadas com os interesses populares. Nesse caminho, o <strong>de</strong> colocar em marcha novos<br />

i<strong>de</strong>ários, uma importante tarefa é <strong>de</strong>smitificar as mentiras, levar ao movimento social<br />

organizado uma visão que <strong>de</strong>sconstitua dogmas e estigmas impostos pela hegemonia<br />

i<strong>de</strong>ológica e política dos mercados e dos interesses do gran<strong>de</strong> capital.<br />

Abertura <strong>de</strong>scontrolada e <strong>de</strong>pendência externa<br />

A dívida interna cresceu seis vezes e a externa saiu <strong>de</strong> 100 bilhões para 250 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />

Setores inteiros foram <strong>de</strong>snacionalizados e o país ficou completamente vulnerável.


No último ano, o oitavo, o “mercado” e os financistas <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> espalharam o<br />

terror com o argumento <strong>de</strong> que a única alternativa ao caos seria a continuida<strong>de</strong> da<br />

política econômica.<br />

A crescente <strong>de</strong>pendência externa da economia do país é uma das gran<strong>de</strong>s<br />

<strong>herança</strong>s do governo <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardoso. Essa <strong>de</strong>pendência está<br />

diretamente ligada a uma estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, baseada nos capitais<br />

externos e nas empresas transnacionais, e à forma <strong>de</strong>scontrolada <strong>de</strong> inserção <strong>de</strong><br />

nossa economia na chamada globalização, seja no seu aspecto comercial ou<br />

financeiro.<br />

A abertura comercial, por um lado, aumentou o consumo interno <strong>de</strong> bens<br />

importados. No período <strong>de</strong> 1994 a 1998 <strong>–</strong> quando o real ficou muito valorizado frente<br />

ao dólar <strong>–</strong> a abertura comercial foi mais prejudicial, porque produtos importados<br />

passaram a ficar artificialmente mais baratos do que os produzidos internamente, o que<br />

levou ao fechamento <strong>de</strong> inúmeras pequenas e médias indústrias nacionais. Até 1998, o<br />

déficit comercial foi crescente, tendo acumulado, entre 1995 e 2001, um saldo negativo<br />

<strong>de</strong> 25,4 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />

Mas a abertura comercial também fez com que parte significativa da produção<br />

intermediária <strong>de</strong> bens (insumos e matérias-primas), fosse substituída por importações.<br />

Isso mudou a matriz produtiva da economia. Os produtos industriais feitos aqui<br />

começaram a ter crescente participação <strong>de</strong> matérias-primas, insumos e tecnologias<br />

estrangeiras. Um bom exemplo é o setor automobilístico, o único setor industrial que,<br />

po<strong>de</strong>-se dizer, teve uma política específica, que vigorou <strong>de</strong> 1996 a 2000, o regime<br />

automotivo. Regulamentado pela Lei 9.449 e pelo Decreto 2.072, o seu objetivo foi<br />

incentivar as montadoras já instaladas no país e atrair investimentos das que ainda não<br />

estavam aqui.<br />

Graças a esses incentivos, novas montadoras vieram para o Brasil e ainda<br />

trouxeram parte <strong>de</strong> seus fornecedores tradicionais <strong>de</strong> autopeças, aos quais foram<br />

estendidos os benefícios. Segundo o economista João Alberto <strong>de</strong> Negri, do Instituto <strong>de</strong><br />

Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), em trabalho intitulado Avaliação do Regime<br />

Automotivo Brasileiro, essa política engordou o lucro das montadoras, ajudou a acabar<br />

com a indústria nacional <strong>de</strong> autopeças e resultou em aumento <strong>de</strong> 25% dos preços reais<br />

médios dos veículos nos dois primeiros anos <strong>de</strong> vigência . As indústrias com controle<br />

acionário nacional, que respondiam por 45,35% das vendas domésticas <strong>de</strong><br />

equipamentos <strong>de</strong> direção, transmissão, sistemas elétricos, eletrônica embarcada e<br />

freios, passaram a apenas 26% em 1997. As gran<strong>de</strong>s multinacionais do setor<br />

compraram as principais empresas brasileiras e o número <strong>de</strong> firmas caiu <strong>de</strong> 1.500 em<br />

1990 para 800 em 1998.


Após a <strong>de</strong>svalorização do real, em 1999, a <strong>de</strong>snacionalização, como o exemplo<br />

do setor automotivo, passou a ter outro componente negativo: qualquer crescimento da<br />

economia sempre significou o incremento <strong>de</strong>sproporcional das importações, gerando<br />

déficit e <strong>de</strong>sequilíbrio nas contas externas. Nossa economia passou a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r, então,<br />

cada vez mais do financiamento externo, em um círculo vicioso. Essa <strong>de</strong>pendência é<br />

um dos empecilhos ao <strong>de</strong>senvolvimento e foi o que fez a economia crescer tão pouco<br />

durante os anos <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>. Ampliá-la, levaria à elevação do déficit externo e a uma crise<br />

<strong>de</strong> “credibilida<strong>de</strong> externa”.<br />

Antes da abertura comercial <strong>de</strong>scontrolada, no entanto, o Brasil fez outra<br />

abertura, <strong>de</strong> conseqüências talvez até mais dramáticas para a economia do país: a<br />

financeira. As regras <strong>de</strong> entrada e saída <strong>de</strong> capitais foram liberalizadas e as operações<br />

<strong>de</strong> compra e venda interna <strong>de</strong> dólares foram facilitadas a partir da gestão dos<br />

financistas Marcílio Marques Moreira, no ministério da Economia, Francisco Gros, no<br />

Banco Central, e Armínio Fraga, na diretoria da área externa do banco, em meados <strong>de</strong><br />

1992.<br />

O marco inicial <strong>de</strong>ssa liberação foi a vulgarização das chamadas contas CC-5,<br />

que se baseiam numa legislação <strong>de</strong> 1957. Naquele tempo não existiam as transações<br />

eletrônicas e as facilida<strong>de</strong>s para a movimentação internacional <strong>de</strong> capitais. CC-5 <strong>–</strong><br />

Carta Circular número 5 <strong>–</strong> era uma instrução das autorida<strong>de</strong>s monetárias brasileiras,<br />

que dizia que os não resi<strong>de</strong>ntes no país <strong>–</strong> pessoas e empresas <strong>–</strong> que trouxessem<br />

dólares para cá tinham o direito <strong>de</strong> repatriá-los, quando quisessem, sem autorização<br />

prévia. Tudo o mais que não fosse moeda estrangeira trazida para o país, dizia a lei,<br />

precisaria <strong>de</strong> autorização prévia para ser convertida em moeda estrangeira para envio<br />

ao exterior.<br />

Em 1992, ainda no governo Collor, portanto, com Armínio Fraga na área externa<br />

do BC, passou-se a interpretar a CC-5 <strong>de</strong> um modo muito mais amplo: qualquer nãoresi<strong>de</strong>nte<br />

no país, pessoa física ou empresa, po<strong>de</strong>ria optar por ter seus haveres<br />

financeiros em reais ou em dólar. Ou seja, po<strong>de</strong>ria enviar para o exterior, sem aviso<br />

prévio ao BC, o equivalente em dólares a todos os reais que tivesse no sistema<br />

financeiro do país.<br />

CC-5, dreno externo<br />

Com isso, a legislação original das CC-5, que era muito restritiva, tornou-se<br />

completamente permissiva. E essas contas se transformaram no principal instrumento<br />

<strong>de</strong> drenagem <strong>de</strong> dinheiro para fora do país. A mudança estava articulada com outros


instrumentos da abertura financeira. Entre esses, <strong>de</strong>stacam-se os chamados “anexos”<br />

do Banco Central. Por esses regulamentos, permitiu-se que fundos estrangeiros<br />

fizessem aplicações aqui <strong>–</strong> na bolsa <strong>de</strong> valores, em fundos financeiros <strong>de</strong> investimento<br />

e em fundos para leilões das estatais. Com isso, se buscava não só atrair capital <strong>de</strong><br />

empresas e investidores estrangeiros, como também trazer <strong>de</strong> volta os recursos <strong>de</strong><br />

brasileiros que tinham levado dinheiro para o exterior ilegalmente. Des<strong>de</strong> que as<br />

aplicações fossem feitas a partir <strong>de</strong> fundos externos e em outros localizados no país,<br />

as pessoas físicas que estavam por trás <strong>de</strong>ssas instituições não precisavam aparecer.<br />

Fez parte da abertura financeira também a mudança nas regras <strong>de</strong> remessa <strong>de</strong> lucros,<br />

divi<strong>de</strong>ndos e royalties. As remessas foram liberalizadas pela Lei nº 8.383, <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1991, que extinguiu o adicional <strong>de</strong> imposto <strong>de</strong> renda que incidia sobre<br />

elas.<br />

Com tudo isso se objetivava atrair o capital externo que, supunha-se, iria<br />

financiar nosso <strong>de</strong>senvolvimento e mo<strong>de</strong>rnizar a estrutura produtiva nacional. Na<br />

verda<strong>de</strong>, até 1994, essa liberação serviu pouco para a mo<strong>de</strong>rnização e muito para que<br />

brasileiros repatriassem parte dos seus fundos no exterior, aproveitando as altas taxas<br />

<strong>de</strong> juros da dívida pública praticadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>de</strong> 1991, e outras oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

ganhos financeiros. Estima-se que no início da década <strong>de</strong> 90, empresas e brasileiros<br />

ricos dispunham <strong>de</strong> um saldo <strong>de</strong> 60 bilhões <strong>de</strong> dólares no exterior, retirados<br />

ilegalmente do país e mantidos em paraísos fiscais. De 1992 a 1994, entraram<br />

liquidamente no país, por meio das CC-5, mais <strong>de</strong> 23 bilhões <strong>de</strong> dólares. Essa<br />

“repatriação” foi feita também para adquirir as primeiras estatais privatizadas.<br />

Só após 1994, com a renegociação da dívida externa e a implantação do real,<br />

começaram a chegar <strong>de</strong> fato investimentos estrangeiros. Nos primeiros anos da<br />

década passada houve uma gran<strong>de</strong> oferta <strong>de</strong> empréstimos externos a custos muito<br />

baixos. Essa situação mudou em 1994: no segundo semestre, o banco central dos EUA<br />

duplicou a taxa <strong>de</strong> juros básica, gerando a crise do México. Em 19 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong><br />

1994, o peso foi <strong>de</strong>svalorizado em 15% e, em poucos dias, investidores mexicanos e<br />

americanos per<strong>de</strong>ram mais <strong>de</strong> 10 bilhões <strong>de</strong> dólares. As reservas mexicanas, que<br />

estiveram em 25 bilhões <strong>de</strong> dólares no início <strong>de</strong> 1994, caíram para menos <strong>de</strong> seis<br />

bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />

A partir daí, os fluxos <strong>de</strong> empréstimos diminuíram para os mercados emergentes<br />

e os empréstimos ficaram caros. Como só em 1994 o Brasil chegou a um acordo sobre<br />

a dívida herdada da década <strong>de</strong> 70, do tempo do milagre dos militares, a economia<br />

brasileira chegou tar<strong>de</strong> ao mercado financeiro internacional, quando as condições <strong>de</strong><br />

financiamento passaram a ser mais seletivas e os juros elevados. Já na euforia dos<br />

primeiros seis meses <strong>de</strong> Plano Real, portanto, a taxa <strong>de</strong> juros externa estava<br />

começando a fazer com que o sonho <strong>de</strong> um novo milagre brasileiro, financiado com<br />

capitais externos, se esvaísse.


