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Revista de Política e Cultura da ADUFF Ano I - nº 2<br />

2Violência, Mídia<br />

e<br />

Criminalização<br />

da Pobreza


Associação dos Docentes da UFF<br />

ADUFF<br />

SSind<br />

Seção sindical do Andes<br />

Filiado à CONLUTAS<br />

SUMÁRIO<br />

“Cantamos porque chove sobre os<br />

sulcos... e somos militantes desta<br />

vida. E porque não podemos e nem<br />

queremos deixar que a canção se<br />

torne cinzas.”<br />

(Mário Benedetti)<br />

Revista da Associação dos Docentes da UFF. Rua<br />

professor Lara Vilela, 110. São Domingos, Niterói-RJ.<br />

CEP: 24.210-590.Tels: (21) 2622-2649 e 2620-1811.<br />

Correio eletrônico: revistaclasse@uol.com.br<br />

EDIÇÃO GERAL e REDAÇÃO: Stela Guedes Caputo.<br />

PROJETO GRÁFICO: Cláudio Camillo e Stela Guedes<br />

Caputo. DIAGRAMAÇÃO: Luiz Fernando Nabuco.<br />

ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO: Carolina Barreto.<br />

REVISÃO: Isabel Correia.<br />

CONSELhO EDITORIAL: Marina Barbosa Pinto,<br />

Suenya Santos da Cruz, Gelta Theresinha Ramos<br />

Xavier, Juarez Torres Duayer, Elisabeth Carla Barbosa,<br />

Eliane Arenas Mora, Paulo Cresciulo de Almeida,<br />

Larissa Dahmer Pereira, Claudia March, Julio Carlos<br />

Figueiredo, José Raphael Bokehi, Ângela R.M.B Tamberlini,<br />

Eunice Treim, Catharina Marinho Meirelles.<br />

Colaboraram nesta edição, além de todos os<br />

que assinam textos e fotos: Roberto Leher,<br />

Marcelo Badaró Mattos, Juliana Caetano, Isabel<br />

Correia e Luiz Fernando Nabuco.<br />

Gestão: Autônoma, Democrática e de Luta<br />

Editorial ........................................................................................ pág. 2<br />

Contra Corrente<br />

Guetos e antiguetos: a nova anatomia da pobreza urbana ..................................... pág. 4<br />

Amauta<br />

Criminalização dos movimentos sociais na América Latina ................................... pág. 10<br />

Pública, Gratuita e de Qualidade<br />

Desvio do caráter da Universidade:<br />

administração mercantil fere a democracia<br />

e deturpa essência da instituição ............................................................ pág. 14<br />

“Na trincheira da música nossa principal luta é contra o Jabá” ............................... pág. 19<br />

Estação Terminal ............................................................................... pág. 25<br />

Lima Barreto: um intelectual militante ................................................... pág. 26<br />

De Capa<br />

Violência, mídia e criminalização da pobreza ............................................. pág. 28<br />

Entrevista com Cel. Mário Sérgio Duarte, Presidente do ISP ............................. pág. 30<br />

Entrevista com Cecília Coimbra,<br />

Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais ............................................... pág. 36<br />

Entrevista com José Damião de Lima Trindade,<br />

Procurador do Estado de São Paulo ..................................................... pág. 46<br />

Mídia e política<br />

Comunicação e controle social .............................................................. pág. 53<br />

Mais do mesmo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro ............................... pág. 56<br />

Filmes<br />

Algumas reflexões a partir do filme “Quanto vale ou é por quilo?” .......................... pág. 58<br />

Nossa resenha<br />

Planeta favela ................................................................................... pág. 61<br />

Histórias de Vida<br />

Professor Ronaldo Coutinho ................................................................. pág. 66<br />

Poesia<br />

Deley de Acari .................................................................................. pág. 69<br />

Diálogos com a cidade<br />

Aldeia Imbuhy: clima de tensão com o<br />

Exército há mais de uma década ........................................................... pág. 70<br />

ADUFF: 30 anos de luta! ..................................................................... pág. 76<br />

Hiperfocal<br />

João Ripper .................................................................................... pág. 79


2<br />

Editorial<br />

De Maio a Dezembro<br />

40 anos, depois?<br />

Em maio deste ano a ADUFF lançou o primeiro<br />

número de sua revista Classe. 40 anos depois do<br />

maio de 1968 francês refletíamos sobre como nossas<br />

expectativas de mudar o mundo se apresentavam<br />

(e se apresentam ainda) na produção artística. Arte<br />

e política – há arte e cultura não-política? – era o<br />

tema central daquele primeiro número. Arte e política<br />

estarão sempre presentes nas páginas de Classe,<br />

como nas páginas seguintes, através das músicas de<br />

BNegão, dos poemas de Deley, das fotos de Ripper,<br />

das peças e filmes aqui comentados.<br />

Mas é em dezembro que trazemos a público<br />

este segundo número de Classe. Por isso, 40 anos<br />

depois do AI-5 e 60 anos após a assinatura da Declaração<br />

dos Direitos Humanos indagamos sobre<br />

Violência, Mídia e criminalização da pobreza. Mais<br />

uma criança de favela assassinada. Dessa vez, o<br />

menino Matheus Rodrigues Carvalho, de 8 anos,<br />

morto por um policial na manhã de 4 de dezembro,<br />

ao sair de sua casa, na Maré, para comprar<br />

pão. Questionamos então: que democracia é essa<br />

que afirma ter superado a ditadura e seu AI-5 mas<br />

mantém de pé, e mais forte do que nunca, a institucionalização<br />

da violência contra os cidadãos que<br />

constituía o cerne daquele Ato Institucional?<br />

Sim, os alvos hoje não são<br />

os mesmos, os “subversivos” de<br />

1968 já não estão aí (ou estão,<br />

só que agora do outro lado dos<br />

gabinetes – e das baionetas).<br />

Mas, isso ajuda a desvelar as<br />

máscaras: o inimigo continua<br />

sendo criminalizado, mas o inimigo<br />

tem várias faces, numa só,<br />

de Classe. O inimigo, criminalizado,<br />

é o(a) trabalhador(a), especialmente<br />

o(a) trabalhador(a)<br />

empobrecido(a), precarizado(a),<br />

desempregado(a), negro(a),<br />

favelado(a). Porque assim como na fase inicial de implantação<br />

do capitalismo o grau violentíssimo de expropriação<br />

a que se submeteu a maioria da população,<br />

para se criar uma massa de homens e mulheres<br />

“livres como um pássaro” para que vendessem sua<br />

força de trabalho por um salário, exigiu a criação de<br />

corpos profissionalizados de “impositores de regras”<br />

e “mantenedores da ordem” – a polícia – a extrema<br />

violência do capitalismo contemporâneo, nessa sua<br />

contraditória e necessária fúria para superar a(s)<br />

sua(s) crise(s), que impõem novas expropriações<br />

Menino morto pela polícia no Complex<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


o da Maré quando ia comprar pão, no dia 4 de dezembro.<br />

Foto: Naldinho Lourenço/Imagens do Povo<br />

(entre elas a de direitos) aos(às) trabalhadores(as),<br />

exige o reforço da repressão policial, da criminalização<br />

de comportamentos, da jurisdicialização dos<br />

conflitos. Criminalização da pobreza é como chamam<br />

mais corriqueiramente esse processo. E se<br />

esses mesmos trabalhadores ousam ainda se organizar<br />

e, eventualmente, mobilizar-se para exigir, a<br />

receita não poderia ser outra: criminalização dos<br />

movimentos e organizações da Classe.<br />

Esse não é um fenômeno brasileiro: Loïc Wacquant,<br />

Claudia Koroll e Mike Davis (resenhado por<br />

Maurício Vieira) demonstram a escala planetária<br />

(como planetário é o violento avanço expropriativo<br />

e exploratório do capital) do fenômeno da implantação<br />

de um verdadeiro Estado policial-penal cujo objetivo<br />

é controlar as populações trabalhadoras e os<br />

territórios que habitam. Todos sabemos, entretanto,<br />

pela simples leitura dos relatórios das organizações<br />

internacionais envolvidas na questão dos direitos<br />

humanos, que o Brasil não é campeão apenas de<br />

futebol, mas que a violência de Estado contra os cidadãos<br />

assume aqui proporções absurdas.<br />

Neste número de Classe, através de três<br />

entrevistas, damos voz ao coronel Mário Sérgio<br />

Duarte, ex-comandante do BOPE e atual<br />

presidente do Instituto de Segurança Pública,<br />

de forma a deixar evidente as bases da atual<br />

política de “segurança” pública. Ouvimos Cecília<br />

Coimbra, professora aposentada da UFF e<br />

presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, para<br />

entender como a ditadura militar ainda vive na<br />

ditadura do mercado. E José Damião Trindade,<br />

ex-presidente da Associação de Procuradores do<br />

Estado de São Paulo, que nos deu uma aula sobre<br />

a história dos direitos humanos. Ao fim da<br />

leitura dessas entrevistas assumimos a escolha<br />

por Prometeu, que nos apresenta Damião e<br />

diante de um capitalismo regressivo em que “não<br />

há mais nenhuma esperança de melhoria social<br />

significativa” escolhemos lutar pelos direitos humanos<br />

da única e necessária forma em que ela<br />

pode ser feita hoje, como uma luta de Classe(s),<br />

contra a ordem do capital. E com Cecília afirmamos<br />

que como “toda identidade é conservadora<br />

se não lutar contra o capital”, nossa identidade<br />

é anti-capitalista, pela humanidade livre,<br />

é identidade de Classe.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 3


Contra Corrente<br />

4<br />

GUETOS E ANTIGUETOS<br />

ANATOMIA DA NOVA<br />

POBREZA URBANA<br />

Entrevista com Loïc Wacquant<br />

Realizada por Caroline Keve para a Debate (julho de 2007)<br />

Nascido no sul da França em 1960, Loïc Wacquant<br />

é professor da Universidade da Califórnia-<br />

Berkeley e Pesquisador do Centro de Sociologia<br />

Européia – Paris. Autor de numerosos trabalhos<br />

sobre desigualdade urbana, dominação etno-racial,<br />

Estado penal, corpos e teoria social, traduzido<br />

em mais de uma dezena de idiomas. Entre<br />

seus livros, encontram-se, em português, “As<br />

prisões da miséria” (Jorge Zahar, 2001), “Os<br />

condenados da cidade. Estudos sobre marginalidade<br />

avançada” (Revan, 2001) “Corpo e alma”<br />

(Relume-Dumara, 2002), “Punir os Pobres”<br />

(Revan, 2007), “Repensar os Estados Unidos”<br />

(Papirus, 2003), “O mistério do mistério” (Revan,<br />

2005), “Um convite à sociologia reflexiva”<br />

(Relume-Dumara, 2006) e “As duas faces do<br />

Gueto” (Boitempo Editorial, 2008).<br />

Em “Os condenados da cidade”, você traça<br />

uma comparação metodológica entre<br />

a evolução do gueto negro nos Estados<br />

Unidos e da periferia francesa operária, o<br />

banlieue¹, durante as últimas três décadas.<br />

Por que você se aprofundou nessa comparação<br />

e o que ela revela sobre a mutante<br />

cara da pobreza na cidade?<br />

Loïc Wacquant: Esse livro nasceu da confluência<br />

de dois choques, o primeiro pessoal e o segundo,<br />

político. O choque pessoal foi o descobrimento em<br />

primeira mão do gueto negro estadunidense – ou do<br />

que resta dele – quando me mudei para Chicago e<br />

vivi no South Side por seis anos. Vindo da França,<br />

me chamou à atenção a intensidade da desolação<br />

urbana, as privações sociais e a violência das ruas<br />

concentrada nessa terra non grata que era univer-<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


salmente temida, evitada e denegrida pelo mundo<br />

exterior, inclusive por muitos acadêmicos.<br />

O choque político foi a difusão de um pânico moral<br />

sobre a “guetização” na França e em muitas partes<br />

da Europa Ocidental. Na década de 90, a mídia, os<br />

políticos e até alguns pesquisadores acreditavam<br />

que os bairros operários das periferias das cidades<br />

européias estavam se transformando em “guetos”<br />

ao estilo daqueles dos EUA. Desse modo, o debate<br />

público e as políticas de Estado se reorientaram<br />

para lutar contra o crescimento disso que chamavam<br />

de gueto. Baseavam-se na premissa de que<br />

a pobreza urbana estava sendo “americanizada”,<br />

ou seja, marcada por uma divisão étnica cada vez<br />

mais profunda, por uma crescente segregação e<br />

pela criminalidade desenfreada.<br />

Juntando esses dois choques, chegamos à pergunta<br />

que provocou uma década de pesquisa: o gueto dos<br />

EUA e os distritos de classe baixa da Europa convergem?<br />

Se não, o que está acontecendo com eles?<br />

O que provoca sua transformação? Para responder<br />

a essas perguntas, juntei dados estatísticos e observações<br />

de trabalho de campo de uma seção dilapidada<br />

do “cinturão negro” de Chicago e do subúrbio<br />

parisiense desindustrializado, o “cinturão<br />

vermelho”. Também reconstruí a trajetória histórica<br />

desses bairros – porque não se pode entender<br />

seu declínio na década de 90 sem considerar o que<br />

sucedeu no século XX, marcado pelo auge e pela<br />

desaparição da industrialização fordista, assim<br />

como do Estado de bem-estar social keynesiano.<br />

Então, o que aconteceu no cinturão negro<br />

americano e no cinturão vermelho francês?<br />

Eles, de fato, convergem?<br />

Do lado americano, mostro que depois das re-<br />

voltas da década de 60 o gueto negro implodiu,<br />

entrou em colapso por si mesmo devido à simultânea<br />

contração da economia de mercado e retirada<br />

do Estado social. O resultado foi uma nova<br />

forma urbana que denomino “hipergueto” e que<br />

se caracteriza por uma dupla exclusão, baseada<br />

na raça e na classe, e reforçada por uma política<br />

de retirada do Estado de bem-estar e de abandono<br />

urbano. Assim, quando falamos do gueto estadunidense,<br />

devemos contextualizá-lo historicamente,<br />

sem confundir o “gueto comunal” da década<br />

de 50 com sua descendência do final do século.<br />

O gueto comunal era um mundo paralelo, uma<br />

“cidade negra dentro da branca”, como os sociólogos<br />

afro-americanos St. Clair Drake e Orase<br />

Cayton o chamam na sua obra-livro Black Metropolis.<br />

Esse gueto funcionava como uma reserva de<br />

trabalho não qualificado para as fábricas. Essa<br />

reserva fazia parte de uma densa rede de organizações,<br />

que oferecia proteção contra a dominação<br />

branca. Com a desindustrialização e a mudança<br />

para o capitalismo financeiro, o hipergueto perde<br />

sua função econômica e se desprende das organizações<br />

comunais, que, por sua vez, são substituídas<br />

por instituições estatais de controle social.<br />

Este é claramente um instrumento de exclusão,<br />

um mero receptáculo para as estigmatizadas e<br />

superficiais frações do proletariado negro: os desempregados,<br />

os beneficiários da assistência social,<br />

os criminosos e os participantes da expansiva<br />

economia informal.<br />

Do lado francês, a percepção dominante politicamente<br />

e nos meios de comunicação é fatalmente<br />

equivocada: os municípios de classe baixa passaram<br />

por um processo de empobrecimento e deteriorização<br />

gradual que os afastou do padrão de gueto.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 5


Um gueto é um território encravado noutro, etnicamente<br />

homogêneo, que abarca todos os membros<br />

de uma categoria subordinada e suas instituições e<br />

também previne sua expansão para a cidade. Atualmente,<br />

os banlieues, em deterioração, são muito<br />

heterogêneos e se tornaram mais diversificados em<br />

termos de composição étnica nas três últimas décadas;<br />

tipicamente, contêm uma maioria de cidadãos<br />

franceses e imigrantes de cerca de duas ou três dezenas<br />

de nacionalidades. A crescente presença desses<br />

migrantes pós-coloniais é o resultado de uma<br />

diminuição da separação espacial: eles costumavam<br />

ter seu acesso negado às habitações públicas e,<br />

em conseqüência, mais se segregavam. Os residentes<br />

que ascendem nessa estrutura de classe, seja<br />

pela escolarização, pelo mercado de trabalho ou<br />

por empreendimentos, rapidamente abandonam<br />

essas áreas degradadas.<br />

Os banlieues do cinturão vermelho também perderam<br />

a maioria das instituições locais ligadas<br />

ao Partido Comunista (ao qual devem seu nome),<br />

que costumava organizar a vida ao redor das fábricas,<br />

os sindicatos e o próprio bairro, e dava<br />

às pessoas um orgulho coletivo da sua classe e<br />

da sua cidade. Sua heterogeneidade étnica, as<br />

fronteiras porosas, a decrescente densidade institucional<br />

e a incapacidade de criar uma identidade<br />

cultural comum fazem com que essas áreas<br />

sejam o oposto dos guetos: são antiguetos.<br />

Isto vai contra a imagem pintada pela mídia<br />

e pelos políticos franceses (de direita e<br />

de esquerda), assim como dos ativistas mobilizados<br />

em torno dos temas imigratórios,<br />

raciais e de cidadania.<br />

Esta é uma boa ilustração, uma contribuição cha-<br />

6<br />

ve da sociologia<br />

ao debate civil:<br />

através da conceituação<br />

precisa e<br />

da observação sistemática,<br />

vêem-se<br />

as grandes brechas<br />

– que nesse<br />

caso configuram<br />

uma total contradição<br />

entre a<br />

percepção pública<br />

e a realidade social.<br />

Os imigrantes<br />

e seus filhos se<br />

mesclaram mais Protesto contra a morte de três jovens do Morro da Pr<br />

a traficantes do Morro de São Carlos. Foto: Marcelo Sa<br />

nas cidades francesas,<br />

não se separaram; por seus perfis sociais e<br />

oportunidades, se parecem mais com os nativos da<br />

França, deixaram de ser diferentes. Dispersaramse<br />

no espaço, em vez de se concentrarem. Precisamente<br />

porque agora estão mais “integrados” na<br />

vida nacional dominante e competem pelos bens<br />

coletivos, eles são vistos como uma ameaça, e a<br />

xenofobia aparece entre os segmentos nativos da<br />

classe trabalhadora, ameaçada pela instabilidade<br />

social agravada.<br />

As periferias urbanas na Europa Ocidental não<br />

sofrem de “guetização”, mas da dissolução da classe<br />

trabalhadora tradicional como resultado da normalização<br />

do desemprego massivo e da expansão<br />

de trabalhos instáveis a médio prazo, além de serem<br />

difamadas no debate público. Objetivamente, o<br />

discurso da “guetização” faz parte da demonização<br />

simbólica dos distritos de classe baixa, que os debilita<br />

socialmente e os marginaliza politicamente.<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


“Os Condenados”<br />

demonstra<br />

que a tese da<br />

“convergência”<br />

entre Europa e<br />

América dentro<br />

do modelo do<br />

gueto negro é<br />

empiricamente<br />

incorreta e enganosa<br />

em termos<br />

políticos. Em seguida,<br />

revela a<br />

“emergência” de<br />

um novo regime<br />

de pobreza urbana<br />

em ambos os<br />

lados do Atlântico, distinto do regime da metade<br />

do século passado, que estava ancorado no trabalho<br />

industrial estável e na rede de segurança<br />

do Estado keynesiano. A atual marginalidade<br />

avançada se alimenta da fragmentação do trabalho<br />

assalariado, da reorientação das políticas<br />

de Estado, contrária à proteção social e a favor<br />

da compulsão do mercado, e do generalizado ressurgimento<br />

da desigualdade – isto é, marginalidade<br />

produzida pela revolução neoliberal. Isso<br />

significa que tal marginalidade não está ficando<br />

para trás, mas que ainda vem muito pela frente.<br />

Está destinada a persistir e a crescer enquanto<br />

os governos implementarem políticas de desregulação<br />

econômica e de “acomodação” dos bens<br />

públicos. Mas esta nova realidade social, engendrada<br />

pela escassez e instabilidade do trabalho<br />

e pelo volúvel papel do Estado, é ofuscada pelo<br />

“etnizado” idioma da imigração, da discrimi-<br />

ovidência, entregues por militares<br />

lles<br />

nação e da “diversidade”. Tratam-se de temas<br />

reais, sem dúvida, mas não são a força motriz<br />

da marginalização da periferia urbana européia.<br />

Mais do que isso, não servem para esconder a<br />

nova questão social do trabalho inseguro e suas<br />

conseqüências para a formação de um novo proletariado<br />

urbano do século XXI.<br />

No livro, você ressalta a indignidade coletiva<br />

sentida por aquela gente imobilizada no<br />

hipergueto e no desindustrializado banlieue.<br />

Os moradores do cinturão negro perderam<br />

o orgulho racial e seus correlatos do cinturão<br />

vermelho perderam o orgulho de classe.<br />

Você sustenta que a “estigmatização territorial”<br />

é uma nova dimensão da marginalidade<br />

urbana, tanto nos EUA, como na Europa,<br />

no amanhecer de um novo século.<br />

De fato, uma das características distintivas da<br />

marginalidade avançada é a propagação do estigma<br />

espacial, que desdenha das pessoas vindas<br />

dos bairros relegados. Em toda sociedade avançada,<br />

determinados distritos ou bairros urbanos<br />

se tornaram símbolos nacionais e referenciais<br />

como portadores de todos os males da cidade. A<br />

crescente difamação dos distritos de classe mais<br />

baixa das metrópoles é uma conseqüência direta<br />

do enfraquecimento dos afro-americanos no sistema<br />

político estadunidense e da classe trabalhadora<br />

no cenário político europeu.<br />

Quando um distrito é amplamente visto como um<br />

“ninho de criminosos”, onde só os detritos da sociedade<br />

podem tolerar viver, quando seu nome,<br />

para a imprensa e para a política, é sinônimo de<br />

vício e violência, o lugar é infectado e essa condição<br />

se sobrepõe ao estigma da pobreza e etnicida-<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 7


de (que significa raça, nos EUA, e origem colonial<br />

na Europa). Aqui, me remeto às teorias de Irving<br />

Goffman e de meu mestre Pierre Bourdieu para<br />

ressaltar como a desgraça pública que afeta essas<br />

áreas desvaloriza o sentido de ser de seus residentes<br />

e corrói seus laços sociais. Em resposta à difamação<br />

espacial, os residentes recorrem a estratégias<br />

de distanciamento mútuo e denegrimento<br />

uns dos outros, se voltam para a esfera privada da<br />

família, saem do bairro (quando têm opção). Essas<br />

práticas de auto-proteção simbólica disparam um<br />

mecanismo de realização pessoal, no qual a reação<br />

às representações negativas do lugar acabam por<br />

produzir a mesma anomia cultural e pulverização<br />

social que tais representações acusam existir.<br />

A estigmatização territorial não só debilita a capacidade<br />

de identificação e ação coletiva das famílias<br />

de classe baixa, como também desencadeia<br />

prejuízos, burocracias e discriminação por parte<br />

de quem se encontra no mundo exterior, como os<br />

funcionários públicos, por exemplo. Os jovens de<br />

La Courneuve, o estigmatizado cinturão vermelho<br />

parisiense que estudei, se queixam constantemente<br />

de serem obrigados a esconder seu endereço quando<br />

se candidatam a um emprego, começam algum<br />

relacionamento ou freqüentam a universidade,<br />

para evitar reações negativas de medo ou rechaço.<br />

A polícia, considerando que os jovens vêm desse<br />

gueto freqüentemente visto como temível, já “infectados”,<br />

é particularmente suscetível a tratá-los<br />

com maior severidade. O estigma territorial é um<br />

obstáculo a mais no caminho da integração sócioeconômica<br />

e da participação civil.<br />

Note-se que o mesmo fenômeno se observa na<br />

América Latina entre os habitantes das malreputadas<br />

favelas do Brasil, das poblaciones do<br />

8<br />

Chile e das villas miréria da Argentina. Suspeito<br />

que os residentes da vila do Bajo Flores, La Cava<br />

ou da vila do Retiro, em Buenos Aires, sabem<br />

muito bem o que é a “discriminação domiciliar”.<br />

Esse estigma territorial se anexa aos distritos<br />

de classe baixa da cidade argentina pela mesma<br />

razão que se anexa ao hipergueto dos EUA e ao<br />

antigueto da Europa: a concentração de desempregados,<br />

de sem-teto, de imigrantes sem documentos,<br />

assim como dos mais pobres segmentos<br />

do novo proletariado urbano, empregado na desregulada<br />

economia de serviços. Outro motivo é<br />

que a tendência das elites de Estado é usar esses<br />

espaços como “pára-raios” para evitar o enfrentamento<br />

dos problemas cuja raiz se encontra nas<br />

transformações do trabalho.<br />

Esse estigma territorial, por acaso, facilita<br />

um giro ao Estado penal e à implementação<br />

de políticas de tolerância zero, cuja expansão<br />

mundial você analisou em seu livro anterior,<br />

As prisões da miséria?<br />

A contaminação espacial oferece ao Estado maior<br />

amplitude para justificar políticas agressivas<br />

de controle da nova marginalidade, que podem<br />

assumir a forma de dispersão ou contenção, ou,<br />

melhor ainda, uma combinação de ambos os enfoques.<br />

A dispersão aponta para dispersar os pobres<br />

no espaço e recuperar os territórios que eles<br />

tradicionalmente ocuparam, sob o pretexto de<br />

seus bairros serem áreas demonizadas, às quais<br />

“não se pode chegar” e que simplesmente não<br />

têm salvação. Atualmente, isso funciona a partir<br />

da demolição massiva de moradias públicas<br />

no coração dos guetos das metrópoles estadunidenses<br />

e nas empobrecidas periferias de muitas<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


cidades européias. Milhares de habitações são<br />

destruídas no meio da noite, e seus ocupantes<br />

são espalhados por zonas adjacentes ou por<br />

distritos pobres nas cercanias, criando a aparência<br />

de que “o problema foi resolvido”. Mas<br />

dispersar os pobres só os torna menos visíveis<br />

e menos capazes de intervenção politicamente;<br />

não lhes oferecem trabalho, nem tampouco<br />

um status social viável.<br />

A segunda técnica utilizada para lidar com o<br />

avanço da marginalização tem enfoque oposto:<br />

busca concentrar e conter as desordens geradas<br />

pela fragmentação do trabalho. O que faz é jogar<br />

uma rede policial cerrada ao redor dos bairros relegados<br />

e expandir os aprisionamentos e cárceres,<br />

para enviar os elementos mais rebeldes para um<br />

exílio crônico. Esta contenção punitiva é normalmente<br />

acompanhada, na frente social, por medidas<br />

destinadas a forçar o encaixe dos receptores<br />

de assistência pública na desregulada economia<br />

de serviços, em nome do “workfare”² (falo da<br />

invenção dessas novas políticas de pobreza nos<br />

EUA, casadas com o restritivo sistema de “workfare”<br />

e o expansivo “prisionfare” no meu livro<br />

seguinte, “Castigar os pobres”). Mas a política<br />

“pulso firme” ou “tolerância zero” é também de<br />

autoderrota. Enviar os desempregados, os empregados<br />

marginalizados e os pequenos criminosos<br />

para a cadeia os torna ainda menos empregáveis<br />

e mais desestabiliza os bairros e as famílias de<br />

classe baixa. Acionar a polícia, o judiciário e os<br />

cárceres para terminar com a marginalidade não<br />

só é enormemente custoso e ineficiente, mas também<br />

agrava o mal que se quer curar. Assim, voltamos<br />

a entrar no círculo vicioso há muito tempo<br />

delimitado por Michel Foucault: o fracasso do<br />

aprisionamento como resolução para o problema<br />

da marginalidade serve para justificar a contínua<br />

expansão da mesma.<br />

Além do mais, na Argentina e em seus países vizinhos,<br />

que durante o século XX atravessaram décadas<br />

de governos autoritários, a própria polícia é<br />

um vetor de violência e o aparato judicial abunda<br />

em desigualdade. Assim, estender o Estado penal<br />

à correlação de classes e lugares equivale a restabelecer<br />

uma ditadura sobre as frações marginais<br />

da classe trabalhadora. Viola, na prática, o ideal<br />

da democracia cidadã, que teoricamente guia as<br />

autoridades. O que o Estado deve combater não é<br />

o sintoma, a insegurança criminosa, mas a causa<br />

da desordem urbana: a insegurança social que o<br />

mesmo Estado gerou ao se converter em um diligente<br />

servidor do despotismo do mercado.<br />

Notas da tradutora:<br />

Tradução do original em espanhol<br />

de Juliana Caetano<br />

¹ Zona periférica urbanizada, localizada em torno de uma grande<br />

cidade, sem ser independente dela; o que poderia ser traduzido por<br />

“subúrbio”. Entretanto, acabou por nomear especificamente as comunidades<br />

e comunas suburbanas francesas, sejam bairros ou municípios,<br />

onde vivem os trabalhadores que a metrópole emprega, mas não abriga,<br />

dotadas das características sociais abordadas na presente entrevista.<br />

² Programa de assistência social que se contrapõe ao antigo welfare,<br />

ou Estado de bem-estar social, ou, ainda, Estado providência. No workfare,<br />

é preciso trabalhar para receber em troca o benefício social básico, ou seja,<br />

os desempregados participam de iniciativas do governo para que a renda<br />

do próprio trabalho seja sua providência.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 9


