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Revista de Política e Cultura da ADUFF Ano I - nº 2<br />
2Violência, Mídia<br />
e<br />
Criminalização<br />
da Pobreza
Associação dos Docentes da UFF<br />
ADUFF<br />
SSind<br />
Seção sindical do Andes<br />
Filiado à CONLUTAS<br />
SUMÁRIO<br />
“Cantamos porque chove sobre os<br />
sulcos... e somos militantes desta<br />
vida. E porque não podemos e nem<br />
queremos deixar que a canção se<br />
torne cinzas.”<br />
(Mário Benedetti)<br />
Revista da Associação dos Docentes da UFF. Rua<br />
professor Lara Vilela, 110. São Domingos, Niterói-RJ.<br />
CEP: 24.210-590.Tels: (21) 2622-2649 e 2620-1811.<br />
Correio eletrônico: revistaclasse@uol.com.br<br />
EDIÇÃO GERAL e REDAÇÃO: Stela Guedes Caputo.<br />
PROJETO GRÁFICO: Cláudio Camillo e Stela Guedes<br />
Caputo. DIAGRAMAÇÃO: Luiz Fernando Nabuco.<br />
ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO: Carolina Barreto.<br />
REVISÃO: Isabel Correia.<br />
CONSELhO EDITORIAL: Marina Barbosa Pinto,<br />
Suenya Santos da Cruz, Gelta Theresinha Ramos<br />
Xavier, Juarez Torres Duayer, Elisabeth Carla Barbosa,<br />
Eliane Arenas Mora, Paulo Cresciulo de Almeida,<br />
Larissa Dahmer Pereira, Claudia March, Julio Carlos<br />
Figueiredo, José Raphael Bokehi, Ângela R.M.B Tamberlini,<br />
Eunice Treim, Catharina Marinho Meirelles.<br />
Colaboraram nesta edição, além de todos os<br />
que assinam textos e fotos: Roberto Leher,<br />
Marcelo Badaró Mattos, Juliana Caetano, Isabel<br />
Correia e Luiz Fernando Nabuco.<br />
Gestão: Autônoma, Democrática e de Luta<br />
Editorial ........................................................................................ pág. 2<br />
Contra Corrente<br />
Guetos e antiguetos: a nova anatomia da pobreza urbana ..................................... pág. 4<br />
Amauta<br />
Criminalização dos movimentos sociais na América Latina ................................... pág. 10<br />
Pública, Gratuita e de Qualidade<br />
Desvio do caráter da Universidade:<br />
administração mercantil fere a democracia<br />
e deturpa essência da instituição ............................................................ pág. 14<br />
“Na trincheira da música nossa principal luta é contra o Jabá” ............................... pág. 19<br />
Estação Terminal ............................................................................... pág. 25<br />
Lima Barreto: um intelectual militante ................................................... pág. 26<br />
De Capa<br />
Violência, mídia e criminalização da pobreza ............................................. pág. 28<br />
Entrevista com Cel. Mário Sérgio Duarte, Presidente do ISP ............................. pág. 30<br />
Entrevista com Cecília Coimbra,<br />
Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais ............................................... pág. 36<br />
Entrevista com José Damião de Lima Trindade,<br />
Procurador do Estado de São Paulo ..................................................... pág. 46<br />
Mídia e política<br />
Comunicação e controle social .............................................................. pág. 53<br />
Mais do mesmo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro ............................... pág. 56<br />
Filmes<br />
Algumas reflexões a partir do filme “Quanto vale ou é por quilo?” .......................... pág. 58<br />
Nossa resenha<br />
Planeta favela ................................................................................... pág. 61<br />
Histórias de Vida<br />
Professor Ronaldo Coutinho ................................................................. pág. 66<br />
Poesia<br />
Deley de Acari .................................................................................. pág. 69<br />
Diálogos com a cidade<br />
Aldeia Imbuhy: clima de tensão com o<br />
Exército há mais de uma década ........................................................... pág. 70<br />
ADUFF: 30 anos de luta! ..................................................................... pág. 76<br />
Hiperfocal<br />
João Ripper .................................................................................... pág. 79
2<br />
Editorial<br />
De Maio a Dezembro<br />
40 anos, depois?<br />
Em maio deste ano a ADUFF lançou o primeiro<br />
número de sua revista Classe. 40 anos depois do<br />
maio de 1968 francês refletíamos sobre como nossas<br />
expectativas de mudar o mundo se apresentavam<br />
(e se apresentam ainda) na produção artística. Arte<br />
e política – há arte e cultura não-política? – era o<br />
tema central daquele primeiro número. Arte e política<br />
estarão sempre presentes nas páginas de Classe,<br />
como nas páginas seguintes, através das músicas de<br />
BNegão, dos poemas de Deley, das fotos de Ripper,<br />
das peças e filmes aqui comentados.<br />
Mas é em dezembro que trazemos a público<br />
este segundo número de Classe. Por isso, 40 anos<br />
depois do AI-5 e 60 anos após a assinatura da Declaração<br />
dos Direitos Humanos indagamos sobre<br />
Violência, Mídia e criminalização da pobreza. Mais<br />
uma criança de favela assassinada. Dessa vez, o<br />
menino Matheus Rodrigues Carvalho, de 8 anos,<br />
morto por um policial na manhã de 4 de dezembro,<br />
ao sair de sua casa, na Maré, para comprar<br />
pão. Questionamos então: que democracia é essa<br />
que afirma ter superado a ditadura e seu AI-5 mas<br />
mantém de pé, e mais forte do que nunca, a institucionalização<br />
da violência contra os cidadãos que<br />
constituía o cerne daquele Ato Institucional?<br />
Sim, os alvos hoje não são<br />
os mesmos, os “subversivos” de<br />
1968 já não estão aí (ou estão,<br />
só que agora do outro lado dos<br />
gabinetes – e das baionetas).<br />
Mas, isso ajuda a desvelar as<br />
máscaras: o inimigo continua<br />
sendo criminalizado, mas o inimigo<br />
tem várias faces, numa só,<br />
de Classe. O inimigo, criminalizado,<br />
é o(a) trabalhador(a), especialmente<br />
o(a) trabalhador(a)<br />
empobrecido(a), precarizado(a),<br />
desempregado(a), negro(a),<br />
favelado(a). Porque assim como na fase inicial de implantação<br />
do capitalismo o grau violentíssimo de expropriação<br />
a que se submeteu a maioria da população,<br />
para se criar uma massa de homens e mulheres<br />
“livres como um pássaro” para que vendessem sua<br />
força de trabalho por um salário, exigiu a criação de<br />
corpos profissionalizados de “impositores de regras”<br />
e “mantenedores da ordem” – a polícia – a extrema<br />
violência do capitalismo contemporâneo, nessa sua<br />
contraditória e necessária fúria para superar a(s)<br />
sua(s) crise(s), que impõem novas expropriações<br />
Menino morto pela polícia no Complex<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
o da Maré quando ia comprar pão, no dia 4 de dezembro.<br />
Foto: Naldinho Lourenço/Imagens do Povo<br />
(entre elas a de direitos) aos(às) trabalhadores(as),<br />
exige o reforço da repressão policial, da criminalização<br />
de comportamentos, da jurisdicialização dos<br />
conflitos. Criminalização da pobreza é como chamam<br />
mais corriqueiramente esse processo. E se<br />
esses mesmos trabalhadores ousam ainda se organizar<br />
e, eventualmente, mobilizar-se para exigir, a<br />
receita não poderia ser outra: criminalização dos<br />
movimentos e organizações da Classe.<br />
Esse não é um fenômeno brasileiro: Loïc Wacquant,<br />
Claudia Koroll e Mike Davis (resenhado por<br />
Maurício Vieira) demonstram a escala planetária<br />
(como planetário é o violento avanço expropriativo<br />
e exploratório do capital) do fenômeno da implantação<br />
de um verdadeiro Estado policial-penal cujo objetivo<br />
é controlar as populações trabalhadoras e os<br />
territórios que habitam. Todos sabemos, entretanto,<br />
pela simples leitura dos relatórios das organizações<br />
internacionais envolvidas na questão dos direitos<br />
humanos, que o Brasil não é campeão apenas de<br />
futebol, mas que a violência de Estado contra os cidadãos<br />
assume aqui proporções absurdas.<br />
Neste número de Classe, através de três<br />
entrevistas, damos voz ao coronel Mário Sérgio<br />
Duarte, ex-comandante do BOPE e atual<br />
presidente do Instituto de Segurança Pública,<br />
de forma a deixar evidente as bases da atual<br />
política de “segurança” pública. Ouvimos Cecília<br />
Coimbra, professora aposentada da UFF e<br />
presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, para<br />
entender como a ditadura militar ainda vive na<br />
ditadura do mercado. E José Damião Trindade,<br />
ex-presidente da Associação de Procuradores do<br />
Estado de São Paulo, que nos deu uma aula sobre<br />
a história dos direitos humanos. Ao fim da<br />
leitura dessas entrevistas assumimos a escolha<br />
por Prometeu, que nos apresenta Damião e<br />
diante de um capitalismo regressivo em que “não<br />
há mais nenhuma esperança de melhoria social<br />
significativa” escolhemos lutar pelos direitos humanos<br />
da única e necessária forma em que ela<br />
pode ser feita hoje, como uma luta de Classe(s),<br />
contra a ordem do capital. E com Cecília afirmamos<br />
que como “toda identidade é conservadora<br />
se não lutar contra o capital”, nossa identidade<br />
é anti-capitalista, pela humanidade livre,<br />
é identidade de Classe.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 3
Contra Corrente<br />
4<br />
GUETOS E ANTIGUETOS<br />
ANATOMIA DA NOVA<br />
POBREZA URBANA<br />
Entrevista com Loïc Wacquant<br />
Realizada por Caroline Keve para a Debate (julho de 2007)<br />
Nascido no sul da França em 1960, Loïc Wacquant<br />
é professor da Universidade da Califórnia-<br />
Berkeley e Pesquisador do Centro de Sociologia<br />
Européia – Paris. Autor de numerosos trabalhos<br />
sobre desigualdade urbana, dominação etno-racial,<br />
Estado penal, corpos e teoria social, traduzido<br />
em mais de uma dezena de idiomas. Entre<br />
seus livros, encontram-se, em português, “As<br />
prisões da miséria” (Jorge Zahar, 2001), “Os<br />
condenados da cidade. Estudos sobre marginalidade<br />
avançada” (Revan, 2001) “Corpo e alma”<br />
(Relume-Dumara, 2002), “Punir os Pobres”<br />
(Revan, 2007), “Repensar os Estados Unidos”<br />
(Papirus, 2003), “O mistério do mistério” (Revan,<br />
2005), “Um convite à sociologia reflexiva”<br />
(Relume-Dumara, 2006) e “As duas faces do<br />
Gueto” (Boitempo Editorial, 2008).<br />
Em “Os condenados da cidade”, você traça<br />
uma comparação metodológica entre<br />
a evolução do gueto negro nos Estados<br />
Unidos e da periferia francesa operária, o<br />
banlieue¹, durante as últimas três décadas.<br />
Por que você se aprofundou nessa comparação<br />
e o que ela revela sobre a mutante<br />
cara da pobreza na cidade?<br />
Loïc Wacquant: Esse livro nasceu da confluência<br />
de dois choques, o primeiro pessoal e o segundo,<br />
político. O choque pessoal foi o descobrimento em<br />
primeira mão do gueto negro estadunidense – ou do<br />
que resta dele – quando me mudei para Chicago e<br />
vivi no South Side por seis anos. Vindo da França,<br />
me chamou à atenção a intensidade da desolação<br />
urbana, as privações sociais e a violência das ruas<br />
concentrada nessa terra non grata que era univer-<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
salmente temida, evitada e denegrida pelo mundo<br />
exterior, inclusive por muitos acadêmicos.<br />
O choque político foi a difusão de um pânico moral<br />
sobre a “guetização” na França e em muitas partes<br />
da Europa Ocidental. Na década de 90, a mídia, os<br />
políticos e até alguns pesquisadores acreditavam<br />
que os bairros operários das periferias das cidades<br />
européias estavam se transformando em “guetos”<br />
ao estilo daqueles dos EUA. Desse modo, o debate<br />
público e as políticas de Estado se reorientaram<br />
para lutar contra o crescimento disso que chamavam<br />
de gueto. Baseavam-se na premissa de que<br />
a pobreza urbana estava sendo “americanizada”,<br />
ou seja, marcada por uma divisão étnica cada vez<br />
mais profunda, por uma crescente segregação e<br />
pela criminalidade desenfreada.<br />
Juntando esses dois choques, chegamos à pergunta<br />
que provocou uma década de pesquisa: o gueto dos<br />
EUA e os distritos de classe baixa da Europa convergem?<br />
Se não, o que está acontecendo com eles?<br />
O que provoca sua transformação? Para responder<br />
a essas perguntas, juntei dados estatísticos e observações<br />
de trabalho de campo de uma seção dilapidada<br />
do “cinturão negro” de Chicago e do subúrbio<br />
parisiense desindustrializado, o “cinturão<br />
vermelho”. Também reconstruí a trajetória histórica<br />
desses bairros – porque não se pode entender<br />
seu declínio na década de 90 sem considerar o que<br />
sucedeu no século XX, marcado pelo auge e pela<br />
desaparição da industrialização fordista, assim<br />
como do Estado de bem-estar social keynesiano.<br />
Então, o que aconteceu no cinturão negro<br />
americano e no cinturão vermelho francês?<br />
Eles, de fato, convergem?<br />
Do lado americano, mostro que depois das re-<br />
voltas da década de 60 o gueto negro implodiu,<br />
entrou em colapso por si mesmo devido à simultânea<br />
contração da economia de mercado e retirada<br />
do Estado social. O resultado foi uma nova<br />
forma urbana que denomino “hipergueto” e que<br />
se caracteriza por uma dupla exclusão, baseada<br />
na raça e na classe, e reforçada por uma política<br />
de retirada do Estado de bem-estar e de abandono<br />
urbano. Assim, quando falamos do gueto estadunidense,<br />
devemos contextualizá-lo historicamente,<br />
sem confundir o “gueto comunal” da década<br />
de 50 com sua descendência do final do século.<br />
O gueto comunal era um mundo paralelo, uma<br />
“cidade negra dentro da branca”, como os sociólogos<br />
afro-americanos St. Clair Drake e Orase<br />
Cayton o chamam na sua obra-livro Black Metropolis.<br />
Esse gueto funcionava como uma reserva de<br />
trabalho não qualificado para as fábricas. Essa<br />
reserva fazia parte de uma densa rede de organizações,<br />
que oferecia proteção contra a dominação<br />
branca. Com a desindustrialização e a mudança<br />
para o capitalismo financeiro, o hipergueto perde<br />
sua função econômica e se desprende das organizações<br />
comunais, que, por sua vez, são substituídas<br />
por instituições estatais de controle social.<br />
Este é claramente um instrumento de exclusão,<br />
um mero receptáculo para as estigmatizadas e<br />
superficiais frações do proletariado negro: os desempregados,<br />
os beneficiários da assistência social,<br />
os criminosos e os participantes da expansiva<br />
economia informal.<br />
Do lado francês, a percepção dominante politicamente<br />
e nos meios de comunicação é fatalmente<br />
equivocada: os municípios de classe baixa passaram<br />
por um processo de empobrecimento e deteriorização<br />
gradual que os afastou do padrão de gueto.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 5
Um gueto é um território encravado noutro, etnicamente<br />
homogêneo, que abarca todos os membros<br />
de uma categoria subordinada e suas instituições e<br />
também previne sua expansão para a cidade. Atualmente,<br />
os banlieues, em deterioração, são muito<br />
heterogêneos e se tornaram mais diversificados em<br />
termos de composição étnica nas três últimas décadas;<br />
tipicamente, contêm uma maioria de cidadãos<br />
franceses e imigrantes de cerca de duas ou três dezenas<br />
de nacionalidades. A crescente presença desses<br />
migrantes pós-coloniais é o resultado de uma<br />
diminuição da separação espacial: eles costumavam<br />
ter seu acesso negado às habitações públicas e,<br />
em conseqüência, mais se segregavam. Os residentes<br />
que ascendem nessa estrutura de classe, seja<br />
pela escolarização, pelo mercado de trabalho ou<br />
por empreendimentos, rapidamente abandonam<br />
essas áreas degradadas.<br />
Os banlieues do cinturão vermelho também perderam<br />
a maioria das instituições locais ligadas<br />
ao Partido Comunista (ao qual devem seu nome),<br />
que costumava organizar a vida ao redor das fábricas,<br />
os sindicatos e o próprio bairro, e dava<br />
às pessoas um orgulho coletivo da sua classe e<br />
da sua cidade. Sua heterogeneidade étnica, as<br />
fronteiras porosas, a decrescente densidade institucional<br />
e a incapacidade de criar uma identidade<br />
cultural comum fazem com que essas áreas<br />
sejam o oposto dos guetos: são antiguetos.<br />
Isto vai contra a imagem pintada pela mídia<br />
e pelos políticos franceses (de direita e<br />
de esquerda), assim como dos ativistas mobilizados<br />
em torno dos temas imigratórios,<br />
raciais e de cidadania.<br />
Esta é uma boa ilustração, uma contribuição cha-<br />
6<br />
ve da sociologia<br />
ao debate civil:<br />
através da conceituação<br />
precisa e<br />
da observação sistemática,<br />
vêem-se<br />
as grandes brechas<br />
– que nesse<br />
caso configuram<br />
uma total contradição<br />
entre a<br />
percepção pública<br />
e a realidade social.<br />
Os imigrantes<br />
e seus filhos se<br />
mesclaram mais Protesto contra a morte de três jovens do Morro da Pr<br />
a traficantes do Morro de São Carlos. Foto: Marcelo Sa<br />
nas cidades francesas,<br />
não se separaram; por seus perfis sociais e<br />
oportunidades, se parecem mais com os nativos da<br />
França, deixaram de ser diferentes. Dispersaramse<br />
no espaço, em vez de se concentrarem. Precisamente<br />
porque agora estão mais “integrados” na<br />
vida nacional dominante e competem pelos bens<br />
coletivos, eles são vistos como uma ameaça, e a<br />
xenofobia aparece entre os segmentos nativos da<br />
classe trabalhadora, ameaçada pela instabilidade<br />
social agravada.<br />
As periferias urbanas na Europa Ocidental não<br />
sofrem de “guetização”, mas da dissolução da classe<br />
trabalhadora tradicional como resultado da normalização<br />
do desemprego massivo e da expansão<br />
de trabalhos instáveis a médio prazo, além de serem<br />
difamadas no debate público. Objetivamente, o<br />
discurso da “guetização” faz parte da demonização<br />
simbólica dos distritos de classe baixa, que os debilita<br />
socialmente e os marginaliza politicamente.<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
“Os Condenados”<br />
demonstra<br />
que a tese da<br />
“convergência”<br />
entre Europa e<br />
América dentro<br />
do modelo do<br />
gueto negro é<br />
empiricamente<br />
incorreta e enganosa<br />
em termos<br />
políticos. Em seguida,<br />
revela a<br />
“emergência” de<br />
um novo regime<br />
de pobreza urbana<br />
em ambos os<br />
lados do Atlântico, distinto do regime da metade<br />
do século passado, que estava ancorado no trabalho<br />
industrial estável e na rede de segurança<br />
do Estado keynesiano. A atual marginalidade<br />
avançada se alimenta da fragmentação do trabalho<br />
assalariado, da reorientação das políticas<br />
de Estado, contrária à proteção social e a favor<br />
da compulsão do mercado, e do generalizado ressurgimento<br />
da desigualdade – isto é, marginalidade<br />
produzida pela revolução neoliberal. Isso<br />
significa que tal marginalidade não está ficando<br />
para trás, mas que ainda vem muito pela frente.<br />
Está destinada a persistir e a crescer enquanto<br />
os governos implementarem políticas de desregulação<br />
econômica e de “acomodação” dos bens<br />
públicos. Mas esta nova realidade social, engendrada<br />
pela escassez e instabilidade do trabalho<br />
e pelo volúvel papel do Estado, é ofuscada pelo<br />
“etnizado” idioma da imigração, da discrimi-<br />
ovidência, entregues por militares<br />
lles<br />
nação e da “diversidade”. Tratam-se de temas<br />
reais, sem dúvida, mas não são a força motriz<br />
da marginalização da periferia urbana européia.<br />
Mais do que isso, não servem para esconder a<br />
nova questão social do trabalho inseguro e suas<br />
conseqüências para a formação de um novo proletariado<br />
urbano do século XXI.<br />
No livro, você ressalta a indignidade coletiva<br />
sentida por aquela gente imobilizada no<br />
hipergueto e no desindustrializado banlieue.<br />
Os moradores do cinturão negro perderam<br />
o orgulho racial e seus correlatos do cinturão<br />
vermelho perderam o orgulho de classe.<br />
Você sustenta que a “estigmatização territorial”<br />
é uma nova dimensão da marginalidade<br />
urbana, tanto nos EUA, como na Europa,<br />
no amanhecer de um novo século.<br />
De fato, uma das características distintivas da<br />
marginalidade avançada é a propagação do estigma<br />
espacial, que desdenha das pessoas vindas<br />
dos bairros relegados. Em toda sociedade avançada,<br />
determinados distritos ou bairros urbanos<br />
se tornaram símbolos nacionais e referenciais<br />
como portadores de todos os males da cidade. A<br />
crescente difamação dos distritos de classe mais<br />
baixa das metrópoles é uma conseqüência direta<br />
do enfraquecimento dos afro-americanos no sistema<br />
político estadunidense e da classe trabalhadora<br />
no cenário político europeu.<br />
Quando um distrito é amplamente visto como um<br />
“ninho de criminosos”, onde só os detritos da sociedade<br />
podem tolerar viver, quando seu nome,<br />
para a imprensa e para a política, é sinônimo de<br />
vício e violência, o lugar é infectado e essa condição<br />
se sobrepõe ao estigma da pobreza e etnicida-<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 7
de (que significa raça, nos EUA, e origem colonial<br />
na Europa). Aqui, me remeto às teorias de Irving<br />
Goffman e de meu mestre Pierre Bourdieu para<br />
ressaltar como a desgraça pública que afeta essas<br />
áreas desvaloriza o sentido de ser de seus residentes<br />
e corrói seus laços sociais. Em resposta à difamação<br />
espacial, os residentes recorrem a estratégias<br />
de distanciamento mútuo e denegrimento<br />
uns dos outros, se voltam para a esfera privada da<br />
família, saem do bairro (quando têm opção). Essas<br />
práticas de auto-proteção simbólica disparam um<br />
mecanismo de realização pessoal, no qual a reação<br />
às representações negativas do lugar acabam por<br />
produzir a mesma anomia cultural e pulverização<br />
social que tais representações acusam existir.<br />
A estigmatização territorial não só debilita a capacidade<br />
de identificação e ação coletiva das famílias<br />
de classe baixa, como também desencadeia<br />
prejuízos, burocracias e discriminação por parte<br />
de quem se encontra no mundo exterior, como os<br />
funcionários públicos, por exemplo. Os jovens de<br />
La Courneuve, o estigmatizado cinturão vermelho<br />
parisiense que estudei, se queixam constantemente<br />
de serem obrigados a esconder seu endereço quando<br />
se candidatam a um emprego, começam algum<br />
relacionamento ou freqüentam a universidade,<br />
para evitar reações negativas de medo ou rechaço.<br />
A polícia, considerando que os jovens vêm desse<br />
gueto freqüentemente visto como temível, já “infectados”,<br />
é particularmente suscetível a tratá-los<br />
com maior severidade. O estigma territorial é um<br />
obstáculo a mais no caminho da integração sócioeconômica<br />
e da participação civil.<br />
Note-se que o mesmo fenômeno se observa na<br />
América Latina entre os habitantes das malreputadas<br />
favelas do Brasil, das poblaciones do<br />
8<br />
Chile e das villas miréria da Argentina. Suspeito<br />
que os residentes da vila do Bajo Flores, La Cava<br />
ou da vila do Retiro, em Buenos Aires, sabem<br />
muito bem o que é a “discriminação domiciliar”.<br />
Esse estigma territorial se anexa aos distritos<br />
de classe baixa da cidade argentina pela mesma<br />
razão que se anexa ao hipergueto dos EUA e ao<br />
antigueto da Europa: a concentração de desempregados,<br />
de sem-teto, de imigrantes sem documentos,<br />
assim como dos mais pobres segmentos<br />
do novo proletariado urbano, empregado na desregulada<br />
economia de serviços. Outro motivo é<br />
que a tendência das elites de Estado é usar esses<br />
espaços como “pára-raios” para evitar o enfrentamento<br />
dos problemas cuja raiz se encontra nas<br />
transformações do trabalho.<br />
Esse estigma territorial, por acaso, facilita<br />
um giro ao Estado penal e à implementação<br />
de políticas de tolerância zero, cuja expansão<br />
mundial você analisou em seu livro anterior,<br />
As prisões da miséria?<br />
A contaminação espacial oferece ao Estado maior<br />
amplitude para justificar políticas agressivas<br />
de controle da nova marginalidade, que podem<br />
assumir a forma de dispersão ou contenção, ou,<br />
melhor ainda, uma combinação de ambos os enfoques.<br />
A dispersão aponta para dispersar os pobres<br />
no espaço e recuperar os territórios que eles<br />
tradicionalmente ocuparam, sob o pretexto de<br />
seus bairros serem áreas demonizadas, às quais<br />
“não se pode chegar” e que simplesmente não<br />
têm salvação. Atualmente, isso funciona a partir<br />
da demolição massiva de moradias públicas<br />
no coração dos guetos das metrópoles estadunidenses<br />
e nas empobrecidas periferias de muitas<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
cidades européias. Milhares de habitações são<br />
destruídas no meio da noite, e seus ocupantes<br />
são espalhados por zonas adjacentes ou por<br />
distritos pobres nas cercanias, criando a aparência<br />
de que “o problema foi resolvido”. Mas<br />
dispersar os pobres só os torna menos visíveis<br />
e menos capazes de intervenção politicamente;<br />
não lhes oferecem trabalho, nem tampouco<br />
um status social viável.<br />
A segunda técnica utilizada para lidar com o<br />
avanço da marginalização tem enfoque oposto:<br />
busca concentrar e conter as desordens geradas<br />
pela fragmentação do trabalho. O que faz é jogar<br />
uma rede policial cerrada ao redor dos bairros relegados<br />
e expandir os aprisionamentos e cárceres,<br />
para enviar os elementos mais rebeldes para um<br />
exílio crônico. Esta contenção punitiva é normalmente<br />
acompanhada, na frente social, por medidas<br />
destinadas a forçar o encaixe dos receptores<br />
de assistência pública na desregulada economia<br />
de serviços, em nome do “workfare”² (falo da<br />
invenção dessas novas políticas de pobreza nos<br />
EUA, casadas com o restritivo sistema de “workfare”<br />
e o expansivo “prisionfare” no meu livro<br />
seguinte, “Castigar os pobres”). Mas a política<br />
“pulso firme” ou “tolerância zero” é também de<br />
autoderrota. Enviar os desempregados, os empregados<br />
marginalizados e os pequenos criminosos<br />
para a cadeia os torna ainda menos empregáveis<br />
e mais desestabiliza os bairros e as famílias de<br />
classe baixa. Acionar a polícia, o judiciário e os<br />
cárceres para terminar com a marginalidade não<br />
só é enormemente custoso e ineficiente, mas também<br />
agrava o mal que se quer curar. Assim, voltamos<br />
a entrar no círculo vicioso há muito tempo<br />
delimitado por Michel Foucault: o fracasso do<br />
aprisionamento como resolução para o problema<br />
da marginalidade serve para justificar a contínua<br />
expansão da mesma.<br />
Além do mais, na Argentina e em seus países vizinhos,<br />
que durante o século XX atravessaram décadas<br />
de governos autoritários, a própria polícia é<br />
um vetor de violência e o aparato judicial abunda<br />
em desigualdade. Assim, estender o Estado penal<br />
à correlação de classes e lugares equivale a restabelecer<br />
uma ditadura sobre as frações marginais<br />
da classe trabalhadora. Viola, na prática, o ideal<br />
da democracia cidadã, que teoricamente guia as<br />
autoridades. O que o Estado deve combater não é<br />
o sintoma, a insegurança criminosa, mas a causa<br />
da desordem urbana: a insegurança social que o<br />
mesmo Estado gerou ao se converter em um diligente<br />
servidor do despotismo do mercado.<br />
Notas da tradutora:<br />
Tradução do original em espanhol<br />
de Juliana Caetano<br />
¹ Zona periférica urbanizada, localizada em torno de uma grande<br />