Mesmo assim, o governo <strong>FHC</strong> continuou a apostar no financiamento externo e<br />

nosso déficit não parou <strong>de</strong> crescer. Por isso, ao mesmo tempo em que entravam os<br />

investimentos e empréstimos externos, as remessas das rendas do capital (juros,<br />

lucros e royalties) aumentavam espetacularmente: <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> oito bilhões <strong>de</strong> dólares<br />

em 1991, saltaram para perto <strong>de</strong> 12 bilhões <strong>de</strong> dólares em 1996 e para mais <strong>de</strong> 16<br />

bilhões <strong>de</strong> dólares em 2001.<br />

No dia 2 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1997, o Banco da Tailândia anunciava a entrada do baht, a<br />

moeda local, num regime <strong>de</strong> taxa flutuante administrada e pedia assistência técnica ao<br />

FMI. Tem início a chamada crise da Ásia. Em 23 <strong>de</strong> agosto, o primeiro ministro da<br />

Malásia, Mahatir Bin Mohamad, que <strong>de</strong>pois imporia medidas restritivas à<br />

movimentação <strong>de</strong> capitais, acusou o megaespeculador George Soros <strong>de</strong> estar por<br />

<strong>de</strong>trás dos ataques especulativos às moedas da região.<br />

No final <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1998, havia uma gran<strong>de</strong> euforia pela conclusão do processo<br />

<strong>de</strong> privatização do sistema Telebrás. Agosto, entretanto, reservava surpresas. No dia<br />

17, a Rússia <strong>de</strong>clarou moratória no pagamento das suas dívidas interna e externa e<br />

<strong>de</strong>svalorizou o rublo. O Índice Ibovespa acusou uma queda <strong>de</strong> 40% e os 10 bilhões <strong>de</strong><br />

dólares que saíram do país anularam o efeito da entrada <strong>de</strong> divisas (cerca <strong>de</strong> 4 bilhões<br />

<strong>de</strong> dólares) pelo pagamento <strong>de</strong> parcela da Telebrás, adquirida por investidores<br />

estrangeiros.<br />

Com essas duas crises, o fluxo externo <strong>de</strong> capitais diminuiu, o Brasil foi pego no<br />

contrapé e quebrou. Houve uma intensa fuga <strong>de</strong> capitais. Em plena campanha eleitoral,<br />

na surdina, <strong>FHC</strong> costurou um acordo com o FMI, que passou a ser co-gestor da<br />

economia nacional. O país teve que se submeter a um longo programa <strong>de</strong> três anos<br />

para executar o ajuste externo e fiscal.<br />

Em janeiro <strong>de</strong> 1999, o real foi <strong>de</strong>svalorizado. Muitos que tinham dívidas em dólar<br />

haviam comprado papéis do Tesouro Nacional, que lhes garantiam, além <strong>de</strong> juros,<br />

correção correspon<strong>de</strong>nte à <strong>de</strong>svalorização da moeda brasileira frente ao dólar. Assim,<br />

com a <strong>de</strong>svalorização, o Tesouro levou um prejuízo <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 60 bilhões <strong>de</strong> reais por<br />

ter assumido o risco cambial <strong>de</strong> investidores e gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vedores.<br />

Investimentos


De 1999 em diante, com o real barato e as empresas brasileiras em dificulda<strong>de</strong>s,<br />

houve um gran<strong>de</strong> aumento no fluxo <strong>de</strong> investimentos diretos. Não para criar<br />

empreendimentos novos, mas para comprar as empresas nacionais na bacia das<br />

almas. Uma parcela importante das principais empresas privadas e <strong>de</strong> estatais<br />

nacionais foi adquirida por capitais externos. Os estrangeiros passaram a atuar em<br />

diversas áreas em que não tinham presença alguma ou nas quais sua participação era<br />

muito pequena. Na si<strong>de</strong>rurgia e metalurgia, entre os anos <strong>de</strong> 1994 e 1999, a<br />

participação estrangeira saiu <strong>de</strong> quase nada para 34%. No comércio varejista, em<br />

1994, os estrangeiros controlavam apenas 7,1% dos negócios. E os gran<strong>de</strong>s eram<br />

brasileiros. Hoje, o capital estrangeiro controla cerca <strong>de</strong> 60% do setor. Em 2000, o<br />

capital estrangeiro já controlava 90% do setor eletro-eletrônico; 86% do setor <strong>de</strong><br />

higiene, limpeza e cosméticos; 77% do setor <strong>de</strong> computação; 74% das<br />

telecomunicações; 74% do setor farmacêutico, 68% da indústria mecânica, 58% do<br />

setor <strong>de</strong> alimentos e 54% do setor <strong>de</strong> plásticos e borracha.<br />

Alguns exemplos ilustram esse movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>snacionalização. A Metal Leve<br />

<strong>de</strong> José Mindlin foi comprada pela Cofap em associação com a Mahle, da Alemanha.<br />

Em abril <strong>de</strong> 97, a própria Cofap, ainda sob o comando do brasileiro Abraham Kasinski,<br />

foi engolida pela Magneti Marelli, do grupo italiano Fiat. A Freios Varga, outra gigante<br />

brasileira do setor <strong>de</strong> autopeças, passou para o controle da inglesa Luca Varity. A<br />

Brasmotor foi transferida à antiga sócia norte-americana Whirpool. A Phelps, dos<br />

Estados Unidos, <strong>de</strong>sembolsou em torno <strong>de</strong> 200 milhões <strong>de</strong> dólares para levar a<br />

Ciopebrás, principal empresa brasileira na produção <strong>de</strong> negro-<strong>de</strong>-fumo, matéria-prima<br />

utilizada na fabricação <strong>de</strong> pneus e componentes para a indústria automobilística. A<br />

Dana Coporation (EUA), uma das maiores do mundo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> montar 14 fábricas no<br />

Brasil, passou a comprar concorrentes nacionais aproximando-se <strong>de</strong> um controle do<br />

mercado. Por intermédio <strong>de</strong> uma compra internacional da também norte-americana<br />

Echilin, a Dana levou o tradicional fabricante <strong>de</strong> carburadores Brosol. Depois, ainda<br />

adquiriu a Nakata, que produzia amortecedores e escapamentos. Assim, o setor<br />

automotivo, que tinha uma significativa presença nacional, passou a ter 89% <strong>de</strong><br />

presença estrangeira.<br />

Outros setores viveram o mesmo problema com empresas tradicionais engolidas<br />

pelo capital estrangeiro: a Lacta foi comprada pela Philip Morris; a Peixe pela Italiana<br />

Cirio; a Adria pela americana Quaker; a Petroquímica União pela americana Union<br />

Carbi<strong>de</strong>; a Arno pela francesa SEB; a gaúcha Frangosul, classificada entre as cinco<br />

maiores do Brasil, ficou com o grupo francês Doux, maior exportador <strong>de</strong> aves da<br />

Europa e principal concorrente das empresas nacionais no mercado internacional;<br />

parte da Gradiente foi para a Ericsson; a Café do Ponto passou para a norte-americana<br />

Sara Lee; a Etti e a Batavo ficaram com italiana Parmalat.


A partir <strong>de</strong> 1999 o país não tinha mais fôlego para crescer. Não havia mais<br />

dólares para financiar uma economia que só po<strong>de</strong>ria crescer criando um buraco nas<br />

contas externas, seja pelo aumento das importações, seja pela elevação das remessas<br />

das rendas <strong>de</strong> capital. Como as regras <strong>de</strong> entrada e saída <strong>de</strong> dólares não foram<br />

mudadas, os <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> dólares e os gran<strong>de</strong>s empresários nacionais e<br />

internacionais passaram a ter um gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r sobre a economia. Qualquer flutuação<br />

nos mercados financeiros internacionais imediatamente impacta a economia, mantendo<br />

elevada a taxa <strong>de</strong> juros interna ou provocando fuga <strong>de</strong> dólares. Esse é o mecanismo<br />

que cria a instabilida<strong>de</strong> na taxa <strong>de</strong> câmbio e vem ameaçando <strong>de</strong>ixar o país sem<br />

reservas internacionais.<br />

Sempre mais juros<br />

Des<strong>de</strong> a crise do México, o governo vem mantendo a estratégia <strong>de</strong> inserção<br />

externa, sempre na esperança <strong>de</strong> que as coisas melhorem e voltemos às “boas<br />

condições” <strong>de</strong> financiamento farto e barato dos primeiros anos da década <strong>de</strong> 90. Mas a<br />

realida<strong>de</strong> vem sempre contrariando essas expectativas, o que vem custando muito caro<br />

ao Brasil.<br />

Com queda acentuada das bolsas <strong>de</strong> Nova Iorque a partir do final <strong>de</strong> 2000, a<br />

crise mundial se agravou ainda mais, e o governo <strong>FHC</strong> passou a se aplicar mais nos<br />

esforços <strong>de</strong> obter uma melhoria <strong>de</strong> suas contas externas, principalmente com<br />

incentivos às exportações.<br />

Sem financiamento externo a<strong>de</strong>quado, não há como o país continuar pagando<br />

os compromissos financeiros, a amortização das dívidas e as remessas <strong>de</strong> juros, lucros<br />

e royalties. Muito menos po<strong>de</strong>rá continuar a garantir a livre saída <strong>de</strong> dólares por<br />

