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Perguntas que precisam de respostas - Luiz Antonio

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~ 2 ~


Philip Yancey<br />

PERGUNTAS<br />

QUE PRECISAM<br />

DE RESPOSTAS<br />

Traduzido por<br />

Cláudia Ziller Faria<br />

Preparado por Amigo Anônimo<br />

www.semeadores.net<br />

Nossos e-books são disponibilizados gratuitamente, com a única finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

oferecer leitura edificante a todos a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> não tem condições econômicas<br />

para comprar.<br />

Se você é financeiramente privilegiado, então utilize nosso acervo apenas para<br />

avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e livrarias, adquirindo os livros.<br />

Semeadores da Palavra e-books evangélicos<br />

Obs.: Algumas páginas não pu<strong>de</strong>ram ser recuperadas.<br />

~ 3 ~


PERGUNTAS QUE PRECISAM DE RESPOSTAS<br />

Copyright © 1984, 1998 por Wm. B. Eardmans Publishing Co.<br />

Traduzido para a língua portuguesa com permissão da William B. Eardmans Publishing<br />

Company, USA<br />

Todos os direitos reservados.<br />

Titula original: I was just won<strong>de</strong>ring<br />

Supervisão Editorial: Alzeli Simas<br />

Revisão: João Alves<br />

Marcelo Miranda<br />

Capa: Next Nouveau — Divisão Publicida<strong>de</strong><br />

M152e<br />

Yancey, Philip, 1949.<br />

CATALOGAÇÃO NA FONTE DO<br />

DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO<br />

<strong>Perguntas</strong> <strong>que</strong> <strong>precisam</strong> <strong>de</strong> <strong>respostas</strong> / Philip Yancey; traduzido por Cláudia<br />

Ziller Faria. — Rio <strong>de</strong> Janeiro: Textus, 2001.<br />

ISBN 85-87334-20-4<br />

1. Literatura cristã I. Título<br />

CDD-820<br />

Publicado no Brasil com a <strong>de</strong>vida autorização e com todos os direitos reservados pela;<br />

Associação Religiosa Editora Mundo Cristão<br />

Rua Antônio Carlos Tacconi. 79 — CEP 04810-020 — São Paulo — SP — Brasil<br />

Telefone; (11) 5668-1700 — Home page: www.mundocristao.com.br<br />

Editora associada a:<br />

Associação Brasileira <strong>de</strong> Editores Cristãos<br />

Câmara Brasileira do Livro<br />

Evangelical Christian Publishers Association<br />

~ 4 ~


Conteúdo<br />

Prefácio ................................................................................................................................................6<br />

1 Vida com Deus .......................................................................................................................................7<br />

Cônjuge rejeitado .................................................................................................................................8<br />

Metáforas misturadas ....................................................................................................................... 10<br />

Faça <strong>de</strong> Novo! .................................................................................................................................... 12<br />

Pensamentos sobre Jesus ................................................................................................................. 13<br />

O espírito dos casamentos arranjados ............................................................................................. 15<br />

JÓ e os enigmas do sofrimento ......................................................................................................... 17<br />

A escada da tribulação ...................................................................................................................... 18<br />

Deus escolhe os favoritos .................................................................................................................. 20<br />

O segredo espiritual do rei Davi ........................................................................................................ 22<br />

2 No mundo ........................................................................................................................................... 25<br />

A igreja da meia–noite ...................................................................................................................... 25<br />

A AIDS é um castigo <strong>de</strong> Deus ............................................................................................................. 27<br />

Um bom começo ............................................................................................................................... 29<br />

Ética <strong>que</strong> vale a pena......................................................................................................................... 31<br />

Escorpiões, vermes e mísseis ............................................................................................................ 33<br />

Perdão e reconciliação ...................................................................................................................... 35<br />

O valor <strong>de</strong> um ser humano ............................................................................................................... 37<br />

3 Outro mundo ...................................................................................................................................... 39<br />

Cuidado com os buracos–negros ...................................................................................................... 39<br />

Matemáticos nascidos <strong>de</strong> novo ......................................................................................................... 41<br />

Que aconteceu com o céu? ............................................................................................................... 43<br />

Imagine <strong>que</strong> o céu não existe ............................................................................................................ 45<br />

Domingo à tar<strong>de</strong>, na praia................................................................................................................. 46<br />

Perturbando o Universo .................................................................................................................... 47<br />

A ESTAÇÃO PERFUMADA .................................................................................................................. 49<br />

4 Entre os crentes.................................................................................................................................. 51<br />

O PODER DO AMOR E O AMOR AO PODER ....................................................................................... 52<br />

Aja como se Deus ainda estivesse vivo ............................................................................................. 55<br />

MÓRMONS, FARISEUS E OUTRAS PESSOAS BOAS ............................................................................ 56<br />

Crescendo como fundamentalista .................................................................................................... 57<br />

Morbidamente saudável ................................................................................................................... 59<br />

5 Vozes indispensáveis ......................................................................................................................... 61<br />

Efeitos covar<strong>de</strong>s da <strong>de</strong>flação ............................................................................................................. 61<br />

Imaginação convertida ...................................................................................................................... 63<br />

OS RISCOS DA RELEVANCIA ............................................................................................................... 64<br />

Dois bezerros teimosos ..................................................................................................................... 68<br />

O REJEITADO ..................................................................................................................................... 69<br />

Avançando para o passado ............................................................................................................... 70<br />

6 O animal humano ............................................................................................................................... 72<br />

O Universo e meu aquário ................................................................................................................ 72<br />

Reencontro da turma do 2º grau ...................................................................................................... 77<br />

O problema do prazer ....................................................................................................................... 80<br />

~ 5 ~


PREFÁCIO<br />

Suponho <strong>que</strong> todos os escritores se preocupem com a arrogância inerente ao ato <strong>de</strong><br />

escrever. Sempre <strong>que</strong> pego a caneta (ou melhor: removo a capa do teclado <strong>de</strong> meu<br />

computador) nasce em mim uma esperança: <strong>de</strong> <strong>que</strong>, ao terminar a leitura, o leitor sinta <strong>que</strong><br />

valeu a pena <strong>de</strong>dicar seu tempo à minha obra. Presumo ter o direito <strong>de</strong> levá–lo a <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

lado qual<strong>que</strong>r outra ativida<strong>de</strong> para prestar atenção em mim. Que me dá este direito?<br />

Quanto mais, porém, escrevo menos me preocupo com este assunto. Aprendi <strong>que</strong> eu, ou<br />

qual<strong>que</strong>r outro autor, tenho a oferecer apenas um ponto <strong>de</strong> vista. Apresento minha opinião –<br />

subjetiva, ten<strong>de</strong>nciosa, pessoal e necessariamente incompleta – e você, leitor, <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir se<br />

o resultado merece sua atenção.<br />

Há quinhentos anos o sábio renascentista Pico <strong>de</strong>lia Mirandola apresentou seu famoso<br />

discurso Oração a Respeito da Dignida<strong>de</strong> do Homem, no qual <strong>de</strong>finia o papel da humanida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro da criação. Com a criação dos animais. Deus preencheu todas as posições essenciais da<br />

natureza, mas o Divino Artífice ainda ansiava por uma criatura <strong>que</strong> compreen<strong>de</strong>sse o<br />

significado <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong> obra, <strong>que</strong> se enchesse <strong>de</strong> amor ao admirar a beleza e se enchesse <strong>de</strong><br />

admiração frente à sua gran<strong>de</strong>za.<br />

Contemplar e apreciar todo o resto, refletir sobre o significado, reverenciar e consagrar,<br />

estes papéis foram reservados para a espécie feita à imagem <strong>de</strong> Deus.<br />

Della Mirandola utilizou termos exaltados mas, como escritor, aceito sua premissa. Olho à<br />

minha volta, para a gran<strong>de</strong> obra da criação, e <strong>de</strong>sejo expressar meu próprio sentimento <strong>de</strong><br />

espanto e, até mesmo, <strong>de</strong> amor. A escritora cristã Flannery O'Connor afirmou <strong>que</strong> o autor <strong>que</strong><br />

aborda a fé "sentirá <strong>que</strong> vale a pena morrer, se for este o meio <strong>de</strong> ser encontrado por Deus".<br />

* * *<br />

Os editores da revista Christianity Today me convidaram, em 1983, para escrever uma<br />

coluna mensal. Minha primeira preocupação foi a <strong>de</strong> <strong>que</strong> um dia os assuntos se esgotassem.<br />

Estava mais acostumado a escrever livros, nos quais trabalhava com o mesmo tema durante<br />

vários anos. Perguntei–me se conseguiria enfocar um tópico diferente a cada mês.<br />

Com o passar dos anos, esta ansieda<strong>de</strong> se dissipou, e hoje o dia <strong>de</strong> escrever minha coluna<br />

para a revista é um dos mais agradáveis do mês. Resolvi <strong>que</strong> nunca escolheria o assunto ou<br />

tema até à data <strong>de</strong> entregar o trabalho. O ciclo idéia–escrita–publicação–reação do leitor,<br />

acontecendo em um ritmo rápido, chega a ser terapêutico, por<strong>que</strong> ajuda a aliviar o isolamento<br />

e a paranóia <strong>que</strong> po<strong>de</strong>m advir <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> longo prazo, nos quais vários anos separam o<br />

processo <strong>de</strong> escrever da verificação dos efeitos causados no leitor.<br />

Não gosto muito <strong>de</strong> livros escritos a partir <strong>de</strong> material previamente publicado, <strong>de</strong> modo<br />

<strong>que</strong> organizei os artigos em uma espécie: <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m coerente. Surpreendi–me ao encontrar<br />

alguns temas recorrentes. Escrever assemelha–se à terapia: os dois processos trazem à luz o<br />

<strong>que</strong> estava escondido.<br />

Na verda<strong>de</strong>, aprendo um pouco sobre mim mesmo ao rever meus escritos. Redigi todos<br />

estes artigos enquanto morava no centro <strong>de</strong> Chicago. Posteriormente, mu<strong>de</strong>i–me para o<br />

Colorado e, ao ler, você po<strong>de</strong>rá sentir o anseio <strong>que</strong> havia em mim por um ambiente mais<br />

rústico e pela beleza natural. Sinto–me muito bem subindo a pé uma montanha <strong>de</strong> mais <strong>de</strong><br />

4000m <strong>de</strong> altitu<strong>de</strong>, em um dia <strong>de</strong> Verão, sem qual<strong>que</strong>r outra companhia além das marmotas e<br />

lebres <strong>que</strong> moram lá.<br />

~ 6 ~


Os seres humanos (e me incluo aqui) parecem–me estranhos. Meio animais e meio anjos,<br />

sempre surpreen<strong>de</strong>mos e <strong>de</strong>sapontamos nós mesmos e uns aos outros. Ao escrever sobre as<br />

pessoas pego–me em um sentimento <strong>de</strong> ironia <strong>que</strong> praticamente <strong>de</strong>fine a nossa espécie.<br />

Embora seja evangélico e escreva freqüentemente sobre minha fé, nunca aceitei "a igreja"<br />

com facilida<strong>de</strong>. Sinto–me fora <strong>de</strong> lugar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la e tento ajustar–me, como alguém <strong>que</strong><br />

procura fazer com <strong>que</strong> um paletó <strong>de</strong> outro tamanho lhe sirva bem. Cresci em uma igreja<br />

fundamentalista, on<strong>de</strong> as pessoas pareciam estar sempre com raiva, mas aprendi a não aceitar<br />

as orientações da li<strong>de</strong>rança. Hoje, sendo escritor, a critica <strong>que</strong> fiz se volta contra mim: se não<br />

po<strong>de</strong>mos acreditar nos lí<strong>de</strong>res, em <strong>que</strong>m acreditaremos? Ainda não encontrei resposta para<br />

esta pergunta.<br />

Muitas vezes uso artigos curtos, como minha coluna na revista, como "expedições <strong>de</strong><br />

exploração", apresentando idéias <strong>que</strong>, mais tar<strong>de</strong>, transformar–se–ão em uma obra mais<br />

extensa. Minhas reflexões sobre a "igreja da meia–noite" me levaram a escrever o livro<br />

Igreja: Por <strong>que</strong> me Importar?. Continuei a pon<strong>de</strong>rar a pergunta <strong>de</strong> Simon Wiesenthal, e o<br />

resultado foi Maravilhosa Graça. Assuntos tratados em outras colunas tiveram expressão<br />

mais completa em Decepcionado com Deus e O Jesus <strong>que</strong> Eu Nunca Conheci.<br />

Ao preparar este livro, li também inúmeras cartas, na verda<strong>de</strong> todas <strong>que</strong> a Christianity<br />

Today recebeu em resposta aos meus artigos. Provavelmente, você será capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir<br />

quais geraram mais discussões: os <strong>que</strong> tratavam <strong>de</strong> política ou sexualida<strong>de</strong>. A coluna, porém,<br />

<strong>que</strong>, sozinha, suscitou o maior número <strong>de</strong> cartas foi uma composta apenas <strong>de</strong> perguntas.<br />

Escrevi–a logo após terminar a leitura do maravilhoso livro <strong>de</strong> Walker Percy intitulado<br />

The Message in the Hottle (A Mensagem na Garrafa), <strong>que</strong> começa com seis páginas <strong>de</strong><br />

perguntas como as seguintes:<br />

Por <strong>que</strong> o homem do século vinte é tão triste?<br />

Por <strong>que</strong> alguém po<strong>de</strong> sentir–se ma! em um bom ambiente, em uma tar<strong>de</strong> normal <strong>de</strong><br />

quarta–feira? E por <strong>que</strong> esta mesma pessoa consegue sentir–se bem em um ambiente<br />

ruim, digamos em um hotel velho durante uma tempesta<strong>de</strong> muito forte?<br />

Por <strong>que</strong> a única vez em <strong>que</strong> vi meu tio feliz foi na tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1941,<br />

quando os japoneses bombar<strong>de</strong>aram Pearl Harbor?<br />

Este estilo interrogativo <strong>de</strong> Percy <strong>de</strong>spertou algumas <strong>de</strong> minhas próprias perguntas, e<br />

<strong>de</strong>di<strong>que</strong>i–lhes uma coluna inteira, sem tentar encontrar <strong>respostas</strong>. Honestamente, acredito <strong>que</strong><br />

o entusiasmo <strong>de</strong>monstrado pelos leitores foi um sinal saudável. A reação <strong>de</strong>les me levou à<br />

forma como este livro foi organizado: com muitas perguntas e poucas <strong>respostas</strong>.<br />

Há uma última pergunta <strong>que</strong> nunca consegui respon<strong>de</strong>r. Por <strong>que</strong> tão poucos cristãos lêem<br />

Walker Percy?<br />

Philip Yancey<br />

1<br />

VIDA COM DEUS<br />

• Como é Deus? Por <strong>que</strong> a maioria dos livros teológicos O mostra como lógico, or<strong>de</strong>iro,<br />

imutável e inefável, enquanto a Bíblia O retrata como emocional, flexível, vulnerável e, acima<br />

<strong>de</strong> tudo, apaixonado?<br />

~ 7 ~


• Por <strong>que</strong> apenas 10% da Bíblia – as Epístolas – são estritamente didáticos, e todo o<br />

resto ensino por meios indiretos, como histórias, poesias, parábolas e visões proféticas? Por<br />

<strong>que</strong> 90% dos sermões nas igrejas evangélicas baseiam–se nos 10% didáticos?<br />

• Como Deus consegue amar tanta gente no mesmo tempo? Se Ele nos ama <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>,<br />

por <strong>que</strong> algumas <strong>de</strong> nossas orações mais urgentes ficam sem resposta? Por <strong>que</strong> não<br />

acontecem mais milagres?<br />

• Por <strong>que</strong> o livro <strong>de</strong> Jó está na Bíblia? Será <strong>que</strong> alguém já apresentou um argumento<br />

negando o amor <strong>de</strong> Deus <strong>que</strong> não apareça, <strong>de</strong> alguma forma, no livro <strong>de</strong> Jó? Se Jó termina o<br />

livro como herói e seus amigos como vilões, por <strong>que</strong> os cristãos citam mais as palavras<br />

<strong>de</strong>les?<br />

• Por <strong>que</strong> Deus não respon<strong>de</strong>u às perguntas <strong>de</strong> Jó? E por <strong>que</strong> ele parece não ter–se<br />

importado <strong>de</strong> ficar sem as <strong>respostas</strong>?<br />

• Como po<strong>de</strong>m os evangelistas da televisão promover com tanta animação a teologia da<br />

prosperida<strong>de</strong> em um mundo cheio <strong>de</strong> injustiça e sofrimento como o nosso? Será <strong>que</strong> algum<br />

cristão iraniano acredita na teologia da prosperida<strong>de</strong>?<br />

• Como po<strong>de</strong>m os evangelistas da televisão prometer prosperida<strong>de</strong> e segurança aos fiéis<br />

quando Jesus lhes prometeu uma cruz, enviou–os como ovelhas no meio <strong>de</strong> lobos e permitiu<br />

<strong>que</strong> a maioria <strong>de</strong> Seus discípulos morresse como mártires?<br />

• Que faz Deus ficar feliz?<br />

CÔNJUGE REJEITADO<br />

Isolei–me em um chalé nas montanhas do Colorado durante duas semanas <strong>de</strong> inverno.<br />

Levei comigo uma mala cheia <strong>de</strong> livros e anotações, mas, ao voltar, <strong>de</strong>scobri <strong>que</strong> só havia<br />

aberto um <strong>de</strong>les: a Bíblia. Comecei a ler em Gênesis e segui em frente. Do lado <strong>de</strong> fora, a<br />

neve caía furiosamente. Quando cheguei em Deuteronômio, a neve cobria o primeiro <strong>de</strong>grau<br />

da escada externa. Atingi os profetas e ela chegou à caixa <strong>de</strong> correio. Finalmente, quando<br />

terminei Apocalipse, precisei chamar um caminhão para <strong>de</strong>sobstruir a entrada da casa. Mais<br />

<strong>de</strong> 1,80m <strong>de</strong> pó gelado caiu durante o tempo <strong>que</strong> passei lá.<br />

A combinação <strong>de</strong> som abafado da neve caindo, isolamento e concentração mudou para<br />

sempre o modo como leio a Bíblia. A percepção mais surpreen<strong>de</strong>nte <strong>que</strong> me veio na<strong>que</strong>la<br />

leitura foi <strong>que</strong> nossas impressões costumeiras <strong>de</strong> Deus po<strong>de</strong>m ser muito diferentes do <strong>que</strong> a<br />

Bíblia realmente retrata. Nos livros <strong>de</strong> teologia lemos sobre os <strong>de</strong>cretos <strong>de</strong> Deus, e<br />

características como onipotência, onisciência e imutabilida<strong>de</strong>. Estes conceitos encontram–se<br />

na Bíblia, mas bem escondidos, e é necessário esforço para vê–los. Leia as Escrituras e você<br />

encontrará não uma névoa indistinta, mas uma Pessoa real. Deus sente prazer, raiva e<br />

frustração. Uma vez após outra se choca com o comportamento humano. Algumas vezes,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir agir <strong>de</strong> uma forma, Ele "muda <strong>de</strong> idéia".<br />

Eu sei bem <strong>que</strong> o termo elegante "antropomorfismo" po<strong>de</strong> explicar todos estes retratos<br />

com características humanas. E mesmo assim, lendo a Bíblia inteira <strong>de</strong> uma vez, como fiz, é<br />

impossível não ser esmagado pela alegria e angústia. Em resumo: pela paixão – do Senhor do<br />

Universo. É verda<strong>de</strong> <strong>que</strong> Deus "toma emprestadas" imagens da experiência humana para se<br />

comunicar <strong>de</strong> modo <strong>que</strong> possamos compreen<strong>de</strong>r, mas certamente essas imagens apontam para<br />

uma realida<strong>de</strong> ainda maior atrás <strong>de</strong>las. Por exemplo: nos profetas duas imagens são<br />

proeminentes: a do pai irado e a do conjugue <strong>de</strong>sprezado.<br />

Para minha surpresa, o livro <strong>que</strong> mais me afetou foi Jeremias, provavelmente por<br />

expressar estas duas imagens <strong>de</strong> um Deus apaixonado com tanta força emocional. Os<br />

primeiros capítulos mostram um pai ofendido tentando argumentar com um filho<br />

irremediavelmente rebel<strong>de</strong>. Deus recorda como conduziu seus filhos através do <strong>de</strong>serto hostil,<br />

~ 8 ~


provi<strong>de</strong>nciando alimento e água durante todo o caminho, para levá–los a uma terra fértil e <strong>de</strong><br />

prosperida<strong>de</strong>. No capítulo 3, versículo 19, Ele diz:<br />

Tu me chamarás meu pai, e <strong>de</strong> mim não te <strong>de</strong>sviarás.<br />

Em vez disso, a nação seguiu outros caminhos, afastando–se <strong>de</strong> Deus. Foram até ao ponto<br />

<strong>de</strong> realizar sacrifícios <strong>de</strong> crianças, e o Deus onisciente fala sobre esta prática:<br />

O <strong>que</strong> nunca lhes or<strong>de</strong>nei, nem falei, nem me veio ao pensamento. (19:5, 7:31)<br />

As conversas <strong>de</strong> Deus com Jeremias mostram a raiva, a inutilida<strong>de</strong> das tentativas <strong>de</strong><br />

resolver os problemas e, por trás disso, a dor, semelhante à <strong>que</strong> todos os pais sentem <strong>de</strong> vez<br />

em quando. Subitamente, parece <strong>que</strong> o amor altruísta <strong>de</strong>dicado durante toda a vida foi<br />

<strong>de</strong>sperdiçado, <strong>de</strong>sprezado. Esperanças arraigadas murcham e morrem. O filho, resolvido a<br />

enfiar uma faca na barriga <strong>de</strong> seus pais, <strong>de</strong>safia–os com seu comportamento chocante, agindo<br />

<strong>de</strong> um modo <strong>que</strong> "nem me veio ao pensamento".<br />

Mais tar<strong>de</strong> Jesus usaria uma imagem ainda mais primitiva, do reino animal, quando<br />

chorava perto <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> <strong>que</strong>, alguns dias <strong>de</strong>pois, cometeria uma forma <strong>de</strong> parricídio<br />

eterno.<br />

Jerusalém, Jerusalém, <strong>que</strong> matas os profetas, e apedrejas os <strong>que</strong> te são enviados!<br />

quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos<br />

<strong>de</strong>baixo das asas, e tu não quiseste! (Mateus 23:37)<br />

A Bíblia mostra o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus forçando Faraó a se ajoelhar e reduzindo o po<strong>de</strong>roso<br />

Nabucodonosor a um lunático ruminante. Mas também mostra a impotência do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> criar<br />

o <strong>que</strong> Deus mais <strong>de</strong>seja: nosso amor. Quando seu amor é <strong>de</strong>sprezado, até mesmo Ele, o<br />

Senhor do Universo, sente, <strong>de</strong> certa forma, o <strong>que</strong> um pai sente quando per<strong>de</strong> o <strong>que</strong> mais<br />

valoriza, ou uma galinha <strong>que</strong> assiste, impotente, a seus filhotes avançarem rumo ao perigo.<br />

Em Jeremias, o modo <strong>de</strong> falar muda, algumas vezes no meio da sentença, do <strong>de</strong> pai para o<br />

<strong>de</strong> amante. Uma vez após outra, Deus usa as palavras surpreen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> um amante traído.<br />

Ele diz para Judá:<br />

Conhece o <strong>que</strong> fizeste; dromedária, ligeira és, <strong>que</strong> anda torcendo os seus caminhos.<br />

Jumenta montes, acostumada ao <strong>de</strong>serto, <strong>que</strong>, conforme o <strong>de</strong>sejo da sua alma, sorve o<br />

vento, <strong>que</strong>m a <strong>de</strong>teria no seu cio? (2:23,24)<br />

O tom das palavras <strong>de</strong> Deus em Jeremias varia amplamente, passando abruptamente<br />

<strong>de</strong>stes gritos ultrajados <strong>de</strong> dor para súplicas calorosas <strong>de</strong> amor, e <strong>de</strong>pois para apelos<br />

<strong>de</strong>sesperados por um recomeço. A alternância brusca no tom po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sconcertante, a não<br />

ser <strong>que</strong> se tenha experimentado algo semelhante ao <strong>que</strong> Deus <strong>de</strong>screve. Ele reage como um<br />

conjugue <strong>de</strong>sprezado. Uma <strong>de</strong> minhas amigas enfrentou dor semelhante a esta durante dois<br />

anos. Em novembro, estava disposta a matar o marido infiel. Em fevereiro, havia perdoado e<br />

moravam juntos <strong>de</strong> novo. Em abril, <strong>de</strong>u entrada no pedido <strong>de</strong> divórcio. Em agosto, <strong>de</strong>sistiu do<br />

processo e pediu ao marido <strong>que</strong> voltasse para casa. Foram necessários dois anos para <strong>que</strong> ela<br />

encarasse a verda<strong>de</strong>: seu amor fora rejeitado para sempre, sem esperança <strong>de</strong> retorno.<br />

A imagem do cônjuge ferido em Jeremias (ou em Oséias, on<strong>de</strong> é representado ao vivo) é<br />

espantosa, não consigo enten<strong>de</strong>r totalmente. Por <strong>que</strong> Deus, <strong>que</strong> criou tudo <strong>que</strong> existe,<br />

submeter– se–ia voluntariamente a essa humilhação infligida por suas criaturas? No Colorado,<br />

enquanto percorria as páginas da Bíblia, perseguiu–me a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um Deus <strong>que</strong> permite<br />

<strong>que</strong> nossa reação a Ele tenha tamanha importância.<br />

~ 9 ~


Ao voltar para Chicago, comecei a pesquisar livros <strong>de</strong> teologia. Percebi, mais uma vez, um<br />

perigo em nossos "estudos" sobre Deus. Quando O pren<strong>de</strong>mos em palavras ou conceitos e O<br />

arquivamos, seguindo a or<strong>de</strong>m alfabética <strong>de</strong> suas características, po<strong>de</strong>mos, facilmente, <strong>de</strong>ixar<br />

escapar a força do relacionamento apaixonado <strong>que</strong> Ele anseia, acima <strong>de</strong> tudo, manter conosco.<br />

Talvez não haja perigo maior do <strong>que</strong> este para nós <strong>que</strong> escrevemos, falamos ou, até mesmo,<br />

pensamos sobre Deus. Para Ele, meras abstrações po<strong>de</strong>m ser o mais cruel dos insultos.<br />

Depois <strong>de</strong> duas semanas lendo a Bíblia inteira, emergi convicto <strong>de</strong> <strong>que</strong> Deus não se<br />

importa muito em ser analisado. Acima <strong>de</strong> tudo – como qual<strong>que</strong>r pai, como qual<strong>que</strong>r amante<br />

—, <strong>de</strong>seja ser amado.<br />

METÁFORAS MISTURADAS<br />

Ninguém, ao ler o livro <strong>de</strong> Oséias, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> notar <strong>que</strong> o tema é o adultério<br />

espiritual. A esposa do profeta, uma prostituta chamada Gômer, reforça a mensagem verbal,<br />

refazendo a história da infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Israel para com Deus. Mesmo assim, misteriosamente,<br />

se dividirmos o livro em quatro partes, no início da última <strong>de</strong>las há um trecho notável sobre a<br />

paternida<strong>de</strong>. Durante <strong>de</strong>z capítulos Deus expressara o ciúme e a raiva <strong>de</strong> um Amante<br />

Desprezado, comparando Israel a uma mulher <strong>que</strong> tivesse casado com Ele e <strong>de</strong>pois ven<strong>de</strong>sse<br />

seu corpo para outros amantes. Mas, no capítulo 11:1,3,4, o tom se altera radicalmente.<br />

Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei a meu filho. ... Todavia, eu<br />

ensinei a andar a Efraim; tomando–os pelos seus braços, mas não enten<strong>de</strong>ram <strong>que</strong> eu<br />

os curava. Atraí–os com cordas humanas, com laços <strong>de</strong> amor,<br />

e fui para eles como os <strong>que</strong> tiram o jugo <strong>de</strong> sobre as suas <strong>que</strong>ixadas, e lhes <strong>de</strong>i<br />

mantimento.<br />

Uma imagem inva<strong>de</strong> minha mente, <strong>de</strong> uma fita <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o on<strong>de</strong> os pais registraram os<br />

primeiros passos <strong>de</strong> uma garotinha. A mãe, ajoelhada, fala com carinho persuadindo sua<br />

filhinha, <strong>que</strong> esten<strong>de</strong> as duas mãos e balança, perigosamente, <strong>de</strong> um lado para o outro. A<br />

câmara se move rapidamente e mostra a alegria do pai. Tanto ele quanto a mãe continuam a<br />

sorrir <strong>de</strong> uma orelha a outra sempre <strong>que</strong> colocam a fita e assistem. Foi assim, como um pai ou<br />

mãe bobos <strong>de</strong> tanto amor, <strong>que</strong> Deus ensinou seu povo a caminhar. Nesse trecho <strong>de</strong> Oséias, Ele<br />

se recorda, com nostalgia, da alegria da paternida<strong>de</strong>. Subitamente grita, em uma pontada <strong>de</strong><br />

dor, Seu coração se move <strong>de</strong>ntro dEle, sua compaixão é <strong>de</strong>spertada:<br />

Como posso <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> você, Efraim? Como posso entregar você para os outros,<br />

Israel?<br />

Que motivo terá levado a este interlúdio suave em meio a uma história para adultos sobre<br />

a prostituição? A mistura das duas imagens – Israel como filho e como amante — é, no<br />

mínimo, diversa do convencional. Se um ser humano misturasse as duas imagens,<br />

pensaríamos em incesto. Mas Deus, buscando uma analogia <strong>que</strong> expressasse os sentimentos<br />

profundos <strong>que</strong> nutre por seu povo, escolhe os dois relacionamentos humanos mais profundos:<br />

paternida<strong>de</strong> e casamento. Na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar a combinação extraordinária das duas<br />

figuras em Oséias, cheguei a uma palavra: <strong>de</strong>pendência. Ela é a chave para se <strong>de</strong>scobrir o <strong>que</strong><br />

há em comum entre as imagens e como elas diferem.<br />

O relacionamento entre a criancinha e seus pais é caracterizado pela <strong>de</strong>pendência. Os<br />

bebês <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong>les para satisfação <strong>de</strong> todas as suas necessida<strong>de</strong>s, e eles <strong>de</strong>sempenham<br />

~ 10 ~


tarefas <strong>de</strong>sagradáveis — ficarem acordados a noite toda, limparem vômito, ensinarem a usar o<br />

banheiro — por<strong>que</strong> sentem a <strong>de</strong>pendência total do filho, e amam a<strong>que</strong>le bebê. Sem pais <strong>que</strong><br />

cui<strong>de</strong>m <strong>de</strong>le, o bebê morrerá.<br />

Ainda assim, esse padrão <strong>de</strong> comportamento não permanecerá para sempre. Os bons pais<br />

estimulam pouco a pouco a in<strong>de</strong>pendência do filho. Meus amigos ensinaram a filha a andar,<br />

em vez <strong>de</strong> empurrá–la por toda a vida em um gran<strong>de</strong> carro. Embora soubessem <strong>que</strong> um dia ela<br />

po<strong>de</strong>rá andar para longe <strong>de</strong>les, não <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ensinar. Lamentavelmente, alguns pais<br />

fracassam em dar in<strong>de</strong>pendência aos filhos. Conheço um homem <strong>de</strong> 37 anos <strong>que</strong> ainda mora<br />

com sua mãe, por exigência <strong>de</strong>la, e lhe entrega todo o salário <strong>que</strong> recebe. Só sai <strong>de</strong> casa se a<br />

mãe permitir. Qual<strong>que</strong>r pessoa po<strong>de</strong> perceber <strong>que</strong> e um relacionamento doentio. Na<br />

paternida<strong>de</strong> e na maternida<strong>de</strong> a <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>ve fluir rumo à liberda<strong>de</strong>.<br />

Os amantes revertem este fluxo, já <strong>que</strong> possuem a liberda<strong>de</strong> e escolhem abrir mão <strong>de</strong>la. A<br />

Bíblia manda <strong>que</strong> se submetam um ao outro, e qual<strong>que</strong>r casal po<strong>de</strong> dizer <strong>que</strong> esta é uma<br />

<strong>de</strong>scrição acurada do processo cotidiano <strong>de</strong> viver juntos. A romancista Elizabeth Barrett<br />

Browning escreveu o seguinte soneto pouco antes <strong>de</strong> se casar com Robert:<br />

E, assim como o soldado <strong>de</strong>rrotado <strong>de</strong>põe sua espada Perante a<strong>que</strong>le <strong>que</strong> o ergue do<br />

solo ensangüentado –Assim mesmo, Amado, eu, por fim, Termino aqui minha luta. Se<br />

você me chamar, Levantar–me–ei <strong>de</strong> meu abatimento ao ouvi–lo. Aumente seu amor,<br />

para <strong>que</strong> meu valor cresça.<br />

Em um casamento saudável, cada um se submete, voluntariamente, ao outro, em amor.<br />

Nos relacionamentos problemáticos, a submissão transforma–se em parte <strong>de</strong> uma luta, um<br />

cabo–<strong>de</strong>–guerra entre dois egos.<br />

* * *<br />

Deus sofre em Oséias por<strong>que</strong> o povo <strong>de</strong> Israel rompera o fluxo da <strong>de</strong>pendência. No<br />

<strong>de</strong>serto Ele alimentara Israel com o objetivo <strong>de</strong> transformá–lo em adulto, dando–lhe a<br />

liberda<strong>de</strong> da Terra Prometida. Mas o povo agarrou a liberda<strong>de</strong> e, como um filho rebel<strong>de</strong> –<br />

como Gômer –, <strong>de</strong>sprezou–a, afastando–se <strong>de</strong> Deus. Israel nunca compreen<strong>de</strong>u o significado<br />

do casamento; nunca apren<strong>de</strong>u a se entregar voluntariamente, em amor, para Deus. Oséias<br />

registra a profunda tristeza <strong>de</strong> Deus, <strong>que</strong> <strong>que</strong>ria uma esposa, mas só conseguiu encontrar uma<br />

filha.<br />

O padrão da <strong>de</strong>pendência po<strong>de</strong>, acredito, ensinar–nos muito sobre os planos <strong>de</strong> Deus para<br />

a raça humana. Lendo Oséias e suas surpreen<strong>de</strong>ntes metáforas misturadas, fui forçado a<br />

examinar minha própria vida. Será <strong>que</strong> prefiro o conforto <strong>de</strong> um relacionamento infantil com<br />

Deus? Será <strong>que</strong> me apego ao legalismo como uma forma <strong>de</strong> segurança, uma forma ilusória <strong>de</strong><br />

conseguir <strong>que</strong> Deus "goste mais <strong>de</strong> mim"?<br />

Meu amor por Deus é condicional, como o <strong>de</strong> uma criança? Quando as coisas não vão<br />

bem, será <strong>que</strong> <strong>de</strong>sejo fugir, ou gritar: "O<strong>de</strong>io você!"? Ou sou mais como um parceiro no<br />

casamento: a<strong>que</strong>le tipo <strong>de</strong> casamento antigo, na doença e na saú<strong>de</strong>, para o melhor e para o<br />

pior, até <strong>que</strong> a morte nos separe (ou, neste caso específico, até <strong>que</strong> a morte nos reúna)?<br />

A progressão na Bíblia, e em Oséias especialmente, ensina–me <strong>que</strong> tipo <strong>de</strong> amor Deus<br />

<strong>de</strong>seja receber <strong>de</strong> mim: não o <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>samparado, <strong>de</strong> um filho, mas o maduro, entregue<br />

liberalmente, <strong>de</strong> um esposo. Embora ambos expressem um tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência, existe uma<br />

diferença vital entre eles: a mesma <strong>que</strong> há entre paternida<strong>de</strong> e casamento, entre lei e Espírito.<br />

~ 11 ~


FAÇA DE NOVO!<br />

Uma <strong>de</strong> minhas amigas, mulher jovem, sofisticada e polida, <strong>de</strong>teve–me outro dia com<br />

notícias animadoras – pelo menos para ela. Gastou <strong>de</strong>z minutos recriando em palavras os<br />

primeiros passos <strong>de</strong> seu sobrinho <strong>de</strong> 1 ano <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Ele apren<strong>de</strong>u a andar! Tropeçou como um<br />

bêbado, agarrou sofá e ca<strong>de</strong>iras para se firmar, mas apren<strong>de</strong>u a andar! As pernas dobravam–<br />

se, os pés viravam–se para fora e o corpo inclinava–se, acentuadamente, para a frente.<br />

No momento em <strong>que</strong> ela falava, fui envolvido pelo relato <strong>de</strong>talhado. Mais tar<strong>de</strong>, refletindo<br />

sobre nossa conversa no ambiente sóbrio <strong>de</strong> meu escritório, percebi como pareceria estranho<br />

para alguém <strong>que</strong> escutasse por acaso. Nós dois nos maravilhamos, expressando o maior dos<br />

entusiasmos, por uma habilida<strong>de</strong> dominada pelos aproximadamente <strong>de</strong>z bilhões <strong>de</strong> humanos<br />

<strong>que</strong> já habitaram neste planeta. Então, ele sabe andar – todo mundo sabe. Por <strong>que</strong> tanta<br />

animação?<br />

Percebi <strong>que</strong> a infância é uma época em <strong>que</strong> temos um luxo raro na vida, a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser<br />

especial, <strong>que</strong> quase <strong>de</strong>saparece durante o resto <strong>de</strong> nossa existência. Ao crescer, lutamos<br />

incessantemente para conseguir atenção. Os adolescentes varam a noite estudando para<br />

provas, maltratam o corpo em ativida<strong>de</strong>s físicas torturantes, fazem hora extra para comprar<br />

roupas <strong>de</strong> griffe. passam horas na frente do espelha se enfeitando – tudo para serem notados.<br />

Na ida<strong>de</strong> adulta as pessoas institucionalizam a busca insana das conquistas. Queremos,<br />

<strong>de</strong>sesperadamente, <strong>de</strong>stacar–nos, ser notados. Enquanto isso, uma criancinha só precisa dar<br />

uns passos <strong>de</strong>sengonçados cruzando um tapete da sala <strong>de</strong> estar, e seus pais e suas tias contam<br />

vantagem <strong>de</strong> seu triunfo para rodos os amigos.<br />

Os refletores da atenção especial po<strong>de</strong>m ser acesos <strong>de</strong> novo quando chega o momento do<br />

romance. Para um apaixonado, todo sinal <strong>de</strong> nascença é bonitinho, os hobbies estranhos<br />

reflexo <strong>de</strong> viva curiosida<strong>de</strong>, um espirro motivo para atenção redobrada. Voltamos a ser<br />

abençoados com a classificação <strong>de</strong> especiais: por algum tempo, pelo menos, ate <strong>que</strong> o tédio<br />

da vida acabe com isso.<br />

O <strong>que</strong> acontece durante as fases <strong>de</strong> cuidados atentos na infância e a <strong>de</strong> namoro arrebatado<br />

é um contraste completo com nosso comportamento normal. Ao entrar em um ônibus,<br />

ninguém exclama para o motorista:<br />

"Não acredito! Quer dizer <strong>que</strong> você dirige este ônibus enorme o dia todo, e sozinho? E<br />

nunca sofre um aci<strong>de</strong>nte? Isso é maravilhoso!"<br />

E nem paramos alguém no supermercado para falar, efusivamente:<br />

"Estou tão orgulhoso <strong>de</strong> você, <strong>que</strong> sabe direitinho qual marca <strong>de</strong> produto escolher!<br />

Existem tantas marcas diferentes, e mesmo assim você sabe quais as <strong>que</strong> <strong>que</strong>r e coloca todas<br />

em seu carrinho e empurra por todo o mercado com tanta segurança! Impressionante!"<br />

Ainda assim, é este espírito, absurdo quando aplicado à rotina da vida, <strong>que</strong> mostramos<br />

para com as crianças e os apaixonados. Para eles, "santificamos" o <strong>que</strong> é comum e<br />

corri<strong>que</strong>iro.<br />

Não proponho <strong>que</strong> façamos papel <strong>de</strong> tolos todas as vezes em <strong>que</strong> encontramos um<br />

motorista <strong>de</strong> ônibus ou um consumidor econômico. Mas, pensar sobre o tratamento<br />

dispensado às crianças e aos apaixonados trouxe–me apreciação mais profunda <strong>de</strong> algumas<br />

metáforas bíblicas. Deus escolhe mais vezes "crianças" e "apaixonados" para <strong>de</strong>screver nosso<br />

relacionamento com Ele do <strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r outra figura.<br />

O Velho Testamento é repleto <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong> marido–esposa. Deus corteja Seu povo, é<br />

louco por ele, como um apaixonado por sua amada. Quando O ignoramos, sente–se ferido,<br />

rejeitado, como um apaixonado <strong>de</strong>sprezado. O Novo Testamento também usa a mesma<br />

imagem, apresentando a Igreja como "a noiva <strong>de</strong> Cristo". Ao alterar a metáfora, também<br />

anuncia <strong>que</strong> somos filhos <strong>de</strong> Deus, com todos os direitos e privilégios <strong>de</strong> ilustres her<strong>de</strong>iros.<br />

~ 12 ~


Jesus (o Filho "Unigênito" <strong>de</strong> Deus) veio, ficamos sabendo, para possibilitar nossa adoção<br />

como filhos e filhas na família <strong>de</strong> Deus. Estu<strong>de</strong> estas passagens bíblicas, e você verá <strong>que</strong> Deus<br />

olha por nós como nós olhamos por nossos próprios filhos, ou pela pessoa a <strong>que</strong>m amamos.<br />

Por ser infinito, Deus tem uma capacida<strong>de</strong> <strong>que</strong> não temos: tratar toda a criação como<br />

igualmente especial. G. K. Chesterton tala assim sobre isto:<br />

Um bebê balança as pernas ritmadamente em <strong>de</strong>corrência do excesso e não da<br />

ausência <strong>de</strong> vida. Em face da sua vitalida<strong>de</strong> abundante e do seu espírito impetuoso e<br />

livre, as criancinhas <strong>que</strong>rem <strong>que</strong> todas as coisas sejam repetidas e imutáveis. Sempre<br />

dizem: "De novo!", e o adulto repele até <strong>que</strong> não agüenta mais. Isto por<strong>que</strong> os adultos<br />

não são fortes o suficiente para exultar com a monotonia. Mas talvez Deus seja. É<br />

possível <strong>que</strong>, todas as manhãs, Ele diga ao sol: "De novo!", e todas as noites repita as<br />

mesmas palavras à lua. Talvez não seja uma necessida<strong>de</strong> automática <strong>que</strong> torne todas<br />

as margaridas iguais, po<strong>de</strong> ser <strong>que</strong> Deus faça cada uma <strong>de</strong>las separadamente, sem<br />

nunca se cansar <strong>de</strong> repetir o mo<strong>de</strong>lo. Po<strong>de</strong> ser <strong>que</strong> Ele tenha o apetite eterno da<br />

infância, por<strong>que</strong> nós pecamos e envelhecemos, e nosso Pai é mais jovem do <strong>que</strong> nós.<br />

Enquanto leio a Bíblia, parece–me evi<strong>de</strong>nte <strong>que</strong> Deus satisfaz ao seu "apetite eterno"<br />

amando individualmente cada ser humano. Imagino <strong>que</strong> Ele vê cada passo vacilante <strong>que</strong> dou<br />

em minha "caminhada" espiritual, e acompanha com a ansieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um pai assistindo a seu<br />

filho dar o primeiro passo. E talvez, quando os segredos do Universo forem revelados,<br />

<strong>de</strong>scobriremos um propósito oculto na paternida<strong>de</strong> e no amor romântico. Po<strong>de</strong> ser <strong>que</strong> Deus<br />

nos tenha concedido esses momentos <strong>de</strong> ser especiais para nos <strong>de</strong>spertar para a simples<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amor infinito, do qual nossas maiores experiências aqui na Terra são meros<br />

lampejos.<br />

PENSAMENTOS SOBRE JESUS<br />

Em uma das noites mais frias e sombrias do inverno <strong>de</strong> Chicago encontrei–me em pé, em<br />

um restaurante velho, esperando por um caminhão rebo<strong>que</strong>. O motor do meu carro parara <strong>de</strong><br />

funcionar em um cruzamento. Ao esperar ali, tremendo <strong>de</strong> frio e per<strong>de</strong>ndo tempo, não pu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar em uma história sobre Jesus <strong>que</strong> lera havia pouco tempo.<br />

Chegara às minhas mãos um dos evangelhos apócrifos mais irreais, o Evangelho da<br />

Infância <strong>de</strong> Jesus Cristo. Esse documento da igreja primitiva não é aceito por nenhuma igreja<br />

em seu cânon, e preten<strong>de</strong> revelar histórias <strong>de</strong>sconhecidas da infância <strong>de</strong> Jesus, período<br />

virtualmente <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> lado nos evangelhos canônicos. O livro conta sobre o menino Jesus<br />

formando pássaros <strong>de</strong> barro e assistindo encantado a eles, voarem vivos. Mostra–0 <strong>que</strong>brando<br />

o encantamento <strong>de</strong> uma bruxa <strong>que</strong> transformara um homem em mula. On<strong>de</strong> suas gotas <strong>de</strong> suor<br />

caíam no chão, nasciam árvores; on<strong>de</strong> seus cueiros foram <strong>de</strong>ixados, o fogo não ardia. Um<br />

garoto à morte foi levado à casa <strong>de</strong> Maria e curado pelo simples cheiro da roupa <strong>de</strong> Jesus.<br />

O evangelho apócrifo fez–me ficar feliz pelo relato sóbrio dos escritores canônicos, <strong>que</strong><br />

faz contraste com ele. Nos canônicos, os milagres não são mágica nem capricho, mas, antes,<br />

atos <strong>de</strong> misericórdia ou sinais indicando uma verda<strong>de</strong> espiritual subjacente à situação. Uma<br />

das histórias apócrifas da infância <strong>de</strong> Jesus, porém, ficou comigo. Continha certo charme –<br />

acredito <strong>que</strong>, em parte, por ser tão próxima à visão <strong>de</strong> Jesus espalhada por <strong>de</strong>terminados<br />

círculos cristãos da atualida<strong>de</strong>. E foi essa história <strong>que</strong> veio à minha mente enquanto esperava<br />

pelo guincho no restaurante.<br />

~ 13 ~


De acordo com o Evangelho da Infância, o pai <strong>de</strong> Jesus, José, era um carpinteiro<br />

medíocre. Esforçava–se ao máximo em sua oficina para dar forma a bal<strong>de</strong>s <strong>de</strong> leite, portões,<br />

peneiras e caixas, e <strong>de</strong>pois chamava Jesus para ir dar o to<strong>que</strong> final. Então, Ele estendia sua<br />

mão e, milagrosamente, o trabalho <strong>de</strong> José se expandia ou se contraía, chegando ao tamanho<br />

correto, ficando liso, com um belo acabamento. Em um trabalho muito especial, diz a história,<br />

José <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> medir corretamente. Esculpiu e cortou a ma<strong>de</strong>ira durante vários meses para um<br />

trono cheio <strong>de</strong> enfeites para um rei, e no dia <strong>de</strong> entregar <strong>de</strong>scobriu <strong>que</strong> não se encaixava no<br />

local a<strong>de</strong>quado. Enfurecido, o rei fez ameaças a José. Bem no momento em <strong>que</strong> a situação<br />

ficou tensa, o pe<strong>que</strong>no Jesus apareceu e, milagrosamente, o imenso trono cresceu e preencheu<br />

o espaço. Todos os enfeites permaneceram na proporção perfeita enquanto o trono se<br />

expandia.<br />

Como gostaria <strong>de</strong> <strong>que</strong> Jesus agisse assim hoje! Digo isso não como sacrilégio ou piada.<br />

Por ser escritor, po<strong>de</strong>ria usar muito sua ajuda. Se tivesse uma pe<strong>que</strong>na idéia para um artigo e<br />

rascunhasse alguma coisa, Jesus po<strong>de</strong>ria vir, retirar as vírgulas e advérbios exce<strong>de</strong>ntes e<br />

acabar com os <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> pensamento. Certo Verão, trabalhei durante seis semanas em artigos<br />

<strong>de</strong>stinados a apresentar a mensagem cristã para um público secular <strong>de</strong> uma revista. Trabalhei<br />

cada palavra, cortando, polindo, procurando o tom exato exigido pela revista. Mas, assim<br />

como o trono <strong>de</strong> José, meus artigos ficaram pe<strong>que</strong>nos. Mas comigo não houve intervenção<br />

miraculosa e todo meu esforço foi perdido.<br />

E agora meu carro estava no meio da rua, com as luzes do pisca–alerta acen<strong>de</strong>ndo e<br />

apagando. Eu per<strong>de</strong>ria uma reunião marcada para a<strong>que</strong>la noite, e provavelmente algumas<br />

horas <strong>de</strong> trabalho nos dias seguintes, enquanto tentaria conseguir um mecânico honesto em<br />

uma oficina resolvida a sa<strong>que</strong>ar os motoristas em dificulda<strong>de</strong>s. Que bem po<strong>de</strong>ria advir <strong>de</strong><br />

discutir durante muito tempo com um mecânico <strong>de</strong>sonesto? Um pe<strong>que</strong>no milagre no cabo do<br />

distribuidor e eu po<strong>de</strong>ria prosseguir em meu caminho, poupando meu dinheiro para dar a<br />

causas mais meritórias.<br />

Sei muito bem <strong>que</strong> escolher os advérbios apropriados e fazer um carro funcionar são<br />

meras trivialida<strong>de</strong>s comparadas com as provações <strong>que</strong> muitos cristãos enfrentam a cada dia.<br />

Penso nos <strong>que</strong> estão presos por causa da fé em outros países e em meu amigo <strong>que</strong> tem um<br />

filho com problemas mentais. Por <strong>que</strong> Deus não se move e resolve os problemas <strong>de</strong>les? A<br />

<strong>que</strong>stão não é se cremos em milagres. Deus certamente tem o po<strong>de</strong>r. Por <strong>que</strong> não o usa?<br />

Uma pergunta tão abrangente dificilmente cabe em um capítulo do tamanho <strong>de</strong>ste, exceto<br />

quando a uma lição importante a ser extraída no evangelho apócrifo. Esse evangelho, um dos<br />

favoritos dos gnósticos do século II, foi a<strong>de</strong>quadamente rejeitado pela igreja ortodoxa. As<br />

histórias nele contidas sobre a infância <strong>de</strong> Jesus expressam uma heresia perigosa: a crença <strong>de</strong><br />