cidade, sem ser independente dela; o que poderia ser traduzido por<br />
“subúrbio”. Entretanto, acabou por nomear especificamente as comunidades<br />
e comunas suburbanas francesas, sejam bairros ou municípios,<br />
onde vivem os trabalhadores que a metrópole emprega, mas não abriga,<br />
dotadas das características sociais abordadas na presente entrevista.<br />
² Programa de assistência social que se contrapõe ao antigo welfare,<br />
ou Estado de bem-estar social, ou, ainda, Estado providência. No workfare,<br />
é preciso trabalhar para receber em troca o benefício social básico, ou seja,<br />
os desempregados participam de iniciativas do governo para que a renda<br />
do próprio trabalho seja sua providência.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 9
Amauta<br />
Claudia Koroll - Especial para a revista Classe<br />
Professora da Universidad popular Madres de Plaza de Mayo (Argentina)<br />
Terminado o ciclo de ditaduras militares na<br />
América Latina, quando os povos comemoram a<br />
“conquista da democracia”, as classes dominantes<br />
começam o processo de readequação dos mecanismos<br />
de controle, de afirmação de sua hegemonia,<br />
de produção de consenso, de fragmentação social e<br />
de repressão, necessários para assegurar o modo de<br />
acumulação capitalista na presente etapa. As “democracias<br />
realmente existentes” asseguram a livre<br />
movimentação de capitais e reagem furiosamente<br />
se os movimentos populares criam obstáculos à sua<br />
reprodução ou circulação. Os organismos internacionais<br />
de gestão do “governo mundial das multinacionais”<br />
(FMI, Banco Mundial, OMC, G-8, etc.) criam<br />
programas para garantir que o saque sistemático<br />
dos bens dos territórios subordinados a suas estratégias<br />
tenha vias de saída para o Primeiro Mundo.<br />
Promovem legislações para defender seus direitos.<br />
Criam forças militares para patrulhar e controlar<br />
essas regiões (como a IV Frota norte-americana).<br />
O capital ganhou direitos nessas “novas democracias”.<br />
O que não se observa suficientemente<br />
é como, ao mesmo tempo, os povos perderam direi-<br />
10<br />
Criminalização dos movimentos<br />
sociais na América Latina¹<br />
tos, em especial @s socialmente excluíd@s, enclausurados<br />
em verdadeiros guetos de miséria e indigência,<br />
em regiões onde não há direitos nem lei,<br />
salvo o grito de ordem das forças repressivas. Da<br />
Doutrina de Segurança Nacional, passou-se à Doutrina<br />
de Segurança Cidadã, ou à Doutrina de Segurança<br />
Democrática. A primeira perseguia preferencialmente<br />
@s “subversiv@s”, ou seja, os que não aceitavam a<br />
“ordem” imposta pelas burguesias e pelo imperialismo<br />
para defender e reproduzir seu sistema. Hoje se perseguem<br />
“os criminosos”, entendendo por criminoso tanto<br />
um movimento social que se levanta para recuperar a<br />
terra, cuidar do território que habita, evitar a destruição<br />
da natureza, <strong>fazer</strong> produzir uma fábrica abandonada<br />
por seus patrões, como alguém que, empurrado<br />
violentamente ao desamparo, cata comida no lixo, ou<br />
papelão nas ruas para sobreviver penosamente.<br />
A criminalização dos movimentos populares é<br />
um aspecto orgânico da política de controle social do<br />
capitalismo para garantir sua reprodução e ampliação.<br />
Articula planos diversos que vão desde a criminalização<br />
da pobreza e judicialização do protesto social<br />
até a repressão política aberta e a militarização.<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
A chamada “globalização” elevou a “guerra<br />
dos ricos contra os pobres” a uma dimensão mundial.<br />
Se os governos imperialistas, em nome da<br />
“democracia”, da “liberdade”, do “desenvolvimento”<br />
e do “progresso” invadiram e destruíram países e<br />
civilizações, promoveram a fragmentação dos Estados<br />
que se negavam a agir de maneira subordinada<br />
a seus interesses, assassinaram presidentes<br />
e colocaram numa lista de “criminosos” líderes populares<br />
como integrantes do “Eixo do Mal” (num<br />
discurso fundamentalista que tange o fascismo),<br />
isto, no âmbito local, se traduz na perseguição aos<br />
movimentos de defesa dos bens da natureza, dos<br />
direitos sociais, humanos, políticos.<br />
Como conseqüência das políticas de exclusão<br />
social e de precarização de todos os planos da vida,<br />
se produzem novos fenômenos nas relações sociais.<br />
O medo “do outro” é um dos dados significativos “organizadores”<br />
dessas relações de desigualdade, desconfiança<br />
e diluição das solidariedades. A fragmentação<br />
social funciona como estímulo desses medos.<br />
Os novos “desaparecidos sociais” configuram uma<br />
“fantasmática” aterrorizante, num corpo social várias<br />
vezes ferido e vulnerabilizado pelas contínuas<br />
perdas materiais e simbólicas.<br />
A exclusão social faz com que se busque satis<strong>fazer</strong><br />
as carências de modo imediato para garantir<br />
a sobrevivência, tanto em termos individuais como<br />
coletivos, gerando, no imaginário construído a partir<br />
da hegemonia cultural, a identificação das zonas de<br />
pobreza com territórios de crime. Essas noções, que<br />
estimulam respostas conservadoras, são alimentadas<br />
pelos grandes meios de comunicação, que ativam<br />
deliberadamente os mecanismos de terror para<br />
levantar as exigências de “segurança”, que significam,<br />
em última instância, garantias para os direitos<br />
do capital. A ruptura de identidades leva a entender<br />
a pobreza, a marginalidade, a miséria do outro como<br />
ameaça e a carregar esses sentimentos de conteúdo<br />
racista, xenófobo, violento, repressivo e autoritário.<br />
Esses mecanismos de alienação social são reforçados<br />
pela perda de sentido e despolitização da luta social,<br />
o que favorece que a mesma ingresse no índice da<br />
criminalização como “causa penal”.<br />
Os meios de comunicação cumprem um papel<br />
central na construção de uma subjetividade<br />
alienada. O discurso midiático se reforça a partir<br />
de políticas públicas que fragmentam o campo social<br />
e também territorial, com propostas diferenciadas<br />
de educação, saúde, habitação, construindo<br />
realidades geográficas que acentuam a distância<br />
entre incluíd@s e excluíd@s, inclusive no interior<br />
dos setores populares. Muitas universidades, centros<br />
de pesquisa, fundações e espaços de produção<br />
intelectual que respondem às agendas de interesses<br />
definidas pelo Banco Mundial e pelos grandes<br />
centros de poder produzem um amplo espectro de<br />
interpretações que tendem à dissociação de saberes,<br />
a uma funcionalidade que condiga com os interesses<br />
do poder mundial, à apropriação dos saberes<br />
populares e à assimilação até mesmo dos discursos<br />
progressistas para fundamentar propostas de desarticulação<br />
das possíveis alternativas populares.<br />
Uma medida essencial para reforçar a dominação<br />
é a criação de dispositivos de controle da pobreza.<br />
Esteban Rodríguez² escreve:<br />
“Neste contexto, caracterizado pela irrupção<br />
da exclusão, o Estado redefiniu sua intervenção. O<br />
Estado continuará intervindo, ainda que não seja no<br />
sentido da integração social. Sua intervenção será<br />
excludente. Se intervém para assegurar essa capacidade<br />
de excluir, ou para manter a exclusão, ou, o<br />
que dá no mesmo, para evitar a irrupção, a intervenção<br />
estatal torna-se desruptiva. A desrupção é a for-<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 11
ma que o controle social assume quando se trata de<br />
manter a exclusão, quando o inviável se torna insustentável<br />
e, portanto, já não cabe mais qualquer inclusão.<br />
Essas tecnologias de controle têm a ver com:<br />
a) as agências políticas que, sobre a base do clientelismo,<br />
organizam a cooptação; b) as agências sociais<br />
que, baseadas na cooptação, organizam o assistencialismo;<br />
c) as agências repressivas, que articulam<br />
diferentes práticas (gatilho fácil, antitumulto, esquadrões<br />
da morte), que são formas de administrar<br />
o crime e o ascenso das mobilizações sociais; e d) as<br />
agências judiciais, que organizam a criminalização<br />
da pobreza e, logo, a criminalização do protesto. (...)<br />
Quando as multidões irrompem, é preciso intervir<br />
e a intervenção será brutal, ainda que focalizada,<br />
e contundente, ainda que imperceptível, se a multidão<br />
não se resignar. Da “doutrina de segurança<br />
nacional”, passamos à “tolerância zero” , da mesma<br />
maneira que a “mão invisível” se torna “mão dura”.<br />
Uma mão que se torna um punho fechado, mas fica<br />
invisível, intermitente, difusa e errante. Por isso não<br />
se consegue percebê-la como tal. O terror do qual falamos<br />
é um terror espectral, que já não tem base<br />
real num ponto determinado, numa instituição, mas<br />
se dissemina em diferentes práticas que organizam<br />
e administram a desrupção. Esse será o terrorismo<br />
de Estado nesta nova época marcada pela crise de<br />
representação: um punho sem braço”.<br />
Algumas das modalidades da criminalização<br />
da pobreza são o gatilho fácil, o aniquilamento das<br />
populações pobres, a discriminação no sistema penal<br />
e a militarização de determinados bairros ou<br />
regiões. Todos atuam como dispositivos de disciplinamento,<br />
sem outros critérios além do castigo<br />
à miséria e a violência constante como única face<br />
da lei. Geram-se verdadeiros assaltos à população<br />
mais vulnerável, que buscam estabelecer a ordem<br />
12<br />
armada diante dos mais fracos.<br />
As organizações feministas vêm denunciando<br />
diversas modalidades de criminalização das mulheres<br />
pobres. Elas são capturadas pelas redes de prostituição,<br />
perseguidas por legislações que reprimem<br />
as vítimas enquanto protegem os chefes do tráfico,<br />
vítimas de assassinatos, em grande parte relacionados<br />
a essas redes de tráfico de mulheres. Também a<br />
proibição do aborto é uma forma de criminalizar as<br />
mulheres pobres e controlar seus corpos.<br />
Há um fio contínuo entre as políticas de criminalização<br />
da pobreza, a judicialização do protesto social<br />
e a criminalização dos movimentos sociais. O enquadramento<br />
d@s excluíd@s como ameaça e de suas<br />
ações como delitos interfere na representação simbólica<br />
que considerava o lutador social um militante<br />
solidário, justiceiro. Hoje, os que lutam são apresentados<br />
como delinqüentes, e sua prisão é propagada<br />
como castigo exemplificador.<br />
A partir dos meios de comunicação e de vozes<br />
oficiais do poder, se produz uma forte desqualificação<br />
do protesto social, o que promove sua ilegitimidade<br />
social. O resultado é outro mecanismo<br />
fundamental, a mudança das figuras penais empregadas<br />
nos processos dos militantes, utilizada<br />
pelo sistema judicial para evitar as libertações.<br />
Assim, o castigo se produz já no próprio processo.<br />
O trânsito pelas torturas nas delegacias e nas<br />
cadeias faz parte do dispositivo de criminalização<br />
da manifestação política e se tornou uma enorme<br />
pressão sobre as organizações sociais.<br />
A criminalização dos movimentos populares<br />
se exprime, então, em políticas como o avanço do<br />
processo de judicialização dos conflitos, visível na<br />
multiplicação e agravamento das figuras penais,<br />
na maneira como elas são aplicadas por juízes e<br />
afins, no número de processos contra militantes po-<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
pulares, na estigmatização das populações e grupos<br />
mobilizados, no incremento das forças repressivas<br />
e na criação de tropas de elite especiais, orientadas<br />
para a repressão e militarização das zonas de<br />
conflito. Por todos esses caminhos, os problemas<br />
sociais e políticos tornam-se processos penais, nos<br />
quais o povo não tem mecanismo de intervenção, a<br />
não ser como espectador ou como réu. De possíveis<br />
atores sociais, os sujeitos em conflito se reduzem a<br />
excluídos, vítimas ou criminosos em potencial.<br />
No plano continental, a Colômbia é o país<br />
que funciona como laboratório privilegiado para os<br />
experimentos repressivos contra as organizações<br />
populares. Utilizando-se sempre do mesmo argumento<br />
– sua hipotética vinculação às guerrilhas –,<br />
se estabelece um regime ditatorial com aparência de<br />
“democracia representativa” e justifica-se a liquidação<br />
completa de organizações, a prisão de seus dirigentes<br />
e de seus militantes, assim como de comunidades<br />
inteiras. Entretanto, é preciso advertir que<br />
os repressores – polícias, militares, juízes, legisladores,<br />
jornalistas, políticos – hoje estão “assessorando”<br />
seus pares em vários países da América Latina.<br />
Torna-se alarmante o processo de criminalização do<br />
movimento popular no México, Peru, Haiti – sob comando<br />
da MINUSTAH –, mas também os ensaios de<br />
criminalização do Movimento Sem Terra do Brasil,<br />
no Rio Grande do Sul, a judicialização do movimento<br />
campesino do Paraguai (a Justiça continuando sob<br />
controle do Partido Colorado)³ e a perseguição e extermínio<br />
do povo mapuche no Chile.<br />
Destacando-se essas situações, vale chamar<br />
a atenção para o fato de que as modalidades descritas<br />
não são a “exceção”, mas as formas mais<br />
agudas dos mecanismos de repressão que se utilizam<br />
em praticamente todos os países da América<br />
Latina. Esses mecanismos são amparados por Leis<br />
Antiterroristas - que parecem mais uma cópia que<br />
vai passando de um país a outro, e são executadas<br />
por forças repressivas que estudam os mesmos manuais<br />
e trabalham conjuntamente sob o comando<br />
norte-americano, ou em experiências humanistas<br />
de invasão de países, como é o caso do Haiti.<br />
Talvez seja uma necessidade e uma urgência<br />
dos movimentos populares do continente reativar<br />
os mecanismos de solidariedade internacionalista,<br />
promovendo uma forte campanha de denúncia da<br />
criminalização dos movimentos sociais, de luta pela<br />
retirada de processos contra @s militantes sociais<br />
judicializad@s, pela libertação dos presos e presas<br />
polític@s e pela legitimidade de defender todos e<br />
cada um dos direitos humanos, incluindo o direito<br />
à rebelião frente a todas as opressões.<br />
Notas:<br />
Tradução do original em espanhol<br />
de Juliana Caetano<br />
¹ A maioria das opiniões que se apresentam neste artigo é a síntese<br />
pessoal de uma investigação coletiva, realizada para o seminário<br />
“Criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na América<br />
Latina” – realizado pelo Instituto Rosa Luxemburgo e pela Rede Social<br />
de Direitos Humanos do Brasil, entre os dias 18 e 20 de junho, na<br />
Escola Nacional Florestan Fernandes, com participantes da Argentina,<br />
Chile, México, Paraguai, Brasil e Alemanha.<br />
² RODRÍGUEZ, Esteban. “Un puño sin brazo. ¿Seguridad ciudadana<br />
o criminalización de la multitud?” In: H.I.J.O.S. La Plata, La criminalización<br />
de la protesta social, Ediciones Grupo La Grieta, La Plata,<br />
Argentina: novembro de 2003.<br />
³ Neste caso, os mecanismos de repressão também funcionam combinados.<br />
Seis campesinos paraguaios estão presos injustamente há<br />
dois anos na Argentina. O governo “dos direitos humanos” é um dos<br />
que mais fez presos políticos desde a “recuperação da democracia”.<br />
Quando escrevo este artigo, os presos paraguaios na Argentina completam<br />
50 dias de greve de fome, pedindo por asilo político no país.<br />
Mas também há presos campesinos, lutadores chilenos, peruanos,<br />
trabalhadores petroleiros, em diferentes cárceres argentinos.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 13
Pública, Gratuíta e de Qualidade<br />
DESVIO DO CARÁTER DA UNIVERSIDADE:<br />
administração mercantil fere a<br />
democracia e deturpa essência<br />
da instituição<br />
Luiz henrique Schuch<br />
Professor da UFPEL<br />
Surpreendentemente, apesar de ter-se desenvolvido<br />
sob as asas de um Estado tipicamente<br />
patrimonialista, a jovem universidade brasileira,<br />
forjada há menos de um século, produziu,<br />
a partir do seu interior, considerável consciência<br />
da função eminentemente pública que deve<br />
desempenhar. Nisto, aproximou-se da trajetória<br />
que já vinha sendo traçada há mais tempo em<br />
outros países latino-americanos e das melhores<br />
tradições do pensamento humanista.<br />
Segundo o sociólogo Francisco de Oliveira,<br />
em palestra proferida na abertura do 6º Conselho<br />
Extraordinário do ANDES-SN - CONAD,<br />
realizado em Brasília, no mês de agosto de<br />
2005, o surgimento desta consciência procedeu-se<br />
quase como um milagre e significa um<br />
escândalo aos olhos da elite político-econômica<br />
brasileira, ainda tão condicionada a uma<br />
relação do tipo colonial frente aos interesses e<br />
modelos impostos de fora.<br />
14<br />
Por isso, não é casual surgirem em todos os<br />
períodos históricos abertos à expansão do ensino<br />
superior brasileiro avaliações produzidas alhures<br />
- imediatamente repetidas por membros da burocracia<br />
nacional - que localizam a raiz das mazelas<br />
das universidades públicas no seu descompasso<br />
em relação às conveniências empresarias.<br />
Tanto na década de 60, sob a vigência do<br />
acordo MEC/USAID, como na década de 90,<br />
nos documentos vindos dos grupos de economistas<br />
de Chicago e do Banco Mundial, foram<br />
formuladas engenhosas construções retóricas<br />
para justificar que “os muros das universidades<br />
deveriam ser derrubados” não para responder<br />
às indagações do povo brasileiro nem<br />
para ajudar a resolver os seus problemas fundamentais,<br />
mas como disfarce da intenção de<br />
conquistar o seu atrelamento instrumental<br />
aos interesses estratégicos dos negócios.<br />
Recentemente, a mesma coisa volta a se<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
epetir, agora com outras artimanhas, em decorrência<br />
do processo de internacionalização<br />
do chamado setor de serviços, transformado na<br />
“bola da vez” da expansão das possibilidades de<br />
lucro fácil mundo afora. A partir dele, são determinados<br />
novos contornos na distribuição internacional<br />
do trabalho e a sua conseqüência: novas<br />
exigências impostas aos sistemas nacionais<br />
de ensino, reservando, mais uma vez, posição<br />
subalterna a países como o Brasil.<br />
As políticas educacionais preponderantes<br />
nesses períodos resultaram em perda de<br />
qualidade social do ensino superior, em precarização<br />
do trabalho docente, em ampliação<br />
fotos: Stela Guedes Caputo<br />
Anúncios de cursos pagos estão espalhadas pela UFF. Na foto, faixas no campus do Valonguinho (note o erro de concordância na primeira delas).<br />
O primeiro custa 18 prestações de R$ 950,00 e o segundo, 18 de R$ 190,00..<br />
do setor privado e ampliação da privatização<br />
por dentro do setor público, apesar de todas<br />
as lutas desenvolvidas pela comunidade universitária.<br />
A privatização por dentro do setor<br />
público sempre esteve associada à tentativa de<br />
transferir a pesquisa e a educação do âmbito<br />
da esfera pública para o regime fundacional.<br />
Na década de 60, a via empreendida foi o registro<br />
das próprias universidades públicas com o<br />
estatuto de fundações. Mas, como os dois regimes,<br />
autárquico e fundacional, foram praticamente<br />
igualados pela Constituição de 88, a<br />
privatização por dentro das instituições passou<br />
a trilhar uma via paralela: a transferência de<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 15
atividades e funções das universidades para<br />
fundações inteiramente privadas, chamadas<br />
eufemisticamente de fundações de apoio.<br />
Não existe, por maiores que sejam as demandas<br />
acadêmicas, nenhum argumento capaz<br />
de legitimar a necessidade de fundações<br />
privadas em uma universidade pública. Criadas<br />
com o pretexto de contornar dificuldades<br />
de natureza administrativa e entraves legais,<br />
acabaram por gerar enormes distorções nas<br />
atividades de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas<br />
na universidade, submetendo-a à<br />
lógica do mercado. Lógica essa da qual derivam<br />
prioridades incompatíveis com a atividade<br />
acadêmica crítica e socialmente referenciada,<br />
que é a essência da universidade pública.<br />
Diante do descaso dos governos com o financiamento<br />
das universidades públicas e das<br />
dificuldades administrativas, os burocratas têm<br />
incentivado e tirado proveito da fuga pela via<br />
paralela, privatizante e ilegal, pelo desvio de<br />
caráter acadêmico imprimido pelas fundações.<br />
No sentido inverso, o equacionamento daquelas<br />
dificuldades só terá sucesso com o fortalecimento<br />
do caráter público da universidade, da sua<br />
autonomia e da sua democracia, pois é esta a<br />
16<br />
“Investimento”: 15 parcelas de R$ 450,00, num total de R$ 6.750,00.<br />
razão que lhe tem garantido sustentação<br />
social desde quando e<br />
onde existem universidades como<br />
as que conhecemos.<br />
Desvio de caráter, no caso,<br />
não se refere ao componente moral,<br />
mas às características essenciais<br />
da instituição universitária,<br />
em particular aquelas que justificam<br />
o atributo da autonomia.<br />
Pelo menos dois pólos externos vêm<br />
atuando no sentido de tirar proveito particular<br />
do patrimônio social representado pelas<br />
universidades públicas. Por um lado, governantes<br />
tentam reduzi-las a meras repartições,<br />
obrigadas a cumprir caprichos e acordos<br />
imediatistas muitas vezes condicionados aos<br />
períodos de governo e aos interesses eleitorais.<br />
Por outro, setores econômicos operam a<br />
des-instituição do espaço público destinado à<br />
produção de conhecimento para transformálo<br />
em mais um campo dos seus empreendimentos.<br />
Ambos incorporam em suas táticas<br />
a transferência de funções das universidades<br />
públicas para as fundações privadas. Somente<br />
a existência desses interesses externos é<br />
capaz de explicar o acobertamento das afrontas<br />
à Constituição e a neutralização dos efeitos<br />
de tantas condenações dos Tribunais de<br />
Contas, apontamentos de irregularidades<br />
das controladorias, denúncias do Ministério<br />
Público e das comunidades universitárias.<br />
As fundações privadas ditas de apoio nada<br />
mais são do que entes privados intermediando<br />
a relação financeira entre órgãos públicos, evadindo-se<br />
dos controles e imprimindo, a partir<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
dessa interposição, o interesse subjetivo, particular,<br />
nas decisões que, nesse caso, deveriam<br />
ser da esfera pública. Ferem, estruturalmente,<br />
o princípio da legalidade, que é uma das diretrizes<br />
básicas na conduta dos agentes públicos. Tal<br />
princípio tem origem histórica próxima à criação<br />
do Estado de Direito, consagrado por séculos de<br />
evolução política, e é uma das cláusulas fundamentais<br />
da Constituição brasileira. A lição dos<br />
juristas Ely Lopes Meirelles e José dos Santos<br />
Carvalho Filho é sintética e suficiente a respeito<br />
do tema: “Na administração pública, não há<br />
liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na<br />
administração particular é lícito <strong>fazer</strong> tudo o<br />
que a lei não proíbe”. Além disso, a moralidade<br />
administrativa, que ultrapassa o princípio da<br />
legalidade, segundo os mesmos autores “não é<br />
meramente subjetiva, porque não é puramente<br />
formal, porque tem conteúdo jurídico a partir de<br />
regras e princípios da Administração”, distinguindo-se<br />
também da esfera do que é privado.<br />
Como seria possível, então, de boa fé,<br />
imaginar que a melhoria da regulamentação,<br />
ou o aperfeiçoamento de sistemas de controle,<br />
garantiriam resultados positivos ante a<br />
promiscuidade parasitária<br />
entre a<br />
esfera pública e a<br />
privada, estruturalmente<br />
operada<br />
entre as universidades<br />
públicas<br />
e as fundações<br />
privadas ditas<br />
de apoio? Na<br />
prática, a soma<br />
de umas poucas vontades e interesses pessoais<br />
decide, discretamente, mas com grande<br />
poder, as operações desenvolvidas pelas<br />
fundações privadas, apesar de atuarem com<br />
recursos públicos e no espaço que deveria<br />
ser público. O que se identifica, claramente,<br />
nas tentativas de estabelecer pontes administrativas<br />
entre as fundações privadas e as<br />
universidades públicas, além da ilegalidade,<br />
é que estas servem muito mais para que os<br />
interesses privados nelas organizados controlem<br />
as universidades por meio do poder<br />
econômico do que para o estabelecimento de<br />
tutela pública sobre as fundações.<br />
Somente para citar alguns dos casos que<br />
mais repercutiram na imprensa, note-se que<br />
meses antes de sair algemado durante a operação<br />
RODAN da polícia federal, juntamente<br />
com outros dirigentes universitários, um<br />
dos conselheiros que também era dirigente<br />
da fundação privada de apoio levou “embaixo<br />
do braço”, para relatar na reunião do Conselho<br />
Universitário da Universidade Federal de<br />
Santa Maria, o processo que deveria chancelar<br />
as contas da FATEC.<br />
“Investimento”: 12 parcelas de R$ 600,00.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 17
Vários conselheiros protestaram denunciando<br />
evidente conflito de interesses, mas as contas<br />
acabaram sendo aprovadas, assim mesmo,<br />
em uma reunião subseqüente.<br />
A crise que levou à exoneração do reitor<br />
da UNB, cujo emblema foi a lixeira adquirida<br />
pela FINATEC, já exaustivamente debatida e<br />
denunciada, revelou de forma maiúscula não<br />
só até onde pode chegar o arbítrio subjetivo<br />
na aplicação do dinheiro público quando gerido<br />
na lógica de uma instituição privada, mas<br />
também como, em pouco tempo, consolidouse<br />
uma cunha de poder a partir da fundação<br />
a controlar o funcionamento da instituição<br />
pública que deveria ser apoiada. O rodízio<br />
estabelecido nos cargos de mando financeiro<br />
da universidade e da fundação, nos últimos<br />
quinze anos, de um núcleo de poucos nomes,<br />
e o controle que passaram a exercer, estabeleceu<br />
uma situação na qual dificilmente alguém<br />
chegaria ao cargo de reitor sem o beneplácito<br />
desse núcleo, mesmo que processos eleitorais<br />
viessem a ser promovidos.<br />
Uma lição importante recolhida da experiência<br />
recente é a relação entre nível de promiscuidade<br />
da rés-pública com organismos privados<br />
patrocinado por determinadas reitorias<br />
na administração das universidades e nível de<br />
autoritarismo no exercício dos seus mandatos.<br />
Ao crescimento das denúncias, ao vazamento de<br />
evidências das falcatruas com dinheiro público,<br />
aos sinais de manipulação dos órgãos superiores<br />
das universidades, os gabinetes se fecham<br />
em comportamento despótico e passam a criminalizar<br />
o simples direito de divergir, reprimido<br />
com violência, como se divergir fosse elemento<br />
18<br />
estranho ao ambiente acadêmico. Percebe-se<br />
uma perniciosa e crescente mudança de sentido<br />
no exercício do poder institucional, praticado<br />
cada vez mais ostensivamente de cima para baixo<br />
e relegando tarefa apenas homologatória aos<br />
conselhos e colegiados.<br />
Muitos anos de denúncias emanadas do<br />
movimento docente, dos estudantes e dos funcionários<br />
não sensibilizaram o reitor, fechado<br />
em sua cidadela que parecia inexpugnável, na<br />
Universidade Federal de São Paulo, a antiga<br />
Paulista de Medicina, até que as ilegalidades<br />
apontadas pelos órgãos de fiscalização, a maioria<br />