“repatriação” <strong>de</strong> investimentos. Por isso, o governo <strong>FHC</strong> voltou, como na crise da<br />

dívida <strong>de</strong> 1982, a incentivar as exportações para angariar dólares, mantendo a<br />

economia interna estagnada e sob pressão inflacionária pela <strong>de</strong>svalorização do real<br />

frente ao dólar. Não para diminuir a nossa <strong>de</strong>pendência externa, mas para manter os<br />

compromissos financeiros em dia.<br />

Manter saldos comerciais elevados durante longos períodos, <strong>de</strong>ixando<br />

inalterados o volume e as condições dos compromissos externos, não significa<br />

necessariamente resolver o problema da vulnerabilida<strong>de</strong> externa. Ao contrário, po<strong>de</strong><br />

apenas agravá-la mais. Assim como aconteceu na década <strong>de</strong> 80, alcançar um


superávit comercial, rapidamente e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> monta, só po<strong>de</strong> ser feito às custas da<br />

constante <strong>de</strong>svalorização da moeda nacional, da diminuição da receita tributária com<br />

incentivos aos exportadores e pela manutenção da economia interna estagnada. E<br />

assim como aconteceu também após o fim do milagre dos generais, esse superávit<br />

comercial fará com que volte a inflação ou que os governos fe<strong>de</strong>ral e estaduais<br />

quebrem, per<strong>de</strong>ndo receita e se endividando ainda mais <strong>–</strong> ou mesmo as duas coisas<br />

ao mesmo tempo.<br />

Por isso, a solução para o equilíbrio <strong>de</strong> nossas contas externas não po<strong>de</strong> ser<br />

outra vez o apelo à velha fórmula, sempre repetida, do aumento das exportações e da<br />

estagnação da economia. É preciso levar em consi<strong>de</strong>ração que nossos credores e<br />

investidores também fazem parte do problema e que as condições atuais da dívida<br />

externa, bem como das regras vigentes <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimento <strong>de</strong> capitais,<br />

também po<strong>de</strong>m ser renegociadas e revistas. Diminuindo o montante <strong>de</strong> nossas<br />

obrigações externas, po<strong>de</strong>remos equilibrar melhor a condição <strong>de</strong> gerar superávit<br />

comercial, sem ter que <strong>de</strong>primir o consumo interno, o emprego e as condições <strong>de</strong> vida<br />

dos brasileiros. Esse é um gran<strong>de</strong> problema herdado e que o governo <strong>de</strong> Lula terá que<br />

enfrentar mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>.<br />

A fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossas contas externas <strong>de</strong>corre, portanto, não apenas do<br />

enorme passivo externo acumulado durante o Plano Real, mas também da<br />

continuida<strong>de</strong> das regras liberais <strong>de</strong> entrada e saída <strong>de</strong> dólares. Os compromissos<br />

internacionais e o controle que o capital forasteiro tem sobre a economia tornaram o<br />

país cada vez mais vulnerável às flutuações externas.<br />

Mas é a continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regras que permitem a saída quase livre <strong>de</strong> dólares que<br />

faz com que a população e o próprio governo tornem-se reféns da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

pequeno número <strong>de</strong> empresas que movimentam gigantescas massas <strong>de</strong> dinheiro e<br />

tentam preservar a qualquer custo o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do país. Promovendo<br />

a fuga <strong>de</strong> dólares ou especulando com a taxa <strong>de</strong> câmbio e com os títulos da dívida<br />

pública, eles <strong>de</strong>sestabilizam a economia e pressionam o governo para manter as<br />

políticas e as regras que lhe são favoráveis.<br />

Trabalho precário, emprego em queda, renda<br />

achatada


<strong>FHC</strong> patrocinou uma campanha contra os direitos trabalhistas, ampliou a informalida<strong>de</strong> na<br />

economia e levou o Brasil para o segundo lugar em <strong>de</strong>sempregados no mundo.<br />

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Carteira <strong>de</strong> Trabalho são os<br />

gran<strong>de</strong>s emblemas da <strong>herança</strong> Vargas, que Fernando Henrique Cardoso i<strong>de</strong>ntificava<br />

como o Estado intervencionista.<br />

Uma das principais contribuições <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> na área social <strong>–</strong> uma contribuição<br />

muito negativa <strong>–</strong> foi ter utilizado toda a sua autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> sociólogo em uma<br />

campanha particular, teórica e prática, contra a legislação trabalhista. Nessa<br />

campanha, procurou atribuir o gran<strong>de</strong> crescimento do <strong>de</strong>semprego, nos anos <strong>de</strong><br />

neoliberalismo, à resistência dos partidos <strong>de</strong> esquerda e do movimento sindical à<br />

chamada flexibilização das leis trabalhistas.<br />

A legislação trabalhista é antiga, complexa e merece uma revisão. Mas <strong>FHC</strong> não<br />

apresentou nenhum plano, nenhum estudo merecedor do nome que procurasse dar<br />

nova forma, organizar e mo<strong>de</strong>rnizar o conjunto <strong>de</strong>ssas leis. Quem diz isso é uma das<br />

maiores autorida<strong>de</strong>s brasileiras no assunto, Márcio Pochmann. Secretário do Trabalho<br />

e Solidarieda<strong>de</strong> da prefeitura <strong>de</strong> São Paulo, coor<strong>de</strong>na o que é possivelmente o maior<br />

programa municipal <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> renda diretamente à população pobre, que ele<br />

mesmo consi<strong>de</strong>ra apenas uma forma <strong>de</strong> minimizar os efeitos do gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego<br />

no país. Pochmann foi ainda consultor da Organização Internacional do Trabalho no<br />

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e tem oito livros publicados<br />

sobre trabalho e emprego. Ele diz que <strong>FHC</strong> tratou do problema do país com a retórica<br />

neoliberal. Falou mal <strong>de</strong> Getúlio Vargas e da CLT para insinuar que tinha um plano<br />

para o emprego no país, coisa que não tinha.<br />

Posteriormente, já na campanha eleitoral <strong>de</strong> 2002, quando seu candidato José<br />

Serra assumiu como ban<strong>de</strong>ira central <strong>de</strong> seu programa a criação <strong>de</strong> empregos <strong>–</strong><br />

<strong>de</strong>sajeitadamente, como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, para um candidato do governo <strong>–</strong>,<br />

Fernando Henrique disse que o <strong>de</strong>semprego tinha crescido no mundo todo em função<br />

<strong>de</strong> problemas estruturais do <strong>de</strong>senvolvimento. Não seria, portanto, um <strong>de</strong>feito<br />

específico <strong>de</strong> seu governo.<br />

Pochmann prova que não. O <strong>de</strong>semprego não atingiu todos os países <strong>de</strong> modo<br />

igual. O Brasil, em 1980, tinha 2,6% da População Economicamente Ativa (PEA) e<br />

apenas 1,7% dos <strong>de</strong>sempregados globais. No ano 2000, sua participação na PEA tinha<br />

crescido para 3%, mas seu porcentual do <strong>de</strong>semprego global tinha mais que<br />

quadruplicado (7,1%).


De 108 nações selecionadas*, o Brasil estava em nono lugar em valores<br />

absolutos <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego aberto em 1980. Em 1985, ficou no 10º posto. Em 1990,<br />

ocupava a 6ª posição, com 2,3 milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados. Quando <strong>FHC</strong> assumiu, em<br />

1995, já era o 5º, com 4,5 milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados. Em 2000, 5 anos <strong>de</strong>pois, <strong>FHC</strong> e<br />

suas políticas tinham levado o país para o posto <strong>de</strong> segundo pior do mundo, com 11,4<br />

milhões <strong>de</strong> pessoas sem emprego. Com uma população 175 milhões, o Brasil tem<br />

quase o dobro do número <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados da China (5,9 milhões), que tem mais <strong>de</strong><br />

sete vezes o seu número <strong>de</strong> habitantes (1,3 bilhão). O país <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> só per<strong>de</strong> para a<br />

Índia, a primeira colocada. Supera a Rússia (3ª), a Indonésia (5ª) e os EUA (6ª), que<br />

estiveram em segundo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1980.<br />

Em termos porcentuais**, o país também piorou com <strong>FHC</strong>: em 1980 o Brasil era<br />

o 91º país com maior índice <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego, com 2,2%. Em 1990, com 3% <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>semprego, ocupava a 78ª posição. Com <strong>FHC</strong>, em 2000, a taxa <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego foi <strong>de</strong><br />

15% e o país “subiu” para o 23º lugar.<br />

Como se vê, o <strong>de</strong>semprego não começou a crescer no governo <strong>FHC</strong>. O que seu<br />

governo fez foi multiplicar por três o <strong>de</strong>semprego no país: <strong>de</strong> 4,5 milhões <strong>de</strong> pessoas<br />

para 11,5 milhões <strong>–</strong> na média, um milhão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados a mais por ano <strong>de</strong><br />

mandato. Com o crescimento medíocre da economia, o aumento do emprego não<br />

acompanhou a taxa a evolução da, que é <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 2% <strong>–</strong> o que significa, a cada ano,<br />

um incremento <strong>de</strong> 1,5 milhão <strong>de</strong> novas pessoas procurando trabalho.<br />

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), apenas um em cada<br />

três brasileiros é assalariado com registro formal. Das 76,5 milhões <strong>de</strong> pessoas que<br />

compõem a PEA brasileira, somente 24 milhões possuem algum tipo <strong>de</strong> proteção social<br />

e trabalhista. O restante está <strong>de</strong>sempregada ou integra o mercado informal**. Diversos<br />

outros trabalhos fazem a mesma constatação. Um estudo*** do Departamento<br />

Intersindical <strong>de</strong> Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) mostra que, além das<br />

mudanças na forma <strong>de</strong> contratação da força <strong>de</strong> trabalho pelos setores privado e<br />

público, registrou-se redução generalizada do peso do trabalho assalariado no total dos<br />

postos <strong>de</strong> trabalho gerados. Cresceram as formas <strong>de</strong> contratação <strong>de</strong> trabalhadores<br />

consi<strong>de</strong>radas alternativas e tradicionalmente mais precárias e instáveis, associadas a<br />

ativida<strong>de</strong>s menos produtivas, com menores rendimentos, sem proteção social ou<br />

condições <strong>de</strong> trabalho a<strong>de</strong>quadas e, em alguns casos, até mesmo clan<strong>de</strong>stinas. A<br />

Flexibilização<br />

No mesmo trabalho citado, o Dieese i<strong>de</strong>ntifica como a primeira forma da<br />

chamada flexibilização a contratação do trabalhador diretamente pela empresa como<br />

assalariado sem carteira <strong>de</strong> trabalho assinada. A seguir, a flexibilização aparece na<br />

generalização do assalariamento indireto, em <strong>de</strong>corrência da terceirização <strong>de</strong> serviços.<br />

“A contratação do trabalhador como [trabalhador por] conta própria ou autônomo


continua crescendo e é maior que a terceirização <strong>de</strong> serviços, na maioria das regiões<br />

metropolitanas”. O aumento <strong>de</strong> jornadas <strong>de</strong> trabalho acima das 44 horas semanais,<br />

legais entre os trabalhadores informais, é outro aspecto da flexibilização.<br />

O Mapa do Trabalho Informal**, elaborado pela Central Única dos Trabalhadores<br />