<strong>que</strong> po<strong>de</strong>mos escapar <strong>de</strong>ste mundo material repleto <strong>de</strong> falhas, preso no tempo e no espaço, e<br />

viver em um plano mais "espiritual", bem acima do tédio da vida cotidiana.<br />

O Apóstolo Paulo lutou corajosamente contra o gnosticismo. Apegou–se ã promessa <strong>de</strong><br />

um mundo perfeito, <strong>que</strong> receberemos algum dia, do qual temos uma pe<strong>que</strong>na prova nesta<br />

vida. Mas nunca negou as realida<strong>de</strong>s tediosas e muitas vezes dolorosas. Ele nem po<strong>de</strong>ria ter<br />

negado, em face dos seus dias repletos <strong>de</strong> naufrágios, prisões, espancamentos e da dor<br />

importuna <strong>de</strong> seu misterioso "espinho na carne". Resumindo: Paulo apresenta a vida cristã<br />

como um tipo <strong>de</strong> suspensão <strong>que</strong> inclui o triunfo da vitória eterna, mas também o pungente<br />

"ainda não" <strong>de</strong> nosso estado presente.<br />

Confesso <strong>que</strong> algumas vezes <strong>de</strong>sejo <strong>que</strong> não fosse assim. Quando me esforço sobre um<br />

artigo complicado ou tento fazer um carro teimoso funcionar, ou quando enfrento um<br />

problema insolúvel <strong>que</strong> não <strong>de</strong>saparecerá: em momentos assim anseio por uma forma <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixar para trás o "ainda não". Desejo o Messias apresentado no evangelho apócrifo, <strong>que</strong><br />

ficará do meu lado, acertando minhas palavras, meus problemas físicos e todos os infortúnios<br />

<strong>de</strong> minha vida.<br />

Mas <strong>de</strong>pois, estudando os evangelhos canônicos e as epístolas explicatórias <strong>que</strong> os<br />

seguem, posso enxergar a sabedoria do propósito <strong>de</strong> Deus. Certamente seria um milagre Jesus<br />

~ 14 ~


esticar tronos, fazer pássaros <strong>de</strong> barro voarem e transformar mulas em homens. Mas é um<br />

milagre muito maior pegar o fracassado grupo <strong>de</strong> onze homens <strong>que</strong> O seguiram, junto com o<br />

arrogante caçador <strong>de</strong> cristãos chamado Saulo, e transformá–los, com todas as falhas, na base<br />

<strong>de</strong> seu Reino.<br />

Seria um milagre se todas as minhas palavras saíssem perfeitas e se meu carro nunca mais<br />

<strong>que</strong>brasse. (Uma voz me sussurra <strong>que</strong> assim eu po<strong>de</strong>ria fazer muito mais pelo Reino...) Mas<br />

Ele usar a matéria bruta <strong>de</strong> tudo <strong>que</strong> escrevo ou, po<strong>de</strong>–se dizer, tudo <strong>que</strong> nós, seu Corpo,<br />

fazemos nesta Terra: não é isto milagre muito maior ?<br />

O ESPÍRITO DOS CASAMENTOS ARRANJADOS<br />

Você já pensou sobre quanto nosso Produto Interno Bruto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do romance? Ele<br />

domina as artes: sintonize qual<strong>que</strong>r estação <strong>de</strong> rádio <strong>que</strong> to<strong>que</strong> música popular e tente<br />

encontrar uma canção <strong>que</strong> não trate do amor. Na área editorial, os romances góticos ven<strong>de</strong>m<br />

mais do <strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r outro estilo <strong>de</strong> livros. E existe alguma novela ou comédia sem um<br />

romance ar<strong>de</strong>nte entretecido no enredo? Indústrias inteiras existem para capitalizar o amor<br />

romântico: moda, jóias e cosméticos nos tentam a aperfeiçoar as técnicas <strong>de</strong> atração entre<br />

homens e mulheres. Frases como "conseguir um homem" e "perseguir uma mulher" resumem<br />

um fato da vida em nossa cultura e presumimos <strong>que</strong> em todas as outras também. A vida é<br />

assim, pensamos nós.<br />

Ah, mas aqui há um fenômeno notável: ainda hoje, em nossa al<strong>de</strong>ia global, mais da<br />

meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os casamentos acontece entre um homem e uma mulher <strong>que</strong> jamais sentiram<br />

qual<strong>que</strong>r pontada <strong>de</strong> amor romântico e talvez nem mesmo reconheçam o sentimento, se<br />

acontecer com eles. Adolescentes na maior parte da África e da Ásia têm como certa a noção<br />

dos casamentos arranjados por seus pais, assim como para nós é certa a noção do amor<br />

romântico.<br />

Um jovem casal <strong>de</strong> indianos, Vijay e Martha, explicaram–me como foi o casamento <strong>de</strong>les.<br />

Os pais <strong>de</strong> Vijay avaliaram todas as garotas <strong>de</strong> seu círculo social antes <strong>de</strong> se <strong>de</strong>cidirem por<br />

uma chamada Martha para ser a noiva <strong>de</strong> seu filho. Ele tinha 15 anos na ocasião e ela acabara<br />

<strong>de</strong> completar 13. Os dois só haviam–se encontrado uma vez antes, e muito rapidamente. Mas,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>que</strong> os pais <strong>de</strong>le chegaram a uma <strong>de</strong>cisão, reuniram–se com os pais <strong>de</strong>la e marcaram a<br />

dará do casamento para dali a oito anos. Depois <strong>que</strong> combinaram tudo, contaram aos filhos<br />

com <strong>que</strong>m eles iriam se casar e quando.<br />

Durante os oito anos seguintes Vijay e Martha tiveram a permissão <strong>de</strong> escrever uma carta<br />

por mês. Viram–se duas — apenas duas — vezes, e muito bem acompanhados, antes da data<br />

do casamento. Mesmo assim, tendo ido morar juntos sendo praticamente estranhos um ao<br />

outro, hoje o casamento <strong>de</strong>les parece ser tão seguro e amoroso quanto qual<strong>que</strong>r outro <strong>que</strong><br />

conheço. Na verda<strong>de</strong>, missionários <strong>que</strong> vivem nestas socieda<strong>de</strong>s relatam <strong>que</strong>, regra geral, os<br />

casamentos arranjados são mais estáveis, com a taxa <strong>de</strong> divórcios muito menor do <strong>que</strong> a dos<br />

<strong>que</strong> resultam <strong>de</strong> romance.<br />

Nas culturas oci<strong>de</strong>ntais as pessoas se casam por<strong>que</strong> sentem atração pelas qualida<strong>de</strong>s<br />

agradáveis do outro: sorriso aberto, espirituosida<strong>de</strong>, aparência bonita, habilida<strong>de</strong> atlética, bom<br />

humor, charme. Com o passar do tempo, estas qualida<strong>de</strong>s se alteram. Especialmente os<br />

atributos físicos irão <strong>de</strong>teriorar–se com a ida<strong>de</strong>. Enquanto isso, po<strong>de</strong>m aparecer surpresas:<br />

<strong>de</strong>sleixo no cuidado com a casa, tendência à <strong>de</strong>pressão, problemas sexuais. Ao contrário <strong>de</strong><br />

tudo isso, os companheiros em um casamento arranjado não baseiam o relacionamento na<br />

atração mútua. Ao ser informada da <strong>de</strong>cisão dos pais, a pessoa aceita <strong>que</strong> viverá muitos anos<br />

com alguém a <strong>que</strong>m mal conhece. Assim, a <strong>que</strong>stão <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser "Com <strong>que</strong>m me <strong>de</strong>vo casar?"<br />

e passa para "Que tipo <strong>de</strong> casamento eu e este meu companheiro construiremos?"<br />

~ 15 ~


* * *<br />

Duvido muito <strong>de</strong> <strong>que</strong> o Oci<strong>de</strong>nte algum dia venha a abandonar a idéia <strong>de</strong> romance, apesar<br />

da base fraca <strong>que</strong> ele constitui para a estabilida<strong>de</strong> familiar. Mas, nas conversas <strong>que</strong> mantenho<br />

com cristãos das mais diversas culturas comecei a ver como o "espírito dos casamentos<br />

arranjados" po<strong>de</strong>ria transformar outras atitu<strong>de</strong>s. Po<strong>de</strong>ríamos apren<strong>de</strong>r alguma coisa sobre as<br />

nossas expectativas quanto à vida cristã, por exemplo.<br />

Sempre achei estranha a fixação da teologia mo<strong>de</strong>rna com o problema do sofrimento. As<br />

pessoas em nossa socieda<strong>de</strong> vivem mais tempo, com a saú<strong>de</strong> muito melhor e com menos<br />

sofrimento físico do <strong>que</strong> em qual<strong>que</strong>r outra época da história. E ainda assim nossos artistas,<br />

escritores, filósofos e teólogos se atrapalham na procura <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> apresentar as<br />

<strong>que</strong>stões milenares <strong>de</strong> Jó. Por <strong>que</strong> Deus permite tanto sofrimento? Por <strong>que</strong> Ele não intervém?<br />

E é significativo notar <strong>que</strong> os brados não partem do Terceiro Mundo – on<strong>de</strong> a miséria grassa<br />

— ou <strong>de</strong> pessoas como Solzhenitsyn, <strong>que</strong> suportou enorme sofrimento. O grito angustiado<br />

parte basicamente da<strong>que</strong>les <strong>de</strong>ntre nós <strong>que</strong> vivem no Oci<strong>de</strong>nte confortável e narcisista. E por<br />

pensar nesta tendência estranha <strong>que</strong> continuo a voltar ao paralelo com os casamentos<br />

arranjados, <strong>que</strong> se transformou para mim em uma espécie <strong>de</strong> parábola sobre as formas<br />

diferentes pelas quais as pessoas se relacionam com Deus.<br />

Algumas aproximam–se da fé basicamente como uma solução para seus problemas, e<br />

escolhem Deus assim como escolhem o cônjuge, procurando as qualida<strong>de</strong>s agradáveis. Sua<br />

expectativa é a <strong>de</strong> <strong>que</strong> Deus sempre lhes trará boas coisas. Dão o dízimo por<strong>que</strong> receberão <strong>de</strong><br />

volta <strong>de</strong>z vezes mais. Tentam levar uma vida reta por<strong>que</strong> acreditam <strong>que</strong> Ele lhes dará<br />

prosperida<strong>de</strong>. Interpretam a frase "Jesus é a resposta" em seu sentido mais literal e inclusivo:<br />

a resposta para o <strong>de</strong>semprego, um filho com problemas mentais, um casamento em ruínas,<br />

uma perna amputada, um rosto feio etc. Contam como certo <strong>que</strong> Deus interferirá em seu<br />

favor; provi<strong>de</strong>nciando um emprego; curando o filho, a perna e o rosto feio e colando <strong>de</strong> volta<br />

os pedaços do casamento partido.<br />

Em meio a tudo isso, <strong>precisam</strong>os continuar a levantar o problema do sofrimento,<br />

exatamente por<strong>que</strong> a vida não é sempre como gostaríamos <strong>de</strong> <strong>que</strong> fosse. Realmente, em<br />

muitos países, ao tornar–se cristã a pessoa po<strong>de</strong> ter certeza <strong>de</strong> <strong>que</strong> per<strong>de</strong>rá o emprego, será<br />

rejeitada pela família, enfrentará o ódio social, e talvez, até, seja presa.<br />

Em seu maravilhoso livro The Mind of the Maker (A Mente do Criador), Dorothy Sayers<br />

sugere um outro modo <strong>de</strong> enxergar o envolvimento <strong>de</strong> Deus conosco. Afirma, em palavras<br />

<strong>que</strong> merecem muita reflexão:<br />

O artista não vê a vida como um problema a ser solucionado, mas como um agente da<br />

criação.<br />

Somos como artistas <strong>que</strong> receberam a incumbência <strong>de</strong> construir nossa vida, a partir <strong>de</strong><br />

uma massa sem forma <strong>de</strong> matéria–prima. Uns são feios, outros bonitos. Há os brilhantes, os<br />

profundos, os charmosos e os envergonhados. Deus não promete resolver todos os nossos<br />

"problemas", pelo menos não como gostaríamos <strong>de</strong> <strong>que</strong> fossem solucionados. Pelo contrário:<br />

chama–nos para confiar nEle, e para permanecer fieis, <strong>que</strong>r sejamos brasileiros ricos ou<br />

sudaneses aprisionados. O <strong>que</strong> mais importa é o <strong>que</strong> criamos a partir da matéria–prima.<br />

Sobre este aspecto, <strong>precisam</strong>os do "espírito dos casamentos arranjados" em nosso<br />

relacionamento com Deus. Ele me criou como sou: com meus traços fisionômicos<br />

particulares, minhas dificulda<strong>de</strong>s e limitações, meu corpo, minha capacida<strong>de</strong> mental. Posso<br />

passar toda a vida ressentido com uma característica ou outra, e pedindo a Deus <strong>que</strong> mu<strong>de</strong><br />

minha "matéria–prima". Ou posso aceitar–me como sou, humil<strong>de</strong>mente, com as falhas e tudo<br />

mais, como a matéria–prima com a qual Deus po<strong>de</strong> trabalhar. Não faço uma lista <strong>de</strong><br />

exigências <strong>que</strong> <strong>precisam</strong> ser atendidas para <strong>que</strong> eu aceite firmar um compromisso. Como o<br />

marido <strong>de</strong> um casamento arranjado, comprometo–me, apesar do <strong>que</strong> acontecerá no futuro.<br />

Não tenho certeza do <strong>que</strong> está por vir.<br />

~ 16 ~


Po<strong>de</strong>–se dizer <strong>que</strong> fé significa prometer estar junto no melhor ou no pior, na ri<strong>que</strong>za ou na<br />

pobreza, na doença ou na saú<strong>de</strong>, amando a Deus e apegando–se a Ele, apesar do <strong>que</strong> vier a<br />

acontecer. Felizmente, o "espírito do casamento arranjado" funciona nos dois sentidos: Deus<br />

também firma um compromisso comigo. A fé significa acreditar <strong>que</strong> Ele fez a mesma<br />

promessa, e Jesus Cristo é a prova disso. Deus não me aceita condicionalmente, com base em<br />

meu <strong>de</strong>sempenho. Ele mantém sua promessa, e nela está a graça.<br />

JÓ E OS ENIGMAS DO SOFRIMENTO<br />

Ao aflito livra por meio da sua aflição, e pela opressão lhe abre os ouvidos. (Jó 36:15)<br />

"Por <strong>que</strong> eu?" Quase todo mundo faz esta pergunta em meio ao sofrimento. Em gran<strong>de</strong>s<br />

ou pe<strong>que</strong>nas circunstâncias – um terremoto em outro país ou no diagnóstico <strong>de</strong> uma doença –<br />

enfrentamos <strong>que</strong>stões angustiantes sobre por <strong>que</strong> Deus permite <strong>que</strong> sintamos dor.<br />

Ironicamente, os cristãos em sofrimento obtêm conforto no livro <strong>de</strong> Jó. Digo<br />

"ironicamente" por<strong>que</strong> Jó levanta mais <strong>que</strong>stões sobre o sofrimento do <strong>que</strong> respon<strong>de</strong>. O final<br />

do livro – uma fantástica aparição pessoal <strong>de</strong> Deus – parece o cenário perfeito para um<br />

monólogo esclarecedor. Deus, porem, evita por completo o ponto central da discussão<br />

anterior. E as várias teorias sobre a origem do sofrimento, todas agradáveis ao ouvido,<br />

propostas pelos amigos <strong>de</strong> Jó são <strong>de</strong>sfeitas por Deus, com um olhar severo.<br />

Este livro, relato espantoso <strong>de</strong> coisas ruins acontecendo a um homem muito bom, não<br />

contém uma teoria compacta mostrando por <strong>que</strong> as pessoas boas sofrem. Apesar disso,<br />

oferece algumas percepções rápidas sobre o problema da dor. Meu próprio estudo levou–me<br />

às conclusões <strong>que</strong> se seguem. Não respon<strong>de</strong>m o problema da dor – nem mesmo Deus tentou<br />

fazer isso. Mas esses princípios jogam luz sobre certos conceitos errôneos tão comuns hoje<br />

quanto no tempo <strong>de</strong> Jó.<br />

1. Os capítulos 1 e 2 mostram um fato importante <strong>de</strong> forma sutil: Deus não causou<br />

diretamente os problemas <strong>de</strong> Jó. Permitiu <strong>que</strong> acontecessem, mas Satanás foi o agente<br />

causador.<br />

2. Em nenhum lugar do livro é sugerido <strong>que</strong> Deus não tenha po<strong>de</strong>r ou não seja bom.<br />

Algumas pessoas (até mesmo o rabino Kushner, em seu livro muito conhecido Quando<br />

Coisas Ruins Acontecem com Pessoas Boas) alegam <strong>que</strong> um Deus fraco não tem po<strong>de</strong>r para<br />

evitar o sofrimento humano. Outros, <strong>de</strong>ístas, presumem <strong>que</strong> Ele dirige o mundo a distância,<br />

sem envolvimento pessoal. Mas o livro <strong>de</strong> Jó não discute o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus, só sua justiça. Em<br />

seu discurso final, em <strong>que</strong> resume as conclusões, Deus apresenta ilustrações esplendidas da<br />

natureza para <strong>de</strong>monstrar seu po<strong>de</strong>r.<br />

3. Jó, <strong>de</strong>cididamente, rejeita uma teoria: a <strong>de</strong> <strong>que</strong> o sofrimento sempre vem em resultado<br />

ao pecado. A Bíblia confirma o princípio geral <strong>de</strong> "o homem colhe o <strong>que</strong> semeia", até mesmo<br />

nesta vida (veja Salmos 1:3, 37:25). Mas as outras pessoas não têm qual<strong>que</strong>r direito <strong>de</strong> aplicar<br />

esse princípio geral a uma pessoa em particular.<br />

Os amigos <strong>de</strong> Jó foram persuasivos ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>que</strong> ele merecia a<strong>que</strong>la punição<br />

catastrófica. Quando Deus, porém, apresentou o veredicto final, disse para eles:<br />

Não dissestes <strong>de</strong> mim o <strong>que</strong> era reto, como o meu servo Jó. (42:7)<br />

(Posteriormente, Jesus também falaria contra a idéia <strong>de</strong> <strong>que</strong> o sofrimento implica,<br />

automaticamente, pecado anterior. Veja João 9: 1–5 e Lucas 13:1–5.) Não tendo uma crença<br />

claramente <strong>de</strong>finida na vida após a morte, os amigos <strong>de</strong> Jó presumiram, erradamente, <strong>que</strong> a<br />

justiça <strong>de</strong> Deus – sua aprovação ou não das pessoas – teria <strong>que</strong> ser <strong>de</strong>monstrada nesta vida.<br />

~ 17 ~


4. Deus não con<strong>de</strong>nou as dúvidas nem o <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> Jó, apenas sua ignorância. O dito<br />

popular "a paciência <strong>de</strong> Jó" dificilmente se encaixa com a torrente <strong>de</strong> censuras <strong>que</strong> saíram da<br />

boca <strong>de</strong>le, <strong>que</strong> não aceitou sua dor em mansidão, mas gritou em protesto contra Deus. Suas<br />

palavras fortes escandalizaram seus amigos (veja, por exemplo, 15:1–16), mas não chocaram<br />

Deus.<br />

Será <strong>que</strong> <strong>precisam</strong>os <strong>de</strong> preocupar–nos se ofen<strong>de</strong>mos Deus <strong>de</strong> alguma forma em uma<br />

explosão causada pela tensão ou pela dor? De acordo com este livro, não. Num to<strong>que</strong> da<br />

maior das ironias, Deus or<strong>de</strong>nou <strong>que</strong> os amigos <strong>de</strong> Jó seguissem seu exemplo <strong>de</strong><br />

arrependimento, logo ele <strong>que</strong> era objeto <strong>de</strong> con<strong>de</strong>scendência piedosa.<br />

5. Ninguém conhece tudo sobre o sofrimento. Jó concluiu <strong>que</strong> ele estava certo e Deus era<br />

injusto. Os amigos insistiam em <strong>que</strong> a verda<strong>de</strong> era o oposto: Deus era justo e Jó estava sendo<br />

punido por alguma coisa <strong>que</strong> fizera. Por fim, todos apren<strong>de</strong>ram <strong>que</strong> viam a situação a partir <strong>de</strong><br />

uma perspectiva limitada, cegos à verda<strong>de</strong>ira guerra <strong>que</strong> acontecia no céu.<br />

6. Deus nunca fica totalmente em silêncio. Eliú <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u este ponto <strong>de</strong> forma<br />

convincente, relembrando a Jó sonhos, visões, bênçãos passadas e até mesmo as obras diárias<br />

<strong>de</strong> Deus na natureza (capítulo 33). Deus, da mesma forma, usou a natureza como evidência <strong>de</strong><br />

sua sabedoria e <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r. Embora pareça <strong>que</strong> Deus está em silêncio, algum sinal <strong>de</strong> sua<br />

presença ainda po<strong>de</strong> ser encontrado. O escritor Joseph Bayly expressou a mesma verda<strong>de</strong>:<br />

"Na escuridão, lembre–se do <strong>que</strong> apren<strong>de</strong>u na luz."<br />

7. Algumas vezes os conselhos cheios <strong>de</strong> boas intenções prejudicam mais do <strong>que</strong> ajudam.<br />

O comportamento dos amigos <strong>de</strong> Jó é um exemplo clássico <strong>de</strong> como o orgulho e o sentimento<br />

<strong>de</strong> estar com a razão po<strong>de</strong>m sufocar a verda<strong>de</strong>ira compaixão. Eles repetiram frases piedosas e<br />

discutiram teologia com Jó, insistindo, teimosamente, em suas idéias equivocadas sobre o<br />

sofrimento (idéias <strong>que</strong>, na verda<strong>de</strong>, continuam a perseguir a Igreja). A resposta <strong>de</strong> Jó:<br />

"Tomara vos calásseis <strong>de</strong> todo, <strong>que</strong> isso seria a vossa sabedoria!" (13:4,5).<br />

8. Deus mudou o foco da <strong>que</strong>stão central: da causa do sofrimento <strong>de</strong> Jó para a reação<br />

<strong>de</strong>le. Misteriosamente, nunca explicou o problema do sofrimento e nem informou a Jó os<br />

acontecimentos registrados nos capítulos 1 e 2 do livro. A <strong>que</strong>stão principal em jogo era a fé:<br />

se Jó continuaria a confiar em Deus mesmo quando tudo <strong>de</strong>u errado.<br />

9. O sofrimento, no propósito <strong>de</strong> Deus, po<strong>de</strong> ser redimido ou usado para um bem maior.<br />

No caso <strong>de</strong> Jó, um período <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s lutas foi usado por Deus para chegar a uma vitória<br />

importante, até mesmo cósmica. Ao avaliar o <strong>que</strong> passou – mas só <strong>de</strong>pois <strong>que</strong> já passou –<br />

po<strong>de</strong>mos ver as "vantagens" obtidas por Jó por continuar a confiar em Deus. Através <strong>de</strong> seu<br />

sofrimento imerecido, Jó apontou para Jesus Cristo, <strong>que</strong> viveria uma vida perfeita, e mesmo<br />

assim enfrentaria a dor e a morte para chegar a uma gran<strong>de</strong> vitória.<br />

* * *<br />

Milhares <strong>de</strong> anos <strong>de</strong>pois, as perguntas <strong>de</strong> Jó ainda permanecem. Os sofredores ainda<br />

utilizam as palavras <strong>de</strong>le como um grito contra a aparente falta <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> Deus. Mas o<br />

livro <strong>de</strong> Jó afirma <strong>que</strong> Deus não está surdo aos nossos gritos, e controla este mundo, apesar <strong>de</strong><br />

às vezes parecer <strong>que</strong> não. Deus não respon<strong>de</strong>u a todas perguntas, mas bastou sua presença<br />

para <strong>que</strong> as dúvidas <strong>de</strong>saparecessem. Jó apren<strong>de</strong>u <strong>que</strong> Deus se preocupava com ele.<br />

Apren<strong>de</strong>u, ainda, <strong>que</strong> o Todo–Po<strong>de</strong>roso controla o mundo. Isso foi suficiente para ele.<br />

A ESCADA DA TRIBULAÇÃO<br />

O pastor e teólogo alemão Helmut Thiclicke uma vez afirmou <strong>que</strong> os cristãos da América<br />

possuem uma teologia do sofrimento ina<strong>de</strong>quada. Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> concordar com ele.<br />

~ 18 ~


Mais do <strong>que</strong> isso, nossa socieda<strong>de</strong> atravessou quase dois séculos sem uma invasão estrangeira,<br />

resolve todo seu <strong>de</strong>sconforto meteorológico com isolamento térmico e prescreve um remédio<br />

para cada pe<strong>que</strong>no traço <strong>de</strong> dor, portanto não há como esperar <strong>que</strong> em seu meio surja uma<br />

teologia do sofrimento.<br />

Talvez pelo menos uma parte <strong>de</strong>sta dificulda<strong>de</strong> provenha do modo como lemos a Bíblia.<br />

Descobri pelo menos cinco abordagens bíblicas do sofrimento, e se enfocarmos<br />

exclusivamente uma <strong>de</strong>las nos arriscamos a criar uma teologia do sofrimento não apenas<br />

ina<strong>de</strong>quada mas também herética. Dou a estas abordagens o nome <strong>de</strong> "Os cinco <strong>de</strong>graus da<br />

Escada da Tribulação".<br />

Degrau l: Uma pessoa <strong>que</strong> vive da forma certa nunca <strong>de</strong>ve sofrer. Estes pensamentos<br />

sobre um "evangelho da prosperida<strong>de</strong>" nos advêm quase como reflexo. Quando um<br />

<strong>de</strong>sportista quase consegue uma proeza, e falha no minuto final, pensamos <strong>que</strong> <strong>de</strong>ve haver<br />

pecado na vida <strong>de</strong>le. Se um jovem lí<strong>de</strong>r cristão tem câncer, não sabemos como alguém tão<br />

santo po<strong>de</strong> sofrer assim. Reconheço <strong>que</strong> esses pensamentos realmente aparecem na Bíblia,<br />

especialmente no livro <strong>de</strong> Provérbios, <strong>que</strong> implica <strong>que</strong> a vida correta trará recompensas ainda<br />

neste mundo. E pense na promessa abrangente <strong>de</strong> Salmos 1:3 para o homem justo: "Tudo<br />

quanto ele faz será bem–sucedido."<br />

É necessário voltar a Êxodo e Deuteronômio para enten<strong>de</strong>r a fonte <strong>de</strong>sta teologia, <strong>que</strong> é a<br />

aliança <strong>de</strong> Deus com os israelitas. Ele prometeu prosperida<strong>de</strong> para o povo, se O seguisse<br />

fielmente, mas eles não cumpriram os termos da aliança. Outros livros da Bíblia,<br />

notavelmente os Profetas e os Salmos, registram a angústia dos ju<strong>de</strong>us enquanto se ajustavam<br />

à nova realida<strong>de</strong>. Por exemplo: quase um terço dos Salmos apresenta um autor "justo" lutando<br />

contra o fracasso da teologia da prosperida<strong>de</strong>. Parecia <strong>que</strong> ela <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong> funcionar.<br />

Degrau 2: As pessoas boas realmente enfrentam tribulações, mas sempre conseguirão<br />

algum alívio. Muitos dos "salmos <strong>de</strong> tribulação" carregam em si um tom cortante <strong>de</strong><br />

auto<strong>de</strong>fesa. Parece <strong>que</strong> o autor pensa: Se eu conseguir convencer Deus <strong>de</strong> minha justiça, então<br />

Ele certamente me vai livrar. Deve haver algum engano nessa situação.<br />

Passei a ver estes salmos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa da própria justiça como palavras <strong>de</strong> preparação,<br />

por<strong>que</strong> ajudam toda uma nação a enten<strong>de</strong>r <strong>que</strong> algumas vezes as pessoas justas realmente<br />

sofrem, e nem sempre são livradas. Neste sentido, estes salmos são verda<strong>de</strong>iramente<br />

messiânicos: preparam o caminho para Jesus, o homem perfeito <strong>que</strong>, como está escrito em<br />

Hebreus:<br />

Tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a <strong>que</strong>m o podia<br />

livrar da morte.<br />

Mas Jesus não escapou da morte.<br />

Hebreus 11 apresenta uma lista <strong>de</strong> pessoas fiéis <strong>que</strong> viveram em épocas variadas,<br />

cobrindo vários séculos. Algumas receberam livramento miraculoso: Isa<strong>que</strong>, José, Moisés,<br />

Raabe, Gi<strong>de</strong>ão, Davi. Mas outros foram torturados, presos em correntes, apedrejados, serrados<br />

ao meio. O capítulo apresenta <strong>de</strong>talhes vivos sobre o último grupo: andaram vestidos <strong>de</strong> peles<br />

<strong>de</strong> ovelhas e <strong>de</strong> cabras, foram <strong>de</strong>samparados, vagaram por <strong>de</strong>sertos e montanhas e habitaram<br />

em cavernas, O autor conclui com um comentário enfático:<br />

Todos estes <strong>que</strong> obtiveram bom testemunho por sua fé não obtiveram, porem, a<br />

concretização da promessa. (v. 39)<br />

Degrau 3: Todas as coisas cooperam para o bem. Esta famosa frase <strong>de</strong> Romanos é<br />

distorcida muitas vezes. Algumas pessoas pensam <strong>que</strong> ela significa <strong>que</strong> só coisas boas<br />

acontecerão para os <strong>que</strong> amam a Deus. Ironicamente, Paulo <strong>que</strong>r dizer exatamente o contrário.<br />

No restante do capítulo, ele <strong>de</strong>fine <strong>de</strong> <strong>que</strong> tipo <strong>de</strong> "coisas" está falando: lutas, dificulda<strong>de</strong>s,<br />

perseguições, tome, nu<strong>de</strong>z, perigo e espada. Paulo enfrentou tudo isso e, por fim, sucumbiu.<br />

~ 19 ~


Não foi "livrado". Mesmo assim, ele insiste: "Em todas estas coisas somos mais do <strong>que</strong><br />

vencedores." Não há dificulda<strong>de</strong> <strong>que</strong> possa separar–nos do amor <strong>de</strong> Deus.<br />

Paulo encontrou uma solução habilidosa para as contradições levantadas pelos dois<br />

primeiros <strong>de</strong>graus da tribulação. Mesmo <strong>que</strong> a dificulda<strong>de</strong> sobrevenha a Deus, eles po<strong>de</strong>m ver<br />

<strong>que</strong> a situação é transitória. Um dia, quando a criação <strong>que</strong> geme for libertada, todas as<br />

tribulações acabarão. Paulo diz–nos <strong>que</strong> há um problema <strong>de</strong> tempo para nós. E só esperar: o<br />

milagre <strong>de</strong> Deus ao transformar a Sexta–feira da Paixão no Domingo <strong>de</strong> Páscoa será realizado<br />

em escala universal.<br />

Degrau 4: Pessoas fiéis po<strong>de</strong>m ser chamadas a sofrer. O livro <strong>de</strong> I Pedro explica este<br />

novo <strong>de</strong>sdobramento da tribulação. Bem distante do 1 <strong>de</strong>grau, on<strong>de</strong> os justos presumem uma<br />

imunida<strong>de</strong> contra o sofrimento, esta teologia assume a existência da perseguição. A<strong>que</strong>les <strong>que</strong><br />

seguirem as pegadas <strong>de</strong> Cristo sofrerão injustamente, assim como Ele sofreu. A história<br />

confirmou as palavras <strong>de</strong> Pedro. A maioria dos apóstolos morreu martirizada, e o sangue por<br />

eles <strong>de</strong>rramado foi a semente do crescimento da Igreja.<br />

Degrau 5: indiferença santa. O Apóstolo Paulo alcançou um estado <strong>de</strong> exaltação <strong>de</strong>scrito<br />

em Filipenses 1, no qual encontrava dificulda<strong>de</strong> em <strong>de</strong>cidir se era melhor morrer e estar com<br />

Cristo ou viver mais um pouco e continuar o ministério. Sua escala <strong>de</strong> valores parece estar <strong>de</strong><br />

pernas para o ar. É claro <strong>que</strong> vê sua limitação na prisão como agradável, por<strong>que</strong> esta<br />

"tribulação" acarretou muitos resultados bons. Ri<strong>que</strong>za, pobreza, conforto, sofrimento,<br />

aceitação, rejeição, até mesmo vida ou morte, nada disso interessa muito a Paulo. Só uma<br />

coisa importa para ele: o alvo maior <strong>de</strong> exaltar a Cristo, <strong>que</strong> ele po<strong>de</strong> alcançar sob quais<strong>que</strong>r<br />

circunstâncias.<br />

* * *<br />

Algumas pessoas sentem–se incomodadas, bem o sei, ao ver uma lista com uma série <strong>de</strong><br />

"<strong>de</strong>graus" da Bíblia, sem uma fórmula es<strong>que</strong>matizada para solucionar o problema <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

um es<strong>que</strong>ma maior. Para elas, recomendo <strong>que</strong> contemplem o 1 <strong>de</strong>grau à luz do último.<br />

Curiosamente, o avançado estágio <strong>de</strong> indiferença santa <strong>de</strong> Paulo coloca–o <strong>de</strong> volta no 1<br />

<strong>de</strong>grau. Para ele, a pessoa vivendo da maneira correta não sofre, pelo menos não em um<br />

sentido permanente. E Deus pô<strong>de</strong> usar todos os eventos da vida <strong>de</strong> Paulo, tanto os dolorosos<br />

quanto os agradáveis, como instrumento para fazer avançar seu Reino.<br />

Conheci poucas pessoas <strong>que</strong> atingiram o estágio sublime do 5º <strong>de</strong>grau, o <strong>que</strong> po<strong>de</strong><br />

confirmar o comentário <strong>de</strong> Helmut Thielicke sobre os Estados Unidos. Como uma nação tão<br />

abençoada po<strong>de</strong> conseguir dominar a fé avançada? Devemos procurar ensinamentos maduros<br />

sobre o sofrimento entre os cristãos <strong>de</strong> El Salvador, da África do Sul ou da Coréia do Norte.<br />

Que pena! Parece <strong>que</strong> <strong>de</strong>votamos mais tempo e energia <strong>de</strong>batendo sobre as possibilida<strong>de</strong>s do<br />

1 <strong>de</strong>grau, ou pelo menos sentindo sauda<strong>de</strong> da<strong>que</strong>les "bons e velhos dias" em <strong>que</strong> vencíamos<br />

todas as guerras e a economia navegava a favor do vento.<br />

O Apóstolo João escreveu, no prólogo <strong>de</strong> seu evangelho:<br />

DEUS ESCOLHE OS FAVORITOS<br />

Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigênito, <strong>que</strong> está no seio do Pai, é <strong>que</strong>m o<br />

revelou.<br />

Outra sentença, em sua primeira epístola (4:12), começa da mesma forma, mas prossegue<br />

<strong>de</strong> forma surpreen<strong>de</strong>nte:<br />

~ 20 ~


Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o<br />

seu amor é em nós aperfeiçoado.<br />

É uma idéia <strong>de</strong>sconcertante pensar <strong>que</strong> Deus escolheu pessoas comuns como seu canal<br />

preferido para revelar sua imagem – seu amor – ao mundo.<br />

E assim o mundo <strong>que</strong> Deus ama po<strong>de</strong> nunca conseguir vê–Lo, por<strong>que</strong> nosso rosto impe<strong>de</strong>.<br />

Há muito tempo sinto–me perturbado por um comentário <strong>de</strong> Dorothy Sayers sobre as três<br />

maiores humilhações sofridas por Deus. Para ela, a primeira humilhação foi a encarnação,<br />

quando confinou–se em um corpo físico. A segunda foi a Cruz, quando sofreu a ignomínia da<br />

morte por execução pública. A terceira é a Igreja.<br />

Ao ler este comentário pela primeira vez, cenas da história vieram–me à memória: as<br />

cruzadas, os massacres dos ju<strong>de</strong>us, as guerras da religião, a escravidão, a Ku–Klux–Klan.<br />

Todos estes movimentos alegavam ter a aprovação <strong>de</strong> Cristo (houve até um navio negreiro<br />

batizado <strong>de</strong> O Bom Navio Jesus). Mas a humilhação prossegue no século XX em lugares<br />

como a Iugoslávia, a África do Sul, o Líbano e a Irlanda do Norte, on<strong>de</strong> alguns dos piores<br />

conflitos do mundo envolvem cristãos. Ao olharmos para nós mesmos, só é preciso examinar<br />

a minha vida para ver até <strong>que</strong> ponto Deus se humilha para habitar em pessoas comuns.<br />

É triste, mas o mundo julga o próprio Deus pelas ações dos <strong>que</strong> carregam seu nome. No<br />

poema Before a Crucifix (Antes <strong>de</strong> um Crucifixo), Charles Swinburne <strong>de</strong>screve as "bestas <strong>que</strong><br />

se alimentam <strong>de</strong> homens" e <strong>que</strong> vagueiam em torno da árvore da fé, impedindo <strong>que</strong> outros<br />

creiam:<br />

Embora o coração <strong>de</strong>seje e a memória anele. Não po<strong>de</strong>mos louvá–lo por causa <strong>de</strong>las.<br />

Nietzsche disse rispidamente:<br />

Os discípulos dEle terão <strong>que</strong> parecer mais <strong>que</strong> estão salvos para <strong>que</strong> eu possa crer no<br />

Salvador.<br />

A Igreja é, na verda<strong>de</strong>, humilhação para Deus, fazendo, por causa <strong>de</strong> sua hipocrisia,<br />

com <strong>que</strong> o mundo se afaste dEle.<br />

* * *<br />

Embora sejamos motivo <strong>de</strong> humilhação para Deus, também somos fonte <strong>de</strong> orgulho.<br />

Ultimamente tenho notado algumas frases fascinantes <strong>que</strong> transmitem o orgulho <strong>de</strong> Deus, até<br />

mesmo seu prazer, pelos <strong>que</strong> permanecem fiéis. Revi os textos bíblicos, procurando as<br />

características comuns a estes "favoritos" <strong>de</strong> Deus. Por exemplo: o Anjo Gabriel disse ao<br />

profeta Daniel <strong>que</strong> ele era "muito amado" no céu. Ao falar com Ezequiel (capítulo 14), o<br />

próprio Deus confirmou isto, relacionando Noé, Daniel e Jó como três <strong>de</strong> seus favoritos. Eles<br />

formam um trio interessante: um sobreviveu a uma inundação, outro à cova dos leões e o<br />

último a um holocausto pessoal <strong>de</strong> sofrimento.<br />

Na verda<strong>de</strong>, reparei <strong>que</strong> a maioria dos favoritos <strong>de</strong> Deus atravessou um teste duro <strong>de</strong> sua<br />

fé. Abraão, chamado <strong>de</strong> "amigo <strong>de</strong> Deus", passou a maior parte <strong>de</strong> sua vida esperando,<br />

impacientemente, <strong>que</strong> Deus cumprisse Suas promessas. A Virgem Maria "achou favor diante<br />

<strong>de</strong> Deus", mas Kierkegaard, lembra–nos:<br />

Será <strong>que</strong> alguma mulher já foi atingida pelo sofrimento como Maria, e não é verda<strong>de</strong><br />

também <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le a <strong>que</strong>m Deus abençoa, no mesmo instante, Ele amaldiçoa?<br />

Em sua obra fear anel Trembling (Temor e Tremor) ele medita sobre a ansieda<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>sespero e paradoxo <strong>que</strong> marcaram a vida <strong>de</strong> Maria.<br />

~ 21 ~


É claro <strong>que</strong> a Bíblia aponta para Jesus como A<strong>que</strong>le <strong>que</strong> dá mais orgulho a Deus. Uma<br />

voz trovejou do céu:<br />

"Este é o meu Filho amado, em <strong>que</strong>m me comprazo."<br />

Ele, o Servo Sofredor, certamente se encaixa no padrão <strong>de</strong>scrito. Foi Jesus, afinal, <strong>que</strong>m<br />

incorporou as duas outras gran<strong>de</strong>s humilhações <strong>de</strong> Deus.<br />

O mesmo padrão <strong>de</strong> fé sob fogo aparece em Hebreus 11, um capítulo <strong>que</strong> alguns chamam<br />

<strong>de</strong> "A Galeria dos Heróis da Fé". Nele o autor registra, em <strong>de</strong>talhes terríveis, as lutas <strong>que</strong><br />

po<strong>de</strong>m sobrevir às pessoas fiéis, concluindo: "Homens dos quais o mundo não era digno."<br />

Hebreus acrescenta ainda, sobre este grupo impressionante: "Por isso, Deus não se<br />

envergonha <strong>de</strong>les, <strong>de</strong> ser chamado o seu Deus." Para mim, esta frase inverte o sentido da<br />

afirmativa <strong>de</strong> Dorothy Sayers sobre as humilhações <strong>de</strong> Deus: sim, a Igreja já foi causa <strong>de</strong><br />

vergonha para Ele, mas também Lhe trouxe momentos <strong>de</strong> orgulho, e os santos sofredores <strong>de</strong><br />

Hebreus 11 mostram isso.<br />

Os santos atingem esta condição por<strong>que</strong> se apegam, teimosamente, à convicção <strong>de</strong> <strong>que</strong><br />

Deus merece nossa confiança, mesmo quando parece <strong>que</strong> o mundo está <strong>de</strong>sabando. Os santos<br />

<strong>de</strong> Hebreus 11 colocaram suas esperanças em um país melhor, celestial, e por este motivo<br />

Deus não se envergonha <strong>de</strong> ser chamado <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>les. Paradoxalmente, a fé se <strong>de</strong>senvolve<br />

mais quando há incerteza e confusão: se duvida disso, leia a história da vida das pessoas <strong>que</strong><br />

aparecem em Hebreus 11. Os favoritos <strong>de</strong> Deus, eles em especial, não estão imunes a<br />

períodos <strong>de</strong> testes. Como disse Paul Tournier: "On<strong>de</strong> não há mais oportunida<strong>de</strong> para duvidar<br />

também não há mais oportunida<strong>de</strong> para crer."<br />

Ao terminar meu estudo sobre os favoritos <strong>de</strong> Deus, um fato sobressaiu–se a todos os<br />

outros. A<strong>que</strong>las pessoas dificilmente se parecem com os santos saudáveis, prósperos e<br />

mimados <strong>que</strong> vejo apresentados nos programas religiosos na televisão. O contraste é chocante<br />

e me <strong>de</strong>ixou confuso por algum tempo. Talvez seja esta a diferença: os programas na televisão<br />

<strong>precisam</strong> preocupar–se em agradar a uma audiência <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> pessoas, às vezes milhões.<br />

Os favoritos <strong>de</strong> Deus se <strong>de</strong>dicam a agradar a uma audiência composta por Uma só Pessoa.<br />

Receber o mandamento <strong>de</strong> amar a Deus acima <strong>de</strong> tudo, ainda mais estando no <strong>de</strong>serto,<br />

é como receber a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> sentir–se bem quando se está doente, cantar <strong>de</strong> alegria<br />

quando se morre <strong>de</strong> se<strong>de</strong>, correr quando as pernas estão <strong>que</strong>bradas. Esta, porém é o<br />

primeiro e o maior dos mandamentos. Mesmo no <strong>de</strong>serto — especialmente no <strong>de</strong>serto<br />

– <strong>de</strong>vemos amá–LO.<br />

– Fre<strong>de</strong>rick Buechner<br />

O SEGREDO ESPIRITUAL DO REI DAVI<br />

O escritor Joseph Heller certa vez tentou reescrever a história da vida do Rei Davi. O<br />

resultado, um livro chamado God Knows (Deus Sabe), não alcançou sucesso. Uma crítica da<br />

revista Time apresentou uma razão: não é possível romancear o relato bíblico da vida do Rei<br />

Davi tornando–o ainda mais picante. A Bíblia não omite qual<strong>que</strong>r parte <strong>de</strong>sagradável, mas<br />

apresenta todas as mentiras e enganos, as batalhas infindáveis, os atos <strong>de</strong> bravura, a<br />

insanida<strong>de</strong> fingida, os fracassos familiares, o adultério e o assassinato.<br />

Mas o livro <strong>de</strong> Heller, um pouco irreverente, levanta uma <strong>que</strong>stão inevitável <strong>que</strong> também<br />

está presente no relato bíblico. Como po<strong>de</strong>ria uma pessoa com tantas falhas óbvias tornar–se<br />

conhecida como "O homem segundo o coração <strong>de</strong> Deus"? Por muito tempo, em Israel, Jeová<br />

era chamado <strong>de</strong> o "Deus <strong>de</strong> Davi", tão forte era a i<strong>de</strong>ntificação entre os dois. Qual era o<br />

segredo <strong>de</strong> Davi?<br />

~ 22 ~


Realizei um exercício <strong>de</strong> leitura <strong>que</strong> talvez possa oferecer uma pista. Comparei, para usar<br />

o jargão corrente, a jornada interior <strong>de</strong> Davi com a exterior. O livro dos Salmos, em particular<br />

os setenta e três a ele atribuídos, constituem–se em uma janela para a alma <strong>de</strong>le. Alguns<br />

trazem comentários introdutórios revelando as circunstâncias em <strong>que</strong> foram escritos. Decidi<br />

ler o diário espiritual <strong>de</strong> Davi nos Salmos primeiro e, a partir da evi<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong>ste registro<br />

"interior", tentar imaginar <strong>que</strong> eventos "exteriores" suscitaram as palavras. Depois voltei–me<br />

para o registro histórico nos livros <strong>de</strong> Samuel e comparei minhas <strong>de</strong>duções com o <strong>que</strong><br />

realmente acontecera.<br />

O Salmo 56 inclui as palavras "Neste Deus ponho a minha confiança", e Davi, cheio <strong>de</strong><br />

gratidão, revela <strong>que</strong> foi Deus <strong>que</strong>m livrou sua alma da morre e seus pés <strong>de</strong> tropeçarem. Com a<br />

mera leitura pareceu–me <strong>que</strong> Deus interviera miraculosamente e resgatara Davi <strong>de</strong> alguma<br />

situação difícil. Mas <strong>que</strong> aconteceu realmente? Voltando–me para I Samuel 21, li a história <strong>de</strong><br />

um prisioneiro apavorado, <strong>que</strong> babava e se movia <strong>de</strong>scoor<strong>de</strong>nadamente, como um louco, na<br />

tentativa <strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong> salvar sua pele. Até on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong> ver não houve qual<strong>que</strong>r milagre, só<br />

um renegado com instinto <strong>de</strong> sobrevivência bem forte.<br />

A seguir, li o Salmo 59:<br />

A ti, Força minha, cantarei louvores, por<strong>que</strong> Deus é meu alto refúgio, é o Deus da<br />

minha misericórdia.<br />

Mais uma vez parecia <strong>que</strong> Deus agira para salvar a vida <strong>de</strong> Davi. Mas, em I Samuel 19, o<br />

texto <strong>que</strong> correspon<strong>de</strong> ao Salmo, li uma cena <strong>de</strong> caçada: Davi sai furtivamente por uma janela<br />

enquanto sua esposa engana os perseguidores cobrindo uma estátua com pêlos <strong>de</strong> cabra. Mais<br />

uma vez o salmo <strong>de</strong> Davi conce<strong>de</strong> a Deus todo o crédito pelo <strong>que</strong> parecia ser engenhosida<strong>de</strong><br />

humana.<br />

O Salmo 57 tem outro tom, <strong>de</strong> fra<strong>que</strong>za e temor. Mostra um fugitivo clamando por<br />

misericórdia. Pensei <strong>que</strong> a fé <strong>de</strong> Davi vacilava quando ele escreveu a<strong>que</strong>las palavras. Mas, ao<br />

olhar o registro histórico em I Samuel 24, encontrei uma das <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> coragem<br />

<strong>de</strong>safiadora mais extraordinárias <strong>de</strong> toda a história.<br />

O Salmo 18 apresenta um resumo <strong>de</strong> toda a carreira militar <strong>de</strong> Davi. Escrito quando,<br />

afinal, ele era rei absoluto, recorda com <strong>de</strong>talhes vívidos os muitos milagres <strong>de</strong> livramento<br />

<strong>que</strong> Deus fez. Lendo apenas este salmo, sem conhecer o contexto histórico, a pessoa acredita<br />

<strong>que</strong> a vida <strong>de</strong> Davi foi especialmente charmosa e protegida. Ali ele não fala nada dos anos <strong>de</strong><br />

fuga, das batalhas <strong>que</strong> duravam a noite toda, das cenas <strong>de</strong> perseguição e dos planos<br />

engenhosos <strong>de</strong> fuga <strong>que</strong> preenchem as páginas <strong>de</strong> I e II Samuel.<br />

Em resumo, se lemos os Salmos atribuídos a Davi e, a partir <strong>de</strong>les, tentamos imaginar sua<br />

vida, fracassamos completamente. Po<strong>de</strong>–se pensar em um eremita piedoso, alienado <strong>de</strong>ste<br />

mundo, ou em uma alma tímida e neurótica, favorecida por Deus, mas não se pensará em um<br />

gigante <strong>de</strong> força e coragem. Como explicar a disparida<strong>de</strong> entre os dois registros bíblicos, da<br />

jornada interior e da exterior <strong>de</strong> Davi?<br />

* * *<br />

Todos temos, ao mesmo tempo, uma vida interior e uma exterior. Percebemos a vida<br />

como um tipo <strong>de</strong> filme, consumido <strong>de</strong> personagens, cenários e <strong>de</strong>sdobramentos do enredo –<br />

sendo nós mesmos os personagens principais. Se formos nós dois a um mesmo evento<br />

(digamos, uma festa), levaremos ambos para casa os mesmos fatos "exteriores" do <strong>que</strong><br />

aconteceu, mas o ponto <strong>de</strong> vista "interior" será totalmente diferente. Minha memória se<br />

voltará para a impressão <strong>que</strong> eu causei. Fui engraçado ou charmoso? Ofendi alguém, ou<br />

envergonhei a mim mesmo? Os outros me acharam bonito? É muito provável <strong>que</strong> você faça as<br />

mesmas perguntas sobre a sua pessoa.<br />

~ 23 ~


Parece, porém, <strong>que</strong> Davi enxergava a vida <strong>de</strong> um jeito um pouco diferente. Suas proezas<br />

— matar animais selvagens só com as mãos, vencer Golias, sobreviver às investidas <strong>de</strong> Saul,<br />

dispersar os filisteus – certamente lhe granjearam posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>sta<strong>que</strong> na História. Mas, ao<br />

refletir sobre estes eventos e escrever poemas sobre eles, encontrou um jeito <strong>de</strong> tornar Javé, o<br />

