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VISÃO URBANA: UM NOVO PATAMAR PARA A ... - XII Simpurb

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<strong>VISÃO</strong> <strong>URBANA</strong>: <strong>UM</strong> <strong>NOVO</strong> <strong>PATAMAR</strong> <strong>PARA</strong> A HISTÓRIA<br />

DA MOBILIZAÇÃO SOCIAL DOS CATADORES 1<br />

Márcia Saeko Hirata<br />

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP)<br />

marciasaekohirata@gmail.com<br />

Resumo<br />

O catador de materiais recicláveis do centro da cidade de São Paulo hoje nos apresenta uma<br />

contradição. Apesar de localizado no extremo da precariedade do mundo do trabalho, tem<br />

resistido aos recentes processos de valorização imobiliária promovidos pela atual fase financeira<br />

da acumulação capitalista. Para compreender isto propomos a visão urbana, interpretação feita<br />

com base na concepção de produção do espaço de Henri Lefebvre, projetada sobre a<br />

especificidade da apropriação de uma centralidade urbana por parte do catador a partir dos anos<br />

1980. Trata-se de um espaço-tempo que explica sua permanência, bem como o atual patamar de<br />

organização de sua mobilização social, que em seu bojo traz elementos que apontam para uma<br />

forma diferencial de reprodução das relações sociais de produção, a da utopia lefebvriana da<br />

sociedade urbana.<br />

Palavras-Chave: visão urbana, visão industrial, centralidade, catadores de material reciclável,<br />

mobilização social.<br />

Apresentação<br />

Lefebvre nos propõe uma utopia: a sociedade urbana como sucedânea da atual<br />

sociedade industrial (2004), projeção teórica de um “objeto virtual”, mas também<br />

“objeto possível” em relação a um processo e uma praxis (LEFEBVRE, 2004, p. 16). É<br />

com base nesta hipótese que aqui propomos uma reflexão sobre a apropriação espacial<br />

da catadora e do catador 2 de materiais recicláveis do Glicério, inserido na região central<br />

da cidade de São Paulo, que emerge como questão com o atual contexto de conflitos<br />

sociais originados do processo mundial de renovação de antigas áreas centrais.<br />

Propomos a aproximação de uma praxis para projetarmos uma possibilidade teórica que<br />

se traduz concretamente em um novo patamar da organização e mobilização social dos<br />

catadores de materiais recicláveis.<br />

Observamos que hoje este grupo social resiste em centralidadades urbanas de<br />

interesse imobiliário, enquanto outros movimentos populares e mesmo setores de média<br />

renda são expulsos para regiões cada vez mais distantes das áreas centrais. Trata-se de<br />

uma contradição se eles são resultado de um processo social de exploração e espoliação<br />

urbana. Revelá-la pode mostrar um processo diferenciado e uma nova possibilidade de<br />

1 Este artigo relaciona-se às reflexões de minha tese de doutorado “Desperdícios e centralidade urbana na<br />

cidade de São Paulo: uma discussão sobre o catador de materiais recicláveis do Glicério”, defendida em<br />

abril de 2011.<br />

2 A preocupação com a questão de gênero é utilizada correntemente desta maneira sempre que um deles<br />

se expressa publicamente para a sociedade, como em palestras e reuniões.


se pensar as formas como podem se dar a organização e a mobilização social que parece<br />

pouco avançar na atualidade. Catadoras e catadores organizados em cooperativas ou<br />

associações que garantem a presença e a permanência em centralidades urbanas podem,<br />

assim, trazer questões fundamentais, se considerarmos que tal resistência surge como<br />

contraposição à valorização imobiliária, parte da atual fase capitalista de financeirização<br />

econômica.<br />

Para resolver tal contradição propomos a visão urbana de Lefebvre, que se<br />

mostra como uma outra forma de abordagem teórica e prática sobre a reprodução social,<br />

mostra-se como um meio de superar o “campo cego” trazido pela atual forma de<br />

acumulação capitalista. Assim, tanto se abre para reflexões diferenciadas quanto indica<br />

outros meios de avanço das conquistas sociais. Concretamente para os catadores, isto<br />

significa que por trás de uma frágil personagem urbana a puxar uma carroça há a<br />

conquista de um outro patamar de sua organização social, não mais limitado às políticas<br />

de assistência social, mas capaz de revindicar avanços em seu trabalho tanto no nível<br />

local quanto nacional e internacional.<br />

1. O catador como trabalhador explorado: visão industrial<br />

Condições insalubres e precárias de trabalho, informalidade, extensão da<br />

jornada bem acima de 8 horas. São estas as percepções que logo surgem sobre o<br />

trabalho do catador, sobre cujas costas erige-se o lucro da indústria da reciclagem.<br />