vinculadas às fundações privadas, foram<br />
publicadas com destaque em jornais de grande<br />
circulação nacional. Aquele que até a véspera<br />
usava mão-de-ferro para reprimir quem não lhe<br />
atendesse as conveniências foi forçado a pedir<br />
demissão, juntamente com todo o gabinete, e<br />
responde a vários processos.<br />
Os exemplos generalizam-se de norte a<br />
sul do país. Citá-los restringe-se simplesmente<br />
à necessidade de destacar algum aspecto<br />
específico, pois parece que a única diferença é<br />
o momento em que as máculas vieram ou virão<br />
a público, quanto à perniciosa relação das<br />
universidades públicas com as suas fundações<br />
privadas ditas de apoio. O quadro é nítido e<br />
desfaz, por si, qualquer possibilidade de buscar<br />
aperfeiçoamentos daquela relação gerada como<br />
uma aberração incorrigível. Caberá às próprias<br />
universidades públicas, em primeiro lugar, reacender<br />
a força de sua mobilização interna e,<br />
em decorrência disso, pressionando as administrações,<br />
retomar o papel que paulatinamente foi<br />
delegado às fundações privadas.<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Fotos: Divulgação<br />
“Na trincheira da música nossa<br />
principal luta é contra o Jabá”<br />
Entrevista: B Negão<br />
Por Stela Guedes Caputo<br />
Bernardo Ferreira Gomes dos Santos, conhecido<br />
como BNegão, é um dos rappers mais<br />
respeitados, mas desses que não tocam nas<br />
rádios e nem freqüentam o “Domingão do<br />
Faustão”. Ex- vocalista do “Planet Hemp”<br />
e “Funk Fuckers”, hoje ele experimenta a<br />
carreira solo com a indescritível banda “Os Seletores<br />
de Freqüência”. Seu CD “Enxugando Gelo”<br />
foi considerado um dos melhores de 2003 e vencedor<br />
do prêmio Dynamite (o maior da música<br />
independente no Brasil), como melhor disco de<br />
Rap/Black Music, o que rendeu duas turnês pela<br />
Europa. Militante da luta pela produção independente,<br />
foi também um dos pioneiros<br />
no Brasil a liberar suas músicas para <strong>download</strong><br />
na Internet. Prejuízo? Nenhum. O álbum continua<br />
sendo um dos 20 mais vendidos pela distribuidora<br />
Tratore e é justamente graças ao MP3<br />
que seus fãs não param de crescer, inclusive na<br />
Europa. Rock, Hip-Hop, funk, jazz, os estilos são<br />
muitos, assim como são muitas as suas bandeiras<br />
de luta, que vão da liberação da maconha ao<br />
movimento Jabasta, contra os jabás, um tipo de<br />
arrego que os músicos precisam pagar se quiserem<br />
tocar nas rádios. Para Bnegão, que lançou<br />
este ano o CD “Turbo Trio”, suas músicas posicionadas<br />
são “mensagens que joga na garrafa”,<br />
seu jeito de “seguir incomodando”.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 19
Classe - Como foi acontecendo<br />
o interesse por<br />
música?<br />
BNegão – Sempre gostei de<br />
música. Primeiro música de<br />
rádio, normal. Depois, ouvia<br />
alguns discos do meu pai (Martinho<br />
da Vila Chico Buarque...).<br />
Ouvia Kiss(!), depois Michael Jackson<br />
e, em 82, veio o Rap... daí<br />
lascou.... Em 1987, junto com os<br />
primeiros lançamentos de<br />
rap nacional (Cultura de<br />
Rua, Racionais ...), eu comecei<br />
a ouvir muito punk<br />
rock (Inocentes, Cólera,<br />
Ratos de Porão, Garotos Podres, Olho Seco...), via<br />
Rádio Fluminense FM e Circo Voador.<br />
Classe - Tinha gente na família que tocava?<br />
BNegão – Eu tinha um tio que tocava, mas era<br />
considerado a “ovelha negra” da família. Ele<br />
tinha sido o primeiro cara a se separar que eu<br />
vi na vida, desde que o divórcio foi aprovado<br />
como lei (isso foi apenas em 1977,acreditem!!).<br />
Era meu tio Meirelles. Ele sumiu de tudo e<br />
todos por décadas, vendeu o sax, largou a música,<br />
virou semi-mendigo por muito tempo...<br />
Depois, eu já era fã dele há milênios, mas não<br />
ligava o meu tio (que sabia que tinha sido um<br />
maestro importante, por alto e que eu só conheci<br />
quando era criança), ao grande maestro<br />
J.T. Meirelles, que fez os arranjos e tocou sax<br />
e flauta nos cinco primeiros e clássicos discos<br />
do Jorge Ben (aquele sax de “Mas Que Nada”<br />
é composição dele, tocada por ele, naquela<br />
20<br />
clássica gravação que ele mesmo produziu e<br />
arranjou...). Ele comandou a lendária banda<br />
Copa 5, que teve, entre seus componentes, músicos<br />
lendários como Edison Machado, Eumir<br />
Deudato, Dom Um Romão e Roberto Menescal,<br />
entre outros. No final dos anos 90, ele foi resgatado<br />
e voltou com força total. Tocamos juntos<br />
em São Paulo e ele ficou fã dos “Seletores”,<br />
o que para mim foi a maior honra que eu já<br />
tive musicalmente em toda a minha vida.<br />
Classe: Você divulga a cultura livre, a generosidade<br />
intelectual e a publicação aberta.<br />
Poderia falar um pouco sobre isso?<br />
BNegão – Não quero que as coisas que eu produzo,<br />
que normalmente freqüentam o meio alternativo,<br />
e que contêm elementos que considero<br />
de mudança (mínima que seja) fiquem restritas<br />
aos que conseguem comprar ou achar. Quero<br />
que o maior número de pessoas tenha acesso ao<br />
que faço. Quando comecei tudo isso nem sabia<br />
dessas nomenclaturas. Fiz porque senti e sinto<br />
necessidade de fazê-lo. Respeito quem pensa<br />
por outros caminhos. Cada um dá o destino que<br />
quiser à sua obra, à sua produção, mas o meu<br />
caminho é esse. Mesmo que um dia eu lance<br />
algo por algum selo/editora/gravadora que vete<br />
essa postura, ficarei muito feliz quando vir que<br />
alguém publicou meus textos ou minhas músicas<br />
na net para acesso gratuito.<br />
Classe – Por isso você disponibiliza seus<br />
CD´s na internet?<br />
BNegão – Para facilitar o acesso. E também<br />
porque, na época, estava tendo a primeira campanha<br />
mais forte contra o <strong>download</strong> no mundo,<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
criminalizando esse ato de forma absurda. Os<br />
caras do “Metallica” encampando essa insanidade,<br />
perseguindo e mandando prender moleques<br />
de 15, 17 anos, as gravadoras querendo<br />
dizer que o Napster era o Bin Laden da net, e por<br />
aí vai. Achei que precisava dar a minha opinião<br />
e me posicionar politicamente sobre isso.<br />
Classe – Isso ajuda a desconstruir a versão<br />
de que a pirataria prejudica o artista?<br />
Na verdade, quem perde e quem ganha<br />
com a pirataria?<br />
BNegão – Os grandes vendedores de discos, os<br />
que estão ali pelo jabá, realmente perdem. Os que<br />
são grandes vendedores pela qualidade, às vezes,<br />
não perdem. É só ver o caso do Radiohead, do AC/<br />
DC e tantos outros. É importante diferenciar cultura<br />
livre e <strong>download</strong> gratuito de pirataria. Tem<br />
gente que junta tudo no mesmo saco. Quem ganha<br />
com a pirataria são os chineses (hahahaha) e os<br />
consumidores de baixa renda, já que estes podem<br />
ter acesso à cultura por um preço acessível.<br />
Classe - Você é um militante na música.<br />
Quais as principais lutas que devem ser<br />
travadas hoje nessa trincheira?<br />
BNegão – Na trincheira da música nossa principal<br />
luta é contra o Jabá, que nega o acesso da<br />
cultura brasileira aos meios de comunicação,<br />
em especial às rádios, que, nos seus contratos<br />
de concessão, têm a OBRIGAÇÃO de divulgar<br />
a cultura brasileira. Isso move todo o resto. Outra<br />
coisa importante é a questão da Ordem dos<br />
Músicos do Brasil (OMB), que é uma entidade<br />
fundada na Ditadura Militar e mantém várias<br />
pessoas ali,desde aquela época. Sua existência<br />
não faz sentido. Ainda mais, cobrando taxas<br />
dos músicos que já têm um trabalho suado para<br />
sobreviver nessa profissão e não proporcionando<br />
a estes nenhum benefício.<br />
Classe - Quem são os verdadeiros piratas<br />
criminosos? Os camelôs que vendem as cópias<br />
dos CD´s ou os empresários das rádios<br />
que pirateiam o espaço da concessão pública?<br />
BNegão – Opção número 2 ...<br />
Classe – Por que música é uma arte tão<br />
cara no Brasil? O processo todo, eu quero<br />
dizer, desde <strong>fazer</strong> um CD e comercializar<br />
esse CD e botar esse CD nas rádios.<br />
Por que isso é tão caro?<br />
BNegão – Não precisava ser tão caro. Nestes<br />
CD´s de grandes gravadoras que chegam a ser<br />
vendidos a R$30,00 (ou mais),<br />
está embutido o preço milionário<br />
que eles têm de pagar de<br />
JABÁ, o cartão de crédito<br />
dos diretores de gravadora<br />
e por aí vai... Essa crise<br />
do mercado fonográfico<br />
foi criada pelas<br />
próprias gravadoras,<br />
as grandes gravadoras,<br />
por uma série de<br />
atitudes bizarras ao<br />
longo de décadas, em<br />
todo o mundo. As gravadoras<br />
atiraram tanto que acertaram<br />
o próprio pé.<br />
Classe – Como você pode-<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 21
ia analisar o seu próprio processo de consciência<br />
política dentro da música? Ou seja,<br />
como eram as músicas que você fazia quando<br />
começou a compor e como elas são hoje?<br />
Como a sua visão de mundo mudou e, conseqüentemente,<br />
a música que você fez e faz?<br />
BNegão – Meu pai teve papel ativo na resistência<br />
contra a Ditadura, então, aqui em casa,<br />
o assunto “política” sempre foi muito discutido.<br />
Ele sempre conversou muito conosco sobre<br />
tudo isso. Eu comecei a <strong>fazer</strong> músicas próprias<br />
(fora versões que eu fazia quando era criança)<br />
por causa do punk, aos 16 anos. Arrumei uma<br />
guitarra (bem ruim) e fazia (e gritava) letras<br />
sobre polícia, política, o Brasil e o mundo.<br />
Hoje, logicamente, escrevo mais profundamente<br />
sobre as coisas que acho importantes: o ser<br />
humano, a situação do mundo, nosso momento<br />
atual no Estado, no país e no planeta.Uma<br />
mudança enorme: antes eu escrevia “vocês,<br />
você, eles fazem...”, e agora eu escrevo “nós fazemos...”...<br />
muda bastante o ponto de vista.<br />
Classe – Você mistura funk, rap, rock... isso<br />
cria uma outra música? Qual o seu estilo<br />
hoje?<br />
BNegão – Música Negra Universal<br />
Classe – Existe a seguinte polêmica quando<br />
se fala de você e do D2: que o D2, por<br />
estar na mídia, teria se vendido e você,<br />
por continuar independente, por não tocar<br />
nas rádios... não se vendeu. Todo artista<br />
que está na mídia se vendeu? E o<br />
destino de quem não está... seria se vender<br />
para tocar?<br />
22<br />
BNegão – Tem de tudo. Eu tenho uma treta<br />
com o Marcelo por atitudes dele como pessoa,<br />
não por coisas como essas. Porque, se for por<br />
isso, o “Planet” era de uma grande gravadora,<br />
e, mesmo sendo uma banda única e disseminando<br />
várias idéias libertárias, estava inserido<br />
dentro desse esquema. Claro que o Marcelo<br />
pisou no acelerador na carreira solo dele. Fez<br />
coisa que, antes, recusávamos <strong>fazer</strong>. Há casos<br />
e casos. Esse tipo de discussão tem mais a ver<br />
com o público do “Planet” - que se sentiu enganado<br />
por coisas que o Marcelo dizia e depois<br />
fez o oposto - do que comigo, em relação a ele.<br />
Classe: Eu pego um funk seu como a “Dança<br />
do Patinho” e outros funks onde mulheres<br />
são chamadas de cadelas, mesmo em letras<br />
que asseguram estar criticando a discriminação<br />
da mulher... Então, como olhar o<br />
universo tão diverso do funk sem ser moralista<br />
e sem ser populista e demagógico?<br />
BNegão – A verdadeira “Dança do Patinho”<br />
não tem nada a ver com esse tipo de funk depreciativo<br />
da mulher... não tem literalmente nada<br />
a ver. Nenhuma vírgula em comum. Acho que<br />
no funk, assim como na maioria dos outros estilos<br />
musicais, tem música boa e música ruim.<br />
Classe – Muitas produções de periferias,<br />
como músicas e filmes, afirmam um desejo<br />
de “dar visibilidade” a seus produtores<br />
para que assim aconteça uma aproximação<br />
entre classes sociais distintas e se<br />
promova um diálogo. Essa é a função da<br />
arte de periferia ou esse poderia ser mais<br />
um refrão para a “Dança do Patinho”?<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
BNegão – Pois é... boa pergunta. Acho<br />
que arte da periferia, como qualquer outra arte,<br />
tem que ser encarada como expressão do que se<br />
vive, ou do que quer necessita ser dito. Tem gente<br />
que se interessa por isso porque realmente quer<br />
saber o que está acontecendo, quer saber o que<br />
essas pessoas pensam para tentar compreender<br />
ou intervir positivamente naquela situação. E<br />
tem outras pessoas que tratam a coisa como um<br />
zoológico, ou um filme de suspense/terror, com<br />
bastante adrenalina, onde podem ver, sentadas<br />
em suas cadeiras, protegidas, aquele universo<br />
tenebroso e saem do cinema ou desligam o som e<br />
seguem suas vidas sem uma mínima mudança<br />
de atitude. Tem outros tipos também, mas grosso<br />
modo, é assim. E, no meio de tudo isso, está<br />
quem precisa ser escutado...<br />
A Verdadeira<br />
dança do patinho<br />
Eles traçam e destraçam o seu caminho – É a dança – dança do patinho<br />
Eles mandam uma qualquer e tu leva fé direitinho – É a dança – dança do patinho<br />
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA)<br />
Você que assina contrato sem ler<br />
Acha que a O.N.U. se importa com você<br />
Você que acredita no ouro nacional<br />
Chegou a sua hora isso é fenomenal<br />
Você que acredita no que falam na tv<br />
Dá seu dinheiro pro pastor pra <strong>fazer</strong> sua fé valer (eh, eh…)<br />
E pra você que acredita no velho azul-marinho, essa é sua dança<br />
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!)<br />
Você que acredita na mega-sena, toto-bola, raspadinha e na garota de Ipanema<br />
Você que acredita nos caras pintadas, acredita que o Brasil<br />
vai tá ganhando com a ALCA<br />
Acreditou em inflação zero, no salário-desemprego<br />
Mas não viu que o governo tava botando no seu …<br />
Parabéns, você é perfeito, foi feito pra isso<br />
Pra dançar a dança, a verdadeira…<br />
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!)<br />
Você que toma volta quando quer ficar ligado<br />
Acredita no bicho papão e no aumento de salário<br />
Você que paga seus impostos religiosamente, esperando algum<br />
dia uma aposentadoria decente<br />
Você que acredita em alguma punição pros que roubam<br />
e colocam no… da população<br />
E pra você que acredita que nunca foi lesado, cante comigo<br />
esse hino, esse é o meu recado:<br />
braço em forma de asa, alterna pé e faz biquinho tu entrou na dança<br />
DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!).<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008<br />
23
O tio Meirelles<br />
24<br />
Mencionado na entrevista por BNegão, o “tio Meirelles”<br />
é o saxofonista, arranjador e compositor João Theodoro<br />
Meirelles (mais conhecido como J.T Meirelles), um<br />
dos principais nomes do samba-jazz e falecido em junho<br />
deste ano. O músico iniciou sua carreira aos 17 anos e, aos<br />
23, fez alguns arranjos, entre eles o de “Mas que Nada”, o<br />
primeiro sucesso do então Jorge Ben e hoje Benjor, para o<br />
disco “Samba Esquema Novo”, de 1963.<br />
Graças à repercussão de “Mas que Nada” e “Chove,<br />
Chuva”, J.T pôde <strong>fazer</strong> seus próprios discos livre de<br />
pressões comerciais ou artísticas por parte de gravadoras.<br />
No mesmo ano, juntamente com Manuel Gusmão<br />
(baixo), Luiz Carlos Vinhas (piano), Dom Um Romão<br />
(bateria) e Pedro Paulo (baixo), formou o grupo instrumental<br />
chamado “Copa 5”, com o qual se apresentou no<br />
Bottle’s Bar do Beco das Garrafas (RJ), executando suas<br />
próprias composições.<br />
A partir de 1964, começou a trabalhar como instrumentista,<br />
maestro, arranjador e produtor musical da<br />
gravadora Odeon, onde permaneceu durante 11 anos.<br />
Apresentou-se, em 1966, no Festival de Jazz de Berlim<br />
(Alemanha), ao lado de Dom Salvador, Sérgio Barrozo,<br />
Rosinha de Valença e Edu Lobo, entre outros. Viveu<br />
durante três anos no exterior (França. Suécia e Monte<br />
Carlo), integrando várias orquestras, como a do maestro<br />
Aimée Barelli. Em 2005, lançou o CD “Esquema novo”<br />
Fonte: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Estação Terminal<br />
Espetáculo baseado no Cemitério dos Vivos<br />
e Diário do Hospício de Lima Barreto pode<br />
voltar ao Rio no início do próximo ano<br />
Por três vezes Lima Barreto foi interno num<br />
manicômio. Escritor, alcoólatra, negro, pobre, indignado.<br />
Escreveu um diário. Teve seus sonhos e<br />
desejos destruídos pelo sistema correcional. Seu<br />
diário revela sua experiência de reclusão. Dividese<br />
um homem em pedaços como em uma autopsia.<br />
A observação é por camadas. O mesmo e o outro.<br />
Por camadas também é a Velatura, obra da artista<br />
plástica Suzana Queiroga, que serve de suporte cenográfico<br />
para o espetáculo. Com a Velatura criada<br />
por Suzana podemos ver dentro, fora e através. Ao<br />
nos envolver em epidermes vermelhas, nos remetemos<br />
a outra velatura: nosso próprio corpo e seu<br />
interior, também vermelho. É quando sentimos que<br />
podemos ser/conter as pulsações da arte, músculo<br />
sensório e motor de vida.<br />
Estação Terminal, última criação da<br />
Companhia Ensaio Aberto, estreou no SPILL<br />
Festival/2007, em Londres. No Brasil, permaneceu<br />
seis meses em cartaz no Fórum de Ciência da<br />
UFRJ. Nesse fim de ano dá uma parada, mas logo<br />
recomeça a temporada podendo voltam ao Fórum,<br />
no início de 2009. Atriz, produtora e fundadora da<br />
Ensaio Aberto, Tuca Moraes (na foto) e Luiz Fernando<br />
Lobo, diretor artístico, perseguem a dialética<br />
em seu trabalho. “Esse espetáculo é uma síntese de<br />
uma longa pesquisa sobre o teatro épico. Fizemos<br />
esse texto no mesmo local na estréia da Companhia<br />
Ensaio Aberto há 17 anos. O espetáculo tinha 21 ato-<br />
res. Revisitá-lo agora foi um presente. Tivemos de<br />
desconstruir uma memória e criar um novo diálogo.<br />
Também foi muito importante como ele nasceu: um<br />
convite do diretor inglês Robert Pacitty para estrear<br />
um trabalho solo no Spill Festival, em Londres.<br />
Talvez a companhia que sempre trabalha com grandes<br />
elencos não tivesse ousado essa criação se não<br />
fosse pelo convite. O espetáculo foi nossa espinha<br />
dorsal em 2008”, conta Tuca, que adianta também<br />
o próximo projeto do grupo: “Sobre o Suicídio”, de<br />
Karl Marx, com estréia prevista para o SESC de<br />
Copacabana no primeiro semestre de 2009.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 25
Lima Barreto:<br />
um intelectual militante<br />
Magali Gouveia Engel<br />
Professora da UERJ-FFP<br />
Lima Barreto foi um dos maiores escritores<br />
brasileiros de todos os tempos. Não há quem,<br />
ao ler um de seus romances, contos ou crônicas,<br />
não se apaixone perdidamente pelas suas idéias<br />
ou, pelo menos, passe a respeitá-lo, mesmo discordando<br />
de suas posições. Falar dele é falar de<br />
militância, de coerência, de compromisso com a<br />
construção de uma sociedade melhor, sem discriminações,<br />
mais solidária e igualitária.<br />
Talvez não por acaso, Afonso Henriques de<br />
Lima Barreto veio ao mundo no dia 13 de maio<br />
de 1881, sete anos antes da promulgação da Lei<br />
Áurea que aboliu a escravidão no Brasil. Herdou<br />
da mãe, a professora primária Amália Augusta, a<br />
cor da pele mulata, que ele sempre fez questão de<br />
assumir, transformando sua literatura em instrumento<br />
de luta contra os preconceitos raciais, infelizmente<br />
ainda hoje presentes em nossa sociedade.<br />
Proprietária de um pequeno colégio, o Santa Rosa,<br />
nas Laranjeiras, alfabetizou o filho, mas deixou-o<br />
muito cedo, falecendo em 1887.<br />
Órfão de mãe, mais velho dos três irmãos,<br />
Lima Barreto construiria uma forte relação afetiva<br />
com o pai, o tipógrafo João Henriques. Aos sete<br />
anos, começou a freqüentar a Escola Pública e em<br />
março de 1891 foi matriculado como aluno interno<br />
do Liceu Popular Niteroiense. Cinco anos depois,<br />
26<br />
passou a estudar no curso<br />
anexo de preparatórios<br />
para a Escola Politécnica<br />
do Colégio Paula Freitas.<br />
Em março de 1897, ingressou<br />
naquela instituição<br />
de ensino superior.<br />
Seus estudos foram custeados<br />
por Afonso Celso,<br />
o Visconde de Ouro Preto,<br />
protetor da família.<br />
Em agosto de 1902,<br />
João Henriques não consegue<br />
encontrar uma diferença<br />
nas contas das Colônias<br />
de Alienados da Ilha do Governador,<br />
onde ocupava o cargo de<br />
escriturário, começando a temer que<br />
o acusassem de desvio de dinheiro público.<br />
Sofre neste momento sua primeira crise de<br />
alucinação/perseguição. No ano seguinte, com a<br />
abertura de inquérito para apurar irregularidades<br />
no Serviço de Assistência aos Alienados – do<br />
qual as colônias da Ilha do Governador faziam<br />
parte – o estado de saúde do pai de Lima Barreto<br />
agrava-se e ele acaba sendo aposentado.<br />
Nesta época, após ter sido sucessivamente<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
eprovado em Mecânica e vendo-se obrigado a assumir<br />
a responsabilidade pela sobrevivência da<br />
família, Lima Barreto abandona a Escola Politécnica<br />
e inscreve-se no concurso para amanuense<br />
na Diretoria do Expediente da Secretaria de<br />
Guerra, sendo aprovado em segundo lugar. Foi<br />
nomeado em 27 de outubro de 1903 e muda com<br />
o pai e os irmãos para a Rua Boa Vista, n. 76<br />
no subúrbio de Todos os Santos.<br />
O escritor teve importante colaboração na<br />
imprensa carioca, intensificada, sobretudo, depois<br />
de sua aposentadoria concedida em dezembro<br />
de 1918, quando então passou a sentir-se<br />
mais livre para emitir opiniões profundamente<br />
críticas em relação aos poderes e autoridades<br />
públicas republicanas. Escreveu para jornais e<br />
revistas cariocas de grande projeção, incluindo<br />
uma expressiva atuação na imprensa anarquista.<br />
Embora Lima Barreto tenha afirmado categórica<br />
e recorrentemente não pertencer a qualquer<br />
corrente política organizada, é inegável que tenha<br />
buscado uma crescente aproximação com certas<br />
concepções anarquistas que acabariam por marcar<br />
profundamente os posicionamentos políticos que assumiria<br />
como escritor.<br />
Sua obra extensa e diversificada inclui romances,<br />
sátiras, contos, crônicas e epistolografia,<br />
toda ela marcada por uma linguagem direta e simples,<br />
através da qual pretendia <strong>fazer</strong> de sua arte<br />
um instrumento de libertação e de união entre os<br />
seres humanos. Entre seus romances, destacamse<br />
o controvertido “Recordações do escrivão Isaías<br />
Caminha” e o aclamado “Vida e Morte de Gonzaga<br />
de Sá”, ambos provavelmente escritos entre 1905<br />
e1907 e, ainda, “Clara dos Anjos”, “Triste fim de Policarpo<br />
Quaresma” e “Numa e a Ninfa”.<br />
As muitas e profundas angústias e medos<br />
que passaram a assombrá-lo, sobretudo a partir<br />
da doença do pai e das dificuldades financeiras<br />
que o impediam de se dedicar inteiramente ao seu<br />
projeto intelectual e literário; o tédio e as frustrações<br />
produzidos pela rotina do serviço burocrático<br />
e da vida no subúrbio; o fracasso do projeto da Revista<br />
Floreal são provavelmente alguns dos fatores<br />
que levariam Lima Barreto a começar a beber<br />
por volta de 1908. Os excessos de álcool provocariam<br />
crises de alucinações que o conduziriam por<br />
duas vezes ao Hospício Nacional de Alienados. A<br />
primeira internação ocorreu durante o período de<br />
18 de agosto a 13 de outubro de 1914 e a segunda<br />
entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de<br />
1920, quando escreveu o Diário do Hospício, onde<br />
registrou as vivências naquela instituição, durante<br />
os dois momentos em que lá esteve. Pretendia<br />
utilizar essas anotações para elaborar um novo<br />
romance intitulado “Cemitério dos Vivos”, que infelizmente<br />
ficou inacabado.<br />
Tendo que lutar contra as dificuldades materiais,<br />
sobretudo por ter que arcar com a sobrevivência<br />
do pai doente e dos irmãos mais jovens<br />
e sentindo na própria carne o peso e a dor provocados<br />
pelas discriminações sociais, entre as<br />
quais os preconceitos raciais, a trajetória literária<br />
e intelectual de Lima Barreto oscilou entre a<br />
marginalidade e o reconhecimento. Se apesar de<br />
todos os obstáculos editoriais seu talento artístico<br />
foi reconhecido e exaltado por importantes<br />
críticos da época, o sonho de ingressar na Academia<br />
Brasileira de Letras jamais seria alcançado,<br />
após três tentativas. Lima Barreto morreu antes<br />
de completar quarenta e um anos de idade no dia<br />
1 o de novembro de 1922, vítima de uma gripe torácica<br />
e de um colapso cardíaco. Dois dias depois,<br />
morreria também seu pai, João Henriques.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 27
28<br />
De Capa Violência, mídia e<br />
criminalização da pobreza<br />
PM ameaça menor com a pistola. No detalhe da foto da capa, o momento posterior em que, indignado, rapaz que aqui<br />
aparece ao fundo, enfrenta o policial. Fotos: Gabriel de Paiva/Agência O Globo.<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Stela Guedes Caputo, texto e entrevistas.<br />
Um jovem enfrenta um policial armado.<br />
Seu rosto transtornado. A arma na mão direita do<br />
policial. O dedo mindinho de sua mão esquerda<br />
enruga o peito do rapaz e mostra a força que faz<br />
para segurá-lo. Ao fundo, uma menina olha a cena<br />
e se prepara para tapar os ouvidos. Dois adultos<br />
tentam impedir o pior. À esquerda, um menino<br />
não teve os olhos “tarjados” e por isso posso ver<br />
seu medo e desespero. Atrás deste, um policial<br />
que, ainda que decepado pelo corte da foto, deixa à<br />
mostra que está preparado para intervir.<br />
A foto que escolhemos para a capa desta edição<br />
de nossa revista foi publicada na primeira página<br />
de O Globo, em 23/3 deste ano pouco acima<br />
da manchete: “Mangueira fecha rua em protesto<br />
violento”. Na página 16 onde a matéria continua,<br />
mais seis fotos reforçam o título desta página inteira<br />
de reportagem: “Cenário de guerra e baderna<br />
na Mangueira”. Numa delas, a legenda: “Vandalismo...”.<br />
O primeiro parágrafo descreve as imagens:<br />
“Motoristas apavorados atacados a pedradas,<br />
tiros para o alto, veículos incendiados....” e<br />
informa que a morte de um “traficante, segundo a<br />
polícia, teria causado o tumulto”.<br />
Apenas no último parágrafo lemos que, “segundo<br />
uma tia da vítima, o morto de 30 anos era<br />
um contínuo desempregado”, portanto, podia até<br />
ser que não fosse um traficante (ainda que fosse<br />
não poderia ter sido executado).<br />
Entrevistado a respeito, o fotógrafo Gabriel<br />
de Paiva, autor da foto, fotografar é “tentar <strong>fazer</strong><br />
com que o leitor sinta o que eu senti na hora do<br />
fato jornalístico”. Assim, a ilusão especular (Machado,<br />
1984) que faz com que a fotografia possa<br />
ser vista como “espelho do real” vai além daquilo<br />
que se pretender “revelar” e alcança o que se deve<br />
“sentir”. Para garantir o sentido único as legendas<br />
da edição ajudam, já que, para o fotógrafo,<br />
“estas impedem que o leitor tenha interpretação<br />
errada do acontecimento”. Paiva concordou com<br />
a edição que o jornal fizera de suas imagens e que<br />
tudo tinha sido mesmo uma “baderna”. Um box,<br />
na mesma página, vai relembrar outros casos<br />
“em que a rotina da cidade já foi sacudida outras<br />
vezes por protestos de moradores da favela”.<br />
Mas o fotógrafo também disse que “o tumulto<br />
começou quando a polícia chegou para conter<br />
os moradores que, misturados a traficantes, estavam<br />