Amauta<br />

Claudia Koroll - Especial para a revista Classe<br />

Professora da Universidad popular Madres de Plaza de Mayo (Argentina)<br />

Terminado o ciclo de ditaduras militares na<br />

América Latina, quando os povos comemoram a<br />

“conquista da democracia”, as classes dominantes<br />

começam o processo de readequação dos mecanismos<br />

de controle, de afirmação de sua hegemonia,<br />

de produção de consenso, de fragmentação social e<br />

de repressão, necessários para assegurar o modo de<br />

acumulação capitalista na presente etapa. As “democracias<br />

realmente existentes” asseguram a livre<br />

movimentação de capitais e reagem furiosamente<br />

se os movimentos populares criam obstáculos à sua<br />

reprodução ou circulação. Os organismos internacionais<br />

de gestão do “governo mundial das multinacionais”<br />

(FMI, Banco Mundial, OMC, G-8, etc.) criam<br />

programas para garantir que o saque sistemático<br />

dos bens dos territórios subordinados a suas estratégias<br />

tenha vias de saída para o Primeiro Mundo.<br />

Promovem legislações para defender seus direitos.<br />

Criam forças militares para patrulhar e controlar<br />

essas regiões (como a IV Frota norte-americana).<br />

O capital ganhou direitos nessas “novas democracias”.<br />

O que não se observa suficientemente<br />

é como, ao mesmo tempo, os povos perderam direi-<br />

10<br />

Criminalização dos movimentos<br />

sociais na América Latina¹<br />

tos, em especial @s socialmente excluíd@s, enclausurados<br />

em verdadeiros guetos de miséria e indigência,<br />

em regiões onde não há direitos nem lei,<br />

salvo o grito de ordem das forças repressivas. Da<br />

Doutrina de Segurança Nacional, passou-se à Doutrina<br />

de Segurança Cidadã, ou à Doutrina de Segurança<br />

Democrática. A primeira perseguia preferencialmente<br />

@s “subversiv@s”, ou seja, os que não aceitavam a<br />

“ordem” imposta pelas burguesias e pelo imperialismo<br />

para defender e reproduzir seu sistema. Hoje se perseguem<br />

“os criminosos”, entendendo por criminoso tanto<br />

um movimento social que se levanta para recuperar a<br />

terra, cuidar do território que habita, evitar a destruição<br />

da natureza, <strong>fazer</strong> produzir uma fábrica abandonada<br />

por seus patrões, como alguém que, empurrado<br />

violentamente ao desamparo, cata comida no lixo, ou<br />

papelão nas ruas para sobreviver penosamente.<br />

A criminalização dos movimentos populares é<br />

um aspecto orgânico da política de controle social do<br />

capitalismo para garantir sua reprodução e ampliação.<br />

Articula planos diversos que vão desde a criminalização<br />

da pobreza e judicialização do protesto social<br />

até a repressão política aberta e a militarização.<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


A chamada “globalização” elevou a “guerra<br />

dos ricos contra os pobres” a uma dimensão mundial.<br />

Se os governos imperialistas, em nome da<br />

“democracia”, da “liberdade”, do “desenvolvimento”<br />

e do “progresso” invadiram e destruíram países e<br />

civilizações, promoveram a fragmentação dos Estados<br />

que se negavam a agir de maneira subordinada<br />

a seus interesses, assassinaram presidentes<br />

e colocaram numa lista de “criminosos” líderes populares<br />

como integrantes do “Eixo do Mal” (num<br />

discurso fundamentalista que tange o fascismo),<br />

isto, no âmbito local, se traduz na perseguição aos<br />

movimentos de defesa dos bens da natureza, dos<br />

direitos sociais, humanos, políticos.<br />

Como conseqüência das políticas de exclusão<br />

social e de precarização de todos os planos da vida,<br />

se produzem novos fenômenos nas relações sociais.<br />

O medo “do outro” é um dos dados significativos “organizadores”<br />

dessas relações de desigualdade, desconfiança<br />

e diluição das solidariedades. A fragmentação<br />

social funciona como estímulo desses medos.<br />

Os novos “desaparecidos sociais” configuram uma<br />

“fantasmática” aterrorizante, num corpo social várias<br />

vezes ferido e vulnerabilizado pelas contínuas<br />

perdas materiais e simbólicas.<br />

A exclusão social faz com que se busque satis<strong>fazer</strong><br />

as carências de modo imediato para garantir<br />

a sobrevivência, tanto em termos individuais como<br />

coletivos, gerando, no imaginário construído a partir<br />

da hegemonia cultural, a identificação das zonas de<br />

pobreza com territórios de crime. Essas noções, que<br />

estimulam respostas conservadoras, são alimentadas<br />

pelos grandes meios de comunicação, que ativam<br />

deliberadamente os mecanismos de terror para<br />

levantar as exigências de “segurança”, que significam,<br />

em última instância, garantias para os direitos<br />

do capital. A ruptura de identidades leva a entender<br />

a pobreza, a marginalidade, a miséria do outro como<br />

ameaça e a carregar esses sentimentos de conteúdo<br />

racista, xenófobo, violento, repressivo e autoritário.<br />

Esses mecanismos de alienação social são reforçados<br />

pela perda de sentido e despolitização da luta social,<br />

o que favorece que a mesma ingresse no índice da<br />

criminalização como “causa penal”.<br />

Os meios de comunicação cumprem um papel<br />

central na construção de uma subjetividade<br />

alienada. O discurso midiático se reforça a partir<br />

de políticas públicas que fragmentam o campo social<br />

e também territorial, com propostas diferenciadas<br />

de educação, saúde, habitação, construindo<br />

realidades geográficas que acentuam a distância<br />

entre incluíd@s e excluíd@s, inclusive no interior<br />

dos setores populares. Muitas universidades, centros<br />

de pesquisa, fundações e espaços de produção<br />

intelectual que respondem às agendas de interesses<br />

definidas pelo Banco Mundial e pelos grandes<br />

centros de poder produzem um amplo espectro de<br />

interpretações que tendem à dissociação de saberes,<br />

a uma funcionalidade que condiga com os interesses<br />

do poder mundial, à apropriação dos saberes<br />

populares e à assimilação até mesmo dos discursos<br />

progressistas para fundamentar propostas de desarticulação<br />

das possíveis alternativas populares.<br />

Uma medida essencial para reforçar a dominação<br />

é a criação de dispositivos de controle da pobreza.<br />

Esteban Rodríguez² escreve:<br />

“Neste contexto, caracterizado pela irrupção<br />

da exclusão, o Estado redefiniu sua intervenção. O<br />

Estado continuará intervindo, ainda que não seja no<br />

sentido da integração social. Sua intervenção será<br />

excludente. Se intervém para assegurar essa capacidade<br />

de excluir, ou para manter a exclusão, ou, o<br />

que dá no mesmo, para evitar a irrupção, a intervenção<br />

estatal torna-se desruptiva. A desrupção é a for-<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 11


ma que o controle social assume quando se trata de<br />

manter a exclusão, quando o inviável se torna insustentável<br />

e, portanto, já não cabe mais qualquer inclusão.<br />

Essas tecnologias de controle têm a ver com:<br />

a) as agências políticas que, sobre a base do clientelismo,<br />

organizam a cooptação; b) as agências sociais<br />

que, baseadas na cooptação, organizam o assistencialismo;<br />

c) as agências repressivas, que articulam<br />

diferentes práticas (gatilho fácil, antitumulto, esquadrões<br />

da morte), que são formas de administrar<br />

o crime e o ascenso das mobilizações sociais; e d) as<br />

agências judiciais, que organizam a criminalização<br />

da pobreza e, logo, a criminalização do protesto. (...)<br />

Quando as multidões irrompem, é preciso intervir<br />

e a intervenção será brutal, ainda que focalizada,<br />

e contundente, ainda que imperceptível, se a multidão<br />

não se resignar. Da “doutrina de segurança<br />

nacional”, passamos à “tolerância zero” , da mesma<br />

maneira que a “mão invisível” se torna “mão dura”.<br />

Uma mão que se torna um punho fechado, mas fica<br />

invisível, intermitente, difusa e errante. Por isso não<br />

se consegue percebê-la como tal. O terror do qual falamos<br />

é um terror espectral, que já não tem base<br />

real num ponto determinado, numa instituição, mas<br />

se dissemina em diferentes práticas que organizam<br />

e administram a desrupção. Esse será o terrorismo<br />

de Estado nesta nova época marcada pela crise de<br />

representação: um punho sem braço”.<br />

Algumas das modalidades da criminalização<br />

da pobreza são o gatilho fácil, o aniquilamento das<br />

populações pobres, a discriminação no sistema penal<br />

e a militarização de determinados bairros ou<br />

regiões. Todos atuam como dispositivos de disciplinamento,<br />

sem outros critérios além do castigo<br />

à miséria e a violência constante como única face<br />

da lei. Geram-se verdadeiros assaltos à população<br />

mais vulnerável, que buscam estabelecer a ordem<br />

12<br />

armada diante dos mais fracos.<br />

As organizações feministas vêm denunciando<br />

diversas modalidades de criminalização das mulheres<br />

pobres. Elas são capturadas pelas redes de prostituição,<br />

perseguidas por legislações que reprimem<br />

as vítimas enquanto protegem os chefes do tráfico,<br />

vítimas de assassinatos, em grande parte relacionados<br />

a essas redes de tráfico de mulheres. Também a<br />

proibição do aborto é uma forma de criminalizar as<br />

mulheres pobres e controlar seus corpos.<br />

Há um fio contínuo entre as políticas de criminalização<br />

da pobreza, a judicialização do protesto social<br />

e a criminalização dos movimentos sociais. O enquadramento<br />

d@s excluíd@s como ameaça e de suas<br />

ações como delitos interfere na representação simbólica<br />

que considerava o lutador social um militante<br />

solidário, justiceiro. Hoje, os que lutam são apresentados<br />

como delinqüentes, e sua prisão é propagada<br />

como castigo exemplificador.<br />

A partir dos meios de comunicação e de vozes<br />

oficiais do poder, se produz uma forte desqualificação<br />

do protesto social, o que promove sua ilegitimidade<br />

social. O resultado é outro mecanismo<br />

fundamental, a mudança das figuras penais empregadas<br />

nos processos dos militantes, utilizada<br />

pelo sistema judicial para evitar as libertações.<br />

Assim, o castigo se produz já no próprio processo.<br />

O trânsito pelas torturas nas delegacias e nas<br />

cadeias faz parte do dispositivo de criminalização<br />

da manifestação política e se tornou uma enorme<br />

pressão sobre as organizações sociais.<br />

A criminalização dos movimentos populares<br />

se exprime, então, em políticas como o avanço do<br />

processo de judicialização dos conflitos, visível na<br />

multiplicação e agravamento das figuras penais,<br />

na maneira como elas são aplicadas por juízes e<br />

afins, no número de processos contra militantes po-<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


pulares, na estigmatização das populações e grupos<br />

mobilizados, no incremento das forças repressivas<br />

e na criação de tropas de elite especiais, orientadas<br />

para a repressão e militarização das zonas de<br />

conflito. Por todos esses caminhos, os problemas<br />

sociais e políticos tornam-se processos penais, nos<br />

quais o povo não tem mecanismo de intervenção, a<br />

não ser como espectador ou como réu. De possíveis<br />

atores sociais, os sujeitos em conflito se reduzem a<br />

excluídos, vítimas ou criminosos em potencial.<br />

No plano continental, a Colômbia é o país<br />

que funciona como laboratório privilegiado para os<br />

experimentos repressivos contra as organizações<br />

populares. Utilizando-se sempre do mesmo argumento<br />

– sua hipotética vinculação às guerrilhas –,<br />

se estabelece um regime ditatorial com aparência de<br />

“democracia representativa” e justifica-se a liquidação<br />

completa de organizações, a prisão de seus dirigentes<br />

e de seus militantes, assim como de comunidades<br />

inteiras. Entretanto, é preciso advertir que<br />

os repressores – polícias, militares, juízes, legisladores,<br />

jornalistas, políticos – hoje estão “assessorando”<br />

seus pares em vários países da América Latina.<br />

Torna-se alarmante o processo de criminalização do<br />

movimento popular no México, Peru, Haiti – sob comando<br />

da MINUSTAH –, mas também os ensaios de<br />

criminalização do Movimento Sem Terra do Brasil,<br />

no Rio Grande do Sul, a judicialização do movimento<br />

campesino do Paraguai (a Justiça continuando sob<br />

controle do Partido Colorado)³ e a perseguição e extermínio<br />

do povo mapuche no Chile.<br />

Destacando-se essas situações, vale chamar<br />

a atenção para o fato de que as modalidades descritas<br />

não são a “exceção”, mas as formas mais<br />

agudas dos mecanismos de repressão que se utilizam<br />

em praticamente todos os países da América<br />

Latina. Esses mecanismos são amparados por Leis<br />

Antiterroristas - que parecem mais uma cópia que<br />

vai passando de um país a outro, e são executadas<br />

por forças repressivas que estudam os mesmos manuais<br />

e trabalham conjuntamente sob o comando<br />

norte-americano, ou em experiências humanistas<br />

de invasão de países, como é o caso do Haiti.<br />

Talvez seja uma necessidade e uma urgência<br />

dos movimentos populares do continente reativar<br />

os mecanismos de solidariedade internacionalista,<br />

promovendo uma forte campanha de denúncia da<br />

criminalização dos movimentos sociais, de luta pela<br />

retirada de processos contra @s militantes sociais<br />

judicializad@s, pela libertação dos presos e presas<br />

polític@s e pela legitimidade de defender todos e<br />

cada um dos direitos humanos, incluindo o direito<br />

à rebelião frente a todas as opressões.<br />

Notas:<br />

Tradução do original em espanhol<br />

de Juliana Caetano<br />

¹ A maioria das opiniões que se apresentam neste artigo é a síntese<br />

pessoal de uma investigação coletiva, realizada para o seminário<br />

“Criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na América<br />

Latina” – realizado pelo Instituto Rosa Luxemburgo e pela Rede Social<br />

de Direitos Humanos do Brasil, entre os dias 18 e 20 de junho, na<br />

Escola Nacional Florestan Fernandes, com participantes da Argentina,<br />

Chile, México, Paraguai, Brasil e Alemanha.<br />

² RODRÍGUEZ, Esteban. “Un puño sin brazo. ¿Seguridad ciudadana<br />

o criminalización de la multitud?” In: H.I.J.O.S. La Plata, La criminalización<br />

de la protesta social, Ediciones Grupo La Grieta, La Plata,<br />

Argentina: novembro de 2003.<br />

³ Neste caso, os mecanismos de repressão também funcionam combinados.<br />

Seis campesinos paraguaios estão presos injustamente há<br />

dois anos na Argentina. O governo “dos direitos humanos” é um dos<br />

que mais fez presos políticos desde a “recuperação da democracia”.<br />

Quando escrevo este artigo, os presos paraguaios na Argentina completam<br />

50 dias de greve de fome, pedindo por asilo político no país.<br />

Mas também há presos campesinos, lutadores chilenos, peruanos,<br />

trabalhadores petroleiros, em diferentes cárceres argentinos.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 13


Pública, Gratuíta e de Qualidade<br />

DESVIO DO CARÁTER DA UNIVERSIDADE:<br />

administração mercantil fere a<br />

democracia e deturpa essência<br />

da instituição<br />

Luiz henrique Schuch<br />

Professor da UFPEL<br />

Surpreendentemente, apesar de ter-se desenvolvido<br />

sob as asas de um Estado tipicamente<br />

patrimonialista, a jovem universidade brasileira,<br />

forjada há menos de um século, produziu,<br />

a partir do seu interior, considerável consciência<br />

da função eminentemente pública que deve<br />

desempenhar. Nisto, aproximou-se da trajetória<br />

que já vinha sendo traçada há mais tempo em<br />

outros países latino-americanos e das melhores<br />

tradições do pensamento humanista.<br />

Segundo o sociólogo Francisco de Oliveira,<br />

em palestra proferida na abertura do 6º Conselho<br />

Extraordinário do ANDES-SN - CONAD,<br />

realizado em Brasília, no mês de agosto de<br />

2005, o surgimento desta consciência procedeu-se<br />

quase como um milagre e significa um<br />

escândalo aos olhos da elite político-econômica<br />

brasileira, ainda tão condicionada a uma<br />

relação do tipo colonial frente aos interesses e<br />

modelos impostos de fora.<br />

14<br />

Por isso, não é casual surgirem em todos os<br />

períodos históricos abertos à expansão do ensino<br />

superior brasileiro avaliações produzidas alhures<br />

- imediatamente repetidas por membros da burocracia<br />

nacional - que localizam a raiz das mazelas<br />

das universidades públicas no seu descompasso<br />

em relação às conveniências empresarias.<br />

Tanto na década de 60, sob a vigência do<br />

acordo MEC/USAID, como na década de 90,<br />

nos documentos vindos dos grupos de economistas<br />

de Chicago e do Banco Mundial, foram<br />

formuladas engenhosas construções retóricas<br />

para justificar que “os muros das universidades<br />

deveriam ser derrubados” não para responder<br />

às indagações do povo brasileiro nem<br />

para ajudar a resolver os seus problemas fundamentais,<br />

mas como disfarce da intenção de<br />

conquistar o seu atrelamento instrumental<br />

aos interesses estratégicos dos negócios.<br />

Recentemente, a mesma coisa volta a se<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


epetir, agora com outras artimanhas, em decorrência<br />

do processo de internacionalização<br />

do chamado setor de serviços, transformado na<br />

“bola da vez” da expansão das possibilidades de<br />

lucro fácil mundo afora. A partir dele, são determinados<br />

novos contornos na distribuição internacional<br />

do trabalho e a sua conseqüência: novas<br />

exigências impostas aos sistemas nacionais<br />

de ensino, reservando, mais uma vez, posição<br />

subalterna a países como o Brasil.<br />

As políticas educacionais preponderantes<br />

nesses períodos resultaram em perda de<br />

qualidade social do ensino superior, em precarização<br />

do trabalho docente, em ampliação<br />

fotos: Stela Guedes Caputo<br />

Anúncios de cursos pagos estão espalhadas pela UFF. Na foto, faixas no campus do Valonguinho (note o erro de concordância na primeira delas).<br />

O primeiro custa 18 prestações de R$ 950,00 e o segundo, 18 de R$ 190,00..<br />

do setor privado e ampliação da privatização<br />

por dentro do setor público, apesar de todas<br />

as lutas desenvolvidas pela comunidade universitária.<br />

A privatização por dentro do setor<br />

público sempre esteve associada à tentativa de<br />

transferir a pesquisa e a educação do âmbito<br />

da esfera pública para o regime fundacional.<br />

Na década de 60, a via empreendida foi o registro<br />

das próprias universidades públicas com o<br />

estatuto de fundações. Mas, como os dois regimes,<br />

autárquico e fundacional, foram praticamente<br />

igualados pela Constituição de 88, a<br />

privatização por dentro das instituições passou<br />

a trilhar uma via paralela: a transferência de<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 15


atividades e funções das universidades para<br />

fundações inteiramente privadas, chamadas<br />

eufemisticamente de fundações de apoio.<br />

Não existe, por maiores que sejam as demandas<br />

acadêmicas, nenhum argumento capaz<br />

de legitimar a necessidade de fundações<br />

privadas em uma universidade pública. Criadas<br />

com o pretexto de contornar dificuldades<br />

de natureza administrativa e entraves legais,<br />

acabaram por gerar enormes distorções nas<br />

atividades de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas<br />

na universidade, submetendo-a à<br />

lógica do mercado. Lógica essa da qual derivam<br />

prioridades incompatíveis com a atividade<br />

acadêmica crítica e socialmente referenciada,<br />

que é a essência da universidade pública.<br />

Diante do descaso dos governos com o financiamento<br />

das universidades públicas e das<br />

dificuldades administrativas, os burocratas têm<br />

incentivado e tirado proveito da fuga pela via<br />

paralela, privatizante e ilegal, pelo desvio de<br />

caráter acadêmico imprimido pelas fundações.<br />

No sentido inverso, o equacionamento daquelas<br />

dificuldades só terá sucesso com o fortalecimento<br />

do caráter público da universidade, da sua<br />

autonomia e da sua democracia, pois é esta a<br />

16<br />

“Investimento”: 15 parcelas de R$ 450,00, num total de R$ 6.750,00.<br />

razão que lhe tem garantido sustentação<br />

social desde quando e<br />

onde existem universidades como<br />

as que conhecemos.<br />

Desvio de caráter, no caso,<br />

não se refere ao componente moral,<br />

mas às características essenciais<br />

da instituição universitária,<br />

em particular aquelas que justificam<br />

o atributo da autonomia.<br />

Pelo menos dois pólos externos vêm<br />

atuando no sentido de tirar proveito particular<br />

do patrimônio social representado pelas<br />

universidades públicas. Por um lado, governantes<br />

tentam reduzi-las a meras repartições,<br />

obrigadas a cumprir caprichos e acordos<br />

imediatistas muitas vezes condicionados aos<br />

períodos de governo e aos interesses eleitorais.<br />

Por outro, setores econômicos operam a<br />

des-instituição do espaço público destinado à<br />

produção de conhecimento para transformálo<br />

em mais um campo dos seus empreendimentos.<br />

Ambos incorporam em suas táticas<br />

a transferência de funções das universidades<br />

públicas para as fundações privadas. Somente<br />

a existência desses interesses externos é<br />

capaz de explicar o acobertamento das afrontas<br />

à Constituição e a neutralização dos efeitos<br />

de tantas condenações dos Tribunais de<br />

Contas, apontamentos de irregularidades<br />

das controladorias, denúncias do Ministério<br />

Público e das comunidades universitárias.<br />

As fundações privadas ditas de apoio nada<br />

mais são do que entes privados intermediando<br />

a relação financeira entre órgãos públicos, evadindo-se<br />

dos controles e imprimindo, a partir<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


dessa interposição, o interesse subjetivo, particular,<br />

nas decisões que, nesse caso, deveriam<br />

ser da esfera pública. Ferem, estruturalmente,<br />

o princípio da legalidade, que é uma das diretrizes<br />

básicas na conduta dos agentes públicos. Tal<br />

princípio tem origem histórica próxima à criação<br />

do Estado de Direito, consagrado por séculos de<br />

evolução política, e é uma das cláusulas fundamentais<br />

da Constituição brasileira. A lição dos<br />

juristas Ely Lopes Meirelles e José dos Santos<br />

Carvalho Filho é sintética e suficiente a respeito<br />

do tema: “Na administração pública, não há<br />

liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na<br />

administração particular é lícito <strong>fazer</strong> tudo o<br />

que a lei não proíbe”. Além disso, a moralidade<br />

administrativa, que ultrapassa o princípio da<br />

legalidade, segundo os mesmos autores “não é<br />

meramente subjetiva, porque não é puramente<br />

formal, porque tem conteúdo jurídico a partir de<br />

regras e princípios da Administração”, distinguindo-se<br />

também da esfera do que é privado.<br />

Como seria possível, então, de boa fé,<br />

imaginar que a melhoria da regulamentação,<br />

ou o aperfeiçoamento de sistemas de controle,<br />

garantiriam resultados positivos ante a<br />

promiscuidade parasitária<br />

entre a<br />

esfera pública e a<br />

privada, estruturalmente<br />

operada<br />

entre as universidades<br />

públicas<br />

e as fundações<br />

privadas ditas<br />

de apoio? Na<br />

prática, a soma<br />

de umas poucas vontades e interesses pessoais<br />

decide, discretamente, mas com grande<br />

poder, as operações desenvolvidas pelas<br />

fundações privadas, apesar de atuarem com<br />

recursos públicos e no espaço que deveria<br />

ser público. O que se identifica, claramente,<br />

nas tentativas de estabelecer pontes administrativas<br />

entre as fundações privadas e as<br />

universidades públicas, além da ilegalidade,<br />

é que estas servem muito mais para que os<br />

interesses privados nelas organizados controlem<br />

as universidades por meio do poder<br />

econômico do que para o estabelecimento de<br />

tutela pública sobre as fundações.<br />

Somente para citar alguns dos casos que<br />

mais repercutiram na imprensa, note-se que<br />

meses antes de sair algemado durante a operação<br />

RODAN da polícia federal, juntamente<br />

com outros dirigentes universitários, um<br />

dos conselheiros que também era dirigente<br />

da fundação privada de apoio levou “embaixo<br />

do braço”, para relatar na reunião do Conselho<br />

Universitário da Universidade Federal de<br />

Santa Maria, o processo que deveria chancelar<br />

as contas da FATEC.<br />

“Investimento”: 12 parcelas de R$ 600,00.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 17


Vários conselheiros protestaram denunciando<br />

evidente conflito de interesses, mas as contas<br />

acabaram sendo aprovadas, assim mesmo,<br />

em uma reunião subseqüente.<br />

A crise que levou à exoneração do reitor<br />

da UNB, cujo emblema foi a lixeira adquirida<br />

pela FINATEC, já exaustivamente debatida e<br />

denunciada, revelou de forma maiúscula não<br />

só até onde pode chegar o arbítrio subjetivo<br />

na aplicação do dinheiro público quando gerido<br />

na lógica de uma instituição privada, mas<br />

também como, em pouco tempo, consolidouse<br />

uma cunha de poder a partir da fundação<br />

a controlar o funcionamento da instituição<br />

pública que deveria ser apoiada. O rodízio<br />

estabelecido nos cargos de mando financeiro<br />

da universidade e da fundação, nos últimos<br />

quinze anos, de um núcleo de poucos nomes,<br />

e o controle que passaram a exercer, estabeleceu<br />

uma situação na qual dificilmente alguém<br />

chegaria ao cargo de reitor sem o beneplácito<br />

desse núcleo, mesmo que processos eleitorais<br />

viessem a ser promovidos.<br />

Uma lição importante recolhida da experiência<br />

recente é a relação entre nível de promiscuidade<br />

da rés-pública com organismos privados<br />

patrocinado por determinadas reitorias<br />

na administração das universidades e nível de<br />

autoritarismo no exercício dos seus mandatos.<br />

Ao crescimento das denúncias, ao vazamento de<br />

evidências das falcatruas com dinheiro público,<br />

aos sinais de manipulação dos órgãos superiores<br />

das universidades, os gabinetes se fecham<br />

em comportamento despótico e passam a criminalizar<br />

o simples direito de divergir, reprimido<br />

com violência, como se divergir fosse elemento<br />

18<br />

estranho ao ambiente acadêmico. Percebe-se<br />

uma perniciosa e crescente mudança de sentido<br />

no exercício do poder institucional, praticado<br />

cada vez mais ostensivamente de cima para baixo<br />

e relegando tarefa apenas homologatória aos<br />

conselhos e colegiados.<br />

Muitos anos de denúncias emanadas do<br />

movimento docente, dos estudantes e dos funcionários<br />

não sensibilizaram o reitor, fechado<br />

em sua cidadela que parecia inexpugnável, na<br />

Universidade Federal de São Paulo, a antiga<br />

Paulista de Medicina, até que as ilegalidades<br />

apontadas pelos órgãos de fiscalização, a maioria<br />

vinculadas às fundações privadas, foram<br />

publicadas com destaque em jornais de grande<br />

circulação nacional. Aquele que até a véspera<br />

usava mão-de-ferro para reprimir quem não lhe<br />

atendesse as conveniências foi forçado a pedir<br />

demissão, juntamente com todo o gabinete, e<br />

responde a vários processos.<br />

Os exemplos generalizam-se de norte a<br />

sul do país. Citá-los restringe-se simplesmente<br />

à necessidade de destacar algum aspecto<br />

específico, pois parece que a única diferença é<br />

o momento em que as máculas vieram ou virão<br />

a público, quanto à perniciosa relação das<br />

universidades públicas com as suas fundações<br />

privadas ditas de apoio. O quadro é nítido e<br />

desfaz, por si, qualquer possibilidade de buscar<br />

aperfeiçoamentos daquela relação gerada como<br />

uma aberração incorrigível. Caberá às próprias<br />

universidades públicas, em primeiro lugar, reacender<br />

a força de sua mobilização interna e,<br />

em decorrência disso, pressionando as administrações,<br />

retomar o papel que paulatinamente foi<br />

delegado às fundações privadas.<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Fotos: Divulgação<br />