Deus <strong>de</strong> Israel, o centro das atenções. Davi experimentou a presença <strong>de</strong> Deus. Quer<br />

expressasse esta presença em poemas sublimes <strong>de</strong> louvor, <strong>que</strong>r em reclamações comuns, <strong>de</strong><br />

qual<strong>que</strong>r forma envolvia Deus, intencionalmente. nos <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> sua vida.<br />

Davi confiava no interesse <strong>que</strong> Deus tinha por sua vida. Depois <strong>de</strong> uma fuga difícil,<br />

escreveu:<br />

Livrou–me, por<strong>que</strong> ele se agradou <strong>de</strong> mim. (Salmo 18:19)<br />

Em outra ocasião argumentou, com palavras pungentes:<br />

Que proveito obterás no meu sangue, quando baixo à cova? Louvar–te–á, porventura,<br />

o pó? (Salmo 30)<br />

E, quando se sentia traído por Deus, fazia <strong>que</strong>stão <strong>de</strong> <strong>que</strong> Ele o soubesse. Afinal, foi Davi<br />

<strong>que</strong>m falou primeiro: "Deus meu, Deus meu, por <strong>que</strong> me <strong>de</strong>samparaste?" Chamou o Senhor<br />

para se explicar com ele, exigindo <strong>que</strong> cumprisse sua parte no relacionamento especial <strong>que</strong><br />

havia entre eles.<br />

Durante toda sua vida Davi acreditou, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, <strong>que</strong> o mundo invisível <strong>de</strong> Deus – o céu,<br />

os anjos e tudo mais – era tão real quanto seu próprio mundo <strong>de</strong> espadas, lanças, cavernas e<br />

tronos. Os salmos constituem–se no registro <strong>de</strong> seu esforço consciente para submeter sua vida<br />

cotidiana à realida<strong>de</strong> do mundo invisível <strong>que</strong> era maior do <strong>que</strong> ele.<br />

O Salmo 57 registra muito bem este processo. O título nos informa <strong>que</strong> Davi o compôs<br />

quando fugiu <strong>de</strong> Saul e se escon<strong>de</strong>u em uma caverna. I Samuel 24 cria o cenário: Saul, com<br />

seu exército muito bem equipado, cercara completamente o pe<strong>que</strong>no grupo <strong>de</strong> Davi. Sem<br />

qual<strong>que</strong>r oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escapar, Davi embrenhou–se em uma caverna próxima a um<br />

cercado <strong>de</strong> ovelhas. O salmo, é óbvio, expressa ansieda<strong>de</strong> e medo. Mas termina em uma<br />

afirmativa triunfante, meio estranha para a situação;<br />

Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus; e em toda a terra esplenda a tua glória.<br />

De alguma forma, no processo <strong>de</strong> compor, Davi foi capaz <strong>de</strong> levantar seus olhos da<br />

caverna úmida e mal cheirosa, voltando–os para o céu, acima <strong>de</strong>le. No mais improvável dos<br />

cenários, ele vem a afirmar: Deus reina.<br />

Talvez tenha sido na manhã seguinte <strong>que</strong> Davi saiu, confiante, da caverna e confrontou o<br />

exército inteiro do Rei Saul, sem qual<strong>que</strong>r arma nas mãos, mas com um apelo à consciência.<br />

Talvez o próprio processo <strong>de</strong> compor o salmo tenha–o encorajado para essa <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong><br />

coragem moral.<br />

Felizmente, poucos <strong>de</strong> nós vivemos frente ao perigo mortal, como Davi viveu. Mas, assim<br />

como Ele, passamos por situações em <strong>que</strong> nossa resistência acaba, o medo se instala, parece<br />

<strong>que</strong> Deus se afastou e as forças hostis nos cercaram. Em momentos assim volto–me para os<br />

Salmos. Suspeito <strong>de</strong> <strong>que</strong> Davi os escreveu como uma forma <strong>de</strong> terapia espiritual, um caminho<br />

para voltar–se para a fé quando seu espírito e suas emoções vacilavam. E hoje, muitos séculos<br />

<strong>de</strong>pois, po<strong>de</strong>mos usar exatamente as mesmas orações como passos <strong>de</strong> fé, caminho <strong>que</strong> nos<br />

liberta da obsessão conosco mesmos e nos leva à verda<strong>de</strong>ira presença <strong>de</strong> nosso Deus.<br />

~ 24 ~


2<br />

NO MUNDO<br />

• Por <strong>que</strong> existem tantos alcoólicos em nossos dias? Por <strong>que</strong> eles simplesmente não vêm<br />

até a igreja em vez <strong>de</strong> se isolarem em seus grupos fechados? Por <strong>que</strong> os pecadores se sentem<br />

tanta atração por Jesus e tanta repulsa pela igreja?<br />

• Por <strong>que</strong> as pessoas com Aids quase nunca vão à igreja?<br />

• Por <strong>que</strong> praticamente todas as situações <strong>de</strong> disciplina na igreja envolvem pecados<br />

sexuais? Por <strong>que</strong> ouço tão poucos sermões sobre os pecados do orgulho, cobiça, preguiça e<br />

glutonaria? Será <strong>que</strong> os cristãos apoiariam um movimento nacional semelhante à Lei Seca<br />

contra a gran<strong>de</strong> ameaça à saú<strong>de</strong>, <strong>que</strong> é a obesida<strong>de</strong>?<br />

• Por <strong>que</strong> tantos hospitais têm nomes "cristãos"? E por <strong>que</strong> funcionam como qual<strong>que</strong>r<br />

outro hospital? Como seria um hospital verda<strong>de</strong>iramente cristão?<br />

• De on<strong>de</strong> veio o ódio racial? E as raças, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vieram? Por <strong>que</strong> Deus não fez todas<br />

as pessoas semelhantes, como são as margaridas ou as moléculas <strong>de</strong> hidrogênio?<br />

• Deus prefere os Protestantes ou os Católicos na Irlanda?<br />

• De on<strong>de</strong> vêm os ditadores? Por <strong>que</strong> Deus permite <strong>que</strong> inflijam tanto mal ao mundo?<br />

Por <strong>que</strong> Deus se calou durante o Holocausto?<br />

A IGREJA DA MEIA–NOITE<br />

Fui a uma "igreja" singular recentemente, <strong>que</strong> consegue atrair milhões <strong>de</strong> membros<br />

<strong>de</strong>votos todas as semanas, sem ter se<strong>de</strong> <strong>de</strong>nominacional e nem funcionários contratados. O<br />

nome é Alcoólicos Anônimos. Fui a convite <strong>de</strong> um amigo, <strong>que</strong> me confessara, pouco tempo<br />

antes, seu problema com a bebida. Ele me disse:<br />

– Venha comigo, e verá uma amostra <strong>de</strong> como <strong>de</strong>ve ter sido a Igreja primitiva.<br />

À meia–noite <strong>de</strong> uma segunda–feira, entrei em uma casa caindo aos pedaços, <strong>que</strong> já<br />

abrigara seis sessões na<strong>que</strong>le dia. Nuvens <strong>de</strong> fumaça <strong>de</strong> cigarro pairavam no ar como gás<br />

lacrimogêneo. Não passou muito tempo antes <strong>que</strong> eu percebesse o <strong>que</strong> meu amigo <strong>que</strong>ria<br />

dizer com sua alusão à Igreja primitiva. Um político muito conhecido e vários milionários<br />

proeminentes se misturavam com <strong>de</strong>sempregados <strong>de</strong>sanimados e garotos <strong>que</strong> colocavam<br />

band–Aids nos braços para escon<strong>de</strong>r as marcas das agulhas. O "momento <strong>de</strong> compartilhar" foi<br />

semelhante às <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> terapia i<strong>de</strong>ais <strong>que</strong> encontramos nos livros <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong><br />

Psicologia. As pessoas ouviam em compaixão, respondiam com ardor e abraçavam–se ao<br />

final. As apresentações eram mais ou menos assim:<br />

– Oi, sou o Tom, e sou <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> álcool e drogas. Imediatamente todos gritavam em<br />

uníssono, como um coral do teatro grego:<br />

– Oi, Tom!<br />

Cada participante da reunião <strong>de</strong>u o relatório <strong>de</strong> seu progresso pessoal na batalha contra a<br />

<strong>de</strong>pendência.<br />

Cartazes com frases simpáticas – "Um dia <strong>de</strong> cada vez", "Você consegue" – enfeitavam as<br />

pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sbotadas da sala. Meu amigo acredita <strong>que</strong> esses arcaísmos revelam outra<br />

semelhança com a Igreja primitiva. A maior parte da sabedoria do AA é passada <strong>de</strong> uma<br />

pessoa para a outra pela tradição oral, <strong>que</strong> vem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a fundação da entida<strong>de</strong>, há mais <strong>de</strong><br />

~ 25 ~


cinqüenta anos. Ninguém usa muito as publicações atualizadas do AA e nem seus artigos <strong>de</strong><br />

relações públicas. Em vez disso, confiam principalmente em um velho livro embolorado com<br />

o título prosaico: O Gran<strong>de</strong> Livro Azul dos Alcoólicos Anônimos, <strong>que</strong> conta a história dos<br />

primeiros membros, em um estilo pomposo, parecido com o da Bíblia.<br />

O AA não possui qual<strong>que</strong>r proprieda<strong>de</strong>, não tem uma se<strong>de</strong> com luxos como mala direta e<br />

centro <strong>de</strong> mídia, não há uma equipe <strong>de</strong> consultores bem pagos e nem conselheiros <strong>de</strong><br />

investimentos a cruzar o país <strong>de</strong> avião. Os fundadores do movimento estabeleceram garantias<br />

<strong>que</strong> acabariam com qual<strong>que</strong>r iniciativa para implantar a burocracia. Acreditavam em <strong>que</strong> o<br />

programa só teria sucesso se permanecesse no nível mais básico e íntimo: um alcoólico<br />

<strong>de</strong>dicando sua vida a ajudar outro. Mesmo assim o AA mostrou–se tão eficaz <strong>que</strong> mais 250<br />

organizações, <strong>de</strong> Chocólatras Anônimos a grupos <strong>de</strong> pacientes <strong>de</strong> câncer, surgiram como uma<br />

imitação consciente <strong>de</strong> sua técnica.<br />

Os muitos paralelos com a Igreja primitiva não são meras coincidências históricas. Os<br />

fundadores cristãos insistiram em <strong>que</strong> a <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>veria ser uma parte<br />

obrigatória do programa. Na noite em <strong>que</strong> participei da reunião, todos na sala repetiram em<br />

voz alta os doze princípios, <strong>que</strong> reconhecem total <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Deus para perdão e força<br />

(os membros mais agnósticos po<strong>de</strong>m substituir pelo eufemismo "Po<strong>de</strong>r do Alto", mas <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> algum tempo isso começa a soar tão vazio <strong>que</strong> eles geralmente acabam passando para<br />

Deus). Durante os momentos <strong>de</strong> compartilhar, algumas pessoas usaram o nome <strong>de</strong> Deus em<br />

uma série <strong>de</strong> profanida<strong>de</strong>s, e na sentença seguinte agra<strong>de</strong>ciam a Ele por ajudá–las a atravessar<br />

mais uma semana.<br />

Meu amigo admite abertamente <strong>que</strong> o AA tomou o lugar da igreja na vida <strong>de</strong>le, e isso às<br />

vezes o perturba. Ele <strong>de</strong>nomina a situação <strong>de</strong> "a <strong>que</strong>stão Cristológica" do AA. E diz:<br />

O AA não adoça uma ecologia da qual possa falar. Raramente se menciona Cristo. Os<br />

grupos tomaram emprestada a sociologia da igreja, bem como algumas das palavras e<br />

dos conceitos, mas não há doutrina subjacente. Sinto falta das doutrinas, mas em<br />

primeiro lugar estou tentando sobreviver, e o AA me ajuda muito mais nesta luta do<br />

<strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r igreja local.<br />

A igreja – e é possível avistar muitas torres através das janelas do prédio on<strong>de</strong> o grupo dos<br />

AA se reúne – parece irrelevante, enfadonha e sem substância para meu amigo. Outros no<br />

grupo explicam sua resistência à igreja relatando histórias <strong>de</strong> rejeição, julgamento e<br />

sentimento <strong>de</strong> culpa. Uma igreja local é o último lugar em <strong>que</strong> se levantariam para <strong>de</strong>clarar<br />

<strong>que</strong> são alcoólicos e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> drogas. Ninguém os saudaria com alegria, como nas<br />

reuniões do AA.<br />

Meu amigo acredita <strong>que</strong> um dia acabará voltando para a igreja, já <strong>que</strong> não abandonou sua<br />

fé. Ele afirma <strong>que</strong>, na verda<strong>de</strong>, o envolvimento no AA o ajudou a solucionar alguns dos<br />

paradoxos mais difíceis do cristianismo. Tomemos como exemplo o <strong>de</strong>bate livre–<br />

arbítrio/<strong>de</strong>terminismo: como alguém po<strong>de</strong> aceitar toda a responsabilida<strong>de</strong> por suas ações,<br />

quando sabe <strong>que</strong> os antece<strong>de</strong>ntes familiares, <strong>de</strong>sequilíbrios hormonais e as forças<br />

sobrenaturais do mal contribuíram para seu comportamento? Uma das personagens <strong>de</strong><br />

William Faulkner expressou–se assim:<br />

"Não vou fazer. Mas não consigo evitar."<br />

O AA é bem menos ambíguo: todo participante tem <strong>que</strong> reconhecer a responsabilida<strong>de</strong><br />

total e completa por todo seu comportamento, até mesmo pelo <strong>que</strong> acontece durante um<br />

estupor alcoólico ou um blecaute (uma espécie <strong>de</strong> limbo, no qual o alcoólico continua a agir,<br />

mas com amnésia, sem percepção consciente). É proibido racionalizar.<br />

Meu amigo prossegue:<br />

O AA me ajudou também a aceitar a noção do pecado original. Na verda<strong>de</strong>, embora<br />

muitos cristãos <strong>de</strong>sprezem esta doutrina, o pecado original combina perfeitamente<br />

com as pessoas <strong>que</strong> freqüentam o AA.<br />

~ 26 ~


Expressamos esta verda<strong>de</strong> cada vez <strong>que</strong> nos apresentamos, dizendo <strong>que</strong> somos<br />

alcoólicos. Ninguém se esquiva dizendo <strong>que</strong> em alcoólico.<br />

Para este meu amigo, a imersão nos Alcoólicos Anônimos significou encontrar a salvação<br />

em seu sentido mais literal. Sabe <strong>que</strong> uma escorrega<strong>de</strong>la po<strong>de</strong>ria causar, ou melhor, causaria<br />

com certeza sua morte prematura. Mais <strong>de</strong> uma vez o companheiro <strong>de</strong>le <strong>de</strong>ntro do AA<br />

aten<strong>de</strong>u seus chamados às 4h da madrugada, indo encontrá–lo encurvado em um restaurante<br />

escuro, escrevendo vezes sem conta em um ca<strong>de</strong>rno, como um garoto sendo castigado na<br />

escola: "Deus, ajuda–me a atravessar os próximos cinco minutos." Hoje ele aproxima–se <strong>de</strong><br />

seu quinto aniversário <strong>de</strong> sobrieda<strong>de</strong>, um marco importante <strong>de</strong> acordo com a avaliação do AA.<br />

E mesmo assim sabe <strong>que</strong> 50% das pessoas <strong>que</strong> vencem esta etapa acabam caindo <strong>de</strong> novo.<br />

Saí impressionado da "igreja da meia–noite", mas ainda me perguntando por <strong>que</strong> o AA<br />

aten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>terminadas necessida<strong>de</strong>s <strong>que</strong> a igreja local não consegue aten<strong>de</strong>r, ou pelo menos<br />

não conseguiu, no caso <strong>de</strong> meu amigo. Pedi–lhe <strong>que</strong> apontasse a qualida<strong>de</strong> mais importante<br />

ausente na igreja e presente no AA. Ele olhou para sua xícara <strong>de</strong> café por um longo tempo,<br />

parecia estar assistindo ao líquido esfriar. Esperei ouvir uma palavra como amor, aceitação<br />

ou, por conhecê–lo bem, talvez ausência <strong>de</strong> institucionalismo. Em lugar disto, ele disse, bem<br />

baixo, uma única palavra: <strong>de</strong>pendência.<br />

E explicou:<br />

Nenhum <strong>de</strong> nós é capaz <strong>de</strong> prosseguir só, e não foi para isto <strong>que</strong> Jesus veio? Ainda<br />

assim, a maioria das pessoas na igreja apresenta um ar <strong>de</strong> satisfação consigo mesmas,<br />

com pieda<strong>de</strong> ou superiorida<strong>de</strong>. Não sinto <strong>que</strong>, conscientemente, elas se apóiem em<br />

Deus ou umas nas outras. Parece <strong>que</strong> a vida <strong>de</strong>las está em or<strong>de</strong>m. Um alcoólico se<br />

sente inferior e incompleto na igreja.<br />

Ficou em silêncio um pouco, até <strong>que</strong> um sorriso apareceu em seu rosto. E concluiu<br />

dizendo:<br />

É engraçado. O <strong>que</strong> mais o<strong>de</strong>io em mim, meu alcoolismo, é exatamente o <strong>que</strong> Deus<br />

usou para me trazer <strong>de</strong> volta até Ele. Por ser alcoólico sei <strong>que</strong> não consigo sobreviver<br />

sem Deus. Talvez seja este o valor re<strong>de</strong>ntor dos alcoólicos. Talvez Deus nos esteja<br />

chamando a ensinar aos santos o <strong>que</strong> significa <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r dEle e <strong>de</strong> sua comunida<strong>de</strong> na<br />

Terra.<br />

A AIDS É UM CASTIGO DE DEUS<br />

Alguns dos melhores momentos <strong>que</strong> passo "lendo" acontecem enquanto corro em volta do<br />

lago em Chicago, equipado com meu toca–fitas pe<strong>que</strong>no, no qual ouço fitas com livros<br />

gravados. Certo dia <strong>de</strong> inverno as ruas sombrias da cida<strong>de</strong> e o céu acinzentado formaram o<br />

cenário perfeito para o livro <strong>que</strong> eu escolhera: A Journal of the Plague Year (Diário do Ano<br />

da Praga), <strong>de</strong> Daniel Defoe. Ele <strong>de</strong>screve em prosa, meticulosa e claramente, a peste<br />

bubônica <strong>que</strong> assolou Londres em 1665.<br />

No relato (<strong>que</strong> apresenta a história em forma <strong>de</strong> ficção realista), Defoe vagueia pelas ruas<br />

<strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> fantasma. Mais <strong>de</strong> duzentas mil pessoas haviam fugido <strong>de</strong> Londres, e os <strong>que</strong><br />

permaneceram se trancavam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa para se protegerem, aterrorizados quanto ao<br />

menor contato com outros seres humanos. Nas vias públicas principais, on<strong>de</strong> antes transitava<br />

gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pessoas, agora a relva crescia. "Dor e tristeza fixaram–se em cada rosto" –<br />

~ 27 ~


diz Defoe. Na época mais aguda da praga, entre 1500 e 1700 pessoas morriam a cada dia, e os<br />

corpos eram recolhidos à noite e enterrados em covas bem profundas. O livro <strong>de</strong>screve cenas<br />

horríveis: crianças mortas presas no abraço permanente do rigor mortis <strong>de</strong> seus pais, bebês<br />

vivos sugando, em vão, o seio da mãe recém–falecida.<br />

Enquanto eu ouvia, o relato <strong>de</strong> Defoe tornou–se particularmente tocante à vista <strong>de</strong> uma<br />

praga da atualida<strong>de</strong>. Eu e minha esposa moramos em um bairro habitado por muitos<br />

homossexuais e não poucos usuários <strong>de</strong> drogas. Não pu<strong>de</strong> evitar uma reflexão sobre os<br />

paralelos entre o tempo <strong>de</strong> Defoe e o nosso ao correr perto <strong>de</strong> uma clínica para pacientes <strong>de</strong><br />

Aids. Vi os cartazes colados em postes ornamentais, informando <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le era um lugar <strong>que</strong><br />

cuidava <strong>de</strong> pessoas com o vírus HIV. Em comparação com a Gran<strong>de</strong> Praga, a epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong><br />

Aids atingiu uma proporção muito menor da população, mas <strong>de</strong>spertou uma reação <strong>de</strong> histeria<br />

notavelmente semelhante.<br />

Na época <strong>de</strong> Defoe, parecia <strong>que</strong> a ira <strong>de</strong> Deus, <strong>de</strong>rretida, era <strong>de</strong>spejada sobre todo o<br />

planeta. Dois cometas brilhantes apareciam no céu toda noite: alguns diziam <strong>que</strong> eram o sinal<br />

certo <strong>de</strong> <strong>que</strong> a mão <strong>de</strong> Deus estava por trás da praga. Profetas fora <strong>de</strong> si perambulavam pelas<br />

ruas. Um repetia o grito <strong>de</strong> Jonas: "Ainda quarenta dias e Londres será <strong>de</strong>struída!" Outro<br />

andava por toda parte nu, balançando uma panela <strong>de</strong> carvão em brasa sobre sua cabeça para<br />

simbolizar o julgamento <strong>de</strong> Deus. Outro ainda, também nu, repetia com tristeza a mesma frase<br />

o dia inteiro: "Oh, o gran<strong>de</strong> e terrível Deus! Oh, o gran<strong>de</strong> e terrível Deus...."<br />

Temos nossa versão mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>stes profetas. A maioria <strong>de</strong>les, porém, anda bem vestida e<br />

ten<strong>de</strong> a estreitar o espectro do julgamento <strong>de</strong> Deus, focalizando–o em um grupo <strong>de</strong> pessoas,<br />

em particular os homossexuais, representados <strong>de</strong>sproporcionalmente entre os <strong>que</strong> sofrem <strong>de</strong><br />

Aids nos Estados Unidos. Em alguns círculos, quase consigo <strong>de</strong>tectar um suspiro <strong>de</strong> alívio e<br />

satisfação por<strong>que</strong> afinal "eles estão recebendo o <strong>que</strong> merecem". O ex–ministro da Saú<strong>de</strong>, e.<br />

Everett Koop, cristão evangélico, recebeu caixas e caixas <strong>de</strong> cartas repletas <strong>de</strong> ódio sempre<br />

<strong>que</strong> ousou propor <strong>que</strong> o motivo <strong>de</strong> pessoas contraírem a Aids não era o fato <strong>de</strong> pecarem e<br />

merecerem ser castigadas.<br />

A crise da Aids mistura–se com um anseio misterioso entre os seres humanos: o <strong>de</strong>sejo<br />

profundo <strong>de</strong> <strong>que</strong> o sofrimento fosse atrelado ao comportamento. Há um livro em minha<br />

estante, Theories of Illness (Teorias da Doença), relatando uma pesquisa feita em 139 grupos<br />

tribais <strong>de</strong> todo o mundo. Apenas quatro <strong>de</strong>les não pensam na doença como sinal <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>saprovação <strong>de</strong> Deus (ou dos <strong>de</strong>uses). O autor afirma <strong>que</strong> os poucos grupos <strong>que</strong> duvidavam<br />

<strong>de</strong>ssa doutrina provavelmente mudaram sua crença após contato prolongado com a civilização<br />

mo<strong>de</strong>rna.<br />

Praticamente só <strong>de</strong>ntre todas as civilizações da história, a nossa, mo<strong>de</strong>rna, secular,<br />

<strong>que</strong>stiona se Deus age diretamente em acontecimentos humanos como pragas e catástrofes<br />

naturais. Estamos confusos. Será <strong>que</strong> Deus escolhe uma cida<strong>de</strong> do sul dos Estados Unidos<br />

para ser arrasada por um tornado como alerta do julgamento final? Será <strong>que</strong> impe<strong>de</strong> a chuva<br />

<strong>de</strong>cair na África como sinal <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>saprovação? Ninguém sabe a resposta com certeza. Mas<br />

a Aids, aí a história é diferente. Indiscutivelmente, a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transmissão da Aids é<br />

maior entre os <strong>que</strong> praticam o sexo promíscuo ou compartilham agulhas sujas.<br />

Para alguns cristãos, esta doença parece aten<strong>de</strong>r, por fim, ao anseio <strong>de</strong> uma ligação nítida<br />

entre comportamento e sofrimento como punição. De modo geral, a conexão já foi<br />

estabelecida, da mesma forma <strong>que</strong> fumar aumenta o risco <strong>de</strong> câncer, obesida<strong>de</strong> favorece o<br />

aparecimento <strong>de</strong> problemas do coração e a promiscuida<strong>de</strong> heterossexual amplia a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> doenças venéreas. As conseqüências naturais <strong>de</strong>sses comportamentos<br />

envolvem, em muitos casos, sofrimento físico. Os cientistas reconhecem este fato e advertem<br />

todos dos perigos. Mas a pergunta oculta permanece: será <strong>que</strong> Deus manda a Aids como uma<br />

punição específica, <strong>de</strong>stinada a um alvo por Ele escolhido?<br />

Outros cristãos não tem muita certeza. Acreditam em <strong>que</strong> é muito perigoso tomar o lugar<br />

<strong>de</strong> Deus, e até mesmo interpretar a história em nome dEle. Assim como os amigos <strong>de</strong> Jó, é<br />

muito fácil ser interpretado como mal–humorado ou presunçoso em vez <strong>de</strong> profético. Deus<br />

~ 28 ~


disse <strong>que</strong> a vingança Lhe pertence e sempre <strong>que</strong> nós, mortais, tentamos apropriar–nos <strong>de</strong>la,<br />

pisamos em terreno perigoso. Julgamento sem amor suscita inimigos e não convertidos. Entre<br />

os homossexuais <strong>que</strong> moram no mesmo bairro <strong>que</strong> eu as afirmações dos cristãos sobre a crise<br />

da Aids fez muito pouco no sentido <strong>de</strong> levá–los à reconciliação com Deus.<br />

Até mesmo a ligação aparente entre causa e efeito quanto à Aids levanta perguntas <strong>de</strong><br />

<strong>respostas</strong> complicadas. Que dizer <strong>de</strong> um "inocente" <strong>que</strong> adquire o vírus, como os bebês filhos<br />

<strong>de</strong> mães infectadas e a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> recebem transfusão <strong>de</strong> sangue? São amostras do julgamento<br />

<strong>de</strong> Deus? E se, <strong>de</strong> repente, alguém encontrar a cura, será <strong>que</strong> isto significará <strong>que</strong> a punição <strong>de</strong><br />

Deus acabou? Os teólogos europeus <strong>de</strong>bateram durante quatro séculos sobre qual seria a<br />

mensagem mandada por Deus durante a Gran<strong>de</strong> Praga; mas bastou um pouco <strong>de</strong> veneno <strong>de</strong><br />

rato para pôr um fim a todas a<strong>que</strong>las <strong>que</strong>stões angustiadas.<br />

Ao refletir sobre estas duas pragas, o flagelo da peste bubônica <strong>que</strong> matou um terço da<br />

humanida<strong>de</strong> e o flagelo mo<strong>de</strong>rno, acompanhado <strong>de</strong> histeria semelhante, pego–me recordando<br />

um inci<strong>de</strong>nte da vida <strong>de</strong> Jesus, registrado em Lucas 13:1–5. Algumas pessoas lhe perguntaram<br />

sobre uma tragédia da<strong>que</strong>les dias, e eis como Ele respon<strong>de</strong>u:<br />

Cuidais vós <strong>que</strong> esses galileus foram mais pecadores do <strong>que</strong> todos os galileus, por<br />

terem pa<strong>de</strong>cido tais coisas? Não, vos digo; antes, se não vos arrepen<strong>de</strong>r<strong>de</strong>s, todos <strong>de</strong><br />

igual modo perecereis. E a<strong>que</strong>les <strong>de</strong>zoito, sobre os quais caiu a torre <strong>de</strong> Siloé e os<br />

matou, cuidais <strong>que</strong> foram mais culpados do <strong>que</strong> todos quantos homens habitam em<br />

Jerusalém? Não, vos digo; antes, se não vos arrepen<strong>de</strong>r<strong>de</strong>s, todos <strong>de</strong> igual modo<br />

perecereis.<br />

Depois contou uma parábola sobre a misericórdia <strong>de</strong> Deus, <strong>que</strong> constrange o pecador. Ele<br />

parece dizer <strong>que</strong> nós, os "espectadores" da catástrofe, temos tanto a apren<strong>de</strong>r com o<br />

acontecimento quanto os próprios atingidos. Uma praga <strong>de</strong>veria ensinar–nos muitas coisas.<br />

Em primeiro lugar, humilda<strong>de</strong>. E gratidão a Deus <strong>que</strong>, até aqui, tem mantido suspenso o<br />

julgamento <strong>que</strong> todos merecemos. E compaixão, a<strong>que</strong>la <strong>que</strong> Jesus <strong>de</strong>monstrou para todos <strong>que</strong><br />

choram e sofrem. Finalmente, a catástrofe coloca juntos a vítima e o espectador, em um<br />

chamado geral ao arrependimento, lembrando–nos subitamente da brevida<strong>de</strong> da vida. Avisa–<br />

nos a nos prepararmos para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sermos a próxima vítima <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sabamento,<br />

ou do vírus da Aids.<br />

Ainda não encontrei na Bíblia qual<strong>que</strong>r apoio para uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> presunção: Ah, eles<br />

merecem o castigo; olhe como se <strong>de</strong>batem. Na verda<strong>de</strong>, a mensagem <strong>de</strong> uma praga parece ser<br />

dirigida tanto aos sobreviventes quanto aos <strong>que</strong> são atingidos por ela. Acredito em <strong>que</strong> a Aids<br />

contenha tanto significado para nós <strong>que</strong> fazemos nossa corrida em torno da clínica quanto<br />

para a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> sofrem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la.<br />

UM BOM COMEÇO<br />

Algumas pessoas <strong>que</strong> vão à Índia afirmam <strong>que</strong> po<strong>de</strong>riam reconhecer o país pelo cheiro,<br />

mesmo se <strong>de</strong>scessem do avião <strong>de</strong> olhos vendados. Para meu nariz oci<strong>de</strong>ntal, o odor do país<br />

parece ser composto, em partes relativamente iguais, <strong>de</strong> incenso, urina <strong>de</strong> animais, sândalo,<br />

estrume <strong>de</strong> vaca, flores, fumaça <strong>de</strong> óleo diesel, poeira e cânfora. Misture moléculas <strong>de</strong> todos<br />

estes elementos e, acredito, você encontrará o odor da Índia. O Dr. Paul Brand passou quase<br />

meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua vida na Índia, e ama o país <strong>de</strong> todo o coração. Ele me acompanhou na visita<br />

~ 29 ~


<strong>que</strong> fiz ao país, e me levou em uma excursão ines<strong>que</strong>cível para conhecer o serviço médico<br />

indiano.<br />

Em alguns aspectos, a medicina na Índia é bem semelhante à dos Estados Unidos e da<br />

Europa; afinal, muitos médicos são, treinados nas mesmas universida<strong>de</strong>s. Existe lá tomografia<br />

computadorizada, ressonância magnética e outros produtos da magia tecnológica, espalhados<br />

pelo país <strong>de</strong> dimensões quase continentais. Mas, fora das cida<strong>de</strong>s, nos milhares <strong>de</strong> vilarejos, a<br />

medicina po<strong>de</strong> ser pouco mais do <strong>que</strong> uma aventura. Como um médico consegue reidratar<br />

vítimas <strong>de</strong> cólera quando não há água <strong>de</strong>stilada á disposição? Ora, é claro <strong>que</strong> pendura um<br />

coco no suporte do soro. A mistura glicosada no interior do coco é tão estéril e quase tão<br />

nutritiva quanto qual<strong>que</strong>r produto médico adquirido dos fornecedores <strong>de</strong> artigos hospitalares.<br />

Ainda assim, é um pouco esquisito ver um longo tubo <strong>de</strong> borracha saindo do braço do<br />

paciente e penetrando em um coco ver<strong>de</strong> brilhante.<br />

Nos Estados Unidos, a Cruz Vermelha faz apelos constantes para <strong>que</strong> as pessoas doem<br />

sangue. Mas na Índia os doadores recebem um pe<strong>que</strong>no pagamento, <strong>de</strong> forma <strong>que</strong> outros<br />

problemas surgiram. Um trabalhador ganha mais com a doação <strong>de</strong> sangue do <strong>que</strong> em um dia<br />

<strong>de</strong> trabalho árduo. Como evitar, digamos, <strong>que</strong> um puxador <strong>de</strong> riquixá (ca<strong>de</strong>irinha ou liteira <strong>de</strong><br />

uso no extremo Oriente, leve <strong>de</strong> duas rodas, puxada por um homem a pé) vá a um hospital<br />

diferente a cada dia para doar um pouquinho <strong>de</strong> sangue? As equipes médicas criaram um<br />

método <strong>de</strong> tatuar os doadores para evitar <strong>que</strong> os mais afoitos minem suas reservas sanguíneas.<br />

Até mesmo os hospitais mais mo<strong>de</strong>rnos, como o Hospital Cristão da Escola <strong>de</strong> Medicina<br />

<strong>de</strong> Vellore, são obrigados a lidar com o problema, onipresente, da invasão <strong>de</strong> animais. Em<br />

Vellore, os corvos costumavam unir–se e conspirar para roubar o alimento dos pacientes. Um<br />

dos pássaros, <strong>que</strong> são muito espertos, li<strong>de</strong>rava o ata<strong>que</strong>, voando para <strong>de</strong>ntro do prédio através<br />

<strong>de</strong> alguma porta aberta e puxava com o bico o pano <strong>que</strong> forra a ban<strong>de</strong>ja on<strong>de</strong> é colocado o<br />

alimento. No momento em <strong>que</strong> toda a comida caía no chão, os outros conspiradores corriam<br />

para a festa. Já haviam aprendido a ignorar os acenos e gritos dos pacientes inválidos. Por fim,<br />

o hospital colocou nos corredores uma tela fina <strong>de</strong> aço à prova <strong>de</strong> corvos. Hoje a equipe <strong>que</strong><br />

trabalha em Vellore tenta encontrar um modo <strong>de</strong> manter os macacos do lado <strong>de</strong> fora do<br />

hospital.<br />

As missões <strong>que</strong> trabalham com medicina na Índia introduzem algumas alterações em suas<br />

práticas. Denominações e missões oci<strong>de</strong>ntais retiraram o apoio financeiro visando a encorajar<br />

a transformação dos hospitais em instituições com mais características nativas do país. Esta<br />

atitu<strong>de</strong> bem–intencionada, porém, po<strong>de</strong> ter efeitos negativos. Os hospitais, para sobreviver,<br />

<strong>precisam</strong> <strong>de</strong> oferecer serviços especializados, voltados para a elite, visando a atrair clientes<br />

<strong>que</strong> possam pagar. Assim, muitos hospitais missionários <strong>precisam</strong> enviar necessitados para o<br />

atendimento fornecido pelo governo, ou simplesmente mandá–los embora, por<strong>que</strong> inexistem<br />

recursos para aten<strong>de</strong>r a eles. As instituições mais progressistas vêm buscando meios <strong>de</strong><br />

superar este problema, e o hospital <strong>de</strong> Vellore é, muitas vezes, visto como mo<strong>de</strong>lo.<br />

Esse hospital tem a reputação <strong>de</strong> ser uma das melhores instituições da Ásia. Na Índia, foi<br />

o primeiro a oferecer cirurgia torácica, hemodiálise, cirurgia do coração, microscópio<br />

eletrônico e neurocirurgia. Não é raro <strong>que</strong> príncipes árabes viagem atÉ à remota cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Vellore para tratamento <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Há alguns anos, porém, os diretores da escola <strong>de</strong> medicina<br />

perceberam <strong>que</strong> enfatizavam <strong>de</strong>mais o treinamento dos alunos para o trabalho na cida<strong>de</strong>.<br />

Raramente um médico formado lá era capaz <strong>de</strong> fazer um diagnóstico sem acesso a um<br />

aparelho <strong>de</strong> eletrocardiograma ou a laboratórios sofisticados. Para reverter essa tendência, a<br />

escola construiu outro hospital, rústico, uma construção <strong>de</strong> barro e sapé, aberta, reproduzindo<br />

as condições existentes nas vilas. Hoje, os alunos são obrigados a complementar seus estudos<br />

neste hospital, usando apenas os recursos médicos presentes nas vilas remotas da Índia.<br />

Além disto, a escola realiza excursões regulares a regiões ainda mais remotas. Em<br />

<strong>de</strong>terminado dia do mês, rodos os doentes ou feridos <strong>de</strong> um lugarejo se reúnem sob uma certa<br />

árvore. Uma van da escola chega, e os jovens médicos e aten<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>scem, armam mesas <strong>de</strong><br />

exame e começam uma rotina <strong>de</strong> injeções, colocação <strong>de</strong> ossos no lugar e pe<strong>que</strong>nas cirurgias.<br />

~ 30 ~


Desta forma, o treinamento na escola <strong>de</strong> medicina abrange três níveis <strong>de</strong> cuidados:<br />

atendimento sofisticado no hospital, trabalho no hospital mais simples, <strong>de</strong> ambiente rural e<br />

clínicas móveis, com atendimento básico. Hoje, não apenas centenas, mas muitos milhares <strong>de</strong><br />

pacientes recebem cuidados médicos todos os meses.<br />

A Índia não po<strong>de</strong> ter a esperança <strong>de</strong> fornecer cuidados médicos básicos para todos seus<br />

cidadãos. Apenas 20% da população possuem instalação <strong>de</strong> esgotos e água potável. Basta<br />

visitar a cida<strong>de</strong> santa <strong>de</strong> Varanasi, no Rio Ganges, para se perceber contra o <strong>que</strong> os<br />

profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> tem <strong>que</strong> lutar. Carcaças <strong>de</strong> cachorros e <strong>de</strong> búfalos flutuam pelo rio,<br />

algumas vezes servindo <strong>de</strong> balsa para os urubus, <strong>que</strong> se alimentam <strong>de</strong>las. As vacas sagradas<br />

andam à vonta<strong>de</strong> na água, <strong>de</strong>fecando e urinando. E ainda assim milhares <strong>de</strong> peregrinos vão até<br />

lá todos os dias e tomam seus banhos rituais nas escadarias sagradas: mergulham sete vezes<br />

no rio, escovam os cientes e <strong>de</strong>pois, com muita solenida<strong>de</strong>, engolem a água santa.<br />

Será necessária uma completa revolução apenas para mudar a percepção da população<br />

local sobre a saú<strong>de</strong>, quanto mais para criar uma superestrutura para lhe oferecer tratamento.<br />

Mas há esperança, gran<strong>de</strong> parte da qual vem no nome <strong>de</strong> Cristo. Uma estatística reveladora<br />

mostra o fruto <strong>de</strong> dois séculos <strong>de</strong> trabalho missionário fiel: <strong>de</strong>ntre os quase 1 bilhão <strong>de</strong><br />

habitantes da Índia, menos <strong>de</strong> 3% se dizem cristãos. Ainda assim, os cristãos são responsáveis<br />

por mais <strong>de</strong> 18% do atendimento <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> do país. Uma população quase igual à meta<strong>de</strong> da<br />

população dos Estados Unidos, formada <strong>de</strong> hindus, muçulmanos, si<strong>que</strong>s, jainistas, parses e<br />

comunistas recebe atendimento <strong>de</strong> pessoas treinadas em lugares como Vellore.<br />

Apesar dos erros cometidos pelos missionários, em face <strong>de</strong> um paternalismo presunçoso,<br />

os cristãos <strong>de</strong>ram à Índia um legado inspirado <strong>de</strong> educação e tratamento médico. Se um<br />

camponês da<strong>que</strong>le país ouvir a palavra "cristão" – e talvez ele jamais tenha ouvido falar <strong>de</strong><br />

Jesus Cristo – a primeira imagem a aparecer em sua mente será, muito provavelmente, a <strong>de</strong><br />

um hospital, ou <strong>de</strong> uma van cheia <strong>de</strong> médicos <strong>que</strong> aparece no lugar on<strong>de</strong> vive uma vez por<br />

mês para fornecer atendimento pessoal, gratuito, no nome <strong>de</strong> Cristo. Certamente não é o<br />

Evangelho completo, mas já é um bom começo.<br />

ÉTICA QUE VALE A PENA<br />

Ernest Hemingway nasceu em Oak Park, no Estado americano <strong>de</strong> Illinois, e <strong>de</strong>screveu sua<br />

cida<strong>de</strong> como "uma vila com gramados largos e mentes estreitas". A Oak Park mo<strong>de</strong>rna,<br />

porém, esforça–se para alterar os adjetivos usados por Hemingway com uma investida<br />

corajosa contra as mentes estreitas. Não faz muito tempo <strong>que</strong> essa cida<strong>de</strong>, <strong>que</strong> fica bem<br />

próxima a Chicago, criou um sistema <strong>de</strong> recompensa financeira para os cidadãos dispostos a<br />

temar conviver com vizinhos <strong>que</strong> não fossem brancos e pertencessem a classes sociais<br />

inferiores.<br />

Funciona assim: se a pessoa possui um prédio cujos moradores são todos da mesma raça,<br />

po<strong>de</strong> conseguir um prêmio <strong>de</strong> US$ 1000 permitindo <strong>que</strong> os governantes da cida<strong>de</strong> selecionem<br />

seus novos inquilinos. Os responsáveis pela seleção trabalharão no sentido <strong>de</strong> levarem<br />

famílias <strong>de</strong> minorias raciais a morarem em regiões on<strong>de</strong> só habitam brancos. Também visam a<br />

incentivar brancos a se mudarem para bairros on<strong>de</strong> tradicionalmente só moram membros das<br />

minorias raciais. Os i<strong>de</strong>alizadores do projeto esperam <strong>que</strong> o incentivo financeiro atraia os<br />

senhorios, levando–os a aceitar inquilinos <strong>de</strong> várias raças.<br />

Essa lei me recorda uma proposta apresentada como pilhéria na revista Harpers, há mais<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos. Começava assim:<br />

~ 31 ~


Enfrentemos a realida<strong>de</strong>. Apelos à ética e a altos i<strong>de</strong>ais jamais convencerão os<br />

americanos a mudarem seus padrões <strong>de</strong> comportamento. A única forma <strong>de</strong> forçar a<br />

mudança é fazer com <strong>que</strong> ela valha a pena financeiramente. Então ver–se–á alguma<br />

ação.<br />

Prosseguia apresentando um programa nacional, muito mais abrangente do <strong>que</strong> o <strong>de</strong> Oak<br />

Park. Perguntava, brincando, <strong>que</strong> aconteceria se o Congresso aprovasse uma lei <strong>que</strong><br />

conce<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sconto anua! <strong>de</strong> US$ 4000 nos impostos para todas as famílias <strong>que</strong> fossem<br />

vizinhas <strong>de</strong> membros <strong>de</strong> minorias raciais.<br />

De acordo com o autor, o tesouro fe<strong>de</strong>ral, na realida<strong>de</strong>, economizaria dinheiro, por<strong>que</strong><br />

po<strong>de</strong>ria acabar com outros programas bem menos eficazes, <strong>que</strong> re<strong>que</strong>rem gastos do governo.<br />

E, da noite para o dia. o mercado faria milagres quanto à reconciliação racial. O valor das<br />

proprieda<strong>de</strong>s subiria, em vez <strong>de</strong> cair, quando as comunida<strong>de</strong>s passassem a ser habitadas por<br />

pessoas das mais variadas minorias. Sendo assim, estas seriam as pessoas mais procuradas<br />

para morarem nos melhores lugares. Os jornais trariam anúncios como este:<br />

Qual<strong>que</strong>r família negra ou hispânica <strong>que</strong> <strong>de</strong>sejar mudar–se para o quarteirão tal da rua<br />

tal receberá US$ 1500 em dinheiro. Todas as <strong>de</strong>spesas com a mudança serão pagas<br />

pelos moradores do quarteirão. Os comerciantes locais oferecem vários prêmios.<br />

A abordagem dinheiro em lugar <strong>de</strong> ética, primeiro sugerida em um artigo cômico e agora<br />

adotada abertamente em Oak Park, oferece uma solução requintada para um problema social.<br />

Combina engenhosida<strong>de</strong> com a antiga motivação do lucro. Nem mesmo o mais endurecido<br />

dos intolerantes conseguirá resistir ao incentivo do lucro.<br />

* * *<br />

Oak Park voltou a aparecer nas notícias quando o ex–Presi<strong>de</strong>nte Jimmy Carter participou<br />

<strong>de</strong> um evento beneficente <strong>que</strong> visava a levantar recursos para uma organização cristã<br />

<strong>de</strong>nominada Habitat for Humanity. Depois <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> um ban<strong>que</strong>te muito elegante, o ex–<br />

presi<strong>de</strong>nte apareceu em um bairro pobre <strong>de</strong> Chicago, vestindo uma calça jeans e uma camiseta<br />

surrada. Mais uma vez ele contribuía com seu conhecimento <strong>de</strong> marcenaria para reconstruir<br />

casas arruinadas em favelas. Os repórteres eram tantos <strong>que</strong> não conseguiam espaço suficiente<br />

para registrar um ex–lí<strong>de</strong>r mundial manejando um martelo nas favelas <strong>de</strong> Chicago.<br />

A abordagem <strong>que</strong> a Habitat for Humanity faz dos problemas sociais diverge da <strong>que</strong> se<br />

encontra em experiência em Oak Park. A organização opera não em subúrbios ricos, mas em<br />

áreas arruinadas, escondidas em cida<strong>de</strong>s envelhecidas, on<strong>de</strong> ninguém <strong>de</strong>seja viver. Os<br />

participantes não recebem qual<strong>que</strong>r incentivo financeiro. Pelo contrário, voluntários como<br />

Jimmy Cárter trabalham durante muitas horas sem receber qual<strong>que</strong>r pagamento. As famílias<br />

pobres selecionadas para morar nas casas reformadas trabalham junto com os voluntários, em<br />

igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> esforços. Ninguém realiza qual<strong>que</strong>r investimento <strong>que</strong> venha a ter retorno<br />

monetário e nem tem <strong>de</strong>sconto em impostos. A Habitat conce<strong>de</strong> empréstimos sem juros para<br />

os novos donos das casas. Em lugares como Chicago, casais cristãos comprometidos com sua<br />

fé se mudam para o bairro, servindo <strong>de</strong> exemplo para os pobres e levando estabilida<strong>de</strong> social<br />

até à região.<br />

As duas abordagens do mesmo problema levaram–me a pensar na <strong>que</strong>stão global <strong>de</strong><br />

reforma social. A Prefeitura <strong>de</strong> Oak Park e a Habitat for Humanity compartilham os mesmos<br />

alvos: habitação satisfatória para os pobres e uma forma <strong>de</strong> acabar com o impasse da<br />

discriminação. Mas as técnicas usadas para chegar ao alvo diferem amplamente. Oak Park<br />

espera "consertar" sua socieda<strong>de</strong> através, em primeiro lugar, da mudança do ambiente e<br />

<strong>de</strong>pois do sistema <strong>de</strong> valores dos variados grupos minoritários. Para alcançar este objetivo,<br />

confia em um motivador po<strong>de</strong>roso: a cobiça humana. O plano é criativo e racional – um<br />

exemplo do <strong>que</strong> há <strong>de</strong> melhor no reino <strong>de</strong>ste mundo.<br />

~ 32 ~


Em contraste com isto, a Habitat for Humanity trabalha para produzir uma mudança muito<br />

mais radical em um grupo muito menor <strong>de</strong> pessoas. Acredita <strong>que</strong> não basta <strong>que</strong> as pessoas<br />

com recursos convi<strong>de</strong>m representantes selecionados dos grupos minoritários para morarem<br />

com elas. Antes, as pessoas com recursos <strong>precisam</strong> <strong>de</strong> ir, voluntariamente, até aos locais on<strong>de</strong><br />

há necessida<strong>de</strong>, doar seu tempo, suor, sua família e seu amor. A esperança é a <strong>de</strong> <strong>que</strong> haja<br />

mudança não apenas no ambiente, mas no coração das pessoas. Nem mesmo o mais po<strong>de</strong>roso<br />

motivador baseado na cobiça é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar esta tarefa. O plano da Habitat envolve<br />

risco e sacrifício, sem garantia <strong>de</strong> recompensa, o <strong>que</strong> há <strong>de</strong> melhor no reino <strong>que</strong> não é <strong>de</strong>ste<br />

mundo.<br />

Os moradores <strong>de</strong> Chicago viram dois momentos diversos <strong>de</strong> Jimmy Carter: o distinto ex–<br />

presi<strong>de</strong>nte discursando em um acontecimento elegante em Oak Park e <strong>de</strong>pois o mesmo<br />

homem manejando um martelo na região pobre da cida<strong>de</strong>. O Sr. Cárter já participou dos dois<br />

reinos. Houve um tempo em <strong>que</strong> ele po<strong>de</strong>ria ter or<strong>de</strong>nado a construção <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> casas<br />

com uma simples assinatura. Hoje ajuda os pobres como todos os outros: em pessoa, um<br />

prego <strong>de</strong> cada vez. Assistindo às reportagens sobre a visita <strong>de</strong>le a Chicago, a comparação<br />

entre as ativida<strong>de</strong>s, não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> me perguntar qual <strong>de</strong>las lhe trouxe maior satisfação<br />

pessoal.<br />

Uma coisa, porém, intrigou–me: por <strong>que</strong> quando um ex–Presi<strong>de</strong>nte chega à cida<strong>de</strong> para<br />

construir casas para os pobres centenas <strong>de</strong> pessoas pagam US$ 50 para ouvi–lo falar sobre<br />

isso em um ban<strong>que</strong>te elegante, mas só umas poucas pegam um martelo e trabalham junto com<br />

ele?<br />

ESCORPIÕES, VERMES E MÍSSEIS<br />

Certa vez, passei uma noite em claro, <strong>de</strong>itado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma barraca na Somália. No auge<br />

<strong>de</strong> uma das muitas crises na África, eu visitava um dos campos <strong>de</strong> refugiados para escrever<br />

um artigo. Barracas e abrigos improvisados espalhavam–se por milhares <strong>de</strong> metros quadrados,<br />

em todas as direções à minha volta. Avistavam–se cabanas até o horizonte, parecendo<br />

pe<strong>que</strong>nas elevações em fila. A<strong>que</strong>le campo abrigava mais <strong>de</strong> sessenta mil refugiados. A noite<br />

estava <strong>que</strong>nte, e eu <strong>que</strong>ria caminhar ao ar livre, olhando para cima, por<strong>que</strong> a Via–Láctea<br />

brilhava maravilhosamente no claro céu equatorial. Mas os funcionários <strong>que</strong> trabalhavam ali<br />

me haviam avisado para não fazer caminhadas à noite, por causa dos escorpiões.<br />