no asfalto incendiando ônibus”. O próprio<br />
texto informa que a polícia esteve no morro antes<br />
e matou um homem. Paiva disse que talvez fosse<br />
revolta e indignação os motivos do protesto, já que<br />
todos os depoimentos dos moradores davam conta<br />
de que a polícia executara Wallace, o nome do<br />
morto. Além de uma frase da tia da vítima, esses<br />
depoimentos que o fotógrafo ouviu não estão na<br />
matéria. Faltam as fotos do morto, da tia, e dos<br />
moradores sem que estes estejam lançando tijolos<br />
em carros ou depredando ônibus. “Devíamos ter<br />
voltado lá”, concluiu o fotógrafo. Não voltaram.<br />
Não houve mais vestígio desse caso no jornal.<br />
Não desse especificamente, mas, todos os dias, de<br />
forma semelhante, outras matérias reproduzem<br />
cotidianamente a mesma política de criminalização<br />
dos moradores de favelas implementada<br />
pela grande mídia. Nas entrevistas que seguem<br />
abordamos sob diferentes aspectos a questão da<br />
violência no Rio de Janeiro.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 29
Foto: Débora Agualuza<br />
Nomeado pelo Governador Sérgio Cabral<br />
em 22 de fevereiro de 2008, o atual Diretor- Presidente<br />
do Instituto de Segurança Pública (ISP),<br />
Mário Sérgio de Brito Duarte, 49 anos, é Coronel<br />
da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.<br />
Ingressou na corporação em 1980 e já comandou a<br />
Academia da Polícia Militar, o Batalhão da Maré<br />
e o Batalhão de Operações Policiais Especiais<br />
(BOPE), no qual, em 1989, recebeu a designação<br />
de “Caveira n. 37”. Na estrutura da Secretaria<br />
de Estado de Segurança do Rio de Janeiro ele<br />
ocupou os cargos de Superintendente de Planejamento<br />
Operacional e o de Diretor de Inteligência.<br />
Aluno do curso de Filosofia da UFRJ, escreveu,<br />
em 1994, o livro “Incursionando no Inferno – a<br />
verdade da Tropa”, que só conseguiu publicar depois<br />
do sucesso do filme “Tropa de Elite”. Nesta<br />
entrevista ele dá sua opinião sobre o ISP e diz o<br />
que pensa sobre a utilização dos “caveirões” nas<br />
comunidades cariocas.<br />
30<br />
Entrevista: Mário Sérgio de Brito Duarte, Coronel da PM<br />
– Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP)<br />
Ex-Comandante do BOPE<br />
“O exército tem que<br />
estar investido de<br />
poder de polícia”<br />
Classe – O senhor assumiu o cargo de presidente<br />
do Instituto de Segurança Pública quando a<br />
cúpula da Polícia Militar foi substituída, o que,<br />
na verdade, tratava-se de uma reestruturação<br />
da política de segurança para o Estado?<br />
Cel Mário Sérgio – Não creio que minha indicação<br />
para o cargo de Diretor-Presidente do ISP tenha alguma<br />
conexão com as substituições no comando da<br />
PM. Na verdade, já de algum tempo a Secretaria de<br />
Segurança pensava em dar ao Instituto um aspecto<br />
diferente daquele com o qual foi idealizado. O ISP<br />
foi criado para ser uma espécie de “superestrutura<br />
da segurança pública”, cuja ideologia, em formato<br />
acadêmico, deveria ser absorvida pelas polícias.<br />
Não obstante o poder que lhe foi conferido pela lei<br />
de criação, que lhe autorizava “assegurar, executar,<br />
gerenciar e administrar a política de segurança pública<br />
do Estado, através das polícias”, o ISP jamais<br />
conseguiu penetrá-las ao preferir a imposição e não<br />
a negociação de suas intenções.<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Classe – O Secretário de Segurança Pública,<br />
José Mariano Beltrame, disse que desejava<br />
um Instituto mais “pró-ativo”, mas o que se<br />
veiculou na época, era que a mudança significava<br />
uma opção do governo por uma linha<br />
ainda mais dura de repressão...<br />
Cel Mário Sérgio – O ISP trabalha episteme. É<br />
marcadamente uma instituição voltada para a construção<br />
do conhecimento e desvelamento de saberes<br />
de interesse da Segurança Pública. Há três eixos no<br />
órgão: o Núcleo de Pesquisas em Segurança Pública<br />
e Justiça Criminal, a Coordenadoria dos Conselhos<br />
Criminais e a Coordenadoria de Projetos de<br />
Segurança Pública. Destes, apenas a Coordenação<br />
dos Conselhos não tem um formato marcadamente<br />
científico e sim sócio-organizacional. Todavia, sua<br />
atuação é fundamental para o Sistema de Segurança,<br />
pois lhe dá a chave necessária à interface com a<br />
população com vistas à participação comunitária. O<br />
ISP, como disse, não formula a política, não sugere<br />
as ações e não determina as estratégias. O ISP apenas<br />
exibe o que mensura e o que conhece.<br />
Classe – Com a demissão da antropóloga Ana<br />
Paula Miranda, da presidência do ISP e sua<br />
substituição por um tenente-coronel, o senhor,<br />
a integridade e a independência desse<br />
órgão não ficam comprometidas?<br />
Cel Mário Sérgio – O ISP é uma autarquia do<br />
Estado vinculada à Secretaria de Segurança. A<br />
isenção que possui hoje é mesma que a doutora<br />
Ana Paula possuía antes de minha assunção. Não<br />
sou o primeiro coronel da PM a assumi-la; antes,<br />
dois já haviam passado pela função. Ocorre que<br />
o ISPestava sendo entendido como uma espécie<br />
de departamento de ciências sociais, quando ele<br />
não deve ser isso. A sociologia, a ciência política<br />
e a antropologia têm grande contribuição a<br />
dar ao ISP, mas há outras ciências e saberes que<br />
podem e devem concorrer para essa construção<br />
de conhecimento. A hegemonia de uma ciência a<br />
partir da “embocadura” da chefia é compreensível,<br />
mas temos que cuidar para não nos fecharmos<br />
em círculos de idéias. Estamos buscando<br />
<strong>fazer</strong> um ISP mais plural.<br />
Classe – Depois de sete meses já é possível<br />
<strong>fazer</strong> um balanço da sua gestão? O ISP está<br />
mais “pró-ativo”?<br />
Cel Mário Sérgio – Estamos trabalhando muito;<br />
celebrando convênios, estabelecendo novas parcerias.<br />
Para exemplificar com trabalhos mais recentes<br />
de nossa gestão, a Secretaria Estadual de Educação,<br />
o DETRAN, a Secretaria Estadual de Saúde e<br />
a Petrobrás nossos mais novos parceiros, com projetos<br />
em fase de desenvolvimento. Da gestão anterior<br />
concluímos o Observatório de Análise Criminal e o<br />
convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos,<br />
com recursos da União Européia. Sobre estar<br />
mais ou menos pró-ativo eu não gostaria de <strong>fazer</strong><br />
comparações com outras gestões.<br />
Classe – No ano passado, o governador do Rio,<br />
Sérgio Cabral, chamou de “débil mental” o<br />
policial que matou o vigia Rubineu Nobre, de<br />
29 anos, em um posto de gasolina, na Baixada<br />
Fluminense, no dia 10 de fevereiro. Se um governador<br />
se refere assim à sua própria polícia,<br />
como a população pode pensar o contrário?<br />
Cel Mário Sérgio – Creio que “a boca fala daquilo<br />
que está cheio o coração”. Num momento<br />
marcado pelo paroxismo da dor, dizemos muitas<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 31
vezes o que não diríamos em outro momento.<br />
Classe – O governador também já defendeu o<br />
modelo colombiano de polícia.O ISP tem uma<br />
avaliação sobre esse modelo, que também recebe<br />
críticas por parte da esquerda por considerar<br />
que este modelo criminaliza a pobreza<br />
e os movimentos sociais?<br />
Cel Mário Sérgio – Avaliação não, mas eu conheço<br />
o trabalho realizado na Colômbia, marcadamente<br />
em Bogotá e Medellín. Estive três vezes com o sociólogo<br />
colombiano Hugo Acero somente neste ano de<br />
2008. Como policial, digo sem medo de errar que deveríamos<br />
seguir o mesmo caminho. Sobre críticas da<br />
esquerda àquele modelo, conversei com pessoas nas<br />
ruas e nas favelas que visitei e mesmo na esquerda<br />
encontrei aprovação do projeto, mas, claro, não estive<br />
com ninguém das FARCS e nem do ELN.<br />
Classe – O que é e o que deveria ser a Segurança<br />
Pública?<br />
Cel Mário Sérgio – Deveria ser o conjunto de ações<br />
necessárias à promoção da ordem pública e da paz<br />
social. Todavia, embora seja uma opinião pessoal, o<br />
Rio de Janeiro tem um quadro que ultrapassa a dimensão<br />
da Segurança Pública, neste conceito, quando<br />
se fala de normalidade. Há pelos menos quinze<br />
anos o Rio convive com um “conflito urbano armado<br />
de baixa intensidade”, com combates cotidianos travados<br />
entre agentes da lei e quadrilhas, e essas entre<br />
si. Faz-se mister a retomada definitiva dos espaços<br />
onde o poder público perdeu o controle para as “facções”<br />
criminosas que dominam os territórios das áreas<br />
mais carentes do Rio de Janeiro. Através de uma<br />
estrutura de coerção despótica e assassina, assente<br />
32<br />
no poder de fogo das armas de guerra que dispõem,<br />
o narcotráfico se exibe como um pequeno exército imprevisível<br />
na dimensão de suas violações. Sua força<br />
motriz é a “ideologia de facção”, que se sobrepõe à<br />
vontade de lucro no comércio ilícito de drogas.<br />
Classe – Qual seria o papel da polícia dentro<br />
da Segurança Pública?<br />
Cel Mário Sérgio – Seu papel constitucional.<br />
Classe – De acordo com os jornais, a Secretaria<br />
de Segurança do Rio comprou mais<br />
nove blindados, os chamados “caveirões”,<br />
ao custo de R$ 403 mil cada que se somarão<br />
aos 12 atuais. Os novos veículos são mais<br />
potentes e com mais saídas para armas, ou<br />
seja, vai matar mais?<br />
Cel Mário Sérgio – O “Caveirão” não é uma<br />
viatura militar, mas um carro civil; não possui<br />
acopladas metralhadoras, lança-granadas e outros<br />
petrechos. É utilizado, essencialmente, para<br />
conduzir policiais a locais de alto risco e nenhum<br />
equipamento mortal transporta além do armamento<br />
dos soldados. É forçoso utilizá-lo em áreas onde<br />
os traficantes estão à espreita, seja em lajes, becos,<br />
interior de construções ou trilhas de florestas para<br />
letal emboscada. A viatura blindada é uma estratégia<br />
de ação policial que preconiza a proteção do<br />
policial individual e coletivamente.<br />
Classe – É verdade que a Secretaria quer, ainda,<br />
comprar um blindado israelense capaz de<br />
explodir pequenas áreas? Qual a função de um<br />
veículo assim atuando em favelas?<br />
Cel Mário Sérgio - Não creio ser verdade. Embora<br />
eu não mais acompanhe a seleção de equipamen-<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Em mais um dia de ação da PM no Morro de São Carlos em busca das armas roubadas de<br />
seguranças do governador, um uspeito, conhecido como Risadinha, foi morto no confronto.<br />
Desesperada, a mãe tentou barrar o caveirão. Foto: Agência JB<br />
tos por não ser este meu trabalho no ISP, creio que<br />
não seja verdade. Todavia, a idéia de que as polícias<br />
sempre atentam contra o estrato social pobre, “criminalizando<br />
a pobreza”, é espraiada a todo tempo por<br />
grupos com interesses particulares, seguindo a orientação<br />
ideológica que infere o crime como um processo<br />
coletivo de “luta de classes”. Assim, quando o Estado<br />
adquire um equipamento de proteção para os policiais<br />
é natural que esse tipo de discurso surja, procurando<br />
desqualificá-lo e exibindo-o como objeto de opressão.<br />
Classe – Para aprofundar essa lógica que o<br />
senhor expõe... então, o senhor diria que o<br />
Estado é neutro? E, por que os veículos civis<br />
blindados só atuam nas favelas? Os blindados<br />
permitem disparos sem que policiais<br />
sejam identificados, transmitem gravações<br />
ofensivas contra a população... Por que eles<br />
não estão onde mora a<br />
burguesia?<br />
Cel Mário Sérgio - Porque<br />
o veículo blindado objetiva<br />
proteger os policiais dos disparos<br />
das armas de guerra<br />
e elas estão nas mãos dos<br />
narcotraficantes justamente<br />
nas favelas. São fuzis AK-<br />
47, AR-15, RUGER, SIG-<br />
SAUER, NORINCO, granadas<br />
M3, M4 e assim por<br />
diante. Compreende-se, e<br />
devemos concordar que palavras<br />
ofensivas não devem<br />
ser dirigidas a nenhuma<br />
pessoa de nenhum estrato<br />
social, de orientação sexual<br />
específica ou religiosa por essa condição. As polícias<br />
devem respeitar pessoas e espaços públicos, indistintamente;<br />
sobre isto concordo plenamente. Todavia,<br />
reitero, as ações marcadamente de conflito<br />
urbano armado são protagonizadas por criminosos<br />
que se estabeleceram nas favelas, subjugando seus<br />
moradores com uma estrutura de poder cruel.<br />
Classe – Foi divulgado que a Secretaria de<br />
Segurança comprou um helicóptero modelo<br />
Huey II, empregado pelos Estados Unidos<br />
em operações no Iraque e no Afeganistão<br />
que já está sendo chamado de “caveirão voador”.<br />
O custo divulgado foi de US$ 4,5 milhões.<br />
Há um balanço do quanto se investe<br />
em formação para os policiais, em salários<br />
e em armas? Há uma correlação importante<br />
de ser avaliada nesse tipo de investimento<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 33
para que se observe o perfil da política de<br />
Segurança Pública de um Estado?<br />
Cel Mário Sérgio – Sobre o helicóptero blindado,<br />
sua aquisição se deve em razão dos muitos tripulantes<br />
que foram baleados por atiradores do narcotráfico,<br />
em terra, quando em operação nos helicópteros<br />
que as policias dispõem. Eu mesmo perdi dois amigos<br />
baleados dentro de aeronaves em vôo, um em<br />
Niterói e outro no Morro do Adeus, na Penha. Em<br />
relação ao balanço sobre investimentos em formação<br />
policial é uma questão que não está afeta ao ISP.<br />
Classe - O ISP divulgou que entre janeiro e março<br />
desse ano, 358 pessoas foram mortas pela polícia<br />
no estado nos chamados “autos de resistência”,<br />
12% a mais do que o registrado no mesmo período<br />
de 2007. Qual a metodologia aplicada nesses<br />
levantamentos? E os desaparecidos? Os mortos<br />
de quem não se acham os corpos? Como entram<br />
nesse levantamento?<br />
Cel Mário Sérgio – O auto de resistência, como<br />
indica o nome, é um documento lavrado pela autoridade<br />
policial quando ocorre resistência frente a<br />
uma ação legal e legítima do agente do Estado. A<br />
classificação é retirada daí. Sobre os desaparecidos<br />
gosto de lembrar que a estatística é uma ciência,<br />
e com tal, possuí regras e métodos que devem<br />
ser aplicados com rigor para que seus resultados<br />
possuam verossimilhança. Assim, podem existir<br />
desaparecimentos que são provenientes de homicídio,<br />
contudo, num primeiro momento não há como<br />
saber. O fato exposto é o simples desaparecimento<br />
de uma pessoa. Se, e somente se, for comprovada<br />
a morte por causa externa, é que, efetuando um<br />
registro de aditamento, o delegado irá trocar o<br />
título da ocorrência para o que melhor definia<br />
34<br />
o acontecido. Mas, um homicídio ser registrado,<br />
em primeira instância, como desaparecimento de<br />
uma pessoa, é uma situação que não é prerrogativa<br />
do estado do Rio de Janeiro, isto pode acontecer<br />
em São Paulo, Minas Gerais, Nova Iorque<br />
ou em qualquer lugar.<br />
Classe – Como o senhor vê a ocupação dos<br />
morros pelo exército?<br />
Cel Mário Sérgio – Sou a favor. Todavia, entre<br />
muitos cuidados, um é fundamental: o Exército tem<br />
que estar investido de Poder de Polícia. Como disse<br />
anteriormente, perdemos há pelo menos quinze anos<br />
o controle de muitas favelas para o tráfico, e retomá-lo<br />
é trabalho duríssimo para o qual as polícias<br />
não possuem efetivos. A participação do Exército é<br />
sempre bem recebida pela população e mal-vista nos<br />
círculos intelectuais; haveria aplausos e críticas. Eu<br />
creio que estando o Exército com seus efetivos preparados<br />
para garantia da lei e da ordem, seu papel<br />
poderia se tornar definitivo para a mudança desse<br />
quadro atual. Insisto na questão do Poder de Polícia<br />
porque sem ele a participação da força terrestre seria<br />
inócua; num primeiro momento somente a presença<br />
do Exército já promoveria alguma dissuasão, mas<br />
logo que os traficantes percebessem sua limitação,<br />
haveria provocação e desrespeito à tropa, e isso poderia<br />
trazer conseqüências desastrosas.<br />
Classe – Vendo por outro lado coronel, a presença<br />
do exército dos morros cariocas já trouxe<br />
conseqüências desastrosas. A morte de<br />
Davi, Wellington e Marcos Paulo, entregues<br />
por militares a traficantes da facção rival, em<br />
junho desse ano, prova isso. E os protestos que<br />
se seguiram na comunidade também provam<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
que a presença do exército não é bem vinda.<br />
Cel Mário Sérgio - O que aconteceu no Morro<br />
da Providência teve início justamente no erro de<br />
se colocar a força terrestre numa área geográfica<br />
onde havia um grupo armado, com representações<br />
simbólicas próprias, inserido socialmente,<br />
ditando valores aceitos sem reflexão, sem poder<br />
legal para superá-los com ações legítimas. Se o<br />
Exército entra com seu “ethos”, seus símbolos e<br />
seu aparato de força, que leve consigo o poder<br />
de agir como polícia, para conter, preventiva e<br />
moderadamente, no nascedouro, quaisquer manifestações<br />
provocativas contra sua presença.<br />
Naquelas condições em que foi colocado, exibindo-se,<br />
mas eximindo-se, era certo que logo teria<br />
problemas com a população local. Com “poder de<br />
polícia” pequenos problemas não ultrapassariam<br />
tal dimensão; sem “poder de polícia”, pequenos<br />
problemas tendem a se tornar hecatombes.<br />
Classe – Como a mídia ajuda a construir a<br />
imagem da polícia no Rio?<br />
Cel Mário Sérgio – Isso não é de interesse da<br />
mídia.<br />
Classe – Toda divulgação do filme “Tropa de<br />
Elite”, por exemplo, não constrói uma certa<br />
imagem da polícia?<br />
Cel Mário Sérgio – Sim, eu creio, mas não é uma<br />
imagem real e sim uma imagem idealizada pelo<br />
cineasta. Comandei o BOPE e asseguro que grande<br />
parte do filme é acidente e não essência.<br />
Classe - Como o ISP pode ajudar a melhorar<br />
não a imagem da polícia no Rio, mas, efetivamente,<br />
a atuação da polícia no Rio?<br />
Cel Mário Sérgio – Apresentando dados confiáveis<br />
e projetos consistentes para uso das polícias.<br />
Classe – Como o senhor vê a aproximação<br />
da polícia com as universidades<br />
via cursos de segurança pública nas<br />
graduações e especializações?<br />
Cel Mário Sérgio – Estamos falando dos cursos<br />
da área de humanidades? Acho ótimo, mas é bom<br />
que se estabeleçam algumas questões muito pouco<br />
definidas, ainda. Policiais têm preferido cursos<br />
da área tecnológica e da ciência jurídica. Por<br />
que? Bem, tenho a intuição de que isso decorre da<br />
posição adotada pelos centros de ciências sociais,<br />
ou por alguns de seus maiorais, que postulam um<br />
saber válido e de oposição ao saber policial, o que<br />
fomenta a rejeição. Afinal, quem é “especialista<br />
de quê e por que?”. Qual ciência, e qual corrente<br />
acadêmica, possui o privilégio do saber de algo<br />
marcadamente de interesse das polícias e superior<br />
ao seu saber? E quem disse à “Academia”<br />
que o saber policial não é acadêmico? Bem, são<br />
algumas questões importantes em forma de escolhos<br />
teóricos a serem removidos.<br />
Classe – O que o senhor poderia falar da sua<br />
experiência como ex-comandante do BOPE e<br />
como atual diretor-presidente do ISP. Como<br />
esses dois espaços dialogam?<br />
Cel Mário Sérgio - Como comandante do BOPE<br />
pertenci ao “mundo dos encarnados”; mexi, revolvi,<br />
manuseei os problemas; senti os odores e enxerguei<br />
a escuridão do crime e suas conseqüências<br />
mais imediatas. Como presidente do ISP participo<br />
do “mundo dos espíritos” e aí enxergo as “luzes” e<br />
tenho contato com a perfeição abstrata das idéias.<br />
Transito bem nos dois mundos.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 35
Foto: Stela Guedes Caputo<br />
Professora do curso de Psicologia da<br />
UFF, Cecília Maria Bolsas Coimbra, é presidente<br />
do Grupo Tortura Nunca Mais, fundado<br />
em 1985, por iniciativa de ex-presos políticos<br />
torturados durante o regime militar brasileiro<br />
e por familiares de mortos e desaparecidos políticos.<br />
A entidade, que faz questão de afirmar<br />
que não é uma ONG e sim um Movimento Social,<br />
tornou-se uma das principais referências<br />
nas lutas em defesa dos Direitos Humanos. Cecília<br />
é uma sobrevivente de 67 anos. Foi presa<br />
e torturada em agosto 1970, mas teimou em<br />
viver para contar a sua e outras histórias dos<br />
que foram massacrados pela Ditadura brasileira.<br />
Seu objetivo não é vingança, é justiça<br />
e, para isso, é incansável na luta para denunciar<br />
e responsabilizar torturadores neste País.<br />
Em entrevista, ela critica o governo Lula que,<br />
segundo Coimbra, “faz uma política pífia de<br />
Direitos Humanos. Fala também da ligação<br />
entre a tortura e o extermínio dos presos políticos<br />
durante o regime militar e a tortura e o<br />
extermínio dos pobres de nossos dias.<br />
36<br />
Entrevista: Cecília Coimbra, Presidente do Grupo<br />
Tortura Nunca Mais e professora da UFF.<br />
“Vivemos a fascistização<br />
do cotidiano”<br />
Classe – Como está a questão da luta pela<br />
abertura dos arquivos da Ditadura? O Legislativo<br />
aprovou a lei de reparações, mas<br />
retrocedeu com a lei do sigilo de documentos.<br />
Que pacto é esse, mantido pelo Governo<br />
Lula, que faz com que, mesmo submetido à<br />
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos<br />
Humanos, não haja justiça para as vítimas<br />
da Ditadura e para suas famílias?<br />
Cecília - Tem duas questões aí. A primeira é a interpretação<br />
que foi dada à lei da Anistia, uma interpretação<br />
dos juristas da Ditadura naquele período<br />
e que até hoje é vigente, ou seja, aqueles que teriam<br />
cometido os chamados “crimes conexos” teriam sido<br />
anistiados também. O Grupo Tortura Nunca Mais,<br />
desde que surgiu, questiona essa interpretação da Lei<br />
da Anistia porque não existe nenhuma conexidade<br />
entre o fato de você seqüestrar, prender ilegalmente,<br />
torturar, ocultar cadáveres, com a oposição que se fez<br />
ao regime militar naquele período. Crime conexo é a<br />
forma deles dizerem que a repressão usada contra os<br />
opositores políticos é uma ação conexa aos atos praticados<br />
contra a Ditadura Militar, o que é uma coisa<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
totalmente perversa. Ora, existem dois grandes juristas<br />
como Hélio Bicudo e Fábio Konder Comparato<br />
que já provaram que não há nenhuma conexidade<br />
entre as duas coisas e que os torturadores não estão<br />
anistiados. Mas a interpretação dada pelos juristas<br />
da Ditadura foi engolida pela sociedade e pela própria<br />
esquerda brasileira quando também diz que os<br />
torturadores estão anistiados. Não estão!<br />
Classe – Pedir a punição dos torturadores é<br />
ser taxado de revanchista....<br />
Cecília - A gente não quer revanche, a gente quer<br />
justiça. E hoje, mais do que nunca, temos argumentos<br />
jurídicos que embasam que não houve crimes<br />
conexos ali. A segunda coisa é que não queremos<br />
anular a Lei de Anistia. O que queremos é<br />
uma outra leitura da Lei de Anistia. A questão dos<br />
arquivos é puramente política. Nós sabemos dos<br />
acordos que foram feitos desde a anistia, como ela<br />
foi feita, que não foi ampla, social e irrestrita como<br />
os movimentos sociais pediam na época e que vem<br />
com essa interpretação da conexidade. Todas as<br />
forças que apoiaram a Ditadura continuam hoje<br />
apoiando os governos civis. O Governo Lula não<br />
tem nada de diferente dos governos civis anteriores.<br />
O Governo Lula está complementando, em termos<br />
neoliberais, a obra iniciada pelos militares,<br />
que é a implantação efetiva do neoliberalismo no<br />
país. O que o Governo Lula tem feito é pior, inclusive,<br />
do que os governos anteriores. Com relação<br />
à questão dos direitos humanos, os avanços que<br />
aconteceram foram mínimos para um governo que<br />
se colocava comprometido com a democracia e que<br />
se dizia um governo popular. Posso dizer isso de<br />
cadeira porque fui fundadora do PT no Rio e saí<br />
do PT há 3 anos e hoje não tenho partido nenhum.<br />
O Governo Lula está<br />
complementando, em<br />
termos neoliberais,<br />
a obra iniciada<br />
pelos militares”<br />
Além disso, o GTNM é um grupo suprapartidário.<br />
A política de direitos humanos que esse governo<br />
vem efetivando é pífia. É uma política semelhante<br />
à de FHC, ou seja, é para “inglês ver”, apenas<br />
para dar satisfação às entidades internacionais.<br />
Classe – Amílcar Lobo era o médico que examinava<br />
os presos políticos para atestar até<br />
onde eles agüentariam. Você conseguiu identificá-lo,<br />
ele foi denunciado e teve seu registro<br />
cassado. Quem mais teve algum tipo de restrição?<br />
Onde estão os torturadores hoje?<br />
Cecília – Fui presa em agosto de 70, fiquei 2 dias<br />
no DOPS e depois fui para a polícia do Exército, o<br />
DOI-COD. Fui encapuzada e levada para uma cela.<br />
Quando me tiraram o capuz, entrou um homem vestido<br />
de militar que se disse médico, mas estava com<br />
um esparadrapo cobrindo sua identificação. Ele verificou<br />
a pressão, perguntou se eu era cardíaca e, logo<br />
depois, comecei a ser torturada. Fiquei presa 3 meses<br />
e meio sem nenhuma acusação contra mim. Um dia,<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 37
esse mesmo médico esqueceu seu receituário na cela<br />
em que eu estava com uma companheira, a Dulce<br />
Pandolfi, que tinha ficado praticamente paralítica<br />
de tanto ser torturada. Apenas por isso consegui ver<br />
seu nome: Amílcar Lobo Moreira da Silva. Quando<br />
saí, fiz a denúncia. Foi uma celeuma internacional.<br />
A notícia saiu em uma revista de psicanalistas progressistas<br />
da Argentina chamada “Questionamos”<br />
onde se denunciava o Amílcar Lobo como assessor de<br />
tortura e, pasmem, ele era então candidato a psicanalista,<br />
fazia formação em psicanálise. Em 81, ainda<br />
na Ditadura, período do Figueiredo, fomos num<br />
grupo de ex-presos políticos ao consultório dele e saiu<br />
na primeira página do Jornal do Brasil. Três ministros<br />
militares fizeram um manifesto dizendo que não<br />
aceitariam revanchismo e a coisa recuou. Só em 85<br />
o Conselho Regional de Medicina abriu um processo<br />
contra ele e nós ajudamos muito conseguindo depoimentos.<br />
Eu fui testemunha e, em 86, conseguimos<br />
a cassação dele. Isso foi muito importante porque a<br />
Anistia Internacional nos disse que criamos jurisprudência.<br />
Nenhum outro médico, de nenhum outro<br />
país, que tenha passado por recente ditadura e que<br />
assessorava tortura havia sido denunciado e tido seu<br />
registro cassado. O Brasil foi o primeiro. E, embora<br />
isso seja limitado porque foi conseguido via Conselhos,<br />
e se limita ao campo profissional, pelo menos a<br />
sociedade fica sabendo quem são essas pessoas..<br />
Classe – Como a ditadura “legalizava” o extermínio<br />
sob tortura e que herança isso deixa?<br />
Cecília – A Ditadura tinha 3 formas de divulgação<br />
oficial para legalizar seus assassinatos: morto<br />
em atropelamento, suicídio e resistência à prisão.<br />
A herança é justamente este último que encontramos<br />
agora nos famosos “autos de resistência”<br />
38<br />
praticados pelo Estado contra a pobreza. Ou seja,<br />
a polícia extermina e, na delegacia, se registra: “<br />
morto ao reagir à prisão”. Outra herança é a figura<br />
do desaparecido. O número de pessoas desaparecidas<br />
é incalculável, outra prática de agentes<br />
do Estado para a qual não há dados. A Ditadura<br />
não inventou a tortura. A tortura sempre existiu<br />