(CUT) na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, indicou uma jornada média <strong>de</strong> 76 horas semanais entre<br />

os entrevistados. A conclusão foi enfática: “a gran<strong>de</strong> maioria dos informais exerce<br />

ativida<strong>de</strong>s precárias, quase todas sujeitas à repressão policial, o que torna os ganhos<br />

extremamente instáveis e incertos”.<br />

Até os anos 1980, a informalida<strong>de</strong> complementava o trabalho nacional e cumpria<br />

o papel <strong>de</strong> criar um “colchão” que amortecia os efeitos do <strong>de</strong>semprego na socieda<strong>de</strong>. A<br />

marca central do trabalho no Brasil era o assalariamento formal: <strong>de</strong> cada <strong>de</strong>z postos <strong>de</strong><br />

trabalho criados, oito eram empregos assalariados, sete com carteira assinada. Na<br />

década <strong>de</strong> 1990, <strong>de</strong> cada <strong>de</strong>z empregos criados somente dois são assalariados e ainda<br />

sem registro em carteira.<br />

A <strong>de</strong>fesa da flexibilização foi a forma <strong>de</strong> o governo cumprir o compromisso<br />

firmado com o Fundo Monetário Nacional (FMI) em 1998. Está escrito no item 33 do<br />

Memorando Técnico <strong>de</strong> Entendimento: “embora o mercado <strong>de</strong> trabalho brasileiro não<br />

seja perseguido por nenhuma rigi<strong>de</strong>z grave, <strong>de</strong>terminadas regulamentações e políticas<br />

do mercado <strong>de</strong> trabalho po<strong>de</strong>m contribuir para uma maior flexibilida<strong>de</strong>”.<br />

A gran<strong>de</strong> e última tentativa <strong>de</strong> flexibilização, já aprovada na Câmara dos<br />

Deputados, aguarda votação no Senado. Altera o art. 618 da CLT e seria um<br />

importante golpe nos direitos dos trabalhadores: os acordos coletivos ganhariam peso<br />

maior do que a lei, permitindo a flexibilização <strong>de</strong> direitos históricos, como, por exemplo,<br />

os 30 dias <strong>de</strong> férias anuais, prevalecendo “o negociado sobre o legislado”.<br />

Dentre a inúmeras modificações da CLT promovidas por <strong>FHC</strong> <strong>de</strong>stacam-se o<br />

impedimento <strong>de</strong> autuação das empresas por <strong>de</strong>srespeito às convenções e acordos<br />

trabalhistas; a retirada do direito brasileiro da limitação à <strong>de</strong>missão imotivada; a<br />

participação nos lucros e resultados, o contrato temporário e o banco <strong>de</strong> horas. Tudo<br />

contribuindo para enfraquecer os direitos dos trabalhadores e aumentar a exploração<br />

do trabalho.<br />

O conjunto das mudanças recentes na forma do trabalho na economia nacional<br />

se refletiu no perfil do <strong>de</strong>sempregado. Se até a década <strong>de</strong> 1980 o <strong>de</strong>semprego atingia<br />

linearmente os trabalhadores menos qualificados, agora é diferente. O novo perfil do<br />

<strong>de</strong>semprego no Brasil, escreve Marcio Pochmann, “refere-se aos trabalhadores com<br />

mais <strong>de</strong> oito anos <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>; com ida<strong>de</strong> mais avançada (mais <strong>de</strong> 49 anos); do<br />

sexo feminino; chefes <strong>de</strong> família; brancas; que buscam o reemprego e que resi<strong>de</strong>m na<br />

Região Su<strong>de</strong>ste”*. Segundo pesquisa do Dieese, obter recolocação no mercado <strong>de</strong>


trabalho, nos anos 90, também ficou mais difícil. Em algumas regiões, como o Distrito<br />

Fe<strong>de</strong>ral e Salvador, a busca por emprego chegou a levar um ano ou mais.<br />

Renda<br />

Os resultados da política <strong>de</strong> flexibilização na distribuição <strong>de</strong> renda e na<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida do brasileiro foram imediatas. Escreve Pochmann: “A partir <strong>de</strong> 1995,<br />

o fim do período hiperinflacionário não veio acompanhado da elevação real do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

compra dos trabalhadores. A ausência do crescimento econômico sustentado,<br />

combinada com a expansão do <strong>de</strong>semprego e a maior escolarização e qualificação da<br />

oferta <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra, geraram ainda maior concorrência no interior das classes<br />

trabalhadoras, o que levou à piora da parcela salarial na renda nacional”*.<br />

Ao final dos anos 90, o cenário <strong>de</strong> altas taxas <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego, queda dos<br />

salários médios, estagnação do emprego e aumento do nível <strong>de</strong> ocupação inferior ao<br />

crescimento da PEA provocou a redução <strong>de</strong> 17,6% da massa <strong>de</strong> salários da região<br />

metropolitana <strong>de</strong> São Paulo**** .<br />

As perdas na renda do brasileiro no período <strong>de</strong> 1990 até o ano 2000<br />

impressionam. A participação da remuneração do trabalho na renda nacional<br />

<strong>de</strong>cresceu <strong>de</strong> 53,48%, em 1990, para 42,4%, em 2000. Essa queda <strong>de</strong> 11 pontos<br />

reflete a redução da participação da remuneração do trabalho no setor privado: <strong>de</strong><br />

37,25%, em 1990, para 27,38%, em 2000. O comportamento do setor público é variado<br />

e registra uma queda <strong>de</strong> um ponto porcentual na renda nacional.<br />

A distribuição da renda também sofreu mudanças. <strong>FHC</strong> fez um rearranjo da<br />

escassez. Pelos dados do Dieese, os 10% mais pobres em São Paulo, <strong>de</strong> 1995 até<br />

agora, viram seu salário cair 19,3% e os 10% mais bem remunerados per<strong>de</strong>ram 33,1%<br />

na renda do seu trabalho. Todos per<strong>de</strong>ram renda, mas per<strong>de</strong>u mais quem ganha mais.<br />

Segundo números do Ipea, órgão <strong>de</strong> pesquisa oficial do Ministério do<br />

Planejamento, o rendimento médio do trabalhador vai chegar ao fim <strong>de</strong> 2002 com<br />

perda estimada <strong>de</strong> 0,74% durante os oito anos do Real. Ao fim <strong>de</strong> 1994, o trabalhador<br />

ganhava 664,93 reais e chegará ao fim <strong>de</strong> 2002 recebendo em média 660 reais, em<br />

valores <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2000.


Enquanto a participação da renda do trabalho <strong>de</strong>crescia na renda nacional, a<br />

produtivida<strong>de</strong> do trabalho crescia vertiginosamente. De 1990 até 1999, cresceu 24%,<br />

mas foi com o governo <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> que os índices explodiram, chegando a mais do que<br />

dobrar, saltando <strong>de</strong> 10% para 24%. Dessa fatia, nada foi repassado aos trabalhadores.<br />

A produtivida<strong>de</strong> da indústria ultrapassou os 40%.<br />

Os trabalhadores passaram a ser também remunerados <strong>de</strong> formas novas (por<br />

exemplo, porcentual sobre lucros e/ou resultado das empresas). Nada disso, no<br />

entanto, foi incorporado <strong>de</strong>finitivamente aos salários. Apenas <strong>de</strong>u mais flexibilida<strong>de</strong> às<br />

empresas na <strong>de</strong>terminação do custo do trabalho. Diz o Dieese: “em São Paulo, em<br />

valores absolutos, os rendimentos auferidos pelos contratados <strong>de</strong> forma flexibilizada<br />

foram significativamente inferiores aos contratados <strong>de</strong> forma padrão, constatação<br />

válida para todas as regiões pesquisadas”. E ainda: “a facilida<strong>de</strong> encontrada pelas<br />

empresas na contratação <strong>de</strong> autônomos garantiu aumento do número <strong>de</strong> contratos <strong>de</strong><br />

forma flexibilizada, vantajosa para as empresas, uma vez que, além <strong>de</strong> se eximirem do<br />

recolhimentos <strong>de</strong> encargos sociais, podiam pagar salários menores do que os que<br />

seriam pagos mediante contratação padrão”.<br />

Tudo isso gerou um caldo <strong>de</strong> cultura que enfraqueceu a força dos trabalhadores<br />

e dos sindicatos, reduzindo sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> luta e resistência. É ainda do Dieese o<br />

diagnóstico sobre a redução do po<strong>de</strong>r dos sindicatos: “a expectativa do coor<strong>de</strong>nador<br />

técnico da entida<strong>de</strong> em São Paulo, Wilson Amorim, é <strong>de</strong> que a safra <strong>de</strong> acordos pelo<br />

país, que contemple a inflação, diminua para algo perto <strong>de</strong> 50%. No ano passado, ficou<br />

em 64%. “Há espaço restrito para campanha, que se concentra em reposição salarial”,<br />

afirmou. “As negociações são tensas e se prolongam além do prazo normal”. Diz o<br />

Dieese que 76% das categorias não tiveram nenhum tipo <strong>de</strong> reajuste e as <strong>de</strong>mais<br />

conseguiram aumentos entre 10% e 50%. O instituto não contabiliza, nesse cálculo, as<br />

gratificações, que consi<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma política “arbitrária e clientelista”.<br />

<strong>FHC</strong>, já no início <strong>de</strong> seu governo, em maio <strong>de</strong> 1995, <strong>de</strong>monstrou sua disposição<br />

para com o movimento sindical. De forma emblemática, acionou o Exército contra a<br />

greve dos petroleiros e aplicou multas às entida<strong>de</strong>s da categoria. O número <strong>de</strong> greves<br />

no país reduziu drasticamente.<br />

O funcionalismo público foi particularmente atingido e ficou quase oito anos com<br />

o seu salário congelado. Pesquisa recente divulgada pelo Instituto Brasileiro <strong>de</strong><br />

Geografia e Estatística (IBGE) indica que os gastos com pessoal das empresas<br />

públicas encolheram <strong>de</strong> 13,9%, em 1995, para 6,45%, em 2000.<br />

Durante a primeira meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 1990, o salário mínimo <strong>–</strong> importante<br />

fator <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> renda <strong>–</strong> continuou a per<strong>de</strong>r po<strong>de</strong>r aquisitivo e alcançou seu<br />

menor valor real no início em 1995. O reajuste <strong>de</strong> 42,86%, concedido em maio daquele


ano, e os sucessivos aumentos reais nos anos seguintes repuseram parte <strong>de</strong>ssa perda.<br />

Mesmo assim, em 1999, o salário mínimo correspondia a somente 2/3 do seu valor em<br />

1989.<br />

A in<strong>de</strong>xação do salário mínimo sempre foi rechaçada como elemento<br />

inflacionário, entretanto, o governo não teve o menor constrangimento <strong>de</strong> in<strong>de</strong>xar<br />

tarifas públicas como, por exemplo, a <strong>de</strong> energia elétrica. Em 29 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1995, a<br />

Lei 9.069, em seu art. 70, já <strong>de</strong>terminava que “o reajuste e a revisão dos preços<br />

públicos e das tarifas <strong>de</strong> serviços públicos far-se-ão conforme atos, normas e critérios a<br />

serem fixados pelo Ministro da Fazenda”. A política a cargo do ministro Malan elevou<br />

as tarifas telefônicas em quase 4.000%; na energia elétrica, o brasileiro paga o<br />