“Na trincheira da música nossa<br />

principal luta é contra o Jabá”<br />

Entrevista: B Negão<br />

Por Stela Guedes Caputo<br />

Bernardo Ferreira Gomes dos Santos, conhecido<br />

como BNegão, é um dos rappers mais<br />

respeitados, mas desses que não tocam nas<br />

rádios e nem freqüentam o “Domingão do<br />

Faustão”. Ex- vocalista do “Planet Hemp”<br />

e “Funk Fuckers”, hoje ele experimenta a<br />

carreira solo com a indescritível banda “Os Seletores<br />

de Freqüência”. Seu CD “Enxugando Gelo”<br />

foi considerado um dos melhores de 2003 e vencedor<br />

do prêmio Dynamite (o maior da música<br />

independente no Brasil), como melhor disco de<br />

Rap/Black Music, o que rendeu duas turnês pela<br />

Europa. Militante da luta pela produção independente,<br />

foi também um dos pioneiros<br />

no Brasil a liberar suas músicas para <strong>download</strong><br />

na Internet. Prejuízo? Nenhum. O álbum continua<br />

sendo um dos 20 mais vendidos pela distribuidora<br />

Tratore e é justamente graças ao MP3<br />

que seus fãs não param de crescer, inclusive na<br />

Europa. Rock, Hip-Hop, funk, jazz, os estilos são<br />

muitos, assim como são muitas as suas bandeiras<br />

de luta, que vão da liberação da maconha ao<br />

movimento Jabasta, contra os jabás, um tipo de<br />

arrego que os músicos precisam pagar se quiserem<br />

tocar nas rádios. Para Bnegão, que lançou<br />

este ano o CD “Turbo Trio”, suas músicas posicionadas<br />

são “mensagens que joga na garrafa”,<br />

seu jeito de “seguir incomodando”.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 19


Classe - Como foi acontecendo<br />

o interesse por<br />

música?<br />

BNegão – Sempre gostei de<br />

música. Primeiro música de<br />

rádio, normal. Depois, ouvia<br />

alguns discos do meu pai (Martinho<br />

da Vila Chico Buarque...).<br />

Ouvia Kiss(!), depois Michael Jackson<br />

e, em 82, veio o Rap... daí<br />

lascou.... Em 1987, junto com os<br />

primeiros lançamentos de<br />

rap nacional (Cultura de<br />

Rua, Racionais ...), eu comecei<br />

a ouvir muito punk<br />

rock (Inocentes, Cólera,<br />

Ratos de Porão, Garotos Podres, Olho Seco...), via<br />

Rádio Fluminense FM e Circo Voador.<br />

Classe - Tinha gente na família que tocava?<br />

BNegão – Eu tinha um tio que tocava, mas era<br />

considerado a “ovelha negra” da família. Ele<br />

tinha sido o primeiro cara a se separar que eu<br />

vi na vida, desde que o divórcio foi aprovado<br />

como lei (isso foi apenas em 1977,acreditem!!).<br />

Era meu tio Meirelles. Ele sumiu de tudo e<br />

todos por décadas, vendeu o sax, largou a música,<br />

virou semi-mendigo por muito tempo...<br />

Depois, eu já era fã dele há milênios, mas não<br />

ligava o meu tio (que sabia que tinha sido um<br />

maestro importante, por alto e que eu só conheci<br />

quando era criança), ao grande maestro<br />

J.T. Meirelles, que fez os arranjos e tocou sax<br />

e flauta nos cinco primeiros e clássicos discos<br />

do Jorge Ben (aquele sax de “Mas Que Nada”<br />

é composição dele, tocada por ele, naquela<br />

20<br />

clássica gravação que ele mesmo produziu e<br />

arranjou...). Ele comandou a lendária banda<br />

Copa 5, que teve, entre seus componentes, músicos<br />

lendários como Edison Machado, Eumir<br />

Deudato, Dom Um Romão e Roberto Menescal,<br />

entre outros. No final dos anos 90, ele foi resgatado<br />

e voltou com força total. Tocamos juntos<br />

em São Paulo e ele ficou fã dos “Seletores”,<br />

o que para mim foi a maior honra que eu já<br />

tive musicalmente em toda a minha vida.<br />

Classe: Você divulga a cultura livre, a generosidade<br />

intelectual e a publicação aberta.<br />

Poderia falar um pouco sobre isso?<br />

BNegão – Não quero que as coisas que eu produzo,<br />

que normalmente freqüentam o meio alternativo,<br />

e que contêm elementos que considero<br />

de mudança (mínima que seja) fiquem restritas<br />

aos que conseguem comprar ou achar. Quero<br />

que o maior número de pessoas tenha acesso ao<br />

que faço. Quando comecei tudo isso nem sabia<br />

dessas nomenclaturas. Fiz porque senti e sinto<br />

necessidade de fazê-lo. Respeito quem pensa<br />

por outros caminhos. Cada um dá o destino que<br />

quiser à sua obra, à sua produção, mas o meu<br />

caminho é esse. Mesmo que um dia eu lance<br />

algo por algum selo/editora/gravadora que vete<br />

essa postura, ficarei muito feliz quando vir que<br />

alguém publicou meus textos ou minhas músicas<br />

na net para acesso gratuito.<br />

Classe – Por isso você disponibiliza seus<br />

CD´s na internet?<br />

BNegão – Para facilitar o acesso. E também<br />

porque, na época, estava tendo a primeira campanha<br />

mais forte contra o <strong>download</strong> no mundo,<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


criminalizando esse ato de forma absurda. Os<br />

caras do “Metallica” encampando essa insanidade,<br />

perseguindo e mandando prender moleques<br />

de 15, 17 anos, as gravadoras querendo<br />

dizer que o Napster era o Bin Laden da net, e por<br />

aí vai. Achei que precisava dar a minha opinião<br />

e me posicionar politicamente sobre isso.<br />

Classe – Isso ajuda a desconstruir a versão<br />

de que a pirataria prejudica o artista?<br />

Na verdade, quem perde e quem ganha<br />

com a pirataria?<br />

BNegão – Os grandes vendedores de discos, os<br />

que estão ali pelo jabá, realmente perdem. Os que<br />

são grandes vendedores pela qualidade, às vezes,<br />

não perdem. É só ver o caso do Radiohead, do AC/<br />

DC e tantos outros. É importante diferenciar cultura<br />

livre e <strong>download</strong> gratuito de pirataria. Tem<br />

gente que junta tudo no mesmo saco. Quem ganha<br />

com a pirataria são os chineses (hahahaha) e os<br />

consumidores de baixa renda, já que estes podem<br />

ter acesso à cultura por um preço acessível.<br />

Classe - Você é um militante na música.<br />

Quais as principais lutas que devem ser<br />

travadas hoje nessa trincheira?<br />

BNegão – Na trincheira da música nossa principal<br />

luta é contra o Jabá, que nega o acesso da<br />

cultura brasileira aos meios de comunicação,<br />

em especial às rádios, que, nos seus contratos<br />

de concessão, têm a OBRIGAÇÃO de divulgar<br />

a cultura brasileira. Isso move todo o resto. Outra<br />

coisa importante é a questão da Ordem dos<br />

Músicos do Brasil (OMB), que é uma entidade<br />

fundada na Ditadura Militar e mantém várias<br />

pessoas ali,desde aquela época. Sua existência<br />

não faz sentido. Ainda mais, cobrando taxas<br />

dos músicos que já têm um trabalho suado para<br />

sobreviver nessa profissão e não proporcionando<br />

a estes nenhum benefício.<br />

Classe - Quem são os verdadeiros piratas<br />

criminosos? Os camelôs que vendem as cópias<br />

dos CD´s ou os empresários das rádios<br />

que pirateiam o espaço da concessão pública?<br />

BNegão – Opção número 2 ...<br />

Classe – Por que música é uma arte tão<br />

cara no Brasil? O processo todo, eu quero<br />

dizer, desde <strong>fazer</strong> um CD e comercializar<br />

esse CD e botar esse CD nas rádios.<br />

Por que isso é tão caro?<br />

BNegão – Não precisava ser tão caro. Nestes<br />

CD´s de grandes gravadoras que chegam a ser<br />

vendidos a R$30,00 (ou mais),<br />

está embutido o preço milionário<br />

que eles têm de pagar de<br />

JABÁ, o cartão de crédito<br />

dos diretores de gravadora<br />

e por aí vai... Essa crise<br />

do mercado fonográfico<br />

foi criada pelas<br />

próprias gravadoras,<br />

as grandes gravadoras,<br />

por uma série de<br />

atitudes bizarras ao<br />

longo de décadas, em<br />

todo o mundo. As gravadoras<br />

atiraram tanto que acertaram<br />

o próprio pé.<br />

Classe – Como você pode-<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 21


ia analisar o seu próprio processo de consciência<br />

política dentro da música? Ou seja,<br />

como eram as músicas que você fazia quando<br />

começou a compor e como elas são hoje?<br />

Como a sua visão de mundo mudou e, conseqüentemente,<br />

a música que você fez e faz?<br />

BNegão – Meu pai teve papel ativo na resistência<br />

contra a Ditadura, então, aqui em casa,<br />

o assunto “política” sempre foi muito discutido.<br />

Ele sempre conversou muito conosco sobre<br />

tudo isso. Eu comecei a <strong>fazer</strong> músicas próprias<br />

(fora versões que eu fazia quando era criança)<br />

por causa do punk, aos 16 anos. Arrumei uma<br />

guitarra (bem ruim) e fazia (e gritava) letras<br />

sobre polícia, política, o Brasil e o mundo.<br />

Hoje, logicamente, escrevo mais profundamente<br />

sobre as coisas que acho importantes: o ser<br />

humano, a situação do mundo, nosso momento<br />

atual no Estado, no país e no planeta.Uma<br />

mudança enorme: antes eu escrevia “vocês,<br />

você, eles fazem...”, e agora eu escrevo “nós fazemos...”...<br />

muda bastante o ponto de vista.<br />

Classe – Você mistura funk, rap, rock... isso<br />

cria uma outra música? Qual o seu estilo<br />

hoje?<br />

BNegão – Música Negra Universal<br />

Classe – Existe a seguinte polêmica quando<br />

se fala de você e do D2: que o D2, por<br />

estar na mídia, teria se vendido e você,<br />

por continuar independente, por não tocar<br />

nas rádios... não se vendeu. Todo artista<br />

que está na mídia se vendeu? E o<br />

destino de quem não está... seria se vender<br />

para tocar?<br />

22<br />

BNegão – Tem de tudo. Eu tenho uma treta<br />

com o Marcelo por atitudes dele como pessoa,<br />

não por coisas como essas. Porque, se for por<br />

isso, o “Planet” era de uma grande gravadora,<br />

e, mesmo sendo uma banda única e disseminando<br />

várias idéias libertárias, estava inserido<br />

dentro desse esquema. Claro que o Marcelo<br />

pisou no acelerador na carreira solo dele. Fez<br />

coisa que, antes, recusávamos <strong>fazer</strong>. Há casos<br />

e casos. Esse tipo de discussão tem mais a ver<br />

com o público do “Planet” - que se sentiu enganado<br />

por coisas que o Marcelo dizia e depois<br />

fez o oposto - do que comigo, em relação a ele.<br />

Classe: Eu pego um funk seu como a “Dança<br />

do Patinho” e outros funks onde mulheres<br />

são chamadas de cadelas, mesmo em letras<br />

que asseguram estar criticando a discriminação<br />

da mulher... Então, como olhar o<br />

universo tão diverso do funk sem ser moralista<br />

e sem ser populista e demagógico?<br />

BNegão – A verdadeira “Dança do Patinho”<br />

não tem nada a ver com esse tipo de funk depreciativo<br />

da mulher... não tem literalmente nada<br />

a ver. Nenhuma vírgula em comum. Acho que<br />

no funk, assim como na maioria dos outros estilos<br />

musicais, tem música boa e música ruim.<br />

Classe – Muitas produções de periferias,<br />

como músicas e filmes, afirmam um desejo<br />

de “dar visibilidade” a seus produtores<br />

para que assim aconteça uma aproximação<br />

entre classes sociais distintas e se<br />

promova um diálogo. Essa é a função da<br />

arte de periferia ou esse poderia ser mais<br />

um refrão para a “Dança do Patinho”?<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


BNegão – Pois é... boa pergunta. Acho<br />

que arte da periferia, como qualquer outra arte,<br />

tem que ser encarada como expressão do que se<br />

vive, ou do que quer necessita ser dito. Tem gente<br />

que se interessa por isso porque realmente quer<br />

saber o que está acontecendo, quer saber o que<br />

essas pessoas pensam para tentar compreender<br />

ou intervir positivamente naquela situação. E<br />

tem outras pessoas que tratam a coisa como um<br />

zoológico, ou um filme de suspense/terror, com<br />

bastante adrenalina, onde podem ver, sentadas<br />

em suas cadeiras, protegidas, aquele universo<br />

tenebroso e saem do cinema ou desligam o som e<br />

seguem suas vidas sem uma mínima mudança<br />

de atitude. Tem outros tipos também, mas grosso<br />

modo, é assim. E, no meio de tudo isso, está<br />

quem precisa ser escutado...<br />

A Verdadeira<br />

dança do patinho<br />

Eles traçam e destraçam o seu caminho – É a dança – dança do patinho<br />

Eles mandam uma qualquer e tu leva fé direitinho – É a dança – dança do patinho<br />

DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA)<br />

Você que assina contrato sem ler<br />

Acha que a O.N.U. se importa com você<br />

Você que acredita no ouro nacional<br />

Chegou a sua hora isso é fenomenal<br />

Você que acredita no que falam na tv<br />

Dá seu dinheiro pro pastor pra <strong>fazer</strong> sua fé valer (eh, eh…)<br />

E pra você que acredita no velho azul-marinho, essa é sua dança<br />

DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!)<br />

Você que acredita na mega-sena, toto-bola, raspadinha e na garota de Ipanema<br />

Você que acredita nos caras pintadas, acredita que o Brasil<br />

vai tá ganhando com a ALCA<br />

Acreditou em inflação zero, no salário-desemprego<br />

Mas não viu que o governo tava botando no seu …<br />

Parabéns, você é perfeito, foi feito pra isso<br />

Pra dançar a dança, a verdadeira…<br />

DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!)<br />

Você que toma volta quando quer ficar ligado<br />

Acredita no bicho papão e no aumento de salário<br />

Você que paga seus impostos religiosamente, esperando algum<br />

dia uma aposentadoria decente<br />

Você que acredita em alguma punição pros que roubam<br />

e colocam no… da população<br />

E pra você que acredita que nunca foi lesado, cante comigo<br />

esse hino, esse é o meu recado:<br />

braço em forma de asa, alterna pé e faz biquinho tu entrou na dança<br />

DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!).<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008<br />

23


O tio Meirelles<br />

24<br />

Mencionado na entrevista por BNegão, o “tio Meirelles”<br />

é o saxofonista, arranjador e compositor João Theodoro<br />

Meirelles (mais conhecido como J.T Meirelles), um<br />

dos principais nomes do samba-jazz e falecido em junho<br />

deste ano. O músico iniciou sua carreira aos 17 anos e, aos<br />

23, fez alguns arranjos, entre eles o de “Mas que Nada”, o<br />

primeiro sucesso do então Jorge Ben e hoje Benjor, para o<br />

disco “Samba Esquema Novo”, de 1963.<br />

Graças à repercussão de “Mas que Nada” e “Chove,<br />

Chuva”, J.T pôde <strong>fazer</strong> seus próprios discos livre de<br />

pressões comerciais ou artísticas por parte de gravadoras.<br />

No mesmo ano, juntamente com Manuel Gusmão<br />

(baixo), Luiz Carlos Vinhas (piano), Dom Um Romão<br />

(bateria) e Pedro Paulo (baixo), formou o grupo instrumental<br />

chamado “Copa 5”, com o qual se apresentou no<br />

Bottle’s Bar do Beco das Garrafas (RJ), executando suas<br />

próprias composições.<br />

A partir de 1964, começou a trabalhar como instrumentista,<br />

maestro, arranjador e produtor musical da<br />

gravadora Odeon, onde permaneceu durante 11 anos.<br />

Apresentou-se, em 1966, no Festival de Jazz de Berlim<br />

(Alemanha), ao lado de Dom Salvador, Sérgio Barrozo,<br />

Rosinha de Valença e Edu Lobo, entre outros. Viveu<br />

durante três anos no exterior (França. Suécia e Monte<br />

Carlo), integrando várias orquestras, como a do maestro<br />

Aimée Barelli. Em 2005, lançou o CD “Esquema novo”<br />

Fonte: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira<br />

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Estação Terminal<br />

Espetáculo baseado no Cemitério dos Vivos<br />

e Diário do Hospício de Lima Barreto pode<br />

voltar ao Rio no início do próximo ano<br />

Por três vezes Lima Barreto foi interno num<br />

manicômio. Escritor, alcoólatra, negro, pobre, indignado.<br />

Escreveu um diário. Teve seus sonhos e<br />

desejos destruídos pelo sistema correcional. Seu<br />

diário revela sua experiência de reclusão. Dividese<br />

um homem em pedaços como em uma autopsia.<br />

A observação é por camadas. O mesmo e o outro.<br />

Por camadas também é a Velatura, obra da artista<br />

plástica Suzana Queiroga, que serve de suporte cenográfico<br />

para o espetáculo. Com a Velatura criada<br />

por Suzana podemos ver dentro, fora e através. Ao<br />

nos envolver em epidermes vermelhas, nos remetemos<br />

a outra velatura: nosso próprio corpo e seu<br />

interior, também vermelho. É quando sentimos que<br />

podemos ser/conter as pulsações da arte, músculo<br />

sensório e motor de vida.<br />

Estação Terminal, última criação da<br />

Companhia Ensaio Aberto, estreou no SPILL<br />

Festival/2007, em Londres. No Brasil, permaneceu<br />

seis meses em cartaz no Fórum de Ciência da<br />

UFRJ. Nesse fim de ano dá uma parada, mas logo<br />

recomeça a temporada podendo voltam ao Fórum,<br />

no início de 2009. Atriz, produtora e fundadora da<br />

Ensaio Aberto, Tuca Moraes (na foto) e Luiz Fernando<br />

Lobo, diretor artístico, perseguem a dialética<br />

em seu trabalho. “Esse espetáculo é uma síntese de<br />

uma longa pesquisa sobre o teatro épico. Fizemos<br />

esse texto no mesmo local na estréia da Companhia<br />

Ensaio Aberto há 17 anos. O espetáculo tinha 21 ato-<br />

res. Revisitá-lo agora foi um presente. Tivemos de<br />

desconstruir uma memória e criar um novo diálogo.<br />

Também foi muito importante como ele nasceu: um<br />

convite do diretor inglês Robert Pacitty para estrear<br />

um trabalho solo no Spill Festival, em Londres.<br />

Talvez a companhia que sempre trabalha com grandes<br />

elencos não tivesse ousado essa criação se não<br />

fosse pelo convite. O espetáculo foi nossa espinha<br />

dorsal em 2008”, conta Tuca, que adianta também<br />

o próximo projeto do grupo: “Sobre o Suicídio”, de<br />

Karl Marx, com estréia prevista para o SESC de<br />

Copacabana no primeiro semestre de 2009.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 25


Lima Barreto:<br />

um intelectual militante<br />

Magali Gouveia Engel<br />

Professora da UERJ-FFP<br />

Lima Barreto foi um dos maiores escritores<br />

brasileiros de todos os tempos. Não há quem,<br />

ao ler um de seus romances, contos ou crônicas,<br />

não se apaixone perdidamente pelas suas idéias<br />

ou, pelo menos, passe a respeitá-lo, mesmo discordando<br />

de suas posições. Falar dele é falar de<br />

militância, de coerência, de compromisso com a<br />

construção de uma sociedade melhor, sem discriminações,<br />

mais solidária e igualitária.<br />

Talvez não por acaso, Afonso Henriques de<br />

Lima Barreto veio ao mundo no dia 13 de maio<br />

de 1881, sete anos antes da promulgação da Lei<br />

Áurea que aboliu a escravidão no Brasil. Herdou<br />

da mãe, a professora primária Amália Augusta, a<br />

cor da pele mulata, que ele sempre fez questão de<br />

assumir, transformando sua literatura em instrumento<br />

de luta contra os preconceitos raciais, infelizmente<br />

ainda hoje presentes em nossa sociedade.<br />

Proprietária de um pequeno colégio, o Santa Rosa,<br />

nas Laranjeiras, alfabetizou o filho, mas deixou-o<br />

muito cedo, falecendo em 1887.<br />

Órfão de mãe, mais velho dos três irmãos,<br />

Lima Barreto construiria uma forte relação afetiva<br />

com o pai, o tipógrafo João Henriques. Aos sete<br />

anos, começou a freqüentar a Escola Pública e em<br />

março de 1891 foi matriculado como aluno interno<br />

do Liceu Popular Niteroiense. Cinco anos depois,<br />

26<br />

passou a estudar no curso<br />

anexo de preparatórios<br />

para a Escola Politécnica<br />

do Colégio Paula Freitas.<br />

Em março de 1897, ingressou<br />

naquela instituição<br />

de ensino superior.<br />

Seus estudos foram custeados<br />

por Afonso Celso,<br />

o Visconde de Ouro Preto,<br />

protetor da família.<br />

Em agosto de 1902,<br />

João Henriques não consegue<br />

encontrar uma diferença<br />

nas contas das Colônias<br />

de Alienados da Ilha do Governador,<br />

onde ocupava o cargo de<br />

escriturário, começando a temer que<br />

o acusassem de desvio de dinheiro público.<br />

Sofre neste momento sua primeira crise de<br />

alucinação/perseguição. No ano seguinte, com a<br />

abertura de inquérito para apurar irregularidades<br />

no Serviço de Assistência aos Alienados – do<br />

qual as colônias da Ilha do Governador faziam<br />

parte – o estado de saúde do pai de Lima Barreto<br />

agrava-se e ele acaba sendo aposentado.<br />

Nesta época, após ter sido sucessivamente<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


eprovado em Mecânica e vendo-se obrigado a assumir<br />

a responsabilidade pela sobrevivência da<br />

família, Lima Barreto abandona a Escola Politécnica<br />

e inscreve-se no concurso para amanuense<br />

na Diretoria do Expediente da Secretaria de<br />

Guerra, sendo aprovado em segundo lugar. Foi<br />

nomeado em 27 de outubro de 1903 e muda com<br />

o pai e os irmãos para a Rua Boa Vista, n. 76<br />

no subúrbio de Todos os Santos.<br />

O escritor teve importante colaboração na<br />

imprensa carioca, intensificada, sobretudo, depois<br />

de sua aposentadoria concedida em dezembro<br />

de 1918, quando então passou a sentir-se<br />

mais livre para emitir opiniões profundamente<br />

críticas em relação aos poderes e autoridades<br />

públicas republicanas. Escreveu para jornais e<br />

revistas cariocas de grande projeção, incluindo<br />

uma expressiva atuação na imprensa anarquista.<br />

Embora Lima Barreto tenha afirmado categórica<br />

e recorrentemente não pertencer a qualquer<br />

corrente política organizada, é inegável que tenha<br />

buscado uma crescente aproximação com certas<br />

concepções anarquistas que acabariam por marcar<br />

profundamente os posicionamentos políticos que assumiria<br />

como escritor.<br />

Sua obra extensa e diversificada inclui romances,<br />

sátiras, contos, crônicas e epistolografia,<br />

toda ela marcada por uma linguagem direta e simples,<br />

através da qual pretendia <strong>fazer</strong> de sua arte<br />

um instrumento de libertação e de união entre os<br />

seres humanos. Entre seus romances, destacamse<br />

o controvertido “Recordações do escrivão Isaías<br />

Caminha” e o aclamado “Vida e Morte de Gonzaga<br />

de Sá”, ambos provavelmente escritos entre 1905<br />

e1907 e, ainda, “Clara dos Anjos”, “Triste fim de Policarpo<br />

Quaresma” e “Numa e a Ninfa”.<br />

As muitas e profundas angústias e medos<br />

que passaram a assombrá-lo, sobretudo a partir<br />

da doença do pai e das dificuldades financeiras<br />

que o impediam de se dedicar inteiramente ao seu<br />

projeto intelectual e literário; o tédio e as frustrações<br />

produzidos pela rotina do serviço burocrático<br />

e da vida no subúrbio; o fracasso do projeto da Revista<br />

Floreal são provavelmente alguns dos fatores<br />

que levariam Lima Barreto a começar a beber<br />

por volta de 1908. Os excessos de álcool provocariam<br />

crises de alucinações que o conduziriam por<br />

duas vezes ao Hospício Nacional de Alienados. A<br />

primeira internação ocorreu durante o período de<br />

18 de agosto a 13 de outubro de 1914 e a segunda<br />

entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de<br />

1920, quando escreveu o Diário do Hospício, onde<br />

registrou as vivências naquela instituição, durante<br />

os dois momentos em que lá esteve. Pretendia<br />

utilizar essas anotações para elaborar um novo<br />

romance intitulado “Cemitério dos Vivos”, que infelizmente<br />

ficou inacabado.<br />

Tendo que lutar contra as dificuldades materiais,<br />

sobretudo por ter que arcar com a sobrevivência<br />

do pai doente e dos irmãos mais jovens<br />

e sentindo na própria carne o peso e a dor provocados<br />

pelas discriminações sociais, entre as<br />

quais os preconceitos raciais, a trajetória literária<br />

e intelectual de Lima Barreto oscilou entre a<br />

marginalidade e o reconhecimento. Se apesar de<br />

todos os obstáculos editoriais seu talento artístico<br />

foi reconhecido e exaltado por importantes<br />

críticos da época, o sonho de ingressar na Academia<br />

Brasileira de Letras jamais seria alcançado,<br />

após três tentativas. Lima Barreto morreu antes<br />

de completar quarenta e um anos de idade no dia<br />

1 o de novembro de 1922, vítima de uma gripe torácica<br />

e de um colapso cardíaco. Dois dias depois,<br />

morreria também seu pai, João Henriques.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 27


28<br />

De Capa Violência, mídia e<br />

criminalização da pobreza<br />

PM ameaça menor com a pistola. No detalhe da foto da capa, o momento posterior em que, indignado, rapaz que aqui<br />

aparece ao fundo, enfrenta o policial. Fotos: Gabriel de Paiva/Agência O Globo.<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Stela Guedes Caputo, texto e entrevistas.<br />

Um jovem enfrenta um policial armado.<br />

Seu rosto transtornado. A arma na mão direita do<br />

policial. O dedo mindinho de sua mão esquerda<br />

enruga o peito do rapaz e mostra a força que faz<br />

para segurá-lo. Ao fundo, uma menina olha a cena<br />

e se prepara para tapar os ouvidos. Dois adultos<br />

tentam impedir o pior. À esquerda, um menino<br />

não teve os olhos “tarjados” e por isso posso ver<br />

seu medo e desespero. Atrás deste, um policial<br />

que, ainda que decepado pelo corte da foto, deixa à<br />

mostra que está preparado para intervir.<br />

A foto que escolhemos para a capa desta edição<br />

de nossa revista foi publicada na primeira página<br />

de O Globo, em 23/3 deste ano pouco acima<br />

da manchete: “Mangueira fecha rua em protesto<br />

violento”. Na página 16 onde a matéria continua,<br />

mais seis fotos reforçam o título desta página inteira<br />

de reportagem: “Cenário de guerra e baderna<br />

na Mangueira”. Numa delas, a legenda: “Vandalismo...”.<br />

O primeiro parágrafo descreve as imagens:<br />

“Motoristas apavorados atacados a pedradas,<br />

tiros para o alto, veículos incendiados....” e<br />

informa que a morte de um “traficante, segundo a<br />

polícia, teria causado o tumulto”.<br />

Apenas no último parágrafo lemos que, “segundo<br />

uma tia da vítima, o morto de 30 anos era<br />

um contínuo desempregado”, portanto, podia até<br />

ser que não fosse um traficante (ainda que fosse<br />

não poderia ter sido executado).<br />

Entrevistado a respeito, o fotógrafo Gabriel<br />

de Paiva, autor da foto, fotografar é “tentar <strong>fazer</strong><br />

com que o leitor sinta o que eu senti na hora do<br />

fato jornalístico”. Assim, a ilusão especular (Machado,<br />

1984) que faz com que a fotografia possa<br />

ser vista como “espelho do real” vai além daquilo<br />

que se pretender “revelar” e alcança o que se deve<br />

“sentir”. Para garantir o sentido único as legendas<br />

da edição ajudam, já que, para o fotógrafo,<br />

“estas impedem que o leitor tenha interpretação<br />

errada do acontecimento”. Paiva concordou com<br />

a edição que o jornal fizera de suas imagens e que<br />

tudo tinha sido mesmo uma “baderna”. Um box,<br />

na mesma página, vai relembrar outros casos<br />

“em que a rotina da cidade já foi sacudida outras<br />

vezes por protestos de moradores da favela”.<br />

Mas o fotógrafo também disse que “o tumulto<br />

começou quando a polícia chegou para conter<br />

os moradores que, misturados a traficantes, estavam<br />

no asfalto incendiando ônibus”. O próprio<br />

texto informa que a polícia esteve no morro antes<br />

e matou um homem. Paiva disse que talvez fosse<br />

revolta e indignação os motivos do protesto, já que<br />

todos os depoimentos dos moradores davam conta<br />

de que a polícia executara Wallace, o nome do<br />

morto. Além de uma frase da tia da vítima, esses<br />

depoimentos que o fotógrafo ouviu não estão na<br />

matéria. Faltam as fotos do morto, da tia, e dos<br />

moradores sem que estes estejam lançando tijolos<br />

em carros ou depredando ônibus. “Devíamos ter<br />

voltado lá”, concluiu o fotógrafo. Não voltaram.<br />

Não houve mais vestígio desse caso no jornal.<br />

Não desse especificamente, mas, todos os dias, de<br />

forma semelhante, outras matérias reproduzem<br />

cotidianamente a mesma política de criminalização<br />

dos moradores de favelas implementada<br />

pela grande mídia. Nas entrevistas que seguem<br />

abordamos sob diferentes aspectos a questão da<br />

violência no Rio de Janeiro.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 29