nesse país para a pobreza. O que a Ditadura fez<br />
foi sofisticar as práticas de tortura.<br />
Classe – Em 12 de agosto deste ano, o presidente<br />
Lula disse que toda vez que falamos<br />
dos estudantes e dos operários que morreram,<br />
falamos xingando quem os matou e que<br />
esse martírio nunca vai acabar “se a gente<br />
não aprender a transformar nossos mortos<br />
em heróis, não em vítimas”...<br />
Cecília – Papo furado do Lula. E a gente também<br />
deve ter cuidado para não transformar ninguém<br />
em herói. Essas pessoas foram de uma generosidade<br />
muito grande porque deram suas vidas por<br />
um outro Brasil. Mas sou contra a heroificação de<br />
qualquer coisa e sou contra também a vitimização.<br />
Fomos atingidos sim pela violência do Estado. Somos<br />
sobreviventes dessa violência. Não usamos a<br />
palavra vítima porque esta expressão desqualifica o<br />
outro e todos passam à condição de “coitadinhos”.<br />
Não somos isso. A fala do Lula é extremamente demagógica<br />
por tudo isso. O que queremos é que os<br />
crimes que essas pessoas cometeram às escuras nos<br />
porões da Ditadura e nos aparatos clandestinos venham<br />
a público e que essas pessoas sejam conhecidas,<br />
com seus nomes publicados e seus atos publicizados.<br />
Agora, não estamos pedindo prisão perpétua<br />
e nem pena de morte para ninguém. Disso a Justiça<br />
vai cuidar. O que a gente quer é que essas pesso-<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
as digam publicamente o que fizeram e assumam<br />
os crimes contra a humanidade que praticaram.<br />
Então, essa fala do Lula, como sempre, é uma fala<br />
em nome de uma pseudo-governabilidade, que é o<br />
que se vem falando desde o primeiro governo dele.<br />
Quando a gente fala de questões como a da abertura<br />
dos arquivos, a gente percebe que não há vontade<br />
política. E por quê? Porque as forças que apoiaram<br />
a Ditadura continuam presentes no cenário político<br />
apoiando os diferentes governos civis.<br />
Classe – Qual a diferença entre indenização<br />
e reparação? Quem já conseguiu receber<br />
a reparação do governo?<br />
Cecília – Indenização para nós é apenas indenizar<br />
financeiramente, o que, embora seja um direito, é<br />
pouco, muito pouco. A ONU usa o termo reparação<br />
como um processo onde primeiro se investiga<br />
o que aconteceu, responsabiliza e repara os atingidos<br />
com a colocação de que isso não volte a acontecer.<br />
Então, estamos muito longe de um processo<br />
reparatório. A reparação financeira é o final desse<br />
processo, é quando o Estado assume sua responsabilidade<br />
com o que fez. Isso não foi feito no Brasil<br />
até hoje. O que vem sendo feito no Brasil é o que<br />
chamamos de “cala a boca”. É pagar para esquecer<br />
o que aconteceu quando a gente sabe que nenhum<br />
dinheiro paga o que as pessoas sofreram, o que os<br />
familiares dos desaparecidos, por exemplo, sofrem<br />
até hoje. Tem mãe que ainda acha que o filho vai<br />
voltar. Mães que não mudam de telefone nem de<br />
endereço achando que os filhos podem estar por aí<br />
com alguma amnésia e que vão aparecer. Quando<br />
a gente inaugurou, há alguns anos, ruas com nomes<br />
de companheiros mortos e desaparecidos, alguns<br />
familiares não quiseram ir porque ver o nome<br />
dos filhos em uma placa de rua era confirmar sua<br />
morte. A figura do desaparecido, criada pela ditadura<br />
brasileira e exportada para outras ditaduras<br />
latino-americanas, é uma coisa perversa porque<br />
tortura até hoje. A própria Ditadura caçoava dos<br />
familiares dizendo: “de repente, não desapareceu,<br />
está morando em um país comunista! Abandonou<br />
a família!” É uma perversidade sem tamanho.<br />
Classe - Só as pessoas mais conhecidas<br />
recebem?<br />
Cecília – Só as que aparecem mais. Veja bem, a<br />
reparação financeira é um direito, mas acho que<br />
os critérios tinham de ser mais transparentes.<br />
Ela deve ser o final do processo e não como esse<br />
grande “cala boca” que a caracteriza hoje no Brasil.<br />
Acho que umas mil pessoas já receberam. Eu<br />
mesma fui presa, torturada, perdi meu emprego,<br />
fui anistiada e até hoje não recebi nada. Não é<br />
por acaso que algumas pessoas mais conhecidas,<br />
escritores e jornalistas, recebam as reparações,<br />
às quais, repito, essas pessoas têm direito. Mas,<br />
lamentavelmente, essas pessoas quando recebem<br />
o dinheiro não lembram que sua história precisa<br />
ser contada. O Estado brasileiro, além de reparar<br />
financeiramente, precisa contar o que aconteceu.<br />
Ele precisa apontar os crimes cometidos em nome<br />
da Segurança Nacional. O triste é que companheiros<br />
que recebem as reparações não lembrem<br />
de falar isso, de contar o que foi o sofrimento e<br />
essa história desse sofrimento. Os critérios devem<br />
ser transparentes e publicizados porque, do contrário,<br />
a direita e a grande mídia adoram <strong>fazer</strong><br />
isso, fica aquela coisa de “vejam as indenizações<br />
milionárias!”, que é uma forma de se jogar uma<br />
cortina de fumaça em cima do que efetivamente<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 39
é uma reparação financeira. O Brasil exportou<br />
know-how de tortura para as ditaduras latinoamericanas,<br />
exportou torturador, pau-de-arara,<br />
manual de tortura. Apesar disso, é o mais atrasado<br />
de todos os países da América Latina em relação<br />
às reparações e de contar uma outra História,<br />
porque o que temos é a História dos milicos.<br />
Classe – Como você comentaria a recente frase<br />
do deputado federal e capitão da reserva do<br />
Exército, Jair Bolsonaro, “O erro foi torturar e<br />
não matar!” , diante de uma manifestação que<br />
exigia punição para os torturadores no Brasil?<br />
Cecília – Mostra a mentalidade fascista hoje desse<br />
país. O que foi e o que continua sendo. Para alguns<br />
segmentos da sociedade, a morte. Para os “terroristas”<br />
daquele período, que era como eles nos chamavam,<br />
e para a pobreza hoje, a morte. Para alguns<br />
segmentos rotulados de “perigosos” você justifica a<br />
tortura e o extermínio. Essa fala mostra muito bem<br />
o que hoje está se espraiando na sociedade e não só<br />
a brasileira, mas em todo o planeta.<br />
Classe – Uma fascistização generalizada?<br />
Cecília – É... vivemos hoje uma fascistização<br />
do cotidiano. Queremos um Estado punitivo,<br />
pedimos um Estado forte, penal. Todo mundo<br />
acha que a sua segurança está em cima de maior<br />
policiamento, de leis mais duras e repressivas,<br />
de se criminalizar todo e qualquer pequeno delito.<br />
Isso é o que vivemos hoje. Um Estado penal<br />
punitivo e uma política de tolerância zero. Isso<br />
se espraia por todo o planeta e está aqui. A política<br />
do casal Garotinho foi desenvolvida dentro<br />
dessa concepção de se criminalizar a pobreza, os<br />
movimentos sociais e todo e qualquer delito.<br />
40<br />
Classe – Em que medida a impunidade em<br />
relação aos militares que torturaram na Ditadura<br />
se relaciona com a polícia que tortura<br />
hoje?<br />
Cecília – A Ditadura fez escola. E o fato da gente<br />
não conhecer nossa história recente contribui. Num<br />
primeiro momento da repressão brasileira, que vai<br />
até 70, 71, era só porrada pura e simples. A partir<br />
daí, se inaugura o que eles chamam de tortura científica.<br />
Você não encosta um dedo no sujeito, mas o<br />
desestrutura. Por exemplo, se colocava a pessoa em<br />
uma cela, que chamávamos de geladeira por sua<br />
temperatura baixíssima, com gritos e sons que você<br />
não identifica, ininterruptos, onde a pessoa simplesmente<br />
enlouquece. Nos EUA, algumas prisões de<br />
segurança máxima são assim: através da privação<br />
sensorial se produz a loucura. No Brasil, nem foi<br />
muito utilizado, mas teve sim companheiros que enlouqueceram<br />
em função disso. O golpe do Brasil foi<br />
o primeiro e os militares passaram a exportar essas<br />
técnicas que experimentavam aqui.<br />
Classe – Você disse, em seu livro “Operação<br />
Rio – o mito das classes perigosas”, que muitas<br />
pessoas ficam horrorizadas porque houve<br />
tortura na Ditadura Militar brasileira não<br />
por serem contra a tortura, mas porque esta<br />
foi praticada contra a classe média. Ou seja,<br />
tortura contra os pobres tudo bem?<br />
Cecília – Eu sempre digo isso. Não é que no movimento<br />
de oposição ao regime militar não estivessem<br />
presentes operários e camponeses, muitos estavam,<br />
mas não são falados e ficam esquecidos. Os que<br />
são falados são os intelectuais e estudantes, mas a<br />
tortura, a prisão e o desaparecimento se naturali-<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
A política de direitos<br />
humanos que esse governo<br />
vem efetivando é pífia.<br />
É uma política semelhante à<br />
de FHC, ou seja, é<br />
para‘ inglês ver’”<br />
zaram como sendo só para a pobreza e não para a<br />
classe média e a elite. Se há horror da sociedade, é<br />
só em relação a isso, mas temos de nos horrorizar<br />
independente da classe social.<br />
Classe – Por que está cada vez mais comum<br />
pensar que falar em direitos humanos é “querer<br />
passar a mão na cabeça dos bandidos”?<br />
Cecília – Por que está sendo disseminado na sociedade<br />
através dos grandes meios de comunicação de<br />
massa, mas não só eles, isso é uma construção histórica<br />
no Brasil. Ou seja, vai se ligando indissociavelmente<br />
e naturalmente pobreza e criminalidade.<br />
Ou seja, onde está o pobre, está o perigo. Onde está<br />
o pobre, está o crime. É o que o psicanalista francês<br />
Félix Guattari fala quando se refere a produção de<br />
subjetividades. Ou seja, tão importante como a produção<br />
do aço, das riquezas, é a produção de modos<br />
de viver e de existir. Através dessas subjetividades<br />
produzidas, você domina. A ligação entre pobreza e<br />
criminalidade é algo que está naturalizado em cada<br />
um de nós. Essas forças nos atravessam. E isso, na<br />
Europa, começa em meados do séc. XIX e, no Brasil,<br />
chega no final do século XIX e início do XX.<br />
Classe – No livro, outro conceito com<br />
o qual você trabalha bastante é o de<br />
periculosidade, do Foucault...<br />
Cecília – É, o Foucault falava que no século XIX<br />
emerge um dispositivo presente entre nós chamado<br />
de periculosidade. Ou seja, tão perigoso quanto<br />
aquilo que o sujeito fez é aquilo que ele poderá vir<br />
a <strong>fazer</strong>, dependendo da essência desse sujeito. Aí<br />
você dá uma essência para a pobreza, de perigosa e<br />
de criminosa, uma coisa perversa.<br />
Classe - Se pensarmos que os empresários financiaram<br />
a ditadura e a tortura, isso define o<br />
caráter de classe da Ditadura Militar brasileira.<br />
Esse ainda é o caráter de classe que marca<br />
a tortura contra os pobres em nosso país?<br />
Cecília – As Madres da Praça de Maio têm uma:<br />
“Da Ditadura Militar à ditadura de mercado”.<br />
Obviamente sabemos que os militares foram testasde-ferro<br />
das multinacionais. Os golpes militares<br />
na América Latina, nos anos 60 e 70, servem à implantação<br />
das multinacionais. Vários empresários<br />
deram dinheiro para a formação dos DOI-CODIS<br />
para a Operação Bandeirantes, o laboratório que<br />
começou a funcionar em 69 em São Paulo, onde se<br />
unificou toda a repressão. Daí é que se originaram<br />
os DOI-CODIS. É por isso que muitos historiadores<br />
afirmam que não devemos usar o termo Ditadura<br />
Militar, e sim civil-militar. Os empresários deram<br />
um apoio muito grande à tortura. Raros não fizeram<br />
isso. Portanto, o caráter de classe está presente<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 41
porque é o caráter do capital. A Ditadura vem para<br />
implementar um determinado momento do capitalismo<br />
internacional. Os militares iniciam a implantação<br />
do projeto neoliberal e os governos civis vão<br />
complementando, mantendo e aprofundando esse<br />
projeto. E chega ao ponto em que temos um governo<br />
do Partido dos Trabalhadores, que tem uma responsabilidade<br />
social enorme em completar essa obra.<br />
Classe – Em novembro de 2007, o médico<br />
Harry Shibata, que foi diretor do IML e<br />
assinava atestados de óbito durante a Ditadura,<br />
deu uma entrevista. Nela, ele diz<br />
que bandido tem “um componente genético”<br />
e defende a eugenia porque, para ele,<br />
“o pessoal lá do Norte e Nordeste não tem<br />
cultura nem inteligência para entender<br />
que é melhor qualidade do que quantidade”<br />
e precisa ser controlado. Um mês antes,<br />
o governador do Rio, Sérgio Cabral,<br />
defendeu a legalização do aborto para reduzir<br />
a violência, afirmando que o índice<br />
de natalidade nos bairros de classe média<br />
e alta do Rio possuem padrão “europeu”,<br />
enquanto as periferias e favelas possuem<br />
níveis “africanos”. Já em agosto deste ano,<br />
o senador Marcelo Crivella, candidato do<br />
PRB (derrotado) à prefeitura do Rio, defendeu<br />
a redução da idade mínima para<br />
laqueadura de trompas e vasectomia, “sobretudo<br />
nas áreas carentes”. Esse pensamento<br />
que relaciona natalidade, pobreza<br />
e violência vem da direita, mas cria cada<br />
vez mais lastros na sociedade?<br />
Cecília – Essas teorias ditas “científicas” estão<br />
presentes no Brasil desde o início do século XX,<br />
42<br />
como a eugenia, que pregava a esterilização dos<br />
considerados “perigosos”, e o higienismo, que vai<br />
dizer que os pobres não têm condições de criar<br />
seus filhos. Uma aliança entre o Direito e a Medicina<br />
aponta quem são os indesejáveis e vai dar<br />
uma essência a essas pessoas, a esses segmentos<br />
pobres da sociedade. Isso se atualiza hoje e de várias<br />
formas, no Congresso Nacional por exemplo.<br />
Hoje, existem 1457 projetos de lei, todos versando<br />
sobre penas mais duras e severas, não só para<br />
diminuição da maioridade penal, mas para que<br />
a criança possa civilmente responder a processos<br />
como testemunha. Existem projetos para que pedófilos<br />
sejam esterilizados quimicamente. Hoje<br />
vemos novas modalidades de eugenia e higienismo.<br />
Isso é o avanço do Estado penal. Quando falo<br />
do fascismo social, estou falando desse resgate<br />
dessas teorias ditas científicas, que voltam a ser<br />
utilizadas no século XXI com outras caras e fisionomias.<br />
É uma forma de se dizer que sim, alguns<br />
merecem a tortura e o extermínio.<br />
Classe - Shibata também disse o seguinte: “A<br />
repressão tinha de combater a subversão na<br />
Ditadura. É a mesma coisa que a Tropa de<br />
Elite fez e faz combatendo o tráfico no morro.<br />
Tem que acabar com a liderança, tem que<br />
matar a liderança mesmo. Mas é pouca gente<br />
na Tropa. Por que quantos morros tem?”<br />
Cecília – Então é isso, bota mais “homens de preto<br />
no morro”. Essa é a mensagem do filme, que é muito<br />
bem feito tecnicamente e totalmente fascista. De<br />
uma forma heróica e naturalizada, mostra a participação<br />
da polícia na tortura e no extermínio. Não<br />
é por acaso que eles dão tanta ênfase aos treinamentos.<br />
Os treinamentos militares hoje produzem<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
torturadores. Isso precisa ser pensado pelo Estado<br />
brasileiro porque acontece tanto na Polícia Militar,<br />
como na Guarda Municipal e nas três Forças Armadas.<br />
Inclusive há casos de jovens que morrem<br />
em treinamento no Exército e que as famílias não<br />
conseguem denunciar porque têm medo.<br />
Classe - O que as Forças Armadas<br />
representam hoje?<br />
Cecília – O que sempre representaram: o braço armado<br />
do capitalismo, como as polícias também. Se<br />
o atual governo diz que é popular e democrático, as<br />
Forças Armadas deveriam ser as primeiras a desejar<br />
trazer à tona o que aconteceu em nossa História<br />
para toda a sociedade. Trazer os crimes que foram<br />
praticados em nome da Segurança Nacional, crimes<br />
praticados por seus agentes, com o apoio dos<br />
comandantes militares, dos presidentes militares.<br />
Se as Forças Armadas querem pensar na construção<br />
de uma sociedade um pouco mais aberta e democrática,<br />
essa História precisa ser contada.<br />
Classe – Como se gestou esse conceito de<br />
“classes perigosas?”<br />
Cecília – Ele aparece em 1857 na Europa, num<br />
livro do Morel chamado “Teoria da Degenerescência”.<br />
É a primeira vez que se usa esse termo e<br />
o Morel diz que na sociedade existe uma variedade<br />
de “espécies” perigosas. Daí por diante, esse<br />
pensamento veio se alastrando.<br />
Classe – Como a imprensa ajudou e continua<br />
ajudando na construção desse pensamento?<br />
Cecília – Naturalizando isso, a essência. A imprensa<br />
ajuda quando não cessa de repetir que o pobre,<br />
se ainda não é perigoso, vai se tornar. Quando<br />
produz o terror e o inimigo: o negro, o pobre.<br />
O Milton Santos dizia que, nesse processo, não só<br />
caracteriza como perigosos os segmentos pobres<br />
da população, mas também os territórios que<br />
eles habitam. São territórios perigosos, como as<br />
favelas. Então, a sociedade passa a achar que<br />
isso é natural. A situação é tão terrível que tem<br />
um filósofo italiano, Agamben, que diz que se<br />
produziu hoje o que ele chama de “vida nua”,<br />
aquele que é matável e que, portanto, não é considerado<br />
homicídio. O que se dissemina é que<br />
para a minha segurança é necessário que esses<br />
“matáveis” sejam mortos. Daí a política de segurança<br />
pública militarizada.<br />
Classe – A maximização desse Estado penal<br />
é propícia para a criminalização do<br />
movimento social?<br />
Cecília – Sim, e principalmente a criminalização<br />
dos que não foram capturados pelo Governo<br />
Lula. Vivemos também um momento de judicialização<br />
do cotidiano. Ou seja, a justiça penetra<br />
no cotidiano e a gente não se dá conta disso.<br />
Passamos a defender também que para a nossa<br />
segurança precisamos de leis mais duras, penas<br />
mais severas e mais agressivas como prisão perpétua,<br />
diminuição da maioridade penal, pena<br />
de morte. Aqui na UFF, por exemplo, já existe<br />
um curso de especialização em segurança pública<br />
que eu acho muito estranho. É um curso que,<br />
para meu espanto, ao que parece, substituiu um<br />
curso que havia na PM. Ou seja, para se chegar<br />
a coronel era necessário passar por esse curso,<br />
que se assemelha a um doutorado. Acho que a<br />
formação de policiais, civis ou militares, precisa<br />
ser feita em academias próprias para isso.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 43
Classe – E por onde passaria essa discussão<br />
na universidade?<br />
Cecília - A questão da segurança pública precisa<br />
ser discutida nas ciências humanas e sociais.<br />
Essa discussão tem de estar presente na Psicologia,<br />
na Sociologia, no Direito, nas ciências políticas.<br />
Hoje, se tenta criar um curso de graduação<br />
em segurança pública (* o curso não foi aprovado),<br />
o que eu acho muito perigoso dentro desse contexto<br />
em que vivemos. Por que criar um especialista<br />
em segurança pública se o sociólogo pode discutir<br />
isso? Se o psicólogo pode discutir isso? Se o antropólogo<br />
pode discutir isso? A resposta que encontro<br />
é porque a segurança pública virou também um<br />
grande mercado, outra conseqüência desse Esta-<br />
do Penal que se maximiza. Hoje, os estudantes<br />
que criticam a implantação desse curso são também<br />
criminalizados.<br />
Classe - A quem interessa difundir essa idéia<br />
de que vivemos uma guerra civil?<br />
Cecília – Aos poderosos, já que, uma vez aceita<br />
essa idéia, entramos no vale-tudo. Significa<br />
dizer que se a minha segurança depende da eliminação<br />
do outro, que morra o outro. Mas a segurança<br />
em questão é sempre a do rico e o outro<br />
que precisa morrer é sempre o pobre.<br />
Classe – Isso gerou um novo tipo de<br />
subjetividade?<br />
44 OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Foto: Stela Guedes Caputo<br />
Cecília - É o que eu chamo de uma subjetividade<br />
moralista-policialesca-punitiva-paranóica:<br />
todos com medo de todos, mas o alvo maior de<br />
nosso medo e, portanto, alvo da maior punição,<br />
é o pobre. A Vera Malaguti fala muito bem que a<br />
produção do medo na cidade do Rio de Janeiro<br />
é uma forma de controle social.<br />
Classe – É esse medo produzido que faz com<br />
que se exija mais leis?<br />
Cecília – Sem dúvida. O homossexual quer criminalizar<br />
o homofóbico, os ecologistas os que poluem,<br />
os pais que não mandam seus filhos para a<br />
escola são criminalizados. Você criminaliza tudo<br />
e a gente acaba achando que a solução é por aí.<br />
Não adianta pedir mais leis, pedir mais tutela<br />
do Estado: as leis estão aí. O Estatuto da Criança<br />
e do Adolescente, por exemplo, está fazendo 18<br />
anos e nunca foi implementado. A criança pobre<br />
continua sendo chamada de menor e não de<br />
criança. O meu filho é criança, o filho da pobreza<br />
é menor. Para que mais leis?<br />
Classe – Em que medida a construção dicotômica<br />
da “cidade partida”, do Zuenir<br />
Ventura, atrapalha a compreensão da cidade<br />
como uma única realidade onde o<br />
embate, das mais variadas formas, é entre<br />
as classes sociais?<br />
Cecília – Eu acho que nada melhor do que voltar<br />
para Karl Marx, que dizia que miséria e capital<br />
se complementam. Não existem duas cidades<br />
partidas. O capital precisa da miséria e a miséria<br />
é efeito do capital. A cidade se integra e é<br />
uma só, onde o capital produz os explorados que,<br />
juntos, precisam se insurgir contra o capital.<br />
Classe – Como os movimentos culturais podem<br />
ajudar no avanço da consciência da classe<br />
trabalhadora e como também podem atrapalhar?<br />
Em que medida alguns movimentos<br />
reforçam o mito da “cidade partida” e se<br />
conformam numa luta pelo “diálogo entre o<br />
morro e o asfalto e pela visibilidade?”<br />
Cecília – Eu acho que alguns movimentos sociais<br />
são atravessados não só por essas dicotomias,<br />
mas também pela crença de que a luta pela<br />
visibilidade resolve alguma coisa. Não resolve<br />
nada. Essa coisa da visibilidade até reforça isso,<br />
sou contra tudo isso, que não passa de assistencialismo.<br />
Além disso, toda identidade é conservadora<br />
se não lutar contra o capital.<br />
Classe – Por onde passa a mudança de<br />
tudo isso?<br />
Cecília – Pelos movimentos sociais. Eu só entendo<br />
as lutas institucionais vinculadas aos<br />
movimentos sociais. Quando ocupamos espaços<br />
de poder, é para apoiar os movimentos sociais,<br />
e não para capturá-los, mas importantes lideranças<br />
foram capturadas por esse governo neoliberal<br />
do Lula e isso não pode mais acontecer.<br />
O problema é que os movimentos que não foram<br />
capturados pelo governo estão sendo capturados<br />
pela subjetividade penal, pela luta dos<br />
movimentos culturais pura e simples e devemos<br />
também estar alertas para isso. As mudanças<br />
não virão nem em curto nem em médio prazo,<br />
mas, para que as alcancemos algum dia, é preciso<br />
deixar de achar que tudo o que acontece é<br />
natural. É preciso desconfiar dos meios de comunicação,<br />
da mídia de uma forma geral e dos<br />
movimentos conformadores.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 45
O ex-presidente da Associação dos Procuradores<br />
do Estado de São Paulo, José Damião de<br />
Lima Trindade, lançou recentemente a segunda<br />
edição de seu livro “A História Social dos Direitos<br />
Humanos” (Editora Petrópolis). O livro e a atuação<br />
incansável em defesa dos Direitos Humanos fizeram<br />
com que o advogado recebesse, no dia 24/10,<br />
no auditório central da UFRJ, o prêmio “João Canuto<br />
de Direitos Humanos”, na categoria “Destaque<br />
em Educação em Direitos Humanos”, promovido<br />
pela entidade carioca “Movimento Humanos<br />
Direitos”. No ano em que a Declaração Universal<br />
completa 60 anos (10/12/2008), a visão singular<br />
deste autor recoloca a questão da classe social nesta<br />
importante discussão. Na entrevista que segue<br />
ele fala sobre o livro, polícia, criminalização dos<br />
movimentos sociais, mídia e segurança pública.<br />
46<br />
Entrevista com José Damião de Lima Trindade,<br />
ex-presidente da Associação dos Procuradores<br />
do Estado de São Paulo<br />
“Só a esquerda socialista<br />
pode carregar a bandeira<br />
dos Direitos Humanos”<br />
Classe – O Instituto de Segurança Pública<br />
do Rio de Janeiro divulgou que, entre<br />
janeiro e março deste ano, 358 pessoas foram<br />
mortas pela polícia no estado nos chamados<br />
“autos de resistência”, 12% a mais<br />
do que o registrado no mesmo período de<br />
2007. A polícia está matando cada vez mais.<br />
Como avaliar essa realidade?<br />
José Damião – O crescimento da violência policial,<br />
tanto nas ruas quanto no interior das delegacias,<br />
é uma tendência estatisticamente verificável<br />
em praticamente todas as grandes cidades<br />
brasileiras. O caso do Rio chama mais atenção<br />
devido a certas especificidades muito conhecidas.<br />
Primeiro, porque a topografia carioca faz<br />
com que bairros de classes média e alta convivam<br />
lado a lado com bolsões de miséria – diferente-<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
mente de outras capitais, onde já vai adiantado o<br />
processo de expulsão da miséria para a periferia.<br />
São Paulo, que outrora tinha favelas em regiões<br />
centrais da cidade, empurrou-as para longe nas<br />
últimas décadas. Quem entra ou sai da cidade<br />
por qualquer das rodovias de acesso tem de atravessar<br />
o ostensivo cordão de favelas. E é sobre a<br />
pobreza que a violência policial mais se abate.<br />
Por isso, no Rio, a violência policial acaba sendo<br />
mais “visível” para a classe média. Outro aspecto<br />
que chama a atenção no Rio é o sério envolvimento<br />
de policiais militares e civis com as violentas<br />
“milícias” criminosas das zonas norte e oeste, bem<br />
armadas e municiadas, até representadas politicamente,<br />
cada vez mais atrevidas. Não fosse o episódio<br />
de torturas praticadas durante horas contra<br />
repórteres do jornal “O Dia”, em março de 2008,<br />
talvez sequer tivesse sido instalada na Assembléia<br />
Legislativa a CPI sobre as milícias, que o deputado<br />
Marcelo Freixo havia proposto um ano antes.<br />
Outro fator a conferir notoriedade à violência policial<br />
carioca é, digamos, de ordem “publicitária”:<br />
os “caveirões” tornaram-se símbolos aterrorizantes<br />
da brutalidade institucional no estado.<br />
Classe – Como repensar a segurança pública<br />
dentro dos marcos do capitalismo, posto que<br />
nesta ordem é impossível uma sociedade justa?<br />
Afinal, segurança pública para quem?<br />
José Damião – No capitalismo, seja aqui, seja na<br />
Noruega, a função primária do aparato policial e<br />
dos aparatos privados complementares não é propiciar<br />
segurança ao “público” em geral, mas sim<br />
assegurar proteção, difusa ou ostensiva, à propriedade<br />
privada e aos seus detentores. Essa condicionante<br />
básica já limita severamente todos os projetos<br />
de “democratizar” ou “humanizar” o corpo policial<br />
numa sociedade capitalista. Mas numa Noruega,<br />
em que as contradições sociais foram minimizadas<br />
pelo Estado de Bem-Estar (que só agora começa a<br />
ser destruído por lá), a polícia não precisa ser tão<br />
violenta para defender a propriedade privada. Já<br />
na América Latina e África, com desigualdades sociais<br />
extremadas, a violência policial erigiu-se em<br />
principal método profissional das instituições de<br />
segurança. No caso brasileiro, há um agravante: a<br />
impunidade dos assassinos e torturadores da época<br />
da Ditadura Militar acabou sendo uma espécie de<br />