Contaram–me história horrorosas <strong>de</strong> escorpiões <strong>que</strong> se escondiam, maliciosamente, nas<br />

toalhas e nas roupas e, especialmente, nos sapatos. As vítimas <strong>de</strong> suas picadas enfrentam uma<br />

dor sem igual – uma enfermeira me disse <strong>que</strong> seria como a dor do parto multiplicada doze<br />

vezes – durante pelo menos duas semanas. Há bem pouco tempo, um pe<strong>que</strong>no escorpião caíra<br />

do teto <strong>de</strong> uma barraca bem no rosto <strong>de</strong> um médico adormecido. Até o dia em <strong>que</strong> me<br />

contaram a história ele ainda recebia injeções na bochecha, <strong>de</strong> quatro em quatro horas, numa<br />

tentativa <strong>de</strong> abrandar a dor.<br />

Deitado ali, mas sem conseguir dormir, ouvi um som indistinto, sinistro, algo como o<br />

lamento penetrante <strong>de</strong> uma muçulmana frente à morte <strong>de</strong> um ente <strong>que</strong>rido, embora o tom<br />

fosse mais animal do <strong>que</strong> humano. Mais tar<strong>de</strong> me disseram <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le era o som <strong>de</strong> um<br />

nôma<strong>de</strong> somali picado por um escorpião. O ar do <strong>de</strong>serto propagava o som por distâncias<br />

muito gran<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> forma <strong>que</strong>, a cada hora <strong>que</strong> passava, o grito aumentava <strong>de</strong> volume. Ao raiar<br />

do dia, o nôma<strong>de</strong> chegou ao campo <strong>de</strong> refugiados em busca <strong>de</strong> tratamento.<br />

Deixei o campo alguns dias <strong>de</strong>pois e, enquanto meu caminhão partia, pensamentos<br />

<strong>de</strong>primentes me acompanharam. O médico responsável pelo campo me dissera <strong>que</strong> um em<br />

cada seis refugiados provavelmente morreria, <strong>de</strong> <strong>de</strong>snutrição ou doença, no próximo mês.<br />

~ 33 ~


Mas, o <strong>que</strong> me atingiu com uma força terrível foi <strong>que</strong>, durante minha estada ali, eu <strong>de</strong>spendi<br />

muito mais energia e tempo me preocupando com a<strong>que</strong>les escorpiões danados do <strong>que</strong> com<br />

a<strong>que</strong>les aproximadamente <strong>de</strong>z mil refugiados fadados a morrer.<br />

* * *<br />

Uma vez um profeta hebreu, chamado Jonas, assentou–se à sombra <strong>de</strong> uma aboboreira<br />

perto da gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nínive. Quando um verme comeu toda a planta, <strong>de</strong>ixando–o<br />

exposto ao sol escaldante e ao vento ar<strong>de</strong>nte <strong>que</strong> vem do leste, ele se aborreceu, encheu–se <strong>de</strong><br />

amargura e ficou tão bravo <strong>que</strong> quis morrer.<br />

Deus escolheu este momento em particular para dar a Jonas uma lição sobre as<br />

priorida<strong>de</strong>s divinas. Mesmo <strong>de</strong>pois do episódio com o gran<strong>de</strong> peixe, ele não aceitou<br />

totalmente sua tarefa como missionário aos assírios. Assírios! Os nazistas da<strong>que</strong>les dias.<br />

A<strong>que</strong>le povo cruel, pagão, <strong>que</strong> <strong>de</strong>struiu civilizações inteiras e levava os cativos com ganchos<br />

na boca. Gente assim dificilmente mereceria outra oportunida<strong>de</strong>. Foi o maior dos insultos<br />

enviá–lo, um profeta hebreu, para falar com seus arquiinimigos. Ninguém se importava se<br />

Nínive fosse <strong>de</strong>struída <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> quarenta dias. E quanto mais enxofre, melhor.<br />

Mas eis o <strong>que</strong> Deus disse ao profeta rabugento:<br />

Tiveste tu compaixão da aboboreira, na qual não trabalhaste, nem a fizeste crescer,<br />

<strong>que</strong> numa noite nasceu, e numa noite pereceu; e não hei <strong>de</strong> eu ter compaixão da<br />

gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nínive em <strong>que</strong> estão mais <strong>de</strong> cento e vinte mil homens <strong>que</strong> não<br />

sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão es<strong>que</strong>rda, e também muitos<br />

animais?<br />

* * *<br />

Era uma vez alguns oficiais, dos mais graduados no governo dos Estados Unidos.<br />

Assentaram–se em torno <strong>de</strong> uma mesa para discutir maneiras <strong>de</strong> libertar cidadãos americanos<br />

mantidos como reféns no Oriente Médio. Dentre as várias tentativas, uma frutificou, um plano<br />

envolvendo o envio <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> dólares <strong>de</strong> equipamentos militares para o Irã.<br />

Quando a notícia se espalhou, os jornais se <strong>de</strong>dicaram a contar as histórias sobre troca <strong>de</strong><br />

armas por reféns. Os editoriais expressavam ultraje por<strong>que</strong> os Estados Unidos barganharam<br />

com uma nação hostil, <strong>que</strong> apoia o terrorismo. Congressistas censuraram o fato <strong>de</strong> lucros com<br />

a venda <strong>de</strong> armas serem <strong>de</strong>sviados para sustentar uma guerra suspensa na América Central.<br />

Membros <strong>de</strong> comissões e investigadores especiais esquadrinharam os documentos <strong>de</strong> remessa<br />

e registros telefônicos para <strong>de</strong>terminar <strong>que</strong>m sabia do quê, e quando. As leis foram violadas?<br />

A Casa Branca abalou o equilíbrio constitucional do po<strong>de</strong>r? Estas <strong>que</strong>stões foram motivo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>bates acalorados na televisão, e também foram elas <strong>que</strong> enfra<strong>que</strong>ceram seriamente a<br />

administração <strong>de</strong> Reagan nos dois últimos anos <strong>de</strong> seu mandato.<br />

É estranho, mas muito pouca gente expressou o <strong>que</strong> me parece ser a <strong>que</strong>stão mais básica<br />

<strong>de</strong> todas: a <strong>que</strong>stão moral fundamental por trás da permuta. Resumindo: os Estados Unidos<br />

ofereceram sessenta milhões <strong>de</strong> dólares em armas — equipamentos planejados com perfeição<br />

para causar a morte – visando a salvar a vida dos reféns. Ao olhar matematicamente, trocamos<br />

a morte <strong>de</strong> muitos e muitos iraquianos (os prováveis alvos dos mísseis <strong>que</strong>, na época, eram<br />

nossos aliados) pela vida <strong>de</strong> seis americanos. Oliver North tentou calcular os números<br />

envolvidos. Anotou em um memorando remetido a seu chefe, John Poin<strong>de</strong>xter:<br />

"1 707 e/300 TOWs = 1 CIDEUA."<br />

Mais tar<strong>de</strong> ele explicou o <strong>que</strong> aquilo significava:<br />

"Um Boeing 707 carregado com 300 mísseis TOW antitan<strong>que</strong> é igual a um cidadão dos<br />

Estados Unidos da América."<br />

~ 34 ~


Pouco tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma das entregas <strong>de</strong> armas ao Irã. um míssil iraniano caiu numa<br />

rua em Bagdá, no Ira<strong>que</strong>, e matou quarenta e oito civis. Será <strong>que</strong> a<strong>que</strong>le míssil fora obtido na<br />

troca? Ao todo, dois mil mísseis antitan<strong>que</strong> foram remetidos para o Irã. Se apenas 10% <strong>de</strong>les<br />

conseguirem acertar o alvo, atingindo 200 tan<strong>que</strong>s <strong>de</strong> guerra iraquianos e matando dois<br />

soldados em cada um, a conta é óbvia: 400 iraquianos mortos em troca <strong>de</strong> seis (ou três, como<br />

acabou sendo) americanos vivos.<br />

Não <strong>que</strong>stiono o direito <strong>de</strong> nosso país <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, através da força, seus cidadãos. Mas,<br />

talvez lenhamos <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r uma lição em meio a todo o estardalhaço, e ainda não<br />

apren<strong>de</strong>mos, por<strong>que</strong> continuamos <strong>de</strong>spachando, animadamente, bilhões <strong>de</strong> dólares em armas<br />

para outros países todos os anos. E talvez minha experiência na Somália e a <strong>de</strong> Jonas na<br />

Assíria, tão radicalmente diferentes das circunstâncias <strong>que</strong> cercaram o problema com o Irã,<br />

apontem para a mesma <strong>que</strong>stão moral.<br />

Será <strong>que</strong> meu conforto físico é mais significativo do <strong>que</strong> a sobrevivência <strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil<br />

refugiados? O conforto <strong>de</strong> um profeta hebreu é mais importante do <strong>que</strong> a vida <strong>de</strong> 120 mil<br />

crianças assírias? E quantos estrangeiros mortos vale a vida <strong>de</strong> seis americanos?<br />

Uma coincidência geográfica curiosa: as ruínas da antiga cida<strong>de</strong> assíria <strong>de</strong> Nínive se<br />

encontram na região <strong>que</strong> hoje é o Ira<strong>que</strong>.<br />

PERDÃO E RECONCILIAÇÃO<br />

Simon Wicsenthal sobreviveu aos campos <strong>de</strong> concentração, mas oitenta e nove membros<br />

<strong>de</strong> sua família morreram nas mãos dos nazistas. Des<strong>de</strong> a<strong>que</strong>la época ele <strong>de</strong>dica gran<strong>de</strong> parte<br />

<strong>de</strong> seu tempo a <strong>de</strong>scobrir on<strong>de</strong> estão os ex–nazistas e os criminosos <strong>de</strong> guerra. As pessoas lhe<br />

perguntam, com freqüência, sobre esta obsessão: por<strong>que</strong> caçar homens <strong>de</strong> setenta e oitenta<br />

anos, por crimes <strong>que</strong> cometeram há meio século? Não há perdão para eles? Nenhuma forma<br />

<strong>de</strong> reconciliação? As <strong>respostas</strong> <strong>de</strong>le foram apresentadas em um livro fino, mas po<strong>de</strong>roso,<br />

intitulado The Sunflower (O Girassol).<br />

O livro começa com uma história assombrosa, lembrança <strong>de</strong> um acontecimento da época<br />

em <strong>que</strong> Wiesenthal estava preso. Ele foi escolhido, por acaso, no meio <strong>de</strong> um grupo <strong>que</strong><br />

trabalhava. Puxado para o lado, foi levado por uma escada até um corredor do hospital. Uma<br />

enfermeira o conduziu até um quarto escuro e o <strong>de</strong>ixou sozinho com uma figura <strong>de</strong>plorável,<br />

envolta em panos brancos, <strong>de</strong>itada em uma cama. Era um oficial alemão, gravemente ferido,<br />

embrulhado em bandagens manchadas <strong>de</strong> amarelo. O rosto estava totalmente coberto por<br />

gaze.<br />

Com voz fraca e trêmula, o homem passou a fazer um tipo <strong>de</strong> confissão solene. Contou<br />

sua infância e os primeiros dias no movimento da Juventu<strong>de</strong> Hitlerista. Narrou a ação na<br />

fronteira com a Rússia e as medidas cada vez mais terríveis <strong>que</strong> a unida<strong>de</strong> da SS a <strong>que</strong> ele<br />

pertencia adotava contra a "gentalha judia". Depois, contou uma atrocida<strong>de</strong> terrível, quando a<br />

unida<strong>de</strong> reuniu todos os ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>, colocou–os em um prédio <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e pôs<br />

fogo. Alguns dos ju<strong>de</strong>us, <strong>de</strong>sesperados, com a roupa e o cabelo em chamas, pulavam do<br />

segundo andar, e os soldados da SS – ele inclusive – atiravam neles enquanto caíam. Passou a<br />

falar <strong>de</strong> um menino em particular, com cabelo preto e olhos escuros, mas sua voz falhou.<br />

Wiescnthal tentou sair do quarto várias vezes, mas a cada tentativa a múmia viva estendia<br />

a mão fria e pálida e o <strong>de</strong>tinha. Finalmente, <strong>de</strong>pois quase duas horas, o alemão explicou por<br />

<strong>que</strong> convocara o prisioneiro ju<strong>de</strong>u. Perguntara à enfermeira se ainda havia ju<strong>de</strong>us vivos, e, se<br />

houvesse, <strong>que</strong>ria <strong>que</strong> trouxessem um até seu quarto para uma última providência antes <strong>de</strong><br />

morrer. Então, disse ao prisioneiro:<br />

~ 35 ~


"Sei <strong>que</strong> o <strong>que</strong> vou pedir talvez seja <strong>de</strong>mais para você, mas sem sua resposta não posso<br />

morrer em paz."<br />

E pediu <strong>que</strong> Wiscnthal o perdoasse por todos os crimes <strong>que</strong> cometera contra os ju<strong>de</strong>us.<br />

Implorava perdão a um prisioneiro <strong>que</strong> po<strong>de</strong>ria, no dia seguinte, morrer nas mãos <strong>de</strong> seus<br />

companheiros da SS.<br />

Wisenthal permaneceu em silêncio por algum tempo, olhando fixamente para o rosto<br />

enfaixado do homem. Por fim, tomou sua <strong>de</strong>cisão e, sem dizer uma palavra se<strong>que</strong>r, virou–se e<br />

saiu do quarto. Deixou o soldado com seu tormento, sem perdão.<br />

No livro ele <strong>de</strong>dica noventa páginas a esta história. Nas outras 105, <strong>de</strong>ixa <strong>que</strong> outros<br />

falem. Enviou a <strong>de</strong>scrição do fato a trinta e dois pensadores – rabinos ju<strong>de</strong>us, teólogos<br />

cristãos, filósofos seculares e estudiosos da ética – e pediu <strong>que</strong> <strong>de</strong>ssem sua opinião. Queria<br />

saber se agira corretamente, ou se <strong>de</strong>veria ter perdoado o criminoso moribundo. A gran<strong>de</strong><br />

maioria respon<strong>de</strong>u <strong>que</strong> ele estava certo ao <strong>de</strong>ixar o soldado sem perdão. Apenas seis pessoas<br />

acreditavam <strong>que</strong> erraram.<br />

Alguns dos <strong>que</strong> não eram cristãos <strong>que</strong>stionaram toda a noção <strong>de</strong> perdão. Consi<strong>de</strong>raram–no<br />

um conceito irracional cujo único resultado é permitir <strong>que</strong> os criminosos escapem do castigo,<br />

perpetuando, assim, a injustiça. Outros conce<strong>de</strong>ram um lugar para a existência do perdão, mas<br />

classificaram os crimes nazistas como hediondos, além <strong>de</strong> qual<strong>que</strong>r possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perdão.<br />

Os argumentos mais persuasivos partiram <strong>de</strong> duas pessoas <strong>que</strong> insistiam em <strong>que</strong> o perdão só<br />

po<strong>de</strong> ser concedido pela própria pessoa <strong>que</strong> sofreu a injúria. Perguntaram <strong>que</strong> direito moral<br />

Wicscnthal teria <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r o perdão em nome dos ju<strong>de</strong>us <strong>que</strong> haviam morrido nas mãos<br />

da<strong>que</strong>le homem.<br />

Não estou preparado para dar a resposta ao dilema terrível com o qual Simon Wiesenthal<br />

foi confrontado na<strong>que</strong>le quarto <strong>de</strong> hospital. Quanto mais não seja, as trinta e duas <strong>respostas</strong><br />

provam <strong>que</strong> não há resposta simples para esta <strong>que</strong>stão. Mas a Bíblia, na realida<strong>de</strong>, acrescenta<br />

um <strong>de</strong>sdobramento interessante a um dos aspectos do dilema, com relação a um termo<br />

teológico antiquado <strong>que</strong> surge por todo o livro <strong>de</strong> Wiesenthal: "reconciliação". Uma frase do<br />

livro <strong>de</strong> II Coríntios nos convence <strong>de</strong> <strong>que</strong> temos, <strong>de</strong> fato, o direito <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r perdão em<br />

nome <strong>de</strong> outra pessoa. Nesta passagem, Paulo anuncia <strong>que</strong> Deus nos <strong>de</strong>u "o ministério da<br />

reconciliação". E ele prossegue:<br />

De sorte <strong>que</strong> somos embaixadores da parte <strong>de</strong> Cristo, como se Deus por nós rogasse.<br />

Rogamo–vos, pois, da parte <strong>de</strong> Cristo, <strong>que</strong> vos reconcilieis com Deus. (II Coríntios<br />

5:20)<br />

Paulo baseia o "ministério da reconciliação" no exemplo <strong>de</strong> Jesus, <strong>que</strong>, voluntariamente,<br />

levou nossos pecados, <strong>de</strong> forma <strong>que</strong> po<strong>de</strong>mos, através dEle, atingir a retidão <strong>de</strong> Deus.<br />

Que significa ser ministro da reconciliação, embaixador <strong>de</strong> Cristo <strong>que</strong> proclama o perdão<br />

à<strong>que</strong>les <strong>que</strong> pecaram contra outras pessoas <strong>que</strong> não você mesmo? Alguns cristãos vêm–se<br />

esforçando para colocar a reconciliação em prática indo, como "Testemunhas pela Paz", a<br />

locais <strong>de</strong> conflito na América Central e no Oriente Médio, colocando–se, <strong>de</strong>liberadamente, na<br />

linha <strong>de</strong> fogo. O bispo Desmond Tutu li<strong>de</strong>rou um grupo, Comissão Verda<strong>de</strong> e Reconciliação,<br />

sancionado pelo governo da África do Sul, ajudando a trazer a cura a<strong>que</strong>le país dividido. Nos<br />

Estados Unidos, voluntários da Chuck Colsons Prison Fellowship entram em celas apinhadas<br />

<strong>de</strong> prisioneiros, on<strong>de</strong> o medo é constante, e proclamam o perdão e o amor à<strong>que</strong>las pessoas a<br />

<strong>que</strong>m a socieda<strong>de</strong> excluiu, taxando–as <strong>de</strong> culpadas e sem valor.<br />

Algumas igrejas organizaram seus esforços em Ministérios <strong>de</strong> Evangelismo e <strong>de</strong> Ação<br />

Social. Será <strong>que</strong> <strong>de</strong>veríamos pensar em um Ministério <strong>de</strong> Reconciliação? A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

perdão não se restringe à América Central ou à Irlanda. Sempre <strong>que</strong> um casamento se <strong>de</strong>sfaz,<br />

uma criança é abandonada, a inimiza<strong>de</strong> separa grupos raciais ou sociais, em todas estas<br />

situações a reconciliação é necessária: é preciso <strong>que</strong> alguém tome sobre si a carga dos outros e<br />

ofereça o perdão, antes mesmo <strong>que</strong> o ofensor o peça.<br />

~ 36 ~


Um homem chamado Will Campbell tomou a frase "Reconciliem–se" como seu lema <strong>de</strong><br />

vida. Em sua autobiografia, intitulada Brother to a Dragonfly (Irmão <strong>de</strong> uma Libélula), conta<br />

<strong>que</strong> houve um tempo em <strong>que</strong> seu amor e sua compaixão abrangiam os negros do sul dos<br />

Estados Unidos e os oprimidos, mas excluía os trabalhadores braçais brancos da mesma<br />

região e os membros da Ku–Klux–Klan, Depois, porém, <strong>que</strong> três <strong>de</strong> seus amigos chegados<br />

foram assassinados por esta instituição, ele ouviu uma mensagem da parte <strong>de</strong> Deus <strong>que</strong> ia<br />

contra todos os instintos humanos. Ele <strong>de</strong>veria ir, como ministro da reconciliação, até o grupo<br />

<strong>que</strong> matara seus amigos. Deveria transformar–se, como <strong>de</strong> fato transformou–se, em um<br />

ministro para pregar a eles.<br />

Penso <strong>que</strong> o título <strong>de</strong> "ministro da reconciliação" era um dos <strong>que</strong> Paulo chamava sobre si<br />

com mais ênfase. E tinha motivos para isto. Tinha, ele também, sua cota <strong>de</strong> "crimes <strong>de</strong><br />

guerra", cometidos contra os cristãos. Deus o perdoou por a<strong>que</strong>les crimes, e o apóstolo aos<br />

gentios, ao <strong>que</strong> parece, nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lado o sentimento surpreen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> ser reconciliado.<br />

O VALOR DE UM SER HUMANO<br />

Eu costumava encontrar–me com certa regularida<strong>de</strong> com um pastor bondoso e sábio.<br />

Muitas vezes os momentos <strong>que</strong> passávamos juntos eram tranqüilos, sem maiores<br />

acontecimentos. Mas uma tar<strong>de</strong> ficará, para sempre, marcada a ferro em minha memória. Era<br />

um dia <strong>de</strong> tempesta<strong>de</strong> em Chicago, e assentei–me, encolhido <strong>de</strong> frio apesar <strong>de</strong> meu suéter <strong>de</strong><br />

lã, bem perto <strong>de</strong> um a<strong>que</strong>cedor <strong>que</strong> assobiava. Na<strong>que</strong>le dia, fiz as perguntas. Havia lido há<br />

pouco tempo, em um artigo no boletim da igreja, <strong>que</strong> o pastor participara da libertação dos<br />

prisioneiros do campo <strong>de</strong> concentração em Dachau, ao final da II Guerra Mundial. Eu <strong>que</strong>ria<br />

saber sobre a experiência <strong>de</strong>le.<br />

Ele olhou para o outro lado, e parecia focar um espaço branco na pare<strong>de</strong>. Manteve–se em<br />

silêncio durante, pelo menos, 1 minuto. Seus olhos se moviam rapidamente, como se<br />

reconstruísse a cena <strong>de</strong> quarenta anos antes. Finalmente, falou e, durante os vinte minutos<br />

seguintes, recordou as visões, sons e cheiros – estes em especial – <strong>que</strong> receberam sua unida<strong>de</strong><br />

ao marcharem através dos portões <strong>de</strong> Dachau, <strong>que</strong> ficava bem perto <strong>de</strong> Muni<strong>que</strong>. Durante<br />

várias semanas os soldados ouviram rumores terríveis sobre os campos <strong>de</strong> concentração, mas,<br />

acostumados à propaganda <strong>de</strong> guerra, não <strong>de</strong>ram muita confiança às conversas. Nada os<br />

preparara, e não havia nada <strong>que</strong> pu<strong>de</strong>sse tê–los preparado, para o <strong>que</strong> encontraram na<strong>que</strong>le<br />

lugar.<br />

Eu e um <strong>de</strong> meus colegas recebemos a tarefa <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> um vagão <strong>de</strong> carga. Dentro<br />

<strong>de</strong>le havia corpos humanos, em pilhas bem arrumadas, exatamente como a ma<strong>de</strong>ira<br />

<strong>que</strong> se coloca do lado <strong>de</strong> fora <strong>de</strong> casa, empilhada, <strong>que</strong> se pega <strong>de</strong>pois para acen<strong>de</strong>r a<br />

lareira. Os alemães, sempre meticulosos, haviam planejado as pilhas, alternando<br />

cabeças e pés, e acomodando os diversos tamanhos e formatos <strong>de</strong> corpos. Nossa tarefa<br />

era como mudar mobília <strong>de</strong> lugar. Pegávamos cada corpo – tão leve! – e o<br />

carregávamos para uma área pre<strong>de</strong>terminada. Alguns dos rapazes não conseguiram<br />

executar este trabalho. Ficavam do lado das cercas <strong>de</strong> arame farpado, vomitando. Não<br />

pu<strong>de</strong> acreditar quando encontramos a primeira pessoa viva na pilha. Mas era verda<strong>de</strong>.<br />

Incrível, mas alguns da<strong>que</strong>les <strong>de</strong>funtos não eram <strong>de</strong>funtos. Eram seres humanos.<br />

Gritamos chamando os médicos, e eles começaram a trabalhar imediatamente para<br />

salvar a<strong>que</strong>les sobreviventes.<br />

Passei duas horas no vagão, e neste intervalo <strong>de</strong> tempo passei por todo tipo <strong>de</strong><br />

emoções conhecidas: fúria, pena, vergonha, enjôo: po<strong>de</strong>ria dizer <strong>que</strong> senti todas as<br />

~ 37 ~


emoções negativas. Vinham em ondas, exceto a fúria. Esta permaneceu, como um<br />

combustível dando forças para o trabalho. Não há palavras para <strong>de</strong>screver<br />

a<strong>de</strong>quadamente a cena. Depois <strong>de</strong> levarmos os poucos sobreviventes para uma clínica<br />

improvisada, voltamos nossa atenção para os oficiais da SS responsáveis pelo campo<br />

<strong>de</strong> Dachau, <strong>que</strong> eram mantidos sob guarda em um prédio simples ali perto. O Serviço<br />

<strong>de</strong> Inteligência do Exército estabelecera um centro <strong>de</strong> interrogatórios nas redon<strong>de</strong>zas.<br />

Ficava fora do campo <strong>de</strong> concentração, e para chegar até lá era preciso <strong>de</strong>scer uma<br />

colina e atravessar um bos<strong>que</strong>. O capitão pediu um voluntário para escoltar o grupo <strong>de</strong><br />

doze prisioneiros da SS até o centro <strong>de</strong> interrogatórios, e Chuck levantou logo sua<br />

mão. Ele era um dos soldados mais fortes, impetuosos e volúveis <strong>de</strong> todo nosso grupo.<br />

Media quase l,60m <strong>de</strong> estatura, e seus braços eram tão longos <strong>que</strong> as mãos chegavam<br />

perto dos joelhos, como as <strong>de</strong> um gorila. Era natural <strong>de</strong> Cicero, subúrbio <strong>de</strong> Chicago<br />

conhecido principalmente pelo racismo e associação com Al Capone. Chuck dizia <strong>que</strong><br />

havia trabalhado para o criminoso antes da guerra, e nenhum <strong>de</strong> nós duvidava disto.<br />

Bem, Chuck agarrou uma metralhadora e foi cutucando o grupo <strong>de</strong> prisioneiros, para<br />

<strong>que</strong> andassem rumo à trilha. Eles andavam na frente <strong>de</strong>le, com as mãos amarradas<br />

atrás da cabeça, os cotovelos sobressaindo–se dos lados do corpo. Alguns minutos<br />

após <strong>de</strong>saparecerem no meio das árvores, ouvimos três longas rajadas <strong>de</strong><br />

metralhadora. Todos nos abaixamos rapidamente: po<strong>de</strong>ria haver um atirador alemão<br />

escondido no bos<strong>que</strong>. Mas logo Chuck apareceu, caminhando calmamente, a fumaça<br />

ainda saindo da ponta da arma. E, com um olhar meio <strong>de</strong> lado, disse <strong>que</strong> todos os<br />

prisioneiros haviam tentado fugir.<br />

Interrompi a narrativa para perguntar se alguém comunicou às autorida<strong>de</strong>s o <strong>que</strong> Chuck<br />

havia feito ou se houve alguma atitu<strong>de</strong> no sentido <strong>de</strong> discipliná–lo. O pastor riu e olhou para<br />

mim com certa con<strong>de</strong>scendência, como se dissesse: "Deixa <strong>de</strong> ser bobo, estávamos em<br />

guerra."<br />

Não, e é isso <strong>que</strong> me incomodou. Na<strong>que</strong>le dia senti–me chamado por Deus para ser<br />

pastor. Primeiro, o horror dos corpos no vagão. Não consegui assimilar a<strong>que</strong>la cena.<br />

Nem ao menos sabia <strong>que</strong> existia um mal tão absoluto. Mas, quando o vi, soube, acima<br />

<strong>de</strong> qual<strong>que</strong>r dúvida, <strong>que</strong> precisava <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar minha vida ao serviço <strong>de</strong> <strong>que</strong>m se<br />

opunha a este Mal – servindo a Deus.<br />

Depois, o inci<strong>de</strong>nte com Chuck. Sentia um medo <strong>que</strong> chegava a me <strong>de</strong>ixar enjoado <strong>de</strong><br />

<strong>que</strong> o capitão me convocasse para acompanhar o próximo grupo <strong>de</strong> soldados da SS, e<br />

pavor ainda maior por<strong>que</strong>, se fosse chamado, po<strong>de</strong>ria fazer exatamente o mesmo <strong>que</strong><br />

Chuck fizera. A besta <strong>que</strong> havia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>les estava também <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim.<br />

* * *<br />

Não consegui extrair mais reminiscências do pastor na<strong>que</strong>le dia. Não sei se ele vivenciara<br />

o suficiente do passado ou se sentia obrigado a discutir meus assuntos. Mas, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a<br />

história <strong>de</strong> lado completamente, fiz uma pergunta <strong>que</strong>, hoje, parece–me bem petulante:<br />

Diga–me, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um chamado tão profundo para o ministério – confrontando–se<br />

com o maior mal do século como se sente preenchendo seus dias assentado em seu<br />

gabinete, ouvindo jovens <strong>de</strong> classe média divagar sobre seus problemas pessoais?<br />

A resposta veio rápida, como se ele se perguntasse muitas vezes a mesma coisa:<br />

Na verda<strong>de</strong>, vejo uma ligação. Sem ser melodramático, algumas vezes penso no <strong>que</strong><br />

po<strong>de</strong>ria ter acontecido se uma pessoa treinada e sensível fizesse amiza<strong>de</strong> com Adolf<br />

Hitler enquanto ele ainda era jovem e impressionável, enquanto vagava pelas ruas <strong>de</strong><br />

~ 38 ~


Viena, em seu estado <strong>de</strong> confusão. A palavra po<strong>de</strong>ria ter evitado todo a<strong>que</strong>le<br />

<strong>de</strong>rramamento <strong>de</strong> sangue: evitado Dachau. Nunca sei <strong>que</strong>m se assentará nesta ca<strong>de</strong>ira<br />

on<strong>de</strong> você está agora. E mesmo se terminar <strong>de</strong>sperdiçando minha vida com zés–<br />

ninguém ... aprendi no vagão <strong>de</strong> carga <strong>que</strong> não existem zés–ninguém. Os corpos <strong>que</strong><br />

encontramos com o coração ainda batendo eram o mais próximo <strong>que</strong> se po<strong>de</strong> chegar<br />

<strong>de</strong> ninguém: meros es<strong>que</strong>letos envoltos em pele <strong>de</strong> papel. Mas eu faria qual<strong>que</strong>r coisa<br />

para manter a<strong>que</strong>las pobres pessoas <strong>de</strong>struídas vivas. Nossos médicos passaram a noite<br />

acordados tentando salvá–las; alguns soldados <strong>de</strong> nosso grupo per<strong>de</strong>ram a vida<br />

tentando libertá–las. Não existem ninguéns. Aprendi na<strong>que</strong>le dia em Dachau o <strong>que</strong><br />

significa a imagem <strong>de</strong> Deus em um ser humano.<br />

3<br />

OUTRO MUNDO<br />

• Por <strong>que</strong> a Ciência e a Teologia têm tanta dificulda<strong>de</strong> para se enten<strong>de</strong>r?<br />

• Existe mesmo um "mundo invisível" em algum lugar? E <strong>que</strong> diferença isto faz para<br />

mim?<br />

• Por <strong>que</strong> as pessoas <strong>de</strong>monstram tanto interesse em experiências <strong>de</strong> "quase morte", mas<br />

não se interessam pelo céu?<br />

• Por <strong>que</strong> as pessoas <strong>de</strong>monstram tanto interesse em experiências <strong>de</strong> "quase morte", mas<br />

tão pouco interesse pela morte em si?<br />

• Quanto da Bíblia é <strong>de</strong>dicado a abordar a Crucificação e quanto à Ressurreição? Será<br />

<strong>que</strong> a dotação <strong>de</strong> espaço não <strong>de</strong>veria ser ao contrário?<br />

•Se a Ressurreição fosse transmitida pela televisão, o mundo inteiro hoje acreditaria em<br />

Jesus? Que levaria todo o mundo a acreditar em Jesus?<br />

• Qual <strong>de</strong>veria ser a aparência <strong>de</strong> um Cristão? E seu perfume?<br />

CUIDADO COM OS BURACOS–NEGROS<br />

A Ciência e a Teologia mantêm um relacionamento <strong>de</strong>licado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época <strong>de</strong> Galileu e<br />

Copérnico. Em alguns aspectos, o cristianismo não conseguiu recuperar–se por completo da<br />

revolução cosmológica <strong>que</strong> retirou a humanida<strong>de</strong> do centro do Universo e a confinou a uma<br />

posição insignificante. Talvez seja em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sta postura <strong>de</strong> resistência aos avanços<br />

científicos, mas poucos pensadores cristãos da atualida<strong>de</strong> parecem beneficiar–se com o<br />

notável <strong>de</strong>senvolvimento da física mo<strong>de</strong>rna. A sua maneira, Einstein e Bohr empreen<strong>de</strong>ram<br />

uma revolução tão espetacular quanto a <strong>de</strong> Copérnico, embora em direções novas, chocantes<br />

para muitos.<br />

Para começar, não apenas a humanida<strong>de</strong>, mas cada indivíduo, homem ou mulher,<br />

recuperou, através da física mo<strong>de</strong>rna, sua posição <strong>de</strong> figura central na história do Universo.<br />

Por<strong>que</strong>, se extrairmos apenas um ensinamento da física mo<strong>de</strong>rna, será este: o indivíduo<br />

consciente é um componente essencial <strong>de</strong>, bem... <strong>de</strong> tudo. Na física <strong>de</strong> Newton, os indivíduos<br />

não ocupam lugar especial no Universo, exceto como participantes ocasionais no fenômeno<br />

~ 39 ~


estabelecido <strong>de</strong> causa e efeito. Mas alguns cientistas do século XX <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m <strong>que</strong> a própria<br />

realida<strong>de</strong> da ocorrência <strong>de</strong> um evento <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da existência <strong>de</strong> um observador.<br />

Como disse Bernard D'Espagnat na revista Scientific American:<br />

A doutrina <strong>que</strong> afirma ser o mundo formado por objetos cuja existência in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da<br />

consciência humana acaba por entrar em conflito com a mecânica quântica e com os<br />

fatos verificados por experiências.<br />

Em outras palavras: ele <strong>que</strong>stiona até mesmo a existência das coisas fora da consciência<br />

humana. Apesar das opiniões contrárias, o indivíduo importa muito, e o observador<br />

<strong>de</strong>sempenha papel essencial. Os físicos com a alma um pouco mais poética repetem ditados<br />

como: "Corte uma folha <strong>de</strong> grama e você abalará o Universo."<br />

O leigo rapidamente per<strong>de</strong> a confiança no Reino Encantado da relativida<strong>de</strong> e da física<br />

quântica. Alguém nos ensina <strong>que</strong> nossa poltrona favorita é formada por gran<strong>de</strong>s espaços<br />

vazios preenchidos por alguns átomos <strong>que</strong> giram a toda velocida<strong>de</strong>. Ainda assim, nós a vemos<br />

como objeto sólido e assentamo–nos nela. Apren<strong>de</strong>mos <strong>que</strong> o tempo varia, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da<br />

força da gravida<strong>de</strong> e do movimento, e <strong>que</strong> um astronauta <strong>que</strong> parra para o espaço po<strong>de</strong>rá<br />

retornar à Terra trinta e seis anos mais novo do <strong>que</strong> seu irmão gêmeo <strong>que</strong> aqui permaneceu.<br />

Apesar disto, continuamos a olhar para o relógio <strong>de</strong> pulso, confiando em <strong>que</strong> ele nos<br />

informará a hora certa <strong>de</strong> entrar no serviço. Parece melhor <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado este mundo<br />

estonteante da física mo<strong>de</strong>rna, com suas equações tão longas <strong>que</strong> vão <strong>de</strong> uma ponta a outra do<br />

quadro–negro e com seus termos amedrontadores como antimatéria, espuma quântica e<br />

buraco–negro. Com algumas poucas exceções, na maioria dos casos é melhor <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do<br />

bom e velho Newton.<br />

Mas os cristãos não <strong>de</strong>vem voltar as costas à física mo<strong>de</strong>rna com tanta facilida<strong>de</strong>, por<strong>que</strong><br />

muitos <strong>de</strong> seus princípios sobre a natureza do tempo e do espaço foram provados por<br />

cientistas empreen<strong>de</strong>dores <strong>que</strong> lançaram raios–laser até à lua, fotografaram estrelas durante<br />

eclipses do sol e fizeram com <strong>que</strong> relógios atômicos viajassem em torno do globo terrestre<br />

levados por aviões a jato. Além diste, as <strong>de</strong>scobertas notáveis <strong>que</strong> as pessoas comentam com<br />

espanto infantil apresentam novos caminhos para a compreensão <strong>de</strong> algumas doutrinas<br />

teológicas mais complicadas.<br />

Pensemos em uma <strong>de</strong>stas doutrinas: Deus não está preso ao tempo. Os cristãos vêm<br />

repetindo, há muitos e muitos anos <strong>que</strong> "Aos olhos <strong>de</strong> Deus mil anos são como um dia",<br />

expressando sua convicção <strong>de</strong> <strong>que</strong> a visão <strong>de</strong> Deus sobre tempo é diferente da nossa. Dizemos<br />

<strong>que</strong> Ele está além do tempo e do espaço. Para nós, a história humana é uma seqüência <strong>de</strong><br />

quadros fixos, apresentados um após o outro, como em um filme. Mas Deus vê o filme inteiro<br />

<strong>de</strong> uma só vez. Embora os cristãos repitam esta crença e quase todos os teólogos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

Agostinho, hajam–se ocupado <strong>de</strong>la, ninguém consegue enten<strong>de</strong>r por completo.<br />

Aparece a física mo<strong>de</strong>rna. Hoje nos ensinam <strong>que</strong> o tempo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do movimento e da<br />

posição relativa do observador. Tomemos um exemplo bem primitivo. Olhando para o céu, às<br />

15h 12min, vejo uma estrela brilhante, o sol, <strong>que</strong> paira no espaço a uma distância <strong>de</strong><br />

aproximadamente 150 milhões <strong>de</strong> quilômetros. Na verda<strong>de</strong>, a luz <strong>que</strong> vejo partiu da estrela há<br />

500 segundos, e viajou à velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 300 000km/s, embora eu não me dê conta <strong>de</strong> estar<br />

enxergando o resultado do <strong>que</strong> aconteceu no astro às 15h 4min (horário da Terra). Se o Sol<br />

subitamente <strong>de</strong>saparecesse em face <strong>de</strong> um ata<strong>que</strong> furtivo <strong>de</strong> um buraco–negro voraz, eu só<br />

saberia oito minutos <strong>de</strong>pois, quando o céu ficaria escuro e eu gritaria: O Sol foi embora! – e<br />

me prepararia para a extinção da vida na Terra.<br />

Imagine agora uma pessoa muito gran<strong>de</strong>, <strong>que</strong>ro dizer, muito gran<strong>de</strong>, cuja abertura entre os<br />

pés medisse, digamos, 150 milhões <strong>de</strong> quilômetros. Esta pessoa põe o pé es<strong>que</strong>rdo na Terra e<br />

o direito, com um sapato <strong>de</strong> amianto, no sol. Subitamente, bate o pé direito. Imediatamente, as<br />

labaredas solares espalham–se em todas as direções e o sol expele gases. Oito minutos <strong>de</strong>pois<br />

eu, aqui na Terra, percebo a mudança dramática do Sol.<br />

~ 40 ~


Mas estou preso na Terra. A pessoa imensa existe parcialmente aqui e parcialmente no Sol,<br />

sua consciência abarca os dois lugares. Embora parte <strong>de</strong> seu ser esteja na Terra, tem pleno<br />

conhecimento do movimento do pé direito oito minutos antes <strong>de</strong> todas as outras pessoas na<br />

Terra. Pergunta–se, então, o <strong>que</strong> é o tempo para esta pessoa imensa. Depen<strong>de</strong> da perspectiva.<br />

Faça um esforço mental ainda maior e imagine um Ser tão gran<strong>de</strong> quanto o Universo, <strong>que</strong><br />

existe ao mesmo tempo na Terra e na estrela Andrômeda, numa galáxia a bilhões <strong>de</strong><br />

quilômetros <strong>de</strong> distância. Se uma estrela explo<strong>de</strong> na galáxia, o Ser sabe no mesmo instante, e<br />

mesmo assim ainda verá o evento na Terra, milhões <strong>de</strong> anos <strong>de</strong>pois, como se houvesse<br />

acontecido na<strong>que</strong>le instante.<br />

A analogia não é exata, por<strong>que</strong> tolhe este Ser no espaço, embora o liberte do tempo. Mas<br />

po<strong>de</strong> dar–nos uma idéia quanto à perspectiva limitada do conceito <strong>de</strong> tempo adotado em nosso<br />

planeta, no qual se afirma <strong>que</strong> "primeiro acontece A e <strong>de</strong>pois B". Deus, acima tanto do tempo<br />

quanto do espaço, po<strong>de</strong> ver o <strong>que</strong> acontece na Terra <strong>de</strong> um modo <strong>que</strong> só nos cabe tentar<br />

imaginar. Esta linha <strong>de</strong> pensamento joga nova luz sobre <strong>de</strong>bates muito antigos sobre a<br />

onisciencia, presciência, livre–arbítrio e <strong>de</strong>terminismo. Um termo como "presciência" só tem<br />

sentido quando consi<strong>de</strong>rado do nosso ponto <strong>de</strong> vista limitado à Terra, pois presume <strong>que</strong> o<br />

tempo é uma seqüência <strong>de</strong> fatos, um após o outro. Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Deus, <strong>que</strong> engloba<br />

todo o Universo <strong>de</strong> uma só vez, o significado da palavra é consi<strong>de</strong>ravelmente diverso.<br />

Falando com precisão, Deus não "prevê" os acontecimentos. Ele simplesmente os vê, em um<br />

presente eterno.<br />

A eternida<strong>de</strong> é apenas uma das muitas doutrinas esclarecidas pela física mo<strong>de</strong>rna. Os<br />

novos teólogos agiriam bem se estudassem a teoria dos Universos paralelos, usando–a para<br />

investigar o problema do mal. A teoria da interconexão <strong>de</strong> toda matéria e energia seria útil<br />

para abordar as palavras bíblicas sobre a união entre os <strong>que</strong> crêem. A teoria <strong>que</strong> trata <strong>de</strong> como<br />

a consciência afeta a matéria po<strong>de</strong>ria trazer esclarecimentos sobre o po<strong>de</strong>r da oração. A<br />

maioria <strong>de</strong> nós precisará <strong>de</strong> cientistas qualificados <strong>que</strong> nos orientem na compreensão <strong>de</strong> todos<br />

estes mistérios. Os zen–budistas aproveitaram a oportunida<strong>de</strong> e publicaram obras sobre como<br />

suas crenças se adaptam aos mo<strong>de</strong>los contemporâneos do Universo. Espero <strong>que</strong> não fi<strong>que</strong>mos<br />

atrasados <strong>de</strong>mais em relação a eles. A fé religiosa, assim como a matéria, enfrenta<br />

constantemente o perigo <strong>de</strong> ser engolida por um buraco–negro.<br />

MATEMÁTICOS NASCIDOS DE NOVO<br />

Não sei dizer isco <strong>de</strong>licadamente, <strong>de</strong> forma <strong>que</strong> vou falar: estou um pouco preocupado<br />

com a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrada na Bíblia para com a matemática. Fre<strong>de</strong>rick Buechner vai ainda<br />

além e diz <strong>que</strong> a atitu<strong>de</strong> é atroz. Sei <strong>que</strong> este tipo <strong>de</strong> afirmação irrita algumas pessoas, mas<br />

quanto mais leio mais entendo o <strong>que</strong> ele <strong>que</strong>r dizer. Pense nas evidências você mesmo: um<br />

exemplo <strong>de</strong> cada um dos Evangelhos, para ser matematicamente preciso.<br />

Mateus 20. O capítulo começa com uma parábola sobre a qual, compreensivelmente,<br />

quase não ouço sermões, por<strong>que</strong> contradiz todas as leis adotadas pela socieda<strong>de</strong> relacionadas<br />

à justiça, motivação humana e compensação justa. Jesus conta, em poucas palavras, sobre um<br />

fazen<strong>de</strong>iro <strong>que</strong> contrata algumas pessoas para trabalhar em seus campos. Uns começam logo<br />

cedo. No meio da manhã, chegam outros. Na hora do almoço, ele contrata novos<br />

Trabalhadores, ainda outros no meio da tar<strong>de</strong> e os últimos uma hora antes do término do<br />

expediente. Todos estão satisfeitos com o emprego, até à hora do pagamento do salário,<br />

quando os <strong>de</strong>dicados <strong>que</strong> trabalharam o dia todo sob o sol escaldante percebem <strong>que</strong> os<br />

folgados <strong>que</strong> começaram há pouco mais <strong>de</strong> 1 hora recebem exatamente a mesma quantia!<br />

Qual<strong>que</strong>r pessoa <strong>que</strong> já trabalhou no campo um dia inteiro po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r, facilmente, por <strong>que</strong><br />

~ 41 ~


os primeiros a "pegar no batente" se sentiram ultrajados. A <strong>de</strong>cisão do patrão <strong>de</strong>safia as regras<br />

<strong>de</strong> economia.<br />

Entendo <strong>que</strong> Jesus contou esta parábola não visando a dar uma aula sobre benefícios<br />

trabalhistas, e sim mostrar a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus para conosco. Mas a matemática no reino<br />

espiritual parece ser estranha como a <strong>que</strong> foi usada nesta situação. Os últimos a começar a<br />

trabalhar me lembram o ladrão na cruz: sem nada <strong>de</strong> bom, ele mal consegue "sedar bem" no<br />

último instante, e, ainda assim, aparentemente, recebe a mesma recompensa <strong>de</strong> uma pessoa<br />

<strong>que</strong> passou sua vida em <strong>de</strong>voção e pieda<strong>de</strong>. Histórias <strong>de</strong> perdão no último instante têm um<br />

to<strong>que</strong> atraente, é claro, mas dificilmente motivarão uma pessoa a levar uma vida cristã<br />

<strong>de</strong>cente. Como você se sentiria, sendo criado em uma família correta, freqüentando escolas<br />

cristãs, amadurecendo, estabelecendo uma família exemplar em sua comunida<strong>de</strong>, tudo isto<br />

para <strong>de</strong>scobrir <strong>que</strong> um atrasadinho se arrepen<strong>de</strong>u em seu leito <strong>de</strong> morte e chegou na sua frente<br />

no juízo Final?<br />

Marcos 12. Aqui Jesus lida com a economia não através <strong>de</strong> uma parábola, mas <strong>de</strong> um<br />

comentário direto sobre um ato <strong>que</strong> hoje a Receita Fe<strong>de</strong>ral classifica <strong>de</strong> "Contribuição para<br />

Entida<strong>de</strong>s Beneficentes". Uma viúva coloca duas moedas como oferta no Templo, em quantia<br />

inferior a 1 centavo. Jesus, <strong>que</strong> acabara <strong>de</strong> observar alguns ricos fazerem investimentos<br />

consi<strong>de</strong>ráveis na causa da carida<strong>de</strong>, aparece com a seguinte afirmação:<br />

"Em verda<strong>de</strong> vos digo <strong>que</strong> esta viúva pobre <strong>de</strong>positou no gazofilácio mais do <strong>que</strong> o<br />

fizeram todos os ofertantes."<br />

Espero <strong>que</strong> Ele tenha falado baixo! Admirar os motivos <strong>que</strong> levaram a viúva a doar suas<br />

moedas é uma coisa, mas aparecer com uma afirmação matemática <strong>de</strong>sconcertante – e<br />

potencialmente ofensiva – como esta é outra totalmente diferente!<br />

Talvez possamos explicar os comentários <strong>de</strong> Jesus com base no <strong>de</strong>sconhecimento, na<strong>que</strong>la<br />

época, <strong>de</strong> algumas regras importantes para o levantamento <strong>de</strong> recursos <strong>que</strong> foram <strong>de</strong>scobertas<br />

posteriormente. Por certo levou tempo para <strong>que</strong> a Igreja do Novo Testamento conseguisse se<br />

libertar da prática legalista do dízimo e ajustasse às ofertas voluntárias suas exigências<br />

diplomáticas (Tiago 2, por exemplo, mostra uma <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração chocante pelos princípios<br />

<strong>de</strong> levantamento <strong>de</strong> recursos). E em nossa época, mais do <strong>que</strong> antes, vemos inovações<br />

importantes, como cartas personalizadas, prêmios, clubes <strong>de</strong> contribuintes e ban<strong>que</strong>tes<br />

beneficentes (nos quais a viúva, sem qual<strong>que</strong>r sombra <strong>de</strong> dúvida, sentir–se–ia <strong>de</strong>slocada).<br />

Certamente, o sentimentalismo suscitado pela fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma viúva não <strong>de</strong>ve interferir na<br />

"construção <strong>de</strong> relacionamentos" e na "manutenção dos doadores", atenção <strong>que</strong> <strong>de</strong>dicamos aos<br />

<strong>que</strong> doam quantias substanciais: agir ao contrário seria, na verda<strong>de</strong>, ir completamente contra a<br />

matemática.<br />

Lucas 15. Todos conhecemos esta história, do nobre pastor <strong>que</strong> <strong>de</strong>ixou seu rebanho <strong>de</strong><br />

noventa e nove ovelhas e lançou–se na escuridão para procurar uma ovelhinha perdida. Um<br />

sermão bonito, mas reflita um pouco sobre a matemática da história. Jesus diz <strong>que</strong> o pastor<br />

<strong>de</strong>ixou as noventa e nove "no <strong>de</strong>serto", don<strong>de</strong> se conclui <strong>que</strong> ficaram vulneráveis a ladrões,<br />

lobos ou a um <strong>de</strong>sejo incontrolável <strong>de</strong> disparar atrás <strong>de</strong>le. Como se sentiria o pastor se<br />

voltasse com a ovelhinha perdida jogada nos ombros e <strong>de</strong>scobrisse <strong>que</strong> outras vinte e quatro<br />

haviam <strong>de</strong>saparecido?<br />

Felizmente, a ciência do crescimento da Igreja instrui–nos hoje a investir nossos recursos<br />

nas ativida<strong>de</strong>s <strong>que</strong> beneficiam o maior número <strong>de</strong> pessoas. Grupos homogêneos funcionam<br />

muito melhor, <strong>de</strong> forma <strong>que</strong> ir atrás <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviados sociais não é uma prática a<strong>de</strong>quada a bons<br />

mordomos. Obviamente, a ovelha <strong>que</strong> saiu do rebanho não se ajustava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, ou talvez<br />

quisesse aproveitar sua própria liberda<strong>de</strong> – e esta dificilmente seria uma boa razão para<br />

colocar todo o rebanho em perigo.<br />

João 12. Uma das melhores amigas <strong>de</strong> Jesus, Maria (<strong>que</strong> já <strong>de</strong>monstrara antes padrões<br />

duvidosos <strong>de</strong> utilização do tempo), ganha um lugar na história em face da sua falta <strong>de</strong><br />

habilida<strong>de</strong> econômica. Ela toma meio litro – 1 ano <strong>de</strong> salário! – <strong>de</strong> perfume e o entorna nos<br />