Foto: Débora Agualuza<br />

Nomeado pelo Governador Sérgio Cabral<br />

em 22 de fevereiro de 2008, o atual Diretor- Presidente<br />

do Instituto de Segurança Pública (ISP),<br />

Mário Sérgio de Brito Duarte, 49 anos, é Coronel<br />

da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.<br />

Ingressou na corporação em 1980 e já comandou a<br />

Academia da Polícia Militar, o Batalhão da Maré<br />

e o Batalhão de Operações Policiais Especiais<br />

(BOPE), no qual, em 1989, recebeu a designação<br />

de “Caveira n. 37”. Na estrutura da Secretaria<br />

de Estado de Segurança do Rio de Janeiro ele<br />

ocupou os cargos de Superintendente de Planejamento<br />

Operacional e o de Diretor de Inteligência.<br />

Aluno do curso de Filosofia da UFRJ, escreveu,<br />

em 1994, o livro “Incursionando no Inferno – a<br />

verdade da Tropa”, que só conseguiu publicar depois<br />

do sucesso do filme “Tropa de Elite”. Nesta<br />

entrevista ele dá sua opinião sobre o ISP e diz o<br />

que pensa sobre a utilização dos “caveirões” nas<br />

comunidades cariocas.<br />

30<br />

Entrevista: Mário Sérgio de Brito Duarte, Coronel da PM<br />

– Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP)<br />

Ex-Comandante do BOPE<br />

“O exército tem que<br />

estar investido de<br />

poder de polícia”<br />

Classe – O senhor assumiu o cargo de presidente<br />

do Instituto de Segurança Pública quando a<br />

cúpula da Polícia Militar foi substituída, o que,<br />

na verdade, tratava-se de uma reestruturação<br />

da política de segurança para o Estado?<br />

Cel Mário Sérgio – Não creio que minha indicação<br />

para o cargo de Diretor-Presidente do ISP tenha alguma<br />

conexão com as substituições no comando da<br />

PM. Na verdade, já de algum tempo a Secretaria de<br />

Segurança pensava em dar ao Instituto um aspecto<br />

diferente daquele com o qual foi idealizado. O ISP<br />

foi criado para ser uma espécie de “superestrutura<br />

da segurança pública”, cuja ideologia, em formato<br />

acadêmico, deveria ser absorvida pelas polícias.<br />

Não obstante o poder que lhe foi conferido pela lei<br />

de criação, que lhe autorizava “assegurar, executar,<br />

gerenciar e administrar a política de segurança pública<br />

do Estado, através das polícias”, o ISP jamais<br />

conseguiu penetrá-las ao preferir a imposição e não<br />

a negociação de suas intenções.<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Classe – O Secretário de Segurança Pública,<br />

José Mariano Beltrame, disse que desejava<br />

um Instituto mais “pró-ativo”, mas o que se<br />

veiculou na época, era que a mudança significava<br />

uma opção do governo por uma linha<br />

ainda mais dura de repressão...<br />

Cel Mário Sérgio – O ISP trabalha episteme. É<br />

marcadamente uma instituição voltada para a construção<br />

do conhecimento e desvelamento de saberes<br />

de interesse da Segurança Pública. Há três eixos no<br />

órgão: o Núcleo de Pesquisas em Segurança Pública<br />

e Justiça Criminal, a Coordenadoria dos Conselhos<br />

Criminais e a Coordenadoria de Projetos de<br />

Segurança Pública. Destes, apenas a Coordenação<br />

dos Conselhos não tem um formato marcadamente<br />

científico e sim sócio-organizacional. Todavia, sua<br />

atuação é fundamental para o Sistema de Segurança,<br />

pois lhe dá a chave necessária à interface com a<br />

população com vistas à participação comunitária. O<br />

ISP, como disse, não formula a política, não sugere<br />

as ações e não determina as estratégias. O ISP apenas<br />

exibe o que mensura e o que conhece.<br />

Classe – Com a demissão da antropóloga Ana<br />

Paula Miranda, da presidência do ISP e sua<br />

substituição por um tenente-coronel, o senhor,<br />

a integridade e a independência desse<br />

órgão não ficam comprometidas?<br />

Cel Mário Sérgio – O ISP é uma autarquia do<br />

Estado vinculada à Secretaria de Segurança. A<br />

isenção que possui hoje é mesma que a doutora<br />

Ana Paula possuía antes de minha assunção. Não<br />

sou o primeiro coronel da PM a assumi-la; antes,<br />

dois já haviam passado pela função. Ocorre que<br />

o ISPestava sendo entendido como uma espécie<br />

de departamento de ciências sociais, quando ele<br />

não deve ser isso. A sociologia, a ciência política<br />

e a antropologia têm grande contribuição a<br />

dar ao ISP, mas há outras ciências e saberes que<br />

podem e devem concorrer para essa construção<br />

de conhecimento. A hegemonia de uma ciência a<br />

partir da “embocadura” da chefia é compreensível,<br />

mas temos que cuidar para não nos fecharmos<br />

em círculos de idéias. Estamos buscando<br />

<strong>fazer</strong> um ISP mais plural.<br />

Classe – Depois de sete meses já é possível<br />

<strong>fazer</strong> um balanço da sua gestão? O ISP está<br />

mais “pró-ativo”?<br />

Cel Mário Sérgio – Estamos trabalhando muito;<br />

celebrando convênios, estabelecendo novas parcerias.<br />

Para exemplificar com trabalhos mais recentes<br />

de nossa gestão, a Secretaria Estadual de Educação,<br />

o DETRAN, a Secretaria Estadual de Saúde e<br />

a Petrobrás nossos mais novos parceiros, com projetos<br />

em fase de desenvolvimento. Da gestão anterior<br />

concluímos o Observatório de Análise Criminal e o<br />

convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos,<br />

com recursos da União Européia. Sobre estar<br />

mais ou menos pró-ativo eu não gostaria de <strong>fazer</strong><br />

comparações com outras gestões.<br />

Classe – No ano passado, o governador do Rio,<br />

Sérgio Cabral, chamou de “débil mental” o<br />

policial que matou o vigia Rubineu Nobre, de<br />

29 anos, em um posto de gasolina, na Baixada<br />

Fluminense, no dia 10 de fevereiro. Se um governador<br />

se refere assim à sua própria polícia,<br />

como a população pode pensar o contrário?<br />

Cel Mário Sérgio – Creio que “a boca fala daquilo<br />

que está cheio o coração”. Num momento<br />

marcado pelo paroxismo da dor, dizemos muitas<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 31


vezes o que não diríamos em outro momento.<br />

Classe – O governador também já defendeu o<br />

modelo colombiano de polícia.O ISP tem uma<br />

avaliação sobre esse modelo, que também recebe<br />

críticas por parte da esquerda por considerar<br />

que este modelo criminaliza a pobreza<br />

e os movimentos sociais?<br />

Cel Mário Sérgio – Avaliação não, mas eu conheço<br />

o trabalho realizado na Colômbia, marcadamente<br />

em Bogotá e Medellín. Estive três vezes com o sociólogo<br />

colombiano Hugo Acero somente neste ano de<br />

2008. Como policial, digo sem medo de errar que deveríamos<br />

seguir o mesmo caminho. Sobre críticas da<br />

esquerda àquele modelo, conversei com pessoas nas<br />

ruas e nas favelas que visitei e mesmo na esquerda<br />

encontrei aprovação do projeto, mas, claro, não estive<br />

com ninguém das FARCS e nem do ELN.<br />

Classe – O que é e o que deveria ser a Segurança<br />

Pública?<br />

Cel Mário Sérgio – Deveria ser o conjunto de ações<br />

necessárias à promoção da ordem pública e da paz<br />

social. Todavia, embora seja uma opinião pessoal, o<br />

Rio de Janeiro tem um quadro que ultrapassa a dimensão<br />

da Segurança Pública, neste conceito, quando<br />

se fala de normalidade. Há pelos menos quinze<br />

anos o Rio convive com um “conflito urbano armado<br />

de baixa intensidade”, com combates cotidianos travados<br />

entre agentes da lei e quadrilhas, e essas entre<br />

si. Faz-se mister a retomada definitiva dos espaços<br />

onde o poder público perdeu o controle para as “facções”<br />

criminosas que dominam os territórios das áreas<br />

mais carentes do Rio de Janeiro. Através de uma<br />

estrutura de coerção despótica e assassina, assente<br />

32<br />

no poder de fogo das armas de guerra que dispõem,<br />

o narcotráfico se exibe como um pequeno exército imprevisível<br />

na dimensão de suas violações. Sua força<br />

motriz é a “ideologia de facção”, que se sobrepõe à<br />

vontade de lucro no comércio ilícito de drogas.<br />

Classe – Qual seria o papel da polícia dentro<br />

da Segurança Pública?<br />

Cel Mário Sérgio – Seu papel constitucional.<br />

Classe – De acordo com os jornais, a Secretaria<br />

de Segurança do Rio comprou mais<br />

nove blindados, os chamados “caveirões”,<br />

ao custo de R$ 403 mil cada que se somarão<br />

aos 12 atuais. Os novos veículos são mais<br />

potentes e com mais saídas para armas, ou<br />

seja, vai matar mais?<br />

Cel Mário Sérgio – O “Caveirão” não é uma<br />

viatura militar, mas um carro civil; não possui<br />

acopladas metralhadoras, lança-granadas e outros<br />

petrechos. É utilizado, essencialmente, para<br />

conduzir policiais a locais de alto risco e nenhum<br />

equipamento mortal transporta além do armamento<br />

dos soldados. É forçoso utilizá-lo em áreas onde<br />

os traficantes estão à espreita, seja em lajes, becos,<br />

interior de construções ou trilhas de florestas para<br />

letal emboscada. A viatura blindada é uma estratégia<br />

de ação policial que preconiza a proteção do<br />

policial individual e coletivamente.<br />

Classe – É verdade que a Secretaria quer, ainda,<br />

comprar um blindado israelense capaz de<br />

explodir pequenas áreas? Qual a função de um<br />

veículo assim atuando em favelas?<br />

Cel Mário Sérgio - Não creio ser verdade. Embora<br />

eu não mais acompanhe a seleção de equipamen-<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Em mais um dia de ação da PM no Morro de São Carlos em busca das armas roubadas de<br />

seguranças do governador, um uspeito, conhecido como Risadinha, foi morto no confronto.<br />

Desesperada, a mãe tentou barrar o caveirão. Foto: Agência JB<br />

tos por não ser este meu trabalho no ISP, creio que<br />

não seja verdade. Todavia, a idéia de que as polícias<br />

sempre atentam contra o estrato social pobre, “criminalizando<br />

a pobreza”, é espraiada a todo tempo por<br />

grupos com interesses particulares, seguindo a orientação<br />

ideológica que infere o crime como um processo<br />

coletivo de “luta de classes”. Assim, quando o Estado<br />

adquire um equipamento de proteção para os policiais<br />

é natural que esse tipo de discurso surja, procurando<br />

desqualificá-lo e exibindo-o como objeto de opressão.<br />

Classe – Para aprofundar essa lógica que o<br />

senhor expõe... então, o senhor diria que o<br />

Estado é neutro? E, por que os veículos civis<br />

blindados só atuam nas favelas? Os blindados<br />

permitem disparos sem que policiais<br />

sejam identificados, transmitem gravações<br />

ofensivas contra a população... Por que eles<br />

não estão onde mora a<br />

burguesia?<br />

Cel Mário Sérgio - Porque<br />

o veículo blindado objetiva<br />

proteger os policiais dos disparos<br />

das armas de guerra<br />

e elas estão nas mãos dos<br />

narcotraficantes justamente<br />

nas favelas. São fuzis AK-<br />

47, AR-15, RUGER, SIG-<br />

SAUER, NORINCO, granadas<br />

M3, M4 e assim por<br />

diante. Compreende-se, e<br />

devemos concordar que palavras<br />

ofensivas não devem<br />

ser dirigidas a nenhuma<br />

pessoa de nenhum estrato<br />

social, de orientação sexual<br />

específica ou religiosa por essa condição. As polícias<br />

devem respeitar pessoas e espaços públicos, indistintamente;<br />

sobre isto concordo plenamente. Todavia,<br />

reitero, as ações marcadamente de conflito<br />

urbano armado são protagonizadas por criminosos<br />

que se estabeleceram nas favelas, subjugando seus<br />

moradores com uma estrutura de poder cruel.<br />

Classe – Foi divulgado que a Secretaria de<br />

Segurança comprou um helicóptero modelo<br />

Huey II, empregado pelos Estados Unidos<br />

em operações no Iraque e no Afeganistão<br />

que já está sendo chamado de “caveirão voador”.<br />

O custo divulgado foi de US$ 4,5 milhões.<br />

Há um balanço do quanto se investe<br />

em formação para os policiais, em salários<br />

e em armas? Há uma correlação importante<br />

de ser avaliada nesse tipo de investimento<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 33


para que se observe o perfil da política de<br />

Segurança Pública de um Estado?<br />

Cel Mário Sérgio – Sobre o helicóptero blindado,<br />

sua aquisição se deve em razão dos muitos tripulantes<br />

que foram baleados por atiradores do narcotráfico,<br />

em terra, quando em operação nos helicópteros<br />

que as policias dispõem. Eu mesmo perdi dois amigos<br />

baleados dentro de aeronaves em vôo, um em<br />

Niterói e outro no Morro do Adeus, na Penha. Em<br />

relação ao balanço sobre investimentos em formação<br />

policial é uma questão que não está afeta ao ISP.<br />

Classe - O ISP divulgou que entre janeiro e março<br />

desse ano, 358 pessoas foram mortas pela polícia<br />

no estado nos chamados “autos de resistência”,<br />

12% a mais do que o registrado no mesmo período<br />

de 2007. Qual a metodologia aplicada nesses<br />

levantamentos? E os desaparecidos? Os mortos<br />

de quem não se acham os corpos? Como entram<br />

nesse levantamento?<br />

Cel Mário Sérgio – O auto de resistência, como<br />

indica o nome, é um documento lavrado pela autoridade<br />

policial quando ocorre resistência frente a<br />

uma ação legal e legítima do agente do Estado. A<br />

classificação é retirada daí. Sobre os desaparecidos<br />

gosto de lembrar que a estatística é uma ciência,<br />

e com tal, possuí regras e métodos que devem<br />

ser aplicados com rigor para que seus resultados<br />

possuam verossimilhança. Assim, podem existir<br />

desaparecimentos que são provenientes de homicídio,<br />

contudo, num primeiro momento não há como<br />

saber. O fato exposto é o simples desaparecimento<br />

de uma pessoa. Se, e somente se, for comprovada<br />

a morte por causa externa, é que, efetuando um<br />

registro de aditamento, o delegado irá trocar o<br />

título da ocorrência para o que melhor definia<br />

34<br />

o acontecido. Mas, um homicídio ser registrado,<br />

em primeira instância, como desaparecimento de<br />

uma pessoa, é uma situação que não é prerrogativa<br />

do estado do Rio de Janeiro, isto pode acontecer<br />

em São Paulo, Minas Gerais, Nova Iorque<br />

ou em qualquer lugar.<br />

Classe – Como o senhor vê a ocupação dos<br />

morros pelo exército?<br />

Cel Mário Sérgio – Sou a favor. Todavia, entre<br />

muitos cuidados, um é fundamental: o Exército tem<br />

que estar investido de Poder de Polícia. Como disse<br />

anteriormente, perdemos há pelo menos quinze anos<br />

o controle de muitas favelas para o tráfico, e retomá-lo<br />

é trabalho duríssimo para o qual as polícias<br />

não possuem efetivos. A participação do Exército é<br />

sempre bem recebida pela população e mal-vista nos<br />

círculos intelectuais; haveria aplausos e críticas. Eu<br />

creio que estando o Exército com seus efetivos preparados<br />

para garantia da lei e da ordem, seu papel<br />

poderia se tornar definitivo para a mudança desse<br />

quadro atual. Insisto na questão do Poder de Polícia<br />

porque sem ele a participação da força terrestre seria<br />

inócua; num primeiro momento somente a presença<br />

do Exército já promoveria alguma dissuasão, mas<br />

logo que os traficantes percebessem sua limitação,<br />

haveria provocação e desrespeito à tropa, e isso poderia<br />

trazer conseqüências desastrosas.<br />

Classe – Vendo por outro lado coronel, a presença<br />

do exército dos morros cariocas já trouxe<br />

conseqüências desastrosas. A morte de<br />

Davi, Wellington e Marcos Paulo, entregues<br />

por militares a traficantes da facção rival, em<br />

junho desse ano, prova isso. E os protestos que<br />

se seguiram na comunidade também provam<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


que a presença do exército não é bem vinda.<br />

Cel Mário Sérgio - O que aconteceu no Morro<br />

da Providência teve início justamente no erro de<br />

se colocar a força terrestre numa área geográfica<br />

onde havia um grupo armado, com representações<br />

simbólicas próprias, inserido socialmente,<br />

ditando valores aceitos sem reflexão, sem poder<br />

legal para superá-los com ações legítimas. Se o<br />

Exército entra com seu “ethos”, seus símbolos e<br />

seu aparato de força, que leve consigo o poder<br />

de agir como polícia, para conter, preventiva e<br />

moderadamente, no nascedouro, quaisquer manifestações<br />

provocativas contra sua presença.<br />

Naquelas condições em que foi colocado, exibindo-se,<br />

mas eximindo-se, era certo que logo teria<br />

problemas com a população local. Com “poder de<br />

polícia” pequenos problemas não ultrapassariam<br />

tal dimensão; sem “poder de polícia”, pequenos<br />

problemas tendem a se tornar hecatombes.<br />

Classe – Como a mídia ajuda a construir a<br />

imagem da polícia no Rio?<br />

Cel Mário Sérgio – Isso não é de interesse da<br />

mídia.<br />

Classe – Toda divulgação do filme “Tropa de<br />

Elite”, por exemplo, não constrói uma certa<br />

imagem da polícia?<br />

Cel Mário Sérgio – Sim, eu creio, mas não é uma<br />

imagem real e sim uma imagem idealizada pelo<br />

cineasta. Comandei o BOPE e asseguro que grande<br />

parte do filme é acidente e não essência.<br />

Classe - Como o ISP pode ajudar a melhorar<br />

não a imagem da polícia no Rio, mas, efetivamente,<br />

a atuação da polícia no Rio?<br />

Cel Mário Sérgio – Apresentando dados confiáveis<br />

e projetos consistentes para uso das polícias.<br />

Classe – Como o senhor vê a aproximação<br />

da polícia com as universidades<br />

via cursos de segurança pública nas<br />

graduações e especializações?<br />

Cel Mário Sérgio – Estamos falando dos cursos<br />

da área de humanidades? Acho ótimo, mas é bom<br />

que se estabeleçam algumas questões muito pouco<br />

definidas, ainda. Policiais têm preferido cursos<br />

da área tecnológica e da ciência jurídica. Por<br />

que? Bem, tenho a intuição de que isso decorre da<br />

posição adotada pelos centros de ciências sociais,<br />

ou por alguns de seus maiorais, que postulam um<br />

saber válido e de oposição ao saber policial, o que<br />

fomenta a rejeição. Afinal, quem é “especialista<br />

de quê e por que?”. Qual ciência, e qual corrente<br />

acadêmica, possui o privilégio do saber de algo<br />

marcadamente de interesse das polícias e superior<br />

ao seu saber? E quem disse à “Academia”<br />

que o saber policial não é acadêmico? Bem, são<br />

algumas questões importantes em forma de escolhos<br />

teóricos a serem removidos.<br />

Classe – O que o senhor poderia falar da sua<br />

experiência como ex-comandante do BOPE e<br />

como atual diretor-presidente do ISP. Como<br />

esses dois espaços dialogam?<br />

Cel Mário Sérgio - Como comandante do BOPE<br />

pertenci ao “mundo dos encarnados”; mexi, revolvi,<br />

manuseei os problemas; senti os odores e enxerguei<br />

a escuridão do crime e suas conseqüências<br />

mais imediatas. Como presidente do ISP participo<br />

do “mundo dos espíritos” e aí enxergo as “luzes” e<br />

tenho contato com a perfeição abstrata das idéias.<br />

Transito bem nos dois mundos.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 35


Foto: Stela Guedes Caputo<br />

Professora do curso de Psicologia da<br />

UFF, Cecília Maria Bolsas Coimbra, é presidente<br />

do Grupo Tortura Nunca Mais, fundado<br />

em 1985, por iniciativa de ex-presos políticos<br />

torturados durante o regime militar brasileiro<br />

e por familiares de mortos e desaparecidos políticos.<br />

A entidade, que faz questão de afirmar<br />

que não é uma ONG e sim um Movimento Social,<br />

tornou-se uma das principais referências<br />

nas lutas em defesa dos Direitos Humanos. Cecília<br />

é uma sobrevivente de 67 anos. Foi presa<br />

e torturada em agosto 1970, mas teimou em<br />

viver para contar a sua e outras histórias dos<br />

que foram massacrados pela Ditadura brasileira.<br />

Seu objetivo não é vingança, é justiça<br />

e, para isso, é incansável na luta para denunciar<br />

e responsabilizar torturadores neste País.<br />

Em entrevista, ela critica o governo Lula que,<br />

segundo Coimbra, “faz uma política pífia de<br />

Direitos Humanos. Fala também da ligação<br />

entre a tortura e o extermínio dos presos políticos<br />

durante o regime militar e a tortura e o<br />

extermínio dos pobres de nossos dias.<br />

36<br />

Entrevista: Cecília Coimbra, Presidente do Grupo<br />

Tortura Nunca Mais e professora da UFF.<br />

“Vivemos a fascistização<br />

do cotidiano”<br />

Classe – Como está a questão da luta pela<br />

abertura dos arquivos da Ditadura? O Legislativo<br />

aprovou a lei de reparações, mas<br />

retrocedeu com a lei do sigilo de documentos.<br />

Que pacto é esse, mantido pelo Governo<br />

Lula, que faz com que, mesmo submetido à<br />

jurisdição da Corte Interamericana de Direitos<br />

Humanos, não haja justiça para as vítimas<br />

da Ditadura e para suas famílias?<br />

Cecília - Tem duas questões aí. A primeira é a interpretação<br />

que foi dada à lei da Anistia, uma interpretação<br />

dos juristas da Ditadura naquele período<br />

e que até hoje é vigente, ou seja, aqueles que teriam<br />

cometido os chamados “crimes conexos” teriam sido<br />

anistiados também. O Grupo Tortura Nunca Mais,<br />

desde que surgiu, questiona essa interpretação da Lei<br />

da Anistia porque não existe nenhuma conexidade<br />

entre o fato de você seqüestrar, prender ilegalmente,<br />

torturar, ocultar cadáveres, com a oposição que se fez<br />

ao regime militar naquele período. Crime conexo é a<br />

forma deles dizerem que a repressão usada contra os<br />

opositores políticos é uma ação conexa aos atos praticados<br />

contra a Ditadura Militar, o que é uma coisa<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


totalmente perversa. Ora, existem dois grandes juristas<br />

como Hélio Bicudo e Fábio Konder Comparato<br />

que já provaram que não há nenhuma conexidade<br />

entre as duas coisas e que os torturadores não estão<br />

anistiados. Mas a interpretação dada pelos juristas<br />

da Ditadura foi engolida pela sociedade e pela própria<br />

esquerda brasileira quando também diz que os<br />

torturadores estão anistiados. Não estão!<br />

Classe – Pedir a punição dos torturadores é<br />

ser taxado de revanchista....<br />

Cecília - A gente não quer revanche, a gente quer<br />

justiça. E hoje, mais do que nunca, temos argumentos<br />

jurídicos que embasam que não houve crimes<br />

conexos ali. A segunda coisa é que não queremos<br />

anular a Lei de Anistia. O que queremos é<br />

uma outra leitura da Lei de Anistia. A questão dos<br />

arquivos é puramente política. Nós sabemos dos<br />

acordos que foram feitos desde a anistia, como ela<br />

foi feita, que não foi ampla, social e irrestrita como<br />

os movimentos sociais pediam na época e que vem<br />

com essa interpretação da conexidade. Todas as<br />

forças que apoiaram a Ditadura continuam hoje<br />

apoiando os governos civis. O Governo Lula não<br />

tem nada de diferente dos governos civis anteriores.<br />

O Governo Lula está complementando, em termos<br />

neoliberais, a obra iniciada pelos militares,<br />

que é a implantação efetiva do neoliberalismo no<br />

país. O que o Governo Lula tem feito é pior, inclusive,<br />

do que os governos anteriores. Com relação<br />

à questão dos direitos humanos, os avanços que<br />

aconteceram foram mínimos para um governo que<br />

se colocava comprometido com a democracia e que<br />

se dizia um governo popular. Posso dizer isso de<br />

cadeira porque fui fundadora do PT no Rio e saí<br />

do PT há 3 anos e hoje não tenho partido nenhum.<br />

O Governo Lula está<br />

complementando, em<br />

termos neoliberais,<br />

a obra iniciada<br />

pelos militares”<br />

Além disso, o GTNM é um grupo suprapartidário.<br />

A política de direitos humanos que esse governo<br />

vem efetivando é pífia. É uma política semelhante<br />

à de FHC, ou seja, é para “inglês ver”, apenas<br />

para dar satisfação às entidades internacionais.<br />

Classe – Amílcar Lobo era o médico que examinava<br />

os presos políticos para atestar até<br />

onde eles agüentariam. Você conseguiu identificá-lo,<br />

ele foi denunciado e teve seu registro<br />

cassado. Quem mais teve algum tipo de restrição?<br />

Onde estão os torturadores hoje?<br />

Cecília – Fui presa em agosto de 70, fiquei 2 dias<br />

no DOPS e depois fui para a polícia do Exército, o<br />

DOI-COD. Fui encapuzada e levada para uma cela.<br />

Quando me tiraram o capuz, entrou um homem vestido<br />

de militar que se disse médico, mas estava com<br />

um esparadrapo cobrindo sua identificação. Ele verificou<br />

a pressão, perguntou se eu era cardíaca e, logo<br />

depois, comecei a ser torturada. Fiquei presa 3 meses<br />

e meio sem nenhuma acusação contra mim. Um dia,<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 37


esse mesmo médico esqueceu seu receituário na cela<br />

em que eu estava com uma companheira, a Dulce<br />

Pandolfi, que tinha ficado praticamente paralítica<br />

de tanto ser torturada. Apenas por isso consegui ver<br />

seu nome: Amílcar Lobo Moreira da Silva. Quando<br />

saí, fiz a denúncia. Foi uma celeuma internacional.<br />

A notícia saiu em uma revista de psicanalistas progressistas<br />

da Argentina chamada “Questionamos”<br />

onde se denunciava o Amílcar Lobo como assessor de<br />

tortura e, pasmem, ele era então candidato a psicanalista,<br />

fazia formação em psicanálise. Em 81, ainda<br />

na Ditadura, período do Figueiredo, fomos num<br />

grupo de ex-presos políticos ao consultório dele e saiu<br />

na primeira página do Jornal do Brasil. Três ministros<br />

militares fizeram um manifesto dizendo que não<br />

aceitariam revanchismo e a coisa recuou. Só em 85<br />

o Conselho Regional de Medicina abriu um processo<br />

contra ele e nós ajudamos muito conseguindo depoimentos.<br />

Eu fui testemunha e, em 86, conseguimos<br />

a cassação dele. Isso foi muito importante porque a<br />

Anistia Internacional nos disse que criamos jurisprudência.<br />

Nenhum outro médico, de nenhum outro<br />

país, que tenha passado por recente ditadura e que<br />

assessorava tortura havia sido denunciado e tido seu<br />

registro cassado. O Brasil foi o primeiro. E, embora<br />

isso seja limitado porque foi conseguido via Conselhos,<br />

e se limita ao campo profissional, pelo menos a<br />

sociedade fica sabendo quem são essas pessoas..<br />

Classe – Como a ditadura “legalizava” o extermínio<br />

sob tortura e que herança isso deixa?<br />

Cecília – A Ditadura tinha 3 formas de divulgação<br />

oficial para legalizar seus assassinatos: morto<br />

em atropelamento, suicídio e resistência à prisão.<br />

A herança é justamente este último que encontramos<br />

agora nos famosos “autos de resistência”<br />

38<br />

praticados pelo Estado contra a pobreza. Ou seja,<br />

a polícia extermina e, na delegacia, se registra: “<br />

morto ao reagir à prisão”. Outra herança é a figura<br />

do desaparecido. O número de pessoas desaparecidas<br />

é incalculável, outra prática de agentes<br />

do Estado para a qual não há dados. A Ditadura<br />

não inventou a tortura. A tortura sempre existiu<br />

nesse país para a pobreza. O que a Ditadura fez<br />

foi sofisticar as práticas de tortura.<br />

Classe – Em 12 de agosto deste ano, o presidente<br />

Lula disse que toda vez que falamos<br />

dos estudantes e dos operários que morreram,<br />

falamos xingando quem os matou e que<br />

esse martírio nunca vai acabar “se a gente<br />

não aprender a transformar nossos mortos<br />

em heróis, não em vítimas”...<br />

Cecília – Papo furado do Lula. E a gente também<br />

deve ter cuidado para não transformar ninguém<br />

em herói. Essas pessoas foram de uma generosidade<br />

muito grande porque deram suas vidas por<br />

um outro Brasil. Mas sou contra a heroificação de<br />

qualquer coisa e sou contra também a vitimização.<br />

Fomos atingidos sim pela violência do Estado. Somos<br />

sobreviventes dessa violência. Não usamos a<br />

palavra vítima porque esta expressão desqualifica o<br />

outro e todos passam à condição de “coitadinhos”.<br />

Não somos isso. A fala do Lula é extremamente demagógica<br />

por tudo isso. O que queremos é que os<br />

crimes que essas pessoas cometeram às escuras nos<br />

porões da Ditadura e nos aparatos clandestinos venham<br />

a público e que essas pessoas sejam conhecidas,<br />

com seus nomes publicados e seus atos publicizados.<br />

Agora, não estamos pedindo prisão perpétua<br />

e nem pena de morte para ninguém. Disso a Justiça<br />

vai cuidar. O que a gente quer é que essas pesso-<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