“garantia” de impunidade para os assassinos e torturadores<br />
fardados e sem farda de hoje. Philip Alston,<br />
o relator especial da ONU para execuções sumárias<br />
asseverou que, no Brasil, a polícia tem “carta<br />
branca” para matar. Basta registrar: “resistência<br />
seguida de morte” ou “morte em troca de tiros”.<br />
Classe – É possível pensarmos em ações<br />
específicas para o combate ao racismo<br />
nas instituições de segurança pública, já<br />
que a juventude negra é a principal vítima<br />
da violência policial?<br />
José Damião – Ações educativas interna corporis<br />
na instituição policial têm se mostrado de eficácia<br />
duvidosa, ao menos até agora. O policial civil ou<br />
militar é convocado para assistir umas aulinhas<br />
sobre direitos humanos, igualdade racial, respeito<br />
ao cidadão, e fica nisso. A “ideologia” da violência,<br />
da bala, da pancada, do choque elétrico e do preconceito<br />
racista e classista, que fincou raízes em toda a<br />
instituição policial desde a Ditadura Militar, acaba<br />
pesando mais. Essas aulinhas acabam se tornando<br />
objeto de galhofa. Eu mesmo, chamado para dar<br />
aulas de direitos humanos em cursos de formação<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 47
de policiais militares em São Paulo, percebia o enfado<br />
e o escárnio em muitos semblantes. Não que tais<br />
ações educativas devam ser interrompidas, mas, sozinhas,<br />
são impotentes para transformar mentalidades<br />
e práticas. Faz falta um conjunto de medidas<br />
que amenizaria a situação: salários dignos, para<br />
que os policiais não precisem “trabalhar” para o<br />
tráfico de drogas/armas e para as milícias; recursos<br />
tecnológicos modernos, para que o pau-de-arara<br />
deixe de ser o principal “método” de interrogatório<br />
e investigação; e a mobilização da sociedade, que<br />
deveria se organizar e pressionar para exigir rigor<br />
e verdade na ação da Corregedoria das polícias.<br />
Mas, note bem: usei o verbo amenizar. Essas e ou-<br />
48<br />
Edna Ezequiel, mãe<br />
de Alana, de 12 anos,<br />
assassinada por<br />
policiais militares, em<br />
março de 2007, no<br />
Morro dos Macacos.<br />
Foto: Agência O Globo<br />
tras medidas poderiam amenizar a situação, o que<br />
já seria um avanço em termos de vidas poupadas,<br />
redução da truculência policial e colocação da corrupção<br />
policial “sob certo controle”. Porque a função<br />
policial básica exigida pelas instituições, pelas<br />
classes dominantes e pela grande mídia, porta-voz<br />
das classes dominantes, continuaria a ser a mesma:<br />
reprimir a pobreza, mantê-la afastada da propriedade,<br />
mantê-la trabalhando quietinha e conformada.<br />
Sob o capitalismo, não nos transformaremos<br />
numa Noruega. Mais fácil, com essa crise mundial,<br />
a Noruega retroceder para Brasil.<br />
Classe – Passou a ser comum que manifes-<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
tações contra a violência reúnam mães que<br />
perderam seus filhos. Consolam-se mutuamente<br />
os pais de João Hélio, comerciantes;<br />
os pais de Gabriela Prado, psicólogos (a<br />
mãe faleceu recentemente); a mãe da menina<br />
Alana, morta no Morro dos Macacos,<br />
empregada doméstica; a mãe de Hanry da<br />
Silva, morto por policiais no Lins. O que<br />
une e o que separa essas pessoas?<br />
José Damião – A dor comum as une. E a dor humana<br />
é território sagrado. Consegue, durante certo<br />
tempo, diluir as fronteiras de classe que separavam<br />
essas pessoas. Mas se a dor e a revolta não se<br />
amalgamarem com um projeto de democratização<br />
profunda das nossas corporações policiais, a dor<br />
que hoje arma vozes acabará, por falta de resultados,<br />
se cansando e se calando. Já aconteceu antes.<br />
Classe - No dia 22 de agosto de 2007, a tropa<br />
de choque invadiu a Faculdade de Direito<br />
da USP. Em artigo, na ocasião, você<br />
disse que o ato, além de configurar, por si<br />
mesmo, uma agressão à autonomia universitária,<br />
pôs a nu sua natureza de preconceito<br />
de classe, já que, dentre os presos<br />
naquela madrugada, somente os ativistas<br />
de movimentos sociais foram fichados<br />
na delegacia de polícia.<br />
José Damião – É verdade, os estudantes foram<br />
liberados sem fichamento. A ideologia dominante<br />
até admite que os filhos das classes dominantes<br />
às vezes cometam alguns “excessos”, como protestar,<br />
denunciar, participar de ocupações simbólicas.<br />
Coisa de juventude: quando começarem a ganhar<br />
dinheiro isso passa, é o que dizem – e geralmente<br />
passa mesmo. O patrimônio familiar, a consciência<br />
No capitalismo, não há mais nenhuma<br />
esperança de melhoria social significativa,<br />
o movimento é regressivo, aponta<br />
para a supressão de direitos que,<br />
em alguns casos, os trabalhadores<br />
haviam conquistado já no<br />
final do século dezenove”<br />
de pertencer à elite econômica ou de estar em suas<br />
imediações, quase ingressando nela, acaba se impondo,<br />
salvo as exceções de plantão. Mas pobres, negros,<br />
índios, camponeses, favelados, desempregados<br />
ocuparem por algumas horas o pátio de uma faculdade<br />
pública para protestar contra as injustiças da<br />
sociedade, isso é intolerável: chamem a polícia!<br />
Classe – Como você vê a crescente criminalização<br />
dos movimentos sociais,<br />
em especial, do MST?<br />
José Damião – Vejo com temor devido à falta<br />
de uma reação apropriada, enérgica, da sociedade.<br />
Os movimentos sociais ainda padecem de desnorteamento<br />
político-ideológico, muitos estão paralisados<br />
pela cooptação institucional de seus líderes ou depositam<br />
esperanças em bolsas assistenciais. O movimento<br />
sindical chegou ao fundo do poço, encolhido, desmobilizado,<br />
com uma parcela imensa corrompida.<br />
Mas as contradições sociais, a desigualdade brutal e<br />
a concentração de renda continuam operando, geran-<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 49
do dor social, mal-estar, criminalidade, desemprego.<br />
Isso ainda pode ser contido por uma polícia repressiva.<br />
O que não pode ser admitido é a atividade daquela<br />
franja de movimentos que não se rendeu, que<br />
insiste em organizar os oprimidos, mobilizá-los para<br />
a ação consciente. Isso pode crescer, tornar-se perigoso<br />
no primeiro abalo econômico que o país sofrer.<br />
Antes que saia de controle, é preciso cortar o “mal”<br />
pela raiz. Demissão de sindicalistas, imposição judicial<br />
de “interditos proibitórios” para que os piquetes<br />
de greves não possam se aproximar dos portões das<br />
empresas, multas milionárias contra os sindicatos<br />
combativos, tentativa de colocar o MST na ilegalidade,<br />
uso até da infame Lei de Segurança Nacional<br />
da ditadura... Um novo macartismo começa, aos<br />
poucos, a tomar os poros da sociedade. E não temos<br />
conseguido reunir forças para dar resposta à altura.<br />
Muito preocupante. Se a crise econômica mundial<br />
se precipitar com severidade, isso pode piorar muito,<br />
e rapidamente. Em épocas de crise, as classes dominantes<br />
sempre encontram os seus Roosevelts ou<br />
Mussolinis e usam um ou outro conforme for mais<br />
conveniente para manter seus interesses.<br />
Classe – Muitas universidades estão organizando<br />
pós-graduações e graduações em<br />
Segurança Pública. Como você vê isso?<br />
José Damião – O tema “segurança pública”,<br />
como qualquer outro tema relevante, poderia ser<br />
objeto de atenção científica na academia. O problema<br />
não reside aí. O problema surge na ideologia<br />
que perpassa tais cursos. Estamos numa época em<br />
que o Estado Social cede lugar ao Estado Penal e<br />
a burguesia, em vez de, como antes, administrar<br />
as contradições sociais mediante concessões pontuais,<br />
mas reais, aos trabalhadores, passa a fazê-lo<br />
50<br />
mediante a combinação de um duplo movimento:<br />
anestesiamento da miséria (assistencialismo) e repressão<br />
ao que restar de manifestações daquelas<br />
contradições. Com esse espírito dos tempos, o tema<br />
“segurança pública” acompanha esse movimento:<br />
estudar a segurança pública na academia tem o<br />
propósito de torná-la “mais eficiente”, assimilar<br />
técnicas de contenção social que deram certo em<br />
outros países, sem atenção às conexões sociológicas<br />
da criminalidade e sem investigar a função social<br />
que o capitalismo atribui às forças de segurança.<br />
Isso torna toda transgressão legal um fenômeno<br />
merecedor de atenção puramente “técnica”, “neutra”,<br />
alienada. Exatamente o tipo de formação de<br />
profissionais que convém ao status quo.<br />
Classe - É comum que parentes e pessoas<br />
amigas de vítimas da violência peçam<br />
mudanças no Código Penal, em geral o<br />
endurecimento das penas e a redução da<br />
maioridade penal. A mídia é responsável<br />
por essa associação?<br />
José Damião – A mídia é cúmplice consciente, cínica.<br />
Que familiares e amigos de vítimas, trespassados<br />
pela dor por perdas violentas, queiram “vingar” o<br />
derramamento de sangue com mais derramamento<br />
de sangue, é compreensível. A dor humana, malgrado<br />
sagrada, pode cegar, toldar a lucidez e conduzir<br />
ao insensato. Mas a grande mídia burguesa toma<br />
essa dor humana e transforma-a em espetáculo, com<br />
o propósito de adicionar mais cegueira à cegueira,<br />
para que as vítimas escolham o caminho errado, o<br />
caminho da vingança penal, e não tomem consciência<br />
das raízes sociais da criminalidade. Os juristas,<br />
os políticos, os intelectuais orgânicos das classes dominantes<br />
sabem disso e ocultam. Está demonstrado<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
internacionalmente que o “endurecimento” penal é<br />
inócuo, não altera a curva estatística do delito. Nenhum<br />
delinqüente “consulta” o Código Penal antes<br />
de transgredir. Também está nauseantemente demonstrado<br />
que calabouços não “ressocializam” ninguém.<br />
A privação de liberdade, salvo naqueles raros<br />
casos de psicopatas violentos, fracassou no mundo<br />
todo enquanto instrumento de defesa social. É baixíssimo<br />
o índice de reincidência após o cumprimento de<br />
penas alternativas (prestação de serviços à comunidade,<br />
restrição de direitos, etc.). E é cada vez maior o<br />
índice de reincidência após o cumprimento de penas<br />
de encarceramento. Esses dados são públicos, estão<br />
disponíveis. Mas, como a burguesia não consegue<br />
aliviar o mal-estar social – precisaria mexer com os<br />
lucros – ela prefere alimentar essas ilusões penais de<br />
Talião, trágicas para os oprimidos.<br />
Classe – Quando se vai contra essa lógica,<br />
seus defensores criticam “a turma dos direitos<br />
humanos”. Como responder a esse endurecimento<br />
social cada vez mais cimentado?<br />
José Damião – É muito difícil dar essa reposta<br />
porque, como se sabe, a ideologia dominante<br />
numa sociedade é sempre a ideologia da classe<br />
dominante. Se não conseguirmos estabelecer uma<br />
conexão eficiente entre cada uma das mazelas sociais<br />
e o verdadeiro epicentro do problema – a<br />
divisão social em classes – não conseguiremos<br />
manter um discurso coerente nem convincente.<br />
Classe – No seu livro “A história social dos<br />
Direitos Humanos”, relançado agora, o<br />
senhor diz que a burguesia, que originalmente<br />
concebeu o discurso dos direitos<br />
humanos, precisa hoje rejeitá-lo e que a es-<br />
querda, que o identificava como mistificação<br />
ideológica, tomou-o para si. Mas como<br />
a esquerda deve carregar essa bandeira?<br />
José Damião – Só a esquerda socialista pode<br />
hoje carregar a bandeira dos direitos humanos. A<br />
burguesia desinteressou-se dela – não pode mais<br />
sustentá-la. Poderia hoje o capitalismo universalizar<br />
direitos econômicos, sociais e culturais, da Namíbia<br />
à Holanda? Obviamente, não. O movimento<br />
do capital, a acelerada incorporação da ciência e<br />
da tecnologia nos processos produtivos e a desregulamentação<br />
dos mercados acirraram dramaticamente<br />
a concorrência mundial inter-capitalista<br />
nas últimas duas ou três décadas. Para sobreviver<br />
nessa guerra hobbesiana, o capital precisa cortar<br />
custos de produção de mercadorias. Economizar<br />
com meios de produção tornou-se impossível, a<br />
produtividade despencaria. O único “custo” que<br />
restou disponível para ser cortado é o da própria<br />
força de trabalho. Redução/supressão de direitos<br />
econômico-sociais – eis a sacrossanta consigna que<br />
entoam os capitalistas ao redor do planeta. Desunidos<br />
e confusos ideologicamente, acuados pela maré<br />
montante do novo exército industrial de reserva (o<br />
desemprego estrutural), os trabalhadores não têm<br />
conseguido resistir. No capitalismo, não há mais<br />
nenhuma esperança de melhoria social significativa,<br />
o movimento é regressivo, aponta para a supressão<br />
de direitos que, em alguns casos, os trabalhadores<br />
haviam conquistado já no final do século<br />
XIX. E os direitos individuais? Quanto a eles, qual<br />
o significado de Abu Ghraib, Guantánamo, dos<br />
navios-prisões que hoje os EUA mantêm em águas<br />
internacionais do Pacífico, dos centros secretos de<br />
tortura que instalaram na Europa Ocidental, no<br />
Egito, no Paquistão? Qual o significado das guer-<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 51
A esquerda está<br />
“condenada” a<br />
defender os direitos<br />
humanos ou capitula<br />
miseravelmente”<br />
ras de agressão da maior potência imperial? Qual<br />
o significado da covarde conivência/complascência<br />
da “comunidade internacional” em relação a tais<br />
violações? A esquerda está “condenada” a defender<br />
os direitos humanos ou capitula miseravelmente.<br />
Classe – O senhor também explica que a Declaração<br />
de 1948 tentou conciliar liberalismo<br />
e socialismo, mas manteve o direito de<br />
propriedade ilimitado. Os socialistas porém<br />
querem socializar os meios de produção.<br />
Como resolver a contradição?<br />
José Damião – Essa contradição é reveladora<br />
do duplo discurso existente sobre direitos<br />
humanos. Um discurso hipócrita, para uso<br />
político e diplomático, e outro discurso inescapavelmente<br />
libertador. O discurso hipócrita<br />
é o da diplomacia norte-americana e de seus<br />
repetidores em todos os países, que separa a<br />
humanidade em duas classes distintas de “hu-<br />
52<br />
manos”: de um lado, as classes dominantes do<br />
mundo; de outro lado, os subalternos de toda<br />
parte. Aos primeiros, vale tudo para defender<br />
seus interesses egoístas, predadores, destruidores<br />
da humanidade e do planeta, desde sanções<br />
econômicas até disparos de mísseis. Aos<br />
subalternos, nega-se direitos os mais elementares.<br />
Que importância tem para Wall Street<br />
a miséria apavorante da África subsaariana?<br />
Ante a perspectiva da globalização da barbárie,<br />
é Karl Marx – não Adam Smith ou Hayek<br />
– quem tem algo a nos dizer. E que o ouçamos<br />
logo, se é que ainda não renunciamos ao sonho<br />
belo, possível e, hoje, crucialmente necessário<br />
de edificarmos um mundo que permita a todos<br />
sobreviver – sobreviver com dignidade e com<br />
um pouco de amor, sem desperdício e sem terrores<br />
pré-históricos. Temos escolha, e é esta:<br />
entre Sísifo e Prometeu. Ambos foram condenados<br />
a tormentos eternos. Prometeu, porque<br />
roubou fogo aos deuses e o entregou à humanidade,<br />
libertando-a. Já o tormento de Sísifo<br />
é acabrunhante, porque sem sentido: carregar<br />
nos ombros uma grande rocha até o alto de<br />
uma montanha, perdê-la logo antes de chegar<br />
ao cume, vê-la rolar de volta ao sopé, retomar<br />
a pedra, subir novamente a montanha, a rocha<br />
a escapar-lhe novamente das mãos... Ambos<br />
os mitos podem ser tomados como metáforas<br />
da condição humana. O de Sísifo, metáfora da<br />
persistência, do eterno recomeçar – mas um recomeçar<br />
solitário e trágico, sem sentido e sem<br />
liberdade. Já Prometeu, mesmo acorrentado e<br />
com uma ave de rapina a devorar-lhe o fígado,<br />
é livre e libertador: porque escolheu transgredir<br />
a lei dos deuses em favor da humanidade.<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Comunicação e controle social<br />
Marcelo Salles<br />
Jornalista<br />
As corporações de mídia são as principais<br />
responsáveis pela criminalização da pobreza<br />
e dos movimentos sociais. Não há outra<br />
instituição da república com maior poder de<br />
produzir e reproduzir o discurso que associa<br />
pobre a bandido – e organizações de trabalhadores<br />
a bandos criminosos. Mais que a família,<br />
a escola, as Forças Armadas ou qualquer<br />
outra instituição, a mídia alcança um poder<br />
desmedido e destrutivo no Brasil basicamente<br />
por dois motivos: a brutal concentração dos veículos<br />
de comunicação de massa nas mãos da<br />
direita e o avanço das tecnologias da informação,<br />
o que permite que sua mensagem alcance<br />
praticamente a totalidade da população.<br />
Apenas para se ter uma idéia, nos EUA<br />
é proibido que um mesmo grupo empresarial<br />
controle, na mesma praça, um veículo de comunicação<br />
impresso e uma emissora de rádio;<br />
ou uma emissora de rádio e outra de televisão;<br />
e assim por diante. Além disso, o conselho federal<br />
de comunicação estadunidense proíbe que<br />
Mídia e Política<br />
o mesmo proprietário detenha mais de 30% da<br />
audiência dos veículos de radiodifusão num<br />
mesmo local. Aqui no Brasil, por outro lado,<br />
uma única empresa controla 40% da audiência<br />
e recebe 60% das verbas publicitárias.<br />
Para piorar o quadro, há um dado impressionante<br />
do Instituto Paulo Montenegro,<br />
que foi citado pelo pesquisador da UnB Venício<br />
Lima em seu livro “Mídia: teoria e política”<br />
(Fundação Perseu Abramo): apenas 26%<br />
da população brasileira entende o que lê. Isso<br />
significa que o rádio e a televisão ganham<br />
ainda mais poder, já que para transmitir suas<br />
mensagens não dependem que o público seja<br />
alfabetizado. Esta característica da mídia de<br />
massa poderia ser um dado positivo, já que no<br />
Brasil os veículos de radiodifusão são concessões<br />
públicas e, portanto, deveriam ser controlados<br />
pelo povo brasileiro – e em seu benefício.<br />
Erradicar o analfabetismo, por exemplo,<br />
levaria apenas 30 meses pelo método cubano<br />
“Yo sí Puedo”, que emprega o sistema audiovisual.<br />
Entretanto, os parlamentares que autorizam<br />
a renovação das concessões são, muitas<br />
vezes, proprietários de emissoras afiliadas<br />
às grandes redes – o que fere o artigo 54 da<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 53
Constituição Federal – uma situação que perpetua<br />
a relação fisiológica estabelecida com a<br />
ditadura civil-militar de 1964.<br />
O resultado é que hoje, em 2008, o Brasil,<br />
país de 190 milhões de habitantes, possui<br />
apenas 7 emissoras abertas de televisão, sendo<br />
que seis delas são ideologicamente afinadas<br />
e estão a serviço da exploração dos povos<br />
para garantir os lucros das corporações privadas<br />
mundo afora. A outra emissora apenas<br />
agora começa a buscar uma outra narrativa,<br />
mas ainda não ofereceu elementos concretos<br />
que apontem para uma alternativa ao pensamento<br />
único. Não parece casual que um dos<br />
países mais desiguais do mundo seja também<br />
um país com esse nível de concentração midiática.<br />
Uma pesquisa da ONU revela que os<br />
meios de comunicação estão em segundo lugar<br />
entre os poderes de fato da América Latina,<br />
muito à frente dos três poderes da república e<br />
um pouquinho atrás do poder econômico (ver<br />
tabela). O cruzamento dos dados permite afirmar:<br />
as corporações de mídia são diretamente<br />
responsáveis pelas mazelas brasileiras.<br />
Esse monopólio midiático atua em todos<br />
os setores da sociedade. Desde política e<br />
economia, passando pela cultura e pelo entretenimento,<br />
até chegar nas questões internacionais,<br />
ciência e turismo, entre outros. Suas<br />
intervenções nunca são neutras ou imparciais,<br />
como alguns sustentam. Como as corporações<br />
de mídia estão organizadas enquanto<br />
empresas, elas também buscam o lucro acima<br />
de tudo – para si e para as empresas associadas.<br />
Essa característica, por si só, inviabiliza<br />
a busca do equilíbrio e, mais além, torna-se<br />
54<br />
determinante na elaboração das mensagens<br />
(objetivas e subjetivas) que projeta.<br />
Esse olhar interessado também é percebido<br />
no tratamento das classes trabalhadoras<br />
e dos movimentos sociais. A solução encontrada<br />
pelo capitalismo tardio na América Latina<br />
para lidar com a pobreza é inspirada no<br />
“Tolerância Zero”, nascido em Nova York, de<br />
modo que as medidas punitivas são cada vez<br />
mais direcionadas aos que não se submetem<br />
aos postos de trabalho mal remunerado e sem<br />
qualificação. O sistema coloca a seguinte alternativa:<br />
salário mínimo de R$ 415 ou trabalho<br />
informal. Num, o cidadão vai ser oprimido<br />
pelo patrão e pela remuneração insuficiente;<br />
noutro, pelas forças de segurança do Estado.<br />
Os movimentos sociais são igualmente reprimidos<br />
pela imprensa hegemônica. Como esses<br />
grupos querem transformar a realidade, os<br />
porta-vozes dos que lucram com o atual estado<br />
de coisas vociferam – e distorcem e mentem. Foi<br />
o que aconteceu com uma chamada na primeira<br />
página do jornal O Globo de 30 de setembro<br />
de 2008, que teve a intenção de criminalizar o<br />
MST: “Maiores desmatadores do país são semterra,<br />
revela Minc”. A informação foi desmentida<br />
na página do movimento (www.mst.org), mas<br />
o jornal não a publicou nos dias seguintes.<br />
Está claro que o objetivo desse sistema é<br />
manter o controle social. Um controle voltado,<br />
notadamente, para pobres, negros e jovens. E<br />
os veículos de comunicação de massa jogam<br />
papel decisivo. Eles disseminam o medo e<br />
afirmam que os pobres são bandidos e os movimentos<br />
sociais, criminosos. O resultado é<br />
um clamor público pela repressão. Obediente,<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
a polícia reprime, promove chacinas, mas logo<br />
tudo volta a ser como era antes.<br />
Se os movimentos sociais quiserem promover<br />
mudanças substanciais, mudanças que<br />
causem impacto positivo na vida das pessoas,<br />
Poderes<br />
de fato<br />
Poderes<br />
constitucionais<br />
Forças de<br />
segurança<br />
Instituições<br />
e líderes<br />
políticos<br />
Fatores<br />
extraterritoriais<br />
Grupos econômicos/empresariais/setor financeiro 79,7%<br />
Meios de comunicação 65,2%<br />
Poder executivo 36,4%<br />
Poder legislativo 12,8%<br />
Poder Judiciário 8,5%<br />
Forças armadas 21,4%<br />
Polícia 2,7%<br />
Partidos políticos 29,9%<br />
Políticos/líderes políticos/operadores políticos 6,9%<br />
EUA / Embaixada dos EUA 22,9%<br />
Organismos multilaterais de crédito<br />
(FMI, BID, Banco Mundial, etc.)<br />
será preciso enfrentar a luta pelo controle dos<br />
meios de comunicação de massa. Só assim o<br />
povo deixará de ser manipulado e passará a<br />
defender os interesses da maioria em vez de<br />
se voltar contra eles.<br />
Quem exerce o poder na América Latina?<br />
16,6%<br />
Empresas multinacionais 4,8%<br />
Base: 231 entrevistas com líderes políticos, incluindo presidentes em exercício (51% do total), intelectuais<br />
(14%), empresários (11%), jornalistas (7%), lideranças da sociedade civil (6%), etc.<br />
FONTE: LA DEMOCRACIA EN AMERICA LATINA.PNUD, 2004<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 55
Mais Mais do mesmo mesmo na Câmara<br />
Municipal do Rio Rio de Janeiro<br />
Fernanda Chaves<br />
jornalista<br />
O povo do Rio de Janeiro acaba de eleger<br />
para mais quatro anos a nova formação da Câmara<br />
Municipal. Entre os representantes, tem<br />
de um tudo. Dos de sempre aos chamados fichassujas.<br />
Do que há de mais conservador às figuras<br />
polêmicas. E nem sempre uma classificação invalida<br />
a outra. Entre eles, alguns com ligações<br />
com o crime organizado ou já respondendo a processos<br />
criminais, em situações já mais que esplanadas<br />
pela imprensa.<br />
Hoje, existem acusações do Ministério<br />
Público e condenações de quadros políticos do<br />
vários partidos. O ex-vereador Jerominho Guimarães<br />
(PMDB), o deputado Natalino Guimarães<br />
(DEM) e Carminha Jerominho (PTdoB),<br />
todos da mesma família, estão presos por liderar,<br />
segundo a polícia, a quadrilha autodenominada<br />
Liga da Justiça, que atua na Zona Oeste<br />
do Rio de Janeiro. No entanto, estar num<br />
56<br />
presídio em regime disciplinar diferenciado<br />
não impediu que Carminha tivesse conquistados<br />
astronômicos 22 mil votos.<br />
Jorge Babu, deputado estadual (PT), é<br />
também acusado pelo Ministério Público por<br />
envolvimento com milícias. Seu apoio foi fundamental<br />
para eleger o irmão, Elton Babu,<br />
o segundo vereador mais votado do PT, com<br />
mais de 11 mil votos. É possível considerar,<br />
contudo, que um provável “efeito-CPI das milícias”<br />
tenha recaído sobre alguns candidatos<br />
- já um pouco desgastados, é verdade - como<br />
Nadinho de Rio das Pedras (DEM) e Luiz André<br />
Deco (PR), que não conseguiram manter<br />
suas vagas na Câmara Municipal.<br />
É possível também ter a sensação de que<br />
a CPI que investiga as milícias, na Assembléia<br />
Legislativa, está vencendo a batalha pedagógica<br />
de entendimento do que elas representam:<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
o tema está na pauta, nos papos, já não é mais<br />
considerado um mal menor. Mas, paradoxalmente,<br />
quadros como Cristiano Girão (PMN)<br />
(que chegou a admitir durante seu depoimento<br />
à CPI que na “sua” área ele não permitia “maconheiros<br />
e cheiradores”) e o já citado Elton<br />
Babu figuram na leva de 40% de renovação do<br />
parlamento municipal do Rio de Janeiro. Isso<br />
para ficar no crime de milícias - que até recentemente<br />
sequer tinha tipificação no código penal<br />
brasileiro - porque, se giramos o foco para<br />
outro tipo de crime representado na Câmara,<br />
temos Claudinho da Academia, do PSDC, suspeito<br />
de ser o candidato apoiado pelo tráfico<br />
varejista de drogas na favela da Rocinha, na<br />
zona sul do Rio, eleito com 11.513 votos.<br />
Ok, Carminha Jerominho teve sua candidatura<br />
impugnada e, caso o recurso dela seja<br />
rejeitado, seus votos serão considerados nulos.<br />
Tudo bem. Mas o fato é: ela recebeu 22 mil votos.<br />
De eleitores. Pessoas físicas, como eu e como<br />
qualquer cidadão, não é isto? Canso de ouvir falar<br />
sobre a responsabilidade do eleitor, coisa e<br />
tal. Outro dia era o motorista do táxi. Acabava de<br />
dar no rádio que os dados na cidade davam conta<br />
de cariocas votando em uma candidata presa,<br />
um suspeito de integrar milícias e outro de ser<br />
o candidato apoiado pelo tráfico de drogas na<br />
Rocinha. Ele, o motorista, revoltado com a configuração<br />
do novo legislativo carioca e naquela<br />
de que “o povo tem o que merece porque dá seu<br />
voto a esses bandidos para se representar, e não<br />
é porque não sabe, pois os jornais estão aí”. Discurso<br />
que você quase absorve. Quase.<br />
Porque, nem que seja intuitivamente,<br />
você se dá conta de que ser humano algum<br />
quer ser representado por um corrupto. E não<br />
é difícil concluir que a política é produto de um<br />
processo que não é individual, do meu ou do<br />
seu voto. E o que prevalece é a idéia de sustentação<br />
política clientelista - seja legal ou criminosa,<br />
seja oficial ou paralela, utilizando-se ou<br />
não do Estado - é que permite que essas pessoas<br />
sejam eleitas. O motorista de táxi já estava<br />