~ 42 ~


pés <strong>de</strong> Jesus. Só <strong>de</strong> pensar neste ato bizarro minha pressão sobe. Será <strong>que</strong> 50ml não teriam o<br />

mesmo efeito? E Jesus <strong>que</strong>ria mesmo <strong>que</strong> alguém espalhasse perfume em seus pés? Até Judas,<br />

ainda <strong>que</strong> com motivos escusos, viu o <strong>de</strong>sperdício completo da<strong>que</strong>le ato: pense em todos os<br />

pobres <strong>que</strong> po<strong>de</strong>riam ser ajudados com o tesouro <strong>que</strong> escorria pelo chão sujo.<br />

A visão presente no Novo Testamento quanto à matemática me recorda uma parábola <strong>de</strong><br />

Kierkegaard (outro matemático <strong>que</strong>stionável): um vândalo inva<strong>de</strong> uma loja <strong>de</strong> <strong>de</strong>partamentos<br />

durante a noite e, em vez <strong>de</strong> roubar, troca todas as eti<strong>que</strong>tas <strong>de</strong> preço. No dia seguinte, os<br />

funcionários – e os clientes muito satisfeitos – encontram situações estranhas, como colares<br />

<strong>de</strong> diamante por um dólar e bijuterias custando milhares <strong>de</strong> dólares. Kierkegaard afirma <strong>que</strong> o<br />

Evangelho é assim: altera todas as nossas convicções relacionadas a preço e valor.<br />

QUE ACONTECEU COM O CÉU?<br />

Um fato estranho sobre a vida mo<strong>de</strong>rna na América: embora 71% das pessoas afirmem<br />

acreditar na vida após a morte, ninguém fala muito sobre isto. Certa vez, fiz uma pesquisa no<br />

catálogo <strong>de</strong> publicações periódicas em uma das maiores bibliotecas universitárias <strong>de</strong> Chicago.<br />

Descobri <strong>que</strong> o assunto "Céu", nos últimos quatro anos, não figurava em se<strong>que</strong>r um artigo.<br />

Encontrei muitos sobre terceira ida<strong>de</strong>, morte, alguns sobre experiências extra–corpóreas, mas<br />

nenhum sobre o Céu.<br />

Pensei, a princípio, <strong>que</strong> essas escassez refletisse a tendência da cultura secular. Mas,<br />

mesmo procurando nos periódicos religiosos, encontrei apenas uns poucos. Por exemplo:<br />

entre 1981 e 1982 houve três, e um <strong>de</strong>les era em francês. Isto, para mim, é muito estranho.<br />

Embora as porcentagens não se apli<strong>que</strong>m com exatidão à eternida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>mos presumir <strong>que</strong><br />

99% <strong>de</strong> nossa existência serão passados no Céu. Não é, então, estranho, <strong>que</strong> o ignoremos,<br />

agindo como se não tivesse qual<strong>que</strong>r importância? Vários livros bons apareceram nos últimos<br />

anos, revendo esta tendência, mas dificilmente preenchem toda a lacuna.<br />

Há bem pouco tempo, no século 19, os editores publicavam milhares <strong>de</strong> páginas <strong>de</strong><br />

antologias poéticas e <strong>de</strong> prosa com imagens do Céu. Hoje nossas imagens proce<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senhos–animados e <strong>de</strong> piadas sobre S. Pedro e o Portão <strong>de</strong> Pérola. Que aconteceu? Karl<br />

Menninger levantou uma <strong>que</strong>stão teológica pertinente em seu livro Wha–tever Became of Sin?<br />

(Que Aconteceu com o Pecado?). Bem, a "morte" do Céu provoca em mim preocupação pelo<br />

menos igual à <strong>de</strong>le. Depois <strong>de</strong> pensar um pouco no assunto, encontrei três sugestões <strong>que</strong><br />

po<strong>de</strong>m ajudar na explicação do mistério.<br />

1. A ri<strong>que</strong>za trouxe para esta vida o <strong>que</strong> para as gerações anteriores só seria possível no<br />

Céu. Nos países <strong>de</strong>senvolvidos, hoje, a maioria dos cidadãos tem alimento em abundância,<br />

alívio da dor e ambientes <strong>de</strong> beleza e luxo. A promessa bíblica <strong>de</strong> um estado semelhante a este<br />

per<strong>de</strong>u muito <strong>de</strong> seu brilho.<br />

Até mesmo a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> não <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> tanto conforto voltam suas energias quase<br />

exclusivamente para conseguir tudo nesta vida. Karl Marx apelidou a religião <strong>de</strong> "ópio do<br />

povo", por<strong>que</strong>, para ele, ela acenava para as classes inferiores com a promessa <strong>de</strong> uma vida<br />

boa no Céu, anestesiando, assim, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>las <strong>de</strong> satisfação material no presente 1 . A crítica<br />

<strong>de</strong>le parece exótica hoje. Ninguém promete mais um presente no Céu. Organizações<br />

religiosas, como o Concílio Mundial <strong>de</strong> Igrejas e as agências <strong>de</strong> auxílio evangélicas,<br />

encorajam–nos a trazer a vida boa para aqui, para a Terra.<br />

1<br />

Algumas vezes parei para pensar em como Marx. sendo ju<strong>de</strong>u, encaixava sua teoria com o conhecimento do Velho Testamento. Deus<br />

revelou verda<strong>de</strong>s gran<strong>de</strong>s e elaboradas sobre a natureza <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> justa, chegando até a organizar uma nação apenas para dar vida a<br />

esses princípios. Ainda assim, o Velho Testamento contém poucos lampejos da vida após a morte. Chega quase a parecer <strong>que</strong> Deus esperou<br />

<strong>que</strong> alguns milhares <strong>de</strong> anos da história humana passassem sem falar <strong>de</strong> nossas recompensas eternas para evitar distorções como "um<br />

presente no Céu", <strong>que</strong> se constituem em abordagens inexatas da justiça.<br />

~ 43 ~


2. O paganismo <strong>que</strong> penetra sorrateiramente em nossas idéias nos convida a aceitar a<br />

morte como o clímax da vida na Terra e não como uma transição violenta para uma vida <strong>que</strong><br />

prossegue. Elisabeth Kü–bler–Ross (<strong>que</strong> acredita na vida após a morte) <strong>de</strong>finiu os cinco<br />

estágios da morte, sugerindo, implicitamente, <strong>que</strong> a "Aceitação" é o estágio mais saudável e<br />

apropriado. Assisti, em grupos <strong>de</strong> terapia em alguns hospitais, pacientes à morte se<br />

esforçarem, <strong>de</strong>sesperadamente, para atingir esse estado <strong>de</strong> aceitação tranqüila, rejeitando,<br />

assim, o impulso do instinto e da consciência, <strong>que</strong> vêem a morte como um inimigo. É<br />

estranho, mas ninguém jamais conversou sobre o Céu na<strong>que</strong>les grupos. Era um pouco<br />

embaraçoso, parecia covardia. Que a inversão <strong>de</strong> valores nos levou a encarar a crença na<br />

aniquilação como coragem e a fazer pouco caso da esperança <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong> repleta <strong>de</strong><br />

felicida<strong>de</strong>?<br />

3. As imagens bíblicas sobre o Céu são antigas e per<strong>de</strong>ram o apelo <strong>que</strong> continham. Muros<br />

<strong>de</strong> esmeralda, safira e jaspe, ruas <strong>de</strong> ouro e portões <strong>de</strong> pérolas po<strong>de</strong>m ter inspirado os<br />

camponeses do Oriente Médio, mas não significam muito em nosso mundo tecnológico. E os<br />

lí<strong>de</strong>res religiosos e os artistas fracassaram em apresentar novas imagens, <strong>que</strong> cumprissem sua<br />

função. Como será o Céu? Um lugar on<strong>de</strong> tudo <strong>que</strong> se tem a fazer é passear o dia todo, com<br />

uma harpa, cantando, para todo o sempre? Esta imagem não atrai a maioria <strong>de</strong> nós. Parece–me<br />

<strong>que</strong> os comunicadores cristãos têm a clara responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> projetar uma nova<br />

compreensão do Céu na consciência mo<strong>de</strong>rna. Se falharmos, per<strong>de</strong>remos uma das melhores<br />

características <strong>de</strong> nossa fé.<br />

O Céu oferece a promessa <strong>de</strong> um tempo, muito maior e mais substancial do <strong>que</strong> este da<br />

Terra, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, satisfação, prazer e paz para a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> estão presos em dor, lares partidos,<br />

caos econômico, ódio, medo e violência. Se não acreditamos nisto não há muitas razões,<br />

como afirma o Apóstolo Paulo em I Coríntios 15, para sermos cristãos. E, se crermos<br />

verda<strong>de</strong>iramente, a fé mudará nossa vida. Digo isto por<strong>que</strong> já presenciei os resultados<br />

eletrizantes <strong>que</strong> po<strong>de</strong>m acontecer quando a idéia do Céu se torna real.<br />

Minha esposa, Janet, trabalhou com idosos em um abrigo em Chicago, próximo a um<br />

projeto habitacional, numa região consi<strong>de</strong>rada uma das mais pobres dos Estados Unidos.<br />

Meta<strong>de</strong> dos clientes <strong>de</strong>la era branca, meta<strong>de</strong> era negros. Todos atravessaram tempos difíceis:<br />

duas guerras mundiais, a Gran<strong>de</strong> Depressão, revoltas sociais. E todos, por volta dos setenta,<br />

oitenta anos, viviam conscientes da proximida<strong>de</strong> da morte. Mas Janet reparou na diferença<br />

notável entre os brancos e os negros frente à morte. É claro <strong>que</strong> havia exceções em ambos<br />

grupos, mas a tendência era <strong>de</strong> os brancos se tornarem cada vez mais amedrontados e tensos.<br />

Reclamavam da vida, da família e da saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. Os negros, ao contrário, conservavam<br />

o bom humor e o espírito <strong>de</strong> triunfo, embora a maioria tivesse mais razões aparentes <strong>de</strong><br />

amargura e <strong>de</strong>sespero. (A maior parte viveu no Sul apenas uma geração após a libertação dos<br />

escravos, e sofreu, a vida toda, em face da opressão econômica e da injustiça. Já eram adultos<br />

quando a Lei dos Direitos Civis entrou em vigor.)<br />

Que causou essa diferença <strong>de</strong> perspectiva? Janet concluiu <strong>que</strong> a resposta é a esperança,<br />

<strong>que</strong> po<strong>de</strong> ser traçada diretamente à crença firme dos negros no Céu. As músicas <strong>que</strong> eles<br />

cantavam afirmavam <strong>que</strong> este mundo não era o lugar <strong>de</strong>les, <strong>que</strong> estava aqui apenas <strong>de</strong><br />

passagem. Estas letras e outras semelhantes resultaram <strong>de</strong> um período trágico na história,<br />

quando tudo neste mundo parecia <strong>de</strong>primente. Mas, <strong>de</strong> alguma forma, as igrejas conseguiram<br />

instilar neles uma crença viva em um lar além <strong>de</strong>ste aqui. Se quiser ouvir algumas imagens<br />

novas e mais relevantes sobre o Céu, vá a alguns funerais <strong>de</strong> negros norte–americanos. Com<br />

sua eloqüência característica, os pastores pintam em palavras uma vida tão serena e sensível<br />

<strong>que</strong> todos na congregação começam a <strong>de</strong>sejar ir para lá. É claro <strong>que</strong> os enlutados sofrem, mas<br />

na perspectiva correta: sentem a dor <strong>de</strong> uma interrupção, <strong>de</strong> um obstáculo temporário em uma<br />

batalha cujo final já foi <strong>de</strong>terminado.<br />

De alguma forma, estes santos es<strong>que</strong>cidos pela socieda<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>ram a antegozar e<br />

aproveitar a presença <strong>de</strong> Deus apesar das dificulda<strong>de</strong>s <strong>que</strong> enfrentam neste mundo. Ao<br />

chegarmos ao Céu, talvez haja muita surpresa ao verificar o <strong>que</strong> significa aproveitar a<br />

~ 44 ~


presença <strong>de</strong> Deus. Para outros, como estes negros idosos da favela <strong>de</strong> Chicago, toda a alegria<br />

será semelhante à saudação <strong>que</strong> se recebe ao volta: ao lar. Retorno há muito esperado. A<br />

chegada <strong>de</strong>les não será parecida com uma visita a um local <strong>de</strong>sconhecido. Quem sabe talvez,<br />

eles evitem algumas centenas <strong>de</strong> anos <strong>de</strong> transição embaraçosa?!<br />

IMAGINE QUE O CÉU NÃO EXISTE<br />

Os antropólogos relatam, não sem certo embaraço, <strong>que</strong> todas as socieda<strong>de</strong>s humanas já<br />

<strong>de</strong>scobertas apresentam uma crença na vida após a morte. Os especialistas em religião –<br />

especialmente a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> aten<strong>de</strong>m pelo nome pomposo <strong>de</strong> "fenomenologistas" – agarram–se<br />

a este fato, por<strong>que</strong> vêem na persistência teimosa <strong>de</strong>sta crença um "rumor <strong>de</strong> transcendência",<br />

um vestígio <strong>de</strong> nossa natureza imortal.<br />

Ler sobre a crença quase universal na existência <strong>de</strong> uma vida após esta aqui levou meus<br />

pensamentos em uma direção inteiramente oposta. Passei a imaginar uma socieda<strong>de</strong> <strong>que</strong> não<br />

acreditasse na vida após a morte. Como a negação da imortalida<strong>de</strong> afetaria a vida cotidiana?<br />

Deixei minha imaginação correr solta e cheguei às conclusões <strong>que</strong> apresento a seguir. Para dar<br />

um rótulo conveniente (e com meu pedido <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas a Samuel Butler, autor <strong>de</strong> Erehwon 2 ),<br />

darei à minha socieda<strong>de</strong> mítica o nome <strong>de</strong> Acirema.<br />

1. Os aciremanos valorizam a juventu<strong>de</strong> acima <strong>de</strong> qual<strong>que</strong>r outra coisa. Já <strong>que</strong> para eles<br />

não existe nada além da vida na Terra, a juventu<strong>de</strong> representa esperança. Não têm um futuro<br />

melhor pelo qual ansiar. Como resultado, tudo <strong>que</strong> preservar a ilusão da juventu<strong>de</strong> é bem<br />

aceito. O esporte é uma obsessão nacional. As capas das revistas apresentam rostos sem rugas<br />

e corpos lindos. Os livros e as fitas <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o mais vendidos apresentam mulheres atraentes, <strong>de</strong><br />

aproximadamente 40 anos, <strong>de</strong>monstrando exercícios <strong>que</strong>, seguidos fielmente, farão com <strong>que</strong> a<br />

pessoa pareça <strong>de</strong>z anos mais jovem.<br />

2. Naturalmente, o povo <strong>de</strong> Acirema não valoriza os idosos, por<strong>que</strong> eles se constituem<br />

numa lembrança <strong>de</strong>sagradável do final da vida. Ao contrário dos jovens, eles jamais po<strong>de</strong>m<br />

representar a esperança. Assim, a indústria da saú<strong>de</strong> em Acirema promove cremes para pele,<br />

solução para careca, cirurgia plástica e muitos outros meios elaborados <strong>de</strong> mascarar os efeitos<br />

do envelhecimento, o prelúdio da morte. Em regiões especialmente insensíveis, os aciremanos<br />

chegam a confinar os idosos em abrigos, isolando–os da população em geral.<br />

3. Em Acirema valoriza–se mais a "imagem" do <strong>que</strong> a "substância". Práticas como<br />

dietas, exercícios e construção do corpo, por exemplo, atingiram o status <strong>de</strong> ritos pagãos <strong>de</strong><br />

adoração. Um corpo bem construído <strong>de</strong>monstra visivelmente as conquistas neste mundo,<br />

enquanto <strong>que</strong> qualida<strong>de</strong>s interiores nebulosas – compaixão, abnegação e humilda<strong>de</strong> –<br />

merecem poucos elogios. Como efeito colateral <strong>de</strong>primente, uma pessoa com <strong>de</strong>ficiências, ou<br />

<strong>de</strong>sfigurada, tem gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> para conseguir competir, apesar das qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu<br />

caráter.<br />

4. A religião <strong>de</strong> Acirema focaliza exclusivamente como perambular aqui e agora, por<strong>que</strong><br />

não existe qual<strong>que</strong>r sistema <strong>de</strong> recompensa após a morte. Os <strong>que</strong> ainda acreditam em uma<br />

<strong>de</strong>ida<strong>de</strong> buscam a aprovação <strong>de</strong> Deus em termos <strong>de</strong> boa saú<strong>de</strong> e prosperida<strong>de</strong> na Terra. Houve<br />

um tempo em <strong>que</strong> os pastores perseguiram o <strong>que</strong> chamavam <strong>de</strong> "evangelismo", mas hoje<br />

<strong>de</strong>votam a maior parte <strong>de</strong> sua energia a aumentar o bem–estar <strong>de</strong> seus concidadãos.<br />

5. Recentemente, os crimes tornaram–se mais violentos e bizarros. Em outras cida<strong>de</strong>s<br />

primitivas os cidadãos crescem com um vago temor <strong>de</strong> um julgamento eterno pen<strong>de</strong>ndo sobre<br />

eles, mas os aciremanos não impõem esses limites a seu comportamento maligno.<br />

2 Erehuwon é a palavra Nowhere (lugar nenhum), escrita ao contrário. (N. da T.)<br />

~ 45 ~


6. Gastam bilhões <strong>de</strong> dólares para manter corpos idosos presos a sistemas <strong>de</strong><br />

prolongamento da vida, enquanto <strong>que</strong>, ao mesmo tempo, permitem, e até encorajam, o aborto.<br />

Essa atitu<strong>de</strong> não é tão paradoxal como parece, por<strong>que</strong> os aciremanos acreditam em <strong>que</strong> a vida<br />

humana começa no nascimento e termina na morte.<br />

7. Até bem recentemente os psicólogos <strong>de</strong> Acirema precisavam <strong>de</strong> tratar das reações<br />

atávicas <strong>de</strong> seus pacientes: medo e raiva Frente à morte. Novas técnicas, porém, trouxeram<br />

promessas na superação <strong>de</strong>sses instintos primitivos. Hoje, as pessoas apren<strong>de</strong>m a ver a<br />

"aceitação" como a reação mais madura ao estado perfeitamente natural da morte. Os<br />

estudiosos obtiveram sucesso na <strong>de</strong>svalorização <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s ultrapassadas sobre morrer <strong>de</strong><br />

maneira "nobre". Para os aciremanos, a morte i<strong>de</strong>al acontece em paz, durante o sono.<br />

8. Os cientistas em Acirema ainda trabalham para eliminar o problema da morte.<br />

Enquanto isto, a maior parte das mortes acontece na presença <strong>de</strong> profissionais treinados, em<br />

uma área isolada. Para diminuir o cho<strong>que</strong>, a palavra "morte", tão <strong>de</strong>selegante, foi substituída<br />

por eufemismos como "passamento" e "<strong>de</strong>scanso". E todas as cerimônias <strong>que</strong> acompanham a<br />

morte <strong>de</strong>monstram sua separação da vida. Os corpos são preservados quimicamente e<br />

colocados em recipientes herméticos, à prova <strong>de</strong> vazamentos.<br />

* * *<br />

Só <strong>de</strong> pensar em uma socieda<strong>de</strong> assim sinto calafrios. Certamente sou feliz <strong>de</strong> viver no<br />

meu bom e velho país, on<strong>de</strong>, <strong>de</strong> acordo com as pesquisas do Instituto Gallup, a gran<strong>de</strong> maioria<br />

da população acredita na vida após a morte.<br />

DOMINGO À TARDE, NA PRAIA<br />

Os salva–vidas, em seus barcos <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, balançavam–se preguiçosamente sem sair do<br />

lugar, oscilando ao sabor das ondas suaves do Lago Michigan. Um avião circula por ali,<br />

puxando uma faixa promocional <strong>de</strong> uma agência <strong>de</strong> automóveis. Barcos à vela <strong>que</strong>bram a<br />

moldura azul do horizonte com pe<strong>que</strong>nos triângulos brancos.<br />

Na praia propriamente dita, a diversida<strong>de</strong> étnica <strong>de</strong> Chicago estava exposta, para <strong>que</strong>m<br />

quisesse ver. Quatro quarteirões para o norte fica o domínio dos latinos. Lá, quando se fala o<br />

inglês, é como a segunda língua. Quatro quarteirões para o sul fica a praia da Rua Oak, on<strong>de</strong><br />

os jovens executivos trocam, aos domingos, as roupas <strong>de</strong> grife<br />

por maiôs <strong>de</strong> grife. Mas entre estes dois pontos extremos, na Avenida<br />

North, a mistura é efervescente: homens <strong>de</strong> patins, protegidos com capacetes e joelheiras <strong>de</strong><br />

plástico, carregando rádios enormes; ciclistas sérios lutando por espaço nas calçadas; corpos<br />

brilhantes e sinuosos em exposição em uma quadra <strong>de</strong> vôlei. Mais corpos, bonitos, espalhados<br />

aleatoriamente pela praia. Ironicamente, a cena traz–me à mente uma da<strong>que</strong>las remontagens<br />

cinematográficas do horror <strong>de</strong> Hiroshima. Estes aqui, porém – com tiras <strong>de</strong> tecido enroladas<br />

em torno dos quadris, e a parte <strong>de</strong> cima da roupa <strong>de</strong>samarrada —, recebem sua radiação em<br />

doses medicinais.<br />

Alguns dos adoradores do sol, irritados, murmuraram palavras <strong>de</strong> maldição e se afastaram<br />

<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> cinqüenta pessoas reunidas à beira da água. Perto do "sexto semáforo ao norte<br />

da Avenida North", uma cerimônia estava prestes a começar. Aqui também as pessoas<br />

vestiam trajes <strong>de</strong> banho, embora não tão sumários. Eram membros da Igreja da Rua LaSalle,<br />

<strong>que</strong> fica no centro <strong>de</strong> Chicago, e estavam ali para uma cerimônia <strong>de</strong> batismo. As canções <strong>de</strong><br />

preparação – hinos tradicionais e algumas outras – soaram fracas, incapazes <strong>de</strong> fazer frente<br />

aos aparelhos <strong>de</strong> som, abundantes na praia.<br />

~ 46 ~


Treze candidatos ao batismo alinharam–se para falar, experimentando a areia com os pés,<br />

na tentativa <strong>de</strong> encontrar um lugar em <strong>que</strong> não estivesse tão <strong>que</strong>nte. Os outros se esforçavam<br />

para conseguir ouvir o <strong>que</strong> eles falavam. Um casal <strong>de</strong> jovens operadores da bolsa <strong>de</strong> valores<br />

afirmou seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar–se com Cristo mais publicamente. Uma <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

cubanos falou algumas palavras, vestida toda <strong>de</strong> branco. Um homem alto, bronzeado pelo sol,<br />

contou <strong>que</strong> fora agnóstico até quase seis meses antes da<strong>que</strong>le dia. Uma aspirante a cantora <strong>de</strong><br />

ópera admitiu <strong>que</strong> só tomara a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> se batizar na<strong>que</strong>la manhã, e pediu <strong>que</strong> orassem por<br />

ela, por<strong>que</strong> odiava água fria. (Temperatura do ar = 35°C. Temperatura da água do Lago<br />

Michigan = 13°C.)<br />

Uma senhora negra, <strong>de</strong> oitenta e cinco anos, pediu para ser batizada por imersão apesar do<br />

conselho <strong>de</strong> seu médico, <strong>que</strong> disse ser a<strong>que</strong>le o pedido mais estranho <strong>que</strong> já ouvira <strong>de</strong> um<br />

paciente. Um investidor em imóveis, uma grávida, um estudante <strong>de</strong> Medicina e alguns outros<br />

foram explicando, um após o outro, por <strong>que</strong> estavam ali na<strong>que</strong>le dia, em pé em uma fila na<br />

praia da Avenida North. Um dos candidatos ao batismo convertera–se ao cristianismo,<br />

<strong>de</strong>ixando uma seita hinduísta <strong>que</strong> funciona na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Berkcley, na Califórnia. Para<br />

os transeuntes – pessoas <strong>que</strong> passeavam com cachorros, policiais e corpos em exibição – a<br />

própria cerimônia do batismo <strong>de</strong>via assemelhar–se à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguma seita. Raramente se<br />

ouvem hinos e orações na praia em uma tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> domingo.<br />

Os candidatos participam <strong>de</strong> uma liturgia:<br />

- Você renuncia a Satanás e a todas as forças espirituais do mal <strong>que</strong> se rebelam contra<br />

Deus?<br />

- Sim, renuncio.<br />

- Renuncia aos po<strong>de</strong>res do mal <strong>de</strong>ste mundo, <strong>que</strong> corrompem e <strong>de</strong>stroem as criaturas <strong>de</strong><br />

Deus?<br />

PERTURBANDO O UNIVERSO<br />

Este bebê, nascido há poucos dias, Veio para esvaziar o aprisco <strong>de</strong> Satanás. Todo o<br />

inferno estremeceu em sua presença, Embora ele mesmo trema <strong>de</strong> frio.<br />

– Robert Southwell (século XVI)<br />

Nascimento<br />

No máximo um pe<strong>que</strong>no grupo <strong>de</strong> pastores testemunhou o drama da noite do nascimento.<br />

Pense nisto: A Encarnação, <strong>que</strong> dividiu a história em duas partes (fato <strong>que</strong> até nosso<br />

calendário reconhece, ainda <strong>que</strong> <strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong>), teve mais testemunhas animais do <strong>que</strong><br />

humanas.<br />

Houve, na verda<strong>de</strong>, um murmúrio <strong>de</strong> uma "boa catástrofe", uma explosão súbita <strong>de</strong><br />

grandiosida<strong>de</strong>. O Universo não po<strong>de</strong>ria permitir <strong>que</strong> a visita chegasse sem ser anunciada e,<br />

por um instante, o céu se iluminou em face da presença dos an;os. Todas as equipes <strong>de</strong> efeitos<br />

especiais <strong>de</strong> Hollywood <strong>de</strong>ter–se–iam, fascinadas, a contemplar a cena. Ainda assim, <strong>que</strong>m a<br />

viu? Camponeses analfabetos <strong>que</strong> não <strong>de</strong>ixaram nem ao menos o registro <strong>de</strong> seu nome.<br />

Morte<br />

O Calvário foi menos espetacular aos olhos. Ali, o milagre não estava no <strong>que</strong> aconteceu,<br />

mas no <strong>que</strong> <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> acontecer. O ritual horroroso <strong>de</strong> violência prosseguiu sem qual<strong>que</strong>r<br />

interferência. Os anjos permaneceram afastados na<strong>que</strong>le d;a, <strong>de</strong>tidos pelo próprio Filho <strong>de</strong><br />

Deus. Até mesmo o Pai voltou as costas, ou pelo menos parece <strong>que</strong> foi assim. Ele, também,<br />

~ 47 ~


permitiu <strong>que</strong> a história seguisse seu curso, <strong>de</strong>ixou <strong>que</strong> tudo <strong>que</strong> havia <strong>de</strong> errado no mundo<br />

triunfasse sobre o <strong>que</strong> era certo.<br />

"Salvou os outros; a si mesmo se salve", zombavam as pessoas. Desta vez, neste momento<br />

público, quando Deus parecia estar totalmente <strong>de</strong>samparado, as câmaras da história filmavam,<br />

registrando tudo. Gran<strong>de</strong> multidão assistiu a cada <strong>de</strong>talhe do julgamento, veredicto,<br />

crucificação e morte. Ninguém po<strong>de</strong>ria argumentar <strong>que</strong> Jesus não morreu.<br />

Depois da morte<br />

No momento em <strong>que</strong> ocorreu o Milagre dos Milagres, apenas duas testemunhas estavam<br />

presentes: guardas romanos ru<strong>de</strong>s, os homens es<strong>que</strong>cidos da Páscoa. Eles, e ninguém mais,<br />

presenciaram com olhos humanos a cena assombrosa do impossível feito possível. Ao mostrar<br />

um reflexo humano incurável, imediatamente correram a informar o tumulto às autorida<strong>de</strong>s.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, na<strong>que</strong>le mesmo dia, a ressurreição lhes parecia enevoada e remota, muitíssimo<br />

menos significativa do <strong>que</strong>, digamos, a pilha <strong>de</strong> moedas <strong>de</strong> prata <strong>que</strong> colocaram diante <strong>de</strong>les.<br />

Será <strong>que</strong> algum dia nos <strong>de</strong>dicamos a pensar no fato <strong>de</strong>, aparentemente, haverem as<br />

testemunhas da<strong>que</strong>le gran<strong>de</strong> dia morrido sem crer?<br />

* * *<br />

Natal, Sexta–feira Santa, Páscoa: três datas marcadas nos calendários <strong>de</strong> meta<strong>de</strong> do<br />

mundo. Apesar do suborno pago aos guardas romanos e da elaborada conspiração para<br />

escon<strong>de</strong>r o fato, a notícia espalhou–se. Um brilho <strong>de</strong> fé chegou para ficar e permanece até<br />

hoje.<br />

Algumas vezes Deus é criticado por não facilitar um pouco mais a fé, por não tornar–se<br />

mais óbvio. Uma análise mais atenta <strong>de</strong>stes três dias solenes po<strong>de</strong> jogar alguma luz sobre este<br />

enigma da fé. O primeiro, o nascimento <strong>de</strong> Cristo, foi um escândalo para todos, exceto para os<br />

poucos <strong>que</strong> participaram do evento e alguns convidados humil<strong>de</strong>s. O último acontecimento, a<br />

ressurreição, só foi visto por duas pessoas <strong>que</strong>, rapidamente, modificaram seu testemunho.<br />

Apenas o evento intermediário, a crucificação, aconteceu em público, para <strong>que</strong> o mundo<br />

inteiro visse.<br />

Como respon<strong>de</strong>r quanto à importância do significado da cruz? No momento em <strong>que</strong><br />

aconteceu, dificilmente alguém diria <strong>que</strong> foi um evento "milagroso". Que seria mais<br />

corri<strong>que</strong>iro do <strong>que</strong> outra execução terrível empreendida pelas tropas <strong>de</strong> ocupação romanas?<br />

Até hoje, o dia em <strong>que</strong> comemoramos o evento, a Sexta–feira Santa po<strong>de</strong> passar <strong>de</strong>spercebida,<br />

um mero prelúdio aos címbalos sonoros da Páscoa.<br />

Ainda assim, da perspectiva do cosmos, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>, digamos, um anjo <strong>que</strong><br />

estivesse bem atrás da estrela Andrômeda, a Sexta–feira Santa foi o milagre mais<br />

surpreen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> todos. É claro <strong>que</strong> a Encarnação foi única, mas havia alguns paralelos,<br />

embora esmaecidos. Seres celestiais entraram e saíram da região temporal em outras ocasiões<br />

anteriores: lembre–se do anjo <strong>que</strong> lutou com Jacó, dos <strong>que</strong> visitaram Abraão. Quanto à<br />

ressurreição, alguns poucos humanos voltaram da morte no tempo do Velho Testamento e<br />

Jesus provara claramente Seu domínio sobre a morte (lembre–se <strong>de</strong> Lázaro). Mas, quando o<br />

próprio Pilho <strong>de</strong> Deus morreu no Planeta Terra, nada semelhante a isto acontecera antes e<br />

nem acontecerá <strong>de</strong> novo. Até a natureza se abalou: o chão tremeu, túmulos se abriram e o céu<br />

ficou escuro.<br />

Mais do <strong>que</strong> a morte morreu na<strong>que</strong>la tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> sexta–feira. O Apóstolo Paulo disse, sobre<br />

a<strong>que</strong>le dia:<br />

E, <strong>de</strong>spojando os principados e as potesta<strong>de</strong>s, publicamente os expôs ao <strong>de</strong>sprezo,<br />

triunfando <strong>de</strong>les na cruz. (Colossenses 2:1 5)<br />

Quando Cristo <strong>de</strong>smascarou os po<strong>de</strong>res e as autorida<strong>de</strong>s nos quais homens e mulheres<br />

apostam a própria vida, o espetáculo foi público. A religião mais avançada da<strong>que</strong>les dias<br />

~ 48 ~


consi<strong>de</strong>rou–o culpado, e o governo mais avançado cumpriu a sentença. O gran<strong>de</strong> plano,<br />

cultivado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o É<strong>de</strong>n, foi cumprido em nome da pieda<strong>de</strong>, da justiça e da lei. Cristo triunfou,<br />

<strong>de</strong>smascarando esses po<strong>de</strong>res e autorida<strong>de</strong>s, mostrando <strong>que</strong> são falsos <strong>de</strong>uses <strong>que</strong> jamais<br />

po<strong>de</strong>rão manter suas promessas.<br />

A crucificação colocou os seguidores <strong>de</strong> Cristo, para sempre, contra os po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>ste<br />

mundo. Paulo afirmou:<br />

Por<strong>que</strong> tanto os ju<strong>de</strong>us pe<strong>de</strong>m sinais, como os gregos buscam sabedoria; mas nós<br />

pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os ju<strong>de</strong>us, loucura para os gentios. (I<br />

Coríntios 1:22,23)<br />

As coisas não mudaram muito nos dois mil anos <strong>que</strong> se passaram. Hoje, os cientistas<br />

procuram sinais e os políticos <strong>de</strong>sejam sabedoria; e, <strong>de</strong> vez em quando, a cruz assoma como<br />

escândalo.<br />

Os três eventos – nascimento, morte e ressurreição – causaram, certamente, abalos no<br />

cosmos. E ainda assim, acontecendo em meio a tanto mistério, com um grupo tão estranho <strong>de</strong><br />

testemunhas, dificultaram para sempre a fé. Proporcionaram apenas motivos suficientes para<br />

a<strong>que</strong>les <strong>que</strong>, como os discípulos, escolheram crer. Mas também forneceram razões suficientes<br />

para os <strong>que</strong>, como os guardas romanos, preferiram duvidar. Isto também não mudou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

tempo <strong>de</strong> Jesus até hoje.<br />

A ESTAÇÃO PERFUMADA<br />

Em 1988,1 ano antes do escândalo envolvendo o casal Bakker 3 , ouvi Tammy Faye fazer<br />

uma afirmação <strong>que</strong> me perturbou, mas eu não sabia por quê. Ela preenchia toda a tela <strong>de</strong> meu<br />

aparelho <strong>de</strong> televisão, com seus cílios longos cobertos pelo <strong>que</strong> uma vez foi <strong>de</strong>scrito,<br />

maldosamente, como uma máscara <strong>de</strong> força industrial. Ela falou, efusivamente:<br />

"Oh! A vida cristã é tããão boa <strong>que</strong> acredito em <strong>que</strong> a seguiria mesmo se nada do <strong>que</strong> os<br />

cristãos pregam fosse verda<strong>de</strong>!"<br />

Ela acabara <strong>de</strong> entrevistar pessoas <strong>que</strong> davam testemunhos inspiradores e é verda<strong>de</strong>,<br />

Tammy Faye, a vida cristã <strong>de</strong>scrita no programa parecia muito boa. Embora haja ficado<br />

comovido pelo entusiasmo <strong>de</strong>monstrado por ela, algo na <strong>de</strong>claração <strong>que</strong> fez — "se nada ...<br />

fosse verda<strong>de</strong>" – incomodou–me. Parecia haver uma coisa errada, mas não conseguia<br />

i<strong>de</strong>ntificar o problema.<br />

Por fim, localizei a fonte <strong>de</strong> meu <strong>de</strong>sconforto em I Coríntios 15, o capítulo mais<br />

importante na Bíblia sobre a ressurreição dos mortos. Nele, o Apóstolo Paulo firma sua fé na<br />

verda<strong>de</strong> da ressurreição <strong>de</strong> Jesus. Com ênfase notável ele afirma <strong>que</strong>, se Cristo não houvesse<br />

ressuscitado, sua pregação seria inútil, assim como a fé. Além disto, acrescenta, seríamos "os<br />

mais infelizes <strong>de</strong> todos os homens".<br />

Paulo, <strong>que</strong> era conhecido por sua coragem, ainda assim admite <strong>que</strong> jamais arriscaria sua<br />

vida por uma fé <strong>que</strong> carecesse do fundamento da verda<strong>de</strong>. Não haveria motivo para se colocar<br />

em perigo. Dificilmente valeria a pena enfrentar feras selvagens em Éfeso para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r uma<br />

ilusão. O hedonismo seria uma alternativa muito mais atraente, e Paulo, com fran<strong>que</strong>za,<br />

propõe: "Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, <strong>que</strong> amanhã morreremos." Ao<br />

contrário <strong>de</strong> muitos evangelistas da televisão, parece <strong>que</strong> ele esperava da vida cristã não a<br />

3<br />

Jim e Tammy Faye Bakker, teleevangelistas. Em 1989 Jim foi con<strong>de</strong>nado a 45 anos <strong>de</strong> prisão por ter <strong>de</strong>sviado as contribuições feitas pelos<br />

fiéis para o sustento <strong>de</strong> seu ministério, usando–as em benefício próprio. (N.da T.)<br />

~ 49 ~


saú<strong>de</strong> e a ri<strong>que</strong>za, mas sofrimento. Chegou a dizer a Timóteo: "Ora, todos quantos <strong>que</strong>rem<br />

viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos."<br />

Ao ler as reflexões <strong>de</strong> Paulo sobre as dificulda<strong>de</strong>s <strong>que</strong> enfrentou, não posso imaginá–lo<br />

concordando com a afirmativa <strong>de</strong> Tammy Faye sobre a vida cristã. Pego–me ainda<br />

<strong>que</strong>stionando <strong>que</strong> ela diria a mesma coisa hoje, com o mesmo entusiasmo.<br />

* * *<br />

Posteriormente, muito tempo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter visto Tammy Faye na televisão, <strong>de</strong>parei–me<br />

com mais uma passagem intrigante dos escritos <strong>de</strong> Paulo. Duas sentenças colocam lado a lado<br />

a exuberância feliz da televisão e o realismo duro <strong>de</strong> I Coríntios 15. Paulo escreveu à igreja <strong>de</strong><br />

Corinto:<br />

Por<strong>que</strong> nós somos para com Deus o bom perfume <strong>de</strong> Cristo, tanto nos <strong>que</strong> são salvos<br />

como nos <strong>que</strong> se per<strong>de</strong>m. Para com estes, cheiro <strong>de</strong> morte para morte; para com<br />

a<strong>que</strong>les, aroma <strong>de</strong> vida para vida.<br />

De acordo com Paulo, o mesmo perfume po<strong>de</strong> transmitir cheiros muito diferentes,<br />

variando conforme o nariz <strong>que</strong> o aspira. Para o mundo incrédulo, nossa fé carrega o mau<br />

cheiro da morte. Intromete–se, com a recordação incômoda da mortalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> outro mundo<br />

<strong>que</strong> julgará este. Entre os incrédulos os exemplos <strong>de</strong> negação pessoal e amor sacrificial<br />

provocam, no máximo, admiração pela "ética cristã". Mas, como disse Paulo, o hedonismo<br />

puro carrega um apelo muito mais forte. Pense no <strong>que</strong> atrai audiência receptiva: bilionários e<br />

estrelas <strong>de</strong> cinema <strong>que</strong> escrevem biografias <strong>que</strong> ven<strong>de</strong>m como água. Mas até hoje não vi na<br />

lista dos mais vendidos um livro contando a história do pastor <strong>de</strong> uma igreja <strong>de</strong> favela. E<br />

ocasionalmente a televisão exibe um documentário sobre a vida <strong>de</strong> um "santo" como, por<br />

exemplo, a Madre Teresa <strong>de</strong> Calcutá. A audiência <strong>de</strong>ste programa, porém, não po<strong>de</strong><br />

comparar–se à <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> auditório ou à <strong>de</strong> uma novela. Para estes, somos o cheiro<br />

da morte, o odor <strong>que</strong> pairava como uma nuvem sobre a Madre Teresa, literalmente, por<strong>que</strong> ela<br />

escolheu servir a Cristo no meio da<strong>que</strong>les <strong>que</strong> estavam à morte. A or<strong>de</strong>m religiosa <strong>que</strong> ela<br />

criou se <strong>de</strong>dica hoje a organizar hospitais para pacientes com Aids.<br />

A sabedoria da Cruz parece loucura para o mundo, e Paulo confessou <strong>que</strong> para ele também<br />

pareceria, se não fosse por um evento <strong>que</strong> aconteceu dois dias após a crucificação. Os crentes<br />

– as pessoas convencidas <strong>de</strong> <strong>que</strong> a ressurreição aconteceu <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> – recebem, por assim<br />

dizer, um novo conjunto <strong>de</strong> receptores olfativos. Para além do mau–cheiro da Sexta–feira<br />

Santa, po<strong>de</strong>m agora <strong>de</strong>tectar a fragrância surpreen<strong>de</strong>nte da nova vida. Por esta razão, e<br />

exclusivamente por ela, vale a pena perseguir a fé cristã. Ao enten<strong>de</strong>r o argumento <strong>de</strong> Paulo,<br />

se não houver ressurreição, não há motivo para dominar impulsos sexuais ou violentos. Por<br />

<strong>que</strong> se importar com os pobres e aleijados? Por <strong>que</strong> procurar a humilda<strong>de</strong> e o serviço<br />

enquanto outros buscam a satisfação <strong>de</strong> seu ego? Uma vida <strong>de</strong> tantas lutas será alvo <strong>de</strong><br />

pieda<strong>de</strong> e não <strong>de</strong> inveja. Ela exala o cheiro da morte, para rodos, exceto para os <strong>que</strong> possuem<br />

nariz santificado.<br />

* * *<br />

Escrevo este texto no início da Primavera, a estação perfumada, tempo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> regozijo<br />

para nós <strong>que</strong> moramos bem ao norte dos Estados Unidos. Caminhei durante vários meses por<br />

cima <strong>de</strong> montes <strong>de</strong> neve <strong>que</strong> servem como receptáculo para os <strong>de</strong>jetos dos cachorros, o lixo e<br />

as partículas do escapamento dos automóveis. Agora, o solo volta a ficar macio, e até nos<br />

terrenos vagos <strong>de</strong> Chicago sente–se a rica fragrância da terra. A Primavera está chegando, sua<br />

aproximação anunciada por milhares <strong>de</strong> aromas. O perfume <strong>de</strong>nso e adocicado dos lilases<br />

logo enfeitará a ruela sem graça <strong>que</strong> fica atrás <strong>de</strong> minha casa. Daqui a alguns meses, o<br />

perfume das rosas sobrepujará todos os outros ali. Depois, virá o cheiro penetrante das<br />

~ 50 ~


madressilvas <strong>que</strong> sempre me leva <strong>de</strong> volta às caminhadas <strong>de</strong> minha infância, pelas florestas da<br />

Geórgia.<br />

Não por acaso o calendário da Igreja, também, aproxima–se da estação perfumada (no<br />

hemisfério norte, a Páscoa é na Primavera). Os primeiros a celebrar a Páscoa combinaram a<br />

ressurreição da Terra com a <strong>de</strong> Cristo. Volto a pensar na metáfora <strong>de</strong> Paulo sobre o perfume:<br />

Por<strong>que</strong> nós somos para com Deus o bom perfume <strong>de</strong> Cristo, tanto nos <strong>que</strong> são salvos<br />

como nos <strong>que</strong> se per<strong>de</strong>m. Para com estes, cheiro <strong>de</strong> morte para morte; para com<br />

a<strong>que</strong>les, aroma <strong>de</strong> vida para vida.<br />

O cheiro da morte jamais se dissipa por completo. Paulo diz <strong>que</strong> morremos diariamente, e<br />

nossos atos <strong>de</strong> autonegação certamente serão vistos por alguns como mórbidos e até mesmo<br />

masoquistas. Mas, além <strong>de</strong>sse cheiro está o perfume <strong>de</strong> primavera da nova vida, e o único<br />

caminho <strong>que</strong> leva até lá é o da Cruz.<br />

Um cheiro, qual<strong>que</strong>r um, é uma mera pista, o anúncio vago <strong>de</strong> alguma coisa mais<br />

substancial. E é por isto <strong>que</strong> po<strong>de</strong>mos ser para Deus o aroma <strong>de</strong> Cristo. Por causa da Páscoa, e<br />

só por causa <strong>de</strong>la, o aroma dEle torna–se o nosso.<br />

Ouçam, cristãos. Conseguem ouvir o som do riso <strong>que</strong> está do outro lado da morte?<br />

Respirem profundamente e sintam um perfume como não há outro igual. Permitam <strong>que</strong> ele<br />

encha seus pulmões nesta Páscoa.<br />

4<br />

Esta cida<strong>de</strong> dos Estados Unidos é consi<strong>de</strong>rada a cida<strong>de</strong> típica, e afirma–se <strong>que</strong> a opinião <strong>de</strong> seus habitantes, em geral, representa a <strong>de</strong> todo o<br />

país. Há um dito: "Antes <strong>de</strong> lançar um novo produto, pergunte a si mesmo o <strong>que</strong> as pessoas <strong>de</strong> Peoria achariam <strong>de</strong>le."<br />

~ 51 ~<br />

4<br />

ENTRE OS CRENTES<br />

• Deveríamos sentir alegria ou tristeza com o ressurgimento do cristianismo evangélico<br />

nos Estados Unidos? E o país: <strong>de</strong>veria estar alegre? ou triste?<br />

• Será <strong>que</strong> o mundo <strong>de</strong>veria ser capaz <strong>de</strong> dizer se uma pessoa é cristã só <strong>de</strong> olhar para<br />

ela? Como é a aparência <strong>de</strong> um cristão? E como <strong>de</strong>veria ser? Por <strong>que</strong> preferimos ler sobre as<br />

pessoas com as quais não <strong>de</strong>sejamos parecer?<br />

• Por <strong>que</strong> a Bíblia é tão veemente contra a idolatria? Que torna este costume exótico tão<br />

ofensivo? Existem idólatras em Peoria 4 , Illinois?<br />

• Há mórmons em Peoria, Illinois? A aparência dos mórmons é diferente da dos<br />

cristãos? Deveria ser?<br />

• Por <strong>que</strong> tão poucos cristãos <strong>de</strong>monstram alegria? Uma pessoa alegre seria mais<br />

parecida com a Madre Teresa ou com a Madonna?<br />

• Por <strong>que</strong> os escritores mo<strong>de</strong>rnos e os programas <strong>de</strong> televisão atuais <strong>de</strong>monstram tanta<br />

obsessão com a sexualida<strong>de</strong> humana, enquanto <strong>que</strong> na igreja ela mal é mencionada, exceto<br />

em momentos <strong>de</strong> advertência?<br />

• Por <strong>que</strong> muitos cristãos se sentem mais culpados do <strong>que</strong> perdoados? Como é sentir–se<br />

perdoado? Se o Evangelho consiste em graça, aceitação e perdão, por <strong>que</strong> os conselheiros<br />

têm tantos clientes cristãos, confusos com culpa, ódio a si mesmos e espírito <strong>de</strong> crítica?