as digam publicamente o que fizeram e assumam<br />

os crimes contra a humanidade que praticaram.<br />

Então, essa fala do Lula, como sempre, é uma fala<br />

em nome de uma pseudo-governabilidade, que é o<br />

que se vem falando desde o primeiro governo dele.<br />

Quando a gente fala de questões como a da abertura<br />

dos arquivos, a gente percebe que não há vontade<br />

política. E por quê? Porque as forças que apoiaram<br />

a Ditadura continuam presentes no cenário político<br />

apoiando os diferentes governos civis.<br />

Classe – Qual a diferença entre indenização<br />

e reparação? Quem já conseguiu receber<br />

a reparação do governo?<br />

Cecília – Indenização para nós é apenas indenizar<br />

financeiramente, o que, embora seja um direito, é<br />

pouco, muito pouco. A ONU usa o termo reparação<br />

como um processo onde primeiro se investiga<br />

o que aconteceu, responsabiliza e repara os atingidos<br />

com a colocação de que isso não volte a acontecer.<br />

Então, estamos muito longe de um processo<br />

reparatório. A reparação financeira é o final desse<br />

processo, é quando o Estado assume sua responsabilidade<br />

com o que fez. Isso não foi feito no Brasil<br />

até hoje. O que vem sendo feito no Brasil é o que<br />

chamamos de “cala a boca”. É pagar para esquecer<br />

o que aconteceu quando a gente sabe que nenhum<br />

dinheiro paga o que as pessoas sofreram, o que os<br />

familiares dos desaparecidos, por exemplo, sofrem<br />

até hoje. Tem mãe que ainda acha que o filho vai<br />

voltar. Mães que não mudam de telefone nem de<br />

endereço achando que os filhos podem estar por aí<br />

com alguma amnésia e que vão aparecer. Quando<br />

a gente inaugurou, há alguns anos, ruas com nomes<br />

de companheiros mortos e desaparecidos, alguns<br />

familiares não quiseram ir porque ver o nome<br />

dos filhos em uma placa de rua era confirmar sua<br />

morte. A figura do desaparecido, criada pela ditadura<br />

brasileira e exportada para outras ditaduras<br />

latino-americanas, é uma coisa perversa porque<br />

tortura até hoje. A própria Ditadura caçoava dos<br />

familiares dizendo: “de repente, não desapareceu,<br />

está morando em um país comunista! Abandonou<br />

a família!” É uma perversidade sem tamanho.<br />

Classe - Só as pessoas mais conhecidas<br />

recebem?<br />

Cecília – Só as que aparecem mais. Veja bem, a<br />

reparação financeira é um direito, mas acho que<br />

os critérios tinham de ser mais transparentes.<br />

Ela deve ser o final do processo e não como esse<br />

grande “cala boca” que a caracteriza hoje no Brasil.<br />

Acho que umas mil pessoas já receberam. Eu<br />

mesma fui presa, torturada, perdi meu emprego,<br />

fui anistiada e até hoje não recebi nada. Não é<br />

por acaso que algumas pessoas mais conhecidas,<br />

escritores e jornalistas, recebam as reparações,<br />

às quais, repito, essas pessoas têm direito. Mas,<br />

lamentavelmente, essas pessoas quando recebem<br />

o dinheiro não lembram que sua história precisa<br />

ser contada. O Estado brasileiro, além de reparar<br />

financeiramente, precisa contar o que aconteceu.<br />

Ele precisa apontar os crimes cometidos em nome<br />

da Segurança Nacional. O triste é que companheiros<br />

que recebem as reparações não lembrem<br />

de falar isso, de contar o que foi o sofrimento e<br />

essa história desse sofrimento. Os critérios devem<br />

ser transparentes e publicizados porque, do contrário,<br />

a direita e a grande mídia adoram <strong>fazer</strong><br />

isso, fica aquela coisa de “vejam as indenizações<br />

milionárias!”, que é uma forma de se jogar uma<br />

cortina de fumaça em cima do que efetivamente<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 39


é uma reparação financeira. O Brasil exportou<br />

know-how de tortura para as ditaduras latinoamericanas,<br />

exportou torturador, pau-de-arara,<br />

manual de tortura. Apesar disso, é o mais atrasado<br />

de todos os países da América Latina em relação<br />

às reparações e de contar uma outra História,<br />

porque o que temos é a História dos milicos.<br />

Classe – Como você comentaria a recente frase<br />

do deputado federal e capitão da reserva do<br />

Exército, Jair Bolsonaro, “O erro foi torturar e<br />

não matar!” , diante de uma manifestação que<br />

exigia punição para os torturadores no Brasil?<br />

Cecília – Mostra a mentalidade fascista hoje desse<br />

país. O que foi e o que continua sendo. Para alguns<br />

segmentos da sociedade, a morte. Para os “terroristas”<br />

daquele período, que era como eles nos chamavam,<br />

e para a pobreza hoje, a morte. Para alguns<br />

segmentos rotulados de “perigosos” você justifica a<br />

tortura e o extermínio. Essa fala mostra muito bem<br />

o que hoje está se espraiando na sociedade e não só<br />

a brasileira, mas em todo o planeta.<br />

Classe – Uma fascistização generalizada?<br />

Cecília – É... vivemos hoje uma fascistização<br />

do cotidiano. Queremos um Estado punitivo,<br />

pedimos um Estado forte, penal. Todo mundo<br />

acha que a sua segurança está em cima de maior<br />

policiamento, de leis mais duras e repressivas,<br />

de se criminalizar todo e qualquer pequeno delito.<br />

Isso é o que vivemos hoje. Um Estado penal<br />

punitivo e uma política de tolerância zero. Isso<br />

se espraia por todo o planeta e está aqui. A política<br />

do casal Garotinho foi desenvolvida dentro<br />

dessa concepção de se criminalizar a pobreza, os<br />

movimentos sociais e todo e qualquer delito.<br />

40<br />

Classe – Em que medida a impunidade em<br />

relação aos militares que torturaram na Ditadura<br />

se relaciona com a polícia que tortura<br />

hoje?<br />

Cecília – A Ditadura fez escola. E o fato da gente<br />

não conhecer nossa história recente contribui. Num<br />

primeiro momento da repressão brasileira, que vai<br />

até 70, 71, era só porrada pura e simples. A partir<br />

daí, se inaugura o que eles chamam de tortura científica.<br />

Você não encosta um dedo no sujeito, mas o<br />

desestrutura. Por exemplo, se colocava a pessoa em<br />

uma cela, que chamávamos de geladeira por sua<br />

temperatura baixíssima, com gritos e sons que você<br />

não identifica, ininterruptos, onde a pessoa simplesmente<br />

enlouquece. Nos EUA, algumas prisões de<br />

segurança máxima são assim: através da privação<br />

sensorial se produz a loucura. No Brasil, nem foi<br />

muito utilizado, mas teve sim companheiros que enlouqueceram<br />

em função disso. O golpe do Brasil foi<br />

o primeiro e os militares passaram a exportar essas<br />

técnicas que experimentavam aqui.<br />

Classe – Você disse, em seu livro “Operação<br />

Rio – o mito das classes perigosas”, que muitas<br />

pessoas ficam horrorizadas porque houve<br />

tortura na Ditadura Militar brasileira não<br />

por serem contra a tortura, mas porque esta<br />

foi praticada contra a classe média. Ou seja,<br />

tortura contra os pobres tudo bem?<br />

Cecília – Eu sempre digo isso. Não é que no movimento<br />

de oposição ao regime militar não estivessem<br />

presentes operários e camponeses, muitos estavam,<br />

mas não são falados e ficam esquecidos. Os que<br />

são falados são os intelectuais e estudantes, mas a<br />

tortura, a prisão e o desaparecimento se naturali-<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


A política de direitos<br />

humanos que esse governo<br />

vem efetivando é pífia.<br />

É uma política semelhante à<br />

de FHC, ou seja, é<br />

para‘ inglês ver’”<br />

zaram como sendo só para a pobreza e não para a<br />

classe média e a elite. Se há horror da sociedade, é<br />

só em relação a isso, mas temos de nos horrorizar<br />

independente da classe social.<br />

Classe – Por que está cada vez mais comum<br />

pensar que falar em direitos humanos é “querer<br />

passar a mão na cabeça dos bandidos”?<br />

Cecília – Por que está sendo disseminado na sociedade<br />

através dos grandes meios de comunicação de<br />

massa, mas não só eles, isso é uma construção histórica<br />

no Brasil. Ou seja, vai se ligando indissociavelmente<br />

e naturalmente pobreza e criminalidade.<br />

Ou seja, onde está o pobre, está o perigo. Onde está<br />

o pobre, está o crime. É o que o psicanalista francês<br />

Félix Guattari fala quando se refere a produção de<br />

subjetividades. Ou seja, tão importante como a produção<br />

do aço, das riquezas, é a produção de modos<br />

de viver e de existir. Através dessas subjetividades<br />

produzidas, você domina. A ligação entre pobreza e<br />

criminalidade é algo que está naturalizado em cada<br />

um de nós. Essas forças nos atravessam. E isso, na<br />

Europa, começa em meados do séc. XIX e, no Brasil,<br />

chega no final do século XIX e início do XX.<br />

Classe – No livro, outro conceito com<br />

o qual você trabalha bastante é o de<br />

periculosidade, do Foucault...<br />

Cecília – É, o Foucault falava que no século XIX<br />

emerge um dispositivo presente entre nós chamado<br />

de periculosidade. Ou seja, tão perigoso quanto<br />

aquilo que o sujeito fez é aquilo que ele poderá vir<br />

a <strong>fazer</strong>, dependendo da essência desse sujeito. Aí<br />

você dá uma essência para a pobreza, de perigosa e<br />

de criminosa, uma coisa perversa.<br />

Classe - Se pensarmos que os empresários financiaram<br />

a ditadura e a tortura, isso define o<br />

caráter de classe da Ditadura Militar brasileira.<br />

Esse ainda é o caráter de classe que marca<br />

a tortura contra os pobres em nosso país?<br />

Cecília – As Madres da Praça de Maio têm uma:<br />

“Da Ditadura Militar à ditadura de mercado”.<br />

Obviamente sabemos que os militares foram testasde-ferro<br />

das multinacionais. Os golpes militares<br />

na América Latina, nos anos 60 e 70, servem à implantação<br />

das multinacionais. Vários empresários<br />

deram dinheiro para a formação dos DOI-CODIS<br />

para a Operação Bandeirantes, o laboratório que<br />

começou a funcionar em 69 em São Paulo, onde se<br />

unificou toda a repressão. Daí é que se originaram<br />

os DOI-CODIS. É por isso que muitos historiadores<br />

afirmam que não devemos usar o termo Ditadura<br />

Militar, e sim civil-militar. Os empresários deram<br />

um apoio muito grande à tortura. Raros não fizeram<br />

isso. Portanto, o caráter de classe está presente<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 41


porque é o caráter do capital. A Ditadura vem para<br />

implementar um determinado momento do capitalismo<br />

internacional. Os militares iniciam a implantação<br />

do projeto neoliberal e os governos civis vão<br />

complementando, mantendo e aprofundando esse<br />

projeto. E chega ao ponto em que temos um governo<br />

do Partido dos Trabalhadores, que tem uma responsabilidade<br />

social enorme em completar essa obra.<br />

Classe – Em novembro de 2007, o médico<br />

Harry Shibata, que foi diretor do IML e<br />

assinava atestados de óbito durante a Ditadura,<br />

deu uma entrevista. Nela, ele diz<br />

que bandido tem “um componente genético”<br />

e defende a eugenia porque, para ele,<br />

“o pessoal lá do Norte e Nordeste não tem<br />

cultura nem inteligência para entender<br />

que é melhor qualidade do que quantidade”<br />

e precisa ser controlado. Um mês antes,<br />

o governador do Rio, Sérgio Cabral,<br />

defendeu a legalização do aborto para reduzir<br />

a violência, afirmando que o índice<br />

de natalidade nos bairros de classe média<br />

e alta do Rio possuem padrão “europeu”,<br />

enquanto as periferias e favelas possuem<br />

níveis “africanos”. Já em agosto deste ano,<br />

o senador Marcelo Crivella, candidato do<br />

PRB (derrotado) à prefeitura do Rio, defendeu<br />

a redução da idade mínima para<br />

laqueadura de trompas e vasectomia, “sobretudo<br />

nas áreas carentes”. Esse pensamento<br />

que relaciona natalidade, pobreza<br />

e violência vem da direita, mas cria cada<br />

vez mais lastros na sociedade?<br />

Cecília – Essas teorias ditas “científicas” estão<br />

presentes no Brasil desde o início do século XX,<br />

42<br />

como a eugenia, que pregava a esterilização dos<br />

considerados “perigosos”, e o higienismo, que vai<br />

dizer que os pobres não têm condições de criar<br />

seus filhos. Uma aliança entre o Direito e a Medicina<br />

aponta quem são os indesejáveis e vai dar<br />

uma essência a essas pessoas, a esses segmentos<br />

pobres da sociedade. Isso se atualiza hoje e de várias<br />

formas, no Congresso Nacional por exemplo.<br />

Hoje, existem 1457 projetos de lei, todos versando<br />

sobre penas mais duras e severas, não só para<br />

diminuição da maioridade penal, mas para que<br />

a criança possa civilmente responder a processos<br />

como testemunha. Existem projetos para que pedófilos<br />

sejam esterilizados quimicamente. Hoje<br />

vemos novas modalidades de eugenia e higienismo.<br />

Isso é o avanço do Estado penal. Quando falo<br />

do fascismo social, estou falando desse resgate<br />

dessas teorias ditas científicas, que voltam a ser<br />

utilizadas no século XXI com outras caras e fisionomias.<br />

É uma forma de se dizer que sim, alguns<br />

merecem a tortura e o extermínio.<br />

Classe - Shibata também disse o seguinte: “A<br />

repressão tinha de combater a subversão na<br />

Ditadura. É a mesma coisa que a Tropa de<br />

Elite fez e faz combatendo o tráfico no morro.<br />

Tem que acabar com a liderança, tem que<br />

matar a liderança mesmo. Mas é pouca gente<br />

na Tropa. Por que quantos morros tem?”<br />

Cecília – Então é isso, bota mais “homens de preto<br />

no morro”. Essa é a mensagem do filme, que é muito<br />

bem feito tecnicamente e totalmente fascista. De<br />

uma forma heróica e naturalizada, mostra a participação<br />

da polícia na tortura e no extermínio. Não<br />

é por acaso que eles dão tanta ênfase aos treinamentos.<br />

Os treinamentos militares hoje produzem<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


torturadores. Isso precisa ser pensado pelo Estado<br />

brasileiro porque acontece tanto na Polícia Militar,<br />

como na Guarda Municipal e nas três Forças Armadas.<br />

Inclusive há casos de jovens que morrem<br />

em treinamento no Exército e que as famílias não<br />

conseguem denunciar porque têm medo.<br />

Classe - O que as Forças Armadas<br />

representam hoje?<br />

Cecília – O que sempre representaram: o braço armado<br />

do capitalismo, como as polícias também. Se<br />

o atual governo diz que é popular e democrático, as<br />

Forças Armadas deveriam ser as primeiras a desejar<br />

trazer à tona o que aconteceu em nossa História<br />

para toda a sociedade. Trazer os crimes que foram<br />

praticados em nome da Segurança Nacional, crimes<br />

praticados por seus agentes, com o apoio dos<br />

comandantes militares, dos presidentes militares.<br />

Se as Forças Armadas querem pensar na construção<br />

de uma sociedade um pouco mais aberta e democrática,<br />

essa História precisa ser contada.<br />

Classe – Como se gestou esse conceito de<br />

“classes perigosas?”<br />

Cecília – Ele aparece em 1857 na Europa, num<br />

livro do Morel chamado “Teoria da Degenerescência”.<br />

É a primeira vez que se usa esse termo e<br />

o Morel diz que na sociedade existe uma variedade<br />

de “espécies” perigosas. Daí por diante, esse<br />

pensamento veio se alastrando.<br />

Classe – Como a imprensa ajudou e continua<br />

ajudando na construção desse pensamento?<br />

Cecília – Naturalizando isso, a essência. A imprensa<br />

ajuda quando não cessa de repetir que o pobre,<br />

se ainda não é perigoso, vai se tornar. Quando<br />

produz o terror e o inimigo: o negro, o pobre.<br />

O Milton Santos dizia que, nesse processo, não só<br />

caracteriza como perigosos os segmentos pobres<br />

da população, mas também os territórios que<br />

eles habitam. São territórios perigosos, como as<br />

favelas. Então, a sociedade passa a achar que<br />

isso é natural. A situação é tão terrível que tem<br />

um filósofo italiano, Agamben, que diz que se<br />

produziu hoje o que ele chama de “vida nua”,<br />

aquele que é matável e que, portanto, não é considerado<br />

homicídio. O que se dissemina é que<br />

para a minha segurança é necessário que esses<br />

“matáveis” sejam mortos. Daí a política de segurança<br />

pública militarizada.<br />

Classe – A maximização desse Estado penal<br />

é propícia para a criminalização do<br />

movimento social?<br />

Cecília – Sim, e principalmente a criminalização<br />

dos que não foram capturados pelo Governo<br />

Lula. Vivemos também um momento de judicialização<br />

do cotidiano. Ou seja, a justiça penetra<br />

no cotidiano e a gente não se dá conta disso.<br />

Passamos a defender também que para a nossa<br />

segurança precisamos de leis mais duras, penas<br />

mais severas e mais agressivas como prisão perpétua,<br />

diminuição da maioridade penal, pena<br />

de morte. Aqui na UFF, por exemplo, já existe<br />

um curso de especialização em segurança pública<br />

que eu acho muito estranho. É um curso que,<br />

para meu espanto, ao que parece, substituiu um<br />

curso que havia na PM. Ou seja, para se chegar<br />

a coronel era necessário passar por esse curso,<br />

que se assemelha a um doutorado. Acho que a<br />

formação de policiais, civis ou militares, precisa<br />

ser feita em academias próprias para isso.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 43


Classe – E por onde passaria essa discussão<br />

na universidade?<br />

Cecília - A questão da segurança pública precisa<br />

ser discutida nas ciências humanas e sociais.<br />

Essa discussão tem de estar presente na Psicologia,<br />

na Sociologia, no Direito, nas ciências políticas.<br />

Hoje, se tenta criar um curso de graduação<br />

em segurança pública (* o curso não foi aprovado),<br />

o que eu acho muito perigoso dentro desse contexto<br />

em que vivemos. Por que criar um especialista<br />

em segurança pública se o sociólogo pode discutir<br />

isso? Se o psicólogo pode discutir isso? Se o antropólogo<br />

pode discutir isso? A resposta que encontro<br />

é porque a segurança pública virou também um<br />

grande mercado, outra conseqüência desse Esta-<br />

do Penal que se maximiza. Hoje, os estudantes<br />

que criticam a implantação desse curso são também<br />

criminalizados.<br />

Classe - A quem interessa difundir essa idéia<br />

de que vivemos uma guerra civil?<br />

Cecília – Aos poderosos, já que, uma vez aceita<br />

essa idéia, entramos no vale-tudo. Significa<br />

dizer que se a minha segurança depende da eliminação<br />

do outro, que morra o outro. Mas a segurança<br />

em questão é sempre a do rico e o outro<br />

que precisa morrer é sempre o pobre.<br />

Classe – Isso gerou um novo tipo de<br />

subjetividade?<br />

44 OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Foto: Stela Guedes Caputo<br />

Cecília - É o que eu chamo de uma subjetividade<br />

moralista-policialesca-punitiva-paranóica:<br />

todos com medo de todos, mas o alvo maior de<br />

nosso medo e, portanto, alvo da maior punição,<br />

é o pobre. A Vera Malaguti fala muito bem que a<br />

produção do medo na cidade do Rio de Janeiro<br />

é uma forma de controle social.<br />

Classe – É esse medo produzido que faz com<br />

que se exija mais leis?<br />

Cecília – Sem dúvida. O homossexual quer criminalizar<br />

o homofóbico, os ecologistas os que poluem,<br />

os pais que não mandam seus filhos para a<br />

escola são criminalizados. Você criminaliza tudo<br />

e a gente acaba achando que a solução é por aí.<br />

Não adianta pedir mais leis, pedir mais tutela<br />

do Estado: as leis estão aí. O Estatuto da Criança<br />

e do Adolescente, por exemplo, está fazendo 18<br />

anos e nunca foi implementado. A criança pobre<br />

continua sendo chamada de menor e não de<br />

criança. O meu filho é criança, o filho da pobreza<br />

é menor. Para que mais leis?<br />

Classe – Em que medida a construção dicotômica<br />

da “cidade partida”, do Zuenir<br />

Ventura, atrapalha a compreensão da cidade<br />

como uma única realidade onde o<br />

embate, das mais variadas formas, é entre<br />

as classes sociais?<br />

Cecília – Eu acho que nada melhor do que voltar<br />

para Karl Marx, que dizia que miséria e capital<br />

se complementam. Não existem duas cidades<br />

partidas. O capital precisa da miséria e a miséria<br />

é efeito do capital. A cidade se integra e é<br />

uma só, onde o capital produz os explorados que,<br />

juntos, precisam se insurgir contra o capital.<br />

Classe – Como os movimentos culturais podem<br />

ajudar no avanço da consciência da classe<br />

trabalhadora e como também podem atrapalhar?<br />

Em que medida alguns movimentos<br />

reforçam o mito da “cidade partida” e se<br />

conformam numa luta pelo “diálogo entre o<br />

morro e o asfalto e pela visibilidade?”<br />

Cecília – Eu acho que alguns movimentos sociais<br />

são atravessados não só por essas dicotomias,<br />

mas também pela crença de que a luta pela<br />

visibilidade resolve alguma coisa. Não resolve<br />

nada. Essa coisa da visibilidade até reforça isso,<br />

sou contra tudo isso, que não passa de assistencialismo.<br />

Além disso, toda identidade é conservadora<br />

se não lutar contra o capital.<br />

Classe – Por onde passa a mudança de<br />

tudo isso?<br />

Cecília – Pelos movimentos sociais. Eu só entendo<br />

as lutas institucionais vinculadas aos<br />

movimentos sociais. Quando ocupamos espaços<br />

de poder, é para apoiar os movimentos sociais,<br />

e não para capturá-los, mas importantes lideranças<br />

foram capturadas por esse governo neoliberal<br />

do Lula e isso não pode mais acontecer.<br />

O problema é que os movimentos que não foram<br />

capturados pelo governo estão sendo capturados<br />

pela subjetividade penal, pela luta dos<br />

movimentos culturais pura e simples e devemos<br />

também estar alertas para isso. As mudanças<br />

não virão nem em curto nem em médio prazo,<br />

mas, para que as alcancemos algum dia, é preciso<br />

deixar de achar que tudo o que acontece é<br />

natural. É preciso desconfiar dos meios de comunicação,<br />

da mídia de uma forma geral e dos<br />

movimentos conformadores.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 45


O ex-presidente da Associação dos Procuradores<br />

do Estado de São Paulo, José Damião de<br />

Lima Trindade, lançou recentemente a segunda<br />

edição de seu livro “A História Social dos Direitos<br />

Humanos” (Editora Petrópolis). O livro e a atuação<br />

incansável em defesa dos Direitos Humanos fizeram<br />

com que o advogado recebesse, no dia 24/10,<br />

no auditório central da UFRJ, o prêmio “João Canuto<br />

de Direitos Humanos”, na categoria “Destaque<br />

em Educação em Direitos Humanos”, promovido<br />

pela entidade carioca “Movimento Humanos<br />

Direitos”. No ano em que a Declaração Universal<br />

completa 60 anos (10/12/2008), a visão singular<br />

deste autor recoloca a questão da classe social nesta<br />

importante discussão. Na entrevista que segue<br />

ele fala sobre o livro, polícia, criminalização dos<br />

movimentos sociais, mídia e segurança pública.<br />

46<br />

Entrevista com José Damião de Lima Trindade,<br />

ex-presidente da Associação dos Procuradores<br />

do Estado de São Paulo<br />

“Só a esquerda socialista<br />

pode carregar a bandeira<br />

dos Direitos Humanos”<br />

Classe – O Instituto de Segurança Pública<br />

do Rio de Janeiro divulgou que, entre<br />

janeiro e março deste ano, 358 pessoas foram<br />

mortas pela polícia no estado nos chamados<br />

“autos de resistência”, 12% a mais<br />

do que o registrado no mesmo período de<br />

2007. A polícia está matando cada vez mais.<br />

Como avaliar essa realidade?<br />

José Damião – O crescimento da violência policial,<br />

tanto nas ruas quanto no interior das delegacias,<br />

é uma tendência estatisticamente verificável<br />

em praticamente todas as grandes cidades<br />

brasileiras. O caso do Rio chama mais atenção<br />

devido a certas especificidades muito conhecidas.<br />

Primeiro, porque a topografia carioca faz<br />

com que bairros de classes média e alta convivam<br />

lado a lado com bolsões de miséria – diferente-<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


mente de outras capitais, onde já vai adiantado o<br />

processo de expulsão da miséria para a periferia.<br />

São Paulo, que outrora tinha favelas em regiões<br />

centrais da cidade, empurrou-as para longe nas<br />

últimas décadas. Quem entra ou sai da cidade<br />

por qualquer das rodovias de acesso tem de atravessar<br />

o ostensivo cordão de favelas. E é sobre a<br />

pobreza que a violência policial mais se abate.<br />

Por isso, no Rio, a violência policial acaba sendo<br />

mais “visível” para a classe média. Outro aspecto<br />

que chama a atenção no Rio é o sério envolvimento<br />

de policiais militares e civis com as violentas<br />

“milícias” criminosas das zonas norte e oeste, bem<br />

armadas e municiadas, até representadas politicamente,<br />

cada vez mais atrevidas. Não fosse o episódio<br />

de torturas praticadas durante horas contra<br />

repórteres do jornal “O Dia”, em março de 2008,<br />

talvez sequer tivesse sido instalada na Assembléia<br />

Legislativa a CPI sobre as milícias, que o deputado<br />

Marcelo Freixo havia proposto um ano antes.<br />

Outro fator a conferir notoriedade à violência policial<br />

carioca é, digamos, de ordem “publicitária”:<br />

os “caveirões” tornaram-se símbolos aterrorizantes<br />

da brutalidade institucional no estado.<br />

Classe – Como repensar a segurança pública<br />

dentro dos marcos do capitalismo, posto que<br />

nesta ordem é impossível uma sociedade justa?<br />

Afinal, segurança pública para quem?<br />

José Damião – No capitalismo, seja aqui, seja na<br />

Noruega, a função primária do aparato policial e<br />

dos aparatos privados complementares não é propiciar<br />

segurança ao “público” em geral, mas sim<br />

assegurar proteção, difusa ou ostensiva, à propriedade<br />

privada e aos seus detentores. Essa condicionante<br />

básica já limita severamente todos os projetos<br />

de “democratizar” ou “humanizar” o corpo policial<br />

numa sociedade capitalista. Mas numa Noruega,<br />

em que as contradições sociais foram minimizadas<br />

pelo Estado de Bem-Estar (que só agora começa a<br />

ser destruído por lá), a polícia não precisa ser tão<br />

violenta para defender a propriedade privada. Já<br />

na América Latina e África, com desigualdades sociais<br />

extremadas, a violência policial erigiu-se em<br />

principal método profissional das instituições de<br />

segurança. No caso brasileiro, há um agravante: a<br />

impunidade dos assassinos e torturadores da época<br />

da Ditadura Militar acabou sendo uma espécie de<br />

“garantia” de impunidade para os assassinos e torturadores<br />

fardados e sem farda de hoje. Philip Alston,<br />

o relator especial da ONU para execuções sumárias<br />

asseverou que, no Brasil, a polícia tem “carta<br />

branca” para matar. Basta registrar: “resistência<br />

seguida de morte” ou “morte em troca de tiros”.<br />

Classe – É possível pensarmos em ações<br />

específicas para o combate ao racismo<br />

nas instituições de segurança pública, já<br />

que a juventude negra é a principal vítima<br />

da violência policial?<br />

José Damião – Ações educativas interna corporis<br />

na instituição policial têm se mostrado de eficácia<br />

duvidosa, ao menos até agora. O policial civil ou<br />

militar é convocado para assistir umas aulinhas<br />

sobre direitos humanos, igualdade racial, respeito<br />

ao cidadão, e fica nisso. A “ideologia” da violência,<br />

da bala, da pancada, do choque elétrico e do preconceito<br />

racista e classista, que fincou raízes em toda a<br />

instituição policial desde a Ditadura Militar, acaba<br />

pesando mais. Essas aulinhas acabam se tornando<br />

objeto de galhofa. Eu mesmo, chamado para dar<br />

aulas de direitos humanos em cursos de formação<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 47