“imposto do apagão” por ter reduzido seu consumo e impedido a falta <strong>de</strong> energia.<br />

O discurso oficial para reduzir progressivamente os aumentos reais do mínimo<br />

sempre recorreu ao déficit da previdência como álibi, pois o aumento do salário-mínimo<br />

reflete-se diretamente nos gastos da previdência. As dificulda<strong>de</strong>s da previdência,<br />

entretanto, estão vinculadas à própria política <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> emprego. A redução do<br />

número <strong>de</strong> trabalhadores com carteira assinada e no pleno exercício <strong>de</strong> seus direitos e<br />

o aumento da informalida<strong>de</strong> do trabalho levaram a uma redução significativa do<br />

recolhimento para a previdência. Por outro lado, a previdência tem um gran<strong>de</strong> papel <strong>de</strong><br />

redistribuição <strong>de</strong> renda e não po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada somente do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spesa.<br />

Não bastassem todas as perdas salariais acumuladas nos oito anos <strong>de</strong> <strong>FHC</strong>, os<br />

trabalhadores assistem agora à retomada da inflação. Em novembro, segundo o<br />

economista Ricardo Braule, <strong>de</strong> uma equipe do governo que estuda mudanças no Índice<br />

<strong>de</strong> Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA, o aumento dos preços foi “explosivo e<br />

generalizado”. Pela primeira vez <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do Plano Real, em 1994, o chamado<br />

núcleo da inflação, que exclui as tarifas públicas, passou <strong>de</strong> 2% ao mês. O IPCA<br />

acumulou 10,22% <strong>de</strong> janeiro a novembro e po<strong>de</strong> chegar próximo <strong>de</strong> 13%, com a alta <strong>de</strong><br />

2,5% esperada para <strong>de</strong>zembro.<br />

* Globalização e <strong>de</strong>semprego: breve balanço da inserção brasileira - Marcio<br />

Pochmann - São Paulo - Maio <strong>de</strong> 2002 - Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e<br />

Solidarieda<strong>de</strong> da Prefeitura do Município <strong>de</strong> SP<br />

** In A regressão do trabalho na Era <strong>FHC</strong> - Altamiro Borges<br />

*** Mercado <strong>de</strong> Trabalho no Brasil - Dieese<br />

**** Os Rendimentos do Trabalho no Brasil - Dieese


A cultura legada por <strong>FHC</strong>: mais para Cabral do que<br />

para índio<br />

A política cultural dos tucanos, que pretendia acabar com o dirigismo estatal, fortaleceu o<br />

marketing e o dirigismo empresarial. <strong>Cultura</strong>, disse o minitro Weffort, tem que dar lucro.<br />

Em março <strong>de</strong> 1995, pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tomar posse, o ministro Francisco Weffort,<br />

ao anunciar mudanças na Lei Rouanet, que passaria a permitir a participação <strong>de</strong><br />

agentes culturais e empresários na intermediação <strong>de</strong> recursos, ganhando comissões,<br />

lançou a máxima: “cultura tem <strong>de</strong> dar lucro”. Também em março <strong>de</strong> 1995, em entrevista<br />

ao Jornal da USP, afastava qualquer pretensão <strong>de</strong> “política dirigista em relação à<br />

cultura”.<br />

O ministério seria, assim, uma espécie <strong>de</strong> gerente na alocação dos recursos. Na<br />

entrevista ao Jornal da USP, essa política era <strong>de</strong>finida com clareza ao propor uma nova<br />

visão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional: “não como um critério nacionalista, no sentido tradicional.<br />

Mas <strong>de</strong> estímulo às instituições, às pessoas e aos grupos para que eles <strong>de</strong>senvolvam a<br />

sua criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> modos <strong>de</strong> expressão da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da nação, da <strong>de</strong>mocracia e da<br />

cidadania”.<br />

Essa postura, <strong>de</strong> subordinação ao mercado, não foi uma novida<strong>de</strong> no panorama<br />

da política cultural brasileira, mas a consolidação <strong>de</strong> tendências que vinham <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

final da ditadura e que já haviam sido manifestadas no próprio governo do general João<br />

Figueiredo, cujo ministro, Eduardo Portella, pretendia, já em 1979, “trazer o produto<br />

cultural para participar das estruturas <strong>de</strong> mercado como os <strong>de</strong>mais produtos”. A adoção<br />

da Lei Sarney, em 1986, foi mais um passo nesse rumo, com o apoio <strong>de</strong> artistas como<br />

o ator <strong>Sérgio</strong> Brito, para quem “só os empresários salvarão a cultura nesse país”. Ou<br />

<strong>de</strong> produtoras culturais como Ana Lúcia Magalhães Pinto, diretora do Banco Nacional e<br />

financiadora do filme Quilombo dos Palmares, <strong>de</strong> Cacá Dieguez, que <strong>de</strong>stacava a<br />

importância da nova lei para o marketing das empresas: “o que importa é a afirmação<br />

da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da empresa, <strong>de</strong> sua presença junto à comunida<strong>de</strong>”.


Ainda nesse ponto <strong>FHC</strong> não foi um neoliberal <strong>de</strong> primeira hora. O marco da<br />

invasão da área da cultura pelo mercado foi o governo Collor, <strong>de</strong> 1990 a 1992, que<br />

acabou com a Embrafilmes, a Funarte, a Fundação Nacional do Cinema e a Fundacen,<br />

sob o pretexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> recursos públicos. Com isso, <strong>de</strong>ixou a cultura fora da<br />

ação do Estado, tendo acabado inclusive com o Ministério da <strong>Cultura</strong>. Depois,<br />

substituiu a Lei Sarney pela Lei Rouanet, criando condições para passar o<br />

financiamento das ativida<strong>de</strong>s culturais para o âmbito das empresas privadas. Tudo<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um princípio que o autor da lei, <strong>Sérgio</strong> Paulo Rouanet, <strong>de</strong>finiu com ru<strong>de</strong><br />

clareza: “cultura, só com lucro”.<br />

Outro instrumento para o financiamento da cultura foi criado pelo governo <strong>de</strong><br />

Itamar Franco, a Lei do Audiovisual, <strong>de</strong> 1993, permitindo às empresas financiarem a<br />

produção <strong>de</strong> filmes.<br />

Ação direta<br />

A ação direta do governo ocorreu principalmente em áreas como o patrimônio<br />

histórico e cultural (com apoio da Unesco e do Banco Mundial), a compra <strong>de</strong> livros para<br />

bibliotecas públicas ou a distribuição <strong>de</strong> kits para bandas <strong>de</strong> música do interior. O<br />

governo fez também megasexposições, como a Mostra do Re<strong>de</strong>scobrimento Brasil +<br />

500, <strong>de</strong> comemoração dos 500 anos <strong>de</strong> chegada dos portugueses, ou a exposição<br />

realizada no Petit Palais, em Paris, sobre o barroco brasileiro <strong>–</strong> ambas subordinadas ao<br />

marketing do governo. Como o ministro Weffort confessou: “as coisas da cultura têm<br />

custo baixo e rendimento em visibilida<strong>de</strong> alto”.<br />

O balanço dos oito anos do tucanato à frente da cultura mostra números<br />

gigantes, que correspon<strong>de</strong>m ao tamanho do país, à diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua cultura e, como<br />

seria <strong>de</strong> se esperar, à dimensão <strong>de</strong> seu mercado. Nesse período, o número <strong>de</strong><br />

empresas que aplicaram recursos em marketing cultural com base nas leis fe<strong>de</strong>rais <strong>de</strong><br />

incentivo à cultura cresceu mais <strong>de</strong> oito vezes. Passou <strong>de</strong> 350, em 1994, para mais <strong>de</strong><br />

3.000, em 2001. Em 2000, o setor mais beneficiado foi o musical (57,4 milhões <strong>de</strong><br />

reais), <strong>de</strong>pois as artes cênicas (56,4 milhões <strong>de</strong> reais) e as artes integradas, que<br />

envolvem mais <strong>de</strong> uma área cultural num mesmo projeto (37,3 milhões <strong>de</strong> reais). Em<br />

2001, as empresas empregaram 376,3 milhões <strong>de</strong> reais, em 1.224 projetos <strong>–</strong> <strong>de</strong>sse<br />

valor, 260 milhões <strong>de</strong> reais são <strong>de</strong> renúncia fiscal. Os principais investidores foram<br />

empresas estatais <strong>–</strong> a campeã foi a Petrobrás (111 milhões <strong>de</strong> reais, 30 % do total).


Em seguida vieram a Eletrobrás, com 18 milhões <strong>de</strong> reais; o BEMG, com 14 milhões; e<br />

o Grupo Pão <strong>de</strong> Açúcar, que investiu 13 milhões <strong>de</strong> reais.<br />

O volume <strong>de</strong> recursos ajudou a criar uma indústria: transformou a ativida<strong>de</strong><br />

cultural no principal setor da criação <strong>de</strong> empregos no país, comparado com outros<br />

ramos da indústria. Citando dados da Fundação João Pinheiro, o critico literário José<br />

Castelo diz que, já em 1998, elas “criaram mais empregos do que qualquer setor<br />

industrial consi<strong>de</strong>rado isoladamente”. A retomada da produção do cinema brasileiro<br />

talvez seja a vitrine mais visível e brilhante <strong>de</strong>sse período. Em 1993, só foram lançados<br />

três filmes, o fundo do poço da <strong>de</strong>sorganização que veio da era Collor. Em 2002, um<br />

balanço do governo comemorou a realização <strong>de</strong> 1.199 filmes entre 1995 e 2002. Foram<br />

190 longas, 669 curtas e 340 documentários. O investimento foi <strong>de</strong> 646 milhões <strong>de</strong><br />

reais <strong>–</strong> 75 milhões do governo e o resto <strong>de</strong> renúncia fiscal, que se traduziram em filmes<br />

como Carlota Joaquina, princesa do Brasil, <strong>de</strong> Carla Camurati, que revela o <strong>de</strong>sapreço<br />

pela história do país, típico <strong>de</strong>sse período, ou O Que É Isso Companheiro, que<br />

preten<strong>de</strong> ser uma avaliação crítica da luta contra a ditadura militar. Ou em filmes que<br />

“po<strong>de</strong>riam” agradar Hollywood e conquistar o Oscar, como O quatrilho, <strong>de</strong> 1995, ou<br />

Central do Brasil, <strong>de</strong> 1998. O governo criou, em 2001, a Agência Nacional do Cinema<br />