O PODER DO AMOR E O AMOR AO PODER<br />

Em seu livro In Season, Out of Season (A Tempo e Fora <strong>de</strong> Tempo), Jac<strong>que</strong>s Ellul,<br />

sociólogo francês já falecido, refletiu sobre sua vida, longa e produtiva. Avaliando o passado,<br />

percebeu <strong>que</strong> seus pensamentos e suas ações seguiam em trajetórias paralelas. Em uma<br />

trajetória ativista e secular, trabalhou como pioneiro na Resistência Francesa, no governo <strong>de</strong><br />

sua cida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>dicou–se a causas ambientais. Em outra, mais espiritual, expressou sua fé<br />

cristã em sua vida <strong>de</strong>vocional e servindo como pastor e professor no seminário. Ainda assim,<br />

em um tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>silusão, admitiu <strong>que</strong> nunca conseguiu unir as duas trajetórias com sucesso.<br />

A <strong>de</strong>cepção <strong>de</strong> Ellul cresceu nos corredores do po<strong>de</strong>r, durante seus mandatos como lí<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>nominacional e como político. Suas experiências levaram–no a perguntar–se algum dia<br />

haveria mudanças no mundo a partir das instituições. Questionava se alguma estrutura po<strong>de</strong>ria<br />

transmitir o amor e a compaixão cristãos. Ao ler sobre a luta <strong>de</strong>le, comecei a pensar sobre o<br />

imenso abismo <strong>que</strong> separa o po<strong>de</strong>r do amor.<br />

se conseguíssemos registrar a história da Igreja cristã em um gráfico simples e revelador<br />

como os dos relatórios dos mercados <strong>de</strong> ações, veríamos picos tremendos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na Igreja.<br />

A princípio, a fé cristã conquistou o Oriente Próximo, a seguir Roma e <strong>de</strong>pois a Europa toda.<br />

Finalmente, espalhou–se até o Novo Mundo e África e Ásia. É estranho, porém, mas os picos<br />

<strong>de</strong> sucesso e po<strong>de</strong>r terreno assinalam também os picos da intolerância e da cruelda<strong>de</strong><br />

religiosa, as manchas na história da igreja das quais nos envergonhamos muito hoje. Os<br />

conquistadores <strong>que</strong> converteram o Novo Mundo na ponta da espada, os exploradores cristãos<br />

<strong>que</strong> colaboraram com o tráfico <strong>de</strong> escravos na África, ainda sentimos a repercussão <strong>de</strong>stes<br />

erros.<br />

Durante toda a história cristã, o amor e o po<strong>de</strong>r coexistem em conflito. Por esta razão,<br />

preocupo–me com o crescimento do po<strong>de</strong>r no movimento evangélico. Houve tempo em <strong>que</strong><br />

ou nos ignoravam ou zombavam <strong>de</strong> nós. Hoje, os evangélicos são mencionados<br />

freqüentemente nas notícias e são bajulados por todos os políticos sensatos. Vários<br />

movimentos políticos surgiram com características claramente evangélicas. Consi<strong>de</strong>ro esta<br />

tendência ao mesmo tempo encorajadora e alarmante. E por <strong>que</strong> alarmante? Apesar dos<br />

méritos <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada <strong>que</strong>stão – <strong>que</strong>r se discuta a legalização do aborto ou a preservação<br />

ambiental –, os movimentos políticos trazem o risco <strong>de</strong> colocar sobre si a capa do po<strong>de</strong>r <strong>que</strong><br />

asfixia o amor. Um movimento, por sua natureza, estabelece barreiras, faz distinções, julga. O<br />

amor, pelo contrário: <strong>de</strong>rruba barreiras, supera distinções e conce<strong>de</strong> a graça.<br />

Com toda certeza, não <strong>de</strong>fendo uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> avestruz, ou seja: escon<strong>de</strong>r–se das <strong>que</strong>stões<br />

<strong>que</strong> confrontam os cristãos em uma socieda<strong>de</strong> secular. Estes assuntos <strong>precisam</strong> <strong>de</strong> ser<br />

encarados, tratados, e é necessário legislar sobre eles. Mas as palavras <strong>de</strong> Paulo continuam a<br />

me perseguir:<br />

Ainda <strong>que</strong> eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria<br />

como o metal <strong>que</strong> soa ou como o sino <strong>que</strong> tine. E ainda <strong>que</strong> tivesse o dom <strong>de</strong> profecia,<br />

e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda <strong>que</strong> tivesse toda a fé, <strong>de</strong><br />

maneira tal <strong>que</strong> transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.<br />

De alguma forma, <strong>precisam</strong>os <strong>de</strong> encarar o po<strong>de</strong>r com humilda<strong>de</strong>, temor e amor ar<strong>de</strong>nte<br />

por a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> estarão sob nossa autorida<strong>de</strong>, a não ser <strong>que</strong> não nos importemos em ver o<br />

po<strong>de</strong>r ser minado, como aconteceu com lí<strong>de</strong>res religiosos bem–intencionados <strong>que</strong> nos<br />

prece<strong>de</strong>ram.<br />

Jesus não disse <strong>que</strong> todos saberiam <strong>que</strong> somos seus discípulos se aprovássemos leis justas,<br />

dominássemos a moralida<strong>de</strong>, restaurássemos a <strong>de</strong>cência familiar e governássemos com<br />

~ 52 ~


integrida<strong>de</strong>. O <strong>que</strong> Ele disse é <strong>que</strong> saberiam <strong>que</strong> somos discípulos dEle se nos amássemos uns<br />

aos outros (João 13:35). Fez essa afirmativa na noite anterior à sua morte. Em nenhuma outra<br />

situação o estilo contrastante do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus e do po<strong>de</strong>r humano foi tão evi<strong>de</strong>nte. O<br />

humano, representado pelo po<strong>de</strong>roso Império Romano e a força das autorida<strong>de</strong>s religiosas<br />

judaicas, colidiram <strong>de</strong> frente com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus. Surpreen<strong>de</strong>ntemente, na<strong>que</strong>le momento<br />

Deus escolheu, <strong>de</strong>liberadamente, o caminho do <strong>de</strong>samparo. Po<strong>de</strong>ria ter convocado <strong>de</strong>z mil<br />

anjos, mas não o fez. Ao olhar para a<strong>que</strong>la noite sombria, e também para outras noites<br />

sombrias <strong>de</strong> toda a história, fico maravilhado com a mo<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>monstrada por Deus.<br />

Acredito em <strong>que</strong> Deus se contém por um motivo: Ele sabe da limitação inerente a<br />

qual<strong>que</strong>r forma <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A força po<strong>de</strong> fazer tudo, exceto o mais importante: não po<strong>de</strong><br />

suscitar o amor. Em um campo <strong>de</strong> concentração, como tantos testemunharam <strong>de</strong> formas<br />

tocantes, os guardas têm amplos po<strong>de</strong>res e autorida<strong>de</strong> para forçar qual<strong>que</strong>r atitu<strong>de</strong> dos presos.<br />

Po<strong>de</strong>m fazer com <strong>que</strong> a pessoa renuncie a seu Deus, amaldiçoe a família, trabalhe <strong>de</strong> graça,<br />

coma excrementos humanos, mate e enterre o amigo mais chegado ou até mesmo o próprio<br />

filho. Tudo isto está sob o domínio dos guardas. Só uma coisa escapa: o amor. Eles não<br />

po<strong>de</strong>m forçar a pessoa a amá–los.<br />

O amor não funciona <strong>de</strong> acordo com as regras do po<strong>de</strong>r, e jamais po<strong>de</strong>rá ser forçado.<br />

Neste fato po<strong>de</strong>mos perceber o fio da razão por trás do uso (ou não) <strong>que</strong> Deus faz do po<strong>de</strong>r. A<br />

Ele só interessa uma coisa <strong>de</strong> nossa parte: nosso amor. Foi para isto <strong>que</strong> nos criou. E não há<br />

<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> onipotência, por mais grandiosa <strong>que</strong> seja, <strong>que</strong> consiga fazer nascer o amor.<br />

O único modo foi se esvaziar completamente e se unir a nós, morrendo em nosso lugar. A<br />

partir da<strong>que</strong>le momento, passou a existir o amor.<br />

Qual<strong>que</strong>r criança <strong>que</strong> freqüente uma Escola Dominical sabe recitar a teologia mais<br />

profunda: "Deus amou o mundo <strong>de</strong> tal maneira <strong>que</strong> <strong>de</strong>u seu único Filho." E, quando chegamos<br />

ao âmago <strong>de</strong> tudo, percebemos <strong>que</strong> isto é o evangelho cristão, uma <strong>de</strong>monstração não <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r, mas <strong>de</strong> amor.<br />

(111)<br />

perficiais. Logo <strong>que</strong> começou a acompanhar a<strong>que</strong>le homem–criança, <strong>de</strong> fôlego curto,<br />

percebeu a violência, rivalida<strong>de</strong> e competição, a obsessão <strong>que</strong> existia em seu anseio pelo<br />

sucesso na vida acadêmica e no ministério cristão. Com Adam ele apren<strong>de</strong>u quê:<br />

O <strong>que</strong> nos torna humanos não é a mente, mas o coração, não é a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar,<br />

mas a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar. Qual<strong>que</strong>r pessoa <strong>que</strong> se refira ao Adam como um vegetal<br />

ou animal <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> enxergar o mistério sagrado: ele é totalmente capaz <strong>de</strong> amar e <strong>de</strong><br />

ser amado.<br />

Com Adam, Henri Nouwen apren<strong>de</strong>u – aos poucos, em meio à dor e à vergonha – <strong>que</strong> o<br />

caminho para o alto é voltar–se para baixo.<br />

* * *<br />

Minha carreira <strong>de</strong> jornalista <strong>de</strong>u–me a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrevistar as mais diversas<br />

pessoas. Olhando para trás, posso, grosso modo, separá–las em dois grupos: estrelas e servos.<br />

O primeiro grupo é composto por atletas conhecidos, atores e atrizes <strong>de</strong> cinema, musicistas,<br />

escritores famosos, personalida<strong>de</strong>s da televisão e outros semelhantes a estes. São os <strong>que</strong><br />

dominam as revistas e os programas <strong>de</strong> televisão. Todos os bajulam, esquadrinhando as<br />

minúcias <strong>de</strong> sua vida: as roupas <strong>que</strong> vestem, o <strong>que</strong> comem, os exercícios físicos a <strong>que</strong> se<br />

<strong>de</strong>dicam, as pessoas a <strong>que</strong>m amam, a pasta <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte <strong>que</strong> usam.<br />

Ainda assim, preciso dizer <strong>que</strong>, em minha experiência limitada, percebo <strong>que</strong> nossos<br />

"ídolos" são um grupo <strong>de</strong> pessoas tão infelizes quanto quais<strong>que</strong>r outras. A maioria enfrenta<br />

problemas no casamento ou já se separou. Quase todas são totalmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da<br />

~ 53 ~


psicoterapia. E, em uma ironia profunda, esses heróis maiores do <strong>que</strong> a própria vida parecem<br />

ser atormentados por uma insegurança pessoal incurável.<br />

Passei algum tempo com servos também. Pessoas como o Dr. Paul Brand, <strong>que</strong> trabalhou,<br />

durante vinte anos, entre os excluídos – os mais pobres dos pobres, leprosos da região rural da<br />

Índia. Ou profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>que</strong> abandonaram empregos com salários bem elevados para<br />

trabalharem com o Ministério Men<strong>de</strong>nhall em uma cida<strong>de</strong> atrasada no Estado do Mississippi.<br />

Ou membros <strong>de</strong> organismos <strong>de</strong> auxílio à Somália, Sudão, Etiópia, Bangla<strong>de</strong>sh e outros<br />

<strong>de</strong>pósitos do sofrimento humano. Ou PhDs espalhados por todas as florestas na América do<br />

Sul, traduzindo a Bíblia para línguas obscuras.<br />

Eu estava preparado para honrar e admirar esses servos, para elevá–los como exemplos<br />

inspiradores. Não estava pronto, porém, para invejá–los. Mas, refletindo nos dois grupos,<br />

colocando–os lado a lado, estrelas e servos, os últimos emergem, claramente, como os mais<br />

favorecidos e agraciados. Trabalham durante muitas horas para ganhar pouco dinheiro, não<br />

recebem aplausos. "Desperdiçam" seus talentos e conhecimentos entre os pobres e os<br />

ignorantes. Mas, <strong>de</strong> alguma forma, per<strong>de</strong>ndo a vida eles a encontraram. Receberam "a paz <strong>que</strong><br />

não é <strong>de</strong>ste mundo", como <strong>de</strong>screveu Henri Nouwen, paz encontrada não <strong>de</strong>ntro do prédio<br />

majestoso <strong>de</strong> Harvard, mas ao lado da cama do <strong>de</strong>scoor<strong>de</strong>nado Adam.<br />

* * *<br />

Assim como muitos outros cristãos, estremeço quando ouço o tom grave, jubiloso, <strong>que</strong><br />

freqüentemente caracteriza a cobertura <strong>que</strong> a mídia faz dos escândalos entre os cristãos.<br />

Vejam, estes cristãos não são melhores – na verda<strong>de</strong> são piores – do <strong>que</strong> as outras pessoas.<br />

Sofro ao ver os relatórios das contribuições a quase todas as organizações cristãs, <strong>que</strong><br />

diminuem dramaticamente a cada novo escândalo. Consi<strong>de</strong>ro <strong>que</strong> as doações <strong>que</strong> faço para<br />

missões, como World Vision, American Leprosy Mission, World Concern, Wycliffe e<br />

Mcn<strong>de</strong>nhall Ministries são os investimentos <strong>que</strong> produzem o maior retorno.<br />

Talvez um dos problemas por traz dos escândalos dos "astros" cristãos seja <strong>que</strong><br />

distorcemos o reino <strong>de</strong> Deus ao nos <strong>de</strong>dicarmos a ser estrelas em lugar <strong>de</strong> sermos servos.<br />

Como Henri Nouwen disse:<br />

Mantenha seus olhos na<strong>que</strong>le <strong>que</strong> se recusa a transformar pedras em pão, pular <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s alturas ou governar com po<strong>de</strong>r temporal. Mantenha seus olhos no <strong>que</strong> diz:<br />

"Bem–aventurados os pobres, os mansos, os <strong>que</strong> choram e os <strong>que</strong> têm fome e se<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

justiça; bem–aventurados são os misericordiosos, os pacificadores e os perseguidos<br />

por causa da justiça". ... Mantenha seus olhos na<strong>que</strong>le <strong>que</strong> é pobre com os pobres,<br />

fraco com os fracos e rejeitado com os rejeitados. Este é a fonte <strong>de</strong> toda a paz.<br />

Em outras palavras: mantenha seus olhos no servo, não nas estrelas. A frase <strong>de</strong> Jesus <strong>que</strong> é<br />

mais repetida nos Evangelhos é:<br />

A<strong>que</strong>le <strong>que</strong> quiser salvar a sua vida, perdê–la–á, e <strong>que</strong>m per<strong>de</strong>r a sua vida por amor <strong>de</strong><br />

mim, achá–la–á.<br />

É verda<strong>de</strong>, o caminho para o alto é voltar–se para baixo.<br />

~ 54 ~


AJA COMO SE DEUS AINDA ESTIVESSE VIVO<br />

É difícil ler a Bíblia sem <strong>de</strong>parar–se com o assumo da idolatria: ela é, <strong>de</strong> longe, o tópico<br />

mais discutido. Para o leitor mo<strong>de</strong>rno, porém, uma pergunta insistente cerca estas passagens:<br />

Por <strong>que</strong> toda esta confusão em torno da idolatria? Qual a gran<strong>de</strong> atração dos ídolos? Por <strong>que</strong><br />

os hebreus, por exemplo, abandonavam Javé, o Deus <strong>que</strong> os libertara da escravidão no Egito,<br />

e iam atrás <strong>de</strong> troncos <strong>de</strong> árvores esculpidos e estátuas <strong>de</strong> bronze?<br />

Descobri alguns aspectos <strong>de</strong>sta <strong>que</strong>stão ao visitar a Índia, on<strong>de</strong> a adoração aos ídolos é<br />

muito comum. As maiores atrações nas cida<strong>de</strong>s são templos erigidos em honra a algum dos<br />

milhares <strong>de</strong> <strong>de</strong>uses: <strong>de</strong>uses macacos, <strong>de</strong>uses elefantes, <strong>de</strong>usas eróticas, <strong>de</strong>usas cobras e até<br />

mesmo uma <strong>de</strong>usa varíola. Lá observei <strong>que</strong> a idolatria ten<strong>de</strong> a produzir dois resultados<br />

contraditórios: magia e trivialida<strong>de</strong>.<br />

Para os <strong>de</strong>votos, a idolatria adiciona um to<strong>que</strong> <strong>de</strong> magia à vida. Os hindus acreditam <strong>que</strong><br />

os <strong>de</strong>uses controlam todos os acontecimentos, incluindo <strong>de</strong>sastres naturais, como monções,<br />

terremotos, doenças e aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito. E necessário manter estas forças po<strong>de</strong>rosas<br />

satisfeitas a qual<strong>que</strong>r custo. Mas o <strong>que</strong> agrada um <strong>de</strong>us <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu caráter, e os <strong>de</strong>uses<br />

hindus po<strong>de</strong>m ser terríveis e violentos. A maior cida<strong>de</strong> da Índia, Calcutá, adotou a <strong>de</strong>usa<br />

assassina Kali, <strong>que</strong> geralmente é retratada com uma guirlanda formada <strong>de</strong> cabeças<br />

ensangüentadas em torno da cintura. A <strong>de</strong>voção a <strong>de</strong>uses assim po<strong>de</strong>, facilmente, levar a um<br />

medo paralisante e a uma escravidão virtual aos caprichos das entida<strong>de</strong>s.<br />

Outros hindus, menos <strong>de</strong>votos, adotam outra atitu<strong>de</strong>. Tratam os <strong>de</strong>uses como trivialida<strong>de</strong>s,<br />

quase como amuletos <strong>de</strong> boa sorte. Um motorista <strong>de</strong> táxi coloca uma estátua pe<strong>que</strong>na <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>us macaco, enfeitada com flores, no painel <strong>de</strong> seu carro. se alguém lhe perguntar ele dirá<br />

<strong>que</strong> ora para o <strong>de</strong>us, pedindo proteção, mas <strong>de</strong>pois, rindo, acrescentará <strong>que</strong> todos sabem como<br />

é o trânsito da Índia.<br />

As duas reações mo<strong>de</strong>rnas à idolatria ilustram o <strong>que</strong> alarmava tanto os profetas <strong>de</strong> Israel.<br />

Por um lado, o motorista <strong>de</strong> táxi mostra como a idolatria po<strong>de</strong> tornar a <strong>de</strong>ida<strong>de</strong> trivial. Talvez<br />

o <strong>de</strong>us aju<strong>de</strong>, talvez não, mas não há motivo para não seguir as instruções <strong>de</strong>le. Alguns<br />

israelitas adotaram essa atitu<strong>de</strong>, vagando, <strong>de</strong>spreocupados, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us para outro. Nenhum<br />

outro comportamento po<strong>de</strong>ria ser mais diverso do <strong>que</strong> o exigido por Javé, o Deus verda<strong>de</strong>iro.<br />

Ele escolhera os hebreus para serem reino <strong>de</strong> profetas, povo especial, separado. Fez ironia<br />

quanto ao absurdo <strong>de</strong> esculpir uma árvore para fazer um <strong>de</strong>us e <strong>de</strong>pois usar os ramos da<br />

mesma planta para cozinhar uma refeição (Isaías 44:16). Ele é o Senhor do Universo e não um<br />

amuleto <strong>de</strong> boa sorte.<br />

Com muita freqüência os ídolos do Oriente Médio, porém, assumiam formas mais<br />

sinistras, mais semelhantes à da <strong>de</strong>usa do mal <strong>de</strong> Calcutá. Os seguidores <strong>de</strong> Baal, por<br />

exemplo, o adoravam através <strong>de</strong> relações sexuais mantidas com as prostitutas no templo, ou<br />

até mesmo matando bebês como sacrifício. Essas atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> adoração não po<strong>de</strong>m,<br />

absolutamente, coexistir com a <strong>de</strong>voção a Javé. O <strong>de</strong>us Baal–Zebub, cujo nome significa<br />

"senhor das moscas", acabou tornando–se sinônimo do próprio Satanás (veja Mateus 10:25).<br />

Por qual razão ídolos sinistros como Baal mostraram–se tão irresistíveis? Assim como<br />

garotos vindos da fazenda se maravilham com a vida na cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, os israelitas chegaram,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 40 anos vagueando no <strong>de</strong>serto, a uma terra <strong>de</strong> estágio cultural muito superior ao<br />

seu. Ao se estabelecerem e começarem com sua nova ocupação agrícola, olharam para uma<br />

<strong>de</strong>ida<strong>de</strong> dos cananeus, Baal, buscando ajuda no controle das condições climáticas. Em outras<br />

palavras: procuraram um atalho mágico. De modo semelhante, quando um exército po<strong>de</strong>roso<br />

se levantou e ameaçou suas fronteiras, os hebreus tomaram emprestados alguns dos ídolos<br />

favoritos da<strong>que</strong>le exército, precavendo–se para o caso <strong>de</strong> sua própria religião não lhes trazer o<br />

sucesso militar. Os ídolos se tornaram em uma fonte ilusória <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, lugar alternativo on<strong>de</strong><br />

investir a fé e a esperança.<br />

~ 55 ~


O culto a imagens esculpidas só <strong>de</strong>sapareceu <strong>de</strong> Israel <strong>de</strong>pois <strong>que</strong> Deus tomou a medida<br />

extrema <strong>de</strong> <strong>de</strong>smantelar a nação. Mas outras formas <strong>de</strong> idolatria, mais sutis, persistiram, e<br />

persistem até hoje. De acordo com o Novo Testamento, esta prática não envolve,<br />

necessariamente, imagens <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira ou <strong>de</strong> pedra. Qual<strong>que</strong>r coisa <strong>que</strong> nos tente a nos<br />

afastarmos do Deus verda<strong>de</strong>iro po<strong>de</strong> funcionar como um ídolo.<br />

Na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, dominada por apelos à imagem e ao status, os ídolos são<br />

abundantes. Não é surpreen<strong>de</strong>nte <strong>que</strong> a idolatria produza em nós hoje os mesmos resultados<br />

<strong>que</strong> produziu nos israelitas. Alguns <strong>de</strong>uses – Mamon, beleza, sucesso – apelam à nossa se<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> mágica. No nível humano, operam maravilhas, conce<strong>de</strong>ndo–nos um tipo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r mágico<br />

sobre a vida <strong>de</strong> outras pessoas, bem como sobre a nossa. Preocupo–me mais, porém, com os<br />

<strong>de</strong>uses falsos <strong>que</strong> fogem à i<strong>de</strong>ntificação fácil, a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> ten<strong>de</strong>m para a trivialida<strong>de</strong> e não<br />

para a mágica. Na idolatria clássica, um símbolo visível expressava a mudança <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong>. A<br />

maior parte dos ídolos atuais é invisível, mais difícil <strong>de</strong> se <strong>de</strong>tectar.<br />

Que ídolos mo<strong>de</strong>rnos fazem Deus parecer trivial? Que ten<strong>de</strong> a reduzir a surpresa, a paixão<br />

e a vitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meu relacionamento com Deus? Na maior parte do tempo, não tenho a<br />

consciência <strong>de</strong> escolher entre um <strong>de</strong>us e Deus; as alternativas não se apresentam claramente.<br />

Em lugar disto, <strong>de</strong>scubro <strong>que</strong> Deus foi <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> lado por causa <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> pe<strong>que</strong>nas<br />

distrações. Um carro <strong>que</strong> precisa <strong>de</strong> conserto, planos <strong>de</strong> última hora para uma viagem <strong>que</strong> se<br />

aproxima, uma torneira <strong>que</strong> pinga, o casamento <strong>de</strong> um amigo, essas distrações, meras<br />

trivialida<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong>m levar a uma forma <strong>de</strong> es<strong>que</strong>cimento <strong>que</strong> se assemelha à idolatria em sua<br />

forma mais perigosa. A vida ocupada, e incluo aqui toda a ocupação causada pela religião,<br />

po<strong>de</strong> excluir Deus. Confesso <strong>que</strong> em alguns dias me encontro com pessoas, trabalho, tomo<br />

<strong>de</strong>cisões, converso ao telefone, tudo sem pensar em Deus se<strong>que</strong>r uma vez.<br />

Uma amiga minha foi pega <strong>de</strong> surpresa por um cético. Depois <strong>de</strong> ouvir toda a explicação<br />

<strong>de</strong>la sobre a fé, ele disse:<br />

"Mas você não age como se cresse <strong>que</strong> Deus está vivo."<br />

Eu tento transformar a acusação <strong>de</strong>le em uma pergunta: Será <strong>que</strong> o modo como ajo mostra<br />

<strong>que</strong> Deus está vivo? É uma boa pergunta, <strong>que</strong> fica no âmago <strong>de</strong> toda idolatria, e <strong>que</strong> <strong>de</strong>vo<br />

fazer a mim mesmo todos os dias.<br />

MÓRMONS, FARISEUS E OUTRAS PESSOAS BOAS<br />

Alguns mórmons dizem <strong>que</strong> se converteram ao visitar Salt Lake City, se<strong>de</strong> da religião, e é<br />

compreensível <strong>que</strong> seja assim. É difícil não se impressionar com o centro agitado da cida<strong>de</strong>.<br />

As ruas são limpas e bem conservadas, e os cruzamentos equipados com aparelhos eletrônicos<br />

<strong>que</strong> apitam para guiar os pe<strong>de</strong>stres cegos. Todos parecem morar em uma casa saída <strong>de</strong> um<br />

filme, e o aspecto das crianças é tão limpo <strong>que</strong> elas parecem brilhar. É necessário procurar<br />

muito para encontrar algum tipo <strong>de</strong> contracultura, e este estado é separado da Califórnia (on<strong>de</strong><br />

abunda a contracultura) apenas pela impieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nevada (Estado on<strong>de</strong> os cassinos são<br />

liberados). Talvez as neuroses existam abaixo da superfície, mas externamente a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Utah (Estado on<strong>de</strong> fica Salt Lake City) parece funcionar.<br />

Há alguns anos, os mórmons gastaram milhões <strong>de</strong> dólares em uma série <strong>de</strong> panfletos<br />

evangelísticos <strong>que</strong> apregoavam as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>les mesmos. O primeiro, doze páginas<br />

inseridas na revista Seleções, <strong>de</strong>screvia seu estilo <strong>de</strong> vida saudável e correto. Para os<br />

mórmons, a família e o lar vêm em primeiro lugar, afirmava o panfleto:<br />

Provável mente os vizinhos admirarão esta família, por sua competência tranqüila e<br />

autoconfiança. Geralmente os mórmons são invejados pelo relacionamento chegado<br />

~ 56 ~


dos membros da família e as ativida<strong>de</strong>s saudáveis <strong>que</strong> realizam juntos. ... Pense na<br />

família Osmond 5 : os oito<br />

Faltam as págs. (120-122)<br />

dos sobreviventes dos campos <strong>de</strong> concentração e alguns cobertos <strong>de</strong> feridas vermelhas.<br />

Ouvindo os gritos, não conseguia compreen<strong>de</strong>r como alguém pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sejar esse <strong>de</strong>stino<br />

para outro ser humano.<br />

Os manifestantes respon<strong>de</strong>ram <strong>de</strong> formas diversas aos cristãos. Os mais briguentos<br />

jogavam beijos ou gritavam <strong>de</strong> volta: "Fanáticos! Que vergonha vocês são!" Um grupo <strong>de</strong><br />

lésbicas fez com <strong>que</strong> membros da imprensa rissem, gritando em uníssono: "Queremos a<br />

esposa <strong>de</strong> vocês!"<br />

Dentre os manifestantes, pelo menos 3 mil se i<strong>de</strong>ntificavam com vários grupos religiosos:<br />

movimento Dignida<strong>de</strong> Católica, grupo Integrida<strong>de</strong> Episcopal e, até mesmo, alguns mórmons e<br />

adventistas do sétimo dia. Mais <strong>de</strong> mil marcharam sob a ban<strong>de</strong>ira da Igreja Comunitária<br />

Metropolitana (ICM), <strong>de</strong>nominação <strong>que</strong> professa uma teologia bem ortodoxa, exceto quanto à<br />

homossexualida<strong>de</strong>. Este último grupo respon<strong>de</strong>u <strong>de</strong> forma tocante aos cristãos cercados por<br />

eles: pararam, bem firmes, voltaram o rosto para eles, e cantaram algo mais ou menos assim:<br />

"Jesus ama vocês, sabemos com certeza, por<strong>que</strong> a Bíblia assim o diz."<br />

As fortes ironias presentes na<strong>que</strong>la cena <strong>de</strong> confronto me acompanharam até muito tempo<br />

<strong>de</strong>pois <strong>que</strong> saí <strong>de</strong> Washington. De um<br />

lado, os cristãos "justos", <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo a pura doutrina (nem mesmo o Conselho Nacional <strong>de</strong><br />

Igrejas consi<strong>de</strong>rara a ICM apta a ser aceita como membro). Do outro lado, os "pecadores",<br />

muitos dos quais admitiram abertamente sua prática homossexual. Ainda assim, um lado<br />

<strong>de</strong>stilou ódio e o outro cantou o amor <strong>de</strong> Jesus.<br />

* * *<br />

Outra cena, com semelhança assombrosa com o embate em Washington, veio à minha<br />

mente. João 8 conta <strong>de</strong> uma ocasião em <strong>que</strong> Jesus enfrentou dois grupos opostos. (Embora o<br />

texto não esteja presente nas primeiras cópias do livro <strong>de</strong> João, provavelmente a história<br />

registra um evento verda<strong>de</strong>iro.) <strong>de</strong> um lado, estavam os fariseus e professores da lei<br />

"corretos". Do outro, uma pecadora con<strong>de</strong>nada, mulher pega em flagrante adulterando. Os<br />

fariseus arrastaram–na até o Templo para criar uma armadilha para Jesus. Seguiria Ele a lei <strong>de</strong><br />

Moisés, or<strong>de</strong>ran–<br />

Falta a pág. (124)<br />

CRESCENDO COMO FUNDAMENTALISTA<br />

Durante minha infância e adolescência, no Sul dos Estados Unidos, freqüentei igrejas do<br />

tipo <strong>que</strong> geralmente se classifica como fundamentalista. Percebo <strong>que</strong> o termo é usado <strong>de</strong><br />

muitas maneiras, algumas boas e outras ruins. Para ajudar a dar uma idéia mais específica<br />

quanto aos fundamentalistas <strong>de</strong> minha igreja, <strong>de</strong>vo assinalar <strong>que</strong> se preocupavam com o<br />

menor traço <strong>de</strong> tendência liberal <strong>que</strong> i<strong>de</strong>ntificassem mesmo na mais conservadora das igrejas.<br />

Além disto, tínhamos uma característica bem negativa quando o assunto era minorias raciais.<br />

Ouvi, regularmente, pastores dizerem no púlpito <strong>que</strong> os negros — e não era este o termo<br />

usado para i<strong>de</strong>ntificá–los – eram subumanos, amaldiçoados por Deus para serem servos.<br />

5 Grupo musical <strong>de</strong> muito sucesso nos Estados Unidos, formado por uma mesma família, exemplo <strong>de</strong> união. (N. da T.)<br />

~ 57 ~


Quase todos em minha igreja acreditavam <strong>que</strong> Martin Luther King era um "comunista <strong>de</strong><br />

carteirinha". (Será <strong>que</strong> eles realmente carregam carteirinhas?)<br />

E assim, quando um amigo me pediu para preencher um <strong>que</strong>stionário <strong>de</strong> uma pesquisa<br />

sobre "Adultos Criados no Fundamentalismo", achei <strong>que</strong> estava totalmente qualificado para<br />

servir <strong>de</strong> objeto <strong>de</strong> pesquisa. Primeiro havia uma série <strong>de</strong> afirmativas para dar minha opinião,<br />

escolhendo entre "concordo plenamente, concordo, discordo, discordo plenamente e não sei".<br />

Eis algumas das afirmativas:<br />

• Tenho dificulda<strong>de</strong> em me aproximar <strong>de</strong> outras pessoas.<br />

• Deus é cheio <strong>de</strong> caprichos.<br />

• Meu corpo é feio.<br />

• O mundo é um lugar ruim.<br />

• Tenho dificulda<strong>de</strong> em me divertir.<br />

• Os sentimentos são ruins.<br />

• Sempre julgo os outros.<br />

• Minha tendência é pensar em termos <strong>de</strong> isto ou aquilo, branco ou preto, certo ou errado.<br />

• Sexo é ruim.<br />

• Tenho medo <strong>de</strong> estar indo para o inferno.<br />

Preenchi respeitosamente todas as <strong>respostas</strong>, nestas afirmativas e em outras (não estou<br />

contando isto para impressionar alguém), e <strong>de</strong>pois passei para a parte das perguntas às quais<br />

<strong>de</strong>via dar minhas próprias <strong>respostas</strong>. Foi aí <strong>que</strong> tive algumas surpresas.<br />

A culpa tem sido um problema para você? De <strong>que</strong> tipo <strong>de</strong> coisas você se sente culpado?<br />

Consi<strong>de</strong>ra–se uma pessoa inclinada a julgar os outros? Sim, a culpa tem sido um problema<br />

para mim. Fui criado sentindo–me culpado por ativida<strong>de</strong>s como patinar (parece muito com<br />

dançar), jogar boliche (algumas pistas servem bebidas alcoólicas) e ler o jornal do domingo.<br />

Hoje, posso fazer qual<strong>que</strong>r <strong>de</strong>stas coisas com minha consciência limpa, mas sinto–me<br />

culpado, com muita freqüência, por outras coisas. E ainda assim, enquanto preenchia o<br />

<strong>que</strong>stionário, percebi <strong>que</strong> não guardo ressentimentos contra a culpa. Minha resposta à última<br />

parte da pergunta talvez expli<strong>que</strong> por quê: Sim, consi<strong>de</strong>ro–me uma pessoa inclinada a julgar<br />

os outros, e è uma das coisas pelas quais me sinto culpado. A culpa é <strong>que</strong> me faz consciente<br />

do julgamento, para não mencionar muitas outras falhas.<br />

No <strong>de</strong>correr dos anos, enquanto minha lista pessoal <strong>de</strong> motivos <strong>de</strong> culpa mudava<br />

drasticamente, minha atitu<strong>de</strong> frente à própria culpa passou da irritação para a apreciação.<br />

Como o fundamentalismo afetou sua auto–estima? De <strong>que</strong> maneira você se sente superior<br />

ou inferior às outras pessoas? Minha mente voltou–se para cenas <strong>de</strong> profunda vergonha. Em<br />

pé, diante da turma <strong>de</strong> Discurso do 2 grau, tentando explicar por <strong>que</strong> não po<strong>de</strong>ria ir assistir a<br />

uma versão cinematográfica <strong>de</strong> Otelo. Assentado em um ônibus espalhafatoso, vermelho e<br />

branco, do Clube Bíblico Juventu<strong>de</strong> para Cristo. O veículo, equipado com um piano, circulava<br />

bem <strong>de</strong>vagar em torno da escola, suscitando zombarias. Ouvindo um professor <strong>de</strong> biologia<br />

explicar sarcasticamente para a turma por <strong>que</strong> meu trabalho <strong>de</strong> vinte páginas não conseguira<br />

<strong>de</strong>struir a obra <strong>de</strong> 592 <strong>de</strong> Darwin, a Origem das Espécies.<br />

Vergonha, alienação e inferiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finiram minha adolescência. E mesmo assim<br />

pergunto–me se causaram algum dano permanente. Po<strong>de</strong> ser <strong>que</strong> eu ainda sofra com algumas<br />

marcas psicológicas, mas as alternativas não seriam muito melhores. Penso nos garotos ricos e<br />

mimados <strong>de</strong> meu colégio. Cresceram não em vergonha ou inferiorida<strong>de</strong>, mas em arrogância e<br />

superiorida<strong>de</strong>. No colégio eu os invejava. Hoje tenho pena <strong>de</strong>les. Sim, sofri "prejuízos" em<br />

face do fundamentalismo. Mas, afinal, meus prejuízos operaram <strong>de</strong> tal forma <strong>que</strong> me tornei<br />

"pobre <strong>de</strong> espírito", condição <strong>que</strong> Jesus <strong>de</strong>screveu como pré–requisito para herdar o reino <strong>de</strong><br />

Deus.<br />

Que lhe ensinaram sobre as emoções? Que efeito você acredita <strong>que</strong> sua criação<br />

fundamentalista teve em sua habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> emocional com alguém?<br />

Como você acha <strong>que</strong> o fundamentalismo moldou o <strong>que</strong> você apren<strong>de</strong>u sobre sexualida<strong>de</strong>?<br />

~ 58 ~


Tudo bem, admito <strong>que</strong> houve vários danos nesta área. Durante a juventu<strong>de</strong>, sofria <strong>de</strong> uma<br />

curiosa esquizofrenia quanto às emoções. Por um lado, aprendi na igreja a reprimi–las:<br />

sentimentos negativos, como a raiva, levam ao pecado; os positivos, como alegria e<br />

felicida<strong>de</strong>, resultam em orgulho, pecado <strong>de</strong> outro ripo. E ao mesmo tempo precisava <strong>de</strong><br />

controlar–me constantemente para não me <strong>de</strong>ixar levar pelo emocionalismo nos cultos.<br />

Preletores a<strong>de</strong>ptos do reavivamento, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> colocarem à nossa frente visões do fogo do<br />

inferno, levavam–nos a repetir vezes sem conta frases <strong>de</strong>coradas até <strong>que</strong> a última centelha<br />

interior <strong>de</strong> medo e culpa fossem apagadas.<br />

Mesmo o efeito danoso da diferença entre as duas abordagens das emoções, porém, foi<br />

parcialmente sanado. Emoções ressequidas, sentimento profundo <strong>de</strong> alienação e tendência à<br />

introspecção – o impacto residual na realida<strong>de</strong> ajudou minha carreira <strong>de</strong> escritor, <strong>que</strong> se baseia<br />

na posição <strong>de</strong> um observador <strong>que</strong> <strong>de</strong> vez em quando penetra nas situações mas, na maior parte<br />

do lempo, permanece à margem dos acontecimentos.<br />

A pesquisa prosseguia <strong>de</strong>sta forma por cinco páginas, e terminava pedindo <strong>que</strong> eu<br />

resumisse os efeitos positivos do fundamentalismo em minha vida, e <strong>de</strong>pois os negativos.<br />

Como positivos, apresentei os seguintes:<br />

• Conhecimento bíblico.<br />

• Reconhecimento da serieda<strong>de</strong> das escolhas individuais e do comportamento.<br />

• Percepção <strong>de</strong> Deus.<br />

Como efeitos negativos, listei:<br />

• Falta <strong>de</strong> conhecimento cultural.<br />

• Tendência a julgar os outros.<br />

• Isolamento social e poucas experiências <strong>de</strong> vida.<br />

Não levei muito tempo para i<strong>de</strong>ntificar qual das duas listas se mostrara mais importante na<br />

formação da pessoa <strong>que</strong> sou hoje. Na realida<strong>de</strong>, aconteceu uma coisa engraçada enquanto<br />

respondia à pesquisa. Minha expectativa era a <strong>de</strong> <strong>que</strong>, levando–me a reviver momentos<br />

dolorosos, a pesquisa traria à tona raiva e ressentimento ainda não resolvidos. Mas, ao chegar<br />

ao fim, fui acometido, principalmente, por um sentimento <strong>de</strong> gratidão pela herança <strong>que</strong> recebi.<br />

Os discípulos <strong>de</strong> Jesus lhe perguntaram:<br />

"Quem pecou, este ou seus pais, para <strong>que</strong> nascesse cego?"<br />

A resposta dEle foi, ao mesmo tempo, incompleta e profundamente satisfatória:<br />

"Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para <strong>que</strong> se manifestem nele as obras <strong>de</strong><br />

Deus."<br />

Esta é uma boa lição para todos nós, <strong>que</strong> temos "prejuízos" – até mesmo o causado pelo<br />

fundamentalismo. Percebi, ao completar o <strong>que</strong>stionário, <strong>que</strong> meu sentimento <strong>de</strong> gratidão ia até<br />

à graça curadora <strong>de</strong> Deus, e não até o fundamentalismo. Para mim, uma prova <strong>de</strong>sta<br />

maravilhosa graça tem sido sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> penetrar em um sistema <strong>que</strong>, às vezes, parece<br />

visar, especificamente, à perpetuação da não–graça.<br />

MORBIDAMENTE SAUDÁVEL<br />

William James, filósofo <strong>de</strong> Harvard e psicólogo, realizou um escrutínio científico nas<br />

afirmativas <strong>de</strong> alcoólicos convertidos, santos, evangelistas e crentes comuns. Publicou suas<br />

conclusões em 1902, num livro <strong>que</strong> se tornou um clássico: Ás Varieda<strong>de</strong>s da Experiência<br />

Religiosa. Depois <strong>de</strong> entrevistar muitos cristãos e <strong>de</strong> ler muitos diários, James chegou a duas<br />

classificações globais: "mente saudável" e "mente mórbida".<br />

~ 59 ~


A religião da mente saudável estava em voga na época em <strong>que</strong> James viveu, quando a<br />

virada do século coroara uma era <strong>de</strong> paz e prosperida<strong>de</strong> como nenhuma outra antes. O slogan<br />

da<strong>que</strong>le tempo era: Todos os dias, <strong>de</strong> todas as maneiras, o mundo continua melhorando.<br />

Muitos crentes pensavam <strong>que</strong> o reino prometido por Cristo na Terra havia começado ou ia<br />

começar brevemente. Algumas das manifestações mais vigorosas da mente saudável<br />

floresceram bem nas vizinhanças <strong>de</strong> Harvard, com os brâmanes <strong>de</strong> Boston <strong>que</strong> <strong>de</strong>ram uma<br />

base religiosa ao otimismo liberal <strong>de</strong> Ralph Waldo Emerson. Novas seitas, animadas, como a<br />

Ciência Cristã, apareceram em cena, cheias <strong>de</strong> promessas.<br />

James contrastou estes otimistas liberais com os <strong>de</strong> mente mórbida, os evangélicos,<br />

representados pelos reavivalistas Jonathan Edwards, John Wesley e Charles Finney. Estes<br />

mal–humorados viam pecado em tudo, <strong>de</strong>screviam o mundo em termos apocalípticos e<br />

<strong>de</strong>claravam <strong>que</strong> a única esperança era "nascer <strong>de</strong> novo", experiência <strong>que</strong> oferecia salvação ao<br />

mundo <strong>de</strong>caído.<br />

Depois <strong>de</strong> pesquisar os dois grupos, os otimistas <strong>de</strong> mente saudável e os reavivalistas <strong>de</strong><br />

mente mórbida, James acabou surpreen<strong>de</strong>ntemente impressionado com o segundo grupo. Ele<br />

compreendia totalmente o apelo dos <strong>de</strong> mente saudável: diminuíam ou negavam o mal, a<br />

doença e a morte. Mas não conseguiam explicar todos os fatos, concluiu ele. Até mesmo os<br />

maiores profetas <strong>de</strong>ste grupo praticavam o mal, adoeciam e morriam, como todas as outras<br />

pessoas. Pelo menos os reavivalistas <strong>de</strong>screviam um mundo <strong>que</strong> existia realmente, crivado <strong>de</strong><br />

pecado e sofrimento.<br />

Ao ler o estudo clássico <strong>de</strong> William James à luz dos tempos mo<strong>de</strong>rnos, não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

imaginar a <strong>que</strong> conclusões se chegaria com uma pesquisa semelhante hoje. Será <strong>que</strong> houve<br />

alguma mudança drástica nas categorias religiosas <strong>que</strong> James <strong>de</strong>finiu?<br />

Quem são os <strong>de</strong> mente mórbida hoje? Parece <strong>que</strong> os otimistas liberais <strong>de</strong>ram lugar aos<br />

pessimistas liberais, com muita rapi<strong>de</strong>z. Os políticos liberais balançam a cabeça e apontam o<br />

<strong>de</strong>do. acusando a crise da Previdência Social, a proliferação <strong>de</strong> armas e o efeito estufa.<br />

Enquanto isto, os conservadores tentam convencer as pessoas <strong>de</strong> <strong>que</strong> o país floresce. Da<br />

mesma forma, na religião, as igrejas mais fortes sempre trazem à tona assuntos sombrios,<br />

problemáticos, como conflitos mundiais e armas nucleares. Dentro da tradição evangélica,<br />

também, o padrão se mantém: quanto mais liberal, mais sombrio.<br />

Mesmo quando os otimistas liberais (perdoe–me os rótulos<br />

- não conheço outra maneira <strong>de</strong> discutir tais assuntos) abandonaram o otimismo, uma nova<br />

categoria <strong>de</strong> evangélicos se apresentou para carregar a ban<strong>de</strong>ira. Hoje temos o pensamento<br />

positivo, o pensamento <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> e a teologia da prosperida<strong>de</strong><br />

- mais impetuosa em seu otimismo do <strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r sonho <strong>de</strong> Emerson –, tudo sendo<br />

pregado dos púlpitos evangélicos e aparecendo na lista dos livros mais vendidos entre os<br />

crentes. Para confirmar a verda<strong>de</strong> do <strong>que</strong> afirmo, sintonize um dos programas <strong>de</strong> televisão<br />

evangélicos bem–sucedidos e compare a mensagem com a mente saudável <strong>de</strong>scrita por<br />

William James.<br />

Des<strong>de</strong> 1902 houve uma reviravolta chocante. Os <strong>de</strong> mente saudável viraram mórbidos e<br />

os mórbidos transformaram–se em saudáveis. Pergunto–me o <strong>que</strong> aconteceu em nosso século<br />

para causar essa reviravolta. Será <strong>que</strong> o mundo melhorou tanto assim? Poucos concordariam<br />

com isto. Será <strong>que</strong> houve tantas brechas notáveis na fé <strong>que</strong> hoje os cristãos na América<br />

(embora, é estranho, não no Sudão, no Irã, na China e no Sri Lanka) estão, <strong>de</strong> alguma forma,<br />

acima dos acasos da sorte? Alguns diriam <strong>que</strong> uma fé nova e vigorosa surgiu, na verda<strong>de</strong>, nos<br />

últimos tempos, mas a maioria dos pastores <strong>que</strong> conheço não relata diminuição súbita no<br />

número <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> câncer, divórcio ou abuso <strong>de</strong> menores entre os membros <strong>de</strong> suas<br />

congregações.<br />

Que, então, causou essa reviravolta? Aqui, confesso, preciso <strong>de</strong> lutar contra uma onda <strong>de</strong><br />

ceticismo. Pergunto–me se a teologia evangélica se adaptou a um status econômico e social<br />

mais elevado. Será <strong>que</strong> nossa fé se tornou mais semelhante à mente saudável por<strong>que</strong> acontece<br />

~ 60 ~


<strong>que</strong> hoje, neste momento da história, somos mais bem–sucedidos? Será <strong>que</strong> viramos<br />

conservadores por<strong>que</strong> temos mais a conservar?<br />

William James morreu em 1910, e não passou muito tempo antes <strong>que</strong> a mente saudável<br />

também chegasse ao fim. Como ele previra, os otimistas não haviam pensado em todos os<br />

fatos. Foram esmagados pelo peso terrível da I Guerra Mundial, fato monstruoso <strong>que</strong> trouxe à<br />

luz as falhas da visão <strong>que</strong> tinham da humanida<strong>de</strong> e do mundo. Espero e oro para <strong>que</strong> um fato<br />

ainda mais sinistro não aconteça para sufocar a tendência da mente saudável <strong>que</strong> vem<br />

varrendo a fé evangélica nas últimas décadas.<br />

5<br />

VOZES INDISPENSÁVEIS<br />

• Como escrever ou filiar <strong>de</strong> teologia em uma socieda<strong>de</strong> <strong>que</strong> continua a usar as palavras<br />

teológicas, mas com o sentido alterado?<br />

• Se os cristãos têm suas próprias editoras, livrarias, revistas, propagandas e re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

televisão, como os não cristãos terão acesso aos produtos cristãos?<br />

• Que é um produto cristão?<br />

• Por <strong>que</strong> balançamos a cabeça e lamentamos a escassez <strong>de</strong> cristãos na arte e na cultura,<br />

sendo <strong>que</strong> os melhores romancistas do século XIX (Tolstoy e Dostoievski) e dois dos melhores<br />

poetas do século XX (T. S. Eliot e W H. Au<strong>de</strong>n) eram cristãos confessos?<br />

• Quantos <strong>de</strong> nós lêem estes quatro autores hoje?<br />

• De qual<strong>que</strong>r forma, como justificar o tempo <strong>de</strong>sperdiçado na leitura da ficção e da<br />

poesia nos dias atuais?<br />

• Por <strong>que</strong> continuamos a balançar a cabeça lamentando a escassez <strong>de</strong> cristãos na arte e<br />

na cultura, embora um dos melhores autores <strong>de</strong>ste século escreva como um Amós ou Isaías<br />

da atualida<strong>de</strong>? Por <strong>que</strong> tão poucos cristãos lêem Aleksandr Solzhenitsyn?<br />

• Que nós lemos?<br />

• Por <strong>que</strong> tanta arte <strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> aparece em circunstâncias <strong>de</strong> opressão? Qual é o<br />

melhor ambiente para um escritor, quanto a alimentar seu talento: uma socieda<strong>de</strong> livre, cheia<br />

<strong>de</strong> cristãos, ou uma socieda<strong>de</strong> hostil, repleta <strong>de</strong> não cristãos?<br />

• Como escrever ou falar <strong>de</strong> teologia em uma socieda<strong>de</strong> <strong>que</strong> nem mesmo conhece os<br />

termos teológicos? Como seria um livro cristão em uma cultura completamente secular,<br />

digamos, o Japão?<br />

• Que os japoneses lêem?<br />

• Que as pessoas pensarão <strong>de</strong> nossos produtos cristãos contemporâneos daqui a 50<br />

anos?<br />

EFEITOS COVARDES DA DEFLAÇÃO<br />

Todos os meses os negociadores <strong>de</strong> Wall Street esperam, com o fôlego suspenso, os<br />

números atualizados do problema sorrateiro da inflação. Mas um problema oposto atinge os<br />

escritores: a moeda das palavras sofre, há séculos, uma <strong>de</strong>flação inexorável. Ao estudar–se<br />

~ 61 ~


Etimologia, mesmo superficialmente, é possível verificar o fenômeno, num padrão contínuo:<br />

palavras per<strong>de</strong>ndo seu sentido com o passar do tempo. Elas regri<strong>de</strong>m, raramente progri<strong>de</strong>m.<br />

Tomemos como exemplo tolo. Ninguém <strong>de</strong>seja ser chamado <strong>de</strong> tolo, <strong>que</strong> significa<br />

insensato, ridículo. Ironicamente, a palavra original significava uma pessoa feliz, abençoada<br />

com boa sorte. De modo semelhante, a palavra idiota era um <strong>de</strong>rivado respeitável <strong>de</strong> um<br />

termo grego <strong>que</strong> <strong>de</strong>screvia uma pessoa peculiar em <strong>de</strong>terminado sentido, reservada e não<br />

conformista. Com o passar do tempo a palavra tornou–se tão peculiar (outro termo <strong>que</strong> sofreu<br />

<strong>de</strong>flação), <strong>que</strong> ninguém <strong>que</strong>r ser um idiota.<br />

Ou então pense em sincero. Há divergência entre os estudiosos, mas alguns acreditam <strong>que</strong><br />

esta palavra <strong>de</strong>riva do uso feito por escultores da frase latina sin cera <strong>que</strong> significa, é claro,<br />

"sem cera". Algumas vezes a pessoa <strong>que</strong> trabalhava o mármore usava, com habilida<strong>de</strong>, a cera<br />

para remendar pe<strong>que</strong>nos riscos ou arranhaduras em sua obra <strong>de</strong> arte. Um trabalho sem falhas,<br />

honesto, <strong>que</strong> não re<strong>que</strong>ria estes disfarces, era chamado <strong>de</strong> sin cere, sem cera. Hoje, em dia,<br />

porém, ven<strong>de</strong>dores e políticos contratam consultores para apren<strong>de</strong>rem a parecer "sinceros". A<br />

sincerida<strong>de</strong> transformou–se em um tipo <strong>de</strong> imagem, característica menor, adquirida, <strong>que</strong> não<br />

guarda qual<strong>que</strong>r relação com o <strong>que</strong> realmente se passa no interior inseguro e duvidoso da<br />

pessoa.<br />

A <strong>de</strong>flação das palavras constitui–se em um enorme problema para os escritores, pastores<br />

e todos quantos <strong>de</strong>las <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m para expressar idéias cristãs, já <strong>que</strong> os termos teológicos<br />

per<strong>de</strong>ram tanta força quanto os outros. Por <strong>que</strong> tantas novas versões da Bíblia surgiram neste<br />

século? As boas e velhas palavras <strong>de</strong> João Ferreira <strong>de</strong> Almeida não se mantiveram intactas em<br />

nossa era <strong>de</strong> <strong>de</strong>flação lingüística.<br />

Por exemplo: pena significava misericórdia ou clemência. É um termo <strong>de</strong>rivado da mesma<br />

raiz <strong>de</strong> "pieda<strong>de</strong>", e <strong>de</strong>screvia alguém <strong>que</strong>, como Deus, estendia sua mão para ajudar os<br />

menos afortunados. Com o passar do tempo, a ênfase passou do doador para o objeto da pena,<br />

visto como fraco ou inferior. Deterioração semelhante aconteceu com carida<strong>de</strong>. Quando os<br />

tradutores da Bíblia avaliaram o conceito <strong>de</strong> amor ágape, expresso com tanta eloqüência em I<br />