de policiais militares em São Paulo, percebia o enfado<br />

e o escárnio em muitos semblantes. Não que tais<br />

ações educativas devam ser interrompidas, mas, sozinhas,<br />

são impotentes para transformar mentalidades<br />

e práticas. Faz falta um conjunto de medidas<br />

que amenizaria a situação: salários dignos, para<br />

que os policiais não precisem “trabalhar” para o<br />

tráfico de drogas/armas e para as milícias; recursos<br />

tecnológicos modernos, para que o pau-de-arara<br />

deixe de ser o principal “método” de interrogatório<br />

e investigação; e a mobilização da sociedade, que<br />

deveria se organizar e pressionar para exigir rigor<br />

e verdade na ação da Corregedoria das polícias.<br />

Mas, note bem: usei o verbo amenizar. Essas e ou-<br />

48<br />

Edna Ezequiel, mãe<br />

de Alana, de 12 anos,<br />

assassinada por<br />

policiais militares, em<br />

março de 2007, no<br />

Morro dos Macacos.<br />

Foto: Agência O Globo<br />

tras medidas poderiam amenizar a situação, o que<br />

já seria um avanço em termos de vidas poupadas,<br />

redução da truculência policial e colocação da corrupção<br />

policial “sob certo controle”. Porque a função<br />

policial básica exigida pelas instituições, pelas<br />

classes dominantes e pela grande mídia, porta-voz<br />

das classes dominantes, continuaria a ser a mesma:<br />

reprimir a pobreza, mantê-la afastada da propriedade,<br />

mantê-la trabalhando quietinha e conformada.<br />

Sob o capitalismo, não nos transformaremos<br />

numa Noruega. Mais fácil, com essa crise mundial,<br />

a Noruega retroceder para Brasil.<br />

Classe – Passou a ser comum que manifes-<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


tações contra a violência reúnam mães que<br />

perderam seus filhos. Consolam-se mutuamente<br />

os pais de João Hélio, comerciantes;<br />

os pais de Gabriela Prado, psicólogos (a<br />

mãe faleceu recentemente); a mãe da menina<br />

Alana, morta no Morro dos Macacos,<br />

empregada doméstica; a mãe de Hanry da<br />

Silva, morto por policiais no Lins. O que<br />

une e o que separa essas pessoas?<br />

José Damião – A dor comum as une. E a dor humana<br />

é território sagrado. Consegue, durante certo<br />

tempo, diluir as fronteiras de classe que separavam<br />

essas pessoas. Mas se a dor e a revolta não se<br />

amalgamarem com um projeto de democratização<br />

profunda das nossas corporações policiais, a dor<br />

que hoje arma vozes acabará, por falta de resultados,<br />

se cansando e se calando. Já aconteceu antes.<br />

Classe - No dia 22 de agosto de 2007, a tropa<br />

de choque invadiu a Faculdade de Direito<br />

da USP. Em artigo, na ocasião, você<br />

disse que o ato, além de configurar, por si<br />

mesmo, uma agressão à autonomia universitária,<br />

pôs a nu sua natureza de preconceito<br />

de classe, já que, dentre os presos<br />

naquela madrugada, somente os ativistas<br />

de movimentos sociais foram fichados<br />

na delegacia de polícia.<br />

José Damião – É verdade, os estudantes foram<br />

liberados sem fichamento. A ideologia dominante<br />

até admite que os filhos das classes dominantes<br />

às vezes cometam alguns “excessos”, como protestar,<br />

denunciar, participar de ocupações simbólicas.<br />

Coisa de juventude: quando começarem a ganhar<br />

dinheiro isso passa, é o que dizem – e geralmente<br />

passa mesmo. O patrimônio familiar, a consciência<br />

No capitalismo, não há mais nenhuma<br />

esperança de melhoria social significativa,<br />

o movimento é regressivo, aponta<br />

para a supressão de direitos que,<br />

em alguns casos, os trabalhadores<br />

haviam conquistado já no<br />

final do século dezenove”<br />

de pertencer à elite econômica ou de estar em suas<br />

imediações, quase ingressando nela, acaba se impondo,<br />

salvo as exceções de plantão. Mas pobres, negros,<br />

índios, camponeses, favelados, desempregados<br />

ocuparem por algumas horas o pátio de uma faculdade<br />

pública para protestar contra as injustiças da<br />

sociedade, isso é intolerável: chamem a polícia!<br />

Classe – Como você vê a crescente criminalização<br />

dos movimentos sociais,<br />

em especial, do MST?<br />

José Damião – Vejo com temor devido à falta<br />

de uma reação apropriada, enérgica, da sociedade.<br />

Os movimentos sociais ainda padecem de desnorteamento<br />

político-ideológico, muitos estão paralisados<br />

pela cooptação institucional de seus líderes ou depositam<br />

esperanças em bolsas assistenciais. O movimento<br />

sindical chegou ao fundo do poço, encolhido, desmobilizado,<br />

com uma parcela imensa corrompida.<br />

Mas as contradições sociais, a desigualdade brutal e<br />

a concentração de renda continuam operando, geran-<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 49


do dor social, mal-estar, criminalidade, desemprego.<br />

Isso ainda pode ser contido por uma polícia repressiva.<br />

O que não pode ser admitido é a atividade daquela<br />

franja de movimentos que não se rendeu, que<br />

insiste em organizar os oprimidos, mobilizá-los para<br />

a ação consciente. Isso pode crescer, tornar-se perigoso<br />

no primeiro abalo econômico que o país sofrer.<br />

Antes que saia de controle, é preciso cortar o “mal”<br />

pela raiz. Demissão de sindicalistas, imposição judicial<br />

de “interditos proibitórios” para que os piquetes<br />

de greves não possam se aproximar dos portões das<br />

empresas, multas milionárias contra os sindicatos<br />

combativos, tentativa de colocar o MST na ilegalidade,<br />

uso até da infame Lei de Segurança Nacional<br />

da ditadura... Um novo macartismo começa, aos<br />

poucos, a tomar os poros da sociedade. E não temos<br />

conseguido reunir forças para dar resposta à altura.<br />

Muito preocupante. Se a crise econômica mundial<br />

se precipitar com severidade, isso pode piorar muito,<br />

e rapidamente. Em épocas de crise, as classes dominantes<br />

sempre encontram os seus Roosevelts ou<br />

Mussolinis e usam um ou outro conforme for mais<br />

conveniente para manter seus interesses.<br />

Classe – Muitas universidades estão organizando<br />

pós-graduações e graduações em<br />

Segurança Pública. Como você vê isso?<br />

José Damião – O tema “segurança pública”,<br />

como qualquer outro tema relevante, poderia ser<br />

objeto de atenção científica na academia. O problema<br />

não reside aí. O problema surge na ideologia<br />

que perpassa tais cursos. Estamos numa época em<br />

que o Estado Social cede lugar ao Estado Penal e<br />

a burguesia, em vez de, como antes, administrar<br />

as contradições sociais mediante concessões pontuais,<br />

mas reais, aos trabalhadores, passa a fazê-lo<br />

50<br />

mediante a combinação de um duplo movimento:<br />

anestesiamento da miséria (assistencialismo) e repressão<br />

ao que restar de manifestações daquelas<br />

contradições. Com esse espírito dos tempos, o tema<br />

“segurança pública” acompanha esse movimento:<br />

estudar a segurança pública na academia tem o<br />

propósito de torná-la “mais eficiente”, assimilar<br />

técnicas de contenção social que deram certo em<br />

outros países, sem atenção às conexões sociológicas<br />

da criminalidade e sem investigar a função social<br />

que o capitalismo atribui às forças de segurança.<br />

Isso torna toda transgressão legal um fenômeno<br />

merecedor de atenção puramente “técnica”, “neutra”,<br />

alienada. Exatamente o tipo de formação de<br />

profissionais que convém ao status quo.<br />

Classe - É comum que parentes e pessoas<br />

amigas de vítimas da violência peçam<br />

mudanças no Código Penal, em geral o<br />

endurecimento das penas e a redução da<br />

maioridade penal. A mídia é responsável<br />

por essa associação?<br />

José Damião – A mídia é cúmplice consciente, cínica.<br />

Que familiares e amigos de vítimas, trespassados<br />

pela dor por perdas violentas, queiram “vingar” o<br />

derramamento de sangue com mais derramamento<br />

de sangue, é compreensível. A dor humana, malgrado<br />

sagrada, pode cegar, toldar a lucidez e conduzir<br />

ao insensato. Mas a grande mídia burguesa toma<br />

essa dor humana e transforma-a em espetáculo, com<br />

o propósito de adicionar mais cegueira à cegueira,<br />

para que as vítimas escolham o caminho errado, o<br />

caminho da vingança penal, e não tomem consciência<br />

das raízes sociais da criminalidade. Os juristas,<br />

os políticos, os intelectuais orgânicos das classes dominantes<br />

sabem disso e ocultam. Está demonstrado<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


internacionalmente que o “endurecimento” penal é<br />

inócuo, não altera a curva estatística do delito. Nenhum<br />

delinqüente “consulta” o Código Penal antes<br />

de transgredir. Também está nauseantemente demonstrado<br />

que calabouços não “ressocializam” ninguém.<br />

A privação de liberdade, salvo naqueles raros<br />

casos de psicopatas violentos, fracassou no mundo<br />

todo enquanto instrumento de defesa social. É baixíssimo<br />

o índice de reincidência após o cumprimento de<br />

penas alternativas (prestação de serviços à comunidade,<br />

restrição de direitos, etc.). E é cada vez maior o<br />

índice de reincidência após o cumprimento de penas<br />

de encarceramento. Esses dados são públicos, estão<br />

disponíveis. Mas, como a burguesia não consegue<br />

aliviar o mal-estar social – precisaria mexer com os<br />

lucros – ela prefere alimentar essas ilusões penais de<br />

Talião, trágicas para os oprimidos.<br />

Classe – Quando se vai contra essa lógica,<br />

seus defensores criticam “a turma dos direitos<br />

humanos”. Como responder a esse endurecimento<br />

social cada vez mais cimentado?<br />

José Damião – É muito difícil dar essa reposta<br />

porque, como se sabe, a ideologia dominante<br />

numa sociedade é sempre a ideologia da classe<br />

dominante. Se não conseguirmos estabelecer uma<br />

conexão eficiente entre cada uma das mazelas sociais<br />

e o verdadeiro epicentro do problema – a<br />

divisão social em classes – não conseguiremos<br />

manter um discurso coerente nem convincente.<br />

Classe – No seu livro “A história social dos<br />

Direitos Humanos”, relançado agora, o<br />

senhor diz que a burguesia, que originalmente<br />

concebeu o discurso dos direitos<br />

humanos, precisa hoje rejeitá-lo e que a es-<br />

querda, que o identificava como mistificação<br />

ideológica, tomou-o para si. Mas como<br />

a esquerda deve carregar essa bandeira?<br />

José Damião – Só a esquerda socialista pode<br />

hoje carregar a bandeira dos direitos humanos. A<br />

burguesia desinteressou-se dela – não pode mais<br />

sustentá-la. Poderia hoje o capitalismo universalizar<br />

direitos econômicos, sociais e culturais, da Namíbia<br />

à Holanda? Obviamente, não. O movimento<br />

do capital, a acelerada incorporação da ciência e<br />

da tecnologia nos processos produtivos e a desregulamentação<br />

dos mercados acirraram dramaticamente<br />

a concorrência mundial inter-capitalista<br />

nas últimas duas ou três décadas. Para sobreviver<br />

nessa guerra hobbesiana, o capital precisa cortar<br />

custos de produção de mercadorias. Economizar<br />

com meios de produção tornou-se impossível, a<br />

produtividade despencaria. O único “custo” que<br />

restou disponível para ser cortado é o da própria<br />

força de trabalho. Redução/supressão de direitos<br />

econômico-sociais – eis a sacrossanta consigna que<br />

entoam os capitalistas ao redor do planeta. Desunidos<br />

e confusos ideologicamente, acuados pela maré<br />

montante do novo exército industrial de reserva (o<br />

desemprego estrutural), os trabalhadores não têm<br />

conseguido resistir. No capitalismo, não há mais<br />

nenhuma esperança de melhoria social significativa,<br />

o movimento é regressivo, aponta para a supressão<br />

de direitos que, em alguns casos, os trabalhadores<br />

haviam conquistado já no final do século<br />

XIX. E os direitos individuais? Quanto a eles, qual<br />

o significado de Abu Ghraib, Guantánamo, dos<br />

navios-prisões que hoje os EUA mantêm em águas<br />

internacionais do Pacífico, dos centros secretos de<br />

tortura que instalaram na Europa Ocidental, no<br />

Egito, no Paquistão? Qual o significado das guer-<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 51


A esquerda está<br />

“condenada” a<br />

defender os direitos<br />

humanos ou capitula<br />

miseravelmente”<br />

ras de agressão da maior potência imperial? Qual<br />

o significado da covarde conivência/complascência<br />

da “comunidade internacional” em relação a tais<br />

violações? A esquerda está “condenada” a defender<br />

os direitos humanos ou capitula miseravelmente.<br />

Classe – O senhor também explica que a Declaração<br />

de 1948 tentou conciliar liberalismo<br />

e socialismo, mas manteve o direito de<br />

propriedade ilimitado. Os socialistas porém<br />

querem socializar os meios de produção.<br />

Como resolver a contradição?<br />

José Damião – Essa contradição é reveladora<br />

do duplo discurso existente sobre direitos<br />

humanos. Um discurso hipócrita, para uso<br />

político e diplomático, e outro discurso inescapavelmente<br />

libertador. O discurso hipócrita<br />

é o da diplomacia norte-americana e de seus<br />

repetidores em todos os países, que separa a<br />

humanidade em duas classes distintas de “hu-<br />

52<br />

manos”: de um lado, as classes dominantes do<br />

mundo; de outro lado, os subalternos de toda<br />

parte. Aos primeiros, vale tudo para defender<br />

seus interesses egoístas, predadores, destruidores<br />

da humanidade e do planeta, desde sanções<br />

econômicas até disparos de mísseis. Aos<br />

subalternos, nega-se direitos os mais elementares.<br />

Que importância tem para Wall Street<br />

a miséria apavorante da África subsaariana?<br />

Ante a perspectiva da globalização da barbárie,<br />

é Karl Marx – não Adam Smith ou Hayek<br />

– quem tem algo a nos dizer. E que o ouçamos<br />

logo, se é que ainda não renunciamos ao sonho<br />

belo, possível e, hoje, crucialmente necessário<br />

de edificarmos um mundo que permita a todos<br />

sobreviver – sobreviver com dignidade e com<br />

um pouco de amor, sem desperdício e sem terrores<br />

pré-históricos. Temos escolha, e é esta:<br />

entre Sísifo e Prometeu. Ambos foram condenados<br />

a tormentos eternos. Prometeu, porque<br />

roubou fogo aos deuses e o entregou à humanidade,<br />

libertando-a. Já o tormento de Sísifo<br />

é acabrunhante, porque sem sentido: carregar<br />

nos ombros uma grande rocha até o alto de<br />

uma montanha, perdê-la logo antes de chegar<br />

ao cume, vê-la rolar de volta ao sopé, retomar<br />

a pedra, subir novamente a montanha, a rocha<br />

a escapar-lhe novamente das mãos... Ambos<br />

os mitos podem ser tomados como metáforas<br />

da condição humana. O de Sísifo, metáfora da<br />

persistência, do eterno recomeçar – mas um recomeçar<br />

solitário e trágico, sem sentido e sem<br />

liberdade. Já Prometeu, mesmo acorrentado e<br />

com uma ave de rapina a devorar-lhe o fígado,<br />

é livre e libertador: porque escolheu transgredir<br />

a lei dos deuses em favor da humanidade.<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Comunicação e controle social<br />

Marcelo Salles<br />

Jornalista<br />

As corporações de mídia são as principais<br />

responsáveis pela criminalização da pobreza<br />

e dos movimentos sociais. Não há outra<br />

instituição da república com maior poder de<br />

produzir e reproduzir o discurso que associa<br />

pobre a bandido – e organizações de trabalhadores<br />

a bandos criminosos. Mais que a família,<br />

a escola, as Forças Armadas ou qualquer<br />

outra instituição, a mídia alcança um poder<br />

desmedido e destrutivo no Brasil basicamente<br />

por dois motivos: a brutal concentração dos veículos<br />

de comunicação de massa nas mãos da<br />

direita e o avanço das tecnologias da informação,<br />

o que permite que sua mensagem alcance<br />

praticamente a totalidade da população.<br />

Apenas para se ter uma idéia, nos EUA<br />

é proibido que um mesmo grupo empresarial<br />

controle, na mesma praça, um veículo de comunicação<br />

impresso e uma emissora de rádio;<br />

ou uma emissora de rádio e outra de televisão;<br />

e assim por diante. Além disso, o conselho federal<br />

de comunicação estadunidense proíbe que<br />

Mídia e Política<br />

o mesmo proprietário detenha mais de 30% da<br />

audiência dos veículos de radiodifusão num<br />

mesmo local. Aqui no Brasil, por outro lado,<br />

uma única empresa controla 40% da audiência<br />

e recebe 60% das verbas publicitárias.<br />

Para piorar o quadro, há um dado impressionante<br />

do Instituto Paulo Montenegro,<br />

que foi citado pelo pesquisador da UnB Venício<br />

Lima em seu livro “Mídia: teoria e política”<br />

(Fundação Perseu Abramo): apenas 26%<br />

da população brasileira entende o que lê. Isso<br />

significa que o rádio e a televisão ganham<br />

ainda mais poder, já que para transmitir suas<br />

mensagens não dependem que o público seja<br />

alfabetizado. Esta característica da mídia de<br />

massa poderia ser um dado positivo, já que no<br />

Brasil os veículos de radiodifusão são concessões<br />

públicas e, portanto, deveriam ser controlados<br />

pelo povo brasileiro – e em seu benefício.<br />

Erradicar o analfabetismo, por exemplo,<br />

levaria apenas 30 meses pelo método cubano<br />

“Yo sí Puedo”, que emprega o sistema audiovisual.<br />

Entretanto, os parlamentares que autorizam<br />

a renovação das concessões são, muitas<br />

vezes, proprietários de emissoras afiliadas<br />

às grandes redes – o que fere o artigo 54 da<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 53


Constituição Federal – uma situação que perpetua<br />

a relação fisiológica estabelecida com a<br />

ditadura civil-militar de 1964.<br />

O resultado é que hoje, em 2008, o Brasil,<br />

país de 190 milhões de habitantes, possui<br />

apenas 7 emissoras abertas de televisão, sendo<br />

que seis delas são ideologicamente afinadas<br />

e estão a serviço da exploração dos povos<br />

para garantir os lucros das corporações privadas<br />

mundo afora. A outra emissora apenas<br />

agora começa a buscar uma outra narrativa,<br />

mas ainda não ofereceu elementos concretos<br />

que apontem para uma alternativa ao pensamento<br />

único. Não parece casual que um dos<br />

países mais desiguais do mundo seja também<br />

um país com esse nível de concentração midiática.<br />

Uma pesquisa da ONU revela que os<br />

meios de comunicação estão em segundo lugar<br />

entre os poderes de fato da América Latina,<br />

muito à frente dos três poderes da república e<br />

um pouquinho atrás do poder econômico (ver<br />

tabela). O cruzamento dos dados permite afirmar:<br />

as corporações de mídia são diretamente<br />

responsáveis pelas mazelas brasileiras.<br />

Esse monopólio midiático atua em todos<br />

os setores da sociedade. Desde política e<br />

economia, passando pela cultura e pelo entretenimento,<br />

até chegar nas questões internacionais,<br />

ciência e turismo, entre outros. Suas<br />

intervenções nunca são neutras ou imparciais,<br />

como alguns sustentam. Como as corporações<br />

de mídia estão organizadas enquanto<br />

empresas, elas também buscam o lucro acima<br />

de tudo – para si e para as empresas associadas.<br />

Essa característica, por si só, inviabiliza<br />

a busca do equilíbrio e, mais além, torna-se<br />

54<br />

determinante na elaboração das mensagens<br />

(objetivas e subjetivas) que projeta.<br />

Esse olhar interessado também é percebido<br />

no tratamento das classes trabalhadoras<br />

e dos movimentos sociais. A solução encontrada<br />

pelo capitalismo tardio na América Latina<br />

para lidar com a pobreza é inspirada no<br />

“Tolerância Zero”, nascido em Nova York, de<br />

modo que as medidas punitivas são cada vez<br />

mais direcionadas aos que não se submetem<br />

aos postos de trabalho mal remunerado e sem<br />

qualificação. O sistema coloca a seguinte alternativa:<br />

salário mínimo de R$ 415 ou trabalho<br />

informal. Num, o cidadão vai ser oprimido<br />

pelo patrão e pela remuneração insuficiente;<br />

noutro, pelas forças de segurança do Estado.<br />

Os movimentos sociais são igualmente reprimidos<br />

pela imprensa hegemônica. Como esses<br />

grupos querem transformar a realidade, os<br />

porta-vozes dos que lucram com o atual estado<br />

de coisas vociferam – e distorcem e mentem. Foi<br />

o que aconteceu com uma chamada na primeira<br />

página do jornal O Globo de 30 de setembro<br />

de 2008, que teve a intenção de criminalizar o<br />

MST: “Maiores desmatadores do país são semterra,<br />

revela Minc”. A informação foi desmentida<br />

na página do movimento (www.mst.org), mas<br />

o jornal não a publicou nos dias seguintes.<br />

Está claro que o objetivo desse sistema é<br />

manter o controle social. Um controle voltado,<br />

notadamente, para pobres, negros e jovens. E<br />

os veículos de comunicação de massa jogam<br />

papel decisivo. Eles disseminam o medo e<br />

afirmam que os pobres são bandidos e os movimentos<br />

sociais, criminosos. O resultado é<br />

um clamor público pela repressão. Obediente,<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


a polícia reprime, promove chacinas, mas logo<br />

tudo volta a ser como era antes.<br />

Se os movimentos sociais quiserem promover<br />

mudanças substanciais, mudanças que<br />

causem impacto positivo na vida das pessoas,<br />

Poderes<br />

de fato<br />

Poderes<br />

constitucionais<br />

Forças de<br />

segurança<br />

Instituições<br />

e líderes<br />

políticos<br />

Fatores<br />

extraterritoriais<br />

Grupos econômicos/empresariais/setor financeiro 79,7%<br />

Meios de comunicação 65,2%<br />

Poder executivo 36,4%<br />

Poder legislativo 12,8%<br />

Poder Judiciário 8,5%<br />

Forças armadas 21,4%<br />

Polícia 2,7%<br />

Partidos políticos 29,9%<br />

Políticos/líderes políticos/operadores políticos 6,9%<br />

EUA / Embaixada dos EUA 22,9%<br />

Organismos multilaterais de crédito<br />

(FMI, BID, Banco Mundial, etc.)<br />

será preciso enfrentar a luta pelo controle dos<br />

meios de comunicação de massa. Só assim o<br />

povo deixará de ser manipulado e passará a<br />

defender os interesses da maioria em vez de<br />

se voltar contra eles.<br />

Quem exerce o poder na América Latina?<br />

16,6%<br />

Empresas multinacionais 4,8%<br />

Base: 231 entrevistas com líderes políticos, incluindo presidentes em exercício (51% do total), intelectuais<br />

(14%), empresários (11%), jornalistas (7%), lideranças da sociedade civil (6%), etc.<br />

FONTE: LA DEMOCRACIA EN AMERICA LATINA.PNUD, 2004<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 55


Mais Mais do mesmo mesmo na Câmara<br />

Municipal do Rio Rio de Janeiro<br />

Fernanda Chaves<br />

jornalista<br />

O povo do Rio de Janeiro acaba de eleger<br />

para mais quatro anos a nova formação da Câmara<br />

Municipal. Entre os representantes, tem<br />

de um tudo. Dos de sempre aos chamados fichassujas.<br />

Do que há de mais conservador às figuras<br />

polêmicas. E nem sempre uma classificação invalida<br />

a outra. Entre eles, alguns com ligações<br />

com o crime organizado ou já respondendo a processos<br />

criminais, em situações já mais que esplanadas<br />

pela imprensa.<br />

Hoje, existem acusações do Ministério<br />

Público e condenações de quadros políticos do<br />

vários partidos. O ex-vereador Jerominho Guimarães<br />

(PMDB), o deputado Natalino Guimarães<br />

(DEM) e Carminha Jerominho (PTdoB),<br />

todos da mesma família, estão presos por liderar,<br />

segundo a polícia, a quadrilha autodenominada<br />

Liga da Justiça, que atua na Zona Oeste<br />

do Rio de Janeiro. No entanto, estar num<br />

56<br />

presídio em regime disciplinar diferenciado<br />

não impediu que Carminha tivesse conquistados<br />

astronômicos 22 mil votos.<br />

Jorge Babu, deputado estadual (PT), é<br />

também acusado pelo Ministério Público por<br />

envolvimento com milícias. Seu apoio foi fundamental<br />

para eleger o irmão, Elton Babu,<br />

o segundo vereador mais votado do PT, com<br />

mais de 11 mil votos. É possível considerar,<br />

contudo, que um provável “efeito-CPI das milícias”<br />

tenha recaído sobre alguns candidatos<br />

- já um pouco desgastados, é verdade - como<br />

Nadinho de Rio das Pedras (DEM) e Luiz André<br />

Deco (PR), que não conseguiram manter<br />

suas vagas na Câmara Municipal.<br />

É possível também ter a sensação de que<br />

a CPI que investiga as milícias, na Assembléia<br />

Legislativa, está vencendo a batalha pedagógica<br />

de entendimento do que elas representam:<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


o tema está na pauta, nos papos, já não é mais<br />

considerado um mal menor. Mas, paradoxalmente,<br />

quadros como Cristiano Girão (PMN)<br />

(que chegou a admitir durante seu depoimento<br />

à CPI que na “sua” área ele não permitia “maconheiros<br />

e cheiradores”) e o já citado Elton<br />

Babu figuram na leva de 40% de renovação do<br />

parlamento municipal do Rio de Janeiro. Isso<br />

para ficar no crime de milícias - que até recentemente<br />

sequer tinha tipificação no código penal<br />

brasileiro - porque, se giramos o foco para<br />

outro tipo de crime representado na Câmara,<br />

temos Claudinho da Academia, do PSDC, suspeito<br />

de ser o candidato apoiado pelo tráfico<br />

varejista de drogas na favela da Rocinha, na<br />

zona sul do Rio, eleito com 11.513 votos.<br />

Ok, Carminha Jerominho teve sua candidatura<br />

impugnada e, caso o recurso dela seja<br />

rejeitado, seus votos serão considerados nulos.<br />

Tudo bem. Mas o fato é: ela recebeu 22 mil votos.<br />

De eleitores. Pessoas físicas, como eu e como<br />

qualquer cidadão, não é isto? Canso de ouvir falar<br />

sobre a responsabilidade do eleitor, coisa e<br />

tal. Outro dia era o motorista do táxi. Acabava de<br />

dar no rádio que os dados na cidade davam conta<br />

de cariocas votando em uma candidata presa,<br />

um suspeito de integrar milícias e outro de ser<br />

o candidato apoiado pelo tráfico de drogas na<br />

Rocinha. Ele, o motorista, revoltado com a configuração<br />

do novo legislativo carioca e naquela<br />

de que “o povo tem o que merece porque dá seu<br />

voto a esses bandidos para se representar, e não<br />

é porque não sabe, pois os jornais estão aí”. Discurso<br />

que você quase absorve. Quase.<br />

Porque, nem que seja intuitivamente,<br />

você se dá conta de que ser humano algum<br />

quer ser representado por um corrupto. E não<br />

é difícil concluir que a política é produto de um<br />

processo que não é individual, do meu ou do<br />

seu voto. E o que prevalece é a idéia de sustentação<br />

política clientelista - seja legal ou criminosa,<br />

seja oficial ou paralela, utilizando-se ou<br />

não do Estado - é que permite que essas pessoas<br />

sejam eleitas. O motorista de táxi já estava<br />

longe a essa altura da minha lenta reflexão, e<br />

já não era mais possível compartilhar com ele<br />

a opinião do cientista político Eduardo Alves:<br />

“Não há diferença POLÍTICA entre o<br />

clientelismo de Estado e outros tipos de clientelismos.<br />

As diferenças são legais e morais.<br />

Algumas morais assimilam o clientelismo de<br />

Estado e não o clientelismo ilegal. Outras morais<br />

assimilam o clientelismo consentido, mas<br />

rechaçam o clientelismo feito por meio da coerção.<br />

Mas do ponto de vista POLÍTICO não há<br />

diferença entre esses modelos de clientelismo. A<br />

política clientelista das milícias, do tráfico, dos<br />

chamados centros sociais, do setor privado, das<br />

organizações assistenciais mantidas por vários<br />

políticos ou do Estado (em qualquer dos seus<br />

níveis), possui como objetivo manter o controle<br />

sobre um determinado setor da sociedade;<br />

justamente o setor mais penalizado pelo empobrecimento,<br />

mais sacrificado pela prática da<br />

exploração, mais discriminado por sua condição<br />

social. É esse setor que está mais suscetível<br />

às políticas clientelistas. E como tais políticas<br />

fazem diferença concreta, real, objetiva para<br />

a reprodução da vida dessas pessoas, que são<br />

maioria na sociedade brasileira, as conseqüências<br />

dessa política nos processos eleitorais são<br />

das mais profundas perversidades”.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 57