Presença já incorporada à paisagem das cidades brasileiras, deste modo esta personagem<br />

urbana ilustra as análises da inserção do trabalhador no atual patamar de reprodução<br />

capitalista. Mesmo as formas organizadas de trabalho que significam melhorias na<br />

forma de trabalho, como em cooperativas de reciclagem autogestionadas, não passam<br />

pelo crivo analítico da exploração do trabalho pelo capital, afinal a forma cooperativada<br />

tornou-se mais uma ferramenta da flexibilização dos direitos trabalhistas. Mesmo<br />

interpretações do ponto de vista urbano aqui argumentado parecem igualmente ratificar<br />

o extremo da exploração a que estão submetidos.<br />

É este viés que será abordado neste item. Sem deixar de ser válida e real, se<br />

insere no que Lefebvre distinguiu como próprio de uma sociedade de base reprodutiva<br />

industrial, ou seja, a sociedade da mais-valia, cujas contradições constituem<br />

simultaneamente o patamar para se refletir sobre a presença de uma outra forma de<br />

reprodução social baseada no urbano, a ser tratado em seguida.<br />

Uma abordagem crítica precisa do viés industrial nos é dado por Oliveira ao<br />

atualizar a sua “Crítica à razão dualista” em “O ornitorrinco” (2006), centrado nas


características de desenvolvimento específicas do Brasil. Segundo ele, a renda do<br />

trabalhador que sob a forma salário era um custo para a composição do preço da<br />

mercadoria, hoje depende “dos resultados das vendas dos produtos-mercadoria”, ou seja,<br />

da “realização do valor das mercadorias... quase como se os rendimentos do trabalhador<br />

agora dependessem do lucro dos capitalistas” (p. 136, 2006). Ou seja, a “produção de<br />

mais-valor” tem sua fonte no “trabalho abstrato dos trabalhadores informais” (p. 137,<br />

2006), o que significa que o informal na verdade está inserido na lógica formal, que é do<br />

que se trata efetivamente a conhecida terceirização, base sobre a qual se erige a atual<br />

etapa de acumulação capitalista.<br />

Mas como aponta Oliveira, ao lado do “estatuto da força de trabalho” a<br />

acumulação se baseia também na “questão da terra” (p. 131, 2006). Apesar deste autor<br />

não ter adentrado este debate no citado texto, passados quase 10 anos isto tornou-se<br />

evidente com a recente etapa de financeirização econômica. Autores que observam as<br />

mudanças sócio-espaciais recentes nas grandes cidades latinoamericanas interpretam um<br />

fenômeno que foi denominada por Mattos como “reestruturação imobiliária” (2007).<br />

Para Pereira, esta noção é a síntese de uma mudança urbana de valorização local ligada<br />

à dimensão global da acumulação; que reúne as dimensões sociais e espaciais como<br />

unidade da dinâmica imobiliária e da hierarquia produtiva; que define o imobiliário<br />

como forma particular de sobrevida da acumulação (2006).<br />

O aquecimento do setor da construção voltado para a produção de moradias,<br />

ocorrido nos últimos anos nas principais cidades brasileiras, são a expressão concreta<br />

deste fenômeno, resultado de incentivos financeiros diversos, tais como a abertura do<br />

capital das empresas do setor da construção no mercado de ações a partir de 2005 3 e o<br />

Programa Minha Casa Minha Vida, que agora em 2011 já conta com uma segunda leva<br />

orçamentária. Em parte são estas as causas da recente valorização de imóveis em todo o<br />

país, que nos últimos 2 anos em São Paulo levaram à duplicação de seus valores de<br />

compra e venda 4 .<br />

Aquela pessoa que por seu trabalho já se inseria na lógica da acumulação<br />

capitalista - pelas migrações regionais do campo para a cidade, pela formação das<br />

periferias metropolitanas - também participará desta valorização imobiliária, pois a<br />