(Ancine), para apoiar os produtores cinematográficos.<br />

Menos visível que o cinema, o setor <strong>de</strong> livros também traduz-se em números<br />

enormes. Em 2000, foram 45 mil títulos (entre novas edições e reedições) e 329<br />

milhões <strong>de</strong> exemplares. Menos <strong>de</strong> 2 livros por habitante <strong>–</strong> menos ainda se<br />

consi<strong>de</strong>rarmos que, daquele total, 198 milhões (isto é, 60%) foram livros didáticos. Mas<br />

que tornam o país, diz Elmer Corrêa Barbosa, da Biblioteca Nacional, “o maior produtor<br />

<strong>de</strong> livros em toda a América Latina e [que] ganha da América Latina somada a<br />

Portugal. Só per<strong>de</strong> para a Espanha”.<br />

Um dos projetos <strong>de</strong> Weffort era dotar cada município brasileiro <strong>de</strong> uma biblioteca<br />

pública. Quando assumiu, cerca <strong>de</strong> 3.000 dos 5.800 municípios brasileiros (mais da<br />

meta<strong>de</strong>) não tinha nenhuma. Até 2001, o governo ajudou a criar 1.200 bibliotecas e<br />

comprou cerca <strong>de</strong> 2.600 livros para cada nova biblioteca. Nestes oito anos <strong>de</strong> governo,<br />

as compras do governo (Minstério da Educação e MinC) injetaram 4 bilhões <strong>de</strong> reais no<br />

mercado do livro, eqüivalendo a 25% do faturamento do setor <strong>–</strong> foram distribuídos<br />

cerca <strong>de</strong> 1 bilhão <strong>de</strong> livros. O Estado brasileiro é “o maior comprador <strong>de</strong> livros do<br />

mundo”, diz Weffort.<br />

No mundo da música, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da ação do governo, ocorreu uma<br />

gran<strong>de</strong> mudança tecnológica. Em 1989, ven<strong>de</strong>ram-se 56 milhões <strong>de</strong> LPs (vinil), contra<br />

2,1 milhões <strong>de</strong> CDs. Em 1995, os números praticamente se inverteram: a venda <strong>de</strong> LPs<br />

caiu para 7,3 milhões e a dos CDs alcançou 56,8 milhões. Hoje, cerca <strong>de</strong> 100 milhões<br />

<strong>de</strong> CDs são vendidos por ano e a produção <strong>de</strong> vinil <strong>de</strong>sapareceu. A mudança


tecnológica teve repercussões na qualida<strong>de</strong> das produções, com a generalização <strong>de</strong><br />

reedições <strong>de</strong> sucessos do passado, <strong>de</strong> antologias populares, que passaram a<br />

concorrer com os artistas atuais. Além disso, a facilida<strong>de</strong> técnica das gravações e da<br />

reprodução dos discos (com investimentos significativamente mais baixos do que na<br />

produção em vinil), permitiu também o surgimento <strong>de</strong> inúmeras gravadoras<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />

Assim, a ação do governo voltou-se para o apoio às orquestras sinfônicas e às<br />

bandas <strong>de</strong> música em projetos <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong> pautas e gravação <strong>de</strong> música erudita<br />

colonial.<br />

Um exemplo é o apoio ao projeto Acervo da Música <strong>Brasileira</strong> <strong>–</strong> Restauração e<br />

Difusão <strong>de</strong> Partituras, sob patrocínio da Petrobrás, baseado no Museu <strong>de</strong> Música <strong>de</strong><br />

Mariana (MG), voltado à restauração das obras dos mestres capelas das igrejas<br />

coloniais, esquecidas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais nos arquivos das sacristias. O projeto<br />

prevê o lançamento <strong>de</strong> nove discos até o final <strong>de</strong> 2003. Outro projeto, nessa linha, foi a<br />

História da Música <strong>Brasileira</strong>, dirigido por Ricardo Kanji e por Ricardo Maranhão, para<br />

mapear o período que vai da Colônia a nossos dias.<br />

Mas o gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong> investimentos nesta área, o prato <strong>de</strong> resistência da<br />

ação do ministério, foi a distribuição <strong>de</strong> kits <strong>de</strong> instrumentos para bandas <strong>de</strong> música <strong>–</strong><br />

foram 300 por ano, ao preço <strong>de</strong> 17.500 reais, enviados principalmente a cida<strong>de</strong>s do<br />

interior. Foi gasto mais dinheiro com bandas <strong>de</strong> música do que com orquestras<br />

sinfônicas. O Ministério da <strong>Cultura</strong> voltou-se também para a restauração, recuperação<br />

e conservação <strong>de</strong> sítios e cida<strong>de</strong>s históricas, por meio do Projeto Monumenta, com<br />

apoio do Banco Mundial e da Unesco.<br />

Dirigismo<br />

O balanço da ação cultural do governo, examinado <strong>de</strong>sse ângulo, dos números,<br />

escon<strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>, problemas graves. As empresas passaram a intervir na área<br />

cultural <strong>–</strong> não o governo. Nestes oito anos, as empresas particulares investiram três<br />

vezes mais que o governo, segundo o relatório da equipe <strong>de</strong> transição do presi<strong>de</strong>nte<br />

eleito, Luís Inácio Lula da Silva. Na gestão tucana, foram captados 2 bilhões <strong>de</strong> reais<br />

por meio das leis <strong>de</strong> incentivos à cultura, enquanto o governo só investiu 746 milhões<br />

<strong>de</strong> reais. “É importante <strong>de</strong>stacar que os recursos da renúncia fiscal, na sua maior parte,


são provenientes das empresas estatais, portanto, duplamente públicos”, diz o<br />

relatório.<br />

São opções que revelam, na verda<strong>de</strong>, a falta <strong>de</strong> uma política cultural, raiz dos<br />

problemas que os críticos assinalam. A recusa ao dirigismo estatal é apresentada como<br />

uma ação cultural <strong>de</strong>mocrática, reforçada pela livre ação do mercado. Nada mais<br />

enganoso: a omissão do governo foi substituída nessa área sensível pelo dirigismo<br />

empresarial. Esse dirigismo teve duas conseqüências nefastas: a concentração dos<br />

recursos nas áreas mais ricas e uma mo<strong>de</strong>lação da elaboração cultural pelo mercado.<br />

Deixado ao sabor das <strong>de</strong>cisões das empresas doadoras <strong>de</strong> recursos, a captação<br />

<strong>de</strong> dinheiro ficou concentrada na região su<strong>de</strong>ste (50% no Rio e 28% em São Paulo). O<br />

maestro Júlio Medaglia diz que os sete estados mais ricos ficaram com 92% das<br />

dotações na sua área, enquanto aos sete mais pobres coube apenas 0,5%. Isto seria o<br />

mesmo, diz o maestro, que distribuir comida <strong>de</strong> graça na Avenida Paulista e <strong>de</strong>ixar o<br />

sertanejo da caatinga morrer <strong>de</strong> fome.<br />

O outro problema é o surgimento <strong>de</strong> uma “cultura do marketing”, uma estética<br />

ditada não por um governo autoritário “mas pelos <strong>de</strong>partamentos <strong>de</strong> marketing,<br />

publicida<strong>de</strong> e promoções das empresas”, diz o crítico José Castelo.<br />

“A questão central não era tanto a origem do dinheiro, uma vez que no incentivo<br />

fiscal ele é também, em última instância, público, mas sim a ausência <strong>de</strong> uma política<br />

que gerenciasse seu uso”, diz ele. Os <strong>de</strong>partamentos <strong>de</strong> marketing, eventos e<br />

promoções das empresas passaram a dominar a área e, numa “perversão grave”,<br />

como diz ele, muitos artistas e produtores culturais teriam passado a arquitetar projetos<br />

que viessem a mostrar sintonia com as políticas empresariais”, que “<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m quais<br />

projetos merecem vir à luz ou não”, diz o crítico.<br />

É uma “cultura <strong>de</strong> resultados”, bem ao gosto da i<strong>de</strong>ologia gerencial dominante, e<br />

que se revela seja no cândido otimismo do ministro Weffort, seja na crítica ácida dos<br />

artistas. Weffort comemorou o aumento do número <strong>de</strong> expectadores do cinema<br />

brasileiro: <strong>de</strong> 36 mil, em 1992, para sete milhões <strong>de</strong> espectadores, em 2001. Um ano<br />

inteiro <strong>de</strong> expectadores não chega ao número que o cinema estrangeiro registra em um<br />

mês <strong>–</strong> aliás, a contrário do que diz o governo, entre 1991 e 2001, o público <strong>de</strong> filmes <strong>de</strong><br />

fora do país cresceram <strong>de</strong> 7,6 milhões, ao mês, para 7,8 milhões.<br />

Pouco antes <strong>de</strong> falecer, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2001, a cantora Cassia Eller queixavase<br />

da estética do lucro: “Não consigo mais me relacionar com ninguém. Só sirvo para<br />

ganhar dinheiro”. Para o dramaturgo <strong>Sérgio</strong> <strong>de</strong> Carvalho, da Companhia do Latão, o<br />

caminho para a cultura do país está noutra direção: “o dramaturgo assim como todo<br />

artista tem <strong>de</strong> pensar em si mesmo como uma força social útil”. Em 1999, artistas <strong>de</strong><br />

teatro lançaram o manifesto Arte contra a Barbárie, <strong>de</strong>nunciando a política cultural


tucana. Atacando a cultura do marketing, <strong>de</strong>nunciavam que as empresas premiavam<br />

apenas uma “política <strong>de</strong> eventos”. Os manifestantes diziam recusar a visão<br />

mercadológica <strong>de</strong> transformar a arte em “produto cultural”. O que se chama <strong>de</strong><br />

mercado <strong>de</strong> artes, dizia o manifesto, não passa <strong>de</strong> uma indústria <strong>de</strong> diversão <strong>–</strong> a<br />

responsabilida<strong>de</strong> dos artistas é criar “bens simbólicos” e não produtos, concluíam.<br />

As críticas vieram mesmo <strong>de</strong> empresários do setor. Um <strong>de</strong>les é <strong>Sérgio</strong> Reis,<br />

diretor do Grupo Positivo (que produz, entre outras coisas, livros didáticos). Para ele,<br />

“quem faz cultura pelo incentivo fiscal não comprou a cultura, não percebeu sua<br />

importância na formação <strong>de</strong> imagem. É só um mercantilista e <strong>de</strong>predador, do tipo que<br />

pega a jabuticaba no pé, arrebenta os galhos e vai embora”. O incentivo fiscal <strong>de</strong>via ser<br />

apenas um <strong>de</strong>talhe, diz. Mas o que domina hoje é “amor pago, é prostituição”.<br />

Por outro lado, os incentivos não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ter um viés político, ao que tudo<br />

indica. O relatório da equipe <strong>de</strong> transição do governo Lula <strong>de</strong>nuncia que o projeto<br />