longe a essa altura da minha lenta reflexão, e<br />
já não era mais possível compartilhar com ele<br />
a opinião do cientista político Eduardo Alves:<br />
“Não há diferença POLÍTICA entre o<br />
clientelismo de Estado e outros tipos de clientelismos.<br />
As diferenças são legais e morais.<br />
Algumas morais assimilam o clientelismo de<br />
Estado e não o clientelismo ilegal. Outras morais<br />
assimilam o clientelismo consentido, mas<br />
rechaçam o clientelismo feito por meio da coerção.<br />
Mas do ponto de vista POLÍTICO não há<br />
diferença entre esses modelos de clientelismo. A<br />
política clientelista das milícias, do tráfico, dos<br />
chamados centros sociais, do setor privado, das<br />
organizações assistenciais mantidas por vários<br />
políticos ou do Estado (em qualquer dos seus<br />
níveis), possui como objetivo manter o controle<br />
sobre um determinado setor da sociedade;<br />
justamente o setor mais penalizado pelo empobrecimento,<br />
mais sacrificado pela prática da<br />
exploração, mais discriminado por sua condição<br />
social. É esse setor que está mais suscetível<br />
às políticas clientelistas. E como tais políticas<br />
fazem diferença concreta, real, objetiva para<br />
a reprodução da vida dessas pessoas, que são<br />
maioria na sociedade brasileira, as conseqüências<br />
dessa política nos processos eleitorais são<br />
das mais profundas perversidades”.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 57
Filmes<br />
Algumas reflexões a partir do filme<br />
“Quanto vale ou é por quilo?”<br />
Dora henrique da Costa e Lea Calvão da Silva<br />
Professoras da Faculdade de Educação da UFF<br />
“Há meio século, os escravos fugiam com<br />
freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam<br />
da escravidão. Sucedia ocasionalmente<br />
apanharem pancada, e nem todos gostavam de<br />
apanhar pancada”, conta Machado de Assis.<br />
58<br />
Cento e vinte anos passados do que se<br />
chamou o fim da escravidão negra no Brasil,<br />
uma imensa maioria de homens, mulheres e<br />
crianças livres - descendentes, muitos deles,<br />
daqueles que fugiam e apanhavam - sofre de<br />
outra tortura. Não a pancada, a chibata, a<br />
máscara de folha de flandres, os anéis de ferro<br />
ao pescoço, a argola aos pés. Não mais esses<br />
sinais ostensivos de dominação e dor. Igual<br />
em crueldade, o instrumento de agora é outro<br />
e, como aqueles, humilha e avilta. Mais que<br />
isso. Mata. No século da produção abundante<br />
de alimentos, da prosperidade deslocada de<br />
uns poucos, dos cânones do trabalho flexível,<br />
esses homens – também são muitos e também<br />
não gostam da tortura – não conseguem fugir<br />
da fome e do que a provoca, o não-trabalho.<br />
“Quanto vale ou é por quilo?” fala desses<br />
dois tempos. O filme situa-se ora como<br />
documental, ora ficcional. Ao basear-se em<br />
material pesquisado no Arquivo Nacional,<br />
introduz-nos na linguagem documental; ao<br />
apoiar-se no conto “Pai contra mãe”, de Machado<br />
de Assis, remete-nos a momento histórico-literário.<br />
Ao trazer a ação para os dias<br />
atuais, e embora partindo de análises científicas<br />
sobre a realidade, introduz-nos à ficção.<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Seu autor, Sérgio Bianchi, entrecruzando<br />
cenas do conto, registros em documentos oficiais<br />
de época e ações exercidas por ONG´s,<br />
denuncia a lógica da desumanização.<br />
A cena inicial do filme é a de uma negra<br />
alforriada, lutando para reaver sua propriedade,<br />
um escravo que lhe fora roubado. Na<br />
seqüência, cenas de iniciativas individuais<br />
ou empresarias voltadas à ajuda aos pobres.<br />
Divulgando-se como ação humanitária, a disputa<br />
pela propriedade e pelo ganho de dinheiro,<br />
tendo como fonte a miséria, marca todo o<br />
desenvolvimento do filme.<br />
A trama partida em dias da escravidão e<br />
dias de hoje vai revelando faces da realidade.<br />
Assim contada em dois tempos, é a história de<br />
uma mesma totalidade.<br />
O termo totalidade é aqui tomado como a<br />
idéia que ampara o mecanismo de apropriação<br />
da realidade. Portanto, a que é usada para a<br />
explicitação de aspectos importantes do tratamento<br />
metodológico dado a qualquer objeto de<br />
estudo. Milton Santos entende ser a totalidade<br />
uma noção das mais fecundas legadas pela filosofia<br />
clássica, constituindo-se em elemento fundamental<br />
para o conhecimento da realidade.<br />
Podemos dizer que as faces da realidade<br />
mostradas no filme expressam o mesmo sistema<br />
– totalidade em movimento – resultado do<br />
processo histórico que a elas deu origem. O filme<br />
deixa claro que, ontem como hoje, são as relações<br />
mercadológicas as que predominam nas relações<br />
interpessoais. São elas que evidenciam, como<br />
mostra o filme, o quanto a pobreza e a miséria se<br />
transformam em negócios lucrativos.<br />
Ao analisar o momento atual, o autor con-<br />
Zezé Mota na cena inicial do filme.<br />
centra a atenção em ações desenvolvidas por<br />
ONG´s, mostrando como elas, em sua maioria,<br />
alimentam-se exatamente da existência e profundidade<br />
da pobreza e da miséria.<br />
O termo ONG, utilizado pela ONU em<br />
1940 e adotado largamente a partir dos anos<br />
1960, designava organizações não governamentais<br />
– hoje também denominadas terceiro<br />
setor - definidas como de direito civil, sem<br />
fins lucrativos e sem vínculos com governos,<br />
sindicatos ou partidos políticos.<br />
Até a década de 1970, as ONG´s increviam-se<br />
nos movimentos sociais, atuando<br />
em vários ramos de atividades, trabalhando<br />
com projetos sociais e de promoção da cidadania,<br />
defendendo o meio ambiente e os<br />
direitos das minorias. Elas se constituíam,<br />
então, em instrumento eminentemente polí-<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 59
tico. No caso brasileiro, por exemplo, foram<br />
instrumento de luta pela democratização da<br />
sociedade nos anos da ditadura.<br />
A partir da década de 1990, já totalmente<br />
absorvidas pelo sistema, as ONG´s têm<br />
tido como marca fundamental a parceria com<br />
o Estado, com instituições religiosas e com<br />
fundações empresariais, exercendo papel paliativo<br />
e amortecedor da luta social.<br />
Vale observar que a existência das<br />
ONG´s está ligada, de forma diretamente<br />
proporcional, à sua capacidade de angariar<br />
fundos para seu funcionamento, sendo, pois,<br />
relativa a sua autonomia. Esta dependerá<br />
sempre da origem dos recursos.<br />
A ação das ONG´s, ao se dirigir a grupos<br />
específicos, acaba negando a universalidade<br />
das lutas sociais. Em outras palavras, na medida<br />
em que dirigem suas ações a grupos específicos,<br />
fragmentam as reivindicações de políticas<br />
sociais e universais de cidadania. Dessa forma,<br />
o dito terceiro setor torna-se braço auxiliar na<br />
implementação de políticas favoráveis à reestruração<br />
do capital. E mais: tal como o filme denuncia,<br />
as ONG´s se constituem, elas mesmas,<br />
em agentes da exploração direta da miséria.<br />
Podemos concluir que o papel efetivo das<br />
ONG´s tem sido – direta ou indiretamente – o<br />
de contribuir para a manutenção da hegemonia<br />
do projeto social sob a égide da burguesia.<br />
Ao partir para a ação diretamente ligada a<br />
grupos de interesse que não se definem pelas<br />
relações de trabalho, tais como mulheres,<br />
crianças, homossexuais, terceira idade, ecologia,<br />
etnia, as ONG´s, além de pulverizar e<br />
particularizar as atuações desses grupos de<br />
60<br />
referência, ao colocar as lutas fora do campo<br />
econômico, não representam um perigo para<br />
o funcionamento da sociedade capitalista. Na<br />
realidade, suas ações acabam por desviar a<br />
reflexão que deveria estar voltada para os<br />
mecanismos de exploração e expropriação a<br />
que está submetida a classe trabalhadora.<br />
Filmes como esse permitem a reflexão<br />
sobre a realidade. Possibilitam-nos pensar<br />
em formas de rejeição da exploração, primeiro<br />
passo para a luta por uma outra forma<br />
de organização societária. Por uma organização<br />
em que os homens, afinal saindo<br />
do ensaio de humanidade, possam exercer<br />
sua humanidade em plenitude.<br />
Ficha Técnica:<br />
Título Original: Quanto Vale ou é por Quilo?<br />
Gênero: Drama<br />
Tempo de Duração: 104 minutos<br />
Ano de Lançamento (Brasil): 2005<br />
Site Oficial: www.quantovaleoueporquilo.com.br<br />
Estúdio: Agravo Produções Cinematográficas S/C Ltda.<br />
Distribuição: Riofilme<br />
Direção: Sérgio Bianchi<br />
Roteiro: Sérgio Bianchi, Eduardo Benaim e Newton Canitto,<br />
baseado no conto “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis<br />
Produção: Patrick Leblanc e Luís Alberto Pereira<br />
Fotografia: Marcelo Copanni<br />
Desenho de Produção: Jussara Perussolo<br />
Direção de Arte: Renata Tessari<br />
Figurino: Carol Lee, David Parizotti e Marisa Guimarães<br />
Edição: Paulo Sacramento<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Mike Davis,<br />
Planeta favela<br />
Maurício Vieira Martins<br />
Professor do Depto. de Sociologia da UFF<br />
Nossa Resenha<br />
“Mas o que é slum, palavra inglesa<br />
que significa ‘favela?’”,<br />
pergunta-se Mike Davis num<br />
certo momento de seu livro “Planeta<br />
favela” (Editorial Boitempo,<br />
2006). Para responder esta pergunta,<br />
Davis recua até o início do<br />
século XIX, na Inglaterra pós-Revolução<br />
Industrial, onde localiza a<br />
primeira definição de que se tem<br />
notícia de “slum”, que associa a<br />
palavra a “estelionato” (racket), e<br />
ao “comércio criminoso” (p. 32).<br />
Não demorou muito para que, de<br />
designação de um ato, a palavra<br />
passasse a ser atribuída também<br />
aos locais urbanos degradados<br />
onde habitavam trabalhadores<br />
pobres. Marcada pelo preconceito,<br />
a definição associada a estelionato<br />
desliza, de maneira nada<br />
sutil, à moradia dos próprios<br />
habitantes desfavorecidos.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 61
Já no século XX, sofistica-se a categorização<br />
de favela, que passa a ser associada, de<br />
acordo com documentos recentes da ONU, a<br />
um “excesso de população, habitações pobres<br />
ou informais, acesso inadequado à água potável<br />
e condições sanitárias e insegurança da<br />
posse da moradia.” (p. 33). Porém, se a consulta<br />
às fontes históricas do século XIX revela o<br />
caráter mais do que secular da pobreza urbana<br />
concentrada, não resta dúvida de que ela<br />
sofreu uma explosão a partir da década de 80<br />
do século XX. É possível descobrir com maior<br />
precisão as causas, nas palavras de Davis, deste<br />
verdadeiro Big Bang da pobreza; na verdade,<br />
este é talvez o maior objetivo de seu livro.<br />
Já conhecido pelo leitor brasileiro por outros<br />
textos, como “Cidade de Quartzo” e “Holocaustos<br />
coloniais”, desta vez o autor amplia o escopo<br />
de sua análise e realiza um vasto percurso<br />
pelo planeta afora, numa investigação sobre<br />
porque, em época de altíssimo desenvolvimento<br />
tecnológico – que possibilitaria, em tese, a<br />
resolução de problemas bem mais difíceis – a<br />
moradia urbana degradada só faz crescer.<br />
Para aqueles que possuem uma visão localizada<br />
do processo de empobrecimento urbano<br />
(vinculando-o, por exemplo, apenas à conduta<br />
inadequada de políticos locais), a leitura<br />
do “Planeta favela” é especialmente instrutiva.<br />
Ela nos mostra de forma persuasiva como<br />
só uma abordagem macro-social pode captar a<br />
dimensão decididamente transnacional do fenômeno.<br />
Na medida em que o texto percorre<br />
as regiões empobrecidas da América Latina,<br />
Ásia, África e dos ex-países socialistas, somos<br />
apresentados aos diferentes nomes de uma<br />
62<br />
mesma realidade: slums, barrios, gecekondus,<br />
desakotas, até a brasileiríssima favela. Se<br />
os nomes locais diferem, a realidade de precarização<br />
da moradia urbana é recorrente, o que<br />
motiva Davis a usar toda a primeira parte de<br />
sua pesquisa para apresentar as características<br />
mais centrais desta precarização. Ele alerta<br />
para as dificuldades presentes no empreendimento,<br />
devido ao fato de que as estatísticas<br />
produzidas sobre o tema são lacunares e, em<br />
muitos casos, pouco confiáveis, pois sofrem a<br />
interferência de governos que visam maquiar<br />
as reais condições de vida de suas populações.<br />
Para tentar corrigir este limite, o texto recorre<br />
a um amplo conjunto de análises, desde aquelas<br />
produzidas por autores independentes, até<br />
um importante documento elaborado pelo Programa<br />
de Assentamentos Urbanos das Nações<br />
Unidas (UN-Habitat, instituição pouco suspeita<br />
de esquerdismo...), que utiliza um banco de<br />
dados comparativo de 237 cidades do mundo.<br />
Mesmo recorrendo a uma categorização que,<br />
no entendimento de Davis, é restritiva, “os<br />
pesquisadores da ONU estimam que havia<br />
pelo menos 921 milhões de favelados em 2001<br />
e mais de 1 bilhão em 2005” (p. 34). E a tendência<br />
é de crescimento.<br />
Ao longo deste trajeto, algumas conclusões<br />
se impõem com força. A primeira delas é<br />
que o contraste das condições de vida dos países<br />
capitalistas centrais com o que ocorre no<br />
chamado Terceiro Mundo (conceito questionável<br />
para alguns autores das Ciências Sociais,<br />
mas que comparece no texto de Davis) permanece<br />
sendo gritante: apenas 6% da população<br />
urbana dos primeiros podem ser considerados<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
favelados, percentual que pula para mais de<br />
70% nos países menos desenvolvidos. Mas<br />
nem por isso a realidade destes últimos – objeto<br />
principal de Davis - pode ser considerada<br />
homogênea. Longe disso. Também neles, ilhas<br />
de prosperidade convivem lado a lado com a<br />
miséria mais degradante: a proliferação de<br />
favelas encontra sua antítese complementar<br />
nos condomínios de luxo, fechados, que se isolam<br />
do contato com o mundo exterior. Nesta<br />
configuração que se repete, diferencialmente,<br />
pelo mundo afora, o paradigma vem a ser uma<br />
estética e um padrão de consumo norte-americanos.<br />
Para os que supõem que os brasileiros<br />
abastados são únicos em sua tendência a copiar<br />
compulsivamente o modo de vida norteamericano,<br />
convém saber que “Beverly Hills<br />
não existe apenas no código postal 90210 dos<br />
Estados Unidos; também é, ao lado de Utopia<br />
e Dreamland, um subúrbio do Cairo, uma<br />
rica cidade particular ‘cujos habitantes podem<br />
manter distância da vista e da gravidade da<br />
pobreza e da violência...’ ” (p. 120)<br />
Além disso, o texto chama a atenção<br />
também para a feminização da pobreza, tendo<br />
em vista a drástica perda de oportunidades<br />
de empregos formais para os homens.<br />
Resultado disso é que as mulheres de boa<br />
parte do Terceiro Mundo passam a arcar<br />
com o sustento de seus filhos, mesmo num<br />
contexto em que a pressão para que a totalidade<br />
da família ingresse no mercado de<br />
trabalho é cada vez maior. Aliás, a análise<br />
das condições de vida da infância vem a ser<br />
um dos momentos mais tocantes do livro,<br />
como quando é abordado o episódio das Bru-<br />
xinhas de Kinshasa (no Congo). Em clima de<br />
exasperação de formas de religiosidade que<br />
findam por ganhar contornos de um desespero<br />
coletivo (p.195-196), crianças são denunciadas<br />
como bruxas pelos seus vizinhos,<br />
que afirmam que são elas as responsáveis<br />
pelos males que afligem as comunidades.<br />
Incapazes de se defender destas acusações,<br />
estigmatizadas pelos próprios familiares e,<br />
finalmente, introjetando os supostos crimes<br />
que lhes são imputados (“Meu pai perdeu o<br />
emprego de mecânico por minha causa”, diz<br />
uma delas), as crianças são expulsas de suas<br />
famílias, abandonadas nas ruas, podendo<br />
chegar a ser assassinadas como causadoras<br />
dos infortúnios locais.<br />
Na outra ponta deste debate, Mike<br />
Davis questiona também o que ele nomeia<br />
como histórias de sucesso, aquelas que apresentam<br />
de modo unilateral experiências<br />
bem-sucedidas, tomando-as como exemplos<br />
passíveis de serem universalmente seguidos,<br />
não importa em que circunstâncias. É<br />
o que acontece com os que fazem o elogio do<br />
trabalho informal como oportunidade ímpar<br />
para que auto-empreendedores bem sucedidos<br />
possam se emancipar da tutela patronal<br />
(desconhecendo a duríssima realidade enfrentada<br />
pela maioria dos que perdem seus<br />
empregos). Num âmbito mais abrangente,<br />
Davis problematiza uma certa versão divulgada<br />
acerca dos processos de industrialização<br />
intensiva sofridos por países como<br />
a China e a Índia. A partir do trabalho de<br />
pesquisadores que fazem uma investigação<br />
in loco, fica claro como indicadores macro-<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 63
econômicos favoráveis, que de fato impressionam<br />
pelo aumento de produtividade de<br />
uma economia, podem ocultar uma realidade<br />
humana indigente, que simplesmente<br />
não aparece nos quadros estatísticos. Daí a<br />
importância de se chegar até a vida dos trabalhadores<br />
reais, os responsáveis anônimos<br />
pela opulência que é divulgada pelos meios<br />
de comunicação. Quando se faz isso, percebe-se<br />
por exemplo que a “mobilidade ascendente<br />
na economia informal é em grande<br />
parte um ‘mito inspirado pelo mero excesso<br />
de otimismo’ ”. (p.174).<br />
Esta visão muito crítica de Davis acabou<br />
gerando reações contrárias no âmbito da própria<br />
esquerda. Neste sentido, é proveitosa a<br />
leitura do Posfácio à edição brasileira, assinado<br />
pela urbanista e professora da USP Ermínia<br />
Maricato. O texto é muito elogioso ao trabalho<br />
de Davis, mas se permite apresentar as<br />
restrições formuladas, por exemplo, por Tom<br />
Angotti, que entende que a visão veiculada<br />
pelo “Planeta favela” seria por demais negativa,<br />
não levando em conta algumas diferenças<br />
nacionais importantes, que confeririam um<br />
tom mais diferenciado à realidade exposta. Tocamos<br />
aqui numa questão complexa, que não<br />
seria possível desenvolver no âmbito de uma<br />
resenha; de todo modo, parece-nos que cabe<br />
distinguir entre dois níveis distintos de análise.<br />
No que diz respeito ao nível macro-social,<br />
entendemos que a análise de Davis atinge<br />
com precisão seu alvo, apontando com clareza<br />
para as linhas de fundo do processo de favelização<br />
urbana. Já no nível das diferenças<br />
entre as realidades nacionais e locais, talvez<br />
64<br />
coubessem de fato algumas ressalvas que, de<br />
resto, vêm sendo feitas por grupos de ativistas<br />
de direitos humanos e sociais, que sabem<br />
que o registro dos ganhos da luta democrática<br />
serve como alimento essencial ao seu próprio<br />
prosseguimento. Para o leitor que tenha um<br />
interesse maior nesta questão, convém ler a<br />
entrevista de Mike Davis ao jornalista brasileiro<br />
Sérgio Pompeu (disponível em www.boitempoeditorail.com.br).<br />
Questionado se seria<br />
contrário, por exemplo, a uma política de legalização<br />
de posse nas favelas, Davis responde<br />
que “A legalização é uma demanda justa<br />
e antiga na América Latina. O que eu critico<br />
é a expectativa quase mítica de que a legalização<br />
criaria alguma forma de capitalismo<br />
dinâmico nas classes baixas”.<br />
Após um longo percurso por vários continentes,<br />
merece destaque especial o capítulo 7<br />
do “Planeta favela”, intitulado “Desajustando<br />
o Terceiro Mundo”. É nele que Davis faz, de forma<br />
mais explícita, o que poderíamos nomear<br />
como uma pesquisa de causas para o fenômeno<br />
que estuda. E é neste momento que avultam<br />
em importância as conseqüências dos PAEs<br />
(Planos de Ajuste Estrutural), prescritos pelos<br />
organismos financeiros internacionais, como o<br />
FMI e o Banco Mundial. Drásticas condicionalidades<br />
são impostas ao empréstimo de quantias<br />
monetárias (para países já sufocados pelo<br />
pagamento dos juros referentes à dívida externa),<br />
que interpretam qualquer investimento<br />
social como sendo, na linguagem de seus mentores<br />
internacionais, um “populismo econômico”.<br />
Pois foram estes PAEs os responsáveis pelo<br />
incremento mais recente da pobreza, gerando<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
desindustrialização, quedas acentuadas de<br />
postos de trabalho no mercado formal e também<br />
dos investimentos em serviços sociais básicos.<br />
É possível mesmo <strong>fazer</strong> uma cronologia<br />
da expansão das moradias precarizadas; nas<br />
palavras de Davis: “Os anos 1980, em que o<br />
FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem<br />
da dívida para reestruturar a economia<br />
da maior parte do Terceiro Mundo, foi a época<br />
em que as favelas transformaram-se no<br />
futuro implacável não somente dos migrantes<br />
rurais pobres como também de milhões<br />
de habitantes urbanos tradicionais” (p. 156).<br />
O resultado destas políticas de ajuste foi o<br />
crescimento pelo mundo de milhões de seres<br />
humanos que não têm acesso não só a uma<br />
moradia, mas sobretudo a uma vida digna.<br />
Se antes cabia falar num exército industrial<br />
de reserva, disponível para a economia em<br />
seus ciclos de expansão, talvez agora a situação<br />
seja mais dramática: estamos diante<br />
de uma massa de sujeitos sem perspectiva<br />
nenhuma de trabalho, humanidade excedente,<br />
cujas manifestações de insatisfação sem<br />
dúvida existem, mas ainda não encontraram<br />
uma orientação política mais abrangente (e<br />
parece-nos que este é também um dos sentidos<br />
presentes no trabalho de Davis).<br />
No final de seu livro, ele nos apresenta<br />
documentos que revelam as preocupações de<br />
estrategistas militares ligados ao Pentágono<br />
norte-americano com as multidões empobrecidas<br />
de algumas das principais favelas do<br />
Terceiro Mundo. Ao depararmo-nos com o<br />
tom maniqueísta destas análises, que preferem<br />
eleger bodes expiatórios circunstanciais<br />
para um processo muito mais complexo, fica<br />
patente que a “retórica demonizadora das<br />
várias ‘guerras’ internacionais ao terrorismo,<br />
às drogas e ao crime são igualmente<br />
um apartheid semântico: constroem paredes<br />
epistemológicas ao redor das favelas,<br />
gecekondus e chawls, que impossibilitam<br />
qualquer debate honesto sobre a violência<br />
cotidiana da exclusão econômica. E, como na<br />
época vitoriana, a criminalização categórica<br />
dos pobres urbanos é uma profecia que leva<br />
ao seu próprio cumprimento...” (p. 202).<br />
É neste momento que o trabalho de<br />
Mike Davis pode ser articulado ao do importante<br />
sociólogo francês Löic Wacquant (autor<br />
de “Prisões da miséria” e de “Punir os pobres:<br />
a nova gestão da miséria nos Estados Unidos”).<br />
Com efeito, a pesquisa de Wacquant<br />
nos mostra que o crescente inchaço do sistema<br />
prisional nos últimos anos é observável<br />
em praticamente todos os países, mesmo no<br />
chamado Primeiro Mundo (como ocorre com<br />
os Estados Unidos). Ora, tal inchaço das prisões<br />
é também uma resposta conservadora<br />
para lidar com a pobreza que invade as ruas<br />
das grandes metrópoles: transitar das favelas<br />
para os presídios – mesmo que apenas em<br />
função de pequenos delitos - é o triste destino<br />
de muitos cidadãos pobres, donde a formulação<br />
bastante cáustica de Wacquant: trata-se<br />
de um “sinistro programa habitacional para<br />
os novos pobres”.... Como se vê, encaixamse<br />
aqui mais algumas peças do contraditório<br />
quebra-cabeças contemporâneo: o “Planeta<br />
favela” se ramifica, infiltrando-se também<br />
pelas prisões do mundo afora.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 65
Histórias de Vida<br />
Professor Ronaldo Coutinho:<br />
uma história de lutas<br />
dentro e fora<br />
da universidade<br />
Carolina Barreto da Silva Gaspar, texto e foto<br />
A história de vida do professor Ronaldo Coutinho<br />
se mistura com a história do ANDES-SN e da<br />
ADUFF, uma vez que a fundação de ambas as entidades<br />
contou com sua participação ativa. Militante comunista desde<br />
muito jovem, aos 16 anos Ronaldo ingressaria no PCB.<br />
Sua entrada no Partido Comunista Brasileiro assinala uma<br />
opção de vida que ele mantém até hoje e que deixou marcas<br />
significativas em sua trajetória. Antes de se tornar professor<br />
universitário, já havia atuado em sindicatos de outras categorias<br />
e também no movimento estudantil. Sua militância<br />
política lhe traria alguns problemas no período da Ditadura<br />
Militar, inclusive para tomar posse da vaga de professor da<br />
UFF para a qual havia sido aprovado em concurso. Driblados<br />
esses contratempos iniciais, teve uma passagem marcante<br />
pela universidade. Foi vice-diretor do IChF e um dos responsáveis<br />
pela montagem do curso de graduação em Ciências<br />
Sociais e de pós-graduação em história. É com grande<br />
prazer que publicamos aqui um pouquinho dessa trajetória<br />
pontuada por tantas lutas.<br />
66<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Em nossa conversa com o professor<br />
Ronaldo Coutinho, descobrimos<br />
que, antes de se tornar professor<br />
universitário, ele foi bancário,<br />
comerciário e aeroviário. Como não<br />
poderia deixar de ser, militou nos<br />
sindicatos de todas essas categorias.<br />
Também teve uma passagem<br />
marcante pelo movimento estudantil,<br />
tendo sido o primeiro presidente<br />
do DCE-UERJ escolhido em uma<br />
eleição direta (1960-1961), vice-presidente<br />
da Associação Nacional dos<br />
Estudantes de Ciências Sociais, 2º<br />
secretário da UME (União Metropolitana<br />
dos Estudantes) e diretor<br />
da UNE. Uma militância tão intensa<br />
desde a juventude não passaria<br />
despercebida pela Ditadura Militar.<br />
Na época do golpe de 64, Ronaldo<br />
já era professor da UERJ. Acabou<br />
sendo afastado de suas atividades<br />
docentes naquela universidade por<br />
justa causa, já que, numa das vezes<br />
em que foi preso pela Ditadura, ficou<br />
um mês sem aparecer na UERJ.<br />
Ainda assim, seguiu lecionando na<br />
UFF, onde era professor horista. Em<br />
1965, fez concurso para se tornar<br />
professor do quadro efetivo da UFF<br />
e foi aprovado em primeiro lugar.<br />
Tomar posse da vaga, no entanto,<br />
exigiria dele mais do que a compro-<br />
vação de seus méritos acadêmicos.<br />
Na época da Ditadura, era<br />
exigido dos professores da universidade<br />
um “Nada Consta” emitido<br />
pelo DOPS que atestasse a sua não<br />
participação em atividades ligadas<br />
à militância política de esquerda.<br />
Ronaldo, que já havia sido preso por<br />
suas atividades políticas, evidentemente<br />
não receberia o documento.<br />
Não por vias lícitas, pelo menos.<br />
Para tomar posse de sua vaga de<br />
professor no concurso da UFF, ele se<br />
vira obrigado a subornar um funcionário<br />
do DOPS. Por uma bagatela<br />
que hoje equivaleria a cerca de 20<br />
mil reais (pagos à vista e em dinheiro),<br />
o “Nada Consta” foi liberado. O<br />
dinheiro foi conseguido junto à sua<br />
mãe, que para isso empenhou algumas<br />
jóias e pegou um empréstimo.<br />
Corredor vermelho e<br />
movimento docente<br />
Empossado, participou da fundação<br />
do curso de graduação em Ciências<br />
Sociais e, em pouco tempo, seria<br />
vice-diretor do ICHF exatamente<br />
na gestão da Professora Aidyl à frente<br />
do Instituto. Segundo Ronaldo, os<br />
dois tinham um bom entrosamento<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 67