Filmes<br />

Algumas reflexões a partir do filme<br />

“Quanto vale ou é por quilo?”<br />

Dora henrique da Costa e Lea Calvão da Silva<br />

Professoras da Faculdade de Educação da UFF<br />

“Há meio século, os escravos fugiam com<br />

freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam<br />

da escravidão. Sucedia ocasionalmente<br />

apanharem pancada, e nem todos gostavam de<br />

apanhar pancada”, conta Machado de Assis.<br />

58<br />

Cento e vinte anos passados do que se<br />

chamou o fim da escravidão negra no Brasil,<br />

uma imensa maioria de homens, mulheres e<br />

crianças livres - descendentes, muitos deles,<br />

daqueles que fugiam e apanhavam - sofre de<br />

outra tortura. Não a pancada, a chibata, a<br />

máscara de folha de flandres, os anéis de ferro<br />

ao pescoço, a argola aos pés. Não mais esses<br />

sinais ostensivos de dominação e dor. Igual<br />

em crueldade, o instrumento de agora é outro<br />

e, como aqueles, humilha e avilta. Mais que<br />

isso. Mata. No século da produção abundante<br />

de alimentos, da prosperidade deslocada de<br />

uns poucos, dos cânones do trabalho flexível,<br />

esses homens – também são muitos e também<br />

não gostam da tortura – não conseguem fugir<br />

da fome e do que a provoca, o não-trabalho.<br />

“Quanto vale ou é por quilo?” fala desses<br />

dois tempos. O filme situa-se ora como<br />

documental, ora ficcional. Ao basear-se em<br />

material pesquisado no Arquivo Nacional,<br />

introduz-nos na linguagem documental; ao<br />

apoiar-se no conto “Pai contra mãe”, de Machado<br />

de Assis, remete-nos a momento histórico-literário.<br />

Ao trazer a ação para os dias<br />

atuais, e embora partindo de análises científicas<br />

sobre a realidade, introduz-nos à ficção.<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Seu autor, Sérgio Bianchi, entrecruzando<br />

cenas do conto, registros em documentos oficiais<br />

de época e ações exercidas por ONG´s,<br />

denuncia a lógica da desumanização.<br />

A cena inicial do filme é a de uma negra<br />

alforriada, lutando para reaver sua propriedade,<br />

um escravo que lhe fora roubado. Na<br />

seqüência, cenas de iniciativas individuais<br />

ou empresarias voltadas à ajuda aos pobres.<br />

Divulgando-se como ação humanitária, a disputa<br />

pela propriedade e pelo ganho de dinheiro,<br />

tendo como fonte a miséria, marca todo o<br />

desenvolvimento do filme.<br />

A trama partida em dias da escravidão e<br />

dias de hoje vai revelando faces da realidade.<br />

Assim contada em dois tempos, é a história de<br />

uma mesma totalidade.<br />

O termo totalidade é aqui tomado como a<br />

idéia que ampara o mecanismo de apropriação<br />

da realidade. Portanto, a que é usada para a<br />

explicitação de aspectos importantes do tratamento<br />

metodológico dado a qualquer objeto de<br />

estudo. Milton Santos entende ser a totalidade<br />

uma noção das mais fecundas legadas pela filosofia<br />

clássica, constituindo-se em elemento fundamental<br />

para o conhecimento da realidade.<br />

Podemos dizer que as faces da realidade<br />

mostradas no filme expressam o mesmo sistema<br />

– totalidade em movimento – resultado do<br />

processo histórico que a elas deu origem. O filme<br />

deixa claro que, ontem como hoje, são as relações<br />

mercadológicas as que predominam nas relações<br />

interpessoais. São elas que evidenciam, como<br />

mostra o filme, o quanto a pobreza e a miséria se<br />

transformam em negócios lucrativos.<br />

Ao analisar o momento atual, o autor con-<br />

Zezé Mota na cena inicial do filme.<br />

centra a atenção em ações desenvolvidas por<br />

ONG´s, mostrando como elas, em sua maioria,<br />

alimentam-se exatamente da existência e profundidade<br />

da pobreza e da miséria.<br />

O termo ONG, utilizado pela ONU em<br />

1940 e adotado largamente a partir dos anos<br />

1960, designava organizações não governamentais<br />

– hoje também denominadas terceiro<br />

setor - definidas como de direito civil, sem<br />

fins lucrativos e sem vínculos com governos,<br />

sindicatos ou partidos políticos.<br />

Até a década de 1970, as ONG´s increviam-se<br />

nos movimentos sociais, atuando<br />

em vários ramos de atividades, trabalhando<br />

com projetos sociais e de promoção da cidadania,<br />

defendendo o meio ambiente e os<br />

direitos das minorias. Elas se constituíam,<br />

então, em instrumento eminentemente polí-<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 59


tico. No caso brasileiro, por exemplo, foram<br />

instrumento de luta pela democratização da<br />

sociedade nos anos da ditadura.<br />

A partir da década de 1990, já totalmente<br />

absorvidas pelo sistema, as ONG´s têm<br />

tido como marca fundamental a parceria com<br />

o Estado, com instituições religiosas e com<br />

fundações empresariais, exercendo papel paliativo<br />

e amortecedor da luta social.<br />

Vale observar que a existência das<br />

ONG´s está ligada, de forma diretamente<br />

proporcional, à sua capacidade de angariar<br />

fundos para seu funcionamento, sendo, pois,<br />

relativa a sua autonomia. Esta dependerá<br />

sempre da origem dos recursos.<br />

A ação das ONG´s, ao se dirigir a grupos<br />

específicos, acaba negando a universalidade<br />

das lutas sociais. Em outras palavras, na medida<br />

em que dirigem suas ações a grupos específicos,<br />

fragmentam as reivindicações de políticas<br />

sociais e universais de cidadania. Dessa forma,<br />

o dito terceiro setor torna-se braço auxiliar na<br />

implementação de políticas favoráveis à reestruração<br />

do capital. E mais: tal como o filme denuncia,<br />

as ONG´s se constituem, elas mesmas,<br />

em agentes da exploração direta da miséria.<br />

Podemos concluir que o papel efetivo das<br />

ONG´s tem sido – direta ou indiretamente – o<br />

de contribuir para a manutenção da hegemonia<br />

do projeto social sob a égide da burguesia.<br />

Ao partir para a ação diretamente ligada a<br />

grupos de interesse que não se definem pelas<br />

relações de trabalho, tais como mulheres,<br />

crianças, homossexuais, terceira idade, ecologia,<br />

etnia, as ONG´s, além de pulverizar e<br />

particularizar as atuações desses grupos de<br />

60<br />

referência, ao colocar as lutas fora do campo<br />

econômico, não representam um perigo para<br />

o funcionamento da sociedade capitalista. Na<br />

realidade, suas ações acabam por desviar a<br />

reflexão que deveria estar voltada para os<br />

mecanismos de exploração e expropriação a<br />

que está submetida a classe trabalhadora.<br />

Filmes como esse permitem a reflexão<br />

sobre a realidade. Possibilitam-nos pensar<br />

em formas de rejeição da exploração, primeiro<br />

passo para a luta por uma outra forma<br />

de organização societária. Por uma organização<br />

em que os homens, afinal saindo<br />

do ensaio de humanidade, possam exercer<br />

sua humanidade em plenitude.<br />

Ficha Técnica:<br />

Título Original: Quanto Vale ou é por Quilo?<br />

Gênero: Drama<br />

Tempo de Duração: 104 minutos<br />

Ano de Lançamento (Brasil): 2005<br />

Site Oficial: www.quantovaleoueporquilo.com.br<br />

Estúdio: Agravo Produções Cinematográficas S/C Ltda.<br />

Distribuição: Riofilme<br />

Direção: Sérgio Bianchi<br />

Roteiro: Sérgio Bianchi, Eduardo Benaim e Newton Canitto,<br />

baseado no conto “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis<br />

Produção: Patrick Leblanc e Luís Alberto Pereira<br />

Fotografia: Marcelo Copanni<br />

Desenho de Produção: Jussara Perussolo<br />

Direção de Arte: Renata Tessari<br />

Figurino: Carol Lee, David Parizotti e Marisa Guimarães<br />

Edição: Paulo Sacramento<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Mike Davis,<br />

Planeta favela<br />

Maurício Vieira Martins<br />

Professor do Depto. de Sociologia da UFF<br />

Nossa Resenha<br />

“Mas o que é slum, palavra inglesa<br />

que significa ‘favela?’”,<br />

pergunta-se Mike Davis num<br />

certo momento de seu livro “Planeta<br />

favela” (Editorial Boitempo,<br />

2006). Para responder esta pergunta,<br />

Davis recua até o início do<br />

século XIX, na Inglaterra pós-Revolução<br />

Industrial, onde localiza a<br />

primeira definição de que se tem<br />

notícia de “slum”, que associa a<br />

palavra a “estelionato” (racket), e<br />

ao “comércio criminoso” (p. 32).<br />

Não demorou muito para que, de<br />

designação de um ato, a palavra<br />

passasse a ser atribuída também<br />

aos locais urbanos degradados<br />

onde habitavam trabalhadores<br />

pobres. Marcada pelo preconceito,<br />

a definição associada a estelionato<br />

desliza, de maneira nada<br />

sutil, à moradia dos próprios<br />

habitantes desfavorecidos.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 61


Já no século XX, sofistica-se a categorização<br />

de favela, que passa a ser associada, de<br />

acordo com documentos recentes da ONU, a<br />

um “excesso de população, habitações pobres<br />

ou informais, acesso inadequado à água potável<br />

e condições sanitárias e insegurança da<br />

posse da moradia.” (p. 33). Porém, se a consulta<br />

às fontes históricas do século XIX revela o<br />

caráter mais do que secular da pobreza urbana<br />

concentrada, não resta dúvida de que ela<br />

sofreu uma explosão a partir da década de 80<br />

do século XX. É possível descobrir com maior<br />

precisão as causas, nas palavras de Davis, deste<br />

verdadeiro Big Bang da pobreza; na verdade,<br />

este é talvez o maior objetivo de seu livro.<br />

Já conhecido pelo leitor brasileiro por outros<br />

textos, como “Cidade de Quartzo” e “Holocaustos<br />

coloniais”, desta vez o autor amplia o escopo<br />

de sua análise e realiza um vasto percurso<br />

pelo planeta afora, numa investigação sobre<br />

porque, em época de altíssimo desenvolvimento<br />

tecnológico – que possibilitaria, em tese, a<br />

resolução de problemas bem mais difíceis – a<br />

moradia urbana degradada só faz crescer.<br />

Para aqueles que possuem uma visão localizada<br />

do processo de empobrecimento urbano<br />

(vinculando-o, por exemplo, apenas à conduta<br />

inadequada de políticos locais), a leitura<br />

do “Planeta favela” é especialmente instrutiva.<br />

Ela nos mostra de forma persuasiva como<br />

só uma abordagem macro-social pode captar a<br />

dimensão decididamente transnacional do fenômeno.<br />

Na medida em que o texto percorre<br />

as regiões empobrecidas da América Latina,<br />

Ásia, África e dos ex-países socialistas, somos<br />

apresentados aos diferentes nomes de uma<br />

62<br />

mesma realidade: slums, barrios, gecekondus,<br />

desakotas, até a brasileiríssima favela. Se<br />

os nomes locais diferem, a realidade de precarização<br />

da moradia urbana é recorrente, o que<br />

motiva Davis a usar toda a primeira parte de<br />

sua pesquisa para apresentar as características<br />

mais centrais desta precarização. Ele alerta<br />

para as dificuldades presentes no empreendimento,<br />

devido ao fato de que as estatísticas<br />

produzidas sobre o tema são lacunares e, em<br />

muitos casos, pouco confiáveis, pois sofrem a<br />

interferência de governos que visam maquiar<br />

as reais condições de vida de suas populações.<br />

Para tentar corrigir este limite, o texto recorre<br />

a um amplo conjunto de análises, desde aquelas<br />

produzidas por autores independentes, até<br />

um importante documento elaborado pelo Programa<br />

de Assentamentos Urbanos das Nações<br />

Unidas (UN-Habitat, instituição pouco suspeita<br />

de esquerdismo...), que utiliza um banco de<br />

dados comparativo de 237 cidades do mundo.<br />

Mesmo recorrendo a uma categorização que,<br />

no entendimento de Davis, é restritiva, “os<br />

pesquisadores da ONU estimam que havia<br />

pelo menos 921 milhões de favelados em 2001<br />

e mais de 1 bilhão em 2005” (p. 34). E a tendência<br />

é de crescimento.<br />

Ao longo deste trajeto, algumas conclusões<br />

se impõem com força. A primeira delas é<br />

que o contraste das condições de vida dos países<br />

capitalistas centrais com o que ocorre no<br />

chamado Terceiro Mundo (conceito questionável<br />

para alguns autores das Ciências Sociais,<br />

mas que comparece no texto de Davis) permanece<br />

sendo gritante: apenas 6% da população<br />

urbana dos primeiros podem ser considerados<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


favelados, percentual que pula para mais de<br />

70% nos países menos desenvolvidos. Mas<br />

nem por isso a realidade destes últimos – objeto<br />

principal de Davis - pode ser considerada<br />

homogênea. Longe disso. Também neles, ilhas<br />

de prosperidade convivem lado a lado com a<br />

miséria mais degradante: a proliferação de<br />

favelas encontra sua antítese complementar<br />

nos condomínios de luxo, fechados, que se isolam<br />

do contato com o mundo exterior. Nesta<br />

configuração que se repete, diferencialmente,<br />

pelo mundo afora, o paradigma vem a ser uma<br />

estética e um padrão de consumo norte-americanos.<br />

Para os que supõem que os brasileiros<br />

abastados são únicos em sua tendência a copiar<br />

compulsivamente o modo de vida norteamericano,<br />

convém saber que “Beverly Hills<br />

não existe apenas no código postal 90210 dos<br />

Estados Unidos; também é, ao lado de Utopia<br />

e Dreamland, um subúrbio do Cairo, uma<br />

rica cidade particular ‘cujos habitantes podem<br />

manter distância da vista e da gravidade da<br />

pobreza e da violência...’ ” (p. 120)<br />

Além disso, o texto chama a atenção<br />

também para a feminização da pobreza, tendo<br />

em vista a drástica perda de oportunidades<br />

de empregos formais para os homens.<br />

Resultado disso é que as mulheres de boa<br />

parte do Terceiro Mundo passam a arcar<br />

com o sustento de seus filhos, mesmo num<br />

contexto em que a pressão para que a totalidade<br />

da família ingresse no mercado de<br />

trabalho é cada vez maior. Aliás, a análise<br />

das condições de vida da infância vem a ser<br />

um dos momentos mais tocantes do livro,<br />

como quando é abordado o episódio das Bru-<br />

xinhas de Kinshasa (no Congo). Em clima de<br />

exasperação de formas de religiosidade que<br />

findam por ganhar contornos de um desespero<br />

coletivo (p.195-196), crianças são denunciadas<br />

como bruxas pelos seus vizinhos,<br />

que afirmam que são elas as responsáveis<br />

pelos males que afligem as comunidades.<br />

Incapazes de se defender destas acusações,<br />

estigmatizadas pelos próprios familiares e,<br />

finalmente, introjetando os supostos crimes<br />

que lhes são imputados (“Meu pai perdeu o<br />

emprego de mecânico por minha causa”, diz<br />

uma delas), as crianças são expulsas de suas<br />

famílias, abandonadas nas ruas, podendo<br />

chegar a ser assassinadas como causadoras<br />

dos infortúnios locais.<br />

Na outra ponta deste debate, Mike<br />

Davis questiona também o que ele nomeia<br />

como histórias de sucesso, aquelas que apresentam<br />

de modo unilateral experiências<br />

bem-sucedidas, tomando-as como exemplos<br />

passíveis de serem universalmente seguidos,<br />

não importa em que circunstâncias. É<br />

o que acontece com os que fazem o elogio do<br />

trabalho informal como oportunidade ímpar<br />

para que auto-empreendedores bem sucedidos<br />

possam se emancipar da tutela patronal<br />

(desconhecendo a duríssima realidade enfrentada<br />

pela maioria dos que perdem seus<br />

empregos). Num âmbito mais abrangente,<br />

Davis problematiza uma certa versão divulgada<br />

acerca dos processos de industrialização<br />

intensiva sofridos por países como<br />

a China e a Índia. A partir do trabalho de<br />

pesquisadores que fazem uma investigação<br />

in loco, fica claro como indicadores macro-<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 63


econômicos favoráveis, que de fato impressionam<br />

pelo aumento de produtividade de<br />

uma economia, podem ocultar uma realidade<br />

humana indigente, que simplesmente<br />

não aparece nos quadros estatísticos. Daí a<br />

importância de se chegar até a vida dos trabalhadores<br />

reais, os responsáveis anônimos<br />

pela opulência que é divulgada pelos meios<br />

de comunicação. Quando se faz isso, percebe-se<br />

por exemplo que a “mobilidade ascendente<br />

na economia informal é em grande<br />

parte um ‘mito inspirado pelo mero excesso<br />

de otimismo’ ”. (p.174).<br />

Esta visão muito crítica de Davis acabou<br />

gerando reações contrárias no âmbito da própria<br />

esquerda. Neste sentido, é proveitosa a<br />

leitura do Posfácio à edição brasileira, assinado<br />

pela urbanista e professora da USP Ermínia<br />

Maricato. O texto é muito elogioso ao trabalho<br />

de Davis, mas se permite apresentar as<br />

restrições formuladas, por exemplo, por Tom<br />

Angotti, que entende que a visão veiculada<br />

pelo “Planeta favela” seria por demais negativa,<br />

não levando em conta algumas diferenças<br />

nacionais importantes, que confeririam um<br />

tom mais diferenciado à realidade exposta. Tocamos<br />

aqui numa questão complexa, que não<br />

seria possível desenvolver no âmbito de uma<br />

resenha; de todo modo, parece-nos que cabe<br />

distinguir entre dois níveis distintos de análise.<br />

No que diz respeito ao nível macro-social,<br />

entendemos que a análise de Davis atinge<br />

com precisão seu alvo, apontando com clareza<br />

para as linhas de fundo do processo de favelização<br />

urbana. Já no nível das diferenças<br />

entre as realidades nacionais e locais, talvez<br />

64<br />

coubessem de fato algumas ressalvas que, de<br />

resto, vêm sendo feitas por grupos de ativistas<br />

de direitos humanos e sociais, que sabem<br />

que o registro dos ganhos da luta democrática<br />

serve como alimento essencial ao seu próprio<br />

prosseguimento. Para o leitor que tenha um<br />

interesse maior nesta questão, convém ler a<br />

entrevista de Mike Davis ao jornalista brasileiro<br />

Sérgio Pompeu (disponível em www.boitempoeditorail.com.br).<br />

Questionado se seria<br />

contrário, por exemplo, a uma política de legalização<br />

de posse nas favelas, Davis responde<br />

que “A legalização é uma demanda justa<br />

e antiga na América Latina. O que eu critico<br />

é a expectativa quase mítica de que a legalização<br />

criaria alguma forma de capitalismo<br />

dinâmico nas classes baixas”.<br />

Após um longo percurso por vários continentes,<br />

merece destaque especial o capítulo 7<br />

do “Planeta favela”, intitulado “Desajustando<br />

o Terceiro Mundo”. É nele que Davis faz, de forma<br />

mais explícita, o que poderíamos nomear<br />

como uma pesquisa de causas para o fenômeno<br />

que estuda. E é neste momento que avultam<br />

em importância as conseqüências dos PAEs<br />

(Planos de Ajuste Estrutural), prescritos pelos<br />

organismos financeiros internacionais, como o<br />

FMI e o Banco Mundial. Drásticas condicionalidades<br />

são impostas ao empréstimo de quantias<br />

monetárias (para países já sufocados pelo<br />

pagamento dos juros referentes à dívida externa),<br />

que interpretam qualquer investimento<br />

social como sendo, na linguagem de seus mentores<br />

internacionais, um “populismo econômico”.<br />

Pois foram estes PAEs os responsáveis pelo<br />

incremento mais recente da pobreza, gerando<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


desindustrialização, quedas acentuadas de<br />

postos de trabalho no mercado formal e também<br />

dos investimentos em serviços sociais básicos.<br />

É possível mesmo <strong>fazer</strong> uma cronologia<br />

da expansão das moradias precarizadas; nas<br />

palavras de Davis: “Os anos 1980, em que o<br />

FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem<br />

da dívida para reestruturar a economia<br />

da maior parte do Terceiro Mundo, foi a época<br />

em que as favelas transformaram-se no<br />

futuro implacável não somente dos migrantes<br />

rurais pobres como também de milhões<br />

de habitantes urbanos tradicionais” (p. 156).<br />

O resultado destas políticas de ajuste foi o<br />

crescimento pelo mundo de milhões de seres<br />

humanos que não têm acesso não só a uma<br />

moradia, mas sobretudo a uma vida digna.<br />

Se antes cabia falar num exército industrial<br />

de reserva, disponível para a economia em<br />

seus ciclos de expansão, talvez agora a situação<br />

seja mais dramática: estamos diante<br />

de uma massa de sujeitos sem perspectiva<br />

nenhuma de trabalho, humanidade excedente,<br />

cujas manifestações de insatisfação sem<br />

dúvida existem, mas ainda não encontraram<br />

uma orientação política mais abrangente (e<br />

parece-nos que este é também um dos sentidos<br />

presentes no trabalho de Davis).<br />

No final de seu livro, ele nos apresenta<br />

documentos que revelam as preocupações de<br />

estrategistas militares ligados ao Pentágono<br />

norte-americano com as multidões empobrecidas<br />

de algumas das principais favelas do<br />

Terceiro Mundo. Ao depararmo-nos com o<br />

tom maniqueísta destas análises, que preferem<br />

eleger bodes expiatórios circunstanciais<br />

para um processo muito mais complexo, fica<br />

patente que a “retórica demonizadora das<br />

várias ‘guerras’ internacionais ao terrorismo,<br />

às drogas e ao crime são igualmente<br />

um apartheid semântico: constroem paredes<br />

epistemológicas ao redor das favelas,<br />

gecekondus e chawls, que impossibilitam<br />

qualquer debate honesto sobre a violência<br />

cotidiana da exclusão econômica. E, como na<br />

época vitoriana, a criminalização categórica<br />

dos pobres urbanos é uma profecia que leva<br />

ao seu próprio cumprimento...” (p. 202).<br />

É neste momento que o trabalho de<br />

Mike Davis pode ser articulado ao do importante<br />

sociólogo francês Löic Wacquant (autor<br />

de “Prisões da miséria” e de “Punir os pobres:<br />

a nova gestão da miséria nos Estados Unidos”).<br />

Com efeito, a pesquisa de Wacquant<br />

nos mostra que o crescente inchaço do sistema<br />

prisional nos últimos anos é observável<br />

em praticamente todos os países, mesmo no<br />

chamado Primeiro Mundo (como ocorre com<br />

os Estados Unidos). Ora, tal inchaço das prisões<br />

é também uma resposta conservadora<br />

para lidar com a pobreza que invade as ruas<br />

das grandes metrópoles: transitar das favelas<br />

para os presídios – mesmo que apenas em<br />

função de pequenos delitos - é o triste destino<br />

de muitos cidadãos pobres, donde a formulação<br />

bastante cáustica de Wacquant: trata-se<br />

de um “sinistro programa habitacional para<br />

os novos pobres”.... Como se vê, encaixamse<br />

aqui mais algumas peças do contraditório<br />

quebra-cabeças contemporâneo: o “Planeta<br />

favela” se ramifica, infiltrando-se também<br />

pelas prisões do mundo afora.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 65


Histórias de Vida<br />

Professor Ronaldo Coutinho:<br />

uma história de lutas<br />

dentro e fora<br />

da universidade<br />

Carolina Barreto da Silva Gaspar, texto e foto<br />

A história de vida do professor Ronaldo Coutinho<br />

se mistura com a história do ANDES-SN e da<br />

ADUFF, uma vez que a fundação de ambas as entidades<br />

contou com sua participação ativa. Militante comunista desde<br />

muito jovem, aos 16 anos Ronaldo ingressaria no PCB.<br />

Sua entrada no Partido Comunista Brasileiro assinala uma<br />

opção de vida que ele mantém até hoje e que deixou marcas<br />

significativas em sua trajetória. Antes de se tornar professor<br />

universitário, já havia atuado em sindicatos de outras categorias<br />

e também no movimento estudantil. Sua militância<br />

política lhe traria alguns problemas no período da Ditadura<br />

Militar, inclusive para tomar posse da vaga de professor da<br />

UFF para a qual havia sido aprovado em concurso. Driblados<br />

esses contratempos iniciais, teve uma passagem marcante<br />

pela universidade. Foi vice-diretor do IChF e um dos responsáveis<br />

pela montagem do curso de graduação em Ciências<br />

Sociais e de pós-graduação em história. É com grande<br />

prazer que publicamos aqui um pouquinho dessa trajetória<br />

pontuada por tantas lutas.<br />

66<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Em nossa conversa com o professor<br />