Monumenta, que teve um orçamento <strong>de</strong> 200 milhões <strong>de</strong> dólares e atuou nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Olinda, Recife, Salvador, Ouro Preto, São Luís, Rio e São Paulo, excluiu cida<strong>de</strong>s<br />

históricas, como Belém (PA) e São Luís (MA), por serem governadas por partidos <strong>de</strong><br />

oposição, o PT e o PDT. A política geral do governo, <strong>de</strong> corte dos gastos públicos para<br />

geração do superavit primário exigido pelo FMI, também prejudicou o projeto para a<br />

criação <strong>de</strong> bibliotecas municipais. O ministério programou gastos <strong>de</strong> 13,4 milhões <strong>de</strong><br />

reais naquele programa, mas só teve dinheiro para pagar 2,2 milhões <strong>de</strong> reais (16,6%<br />

do total).<br />

A passagem tucana pelo governo <strong>de</strong>ixa alguns símbolos reveladores. Um eles é<br />

a contradição entre a valorização da arte barroca colonial, mostrada fora <strong>de</strong> seu<br />

contexto em exposições monumentais, e a falência dos municípios brasileiros <strong>–</strong> que se<br />

traduz, neste particular, na <strong>de</strong>generação <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s históricas, entre elas a Capital do<br />

Barroco, Ouro Preto, ameaçada pela Unesco <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o título <strong>de</strong> Patrimônio <strong>Cultura</strong>l<br />

da Humanida<strong>de</strong>.<br />

Outro símbolo foram as comemorações oficiais dos 500 anos do Brasil. A festa<br />

oficial <strong>de</strong> Porto Seguro, no dia 22 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2000, repetiu, em palco e momento<br />

privilegiados, sob os olhos do mundo, o reiterado fiasco da relação colonizada e<br />

subalterna dos setores conservadores da classe dominante brasileira com os centros<br />

<strong>de</strong> comando estrangeiros. Nela, o homenageado foi, como sempre, o colonizador,<br />

presente na figura do presi<strong>de</strong>nte português Jorge Sampaio. O povo foi alijado pelo forte<br />

aparato policial militar, mobilizado para manter, a pelo menos 60 quilômetros <strong>de</strong><br />

distância, índios, negros, sem-terra, trabalhadores, oposicionistas, <strong>de</strong>mocratas, forças<br />

sociais e políticas.


Outro símbolo, significativo, <strong>de</strong>ssa mentalida<strong>de</strong> colonizada foi a gafe <strong>de</strong> <strong>FHC</strong><br />

num jantar com cerca <strong>de</strong> 100 empresários coreanos, em Seul, em janeiro <strong>de</strong> 2001.<br />

Desmerecendo o cargo e seu povo, o presi<strong>de</strong>nte falou em inglês. Advertido <strong>de</strong> que não<br />

era entendido e que seu discurso precisava ser traduzido ao coreano, <strong>de</strong>srespeitou<br />

também seus anfitriões, que não são obrigados, em seu próprio país, a falar um idioma<br />

estrangeiro. O presi<strong>de</strong>nte poliglota saiu-se com esta: “imaginei que o inglês fosse uma<br />

língua mais familiar na Coréia”.<br />

Se as épocas históricas <strong>de</strong>ixam o registro literário significativo <strong>de</strong> suas<br />

contradições e realizações, qual seria o escritor ou o romance que representa a década<br />

<strong>de</strong> 1990, o predomínio do tucanato? Ele não está à vista. Por isso, o historiador do<br />

futuro, que olhar para esta época e tentar encontrar seu signo literário, terá que se<br />

contentar com os livros <strong>de</strong> Paulo Coelho, o fast food da literatura e duplo perfeito <strong>de</strong><br />

<strong>FHC</strong>: tiveram origem no mesmo campo progressista e <strong>de</strong>mocrático (ele foi o autor <strong>de</strong><br />

algumas letras geniais cantadas por Raul Seixas), mas passaram para o outro campo,<br />

o campo dominado pelo mercado, pela pobreza teórica e cultural, e pela avaliação das<br />

obras, <strong>de</strong> arte ou <strong>de</strong> outro tipo, pelo <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> suas vendas.<br />

Como o “mercado” procurou amarrar o novo presi<strong>de</strong>nte<br />

No último ano, o oitavo, o “mercado” e os financistas <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> espalharam o terror com o<br />

argumento <strong>de</strong> que a única alternativa ao caos seria a continuida<strong>de</strong> da política econômica.<br />

O ano <strong>de</strong> 2002 começou relativamente bem, com a queda do dólar, que recuou<br />

<strong>de</strong> perto <strong>de</strong> 2,75 reais para menos <strong>de</strong> 2,50 reais. A economia americana, que ficara em<br />

recessão por quase um ano, entre o final <strong>de</strong> 2000 e <strong>de</strong> 2001, começou uma mo<strong>de</strong>sta<br />

recuperação. Logo no seu início, a candidatura <strong>de</strong> Roseana Sarney à presidência da<br />

República, que representava um golpe para o grupo palaciano que <strong>de</strong>finira apoio a<br />

José Serra, veio abaixo, no escândalo provocado pela exibição, no Jornal Nacional, do<br />

dinheiro encontrado na se<strong>de</strong> da empresa da governadora e <strong>de</strong> seu marido. E José<br />

Serra começou a subir nas pesquisas <strong>de</strong> intenção <strong>de</strong> voto para presi<strong>de</strong>nte.


Tudo indicava que no último ano <strong>de</strong> seu governo, o oitavo ano, Fernando<br />

Henrique e sua equipe conseguiriam fazer seu sucessor. E apostaram todas as cartas<br />

na continuida<strong>de</strong>.<br />

Com o mês <strong>de</strong> maio, no entanto, vieram as incertezas. A candidatura <strong>de</strong> Serra<br />

começou a ser atropelada pela <strong>de</strong> Ciro Gomes, do PPS mas com gran<strong>de</strong> apoio no PFL<br />

<strong>–</strong> um sinal <strong>de</strong> que o dissenso rondava o bloco governista. A recuperação da economia<br />

americana se mostrou tímida, o que indicava que a crise no centro do sistema<br />

capitalista não havia sido <strong>de</strong>belada. E, pela primeira vez em muitos anos, o Brasil<br />

começou a enfrentar dificulda<strong>de</strong>s para rolar sua dívida interna. O Banco Central já<br />

havia inventado uma série <strong>de</strong> fórmulas para proteger os <strong>de</strong>vedores em dólar da<br />

escalada da moeda americana no ano anterior. Quando o dólar disparou <strong>de</strong> novo, em<br />

maio <strong>de</strong> 2002, a caixa <strong>de</strong> truques do BC estava vazia e os que carregavam títulos do<br />

Tesouro do Brasil começaram a ver seus papéis <strong>de</strong>svalorizados, dificultando a rolagem<br />

da dívida.<br />

Nesse contexto, a candidatura <strong>de</strong> Lula começou a subir nas pesquisas. E portavozes<br />

do governo e do chamado mercado começaram a multiplicar <strong>de</strong>clarações sobre<br />

o caos que viria com a vitória da oposição. Cobravam <strong>de</strong> todos os eventuais<br />

sucessores <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> um compromisso público com a manutenção da política<br />

econômica.<br />

A pressão maior recaiu sobre Lula. E, na medida que ele foi-se distanciando dos<br />

outros, as pressões foram aumentando. As cobranças eram bem claras: garantias <strong>de</strong><br />

continuida<strong>de</strong> das atuais políticas monetária e fiscal e do regime <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e<br />

flutuação do câmbio, bem como <strong>de</strong> cumprimento dos contratos da dívida pública<br />

interna e externa.<br />

A instabilida<strong>de</strong> cambial era causada pela recusa dos gran<strong>de</strong>s credores (bancos<br />

e fundos <strong>de</strong> investimento) <strong>de</strong> continuarem comprando novos títulos do governo quando<br />

os antigos venciam. Essas gran<strong>de</strong>s instituições passaram a comprar dólares entre si, o<br />

que fez com que rapidamente a taxa <strong>de</strong> câmbio subisse. Logo, muitos outros estavam<br />

fazendo a mesma coisa e iniciou-se uma gran<strong>de</strong> fuga <strong>de</strong> dólares para o estrangeiro,<br />

principalmente por meio das CC-5, que permitiram a evasão, até outubro <strong>de</strong> 2002, <strong>de</strong><br />

8,5 bilhões <strong>de</strong> dólares.<br />

Frente à instabilida<strong>de</strong> e às pressões dos gran<strong>de</strong>s financistas, a atitu<strong>de</strong> do<br />

governo <strong>FHC</strong> foi sempre <strong>de</strong> leniência. O Banco Central ten<strong>de</strong>u a aceitar os altos juros<br />

pedidos pela rolagem da dívida, nada fez e nada faz para diminuir o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> barganha<br />

dos gran<strong>de</strong>s bancos. Essa omissão das autorida<strong>de</strong>s ajudou a criar o clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre<br />

iminente.


Assim surgiu o axioma que constrangeu a socieda<strong>de</strong> e manietou os candidatos:<br />

os mercados precisavam ser tranqüilizados. O próprio governo <strong>FHC</strong>, por meio <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>clarações do ministro da Fazenda e do presi<strong>de</strong>nte do Banco Central, juntou-se à<br />

pressão do setor financeiro no sentido <strong>de</strong> que os candidatos <strong>de</strong>ssem as “garantias”<br />

pleiteadas.<br />

Ao final <strong>de</strong> junho, os quatro principais candidatos começaram a <strong>de</strong>clarar, <strong>de</strong><br />

diferentes formas, sua a<strong>de</strong>são à pauta do “mercado”, assegurando o respeito aos<br />

contratos e garantindo a continuida<strong>de</strong> do câmbio flutuante, das metas <strong>de</strong> inflação e da<br />

política <strong>de</strong> superávits fiscais. Lula <strong>de</strong>clarou um compromisso parcial <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são a essa<br />

pauta com a chamada Carta ao Povo Brasileiro, em 22 <strong>de</strong> junho: “nosso povo constata<br />

com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a<br />

soberania do país ficou em gran<strong>de</strong> parte comprometida, a corrupção continua alta e,<br />

principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras. (...) O<br />

sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o <strong>de</strong> que o<br />

atual mo<strong>de</strong>lo esgotou-se. Por isso, o país não po<strong>de</strong> insistir nesse caminho, sob pena<br />

<strong>de</strong> ficar numa estagnação crônica, ou até mesmo <strong>de</strong> sofrer, mais cedo ou mais tar<strong>de</strong>,<br />

um colapso econômico, social e moral.”<br />

Mais à frente, no entanto, a Carta explicita: “vamos preservar o superávit<br />

primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e <strong>de</strong>strua a<br />

confiança na capacida<strong>de</strong> do governo <strong>de</strong> honrar seus compromissos. (...)A estabilida<strong>de</strong><br />

e o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio <strong>de</strong> todos os<br />

brasileiros” e continua citando explicitamente a garantia dos contratos e o cumprimento<br />

dos acordos já firmados, as metas inflacionárias e a preservação dos superávits fiscais.<br />