Coríntios 13, <strong>de</strong>cidiram adotar "carida<strong>de</strong> (*)6 " para transmitir a forma mais elevada <strong>de</strong> amor.<br />

Mas <strong>que</strong> tristeza, ambas palavras <strong>de</strong>svalorizaram–se tremendamente. As pessoas <strong>que</strong><br />

tentavam <strong>de</strong>monstrar pena ou carida<strong>de</strong> aparentemente não estavam à altura dos padrões<br />

elevados <strong>de</strong> suas palavras, e a língua adaptou–se à situação. Hoje ouvem–se protestos: "Não<br />

tenha pena <strong>de</strong> mim!" e "Não <strong>que</strong>ro sua carida<strong>de</strong>!"<br />

Dentre as palavras <strong>que</strong> sofreram <strong>de</strong>flação, minha predileta é cretino. Na Medicina, o<br />

cretinismo <strong>de</strong>screve uma condição grotesca <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiência da tireói<strong>de</strong>, e os sintomas são o<br />

crescimento atrofiado, <strong>de</strong>formida<strong>de</strong>, bócio, pele escamosa e (ai!) idiotia. Esta <strong>de</strong>ficiência foi<br />

i<strong>de</strong>ntificada pela primeira vez nos Alpes e nos Pirinéus, on<strong>de</strong> a água <strong>de</strong> beber não continha<br />

iodo suficiente. Gradualmente, a palavra cretino passou a abarcar "qual<strong>que</strong>r pessoa com uma<br />

<strong>de</strong>ficiência mental perceptível". E esta injúria completa <strong>de</strong>rivou do termo latino christianus.<br />

Ai, ai, este assunto <strong>de</strong> etimologia está chegando perto <strong>de</strong>mais <strong>de</strong> nós.<br />

As poucas palavras santificadas <strong>que</strong> restaram foram contaminadas no uso mo<strong>de</strong>rno. Ouça<br />

algumas músicas populares sobre o amor, e tente encontrar alguma semelhante entre a letra da<br />

música e o <strong>que</strong> está <strong>de</strong>finido em I Coríntios 13 7 . Salvação sobreviveu, mas principalmente nos<br />

centros <strong>de</strong> reciclagem <strong>de</strong> lixo. A cultura mo<strong>de</strong>rna chega a usar termos como renovado para<br />

carros usados, perfumes e times <strong>de</strong> futebol. É triste, por<strong>que</strong> os cristãos não criam novas<br />

palavras fortes para expressar o significado <strong>que</strong> se per<strong>de</strong>u das antigas. Nossos neologismos<br />

são emprestados, em sua maioria, <strong>de</strong> psicólogos, <strong>de</strong> modo <strong>que</strong> ouvimos incessantemente sobre<br />

"amiza<strong>de</strong>" ou "relacionamento pessoal" com Deus, embora, como e. S. Lewis aponta em The<br />

6<br />

Nota do editor – A versão em língua portuguesa <strong>que</strong> utiliza a palavra carida<strong>de</strong> e a Revista e Corrigida <strong>de</strong> João Ferreira <strong>de</strong> Almeida, da<br />

Imprensa Bíblica Brasileira.<br />

7<br />

Nota do editor – O cantor e compositor Renato Russo, utilizou–se <strong>de</strong>ste recurso em uma <strong>de</strong> suas músicas, distorcendo o sentido do texto<br />

bíblico.<br />

~ 62 ~


Four Loves (Os Quatro Amores), estas imagens <strong>de</strong>screvam com exatidão apenas uma ínfima<br />

parte do encontro entre o Criador e a criatura.<br />

Algumas palavras, porém, mantiveram seu brilho, e po<strong>de</strong>m conseguir sobreviver mais<br />

algumas décadas. Uma <strong>de</strong>las infiltrou–se tão amplamente <strong>que</strong> seria difícil matá–la sem<br />

gran<strong>de</strong>s lutas. Graça, palavra teológica maravilhosa, tem sido adotada, <strong>de</strong>savergonhadamente,<br />

por todos os segmentos da socieda<strong>de</strong>. Muitas pessoas ainda "dão graças" antes das refeições,<br />

reconhecendo <strong>que</strong> o pão cotidiano é um presente <strong>de</strong> Deus. Somos agra<strong>de</strong>cidos pela simpatia<br />

<strong>de</strong> alguém, gratificados por notícias boas, agraciados quando bem–sucedidos, graciosos ao<br />

receber amigos. Um compositor adiciona notas para graça à música, <strong>que</strong> os bons pianistas<br />

apren<strong>de</strong>m a tocar graciosamente.<br />

A indústria editorial secular chega bem perto <strong>de</strong> preservar o sentido original, conce<strong>de</strong>ndo<br />

edições <strong>de</strong> graça. Ao assinar uma revista por 1 ano, a pessoa po<strong>de</strong> continuar recebendo alguns<br />

exemplares <strong>de</strong>pois <strong>que</strong> a assinatura expirar. São edições <strong>de</strong> graça, isentas <strong>de</strong> pagamento, não<br />

merecidas, enviadas na tentativa <strong>de</strong> levar a pessoa a fazer nova assinatura. São grátis, aí está a<br />

palavra <strong>de</strong> novo.<br />

Minha frase favorita do termo graça ocorre no latim: persona non grata. Uma pessoa <strong>que</strong><br />

não é bem–vinda, não é aceita em uma nação, ou em um partido, é, literalmente, uma pessoa<br />

sem graça. Sempre <strong>que</strong> ouço estas sílabas melodiosas penso em um trecho <strong>de</strong> 1 Pedro, on<strong>de</strong> o<br />

apóstolo tenta encontrar palavras <strong>que</strong> impressionem os leitores com o esplendor <strong>de</strong> seu<br />

chamado. Ele diz:<br />

Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido ...<br />

Vós, <strong>que</strong> em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo <strong>de</strong> Deus; <strong>que</strong> não<br />

tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia. (2:9,10)<br />

De persona non grata a escolhidos <strong>de</strong> Deus, objetos <strong>de</strong> graça imerecida. Se estes ricos<br />

conceitos permanecerem, talvez ainda haja esperança também para a língua <strong>que</strong> falamos.<br />

IMAGINAÇÃO CONVERTIDA<br />

C. S. Lewis disse, sobre o pregador e escritor <strong>de</strong> ficção escocês George MacDonald:<br />

Não sei se conheço outro escritor <strong>que</strong> parece estar tão perto ... do Espírito do próprio<br />

Cristo. ... Suponho <strong>que</strong> nunca escrevi um livro no qual não o citasse.<br />

Lewis afirmava <strong>que</strong> a obra Phantastes, <strong>de</strong> MacDonald, estimulara sua própria "conversão<br />

da imaginação". Ao ter em vista o gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong> obras escritas em tributo a e. S. Lewis,<br />

está mais do <strong>que</strong> na hora <strong>de</strong> prestarmos alguma atenção no homem <strong>que</strong> ele dizia abertamente<br />

ser seu mestre.<br />

MacDonald combinou admiravelmente sua vida "secular" como romancista e homem <strong>de</strong><br />

letras com seu chamado original <strong>de</strong> pregador do Evangelho. Entre seus amigos, havia pessoas<br />

notáveis, como Thackeray, Dickens, Arnold e Tennyson. Em uma viagem aos Estados<br />

Unidos, em 1873, fez palestras, sempre com enorme audiência, e conheceu Emerson,<br />

Longfellow, Whitticr, Holmes e Harriet Beecher Stowe. Chegou a discutir com MarkTwain a<br />

possibilida<strong>de</strong> da co–autoria <strong>de</strong> um romance, como <strong>de</strong>fesa contra a pirataria dos direitos<br />

autorais <strong>que</strong> ambos enfrentavam. (Só se po<strong>de</strong> imaginar os resultados <strong>que</strong> adviriam <strong>de</strong> tal<br />

trabalho conjunto!) Outros amigos incluíam pintores da era anterior a Raphael, sua<br />

~ 63 ~


patrocinadora Lady Byron, o excêntrico crítico John Ruskin e o matemático <strong>de</strong> Oxford<br />

Charles Dodgson (Lewis Carroll).<br />

(140)<br />

Phantastes e Lilith. Mas a análise <strong>de</strong> Raeper per<strong>de</strong> o vigor frente ao perfil literário<br />

convincente apresentado por e. S. Lewis no prefácio à antologia <strong>que</strong> escreveu sobre<br />

MacDonald. Lewis o exalta não pelo estilo – como muitas pessoas da era vitoriana, caía em<br />

moralida<strong>de</strong> açucarada — mas pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar mitos. E, para Lewis, a percepção<br />

espiritual vista superficialmente nas novelas, mas bem evi<strong>de</strong>nte nos diários e sermões<br />

compilados e incomparável.<br />

Ainda é possível ler sermões <strong>de</strong> MacDonald, em forma con<strong>de</strong>nsada e mais agradável a<br />

leitores mo<strong>de</strong>rnos, graças a duas compilações feitas por Rolland Hein, intituladas Life<br />

Essentials Creation in Christ. A carreira pastoral <strong>de</strong> MacDonald foi aci<strong>de</strong>ntada. Seus<br />

paroquianos afastaram–no do púlpito em face <strong>de</strong> sua crença no sentido <strong>de</strong> o inferno servir<br />

como uma espécie <strong>de</strong> purgatório <strong>que</strong> levasse a reconciliação final <strong>de</strong> toda a criação. As<br />

autorida<strong>de</strong>s da igreja também se preocupavam com sua crença <strong>de</strong> terem os animais um lugar<br />

no céu e <strong>que</strong>stionavam a influência sutil do i<strong>de</strong>alismo alemão em sua teologia.<br />

Próximo ao final <strong>de</strong> sua vida, porém, MacDonald conseguiu superar essas controvérsias e<br />

era bem recebido e amado como preletor convidado em muirás igrejas inglesas. Ao reagir<br />

contra o calvinismo rígido <strong>de</strong> sua juventu<strong>de</strong> (assim como seu personagem Robert Falco–ner,<br />

ele estava "o tempo todo sentindo <strong>que</strong> Deus estava prestes a precipitar–se contra ele, se<br />

cometesse qual<strong>que</strong>r erro") apresentava Deus como Pai amoroso e misericordioso. Um<br />

relacionamento idílico com seu próprio pai viúvo alimentou tal imagem. Sobre Deus, ele dizia<br />

<strong>que</strong> não era possível <strong>que</strong> uma criatura O conhecesse como Ele é e não <strong>de</strong>sejasse estar com<br />

Ele. Confiante em <strong>que</strong> a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus algum dia se espelharia por todo o Universo,<br />

praticava uma espécie <strong>de</strong> "fatalismo otimista" <strong>que</strong> aparece, por exemplo, em uma carta <strong>que</strong><br />

escreveu para sua esposa, visando a consolá–la por um sofrimento: "Bem, este mundo e todo<br />

o começo <strong>que</strong> há nele se transformará em alguma coisa melhor."<br />

Ao conhecer MacDonald, vemos seus sermões sob uma luz inteiramente diversa. As<br />

palavras po<strong>de</strong>rosas sobre graça, libertação da ansieda<strong>de</strong> e o amor inexorável <strong>de</strong> Deus vieram,<br />

na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma vida cheia <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s. Durante anos, MacDonald vagou por Londres,<br />

sem dinheiro, procurando emprego. Sofreu constantemente <strong>de</strong> tuberculose, asma e eczema.<br />

Dois <strong>de</strong> seus filhos morreram jovens. Mostrou–se incapaz <strong>de</strong> ser professor na universida<strong>de</strong>, e<br />

a gran<strong>de</strong> vendagem <strong>de</strong> suas novelas raramente lhe trazia retorno financeiro: havia cópias<br />

<strong>de</strong>mais no mercado pirata. A família voltou–se para a encenação <strong>de</strong> O Peregrino (o próprio<br />

MacDonald representava Greatheart) para conseguir pagar suas dívidas.<br />

Estas dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas por ele só enfatizam o exemplo <strong>de</strong> fé <strong>de</strong>ixado por um <strong>de</strong><br />

nossos maiores escritores <strong>de</strong>vocionais. A novela Phantasies termina com as folhas das árvores<br />

sussurrando: Um gran<strong>de</strong> bem está chegando – chegando – chegando para vós, Anodos.<br />

George MacDonald cria nisto com todo seu coração, e aplicou essa lição à sua própria<br />

vida bem como a toda a história.<br />

OS RISCOS DA RELEVANCIA<br />

Durante uma primavera eu pegava o metrô <strong>de</strong> superfície duas vezes por semana, e ia<br />

ouvindo a<strong>que</strong>le som estri<strong>de</strong>nte rumo ao sul da cida<strong>de</strong>, percorrendo a distância <strong>de</strong> oitenta e<br />

~ 64 ~


cinco quarteirões. Ao entrar no trem, meus companheiros <strong>de</strong> jornada eram jovens executivos,<br />

os homens vestidos com apuro em camisas <strong>de</strong> algodão engomado, terno e colete. As mulheres<br />

apresentavam–se estranhas, em roupas <strong>de</strong> executivas e tênis (carregavam os sapatos elegantes<br />

em sacolas). Enquanto percorria a rota, etnias variadas se juntavam a nós, rumo às fábricas<br />

<strong>que</strong> ficam no sul da cida<strong>de</strong>. Depois chegávamos a um trecho <strong>de</strong> trinta quarteirões na região<br />

mais pobre <strong>de</strong> Chicago, casas velhas parecendo bambas, com a tinta <strong>de</strong>scascada e pilhas <strong>de</strong><br />

lixo em volta. Zona <strong>de</strong> guerra, sitiada. Jovens afro–americanos, com rádios enormes,<br />

perambulavam pelos vagões do trem, ven<strong>de</strong>ndo jóias, incenso, cigarros e brin<strong>que</strong>dos.<br />

Depois da jornada no metrô, eu passava para um ônibus <strong>que</strong> me levava até meu <strong>de</strong>stino: as<br />

imponentes torres góticas da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Chicago. Ali, durante as duas horas seguintes,<br />

assentava–me com mais onze alunos e estudávamos a poesia <strong>de</strong> T. S. Eliot. Embora os<br />

poemas houvessem sido escritos meio século antes, ainda havia neles uma assombrosa<br />

proximida<strong>de</strong> com nossos dias. Os passageiros do metrô <strong>de</strong> Chicago, isolados e silenciosos, o<br />

rosto crivado pela tensão, eram as mesmas personagens <strong>que</strong> Eliot <strong>de</strong>screvera em The Lope<br />

Song of J. Alfred Prufiock e em suas peças teatrais. Suas imagens da imundície urbana<br />

também se encaixavam <strong>precisam</strong>ente com o lugar on<strong>de</strong> meu trem acabara <strong>de</strong> passar.<br />

Especialmente em um dos poemas, o estranho expatriado dos Estados Unidos mudou para<br />

sempre o modo como o século XX enxerga a si mesmo. As pessoas ainda <strong>de</strong>batem o<br />

significado <strong>de</strong> The Waste Land, mas esta obra épica <strong>de</strong> confusão e <strong>de</strong>sespero chegou para<br />

<strong>de</strong>finir a disposição <strong>de</strong> ânimo <strong>de</strong> toda uma geração entre as duas guerras mundiais.<br />

Hoje é difícil imaginar o cho<strong>que</strong> <strong>que</strong> houve na época <strong>de</strong> T. S. Eliot quando ele, o maior<br />

dos poetas do <strong>de</strong>sespero e da alienação, tornou–se cristão. Foi como se Norman Mailer 8 se<br />

convertesse, ou Saulo <strong>de</strong> Tarso. A princípio, seus amigos explicaram a conversão como<br />

simplesmente uma experiência intelectual, um anseio pela or<strong>de</strong>m <strong>que</strong> o levou a se refugiar na<br />

igreja anglicana.<br />

Eliot reconheceu <strong>que</strong> a ansieda<strong>de</strong> quanto ao futuro foi fator <strong>de</strong>cisivo em sua conversão.<br />

Os problemas globais da<strong>que</strong>la época fazem com <strong>que</strong> a era mo<strong>de</strong>rna pareça calma: Hitler,<br />

Mussolini e Franco espalhavam o terror por toda a Europa Oci<strong>de</strong>ntal, enquanto Stalin<br />

<strong>de</strong>vastava a meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um continente no leste. Eliot concluiu <strong>que</strong> apenas a fé cristã po<strong>de</strong>ria<br />

trazer or<strong>de</strong>m à<strong>que</strong>le mundo caótico. Mas, qual<strong>que</strong>r <strong>que</strong> haja sido a motivação inicial, a fé<br />

criou raízes e chegou a dominar seu pensamento e seu trabalho. Eis como ele explicava isto:<br />

Acreditar no sobrenatural não é simplesmente crer <strong>que</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma vida bem–<br />

sucedida, razoavelmente virtuosa neste mundo material a pessoa continuará a existir<br />

no melhor substituto possível para este mundo. Nem é acreditar <strong>que</strong> <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter uma<br />

vida carente e atrofiada a pessoa será compensada por todas as coisas <strong>que</strong> não teve.<br />

Crer no sobrenatural é acreditar <strong>que</strong> ele é a maior das realida<strong>de</strong>s, aqui e agora.<br />

... Tomo como certo <strong>que</strong> a revelação cristã é a única completa e <strong>que</strong> esta totalida<strong>de</strong><br />

resi<strong>de</strong> no fato essencial da Encarnação, em relação à qual toda a revelação cristã <strong>de</strong>ve<br />

ser entendida. A divisão entre os <strong>que</strong> aceitam e os <strong>que</strong> negam a revelação cristã e, para<br />

mim, a separação mais profunda entre os seres humanos.<br />

Como a fé <strong>de</strong> Eliot afetou sua obra? Alguns argumentam <strong>que</strong> a arruinou <strong>que</strong> a produção<br />

dos quinze anos <strong>de</strong>pois da conversão carecia da profundida<strong>de</strong> e do gênio dos primeiros<br />

trabalhos. Eliot começou a se perguntar se havia espaço para a arte em um mundo<br />

enlou<strong>que</strong>cido. Como po<strong>de</strong>ria um cristão responsável <strong>de</strong>votar seu tempo à ficção ou à poesia?<br />

Sua obra tomou um caminho estranho quando começou a aceitar encomendas da igreja.<br />

Virgínia Woolf e Ezra Pound resmungaram <strong>que</strong> o amigo se estava transformando em um<br />

pastor. A comunida<strong>de</strong> artística da Inglaterra assistiu com horror ao homem <strong>que</strong> era,<br />

<strong>de</strong>claradamente, o maior poeta do século, escrever uma peça para levantar fundos para a<br />

8 Jornalista e escritor liberal, envolvido em inúmeros protestos, escreve obras chocantes sobre temas polêmicos. Po<strong>de</strong>ríamos comparar, no<br />

Brasil, com Fernando Gabeira. (N. da T.)<br />

~ 65 ~


igreja, compor legendas para uma exibição patriótica <strong>de</strong> fotos <strong>de</strong> guerra e tentar compor<br />

versos cristãos. Tudo isto parecia mais importante, mais útil do <strong>que</strong> seus poemas bem mais<br />

abstratos e sombrios.<br />

Por fim, sentindo o peso da crise mundial, Eliot afastou–se inteiramente da poesia,<br />

voltando–se para a Economia e a Sociologia. Per<strong>de</strong>ra, aparentemente, a fé no po<strong>de</strong>r da Arte.<br />

Analisava es<strong>que</strong>mas para a redistribuição da ri<strong>que</strong>za. Reunia–se regularmente com grupos <strong>de</strong><br />

pensadores cristãos, <strong>que</strong> incluíam mentes luminosas como Dorothy Sayers, Alce Vidler, Karl<br />

Mannheim, Nevill Coghill e Nicholas Berdyaev. Escreveu três livros com admoestações<br />

insistentes quanto à <strong>de</strong>cadência da civilização oci<strong>de</strong>ntal, propondo a criação <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong><br />

ativamente cristã para reverter o <strong>de</strong>clínio.<br />

Eliot via uma falha fatal no humanismo mo<strong>de</strong>rno. A menos <strong>que</strong> os valores <strong>de</strong> uma nação<br />

viessem <strong>de</strong> fora <strong>de</strong>la – <strong>de</strong> cima, dizia ele –, ela seria vulnerável a qual<strong>que</strong>r forma <strong>de</strong> tirania (a<br />

História provaria, logo a seguir, <strong>que</strong> ele estava certo). Propôs, para combater as ameaças, uma<br />

"Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristãos", <strong>que</strong> serviria como um tipo <strong>de</strong> elite moral. Em sua opinião, esse<br />

grupo, formado pelas mentes mais capazes dos mais variados campos do conhecimento,<br />

formularia a escala <strong>de</strong> valores cristãos para a socieda<strong>de</strong> toda.<br />

Sob a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Eliot, vários <strong>de</strong>stes grupos foram organizados, mas os membros<br />

raramente conseguiam concordar sobre programas práticos, chegando a discordar, até mesmo,<br />

quanto a ser ou não a<strong>de</strong>quado discutirem programas práticos. O compromisso cristão <strong>que</strong><br />

todos haviam firmado dificilmente os levava ao consenso nas <strong>que</strong>stões sociais (para avaliar a<br />

dificulda<strong>de</strong>, imagine uma Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristãos composta por Jerry Falwell 9 , o Papa, o<br />

Bispo da Igreja Episcopal, Ann Lan<strong>de</strong>rs 10 e Martin Marty 11 discutindo os direitos dos<br />

homossexuais e a legalização do aborto).<br />

As reflexões <strong>de</strong> T. S. Eliot sobre a socieda<strong>de</strong> constituem–se num estudo histórico<br />

fascinante, por<strong>que</strong> muitas das <strong>que</strong>stões da<strong>que</strong>la época ressurgiram e são <strong>de</strong>batidas<br />

acaloradamente hoje. Os cristãos têm o direito <strong>de</strong> impor seus valores a uma socieda<strong>de</strong><br />

pluralista? Se não, <strong>que</strong>m po<strong>de</strong> propor um outro conjunto <strong>de</strong> valores?<br />

Poucos alunos, porém, <strong>de</strong>dicam–se a esquadrinhar os comentários <strong>de</strong> Eliot sobre a<br />

socieda<strong>de</strong>. Suas teorias políticas e sociais parecem hoje exóticas e um pouco pomposas, e os<br />

estudiosos as tratam com certa confusão ou com <strong>de</strong>sdém. Nenhum <strong>de</strong> seus escritos políticos<br />

ou sociais po<strong>de</strong> ser encontrado impresso atualmente. Na verda<strong>de</strong>, para encontrá–los precisei<br />

<strong>de</strong> visitar a sala <strong>de</strong> livros raros na biblioteca da universida<strong>de</strong>. Na entrada, exigiram <strong>que</strong><br />

<strong>de</strong>ixasse todo meu material. Só pu<strong>de</strong> levar um bloco <strong>de</strong> papel e um lápis, e conce<strong>de</strong>ram–me<br />

duas horas para examinar os trabalhos <strong>que</strong> ocuparam uma das maiores mentes do século XX<br />

durante duas décadas. Livros amarelados e mofados, impressos no papel barato <strong>que</strong> se usava<br />

nos anos da guerra. A gran<strong>de</strong> ironia me atingiu em cheio: por todo o mundo os alunos ainda<br />

esquadrinham sua poesia, extraindo alusões, explorando imagens e símbolos – muitos<br />

profundamente cristãos — embutidos em toda a obra.<br />

* * *<br />

O centésimo aniversário do nascimento <strong>de</strong> T. S. Eliot aconteceu em 1988, uma boa<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão sobre sua carreira, como parábola viva do valor permanente da arte.<br />

Vá até uma biblioteca pública hoje nos Estados Unidos e peça para ver exemplares das<br />

edições <strong>de</strong> 1960 das revistas Harper's, The Atlantic Monthly, The New Yorker e Esquire.<br />

Calcule a proporção <strong>de</strong> artigos "literários" em relação aos orientados para <strong>que</strong>stões políticas<br />

9 Evangelista conservador.<br />

10 Jornalista liberal, escreve em revistas dando conselhos sobre amor e família.<br />

11 Po<strong>de</strong>mos imaginar no Brasil essa comissão formada pelo Rev. Boanerges Ribeiro. D.Eugênio Salles, o bispo da igreja episcopal, Marta<br />

Suplicy e o bispo Edir Macedo. (N. da T.)<br />

~ 66 ~


ou pragmáticas. Depois, procure edições atuais das mesmas publicações. Encontrará nestas<br />

últimas proporção muito menor <strong>de</strong> artigos literários. Ou então pegue revistas cristãs com<br />

preocupações sociais, como The Other Si<strong>de</strong>, Sojoumers ou mesmo Christianity Today, e<br />

repare quanto espaço <strong>de</strong>votam às artes, especialmente à<strong>que</strong>les trabalhos <strong>que</strong> não contêm,<br />

abertamente, mensagem espiritual ou social.<br />

Como socieda<strong>de</strong>, costumamos afastar–nos da arte, rumo a preocupações mais urgentes e<br />

práticas. Ao viverem um mundo <strong>que</strong> enfrenta crise econômica e ambiental, sob ameaça <strong>de</strong> um<br />

holocausto global, <strong>que</strong>m encontra tempo para a poesia e a literatura? Não <strong>de</strong>veríamos, em vez<br />

<strong>de</strong> pensar em arte, escrever e ler sobre guerras regionais, pobreza global, venda <strong>de</strong> armas e<br />

outros assuntos "relevantes"?<br />

Sempre <strong>que</strong> sou tentado por esses pensamentos, volto–me para a influência continuada <strong>de</strong><br />

autores cristãos como Tolstoy, Dostoievski, John Donne, Jonathan Swift, John Milton e,<br />

especialmente, T. S. Eliot (John Donne, assim como Eliot, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lado a poesia no auge <strong>de</strong><br />

sua carreira, para se <strong>de</strong>dicar a seus sermões, <strong>que</strong> poucos lêem hoje. John Milton abandonou a<br />

poesia por vinte anos, durante a Guerra Civil da Inglaterra). Todos estes escreveram muito<br />

sobre <strong>que</strong>stões relevantes <strong>de</strong> seus dias, e estes trabalhos transformaram–se em meras<br />

curiosida<strong>de</strong>s, notas obscuras colocadas no rodapé da história literária. Enquanto isto, suas<br />

criações baseadas, no dizer <strong>de</strong> Faulkner, "... nas velhas verda<strong>de</strong>s universais, na falta das quais<br />

qual<strong>que</strong>r tipo <strong>de</strong> arte é efêmera e perdida: amor, honra, pieda<strong>de</strong>, orgulho, compaixão e<br />

sacrifício", não cessaram até hoje <strong>de</strong> iluminar e inspirar.<br />

Em algum ponto do caminho, T. S. Eliot recuperou sua voz poética. Em uma série <strong>de</strong><br />

poemas, The Four Quartets, escrita durante a pior fase da II Guerra Mundial, ele conseguiu<br />

misturar a música e a mensagem. Nestes poemas po<strong>de</strong> ver–se seu olho arguto, perscrutador,<br />

presente em seus primeiros trabalhos, mas temperado com as percepções <strong>de</strong> sua peregrinação<br />

religiosa. Um exemplo:<br />

Trabalha com o aço o cirurgião ferido Explorando a enferma parte; Abaixo das mãos<br />

sangrentas sentimos A aguda compaixão da curadora arte Solucionando o enigma da<br />

febre <strong>que</strong> ar<strong>de</strong>.<br />

Nossa única saú<strong>de</strong> é a doença<br />

se obe<strong>de</strong>cemos a enfermeira à morte<br />

Cujo cuidado constante não visa a agradar<br />

Mas nos lembrar da maldição, nossa e <strong>de</strong> Adão,<br />

E <strong>de</strong> <strong>que</strong>, para sermos restaurados, nossa doença precisa piorar.<br />

Assim como muitos cristãos frente à arte, T. S. Eliot <strong>que</strong>stionava o valor inerente ao seu<br />

trabalho. Vale a pena <strong>de</strong>dicar–me à arte? EU é útil? Em certas épocas é difícil respon<strong>de</strong>r<br />

positivamente, à vista <strong>de</strong> crises globais. Ainda assim, a perspectiva se altera com o passar do<br />

tempo. Duvido <strong>que</strong> organizassem uma turma na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Chicago para estudar a obra<br />

<strong>de</strong> T. S. Eliot se ele houvesse <strong>de</strong>ixado apenas seu trabalho sobre teoria social e as peças<br />

teatrais escritas para a igreja. E, mesmo <strong>que</strong> essa turma funcionasse, sei <strong>que</strong> eu não<br />

percorreria 85 quarteirões <strong>de</strong> metrô para participar <strong>de</strong>la.<br />

Num mundo em <strong>que</strong> todos são fugitivos, <strong>que</strong>m vai na direção contrária é <strong>que</strong> parece<br />

estar fugindo.<br />

–T. S. Eliot<br />

~ 67 ~


DOIS BEZERROS TEIMOSOS<br />

A obra biográfica Dostoievsky: The Years of Or<strong>de</strong>al, 1850/1859 (Dostoievski: Os Anos <strong>de</strong><br />

Provação), da autoria <strong>de</strong> Joseph Frank, focaliza o período <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos <strong>que</strong> formou o caráter e<br />

a perspectiva espiritual <strong>de</strong> um dos maiores romancistas <strong>de</strong> todos os tempos. Esse livro é parte<br />

<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> cinco volumes. Ao lê–lo, não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar nos vários paralelos entre<br />

Feodor Dostoievski, o gigante da literatura do século XIX, e Aleksandr Solzhenitsyn, o<br />

gigante do século XX. Este último prestou, conscientemente, um tributo a seu antecessor,<br />

dando aos personagens <strong>de</strong> One Day in the Life of Ivan Denisovich (Um Dia na Vida <strong>de</strong> Ivan<br />

Denisovich), os mesmos nomes <strong>de</strong> seus protótipos da obra <strong>de</strong> Dostoievski: Os Irmãos<br />

Karamazov. É notável <strong>que</strong> os dois escritores afirmem <strong>que</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento espiritual<br />

aconteceu em um período <strong>de</strong> aprisionamento na Sibéria, on<strong>de</strong> viveram inesperada conversão<br />

religiosa e suportaram o refinamento fogo do sofrimento. Dostoievski passou por uma espécie<br />

<strong>de</strong> ressurreição. Foi preso por pertencer a um grupo <strong>que</strong> o Czar Nicolau I consi<strong>de</strong>rou traidor.<br />

Com o intuito <strong>de</strong> impressionar os jovens radicais <strong>que</strong> mais falavam do <strong>que</strong> agiam, o Czar<br />

con<strong>de</strong>nou–os à morte e preparou todo o cenário da execução. Os conspiradores foram vestidos<br />

em togas brancas longas e levados a uma praça. Vendados, com os braços amarrados<br />

firmemente às costas, <strong>de</strong>sfilaram diante <strong>de</strong> uma multidão tola, embasbacada, e foram atados a<br />

estacas à frente <strong>de</strong> um batalhão <strong>de</strong> fuzilamento. No último instante antes da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> atirar,<br />

um homem galopou pela praça com uma mensagem do Czar: ele, misericordiosamente,<br />

revogava a pena <strong>de</strong> morte e sentenciava–os a trabalhos forçados. Dostoievski jamais se<br />

recuperou <strong>de</strong>sta experiência terrível. Estivera nas garras da morte e, da<strong>que</strong>le momento em<br />

diante, sua vida tornou–se seu bem mais precioso, além <strong>de</strong> qual<strong>que</strong>r preço. Ao acreditar <strong>que</strong><br />

recebera <strong>de</strong> Deus uma segunda oportunida<strong>de</strong> para aten<strong>de</strong>r ao seu chamado, passou a estudar<br />

com afinco o Novo Testamento e a vida dos santos. Dez anos <strong>de</strong>pois saiu da prisão com<br />

convicções cristãs inabaláveis, como expresso em sua famosa frase:<br />

Se alguém me provasse <strong>que</strong> Cristo está afastado da verda<strong>de</strong> ... então eu preferiria<br />

permanecer com Cristo, longe da verda<strong>de</strong>.<br />

Aleksandr Solzhcnitsyn relata <strong>de</strong> forma comovente seu próprio <strong>de</strong>spertamento espiritual<br />

no segundo volume <strong>de</strong> Arquipélago Gulag. Ele sempre se maravilhara frente ao amor,<br />

paciência e longanimida<strong>de</strong> dos crentes russos perseguidos. Certa noite estava em uma cama<br />

no hospital da prisão e um médico ju<strong>de</strong>u, Boris Kornfeld, assentou–se a seu lado e relatou a<br />

história <strong>de</strong> sua conversão ao cristianismo. Na<strong>que</strong>la mesma noite o médico foi atacado a<br />

pauladas enquanto dormia e morreu. Solzhenitsyn escreveu <strong>que</strong> as últimas palavras do médico<br />

neste mundo permaneciam com ele, como uma herança. Com esta experiência, voltou a crer.<br />

Assim como Dostoievski, também passou por uma espécie <strong>de</strong> ressurreição. Recuperou–se,<br />

apesar <strong>de</strong> todas as probabilida<strong>de</strong>s em contrário, <strong>de</strong> um câncer no estômago, no ambiente<br />

inóspito do Gulag. Este milagre <strong>de</strong>ixou–o convencido <strong>de</strong> <strong>que</strong> Deus o livrara para <strong>que</strong><br />

testemunhasse através <strong>de</strong> seu trabalho. A partir da<strong>que</strong>la época, passou a <strong>de</strong>dicar entre 14 e 16<br />

horas todos os dias para completar sua tarefa.<br />

A prisão também ofereceu outras "vantagens" aos dois escritores. Além <strong>de</strong> moldar a<br />

perspectiva espiritual, constituiu–se em ambiente humano rico em material para a sua obra e<br />

seu trabalho. Dostoievski foi obrigado a viver muito próximo a ladrões, assassinos e<br />

camponeses bêbados, homens cheios <strong>de</strong> ódio contra a classe <strong>de</strong> pessoas sofiscicada <strong>que</strong> ele<br />

próprio representava. Nesse mundo, o melodrama era mais do <strong>que</strong> uma convenção literária. O<br />

biógrafo Joseph Frank afirma:<br />

~ 68 ~


A vida no campo <strong>de</strong> prisioneiros <strong>de</strong>u–lhe uma vantagem única: um local on<strong>de</strong> pô<strong>de</strong><br />

estudar os seres humanos <strong>que</strong> viviam sob pressão psicológica extrema, reagindo a esta<br />

pressão com os comportamentos mais loucos.<br />

Essa experiência <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> levou à criação <strong>de</strong> personagens incomparáveis, como o<br />

assassino Raskolnikov <strong>de</strong> Crime e Castigo, Na prisão, a visão liberal <strong>de</strong> Dostoievski quanto à<br />

bonda<strong>de</strong> inerente do homem comum, colidindo com a realida<strong>de</strong> encontrada em seus<br />

companheiros <strong>de</strong> cela, <strong>de</strong>sintegrou–se. Mas, com o passar <strong>de</strong> tempo, ele também viu alguns<br />

lampejos <strong>que</strong> provam a existência da imagem <strong>de</strong> Deus até mesmo na<strong>que</strong>las pessoas tão<br />

rebaixadas.<br />

A experiência <strong>de</strong> Solzhenitsyn foi estranhamente similar. Embora, a princípio, haja<br />

consi<strong>de</strong>rado os outros prisioneiros repulsivos, <strong>de</strong>pois apren<strong>de</strong>u a vê–los sob luz diferente.<br />

Hoje, quando sinto um impulso <strong>de</strong> escrever sobre meus vizinhos na<strong>que</strong>le ambiente,<br />

percebo qual a principal vantagem <strong>de</strong> escrever: nunca mais em minha vida, nem por<br />

inclinação pessoal ou no labirinto social, voltaria a me aproximar <strong>de</strong> tais pessoas. ...<br />

Embora tar<strong>de</strong>, porém, olhei para mim mesmo e percebi <strong>que</strong> sempre <strong>de</strong>votara meu<br />

tempo e atenção para pessoas <strong>que</strong> me fascinavam e eram agradáveis, <strong>que</strong><br />

conquistavam minha simpatia, e como conseqüência via a socieda<strong>de</strong> como vejo a Lua,<br />

sempre pelo mesmo lado.<br />

Também ele saiu da prisão com neva visão da humanida<strong>de</strong>, <strong>que</strong> apareceria em todos os<br />

seus escritos. Assim refletia:<br />

Só <strong>de</strong>itado lá, na palha podre da prisão, foi <strong>que</strong> senti <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim os primeiros<br />

ímpetos do bem. Gradualmente, foi–me revelado <strong>que</strong> a<br />

(152)<br />

O REJEITADO<br />

Shusaku Endo, morto em 1996, foi uma criatura das mais raras no Japão: cristão durante<br />

toda sua vida. Em um país on<strong>de</strong> a Igreja constitui menos <strong>de</strong> 1% da população, foi criado por<br />

sua mãe <strong>de</strong>vota a Cristo e batizado aos onze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Ainda mais surpreen<strong>de</strong>nte, Endo,<br />

o maior romancista japonês, escreveu livros com temas cristãos, <strong>que</strong> invariavelmente ficavam<br />

entre os mais vendidos do país. Ele era como um herói cultural no Japão, e ate apresentou um<br />

programa <strong>de</strong> entrevistas na televisão no horário noturno.<br />

Sua obra recebeu elogios <strong>de</strong> escritores famosos como John Updike e Graham Greene, e foi<br />

muitas vezes indicado como candidato ao Prêmio Nobel <strong>de</strong> Literatura. Nove <strong>de</strong> seus romances<br />

foram traduzidos para o inglês, mas seu livro mais popular nos Estados Unidos foi A Life of<br />

Jesus (Uma Vida <strong>de</strong> Jesus), seu relato pessoal <strong>de</strong> fé.<br />

Ao crescer como cristão no Japão antes da II Guerra Mundial, Endo sentia–se<br />

constantemente alienado. Algumas vezes seus colegas <strong>de</strong> classe o maltratavam por sua ligação<br />

com uma religião "oci<strong>de</strong>ntal". Após a guerra viajou para a França, na esperança <strong>de</strong> estudar<br />

romancistas franceses católicos como François Mauriac e George Bernanos. Mas a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Lyon em 1949 não permitiu <strong>que</strong> se sentisse bem–vindo: <strong>de</strong>sta vez conheceu a rejeição racial<br />

em lugar da religiosa. Os aliados haviam conduzido uma corrente contínua <strong>de</strong> propagandas<br />

contra os japoneses, e Endo tornou–se alvo <strong>de</strong> muito abuso racial.<br />

~ 69 ~


Rejeitado em sua terra natal e em seu lar espiritual, enfrentou uma gran<strong>de</strong> crise <strong>de</strong> fé.<br />

Passou vários anos pesquisando a vida <strong>de</strong> Jesus na Palestina, e ali fez uma <strong>de</strong>scoberta <strong>que</strong> o<br />

transformou: Jesus, também, foi rejeitado. Mais do <strong>que</strong> isto, a vida <strong>de</strong> Jesus caracterizou–se<br />

pela rejeição. Seus vizinhos riam dEle, sua família às vezes <strong>que</strong>stionava sua sanida<strong>de</strong> mental,<br />

seus amigos mais chegados O traíram e seus compatriotas trocaram sua vida pela <strong>de</strong> um<br />

terrorista. Enquanto andou na Terra, Jesus parecia ser atraído por outros rejeitados: leprosos,<br />

prostitutas, paralíticos, pecadores notórios.<br />

Este aspecto da vida <strong>de</strong> Jesus atingiu Endo com a força <strong>de</strong> uma revelação. Ao viver no<br />

Japão, vira o cristianismo a distância, como uma fé triunfante e conquistadora. Estudara o<br />

Santo Império Romano e as brilhantes Cruzadas, admirara fotografias das gran<strong>de</strong>s catedrais<br />

da Europa, sonhara em viver em um país on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria ser cristão sem cair em <strong>de</strong>sgraça. Mas<br />

ali, enquanto estudava a Bíblia, percebeu <strong>que</strong> o próprio Cristo não evitara "cair em <strong>de</strong>sgraça".<br />

Jesus foi o Servo Sofredor, como <strong>de</strong>scrito em Isaías:<br />

... pasmaram muitos à vista <strong>de</strong>le,<br />

pois o seu aspecto estava mui <strong>de</strong>sfigurado, mais do <strong>que</strong> o <strong>de</strong> outro qual<strong>que</strong>r,<br />

e a sua aparência mais do <strong>que</strong> a dos outros filhos dos homens, ...<br />

... não linha aparência nem formosura; olhamo–lo,<br />

mas nenhuma beleza havia, <strong>que</strong> nos agradasse.<br />

Era <strong>de</strong>sprezado, e o mais rejeitado entre os homens;<br />

homem <strong>de</strong> dores, e <strong>que</strong> sabe o <strong>que</strong> é pa<strong>de</strong>cer;<br />

e, como um <strong>de</strong> <strong>que</strong>m os homens escon<strong>de</strong>m o rosto ...<br />

O tema central em muitos dos romances <strong>de</strong> Endo é a rejeição e o sofrimento. Silêncio, o<br />

mais famoso, conta a história <strong>de</strong> cristãos japoneses <strong>que</strong> renegaram sua fé em face da<br />

perseguição brutal dos xoguns. Ele lera muitas histórias emocionantes <strong>de</strong> mártires cristãos,<br />

mas nenhuma sobre traidores da fé. Nem po<strong>de</strong>ria ler, por<strong>que</strong> nenhuma fora escrita. Ainda<br />

assim, para ele, a mensagem mais po<strong>de</strong>rosa <strong>de</strong> Jesus era seu amor inextinguível, até mesmo –<br />

especialmente – pelos <strong>que</strong> o traíram. Seus discípulos se afastaram dEle; e Ele continuava a<br />

amá–los. Seu país O executou; mas enquanto estava esticado, nu, na posição da <strong>de</strong>sgraça mais<br />

completa, esforçou–se para conseguir gritar:<br />

Falta pág. (155)<br />

AVANÇANDO PARA O PASSADO<br />

Era manhã <strong>de</strong> sábado. Comecei minha corrida sob o céu encoberto, e no meio do caminho<br />

as nuvens resolveram <strong>de</strong>ixar a chuva fina e fria cair e fi<strong>que</strong>i ensopado. Tinha consciência <strong>de</strong><br />

minha aparência terrível ao parar na loja <strong>de</strong> ferragens no caminho <strong>de</strong> volta para casa. A água<br />

pingava <strong>de</strong> minha roupa e <strong>de</strong> meu cabelo enquanto eu tirava uma nota amassada do bolso <strong>de</strong><br />

meu calção para pagar alguns materiais para calafetar as janelas <strong>de</strong> minha casa. O dia parecia<br />

fadado ao insucesso.<br />

Depois <strong>de</strong> tomar banho, torrei alguns grãos <strong>de</strong> café e bebi duas xícaras do líquido <strong>que</strong>nte e<br />

fumarento e <strong>de</strong>cidi jogar fora a lista <strong>de</strong> tarefas <strong>que</strong> <strong>de</strong>signara para mim mesmo. Resolvi ir ao<br />

cinema. Estava acontecendo o Festival do Filme <strong>de</strong> Chicago, e logo me encontrei no cinema,<br />

assistindo a Following the Führer (Seguindo o Führer), filme sobre o Terceiro Reich, dirigido<br />

por Erwin Leiser. Vinte e cinco anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> rodar seu sucesso Mein Kampf, ele assumia <strong>de</strong><br />

~ 70 ~


novo a carga terrível <strong>de</strong> um artista alemão: tentava enten<strong>de</strong>r o caso <strong>de</strong> amor entre seu país e<br />

Hitler.<br />

Para minha surpresa, o próprio Erwin Leiser, homem forte, bigodudo, estava presente à<br />

première. Apresentou o filme, explicando, em um inglês com sota<strong>que</strong> carregado, por <strong>que</strong> o<br />

fizera:<br />

– Construí Mein Kampf em torno <strong>de</strong> documentários dos gran<strong>de</strong>s comícios <strong>de</strong> Hitler.<br />

Mostrei o espetáculo do Reich <strong>que</strong> atraiu o povo alemão. Mas assistindo, vezes sem conta, a<br />

estes documentários, percebi <strong>que</strong> não retratavam a vida cotidiana. Não mostravam os alemães<br />

comuns. Sim, algumas pessoas gritavam em apoio a Hitler, mas olhe com atenção as cenas<br />

nos filmes. Outras, bem atrás, assistiam a tudo com a fisionomia inexpressiva. E elas? Que<br />

acontecia em sua vida? Fiz este filme na tentativa <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a esta pergunta.<br />

Assim, em seu segundo filme sobre a Alemanha <strong>de</strong> Hitler, Leiser tentou recriar a vida<br />

cotidiana. Uma vez mais começou com as cenas tão conhecidas: soldados marchando com<br />

passadas duras, comícios imensos, o edifício Reichstag em chamas, cenas da violência contra<br />

os ju<strong>de</strong>us. Mas, entremeadas com estas cenas familiares, encaixou pe<strong>que</strong>nas vinhetas,<br />

dramatizadas, da vida na Alemanha.<br />

• Um juiz assentado em uma ca<strong>de</strong>ira no escritório <strong>de</strong> um burocrata nazista. Destituído <strong>de</strong><br />

toda dignida<strong>de</strong>, se embaraça, tentando explicar por <strong>que</strong> faltou ao comício para ir tocar Mozart<br />

com a or<strong>que</strong>stra da qual participa.<br />

• Uma faxineira esfrega com vigor teutônico uma escada <strong>de</strong> ladrilhos e <strong>de</strong>safia,<br />

teimosamente, o conselho <strong>de</strong> sua vizinha pata <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> trabalhar nas casas dos ju<strong>de</strong>us.<br />

• Consumidores <strong>de</strong> uma loja, muito <strong>de</strong>sapontados, esperam o fim <strong>de</strong> um ata<strong>que</strong> aéreo em<br />

um abrigo subterrâneo. Conversam sobre <strong>de</strong>rrotas militares <strong>que</strong> nunca aparecem na imprensa<br />

alemã.<br />

• Um oficial do exército acaba com todas as tentativas <strong>de</strong> sua esposa <strong>de</strong> criar um<br />

ambiente festivo durante sua licença <strong>de</strong> Natal. Esvazia uma garrafa <strong>de</strong> vinho em,<br />

virtualmente, um gole. Diz <strong>que</strong> é a única maneira <strong>de</strong> es<strong>que</strong>cer os vagões <strong>de</strong> gado carregados<br />

<strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us <strong>que</strong> ele expediu do fronte oriental.<br />

• Dois adolescentes vagam pela cida<strong>de</strong> e encontram um panfleto jogado por um avião dos<br />

aliados. Mostra corpos empilhados como ma<strong>de</strong>ira em um campo <strong>de</strong> concentração alemão.<br />

Eles discutem se essas coisas realmente acontecem ou se aquilo é apenas propaganda <strong>de</strong><br />

guerra.<br />

O filme, utilizando a técnica <strong>de</strong> alternar documentários com vinhetas pessoais, explora a<br />

larga fronteira obscura entre o <strong>que</strong> viria à luz para a História posteriormente e o <strong>que</strong> realmente<br />

acontecia na<br />

Falta pág. (158)<br />

zer, ou as calotas polares <strong>de</strong>rreterem, ou a chuva acida acabar com a água potável? Que ficará<br />

evi<strong>de</strong>nte quanto à nossa civilização?<br />

Quanto mais conjeturava, mais me <strong>de</strong>primia. E quando meus pensamentos se voltaram<br />

para mim mesmo, e imaginei como eu, cidadão comum, encaixar–me–ia em tais situações,<br />

fi<strong>que</strong>i ainda mais <strong>de</strong>primido. Como um Erwin Leiser do século XXI, juntaria cenas <strong>de</strong> minha<br />

vida com as <strong>de</strong> documentários <strong>de</strong>sta época confusa? Senti–me <strong>de</strong>samparado e ina<strong>de</strong>quado<br />

como não <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 60, quando quase todo mundo sentia <strong>de</strong>samparo e ina<strong>de</strong>quação.<br />

Ao chegar em casa, peguei na gela<strong>de</strong>ira um pedaço <strong>de</strong> pizza e a<strong>que</strong>ci no microondas.<br />

Então, <strong>de</strong>cidi seguir a lista <strong>de</strong> tarefas <strong>que</strong> tinha para a<strong>que</strong>le sábado. Passei o resto da tar<strong>de</strong><br />

colocando massa <strong>de</strong> calafetar nas janelas <strong>de</strong> minha casa.<br />

~ 71 ~


6<br />

O ANIMAL HUMANO<br />

• Por <strong>que</strong> existem tantos tipos <strong>de</strong> animais? Será <strong>que</strong> o mundo não po<strong>de</strong>ria prosseguir<br />

com, digamos, 300 mil espécies <strong>de</strong> besouros em vez <strong>de</strong> 500 mil? Qual a vantagem da<br />

existência <strong>de</strong>les?<br />

• Por <strong>que</strong> os animais mais belos da terra ficam escondidos <strong>de</strong> todos os humanos, a não<br />

ser da<strong>que</strong>les <strong>que</strong> usam os complicados equipamentos <strong>de</strong> mergulho? Quem ê beneficiado com<br />

a beleza <strong>de</strong>les?<br />

• Por <strong>que</strong> a quase totalida<strong>de</strong> da arte religiosa é realista, enquanto <strong>que</strong> gran<strong>de</strong> parte da<br />

criação <strong>de</strong> Deus — zebras, borboletas, estruturas cristalinas — é exemplo rematado <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>signer abstrato?<br />

• Por <strong>que</strong> é tão mais fácil treinar os cães do <strong>que</strong> os gatos? Quais dão mais orgulho a<br />

Deus: os cães ou os gatos?<br />

• Os seres humanos são animais' São qual<strong>que</strong>r coisa além <strong>de</strong> animais? Por <strong>que</strong> não são<br />

mais fáceis <strong>de</strong> treinar?<br />

• Por <strong>que</strong> existem piadas sujas? De qual<strong>que</strong>r forma, o <strong>que</strong> é <strong>que</strong> torna a fisiologia da<br />

excreção e da reprodução tão engraçadas?<br />

• Pergunto como Walker Percy: "Por <strong>que</strong> o homem se sente tão triste no século XX? Por<br />

<strong>que</strong> se sente tão mal exatamente na era em <strong>que</strong>, mais do <strong>que</strong> em qual<strong>que</strong>r outra, tem tido<br />

sucesso na satisfação <strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s e na utilização dos recursos <strong>que</strong> há no mundo? "<br />