na direção do ICHF, que na época funcionava<br />
no prédio que hoje abriga o IACS. Ronaldo<br />
também participou ativamente da montagem<br />
dos cursos de graduação e pós em História,<br />
tendo viajado a São Paulo várias vezes<br />
para recrutar professores e a Brasília para<br />
conversar com o MEC. Também foi chefe do<br />
departamento de Ciências Sociais. Nessa<br />
época, segundo ele, seu departamento era<br />
conhecido como “corredor vermelho”. Suas<br />
atividades de militância nunca o impediram<br />
de exercer atividades administrativas na<br />
universidade e, sobretudo, de estudar.<br />
Foi assim que também participou dovimento<br />
docente. E de maneira marcante,<br />
diga-se de passagem. Afinal, trata-se<br />
de alguém que participou da fundação do<br />
ANDES-SN, da ADUFF e da ASDUERJ. De<br />
acordo com Coutinho, mesmo ocupando poucas<br />
vezes um cargo formal, sua participação<br />
no movimento sempre foi intensa: “Sempre<br />
fui de inventar formas de luta, como por<br />
exemplo o Universidade na Praça, usado<br />
na ADUFF, pela primeira vez, na greve de<br />
1985. Sugeri que cada professor fosse para<br />
a praça Araribóia desenvolver as atividades<br />
criativas de suas aulas. De lá para cá,<br />
muitas greves de docentes têm usado esse<br />
recurso”, conta ele. Na ASDUERJ, ajudou<br />
a criar a “Advir”, revista da associação docente<br />
daquela universidade, sendo até hoje<br />
membro de seu conselho editorial.<br />
Ele se arriscou a <strong>fazer</strong> algumas análises<br />
acerca do atual momento vivido pelo<br />
movimento docente, marcado por uma tentativa<br />
direta de ingerência do governo no mo-<br />
68<br />
vimento sindical. “Em termos da nossa luta<br />
específica de movimento docente, eu acho<br />
que nós temos que ter algumas ações. Uma<br />
delas é a gente <strong>fazer</strong> uma avaliação crítica<br />
da atuação do próprio sindicato. Não desse<br />
sindicato, mas do movimento como um todo.<br />
Nessa hora, nós temos que mobilizar, temos<br />
que engrossar o movimento. Como? Nós temos<br />
que ampliar. Está na hora de construir<br />
uma frente organizada de resistência e isso<br />
só se faz com frente ampla”.<br />
“Lênin estragou a<br />
farra acadêmica”<br />
Ronaldo Coutinho se aposentou da<br />
UFF em 1992. Sua aposentadoria foi precipitada<br />
pelo Governo Collor, marcado por<br />
uma série de medidas que retiravam direitos<br />
dos trabalhadores, principalmente os do<br />
serviço público. Apesar da aposentadoria,<br />
mantém ativas sua militância e atividade<br />
acadêmica. Entre outras coisas, continua no<br />
conselho editorial da “Revista Advir”. Em<br />
termos de produção acadêmica, tem se dedicado<br />
a dois projetos, um deles relacionado<br />
ao meio ambiente e direito urbanístico e o<br />
outro, um livro sobre a contribuição de Lênin<br />
à academia. Segundo Coutinho, a obra é<br />
sua maneira de demonstrar indignação em<br />
relação ao exílio de Lênin da academia: “Lênin<br />
cometeu um delito imperdoável: ele discutiu<br />
toda uma teoria ao mesmo tempo em<br />
que praticava isso fazendo uma revolução.<br />
Estragou toda a farra acadêmica”, afirma.<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Saindo do barraco bem cedo<br />
à procura de emprego, levou<br />
a força do meu amor, minha fé.<br />
No último anúncio marcado,<br />
mente e corpo abalados,<br />
pela má aparência rejeitado, deixou<br />
que vissem seus olhos pela fome<br />
bem fundo escavado, que vissem<br />
o carapinha emaranhando, deixou<br />
o suor fazendo da face negra<br />
um ébano vitrificado<br />
mas não deixou<br />
que lhe vissem o medo<br />
comum a quem vive a síndrome do desemprego<br />
não deixou que lhe vissem<br />
o velho medo porque é da certeza<br />
que existe o medo em nós é que<br />
o burguês racista faz do humano dócil escravo<br />
um inimigo finalmente vencido<br />
depois que de sua humanidade<br />
ele mesmo já havia se esquecido.<br />
Síndrome do Desemprego<br />
Poesia<br />
Vandery da Cunha, o Deley de Acari, nasceu no estado do Rio e tem 54 anos.<br />
Milita no movimento negro e favelado há mais de trinta anos e é fundador e participante<br />
do “Grupo Negrícia - Poesia de Crioulo”. Bastante conhecido em diversas<br />
rodas de leituras, Deley diz que escreve muito ao sabor da tensão e do stress da<br />
favela. “Uma amiga feminista costuma dizer que sou um poeta afro-prófeminista,<br />
porque a maioria de meus poemas e outros escritos têm a mulher como tema,<br />
abordada de formas positivas”, afirma. O poeta também participa do “Movimento<br />
Funk é Cultura” na Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência. Publicou<br />
seus escritos nas décadas de 80 e 90 em alguns fanzines e, mais recentemente, no<br />
livro “Um século de favela”, de Marcos Alvito e Alba Zaluar.<br />
Saindo do barraco bem cedo<br />
à procura de emprego levou<br />
a força do meu amor, minha fé<br />
deixou um beijo gostoso de Colgate<br />
e café saboroso feito mel<br />
voltou à noite trazendo<br />
um beijo mau gosto de caldo de cana<br />
amargoso feito fél.<br />
Ah, a insegurança do amanhã<br />
de todos, do tudo, ah, seu velho medo<br />
desaguado em lágrimas no regaço<br />
do meu colo, chorado em segredo,<br />
longe do olhar racista do senhor burguês<br />
dono e senhor dos empregos<br />
ah, esse imenso desejo que<br />
seu velho medo se transforme<br />
com o axé do meu amor, minha fé<br />
na minha, na sua na nossa nova e indestrutível<br />
coragem libertária do amanhã.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 69
70<br />
Diálogos com a Cidade<br />
Aldeia Imbuhy: clima de<br />
tensão com o Exército há<br />
mais de uma década<br />
Carolina Barreto da Silva Gaspar<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Fotos: Luiz Fernando Nabuco<br />
Nesta segunda edição de nossa seção “Diálogos<br />
com a cidade”, fizemos uma matéria com<br />
os moradores da Aldeia Imbuhy, comunidade<br />
tradicional situada junto à praias paradisíacas,<br />
no interior de fortaleza militar que leva<br />
o mesmo nome. Ao contrário do que se poderia<br />
pensar num primeiro momento, morar na<br />
Aldeia Imbuhy não é assim tão maravilhoso<br />
quanto parece. Isso porque há mais de 10 anos<br />
,os moradores do local vivem em verdadeiro<br />
clima de guerra com o Exército.<br />
Tudo começou em 1995, quando o Coronel<br />
Paulo Roberto Bueno Costa proibiu a passagem<br />
de moradores, visitantes e convidados pela<br />
Guarda do Forte Barão do Rio Branco. Desse<br />
modo, a única passagem liberada era a do portão<br />
situado na Guarda da Lagoa. Essa determinação<br />
se tornou sinônimo de um grande transtorno<br />
para os moradores do local, que decidiram<br />
então entrar com uma ação na Justiça para reabrir<br />
a outra passagem. Simultaneamente, entraram<br />
com uma ação de interdito proibitório.<br />
Isso abriu espaço para que o Exército entrasse<br />
com um pedido de reintegração de posse e obtivesse<br />
vitórias judiciais em 1ª e 2ª instâncias.<br />
Por decisão da Justiça, os moradores da Aldeia<br />
Imbuhy, que lá vivem há décadas, devem desocupar<br />
a área, uma vez que supostamente “constituem<br />
ameaça à segurança nacional”.<br />
Dessa contenda judicial de 1995 para cá,<br />
a relação dos moradores da Aldeia com o Exército<br />
se deteriorou progressivamente. Em nossa<br />
visita ao local, conversamos com diversos aldeões<br />
e não faltaram denúncias de arbitrariedades<br />
que teriam sido cometidas pelos militares<br />
nesse período. Também existem denúncias de<br />
omissão de socorro. Num dos casos, uma ambulância<br />
que chegou ao Forte para socorrer moradora<br />
em trabalho de parto teria sido simplesmente<br />
barrada na entrada do local. Por conta<br />
disso, um morador teve que levá-la em seu carro<br />
até o hospital. Em outro episódio semelhante,<br />
a moradora Vanda Leão Barbosa passou mal<br />
na calçada do Forte Rio Branco, mas não pôde<br />
ser socorrida porque um tenente do Exército<br />
impediu que lhe fosse prestado qualquer tipo<br />
de auxílio. Esse caso gerou registro de ocorrência<br />
na 79ª DP por omissão de socorro, ameaça<br />
e constrangimento ilegal. Resultado: não deu<br />
em nada. Segundo o morador Fábio Ferreira da<br />
Silva, eles agora sequer têm registrado queixa<br />
contra esse tipo de abuso, já que nunca dá em<br />
nada. Fábio nos contou que, em 95, foi agredido<br />
por soldados quando voltava para casa. O caso<br />
gerou um IPM, mas, nas palavras dele, “ficou<br />
tudo por isso mesmo. Toda a situação que ocorre<br />
aqui com a gente eles transformam em problema.<br />
Hoje, sou surdo e mudo por aqui.”<br />
Se engana, no entanto, quem pensa que<br />
acabou a lista de arbitrariedades. Só para se<br />
ter uma idéia, os moradores da Aldeia Imbuhy<br />
só podem entrar no Forte se estiverem munidos<br />
da chamada “permissão de morador”, único<br />
documento que os habilita a ter acesso ao local<br />
onde moram há anos. Como se não bastasse,<br />
eles só podem receber em suas casas cinco<br />
visitantes de cada vez, devendo ainda assim<br />
comunicar ao Exército os nomes dos mesmos<br />
com pelo menos 48 horas de antecedência. Nas<br />
palavras de Aílton Nunes Navega, presidente<br />
da Associação de Moradores do Forte Imbuhy,<br />
“nem o Elias Maluco tem limite de visitas, mas<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 71
nós temos: são só cinco pessoas de cada vez.”<br />
Em 95, os aldeões foram proibidos de utilizar<br />
os telefones públicos existentes no interior do<br />
Forte. Algum tempo depois, os telefones foram<br />
simplesmente retirados. Hoje, é proibido instalar<br />
novas linhas telefônicas no local.<br />
Em nossa visita à Aldeia Imbuhy, pudemos<br />
perceber que grande parte das casas lá<br />
existentes encontra-se em péssimo estado de<br />
conservação. Isto ocorre simplesmente porque<br />
o Exército não permite a entrada de material<br />
de construção no local. O objetivo por<br />
trás desta medida, segundo Aílton Navega,<br />
é “deixar que tudo se deteriore, pois isso, na<br />
visão deles, facilita a nossa expulsão daqui”.<br />
Em 2004, a Defesa Civil chegou a condenar<br />
e interditar uma das casas da Aldeia, por estar<br />
“colocando vidas em risco”. Os moradores<br />
Legenda nononono nonononono onononon ononononono onono onono onono onon<br />
72<br />
conseguiram junto à prefeitura uma doação<br />
de material de construção para <strong>fazer</strong> obras na<br />
casa, mas o Exército impediu a entrada desse<br />
material nas dependências do Forte. Tivemos<br />
acesso a uma notificação da Defesa Civil<br />
que diz: “... embora esta Coordenadoria tenha<br />
comunicado ao comando do Forte do Imbuhy<br />
da situação de risco que encontra-se o seu<br />
imóvel apontado no relatório número 791/04<br />
originando uma interdição, não nos foi permitido<br />
na data de 27/07/2004, a entrega de<br />
1000 (mil) tijolos e 10 (dez) sacos de cimento<br />
através do ‘Projeto Morar Certo’. Esclareço<br />
ainda que os materiais seriam para realizar a<br />
segurança do seu imóvel.”<br />
A verdadeira guerra de nervos travada<br />
entre aldeões e o Exército, como se vê, já produziu<br />
um sem-número de arbitrariedades. Em<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
conseqüência disso, das 800 famílias<br />
que originalmente habitavam o local,<br />
restam hoje apenas 32. Atualmente, a<br />
pesca, que durante décadas foi a atividade<br />
responsável pelo sustento de boa<br />
parte dos moradores, quase não é mais<br />
praticada. Isto porque os militares<br />
passaram a confiscar 10% do pescado,<br />
além de proibirem a entrada de caminhões<br />
pesqueiros no Forte. Hoje, após<br />
mais de uma década de conflitos com o<br />
Exército, os aldeões que restaram no<br />
Imbuhy estão ameaçados de despejo do<br />
local onde nasceram e cresceram por<br />
uma ação de reintegração de posse<br />
“Ameaça à<br />
segurança nacional”<br />
A justificativa do Exército para desalojar<br />
os moradores da Aldeia Imbuhy é de<br />
que a presença deles no interior da fortaleza<br />
militar constitui “ameaça à segurança nacional”.<br />
No entanto, documentos revelam que os militares<br />
realizam uma série de eventos no Forte: réveillon,<br />
happy hour, churrascos, rodeios e festas em geral.<br />
Tudo sempre com muita bebida alcoólica, é claro.<br />
É curioso observar como, na concepção do Exército<br />
brasileiro, a presença de milhares de pessoas estranhas<br />
no interior do Forte em eventos como esses<br />
não parece constituir ameaça à segurança nacional.<br />
Enquanto isso, 32 famílias que lá vivem há décadas<br />
são vistas como um grande perigo que precisa ser<br />
eliminado “pelo bem da pátria”.<br />
Nas palavras de Aílton Navega, “isso aqui<br />
“isso aqui não é área de segurança<br />
nacional coisa nenhuma. É área de<br />
lazer dos militares, que ganham<br />
muito dinheiro alugando o<br />
espaço para eventos e vendendo<br />
passes àqueles que desejam<br />
freqüentar a Praia do Imbuhy”<br />
Aílton Navega<br />
não é área de segurança nacional coisa nenhuma.<br />
É área de lazer dos militares, que ganham muito<br />
dinheiro alugando o espaço para eventos e vendendo<br />
passes àqueles que desejam freqüentar a Praia<br />
do Imbuhy. Em fins de semana de sol, isso aqui fica<br />
coalhado de gente!” Decidimos checar a informação<br />
de que há comércio de passes para se freqüentar<br />
a praia do Forte. Em telefonema ao 21º Grupo de<br />
Artilharia de Campanha, que administra o local,<br />
fomos informados de que, para freqüentar a Praia<br />
do Imbuhy, é necessário ter um passe que custa<br />
a bagatela de R$ 400,00. Tudo pago à vista e em<br />
dinheiro. Nesse contexto, fica mais fácil entender<br />
porque tanta fixação em expulsar os aldeões, que<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 73
certamente devem estar atrapalhando os negócios.<br />
A sentença judicial que ordena a reintegração<br />
de posse nos chamou a atenção por ser extremamente<br />
dura com os aldeões. Há uma parte do texto<br />
da sentença que diz: “declaro ser legítimo o direito<br />
da UNIÃO, pela Administração Militar, exercer poder<br />
normativo e de polícia no âmbito de suas atribuições<br />
(...) Declaro ainda ser legítimo o exercício<br />
do atributo da auto-executoriedade deste mesmo<br />
poder de polícia, autorizando a UNIÃO, pelos seus<br />
prepostos, por exemplo, a apreender mercadorias<br />
e a demolir as benfeitorias edificadas a partir das<br />
notificações realizadas em julho de 1995, bem como<br />
impedir que outras sejam feitas, salvo as absolutamente<br />
necessárias à segurança dos moradores.”<br />
Trocando em miúdos, a sentença emitida pelo juiz<br />
federal Rogério Tobias de Carvalho atribui ao Exército<br />
poder de polícia numa contenda em que esse<br />
braço das Forças Armadas está diretamente envolvido.<br />
Com o clima de guerra vigente na Aldeia<br />
Imbuhy há mais de dez anos, dá para imaginar a<br />
carnificina que vai acontecer caso os militares resolvam<br />
se utilizar da “auto-executoriedade deste<br />
mesmo poder de polícia” para desalojar os aldeões.<br />
Diante da iminente consumação dessa<br />
verdadeira tragédia anunciada, a Associação de<br />
Moradores da Aldeia Imbuhy enviou carta solicitando<br />
providências ao presidente Lula e a seu<br />
vice. Num trecho da carta, se lê: “Os aldeões, ao<br />
verem suas casas demolidas e seus pertences jogados<br />
no meio da rua sem terem para onde ir<br />
talvez reajam de forma emotiva, inconseqüente<br />
e insensata, desencadeando desta forma, uma<br />
onda de violência de conseqüências imprevisíveis<br />
e que certamente nos fará relembrar, doze<br />
anos após, a Chacina de Eldorado dos Carajás,<br />
74<br />
só que desta vez, acontecendo em pleno coração<br />
cultural do país. Nossas autoridades constituídas<br />
tomarão conhecimento do fato somente por<br />
ocasião da remoção e sepultamento de corpos de<br />
homens, mulheres e crianças.” A única resposta<br />
recebida até hoje, que partiu do vice-presidente<br />
José de Alencar, veio em forma de telegrama e<br />
diz apenas: “transmito votos de que o assunto<br />
relatado por Vossa Senhoria se encaminhe dentro<br />
da lei.” Diante dessa situação, Aílton Navega<br />
desabafa: “Nós resistimos à Ditadura Militar e<br />
agora, em pleno governo popular do Partido dos<br />
Trabalhadores, vamos sair daqui sem nada.”<br />
O pai de Aílton, Antônio Navega, mora<br />
na Aldeia Imbuhy há 82 anos. Em 1939, chegou<br />
a servir ao Exército no Forte Imbuhy, tendo<br />
sido depois transferido para o batalhão de<br />
Santa Cruz. De acordo com ele, durante muito<br />
tempo a convivência entre moradores e militares<br />
foi, na medida do possível, harmônica.<br />
Hoje, no entanto, os aldeões estão na iminência<br />
de serem expulsos do local onde passaram<br />
suas vidas inteiras. A possibilidade de sair do<br />
Imbuhy é qualificada por S. Antônio em uma<br />
palavra: “Nenhuma”. Como ele, diversos outros<br />
moradores construíram suas vidas naquele<br />
lugar e muitos sequer têm para onde ir.<br />
O advogado dos aldeões, Arthur Floriano<br />
Peixoto, fez várias críticas à maneira como<br />
esse processo tem sido conduzido pela Justiça.<br />
“A parcialidade da Justiça nesse caso é revoltante.<br />
Inclusive porque existem dois precedentes<br />
de casos semelhantes, ambos com ganho de<br />
causa para os aldeões do Imbuhy. Além disso,<br />
a União teria perdido o prazo de defesa duas<br />
vezes ao longo do processo. Ainda assim, obte-<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
ve ganho de causa. Querem botar as pessoas<br />
para fora na marra sem pagar nada. Para haver<br />
uma reintegração de posse, a União teria<br />
que provar a posse anterior do local, ou então<br />
que foi desempossada pelos aldeões. Ela não<br />
fez nenhuma das duas coisas, e por um motivo<br />
muito simples: os aldeões chegaram primeiro<br />
no local, isso está muito claro. Até porque, se<br />
tivessem chegado depois, o Exército não permitiria<br />
que se instalassem”, afirma.<br />
Antônio Navega, morador da Aldeia há mais de 80 anos, serviu no Forte Imbuhy e diz não ver posibilidade de deixar sua casa.<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 75
76<br />
ADUFF:<br />
30 anos de luta!<br />
No dia 10 de outubro de 2008, a ADU-<br />
FF vai completar 30 anos. Nossa associação<br />
já nasceu forte porque foi fundada em plena<br />
Ditadura Militar e em plena luta pela democratização<br />
do país. No rastilho do conflito<br />
dessas lutas, outras associações também<br />
foram construídas em todo território nacional,<br />
nas universidades federais, estaduais e<br />
particulares. O que nos movia? O desejo de<br />
liberdade, de melhores condições de trabalho,<br />
a defesa irredutível do ensino público e<br />
gratuito e contra a privatização da educação.<br />
Nos moviam esses princípios e as flores, porque<br />
nascemos em plena primavera.<br />
Um ano depois, a realidade exigia articular<br />
as lutas nacionalmente e fizemos o I<br />
Enad (Encontro Nacional de Associações de<br />
Docentes), ao qual sucederiam outros, até a<br />
realização, em fevereiro de 1981, em Campinas<br />
(SP), do I Congresso Nacional de Docentes<br />
Universitários. Trezentos delegados, entre<br />
eles os da ADUFF, representando mais de<br />
70 AD´s, participaram do Congresso histórico<br />
em que foi fundada a ANDES - Associação Na-<br />
cional dos Docentes de Ensino Superior. Com<br />
a promulgação da Constituição Federal de<br />
88, a ANDES pôde, finalmente, transformarse<br />
no Sindicato Nacional, o ANDES-SN. Nosso<br />
sindicato rompeu com a estrutura sindical<br />
autoritária implantada no Brasil na década<br />
de 30 e se consolidou pela organização de<br />
base nos locais de trabalho, pela democracia<br />
interna fundada no respeito às deliberações<br />
da base da categoria e defesa intransigente<br />
do princípio da autonomia sindical em relação<br />
às instituições universitárias, aos partidos<br />
políticos, credos e governantes.<br />
Além disso, o sindicato, assim como as<br />
AD´s, é mantido pela contribuição voluntária<br />
de seus sindicalizados: somos contrários ao<br />
imposto sindical compulsório. Fomos nos constituindo<br />
como entidade, na luta e junto com o<br />
ANDES-SN. Em 1986, para ampliar o espaço<br />
das lutas em defesa dos interesses e conquistas<br />
da categoria e após intenso processo de mobilização,<br />
deixamos de ser associação e nos transformamos<br />
em seção sindical do ANDES-SN.<br />
Em sua trajetória de luta em defesa<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
da universidade pública, a ADUFF sempre<br />
entendeu que as reivindicações mais imediatas<br />
dos professores também dizem respeito<br />
às lutas mais gerais da maioria da população,<br />
daí seu histórico de envolvimento com<br />
as grandes mobilizações nacionais como a<br />
Campanha das Diretas, contra as privatizações<br />
e a terceirização dos serviços públicos,<br />
pela reforma agrária, contra a criminalização<br />
dos movimentos sociais e da pobreza,<br />
entre outras tantas.<br />
A partir dos anos 90, experimentamos dificuldades<br />
de mobilização idênticas aos movimentos<br />
sociais que não se dobraram à ordem,<br />
tanto em âmbito local quanto internacional.<br />
No Governo Lula, esta situação se agrava<br />
ainda mais com a transformação da CUT em<br />
um verdadeiro braço do governo no movimento<br />
sindical. O resultado de todo esse processo<br />
é que hoje o movimento sindical combativo se<br />
vê forçado a intensificar sua presença junto<br />
à categoria para reafirmar a importância do<br />
sindicato e da luta sindical como espaço privilegiado<br />
de resistência e defesa de direitos<br />
dos trabalhadores. Isto se deve, em grande<br />
medida, a dois fatores: a cooptação<br />
de parte expressiva do movimento<br />
pelo governo e a lógica de<br />
criminalização do movimento<br />
sindical combativo.<br />
Nesse quadro de adversidade,<br />
a ADUFF, por se man-<br />
ter fiel aos princípios que a orientam desde<br />
sua fundação, ainda consegue manter alto<br />
grau de representatividade junto à base da<br />
categoria, mesmo em meio a todos os ataques<br />
protagonizados pelo Governo Lula aos sindicatos<br />
combativos. A vitoriosa greve de 2005 é<br />
um exemplo recente dessa legitimidade junto<br />
à sua base, da mesma forma que seu posicionamento<br />
quanto à contra-reforma universitária<br />
do governo, especialmente nas lutas da<br />
ADUFF por ocasião do debate do REUNI.<br />
Em 2007, a luta contra o REUNI fez<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008<br />
77
78<br />
com que o sindicato conseguisse movimentar<br />
um grupo importante de professores comprometidos<br />
com a defesa da universidade pública.<br />
Esse movimento permitiu ao sindicato dialogar<br />
com a categoria sobre seu projeto de universidade<br />
e, após visitas da direção da ADUFF<br />
a várias unidades, inclusive do interior, cerca<br />
de quinze colegiados se manifestaram contrariamente<br />
à adesão da UFF ao REUNI. Como<br />
sabemos, e a exemplo do que aconteceu na<br />
UFF, no país inteiro foi preciso o uso da repressão,<br />
da força, para que o termo de adesão fosse<br />
assinado. Mesmo após a adesão da universidade<br />
ao REUNI, a ADUFF segue apontando<br />
os problemas que virão com a implementação<br />
do decreto. Conforme nossa seção sindical já<br />
alertava desde o ano passado, a expansão da<br />
universidade tem sido marcada pela lógica da<br />
fragmentação. Para além disso, os recursos<br />
humanos e materiais de que a UFF disporá<br />
para <strong>fazer</strong> a expansão com que se comprometeu<br />
são claramente insuficientes.<br />
Então, o que comemorar?<br />
Diante de uma História de trinta anos<br />
pontuada por tantas lutas importantes, certamente<br />
há muito a comemorar na ADU-<br />
FF. No entanto, o momento por que passa<br />
o sindicato não poderia ser negligenciado<br />
nas comemorações de nossos trinta anos de<br />
existência. No plano nacional, os ataques ao<br />
ANDES-SN por parte do governo a seu registro<br />
sindical afeta diretamente o conjunto<br />
de suas seções sindicais, inclusive, no que<br />
diz respeito às consignações voluntárias na<br />
folha de pagamento dos professores. Essa<br />
situação significa para a ADUFF, como informamos<br />
na última assembléia e em nosso<br />
boletim eletrônico, uma grave crise financeira<br />
em função da queda de cerca de 40% na<br />
arrecadação mensal do sindicato pelo não<br />
desconto da GTMS, que substituiu a GED.<br />
Isso significa que o que está em jogo<br />
neste momento é a própria sobrevivência do<br />
nosso sindicato enquanto instrumento de<br />
luta da categoria docente. Embora estejamos<br />
movendo todas as ações necessárias para<br />
enfrentar o problema, sabemos, entretanto,<br />
que a resposta não pode ser dada apenas nos<br />
planos jurídico e administrativo. É preciso<br />
que a categoria, conhecendo a situação, crie<br />
as condições para uma resposta política mais<br />
incisiva. Para garantir nossos direitos, só podemos<br />
contar com nossas próprias forças.<br />
Aprendemos com Goethe que só merecem<br />
a liberdade e a luta aqueles que lutam por<br />
elas todos os dias. É na luta, portanto, pelo<br />
seu mais legítimo direito de EXISTIR que a<br />
ADUFF comemora seus 30 anos. Vida longa à<br />
ADUFF e ao ANDES-SN!<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Ripper:<br />
olhos<br />
na<br />
realidade<br />
Hiperfocal<br />
A vida do homem do campo, indígenas, a seca do Nordeste, o ambiente urbano, o trabalho escravo<br />
de carvoeiros, crianças em Mato Grosso do Sul. Alguns desses temas nunca perdem o foco nas lentes<br />
do fotógrafo carioca João Ripper, que com 19 anos ingressou na carreira de repórter-fotográfico na<br />
“Luta Democrática”, do controvertido Tenório Cavalcanti. Vieram em seguida o “Diário de Notícias”, a<br />
“Última hora”, a sucursal carioca do “Estadão” e “O Globo” e os muitos trabalhos como free-lancer.<br />
Isto até ele perceber que gostaria que suas fotos tivessem o poder de levar as pessoas a refletir sobre<br />
a realidade registrada através de sua câmera sem estereótipos — apenas um retrato da desigualdade<br />
social que o incomoda muito. Deixou “O Globo” e foi participar da criação da Agência F4. “A F4, do<br />
Rio; a Ágil, de Brasília; e a Angular, de São Paulo, foram muito importantes, porque permitiram aos<br />
fotógrafos iniciar um movimento. Passamos a pensar as pautas, documentar de forma livre e optar<br />
pelo comprometimento com causas populares. Além de criar mercados de trabalho, este movimento<br />
começou a romper com a hipocrisia de que o jornalista é imparcial”, diz ele, para quem jornais e jornalistas<br />
são veículos dos mantenedores da sociedade dividida entre pobres e ricos, na qual impera<br />
a discriminação que faz com que os moradores das periferias e favelas “sejam excluídos e tratados<br />
como subalternos, atendendo aos interesses das classes média e alta e do regime repressor, autoritário<br />
e racista que criminaliza a pobreza”.<br />
(Resumo a partir do texto de José Reinaldo Marques, no site da ABI)<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 79
80<br />
OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
No sentido horário a partir de<br />
baixo, e da esquerda:<br />
• Trabalho escravo - Família espera<br />
volta do pai que está preso em<br />
fazenda no Sul do Pará.;<br />
• Índio guarari Kaiowá trabalhando,<br />
em condições análogas a de escravo<br />
no corte da cana de açúcar -<br />
MS; • Criança carvoeira em Ribas<br />
do Rio Pardo, MS.<br />
• Trabalho escravo em fazenda de<br />
cana de açúcar também no MS<br />
João Batista Alves - trabalho análogo<br />
ao de escravo no Pará.<br />
Confira mais imagens do<br />
fotógrafo no seu site:<br />
www.imagenshumanas.com.br<br />
CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 81