A Continuida<strong>de</strong><br />

Mas a pretensão dos gran<strong>de</strong>s capitalistas nacionais e internacionais <strong>–</strong> e da<br />

própria equipe econômica <strong>de</strong> <strong>FHC</strong> <strong>–</strong> <strong>de</strong> influenciar no programa do próximo presi<strong>de</strong>nte<br />

da República ia além das simples <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> intenção e dos compromissos<br />

públicos. Exigia também a assunção <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s institucionais que <strong>de</strong>ssem<br />

segurança <strong>de</strong> cumprimento das promessas anunciadas. Incluíam a aceitação <strong>de</strong> um<br />

Banco Central in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos po<strong>de</strong>res Executivo e Legislativo que pu<strong>de</strong>sse operar<br />

“tecnicamente”, sem estar sujeito à “pressão política” <strong>–</strong> o que passou a ser chamado<br />

autonomia do Banco Central; <strong>de</strong> uma política monetária “responsável”, que garantisse<br />

a “estabilida<strong>de</strong> monetária” e da assinatura <strong>de</strong> um novo acordo com o FMI, assegurando<br />

o monitoramento da ação do novo governo, pelo menos no seu primeiro ano.<br />

Assim nasceu o novo acordo com o Fundo, assinado em 4 <strong>de</strong> setembro, que diz<br />

textualmente que seu objetivo é “garantir a estabilida<strong>de</strong> econômica e proporcionar um<br />

arcabouço para a continuida<strong>de</strong> das principais políticas macroeconômicas no ano<br />

vindouro [2003]”. O acordo também traz como parte das metas <strong>de</strong> “<strong>de</strong>sempenho


estrutural” a obrigação para o governo brasileiro <strong>de</strong> aprovar, até <strong>de</strong>zembro próximo, a<br />

Proposta <strong>de</strong> Emenda à Constituição nº 53, <strong>de</strong> 1999, que altera o artigo 192 da<br />

Constituição, o que permitirá “ao próximo governo, submeter ao Congresso uma<br />

proposta <strong>de</strong> autonomia operacional do Banco Central do Brasil”.<br />

Vencidas as eleições, os representantes do novo governo reafirmaram os<br />

compromissos assumidos durante as turbulências anteriores ao primeiro turno. E essas<br />

medidas, evi<strong>de</strong>ntemente, representam limitações adicionais para o necessário<br />

enfrentamento <strong>de</strong> outras restrições herdadas do governo Fernando Henrique<br />

Aceitar a permanência <strong>de</strong> metas inflacionárias como único objetivo para a<br />

política monetária, significa manter uma política monetária apenas comprometida com<br />

a <strong>de</strong>svalorização da moeda e não com o crescimento, com uma política que restringe o<br />

crédito bancário e mantém os juros elevados. A manutenção da meta do superávit<br />

primário também representa problemas adicionais. A dívida cresceu por causa dos<br />

juros altos e da <strong>de</strong>svalorização do real. Comprometer-se a conseguir gran<strong>de</strong>s<br />

superávits, ao tempo em que se tem que manter uma política monetária <strong>de</strong> juros altos e<br />

uma política <strong>de</strong> câmbio flutuante, significa assumir um gran<strong>de</strong> risco <strong>de</strong> não conseguir<br />

aten<strong>de</strong>r ao maior anseio dos brasileiros: retomar o <strong>de</strong>senvolvimento econômico.<br />

A concessão <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência do Banco Central permitirá que uma diretoria<br />

com mandato fixo, que só po<strong>de</strong>rá ser <strong>de</strong>stituída por <strong>de</strong>cisão da maioria do Senado,<br />

seja escolhida para levar a cabo uma <strong>de</strong>terminada política monetária, cambial e<br />

financeira. No caso atual, um Banco Central “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” significará, certamente, o<br />

compromisso <strong>de</strong> continuar praticando a atual política monetária <strong>de</strong> metas inflacionárias<br />

<strong>–</strong> às custas <strong>de</strong> taxas <strong>de</strong> juros elevados e <strong>de</strong> restrição ao financiamento bancário <strong>–</strong> e a<br />

política <strong>de</strong> ampla liberda<strong>de</strong> para a movimentação <strong>de</strong> capitais, o que <strong>de</strong>ixa o país refém<br />

das oscilações do mercado financeiro mundial. Em especial, porque os <strong>de</strong>fensores da<br />

“in<strong>de</strong>pendência”, inclusive o FMI, enten<strong>de</strong>m que a ela só serve se for para o BC agir<br />

“tecnicamente”, sem mais pressões políticas “in<strong>de</strong>vidas” por parte do governo e do<br />

Congresso Nacional. E, para essas instituições, agir tecnicamente significa executar<br />

uma política monetária e cambial que mantenha, no fundamental, as mesmas<br />

características das existentes até 2002. Uma política que esteja <strong>de</strong> acordo com o<br />

figurino “técnico” em vigor.<br />

Des<strong>de</strong> o início do Plano Real até 1998, o que se consi<strong>de</strong>rava um bom regime<br />

cambial era aquele que mantinha a moeda nacional estável em relação ao dólar,<br />

fazendo com que a taxa <strong>de</strong> juros da economia fosse mantida elevada. O país podia<br />

ficar estagnado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a moeda não se <strong>de</strong>svalorizasse. Após levar o país à<br />

insolvência em 1998, a política cambial recomendada, a melhor “tecnicamente”, passou<br />

a ser a da livre flutuação do dólar. Agora eles querem que permaneça o livre câmbio,


mesmo que haja fuga <strong>de</strong> capitais e o país viva sempre na incerteza e na instabilida<strong>de</strong><br />

cambial.<br />

Um Banco Central atuando <strong>de</strong> modo “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” do governo fe<strong>de</strong>ral traz<br />

uma enorme limitação à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> implementar políticas econômicas diferentes<br />

das atuais, que, não por coincidência, são tão <strong>de</strong> agrado do “mercado”. Por exemplo,<br />

será impossível retomar a política <strong>de</strong> aumento do investimento estatal se a política<br />

monetária mantiver a taxa <strong>de</strong> juros elevada ou não permitir o aumento da concessão <strong>de</strong><br />

créditos por parte do sistema bancário. Também não será possível qualquer medida<br />

mais efetiva <strong>de</strong> renegociação da dívida externa se o BC sustentar a taxa <strong>de</strong> câmbio<br />

flutuante e continuar no comando exclusivo das reservas <strong>de</strong> divisas. O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

barganha do país, como <strong>de</strong>vedor soberano, será diminuído.<br />

Bacen in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

Na prática, o Banco Central “in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” se constituirá em um governo a<br />

parte, que limitará a política econômica do novo presi<strong>de</strong>nte eleito; inclusive sua política<br />

fiscal, ou seja, a tributação e o gasto público. Com isso, o novo governo ficará<br />

“enquadrado”, limitado às mesmas condicionantes das políticas monetárias e cambiais<br />

atuais.<br />

É claro que leis po<strong>de</strong>m ser mudadas ou mesmo uma diretoria do Banco Central<br />

po<strong>de</strong>rá ser <strong>de</strong>mitida. Mas isso não po<strong>de</strong>rá ser feito sem um custo político altíssimo e<br />

nem po<strong>de</strong>rá ser <strong>de</strong>cidido com a necessária surpresa. Com o enorme po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

retaliação que o capital financeiro passou a ter no país a partir do governo <strong>FHC</strong>, uma<br />

mudança na direção do Bacen dará oportunida<strong>de</strong> à especulação para levar o país à<br />

bancarrota antes que o governo possa adotar medidas <strong>de</strong> proteção à economia<br />

nacional e aos interesses do povo.<br />

Mudanças no Banco Central sem dúvida terão que ser feitas. Mas, ao contrário<br />

do que preten<strong>de</strong> o FMI e os banqueiros, essas mudanças <strong>de</strong>vem ser para restringir a<br />

atual in<strong>de</strong>pendência com que age o Banco Central. Sem ter nenhuma limitação para<br />

gastar, só na gestão <strong>de</strong> Armínio Fraga, o Banco Central já acumulou prejuízos, em<br />

valores corrigidos, <strong>de</strong> 35 bilhões <strong>de</strong> reais, que foram integralmente repassados ao<br />

Tesouro Nacional e ao contribuinte. O prejuízo do Bacen é maior do que o déficit que<br />

dizem existir na Previdência Social.


Para executar a política a<strong>de</strong>quada ao “mercado”, emitem títulos, assumem<br />

imensos riscos <strong>de</strong> <strong>de</strong>svalorização cambial, sem se preocupar com a existência <strong>de</strong><br />

recursos no orçamento ou com a capacida<strong>de</strong> do Tesouro <strong>de</strong> suportar tais custos.<br />

Enquanto financistas e outros gran<strong>de</strong>s capitalistas são salvos ou enriquecem com sua<br />

política, o Banco Central continua reclamando <strong>de</strong> mais austerida<strong>de</strong> nos gastos<br />

públicos, recomendando que se cortem <strong>de</strong>spesas nos serviços públicos e que os<br />

reajustes nos benefícios da Previdência sejam limitados, reduzindo cada vez mais os já<br />

mo<strong>de</strong>stos rendimentos <strong>de</strong> aposentados e pensionistas.<br />

A reforma necessária ao BC, aquela que vai ensejar a mudança expressa na<br />

eleição <strong>de</strong> Luiz Inácio Lula da Silva, <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>, como qualquer outra autorida<strong>de</strong>, ter<br />

limites para seu endividamento e gasto. Sua ação, embora muito importante, <strong>de</strong>ve ser<br />

coor<strong>de</strong>nada com a política fiscal; o que se precisa, é fazer chegar ao Banco Central a<br />

responsabilida<strong>de</strong> fiscal. Antes <strong>de</strong> 1994, dizia-se que o Tesouro Nacional vivia com<br />

receitas inflacionárias geradas no Banco Central e que se <strong>de</strong>via separar as duas<br />

contas. Depois, o BC ficou tão in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte que submeteu o erário à sua autorida<strong>de</strong>,<br />

endividando-se e mandando a conta para o Tesouro. Agora, o que o país precisa é<br />

libertar o Tesouro do Banco Central e <strong>de</strong> seus financistas. Ao contrário <strong>de</strong> mais<br />

“autonomia”, o Bacen <strong>de</strong>ve submeter-se à política econômica do governo e não ter<br />

mais liberda<strong>de</strong> para, enfim, ser o próprio formulador da política governamental,<br />

seguindo os interesses do mercado e não necessariamente os do país e seu povo.<br />

Publicação do gabinete do <strong>de</strong>putado <strong>Sérgio</strong> <strong>Miranda</strong> <strong>–</strong> PcdoB-MG

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