• Os gorilas e os javalis atravessam a crise da meia–ida<strong>de</strong>?<br />

• Por <strong>que</strong> o livro <strong>de</strong> Eclesiastes está na Bíblia? Será <strong>que</strong> o autor do livro enfrentava uma<br />

crise <strong>de</strong> meia–ida<strong>de</strong>? Como seria uma crise <strong>de</strong>stas na vida <strong>de</strong> um rei dos hebreus?<br />

• Por <strong>que</strong> Salomão, <strong>que</strong> <strong>de</strong>monstrou tanta sabedoria ao escrever Provérbios, passou os<br />

últimos anos <strong>de</strong> sua vida contrariando todos os seus ensinamentos?<br />

• Por <strong>que</strong> Cantares <strong>de</strong> Salomão está na Bíblia? Por <strong>que</strong> só este livro da Bíblia é<br />

interpretado como alegoria quando, na verda<strong>de</strong>, não há qual<strong>que</strong>r indicação nas Escrituras<br />

<strong>de</strong> <strong>que</strong> a intenção do autor fosse alegórica? Como po<strong>de</strong> uma religião <strong>que</strong> inclui um texto<br />

como Cantares <strong>de</strong> Salomão entre seus escritos sagrados ser conhecida como inimiga do<br />

sexo?<br />

• Por <strong>que</strong> o sexo é uma fonte <strong>de</strong> prazer? Eu só <strong>que</strong>ria saber...<br />

São perguntas <strong>que</strong> <strong>precisam</strong> <strong>de</strong> <strong>respostas</strong>.<br />

O UNIVERSO E MEU AQUÁRIO<br />

Ao olhar através <strong>de</strong> minha janela no Centro da Cida<strong>de</strong>, vejo um prédio <strong>de</strong> vinte andares,<br />

todo <strong>de</strong> concreto e vidro. As sacadas dos apartamentos são repletas <strong>de</strong> todo tipo <strong>de</strong> objetos:<br />

bicicletas, churras<strong>que</strong>iras portáteis e ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> varanda. Mais perto há antenas <strong>de</strong> metal<br />

tortas, <strong>que</strong> se projetam <strong>de</strong> uma loja <strong>de</strong> aparelhos <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o como galhos secos. Vejo também o<br />

telhado cinza <strong>de</strong> uma loja <strong>de</strong> biscoitos, o exaustor <strong>de</strong> alumínio <strong>de</strong> um restaurante italiano e<br />

uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> fios pretos <strong>de</strong>stinados a levar eletricida<strong>de</strong> a todos estes monumentos à civilização<br />

(o motivo <strong>de</strong> escolhermos morar aqui não foi a vista da janela.)<br />

~ 72 ~


Mas, se virar a cabeça para a direita (e sempre o foço), posso ver um paraíso tropical vivo.<br />

Um pedaço do Caribe penetrou em meu escritório. Um retângulo <strong>de</strong> vidro contém cinco<br />

conchas marítimas cobertas <strong>de</strong> algas aveludadas, caules <strong>de</strong> coral plantados como uma cerca<br />

viva no fundo pedregoso e sete das criaturas mais exóticas <strong>que</strong> existem neste mundo <strong>de</strong> Deus.<br />

Os peixes <strong>de</strong> água salgada apresentam cores tão puras e brilhantes <strong>que</strong> parece <strong>que</strong> as criam em<br />

vez <strong>de</strong> refletir as ondas <strong>de</strong> luz <strong>que</strong> as produzem. O peixe <strong>de</strong> cores mais vivas em meu aquário<br />

é dividido ao meio, com a cauda amarelo–brilhante e a cabeça <strong>de</strong> um vermelho berrante.<br />

Parece <strong>que</strong> ele enfiou a cabeça em um bal<strong>de</strong> <strong>de</strong> tinta.<br />

Meu gosto ten<strong>de</strong> a ser um pouco bizarro, e, além do peixe bonito, tenho dois <strong>que</strong> são<br />

surpreen<strong>de</strong>ntes, mas dificilmente se diria <strong>que</strong> são belos. Um baiacu com chifres bem longos<br />

saindo da cabeça e do abdômen impele seu corpo retangular por todo o aquário com<br />

nada<strong>de</strong>iras tão minúsculas <strong>que</strong> não sei como consegue se mover. Se um besourão <strong>de</strong>safia as<br />

leis da aerodinâmica, o baiacu <strong>de</strong>safia as leis da "aquadinâmica". Outro, um peixe–leão, é<br />

todo coberto <strong>de</strong> barbatanas e espetos, com protuberâncias ameaçadoras, como a<strong>que</strong>las<br />

criaturas <strong>de</strong> papel extravagante <strong>que</strong> dançam pelo palco nas óperas chinesas.<br />

Mantenho o aquário como uma advertência. Quando a solidão do escritor me incomoda,<br />

ou o sofrimento chega perto <strong>de</strong>mais, ou o céu e os edifícios acinzentados <strong>de</strong> Chicago abafam<br />

minha mente e minhas emoções, volto–me e contemplo o aquário. Ao olhar através <strong>de</strong> minha<br />

janela, não avisto as Montanhas Rochosas, e a baleia azul mais próxima está a meio<br />

continente <strong>de</strong> distância, mas certamente possuo este pe<strong>que</strong>no retângulo para me lembrar <strong>de</strong><br />

<strong>que</strong> existe um mundo maior do lado <strong>de</strong> fora <strong>de</strong> minha casa. Meio milhão <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong><br />

besouros, <strong>de</strong>z mil <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> borboletas diferentes, um bilhão <strong>de</strong> peixes como os meus<br />

passeando pelos recifes <strong>de</strong> corais, existe muita beleza por aí, muitas vezes longe <strong>de</strong> olhos<br />

humanos. Meu aquário me recorda isto.<br />

Mas mesmo aqui, na beleza <strong>de</strong> meu Universo artificial, o sofrimento aparece. Chesterton<br />

afirmou <strong>que</strong> a natureza não é nossa mãe, e, sim, nossa irmã, por<strong>que</strong> também caiu. As<br />

barbatanas e os espetos <strong>de</strong> meu peixe–leão são bem ameaçadores, pois po<strong>de</strong>m conter toxinas<br />

suficientes para matar uma pessoa. E quando qual<strong>que</strong>r um dos peixes apresenta um sinal <strong>de</strong><br />

fra<strong>que</strong>za os outros se voltam contra ele, atormentando–o, sem nenhuma misericórdia. Na<br />

semana passada mesmo, os outros seis peixes atacaram brutalmente o olho infeccionado do<br />

baiacu. Dentro dos aquários, os pacifistas têm vida curta.<br />

Dedico muito tempo e esforço ao combate <strong>de</strong> parasitas, bactérias e fungos <strong>que</strong> inva<strong>de</strong>m o<br />

aquário. Possuo um laboratório químico portátil para testar a gravida<strong>de</strong> específica, os níveis<br />

dos nitratos e nitritos e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amônia. Adiciono vitaminas, antibióticos e sulfa, além<br />

<strong>de</strong> enzimas suficientes para fazerem até uma pedra crescer. Filtro a água através <strong>de</strong> fibra <strong>de</strong><br />

vidro e carvão e a exponho à luz ultravioleta. Mesmo assim os peixes não vivem muito. Digo<br />

a meus amigos <strong>que</strong> os peixes são animais <strong>de</strong> estimação meio estranhos: os únicos "tru<strong>que</strong>s"<br />

<strong>que</strong> sabem fazer são comer, adoecer e morrer.<br />

Alguém po<strong>de</strong>ria pensar <strong>que</strong>, à vista <strong>de</strong> tanta energia gasta em cuidar <strong>de</strong>les, meus peixes<br />

seriam, pelo menos, gratos. De forma alguma. Todas as vezes em <strong>que</strong> minha sombra aparece<br />

sobre o tan<strong>que</strong> nadam em busca <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>rijo na concha mais próxima. Três vezes por dia<br />

abro a tampa e jogo comida, mas assim mesmo eles reagem a cada abertura como um sinal<br />

certo <strong>de</strong> meu empenho em torturá–los. Peixes não são animais <strong>de</strong> estimação <strong>que</strong> <strong>de</strong>volvam o<br />

amor <strong>que</strong> lhes <strong>de</strong>dicamos.<br />

O esforço necessário para cuidar <strong>de</strong> meu aquário me levou a uma apreciação mais<br />

profunda do <strong>que</strong> significa controlar um Universo baseado em leis físicas imutáveis. Para meus<br />

peixes sou uma <strong>de</strong>ida<strong>de</strong> <strong>que</strong> não hesita quando é necessário intervir. Equilibro a salinida<strong>de</strong> e<br />

verifico os elementos na água. O tan<strong>que</strong> só recebe o alimento <strong>que</strong> retiro <strong>de</strong> meu freezer e<br />

coloco lá <strong>de</strong>ntro. Eles não viveriam se<strong>que</strong>r um dia sem o aparelho elétrico <strong>que</strong> adiciona<br />

oxigênio à água.<br />

Tenho <strong>que</strong> tomar uma <strong>de</strong>cisão muito difícil cada vez <strong>que</strong> é necessário tratar alguma<br />

infecção. O i<strong>de</strong>al seria remover o peixe doente para um outro tan<strong>que</strong>, on<strong>de</strong> ficaria em<br />

~ 73 ~


quarentena, evitando assim <strong>que</strong> os outros o atacassem e fossem contaminados. Mas esta<br />

intervenção violenta e até mesmo o simples ato <strong>de</strong> perseguir o peixe doente com a re<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>ria causar mais danos do <strong>que</strong> a própria doença. A tensão resultante do tratamento po<strong>de</strong>,<br />

na verda<strong>de</strong>, causar a morte.<br />

Com freqüência, anseio por um modo <strong>de</strong> me comunicar com estes habitantes das águas,<br />

seres <strong>de</strong>stituídos <strong>de</strong> inteligência. Em face da ignorância, enxergam–me como uma ameaça<br />

constante. Não consigo convencê–los <strong>de</strong> <strong>que</strong> minha preocupação com eles é verda<strong>de</strong>ira. Sou<br />

gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais, minhas ações incompreensíveis. Vêem meus atos <strong>de</strong> misericórdia como<br />

cruelda<strong>de</strong>, enxergam minhas tentativas <strong>de</strong> curá–los como <strong>de</strong>struição. Para mudar estas<br />

percepções seria necessário um ripo <strong>de</strong> encarnação.<br />

Comprei meu aquário para iluminar um quarto escuro, mas acabei apren<strong>de</strong>ndo algumas<br />

lições sobre dirigir um Universo. É necessário esforço constante para equilibrar as leis físicas<br />

instáveis. Com freqüência os atos mais cheios <strong>de</strong> graça passam <strong>de</strong>spercebidos ou até mesmo<br />

são motivo <strong>de</strong> ressentimento. Quanto às intervenções, nunca é simples agir, <strong>que</strong>r os Universos<br />

sejam gran<strong>de</strong>s ou pe<strong>que</strong>nos.<br />

Falta pág. (167)<br />

não levássemos a sério o restaure do livro. Pelo menos Deus possuía a glória da natureza<br />

na<strong>que</strong>la época <strong>de</strong> trevas, quando Israel enfrentava a extinção e Judá <strong>de</strong>scambava para a<br />

idolatria.<br />

Deus <strong>de</strong>ixa muito claro como se sente quanto ao reino animal em seu discurso mais longo,<br />

uma fala magnífica registrada no final do livro <strong>de</strong> Jó. Olhe com mais atenção e notará um<br />

traço comum nas espécies <strong>que</strong> Ele apresenta para a edificação <strong>de</strong> Jó:<br />

• Uma leoa correndo atrás <strong>de</strong> sua presa.<br />

• Uma cabra montêsa dando à luz sua cria nas regiões selvagens.<br />

• Um jumento bravo habitando nas terras salgadas.<br />

• Um avestruz batendo suas asas inúteis com alegria.<br />

• Um cavalo se erguendo e batendo suas patas no ar.<br />

• Um gavião, uma águia e um corvo construindo o ninho nas encostas rochosas.<br />

Tudo isto foi apenas uma introdução, uma aula <strong>de</strong> zoologia para aumentar o conhecimento<br />

<strong>de</strong> Jó. Daí Deus avança para o beemote, criatura semelhante ao hipopótamo, <strong>que</strong> ninguém<br />

consegue domar e para o po<strong>de</strong>roso leviatã, parecido com um dragão. Deus pergunta com um<br />

to<strong>que</strong> <strong>de</strong> sarcasmo:<br />

– Você é capaz <strong>de</strong> transformá–lo em um animal <strong>de</strong> estimação, como um pássaro, ou<br />

colocá–lo numa corrente e entregar para suas filhas? Só olhar para ele já é uma experiência<br />

tremenda. Não há <strong>que</strong>m seja forte o suficiente para <strong>de</strong>spertá–lo. Então, <strong>que</strong>m conseguirá<br />

enfrentar–me?<br />

Vida selvagem é a mensagem <strong>que</strong> Deus transmite a Jó, a particularida<strong>de</strong> presente em<br />

todos os animais. Ele está exaltando os membros do mundo <strong>que</strong> criou <strong>que</strong> jamais serão<br />

domesticados pelos seres humanos. É evi<strong>de</strong>nte <strong>que</strong> os animais selvagens <strong>de</strong>sempenham uma<br />

função essencial no "mundo como Deus o vê". Eles nos repreen<strong>de</strong>m por nossa arrogância,<br />

lembrando–nos <strong>de</strong> uma coisa <strong>que</strong> preferimos es<strong>que</strong>cer: nossa condição <strong>de</strong> criaturas. Além<br />

disto, mostram–nos o esplendor <strong>de</strong> um Deus invisível, <strong>que</strong> não po<strong>de</strong> ser domesticado.<br />

* * *<br />

Corro várias vezes por semana entre animais selvagens como estes <strong>que</strong> citei acima, mas<br />

não sou molestado por eles, já <strong>que</strong> corro no jardim zoológico do Par<strong>que</strong> Lincoln, no Centro <strong>de</strong><br />

Chicago. Conheço–os bem, são vizinhos agradáveis, mas sempre faço um esforço mental para<br />

imaginá–los em seus habitats naturais.<br />

~ 74 ~


Três pingüins se balançam neuroticamente para a frente e para trás, sobre um pedaço <strong>de</strong><br />

concreto <strong>que</strong> recebeu tinta spray para ficar parecido com gelo. Imagino–os livres, pulando <strong>de</strong><br />

um bloco <strong>de</strong> gelo a outro na Antártida, cercados por milhões <strong>de</strong> primos, todos com a<br />

aparência tão cômica quanto a <strong>de</strong>les.<br />

Um elefante idoso se coloca próximo a um muro, marcando o tempo <strong>de</strong> três modos<br />

diferentes: o corpo balança lateralmente em um ritmo, a cauda marca um outro ritmo<br />

completamente diferente e a tromba se move em outro, diverso dos dois primeiros. Tenho<br />

dificulda<strong>de</strong> em imaginar esse gigante indolente suscitando terror em uma floresta na África.<br />

E a chita barriguda <strong>que</strong> se move suavemente por uma prateleira <strong>de</strong> pedra: será possível<br />

<strong>que</strong> este animal pertence à espécie <strong>que</strong> é capaz <strong>de</strong>, em um espaço pe<strong>que</strong>no, acelerar mais do<br />

<strong>que</strong> um Porsche?<br />

É necessário um salto enorme em minha mente para colocar o pingüim, o elefante e a<br />

chita no lugar ao qual pertencem, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vieram. De alguma forma, a mensagem<br />

arrebatadora <strong>de</strong> Deus sobre a vida selvagem se evapora ao atravessar os fossos, as barras e as<br />

placas informativas do zoológico. Ainda assim, sou afortunado por morar perto <strong>de</strong>le por<strong>que</strong>,<br />

caso contrário, Chicago só me ofereceria esquilos, pombos, baratas, ratos e alguns poucos<br />

pássaros. Será <strong>que</strong> era isto <strong>que</strong> Deus tinha em mente ao conce<strong>de</strong>r a Adão o domínio sobre os<br />

animais?<br />

* * *<br />

É difícil evitar um tom <strong>de</strong> censura ao escrever sobre os animais selvagens, por<strong>que</strong> nossos<br />

pecados contra eles são muito gran<strong>de</strong>s. Nos<br />

Faltam as págs. (170-171)<br />

- Tentei sair <strong>de</strong> casa com minha cachorra hoje <strong>de</strong> manhã. Ela só <strong>de</strong>u uma fungada e foi<br />

direto se <strong>de</strong>itar no cobertor elétrico.<br />

- Ouvi dizer <strong>que</strong> a diferença entre —40ºC e –30ºC é <strong>que</strong>, no primeiro, seu cuspe congela<br />

antes <strong>de</strong> chegar ao chão.<br />

É este o tipo <strong>de</strong> conversa <strong>que</strong> se ouve em Chicago no meio <strong>de</strong> janeiro.<br />

Durante o Inverno temos todos um inimigo comum tão po<strong>de</strong>roso <strong>que</strong> nossas priorida<strong>de</strong>s<br />

são revistas: os apresentadores <strong>de</strong> notícias na televisão contam histórias sobre o frio durante<br />

cinco minutos antes <strong>de</strong> passarem a assuntos menores como os conflitos internacionais e o<br />

comércio mundial. Nosso oponente real está do lado <strong>de</strong> fora, cercando–nos palpavelmente e<br />

nós, humanos, ajuntamo–nos por trás das barreiras <strong>de</strong> tijolo e cimento. E sobrevivemos. Juntos<br />

venceremos o inimigo. O espírito <strong>de</strong> tudo isto é estranhamente atávico: somos guerreiros em<br />

uma caverna, tentando reunir coragem para enfrentar o bando <strong>de</strong> mamutes <strong>que</strong> nos espera do<br />

lado <strong>de</strong> fora.<br />

Ouvi recentemente sobre uma pesquisa feita com cidadãos idosos <strong>de</strong> Londres. Ao serem<br />

perguntados sobre o período mais feliz <strong>de</strong> sua vida, 60% <strong>de</strong>les respon<strong>de</strong>ram <strong>que</strong> fora a Blitz. 12<br />

Na<strong>que</strong>la época, todas as noites, os esquadrões <strong>de</strong> bombar<strong>de</strong>iros da Luftwaffe <strong>de</strong>rramava<br />

toneladas <strong>de</strong> explosivos sobre a cida<strong>de</strong>, reduzindo o orgulho <strong>de</strong> uma civilização a entulho, e<br />

hoje as vítimas se recordam da<strong>que</strong>la época com sauda<strong>de</strong>! Eles também tinham um inimigo do<br />

lado <strong>de</strong> fora e se juntavam nos lugares escuros, <strong>de</strong>terminados a sobreviver.<br />

* * *<br />

Antes, as pessoas usavam uma expressão estranha e humil<strong>de</strong>: diziam <strong>que</strong> estavam "à<br />

mercê" dos elementos. Hoje, com todas as nossas <strong>de</strong>fesas tecnológicas, raramente estamos à<br />

mercê <strong>de</strong>les, e muito poucas vezes somos humil<strong>de</strong>s. Graças à meteorologia, o clima per<strong>de</strong>u<br />

até mesmo seu fator surpresa. (Por <strong>que</strong> o homem <strong>que</strong> apresenta a previsão do tempo na<br />

12<br />

A Blitz foi o período, durante a II Guerra Mundial, em <strong>que</strong> os alemães atacaram com mais intensida<strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Londres, <strong>de</strong>struindo<br />

gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>la e causando muitas mortes (N da T).<br />

~ 75 ~


televisão fala sempre sobre correntes <strong>de</strong> ar e <strong>de</strong>senha setas por todo o globo quando tudo <strong>que</strong><br />

<strong>que</strong>ro saber é <strong>que</strong> casaco <strong>de</strong>vo vestir amanhã?) Mas <strong>de</strong> vez em quando, em janeiro ou<br />

fevereiro chega uma boa frente fria indisciplinada trazendo frio e neve e, literalmente, <strong>de</strong>tém–<br />

nos, e ensina–nos sobre "mercê". Acima <strong>de</strong> tudo, o Inverno lembra–nos nossa condição <strong>de</strong><br />

criaturas. Voltamos a ver <strong>que</strong> somos pe<strong>que</strong>nos, criaturas <strong>que</strong> se juntam e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m umas das<br />

outras e do Deus <strong>que</strong> criou o espantoso Universo. Eliú disse a Jó:<br />

Com a sua voz troveja Deus maravilhosamente.... à neve diz: Cai sobre a terra"; como<br />

também ... à sua forte chuva ... para <strong>que</strong> conheçam todos os homens a sua obra,... Ao<br />

aflito livra da sua aflição.<br />

Isto acontece até mesmo em uma cida<strong>de</strong> muito gran<strong>de</strong>, como Chicago. No dia em <strong>que</strong><br />

chega uma gran<strong>de</strong> nevasca, os trens <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> correr, esquiadores tomam o lugar dos carros<br />

nas ruas e ninguém vai trabalhar.<br />

* * *<br />

Certo dia em fevereiro, peguei a Lake Shore, uma avenida <strong>que</strong> passa ao lado do Lago <strong>de</strong><br />

Chicago, rumo ao Centro da Cida<strong>de</strong>. e) sol brilhava muito. É estranho, mas os dias mais frios<br />

sempre são os <strong>de</strong> céu mais limpo, por<strong>que</strong> é a cobertura <strong>de</strong> nuvens <strong>que</strong> mantém a Terra<br />

a<strong>que</strong>cida. À minha es<strong>que</strong>rda, o Ligo Michigan tentava <strong>de</strong>cidir se congelava ou não. Logo<br />

acima da água azul–tur<strong>que</strong>sa formava–se uma fumaça <strong>de</strong> gelo, a<strong>que</strong>le fenômeno sensacional<br />

no qual a água <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lado as etapas intermediárias e parte do estado líquido, se<br />

con<strong>de</strong>nsando, formando minúsculos cristais <strong>de</strong> gelo. A minha direita, o contorno da cida<strong>de</strong><br />

iluminava–se com os raios esmaecidos e oblíquos do sol <strong>de</strong> inverno. É curioso, mas a cena<br />

roda tinha um to<strong>que</strong> acolhedor. Não entendi o motivo, até <strong>que</strong> percebi a fumaça branca <strong>que</strong><br />

flutuava no topo <strong>de</strong> cada prédio. Parecia <strong>que</strong> eles estavam respirando – até mesmo o concreto<br />

e o aço haviam assumido um pouco das características dos seres vivos.<br />

Talvez Eliot tenha razão sobre a cruelda<strong>de</strong> <strong>de</strong> abril: este mês põe um ponto final nas<br />

<strong>de</strong>lícias sutis do Inverno. Meus pensamentos seguiram neste sentido até <strong>que</strong> fiz uma curva e<br />

cheguei ao Par<strong>que</strong> Lincoln. Ali, avistei alguns dos <strong>de</strong>sabrigados <strong>de</strong> Chicago. Poucas camadas<br />

<strong>de</strong> jornais velhos e algumas sacolas <strong>de</strong> plástico constituíam toda sua proteção contra o frio.<br />

Eles, também, ajuntavam–se, mas pouco havia ali da alegria e camaradagem <strong>que</strong> eu sentia nas<br />

pessoas nas paradas <strong>de</strong> ônibus e mercearias. Tentavam apenas se manter vivos.<br />

Foi então <strong>que</strong> percebi <strong>que</strong> gostar <strong>de</strong> fevereiro, usando palavras como agradável e<br />

revigorante, experimentando o aconchego das barreiras criadas pelo homem contra os<br />

elementos era o maior dos luxos. E captei outro sentido importante da palavra mercê. A<br />

percepção da condição <strong>de</strong> ser criatura, reunindo–se com outras em cavernas, abrigos<br />

antibombas ou nos prédios <strong>de</strong> Chicago – só resulta em um sentimento semelhante à alegria se<br />

nós, as criaturas, mostrarmos misericórdia para com a<strong>que</strong>las <strong>que</strong> se colocarem à nossa<br />

"mercê". Esta é uma boa lição para se lembrar em fevereiro, abril ou em qual<strong>que</strong>r outro mês.<br />

Falta pág. (175)<br />

para marcar a passagem final do ser humano. Mesmo nós, cristãos do mundo oci<strong>de</strong>ntal, com<br />

nossa crença tradicional em uma vida após a morte, vestimos <strong>de</strong>funtos com roupas novas,<br />

embalsamamos (para <strong>que</strong>, para a posterida<strong>de</strong>?) e enterramos em caixões herméticos colocados<br />

em túmulos <strong>de</strong> concreto para diminuir o ritmo da <strong>de</strong>composição natural. Nestes rituais agimos<br />

a partir da relutância em nos entregar a esta <strong>que</strong> é a mais po<strong>de</strong>rosa das experiências humanas.<br />

Lewis acredita em <strong>que</strong> estas anomalias (assim como outra <strong>que</strong> é mais citada, a consciência<br />

humana) revelam o estado permanente <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> em nosso interior. Cada indivíduo<br />

é um espírito feito à imagem <strong>de</strong> Deus, fundido com um corpo <strong>de</strong> carne mortal. As piadas sujas<br />

e a obsessão com a morte <strong>de</strong>monstram um sentimento profundo <strong>de</strong> conflito inerente a este<br />

~ 76 ~


estado intermediário. Deveríamos perceber o conflito. Afinal, somos seres imortais presos em<br />

um ambiente mortal. Falta–nos a unida<strong>de</strong> interior por<strong>que</strong>, há muito tempo, um abismo se<br />

abriu entre nossa parte mortal e a imortal. Os teólogos afirmam <strong>que</strong> a falha começou na <strong>que</strong>da<br />

do primeiro homem.<br />

É claro <strong>que</strong> nem todos assinam em baixo <strong>de</strong>sta teologia natural. Os biólogos, psicólogos e<br />

antropólogos mo<strong>de</strong>rnos trabalham com uma pressuposição materialista <strong>que</strong> nega o espírito.<br />

Estudam nossas partes mortais e concluem <strong>que</strong> não há mais nada em nós. (Tolstoi disse <strong>que</strong> os<br />

materialistas se enganam, afirmando <strong>que</strong> o limite da vida é a própria vida.) Mas será <strong>que</strong> tais<br />

observadores não têm algumas explicações a dar? Até hoje não vi um trabalho <strong>de</strong> um<br />

psicólogo a<strong>de</strong>pto do evolucionismo abordando a origem das piadas sujas. Qual o papel <strong>que</strong><br />

elas <strong>de</strong>sempenham na perpetuação das características genéticas? De on<strong>de</strong> vêm estes conflitos<br />

<strong>que</strong> nos agitam?<br />

De acordo com a visão bíblica, é natural corarmos frente à excreção e nos afastarmos da<br />

morte. Estes acontecimentos parecem–nos estranhos por<strong>que</strong> na verda<strong>de</strong> o são. Em toda a terra<br />

não há nada exatamente semelhante a esta situação <strong>de</strong> espírito e imortalida<strong>de</strong> alojados na<br />

matéria. A confusão <strong>que</strong> sentimos talvez seja nossa sensação humana mais acurada,<br />

lembrando–nos <strong>de</strong> <strong>que</strong> este não é exatamente o nosso lar. C.S. Lewis usou uma hipérbole:<br />

alguém <strong>que</strong> <strong>de</strong>sejasse extrair a teologia mais fundamental das piadas sujas e <strong>de</strong> nossas atitu<strong>de</strong>s<br />

em face da morte encontraria muita dificulda<strong>de</strong>. Mas seria mais difícil ainda negar toda a<br />

teologia natural diante <strong>de</strong>stes e <strong>de</strong> outros traços <strong>de</strong> transcendência.<br />

Além <strong>de</strong>stas esquisitices da natureza humana, Lewis mencionou mais uma: Nosso espanto<br />

frente ao conceito <strong>de</strong> tempo. A última página <strong>de</strong> sua obra Reflections on the Psalms<br />

(Reflexões sobre os Salmos) resume o estado transitório e suspenso em <strong>que</strong> vivemos.<br />

O tempo nos incomoda tanto <strong>que</strong> chegamos até mesmo a ficar atônitos com ele.<br />

Exclamamos: "Como ele cresceu! O tempo voa!", como se a forma universal <strong>de</strong> nossa<br />

experiência fosse sempre uma novida<strong>de</strong>. Esta atitu<strong>de</strong> é tão estranha quanto seria a <strong>de</strong><br />

um peixe <strong>que</strong> se surpreen<strong>de</strong>sse continuamente por<strong>que</strong> a água é molhada. E isto seria<br />

na verda<strong>de</strong> muito estranho, a menos <strong>que</strong> o peixe estivesse <strong>de</strong>stinado a, um dia,<br />

transformar–se em um animal terrestre.<br />

REENCONTRO DA TURMA DO 2º GRAU<br />

Se eu fosse um evolucionista intransigente e quisesse fazer <strong>de</strong>sacreditada a doutrina cristã<br />

sobre o homem, acredito <strong>que</strong> em vez <strong>de</strong> gastar meu tempo escavando à procura <strong>de</strong> ossos na<br />

África do Dr. Leakey 13 perambularia pelos corredores dos colégios dos Estados Unidos. Neles<br />

se encontra uma vitrina do <strong>que</strong> há <strong>de</strong> mais atávico no animal humano. Esta afirmação é feita<br />

quando acabo <strong>de</strong> voltar do reencontro <strong>de</strong> minha turma do 2 O grau, vinte anos <strong>de</strong>pois da<br />

formatura.<br />

A época da vida em <strong>que</strong> o princípio "biologia é <strong>de</strong>stino" parece ser mais verda<strong>de</strong>iro é<br />

durante a adolescência. Descobri <strong>que</strong>, vinte anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> formados, os atletas do colégio<br />

continuam a caminhar com sua arrogância característica, apesar da barriga gran<strong>de</strong> e da careca<br />

<strong>que</strong> avança. Outro grupo, o das lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> torcida, estava mais conservado. Tendo aprendido<br />

bem cedo <strong>que</strong> a carne – o rosto e o corpo – era seu melhor passaporte para o sucesso, elas<br />

disfarçam as rugas faciais e os quilos a mais, melhor do <strong>que</strong> os outros. Descalças e um pouco<br />

13 Antropólogo e ar<strong>que</strong>ólogo <strong>que</strong> trabalhou na África Oriental, pesquisando a evolução humana. Popularizou a ar<strong>que</strong>ologia com suas<br />

palestras e seus livros. (N da T)<br />

~ 77 ~


envergonhadas, a<strong>que</strong>las profissionais e donas–<strong>de</strong>–casa li<strong>de</strong>raram–nos em alguns gritos <strong>de</strong><br />

torcida <strong>que</strong> lembrávamos apenas pela meta<strong>de</strong>.<br />

Os nerds 14 também marcaram sua presença. Durante os anos do colégio eles eram os<br />

vencedores das feiras <strong>de</strong> ciências, levavam o clube <strong>de</strong> xadrez à vitória e elevavam a nota da<br />

escola no SAT 15 e recebiam, em face dos seus esforços, <strong>de</strong>sprezo e ofensas <strong>de</strong> todos os lados.<br />

A passagem do tempo lhes conce<strong>de</strong>u uma gran<strong>de</strong> vingança: <strong>de</strong>ntre adolescentes estranhos<br />

emergiram cientistas pesquisadores, programadores <strong>de</strong> computador e peritos do mercado <strong>de</strong><br />

ações.<br />

Um grupo dos colégios <strong>de</strong> 2 O grau passou por mutações no <strong>de</strong>correr dos últimos vinte<br />

anos. Seus componentes eram chamados, primeiro, <strong>de</strong> "pilantras", <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> "tremendões" e,<br />

por fim, <strong>de</strong> "malas". Nenhum <strong>de</strong>les veio para o reencontro com brilhantina no cabelo e nem<br />

com um maço <strong>de</strong> cigarro preso na manga da camiseta. Mas continuaram a se reunir nos<br />

cantos, constituindo–se nos marginais <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> inflexível. O <strong>que</strong> mudou foi o estilo,<br />

não o papel <strong>que</strong> <strong>de</strong>sempenham.<br />

Uma das lembranças mais vívidas <strong>que</strong> guardo <strong>de</strong> meu tempo <strong>de</strong> colégio é um conflito<br />

tremendo entre o lí<strong>de</strong>r dos "pilantras" (acredito <strong>que</strong> hoje ele seria o chefe <strong>de</strong> uma gangue) e o<br />

lí<strong>de</strong>r dos atletas, o zagueiro do time <strong>de</strong> futebol americano da escola. Pelo menos trezentos<br />

alunos blo<strong>que</strong>aram um corredor, mantendo os professores exaltados afastados enquanto os<br />

dois lutavam para ver <strong>que</strong>m ficava com uma garota.<br />

Nunca es<strong>que</strong>cerei o momento em <strong>que</strong>, <strong>de</strong> repente, a turma <strong>que</strong> torcia animada parou, ao<br />

ver <strong>que</strong> o "pilantra" agarrava o zagueiro e batia a cabeça <strong>de</strong>le com força contra o esguicho do<br />

bebedouro uma, duas, três vezes. A multidão <strong>de</strong> alunos começou a se afastar, em um silêncio<br />

apreensivo, permitindo <strong>que</strong>, afinal, os professores aten<strong>de</strong>ssem o zagueiro, <strong>que</strong> se contorcia no<br />

chão, em meio a uma poça <strong>de</strong> sangue <strong>que</strong> crescia cada vez mais. A garota <strong>que</strong> provocara a<br />

luta se assentou no chão, ao lado dos armários, toda encolhida e ficou ali soluçando.<br />

Falta pág. (180)<br />

tivas. Os colégios mostram o <strong>que</strong> acontece quando, liberados do artifício polido da<br />

"maturida<strong>de</strong>", expressamos os instintos básicos <strong>que</strong> herdamos como membros da espécie<br />

humana.<br />

Mas nosso chamado cristão instiga–nos a <strong>de</strong>safiar esses instintos. Jesus anunciou uma<br />

gran<strong>de</strong> inversão <strong>de</strong> valores em seu Sermão do Monte, exaltando os pobres, perseguidos e<br />

sofredores, em lugar dos ricos e atraentes. Em vez <strong>de</strong> elogiar a ri<strong>que</strong>za, o po<strong>de</strong>r político e a<br />

beleza física, Ele advertiu contra seus perigos. Um texto como o <strong>de</strong> Lucas 18 mostra o tipo <strong>de</strong><br />

pessoas <strong>que</strong> impressionava a Jesus: uma viúva oprimida, um coletor <strong>de</strong> impostos em<br />

<strong>de</strong>sespero, uma criancinha e um mendigo cego.<br />

Os animais marcam, instintivamente, os fracos (nerds?) para serem rapidamente<br />

<strong>de</strong>struídos, e nós recebemos a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> valorizá–los. É–nos dito, também, <strong>que</strong> a satisfação<br />

não vem da procura da felicida<strong>de</strong>, mas da busca do serviço. Somos convocados a reagir a<br />

nossos fracassos mais horríveis com arrependimento aberto e não os escon<strong>de</strong>ndo. O<br />

Evangelho diz <strong>que</strong>, ao ser injustiçado, <strong>de</strong>ve perdoar–se em lugar <strong>de</strong> procurar a vingança. E<br />

<strong>que</strong> não <strong>de</strong>vemos acumular bens materiais, e, sim, trocar todos eles pelo reino dos céus, uma<br />

pérola <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor.<br />

* * *<br />

Há muito tempo os cristãos se preocupam com a teoria da evolução, acreditando <strong>que</strong><br />

talvez ela reduza a humanida<strong>de</strong> a um status inferior ao <strong>que</strong> a Bíblia lhe conce<strong>de</strong>. Nosso<br />

14<br />

Termo adotado também pelos adolescentes brasileiros, indica os alunos mais estudiosos, certinhos, em geral sem gosto para se vestir. Não<br />

costumam ter amigos e nem sabem se relacionar com os colegas. São alvo <strong>de</strong> muito ódio e <strong>de</strong>sprezo. (N da T)<br />

15<br />

Teste padronizado <strong>que</strong> os alunos fazem no último ano da High School (2° grau), visando a conseguir uma vaga nas melhores<br />

universida<strong>de</strong>s, lesta conheci mentos <strong>de</strong> inglês e <strong>de</strong> matemática. A escola também recebe uma nota em face da nota <strong>de</strong> seus alunos. (N da T)<br />

~ 78 ~


fracasso em convencer muitos cientistas das qualida<strong>de</strong>s únicas da taça humana, feita "à<br />

imagem <strong>de</strong> Deus", leva–me a pensar em adotar uma estratégia totalmente diferente. E se, no<br />

lugar <strong>de</strong> tentar provar <strong>que</strong> o homo sapiens não é animal, procurássemos provar <strong>que</strong> somos<br />

muito mais do <strong>que</strong> animais? No lugar <strong>de</strong> contestar a antigüida<strong>de</strong> dos fósseis ou os resultados<br />

da engenharia genética, po<strong>de</strong>ríamos, simplesmente, <strong>de</strong>monstrar <strong>que</strong> biologia não é <strong>de</strong>stino.<br />

Qual seria a opinião das pessoas se ao dizer a palavra "cristão" outras <strong>de</strong>z viessem–lhes à<br />

mente: amor, alegria, paz, longanimida<strong>de</strong>, benignida<strong>de</strong>, bonda<strong>de</strong>, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, mansidão e<br />

domínio próprio?<br />

Faltam as págs. (182-184)<br />

E certo <strong>que</strong> este conselho não é sofisticado, nem cheio <strong>de</strong> conteúdo, mas acontece <strong>que</strong><br />

alguns <strong>de</strong> nossos conselhos mo<strong>de</strong>rnos chegam a ser tão sofisticados <strong>que</strong> pairam acima do<br />

domínio da coerência racional.<br />

2. Uma vez <strong>que</strong> o ser observador <strong>de</strong>scobre o <strong>que</strong> o fará feliz, satisfeito e realizado, um tipo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminismo se estabelece. O marido se sente obrigado a seguir a voz interior <strong>que</strong> lhe<br />

assegura <strong>que</strong> a senhorita B, e não a <strong>de</strong>sgastada senhora A, e a solução para seus problemas.<br />

Esse <strong>de</strong>terminismo é uma força <strong>de</strong> primeira linha, e freqüentemente mostra ser mais po<strong>de</strong>roso<br />

do <strong>que</strong> os instintos paternais e os votos matrimoniais feitos perante Deus e o Estado. É triste a<br />

regularida<strong>de</strong> com <strong>que</strong> vemos maridos e pais (ou esposas e mães) <strong>de</strong>ixarem o cônjuge, filhos e,<br />

às vezes, até a Igreja e a fé para seguir esse estranho aceno interior. Dizem <strong>que</strong> <strong>precisam</strong> <strong>de</strong> ir,<br />

<strong>que</strong> a situação é maior <strong>que</strong> eles, <strong>de</strong> modo <strong>que</strong> não po<strong>de</strong>m resistir.<br />

Muitas <strong>de</strong>ssas pessoas se oporiam com veemência à noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminismo ou a um<br />

simples aceno do legalismo. Por exemplo: suas atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sprezam os Dez Mandamentos, <strong>que</strong><br />

eles <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> lado como restritivos e sufocantes. E mesmo assim, o <strong>que</strong> po<strong>de</strong>ria ser mais<br />

<strong>de</strong>terminista do <strong>que</strong> ser obrigado a seguir elementos intangíveis como sentimentos,<br />

personalida<strong>de</strong>, predisposição e atração magnética?<br />

Espero <strong>que</strong> alguns psicólogos esclarecidos dêem atenção ao <strong>que</strong> chamo <strong>de</strong> tirania do<br />

<strong>de</strong>terminismo psicológico. Enquanto isto, apresento, para consi<strong>de</strong>ração, uma analogia<br />

apropriada, explorada por Dorothy Sayers em Begin Here (Começa Aqui), um livro pouco<br />

conhecido, escrito durante a II Guerra Mundial. Ela soluciona o dilema assim:<br />

É verda<strong>de</strong> <strong>que</strong> o homem é dominado por sua constituição psicológica, mas apenas na<br />

mesma medida em <strong>que</strong> um artista é dominado por seu material. Não e possível a um<br />

escultor fazer um broche <strong>de</strong> filigrana a partir <strong>de</strong> uma pedra <strong>de</strong> granito; até este ponto<br />

ele é um servo da pedra em <strong>que</strong> trabalha. Sua habilida<strong>de</strong> e boa <strong>precisam</strong>ente enquanto<br />

usa o granito para expressar suas intenções artísticas <strong>de</strong> forma compatível com a<br />

natureza da pedra. Isto não é escravidão, e. sim, a liberda<strong>de</strong> da pedra e a liberda<strong>de</strong> do<br />

escultor trabalhando juntas, em harmonia. Quanto melhor o escultor enten<strong>de</strong>r a<br />

verda<strong>de</strong>ira natureza <strong>de</strong> seu material bruto, maior será sua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> usá–lo; e assim<br />

também é com cada homem, quando usa sua própria mente e emoções para expressar<br />

sua intenção consciente.<br />

Sayers prossegue <strong>de</strong>screvendo a diferença entre assassinar a sogra e escrever uma história<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>tetive sobre um crime semelhante. Os dois atos po<strong>de</strong>m nascer do mesmo impulso<br />

inconsciente, diz ela, assim como cada ativida<strong>de</strong> começa com o mesmo material bruto. No<br />

entanto, a diferença resi<strong>de</strong> exatamente em como o impulso inconsciente se transforma em<br />

ação.<br />

Cada vez nos aperfeiçoamos mais na i<strong>de</strong>ntificação do <strong>que</strong> Sayers <strong>de</strong>nominou "material<br />

bruto" <strong>de</strong> impulsos inconscientes e subconscientes. Talvez seja o momento a<strong>de</strong>quado para<br />

uma ênfase igualmente forte na liberda<strong>de</strong> humana <strong>que</strong> nos permite, às vezes, agir<br />

contrariamente ao subconsciente, pelo bem da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>.<br />

~ 79 ~


O PROBLEMA DO PRAZER<br />

Por <strong>que</strong> o sexo é uma fonte <strong>de</strong> prazer? Obviamente, a reprodução não re<strong>que</strong>r a existência<br />

do prazer: alguns animais simplesmente se divi<strong>de</strong>m ao meio, e até mesmo os humanos<br />

utilizam métodos <strong>de</strong> inseminação artificial <strong>que</strong> não envolvem prazer. Então, por <strong>que</strong> o sexo é<br />

uma fonte <strong>de</strong> prazer?<br />

Por <strong>que</strong> comer acarreta prazer? As plantas e os animais <strong>de</strong> organismos menos complexos<br />

conseguem obter sua cota <strong>de</strong> nutrientes sem o luxo <strong>de</strong> papilas gustativas. Por <strong>que</strong> não<br />

acontece o mesmo conosco?<br />

Por <strong>que</strong> existem cores? Algumas pessoas vivem muito bem sem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

distingui–las. Por <strong>que</strong> complicar o mecanismo da visão <strong>de</strong> todos os outros?<br />

Outra <strong>que</strong>stão: Que orgulho exagerado levou os fundadores dos Estados Unidos como<br />

nação a incluírem a busca da felicida<strong>de</strong> na lista em <strong>que</strong> relacionaram os três direitos<br />

inalienáveis? Na tentativa <strong>de</strong> explicar esta atitu<strong>de</strong>, disseram <strong>que</strong> consi<strong>de</strong>ravam <strong>que</strong> essas<br />

verda<strong>de</strong>s fossem evi<strong>de</strong>ntes por si só. Evi<strong>de</strong>ntes por si só? Ao avaliar a história, ninguém<br />

po<strong>de</strong>ria chegar à conclusão <strong>de</strong> <strong>que</strong> a busca da felicida<strong>de</strong> é um direito evi<strong>de</strong>nte e inalienável. A<br />

morte talvez o seja — ninguém po<strong>de</strong> roubá–la <strong>de</strong> nós, mas a busca da felicida<strong>de</strong>? Em <strong>que</strong> nos<br />

baseamos para tomá–la como certa?<br />

Percebi, outro dia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler mais um dos inúmeros livros <strong>que</strong> já me vieram às mãos<br />

sobre o problema da dor (<strong>que</strong> parece ser<br />

a obsessão teológica <strong>de</strong>ste século), <strong>que</strong> jamais vi um livro sobre "o problema do prazer". E<br />

nem encontrei qual<strong>que</strong>r filósofo <strong>que</strong> balance a cabeça em perplexida<strong>de</strong> frente à <strong>que</strong>stão básica<br />

<strong>de</strong> saber por <strong>que</strong> experimentamos o prazer.<br />

De on<strong>de</strong> vem o prazer? Esta me parece uma <strong>que</strong>stão muito importante <strong>que</strong>, para os<br />

ateístas, é a equivalente filosófica do problema da dor para os cristãos. Quanto ao prazer, os<br />

cristãos po<strong>de</strong>m respirar mais aliviados. Um Deus bom e amoroso naturalmente iria <strong>de</strong>sejar<br />

<strong>que</strong> suas criaturas sentissem prazer, alegria e satisfação pessoal. Nós, cristãos, partimos <strong>de</strong>sta<br />

pressuposição e <strong>de</strong>pois procuramos um modo <strong>de</strong> explicar a origem do sofrimento. Mas será<br />

<strong>que</strong> os ateístas e humanistas seculares não têm, também, a obrigação <strong>de</strong> explicar a origem do<br />

prazer em um mundo <strong>de</strong> acasos e ausência <strong>de</strong> significado?<br />

Pelo menos uma pessoa encarou o assunto com precisão. Em seu livro Orthodoxy<br />

(Ortodoxia), <strong>que</strong> não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ler, G.K. Chesterton ligou sua própria conversão ao<br />

cristianismo ao problema do prazer. Ele <strong>de</strong>scobriu <strong>que</strong> o materialismo era muito frágil para<br />

justificar o sentimento <strong>de</strong> admiração e prazer <strong>que</strong> algumas vezes caracteriza nossa reação ao<br />

mundo, e em especial a atos humanos bem simples, como sexo, nascimento e criação artística.<br />

Eis como ele <strong>de</strong>screve a experiência:<br />

Senti no mais interior do meu ser, em primeiro lugar, <strong>que</strong> este mundo não explica a si<br />

mesmo.... Segundo, passei a sentir como se o<br />

<strong>que</strong> é mágico precisasse ter um sentido e o sentido requisesse alguém para estabelecê–<br />

lo. Existe um to<strong>que</strong> pessoal no mundo, assim como há um to<strong>que</strong> do artista em uma<br />

obra <strong>de</strong> arte ... Terceiro, consi<strong>de</strong>rei este propósito belo em sua velha forma, apesar <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ficiências como os dragões. Quarto, <strong>que</strong> o modo apropriado <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cer por tudo é<br />

através <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> e restrição. Deveríamos agra<strong>de</strong>cer a Deus pela<br />

cerveja e o vinho da Borgonha não bebendo muito <strong>de</strong>les. ... E por último, e o mais<br />

estranho, veio–me à mente a impressão vaga, mas ampla, <strong>de</strong> <strong>que</strong>, <strong>de</strong> algum modo,<br />

todo o bem era um vestígio a ser guardado e valorizado, o <strong>que</strong> restou <strong>de</strong> uma ruína<br />

inicial. O homem salvou o bem <strong>que</strong> há nele, assim como Robinson Crusoe salvou seus<br />

pertences: retirando–os do meio dos <strong>de</strong>stroços.<br />

~ 80 ~


Falta pág. (189)<br />

nos conce<strong>de</strong>u boas dádivas como impulso sexual, papilas gustativas e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

apreciar a beleza. Como Eclesiastes nos mostra, uma <strong>de</strong>voção total ao prazer,<br />

paradoxalmente, levar–nos–á a um estado <strong>de</strong> completa <strong>de</strong>sesperança.<br />

E tudo isso me leva a pensar em uma abordagem totalmente nova da <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong> nossa<br />

socieda<strong>de</strong>. Iodo domingo ligo a televisão e ouço pregadores execrarem as drogas, a<br />

liberalida<strong>de</strong> sexual, a cobiça e os crimes <strong>que</strong> "correm soltos" pelas ruas das cida<strong>de</strong>s dos<br />

Estados Unidos. Mas, em vez <strong>de</strong> apenas apontar o <strong>de</strong>do para esses abusos óbvios dos<br />

presentes <strong>de</strong> Deus, talvez <strong>de</strong>vêssemos trabalhar para <strong>de</strong>monstrar ao mundo <strong>de</strong> on<strong>de</strong> provêm,<br />

na verda<strong>de</strong>, as boas dádivas, e por <strong>que</strong> são boas. Penso em uma Frase antiga: "A hipocrisia é a<br />

reverência <strong>que</strong> o vício faz à virtu<strong>de</strong>." Drogas fazem reverência à verda<strong>de</strong>ira beleza, a<br />

promiscuida<strong>de</strong> à satisfação sexual, a cobiça à mordomia, e o crime é um atalho para apo<strong>de</strong>rar–<br />

se <strong>de</strong> todo o resto.<br />

De algum modo, os cristãos adquiriram a reputação <strong>de</strong> serem contra o prazer, apesar <strong>de</strong><br />

acreditarem <strong>que</strong> o prazer foi invenção do próprio Criador. Temos <strong>que</strong> fazer uma escolha.<br />

Po<strong>de</strong>mos apresentar–se como pessoas rígidas, enfadonhas, <strong>que</strong> são privadas, sacrificialmente,<br />

<strong>de</strong> meta<strong>de</strong> da graça da vida, limitando nosso <strong>de</strong>leite no sexo, nos alimentos e em outros<br />

prazeres dos sentidos. Ou po<strong>de</strong>mos dispor–nos a aproveitar ao máximo o prazer, o <strong>que</strong><br />

significa usufruir <strong>de</strong>le da maneira <strong>que</strong> o Criador pretendia ao nos moldar.<br />

Nem todos adotarão a filosofia cristã do prazer. Alguns céticos zombarão <strong>de</strong> qual<strong>que</strong>r<br />

insistência quanto à mo<strong>de</strong>ração, com uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> con<strong>de</strong>scendência. Para estes, tenho<br />

algumas perguntas simples. Por <strong>que</strong> o sexo e prazeroso? Por <strong>que</strong> e gostoso comer? Por <strong>que</strong><br />

existem cores? Ainda estou à espera <strong>de</strong> uma boa explicação <strong>que</strong> não inclua a palavra Deus.<br />

Este livro foi composto por Henri<strong>que</strong> Nogueira e Rafael Alt.<br />

em Agaramond e Optima, e impresso pela<br />

Imprensa da Fé", em papel offset 75g/m 2 , com filmes<br />

fornecido? pela N2 Prépress Fotolitos.<br />

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