Ronaldo Coutinho, descobrimos<br />

que, antes de se tornar professor<br />

universitário, ele foi bancário,<br />

comerciário e aeroviário. Como não<br />

poderia deixar de ser, militou nos<br />

sindicatos de todas essas categorias.<br />

Também teve uma passagem<br />

marcante pelo movimento estudantil,<br />

tendo sido o primeiro presidente<br />

do DCE-UERJ escolhido em uma<br />

eleição direta (1960-1961), vice-presidente<br />

da Associação Nacional dos<br />

Estudantes de Ciências Sociais, 2º<br />

secretário da UME (União Metropolitana<br />

dos Estudantes) e diretor<br />

da UNE. Uma militância tão intensa<br />

desde a juventude não passaria<br />

despercebida pela Ditadura Militar.<br />

Na época do golpe de 64, Ronaldo<br />

já era professor da UERJ. Acabou<br />

sendo afastado de suas atividades<br />

docentes naquela universidade por<br />

justa causa, já que, numa das vezes<br />

em que foi preso pela Ditadura, ficou<br />

um mês sem aparecer na UERJ.<br />

Ainda assim, seguiu lecionando na<br />

UFF, onde era professor horista. Em<br />

1965, fez concurso para se tornar<br />

professor do quadro efetivo da UFF<br />

e foi aprovado em primeiro lugar.<br />

Tomar posse da vaga, no entanto,<br />

exigiria dele mais do que a compro-<br />

vação de seus méritos acadêmicos.<br />

Na época da Ditadura, era<br />

exigido dos professores da universidade<br />

um “Nada Consta” emitido<br />

pelo DOPS que atestasse a sua não<br />

participação em atividades ligadas<br />

à militância política de esquerda.<br />

Ronaldo, que já havia sido preso por<br />

suas atividades políticas, evidentemente<br />

não receberia o documento.<br />

Não por vias lícitas, pelo menos.<br />

Para tomar posse de sua vaga de<br />

professor no concurso da UFF, ele se<br />

vira obrigado a subornar um funcionário<br />

do DOPS. Por uma bagatela<br />

que hoje equivaleria a cerca de 20<br />

mil reais (pagos à vista e em dinheiro),<br />

o “Nada Consta” foi liberado. O<br />

dinheiro foi conseguido junto à sua<br />

mãe, que para isso empenhou algumas<br />

jóias e pegou um empréstimo.<br />

Corredor vermelho e<br />

movimento docente<br />

Empossado, participou da fundação<br />

do curso de graduação em Ciências<br />

Sociais e, em pouco tempo, seria<br />

vice-diretor do ICHF exatamente<br />

na gestão da Professora Aidyl à frente<br />

do Instituto. Segundo Ronaldo, os<br />

dois tinham um bom entrosamento<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 67


na direção do ICHF, que na época funcionava<br />

no prédio que hoje abriga o IACS. Ronaldo<br />

também participou ativamente da montagem<br />

dos cursos de graduação e pós em História,<br />

tendo viajado a São Paulo várias vezes<br />

para recrutar professores e a Brasília para<br />

conversar com o MEC. Também foi chefe do<br />

departamento de Ciências Sociais. Nessa<br />

época, segundo ele, seu departamento era<br />

conhecido como “corredor vermelho”. Suas<br />

atividades de militância nunca o impediram<br />

de exercer atividades administrativas na<br />

universidade e, sobretudo, de estudar.<br />

Foi assim que também participou dovimento<br />

docente. E de maneira marcante,<br />

diga-se de passagem. Afinal, trata-se<br />

de alguém que participou da fundação do<br />

ANDES-SN, da ADUFF e da ASDUERJ. De<br />

acordo com Coutinho, mesmo ocupando poucas<br />

vezes um cargo formal, sua participação<br />

no movimento sempre foi intensa: “Sempre<br />

fui de inventar formas de luta, como por<br />

exemplo o Universidade na Praça, usado<br />

na ADUFF, pela primeira vez, na greve de<br />

1985. Sugeri que cada professor fosse para<br />

a praça Araribóia desenvolver as atividades<br />

criativas de suas aulas. De lá para cá,<br />

muitas greves de docentes têm usado esse<br />

recurso”, conta ele. Na ASDUERJ, ajudou<br />

a criar a “Advir”, revista da associação docente<br />

daquela universidade, sendo até hoje<br />

membro de seu conselho editorial.<br />

Ele se arriscou a <strong>fazer</strong> algumas análises<br />

acerca do atual momento vivido pelo<br />

movimento docente, marcado por uma tentativa<br />

direta de ingerência do governo no mo-<br />

68<br />

vimento sindical. “Em termos da nossa luta<br />

específica de movimento docente, eu acho<br />

que nós temos que ter algumas ações. Uma<br />

delas é a gente <strong>fazer</strong> uma avaliação crítica<br />

da atuação do próprio sindicato. Não desse<br />

sindicato, mas do movimento como um todo.<br />

Nessa hora, nós temos que mobilizar, temos<br />

que engrossar o movimento. Como? Nós temos<br />

que ampliar. Está na hora de construir<br />

uma frente organizada de resistência e isso<br />

só se faz com frente ampla”.<br />

“Lênin estragou a<br />

farra acadêmica”<br />

Ronaldo Coutinho se aposentou da<br />

UFF em 1992. Sua aposentadoria foi precipitada<br />

pelo Governo Collor, marcado por<br />

uma série de medidas que retiravam direitos<br />

dos trabalhadores, principalmente os do<br />

serviço público. Apesar da aposentadoria,<br />

mantém ativas sua militância e atividade<br />

acadêmica. Entre outras coisas, continua no<br />

conselho editorial da “Revista Advir”. Em<br />

termos de produção acadêmica, tem se dedicado<br />

a dois projetos, um deles relacionado<br />

ao meio ambiente e direito urbanístico e o<br />

outro, um livro sobre a contribuição de Lênin<br />

à academia. Segundo Coutinho, a obra é<br />

sua maneira de demonstrar indignação em<br />

relação ao exílio de Lênin da academia: “Lênin<br />

cometeu um delito imperdoável: ele discutiu<br />

toda uma teoria ao mesmo tempo em<br />

que praticava isso fazendo uma revolução.<br />

Estragou toda a farra acadêmica”, afirma.<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Saindo do barraco bem cedo<br />

à procura de emprego, levou<br />

a força do meu amor, minha fé.<br />

No último anúncio marcado,<br />

mente e corpo abalados,<br />

pela má aparência rejeitado, deixou<br />

que vissem seus olhos pela fome<br />

bem fundo escavado, que vissem<br />

o carapinha emaranhando, deixou<br />

o suor fazendo da face negra<br />

um ébano vitrificado<br />

mas não deixou<br />

que lhe vissem o medo<br />

comum a quem vive a síndrome do desemprego<br />

não deixou que lhe vissem<br />

o velho medo porque é da certeza<br />

que existe o medo em nós é que<br />

o burguês racista faz do humano dócil escravo<br />

um inimigo finalmente vencido<br />

depois que de sua humanidade<br />

ele mesmo já havia se esquecido.<br />

Síndrome do Desemprego<br />

Poesia<br />

Vandery da Cunha, o Deley de Acari, nasceu no estado do Rio e tem 54 anos.<br />

Milita no movimento negro e favelado há mais de trinta anos e é fundador e participante<br />

do “Grupo Negrícia - Poesia de Crioulo”. Bastante conhecido em diversas<br />

rodas de leituras, Deley diz que escreve muito ao sabor da tensão e do stress da<br />

favela. “Uma amiga feminista costuma dizer que sou um poeta afro-prófeminista,<br />

porque a maioria de meus poemas e outros escritos têm a mulher como tema,<br />

abordada de formas positivas”, afirma. O poeta também participa do “Movimento<br />

Funk é Cultura” na Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência. Publicou<br />

seus escritos nas décadas de 80 e 90 em alguns fanzines e, mais recentemente, no<br />

livro “Um século de favela”, de Marcos Alvito e Alba Zaluar.<br />

Saindo do barraco bem cedo<br />

à procura de emprego levou<br />

a força do meu amor, minha fé<br />

deixou um beijo gostoso de Colgate<br />

e café saboroso feito mel<br />

voltou à noite trazendo<br />

um beijo mau gosto de caldo de cana<br />

amargoso feito fél.<br />

Ah, a insegurança do amanhã<br />

de todos, do tudo, ah, seu velho medo<br />

desaguado em lágrimas no regaço<br />

do meu colo, chorado em segredo,<br />

longe do olhar racista do senhor burguês<br />

dono e senhor dos empregos<br />

ah, esse imenso desejo que<br />

seu velho medo se transforme<br />

com o axé do meu amor, minha fé<br />

na minha, na sua na nossa nova e indestrutível<br />

coragem libertária do amanhã.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 69


70<br />

Diálogos com a Cidade<br />

Aldeia Imbuhy: clima de<br />

tensão com o Exército há<br />

mais de uma década<br />

Carolina Barreto da Silva Gaspar<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Fotos: Luiz Fernando Nabuco<br />

Nesta segunda edição de nossa seção “Diálogos<br />

com a cidade”, fizemos uma matéria com<br />

os moradores da Aldeia Imbuhy, comunidade<br />

tradicional situada junto à praias paradisíacas,<br />

no interior de fortaleza militar que leva<br />

o mesmo nome. Ao contrário do que se poderia<br />

pensar num primeiro momento, morar na<br />

Aldeia Imbuhy não é assim tão maravilhoso<br />

quanto parece. Isso porque há mais de 10 anos<br />

,os moradores do local vivem em verdadeiro<br />

clima de guerra com o Exército.<br />

Tudo começou em 1995, quando o Coronel<br />

Paulo Roberto Bueno Costa proibiu a passagem<br />

de moradores, visitantes e convidados pela<br />

Guarda do Forte Barão do Rio Branco. Desse<br />

modo, a única passagem liberada era a do portão<br />

situado na Guarda da Lagoa. Essa determinação<br />

se tornou sinônimo de um grande transtorno<br />

para os moradores do local, que decidiram<br />

então entrar com uma ação na Justiça para reabrir<br />

a outra passagem. Simultaneamente, entraram<br />

com uma ação de interdito proibitório.<br />

Isso abriu espaço para que o Exército entrasse<br />

com um pedido de reintegração de posse e obtivesse<br />

vitórias judiciais em 1ª e 2ª instâncias.<br />

Por decisão da Justiça, os moradores da Aldeia<br />

Imbuhy, que lá vivem há décadas, devem desocupar<br />

a área, uma vez que supostamente “constituem<br />

ameaça à segurança nacional”.<br />

Dessa contenda judicial de 1995 para cá,<br />

a relação dos moradores da Aldeia com o Exército<br />

se deteriorou progressivamente. Em nossa<br />

visita ao local, conversamos com diversos aldeões<br />

e não faltaram denúncias de arbitrariedades<br />

que teriam sido cometidas pelos militares<br />

nesse período. Também existem denúncias de<br />

omissão de socorro. Num dos casos, uma ambulância<br />

que chegou ao Forte para socorrer moradora<br />

em trabalho de parto teria sido simplesmente<br />

barrada na entrada do local. Por conta<br />

disso, um morador teve que levá-la em seu carro<br />

até o hospital. Em outro episódio semelhante,<br />

a moradora Vanda Leão Barbosa passou mal<br />

na calçada do Forte Rio Branco, mas não pôde<br />

ser socorrida porque um tenente do Exército<br />

impediu que lhe fosse prestado qualquer tipo<br />

de auxílio. Esse caso gerou registro de ocorrência<br />

na 79ª DP por omissão de socorro, ameaça<br />

e constrangimento ilegal. Resultado: não deu<br />

em nada. Segundo o morador Fábio Ferreira da<br />

Silva, eles agora sequer têm registrado queixa<br />

contra esse tipo de abuso, já que nunca dá em<br />

nada. Fábio nos contou que, em 95, foi agredido<br />

por soldados quando voltava para casa. O caso<br />

gerou um IPM, mas, nas palavras dele, “ficou<br />

tudo por isso mesmo. Toda a situação que ocorre<br />

aqui com a gente eles transformam em problema.<br />

Hoje, sou surdo e mudo por aqui.”<br />

Se engana, no entanto, quem pensa que<br />

acabou a lista de arbitrariedades. Só para se<br />

ter uma idéia, os moradores da Aldeia Imbuhy<br />

só podem entrar no Forte se estiverem munidos<br />

da chamada “permissão de morador”, único<br />

documento que os habilita a ter acesso ao local<br />

onde moram há anos. Como se não bastasse,<br />

eles só podem receber em suas casas cinco<br />

visitantes de cada vez, devendo ainda assim<br />

comunicar ao Exército os nomes dos mesmos<br />

com pelo menos 48 horas de antecedência. Nas<br />

palavras de Aílton Nunes Navega, presidente<br />

da Associação de Moradores do Forte Imbuhy,<br />

“nem o Elias Maluco tem limite de visitas, mas<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 71


nós temos: são só cinco pessoas de cada vez.”<br />

Em 95, os aldeões foram proibidos de utilizar<br />

os telefones públicos existentes no interior do<br />

Forte. Algum tempo depois, os telefones foram<br />

simplesmente retirados. Hoje, é proibido instalar<br />

novas linhas telefônicas no local.<br />

Em nossa visita à Aldeia Imbuhy, pudemos<br />

perceber que grande parte das casas lá<br />

existentes encontra-se em péssimo estado de<br />

conservação. Isto ocorre simplesmente porque<br />

o Exército não permite a entrada de material<br />

de construção no local. O objetivo por<br />

trás desta medida, segundo Aílton Navega,<br />

é “deixar que tudo se deteriore, pois isso, na<br />

visão deles, facilita a nossa expulsão daqui”.<br />

Em 2004, a Defesa Civil chegou a condenar<br />

e interditar uma das casas da Aldeia, por estar<br />

“colocando vidas em risco”. Os moradores<br />

Legenda nononono nonononono onononon ononononono onono onono onono onon<br />

72<br />

conseguiram junto à prefeitura uma doação<br />

de material de construção para <strong>fazer</strong> obras na<br />

casa, mas o Exército impediu a entrada desse<br />

material nas dependências do Forte. Tivemos<br />

acesso a uma notificação da Defesa Civil<br />

que diz: “... embora esta Coordenadoria tenha<br />

comunicado ao comando do Forte do Imbuhy<br />

da situação de risco que encontra-se o seu<br />

imóvel apontado no relatório número 791/04<br />

originando uma interdição, não nos foi permitido<br />

na data de 27/07/2004, a entrega de<br />

1000 (mil) tijolos e 10 (dez) sacos de cimento<br />

através do ‘Projeto Morar Certo’. Esclareço<br />

ainda que os materiais seriam para realizar a<br />

segurança do seu imóvel.”<br />

A verdadeira guerra de nervos travada<br />

entre aldeões e o Exército, como se vê, já produziu<br />

um sem-número de arbitrariedades. Em<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


conseqüência disso, das 800 famílias<br />

que originalmente habitavam o local,<br />

restam hoje apenas 32. Atualmente, a<br />

pesca, que durante décadas foi a atividade<br />

responsável pelo sustento de boa<br />

parte dos moradores, quase não é mais<br />

praticada. Isto porque os militares<br />

passaram a confiscar 10% do pescado,<br />

além de proibirem a entrada de caminhões<br />

pesqueiros no Forte. Hoje, após<br />

mais de uma década de conflitos com o<br />

Exército, os aldeões que restaram no<br />

Imbuhy estão ameaçados de despejo do<br />

local onde nasceram e cresceram por<br />

uma ação de reintegração de posse<br />

“Ameaça à<br />

segurança nacional”<br />

A justificativa do Exército para desalojar<br />

os moradores da Aldeia Imbuhy é de<br />

que a presença deles no interior da fortaleza<br />

militar constitui “ameaça à segurança nacional”.<br />

No entanto, documentos revelam que os militares<br />

realizam uma série de eventos no Forte: réveillon,<br />

happy hour, churrascos, rodeios e festas em geral.<br />

Tudo sempre com muita bebida alcoólica, é claro.<br />

É curioso observar como, na concepção do Exército<br />

brasileiro, a presença de milhares de pessoas estranhas<br />

no interior do Forte em eventos como esses<br />

não parece constituir ameaça à segurança nacional.<br />

Enquanto isso, 32 famílias que lá vivem há décadas<br />

são vistas como um grande perigo que precisa ser<br />

eliminado “pelo bem da pátria”.<br />

Nas palavras de Aílton Navega, “isso aqui<br />

“isso aqui não é área de segurança<br />

nacional coisa nenhuma. É área de<br />

lazer dos militares, que ganham<br />

muito dinheiro alugando o<br />

espaço para eventos e vendendo<br />

passes àqueles que desejam<br />

freqüentar a Praia do Imbuhy”<br />

Aílton Navega<br />

não é área de segurança nacional coisa nenhuma.<br />

É área de lazer dos militares, que ganham muito<br />

dinheiro alugando o espaço para eventos e vendendo<br />

passes àqueles que desejam freqüentar a Praia<br />

do Imbuhy. Em fins de semana de sol, isso aqui fica<br />

coalhado de gente!” Decidimos checar a informação<br />

de que há comércio de passes para se freqüentar<br />

a praia do Forte. Em telefonema ao 21º Grupo de<br />

Artilharia de Campanha, que administra o local,<br />

fomos informados de que, para freqüentar a Praia<br />

do Imbuhy, é necessário ter um passe que custa<br />

a bagatela de R$ 400,00. Tudo pago à vista e em<br />

dinheiro. Nesse contexto, fica mais fácil entender<br />

porque tanta fixação em expulsar os aldeões, que<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 73


certamente devem estar atrapalhando os negócios.<br />

A sentença judicial que ordena a reintegração<br />

de posse nos chamou a atenção por ser extremamente<br />

dura com os aldeões. Há uma parte do texto<br />

da sentença que diz: “declaro ser legítimo o direito<br />

da UNIÃO, pela Administração Militar, exercer poder<br />

normativo e de polícia no âmbito de suas atribuições<br />

(...) Declaro ainda ser legítimo o exercício<br />

do atributo da auto-executoriedade deste mesmo<br />

poder de polícia, autorizando a UNIÃO, pelos seus<br />

prepostos, por exemplo, a apreender mercadorias<br />

e a demolir as benfeitorias edificadas a partir das<br />

notificações realizadas em julho de 1995, bem como<br />

impedir que outras sejam feitas, salvo as absolutamente<br />

necessárias à segurança dos moradores.”<br />

Trocando em miúdos, a sentença emitida pelo juiz<br />

federal Rogério Tobias de Carvalho atribui ao Exército<br />

poder de polícia numa contenda em que esse<br />

braço das Forças Armadas está diretamente envolvido.<br />

Com o clima de guerra vigente na Aldeia<br />

Imbuhy há mais de dez anos, dá para imaginar a<br />

carnificina que vai acontecer caso os militares resolvam<br />

se utilizar da “auto-executoriedade deste<br />

mesmo poder de polícia” para desalojar os aldeões.<br />

Diante da iminente consumação dessa<br />

verdadeira tragédia anunciada, a Associação de<br />

Moradores da Aldeia Imbuhy enviou carta solicitando<br />

providências ao presidente Lula e a seu<br />

vice. Num trecho da carta, se lê: “Os aldeões, ao<br />

verem suas casas demolidas e seus pertences jogados<br />

no meio da rua sem terem para onde ir<br />

talvez reajam de forma emotiva, inconseqüente<br />

e insensata, desencadeando desta forma, uma<br />

onda de violência de conseqüências imprevisíveis<br />

e que certamente nos fará relembrar, doze<br />

anos após, a Chacina de Eldorado dos Carajás,<br />

74<br />

só que desta vez, acontecendo em pleno coração<br />

cultural do país. Nossas autoridades constituídas<br />

tomarão conhecimento do fato somente por<br />

ocasião da remoção e sepultamento de corpos de<br />

homens, mulheres e crianças.” A única resposta<br />

recebida até hoje, que partiu do vice-presidente<br />

José de Alencar, veio em forma de telegrama e<br />

diz apenas: “transmito votos de que o assunto<br />

relatado por Vossa Senhoria se encaminhe dentro<br />

da lei.” Diante dessa situação, Aílton Navega<br />

desabafa: “Nós resistimos à Ditadura Militar e<br />

agora, em pleno governo popular do Partido dos<br />

Trabalhadores, vamos sair daqui sem nada.”<br />

O pai de Aílton, Antônio Navega, mora<br />

na Aldeia Imbuhy há 82 anos. Em 1939, chegou<br />

a servir ao Exército no Forte Imbuhy, tendo<br />

sido depois transferido para o batalhão de<br />

Santa Cruz. De acordo com ele, durante muito<br />

tempo a convivência entre moradores e militares<br />

foi, na medida do possível, harmônica.<br />

Hoje, no entanto, os aldeões estão na iminência<br />

de serem expulsos do local onde passaram<br />

suas vidas inteiras. A possibilidade de sair do<br />

Imbuhy é qualificada por S. Antônio em uma<br />

palavra: “Nenhuma”. Como ele, diversos outros<br />

moradores construíram suas vidas naquele<br />

lugar e muitos sequer têm para onde ir.<br />

O advogado dos aldeões, Arthur Floriano<br />

Peixoto, fez várias críticas à maneira como<br />

esse processo tem sido conduzido pela Justiça.<br />

“A parcialidade da Justiça nesse caso é revoltante.<br />

Inclusive porque existem dois precedentes<br />

de casos semelhantes, ambos com ganho de<br />

causa para os aldeões do Imbuhy. Além disso,<br />

a União teria perdido o prazo de defesa duas<br />

vezes ao longo do processo. Ainda assim, obte-<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


ve ganho de causa. Querem botar as pessoas<br />

para fora na marra sem pagar nada. Para haver<br />

uma reintegração de posse, a União teria<br />

que provar a posse anterior do local, ou então<br />

que foi desempossada pelos aldeões. Ela não<br />

fez nenhuma das duas coisas, e por um motivo<br />

muito simples: os aldeões chegaram primeiro<br />

no local, isso está muito claro. Até porque, se<br />

tivessem chegado depois, o Exército não permitiria<br />

que se instalassem”, afirma.<br />

Antônio Navega, morador da Aldeia há mais de 80 anos, serviu no Forte Imbuhy e diz não ver posibilidade de deixar sua casa.<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 75


76<br />

ADUFF:<br />

30 anos de luta!<br />

No dia 10 de outubro de 2008, a ADU-<br />

FF vai completar 30 anos. Nossa associação<br />

já nasceu forte porque foi fundada em plena<br />

Ditadura Militar e em plena luta pela democratização<br />

do país. No rastilho do conflito<br />

dessas lutas, outras associações também<br />

foram construídas em todo território nacional,<br />

nas universidades federais, estaduais e<br />

particulares. O que nos movia? O desejo de<br />

liberdade, de melhores condições de trabalho,<br />

a defesa irredutível do ensino público e<br />

gratuito e contra a privatização da educação.<br />

Nos moviam esses princípios e as flores, porque<br />

nascemos em plena primavera.<br />

Um ano depois, a realidade exigia articular<br />

as lutas nacionalmente e fizemos o I<br />

Enad (Encontro Nacional de Associações de<br />

Docentes), ao qual sucederiam outros, até a<br />

realização, em fevereiro de 1981, em Campinas<br />

(SP), do I Congresso Nacional de Docentes<br />

Universitários. Trezentos delegados, entre<br />

eles os da ADUFF, representando mais de<br />

70 AD´s, participaram do Congresso histórico<br />

em que foi fundada a ANDES - Associação Na-<br />

cional dos Docentes de Ensino Superior. Com<br />

a promulgação da Constituição Federal de<br />

88, a ANDES pôde, finalmente, transformarse<br />

no Sindicato Nacional, o ANDES-SN. Nosso<br />

sindicato rompeu com a estrutura sindical<br />

autoritária implantada no Brasil na década<br />

de 30 e se consolidou pela organização de<br />

base nos locais de trabalho, pela democracia<br />

interna fundada no respeito às deliberações<br />

da base da categoria e defesa intransigente<br />

do princípio da autonomia sindical em relação<br />

às instituições universitárias, aos partidos<br />

políticos, credos e governantes.<br />

Além disso, o sindicato, assim como as<br />

AD´s, é mantido pela contribuição voluntária<br />

de seus sindicalizados: somos contrários ao<br />

imposto sindical compulsório. Fomos nos constituindo<br />

como entidade, na luta e junto com o<br />

ANDES-SN. Em 1986, para ampliar o espaço<br />

das lutas em defesa dos interesses e conquistas<br />

da categoria e após intenso processo de mobilização,<br />

deixamos de ser associação e nos transformamos<br />

em seção sindical do ANDES-SN.<br />

Em sua trajetória de luta em defesa<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


da universidade pública, a ADUFF sempre<br />

entendeu que as reivindicações mais imediatas<br />

dos professores também dizem respeito<br />

às lutas mais gerais da maioria da população,<br />

daí seu histórico de envolvimento com<br />

as grandes mobilizações nacionais como a<br />

Campanha das Diretas, contra as privatizações<br />

e a terceirização dos serviços públicos,<br />

pela reforma agrária, contra a criminalização<br />

dos movimentos sociais e da pobreza,<br />

entre outras tantas.<br />

A partir dos anos 90, experimentamos dificuldades<br />

de mobilização idênticas aos movimentos<br />

sociais que não se dobraram à ordem,<br />

tanto em âmbito local quanto internacional.<br />

No Governo Lula, esta situação se agrava<br />

ainda mais com a transformação da CUT em<br />

um verdadeiro braço do governo no movimento<br />

sindical. O resultado de todo esse processo<br />

é que hoje o movimento sindical combativo se<br />

vê forçado a intensificar sua presença junto<br />

à categoria para reafirmar a importância do<br />

sindicato e da luta sindical como espaço privilegiado<br />

de resistência e defesa de direitos<br />

dos trabalhadores. Isto se deve, em grande<br />

medida, a dois fatores: a cooptação<br />

de parte expressiva do movimento<br />

pelo governo e a lógica de<br />

criminalização do movimento<br />

sindical combativo.<br />

Nesse quadro de adversidade,<br />

a ADUFF, por se man-<br />

ter fiel aos princípios que a orientam desde<br />

sua fundação, ainda consegue manter alto<br />

grau de representatividade junto à base da<br />

categoria, mesmo em meio a todos os ataques<br />

protagonizados pelo Governo Lula aos sindicatos<br />

combativos. A vitoriosa greve de 2005 é<br />

um exemplo recente dessa legitimidade junto<br />

à sua base, da mesma forma que seu posicionamento<br />

quanto à contra-reforma universitária<br />

do governo, especialmente nas lutas da<br />

ADUFF por ocasião do debate do REUNI.<br />

Em 2007, a luta contra o REUNI fez<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008<br />

77


78<br />

com que o sindicato conseguisse movimentar<br />

um grupo importante de professores comprometidos<br />

com a defesa da universidade pública.<br />

Esse movimento permitiu ao sindicato dialogar<br />

com a categoria sobre seu projeto de universidade<br />

e, após visitas da direção da ADUFF<br />

a várias unidades, inclusive do interior, cerca<br />

de quinze colegiados se manifestaram contrariamente<br />

à adesão da UFF ao REUNI. Como<br />

sabemos, e a exemplo do que aconteceu na<br />

UFF, no país inteiro foi preciso o uso da repressão,<br />

da força, para que o termo de adesão fosse<br />

assinado. Mesmo após a adesão da universidade<br />

ao REUNI, a ADUFF segue apontando<br />

os problemas que virão com a implementação<br />

do decreto. Conforme nossa seção sindical já<br />

alertava desde o ano passado, a expansão da<br />

universidade tem sido marcada pela lógica da<br />

fragmentação. Para além disso, os recursos<br />

humanos e materiais de que a UFF disporá<br />

para <strong>fazer</strong> a expansão com que se comprometeu<br />

são claramente insuficientes.<br />

Então, o que comemorar?<br />

Diante de uma História de trinta anos<br />

pontuada por tantas lutas importantes, certamente<br />

há muito a comemorar na ADU-<br />

FF. No entanto, o momento por que passa<br />

o sindicato não poderia ser negligenciado<br />

nas comemorações de nossos trinta anos de<br />

existência. No plano nacional, os ataques ao<br />

ANDES-SN por parte do governo a seu registro<br />

sindical afeta diretamente o conjunto<br />

de suas seções sindicais, inclusive, no que<br />

diz respeito às consignações voluntárias na<br />

folha de pagamento dos professores. Essa<br />

situação significa para a ADUFF, como informamos<br />

na última assembléia e em nosso<br />

boletim eletrônico, uma grave crise financeira<br />

em função da queda de cerca de 40% na<br />

arrecadação mensal do sindicato pelo não<br />

desconto da GTMS, que substituiu a GED.<br />

Isso significa que o que está em jogo<br />

neste momento é a própria sobrevivência do<br />

nosso sindicato enquanto instrumento de<br />

luta da categoria docente. Embora estejamos<br />

movendo todas as ações necessárias para<br />

enfrentar o problema, sabemos, entretanto,<br />

que a resposta não pode ser dada apenas nos<br />

planos jurídico e administrativo. É preciso<br />

que a categoria, conhecendo a situação, crie<br />

as condições para uma resposta política mais<br />

incisiva. Para garantir nossos direitos, só podemos<br />

contar com nossas próprias forças.<br />

Aprendemos com Goethe que só merecem<br />

a liberdade e a luta aqueles que lutam por<br />

elas todos os dias. É na luta, portanto, pelo<br />

seu mais legítimo direito de EXISTIR que a<br />

ADUFF comemora seus 30 anos. Vida longa à<br />

ADUFF e ao ANDES-SN!<br />

OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


Ripper:<br />

olhos<br />

na<br />

realidade<br />

Hiperfocal<br />

A vida do homem do campo, indígenas, a seca do Nordeste, o ambiente urbano, o trabalho escravo<br />

de carvoeiros, crianças em Mato Grosso do Sul. Alguns desses temas nunca perdem o foco nas lentes<br />

do fotógrafo carioca João Ripper, que com 19 anos ingressou na carreira de repórter-fotográfico na<br />

“Luta Democrática”, do controvertido Tenório Cavalcanti. Vieram em seguida o “Diário de Notícias”, a<br />

“Última hora”, a sucursal carioca do “Estadão” e “O Globo” e os muitos trabalhos como free-lancer.<br />

Isto até ele perceber que gostaria que suas fotos tivessem o poder de levar as pessoas a refletir sobre<br />

a realidade registrada através de sua câmera sem estereótipos — apenas um retrato da desigualdade<br />

social que o incomoda muito. Deixou “O Globo” e foi participar da criação da Agência F4. “A F4, do<br />

Rio; a Ágil, de Brasília; e a Angular, de São Paulo, foram muito importantes, porque permitiram aos<br />

fotógrafos iniciar um movimento. Passamos a pensar as pautas, documentar de forma livre e optar<br />

pelo comprometimento com causas populares. Além de criar mercados de trabalho, este movimento<br />

começou a romper com a hipocrisia de que o jornalista é imparcial”, diz ele, para quem jornais e jornalistas<br />

são veículos dos mantenedores da sociedade dividida entre pobres e ricos, na qual impera<br />

a discriminação que faz com que os moradores das periferias e favelas “sejam excluídos e tratados<br />

como subalternos, atendendo aos interesses das classes média e alta e do regime repressor, autoritário<br />

e racista que criminaliza a pobreza”.<br />

(Resumo a partir do texto de José Reinaldo Marques, no site da ABI)<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 79


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OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE


No sentido horário a partir de<br />

baixo, e da esquerda:<br />

• Trabalho escravo - Família espera<br />

volta do pai que está preso em<br />

fazenda no Sul do Pará.;<br />

• Índio guarari Kaiowá trabalhando,<br />

em condições análogas a de escravo<br />

no corte da cana de açúcar -<br />

MS; • Criança carvoeira em Ribas<br />

do Rio Pardo, MS.<br />

• Trabalho escravo em fazenda de<br />

cana de açúcar também no MS<br />

João Batista Alves - trabalho análogo<br />

ao de escravo no Pará.<br />

Confira mais imagens do<br />

fotógrafo no seu site:<br />

www.imagenshumanas.com.br<br />

CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 81

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