3 Isto foi anunciado pelo periódico Folha de São Paulo, no ano de 2007. Segundo depoimentos de alguns<br />

representantes destas empresas, este fator foi a principal causa da ampliação de suas atividades desde<br />

2005. Tais depoimentos deram-se na série de seminários sobre o mercado imobiliário, organizados pelo<br />

Laboratório de Habitação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo ao<br />

longo de 2009.<br />

4 Outros incentivos que têm preenchido a agenda urbana são as reformulações de áreas urbanas<br />

degradadas e os grandes eventos, principalmente os esportivos: as copas e as olimpíadas.


moradia lhe é um debate inerente. É o que Pereira aponta como tendência já nos anos<br />

1990 (1997) pois alterou-se a lógica de atuação da centralidade industrial, que até os<br />

anos 1980 criou a periferia autoconstruída segundo a antiga dualidade centro-periferia.<br />

A reestruturação do setor imobiliário acaba por direcionar os usos urbanos para a forma<br />

condominial (shopping-centers, centros empresariais, condomínios residenciais, entre<br />

outros) elevando o preço da terra e, simultaneamente, ampliando o leque daquele que<br />

pode pagar, que no caso da moradia para a camada pobre da população materializa-se<br />

nas periferias cada vez mais distantes da metrópole ou no adensamento, na<br />

verticalização de favelas e no centro em quartos de cortiços e quitinetes para famílias<br />

inteiras (PEREIRA, 1997, p. 1485). A terra como moradia assim completa, junto ao<br />

trabalho, igualmente informal e precário, o quadro da reprodução social sob a economia<br />

flexibilizada.<br />

Especificamente, como se daria esta reprodução em relação ao catador? Do<br />

ponto de vista do trabalho informal, segundo Burgos, tamanha é a exploração sobre seu<br />

trabalho que não permite nem mesmo inserir o catador na classificação tradicional de<br />

“trabalhador”. Sua análise leva a caracterizá-lo como “trabalhador sobrante” da<br />

“estruturação da indústria da reciclagem” nos “territórios de expropriação” (BURGOS,<br />

2008, p. 6). A base de seu argumento é a contradição de um trabalhador que<br />

“realiza/não realiza um processo de trabalho que possa ser<br />

compreendido como produto, posto que sua experiência de<br />

(re)inserção produtiva não faz dele nem um “trabalhador autônomo”,<br />

nem tampouco um “assalariado” [...] aparece como separado do<br />

processo produtivo, mas pode ser entendida como trabalho que<br />

participa da formação de capital. Isso porque a indústria da reciclagem<br />

parece não somente economizar capital constante na aquisição de<br />

matéria-prima mais barata (os materiais reciclados). Temos que<br />

considerar que tal matéria-prima é mais barata justamente porque nela<br />

está o trabalho não pago do catador.” (BURGOS, 2008, p. 51)<br />

Para entender a inserção do catador como trabalhador da indústria da<br />

reciclagem “é preciso um exercício de desvelamento da relação capital – trabalho”<br />

(BURGOS, 2008, p. 51). Os ganhos do catador não se definem como “tempo de<br />

trabalho socialmente necessário”, mas como matéria-prima componente do capital<br />

constante da indústria, sujeito a variações do mercado de recicláveis, ou seja, seus<br />

ganhos não se definem por seu trabalho. Por este mesmo motivo, também não pode ser<br />

considerado autônomo. Em alguns casos pode receber por seu “serviço” público,<br />

tornando-se assim um assalariado da administração pública.<br />

Sobre a forma cooperativa de trabalho, em que a relação de exploração é<br />

eliminada porque é restabelecida a relação entre trabalhador e meios de produção,


Burgos argumenta que é mais comum a dissimulação dessa forma de trabalho coletivo<br />

(2008, p. 63). Além do mais, se são as indústrias que determinam as características do<br />

produto, quer dizer que são “parte da indústria” (2008, p. 65).<br />

Como trabalhador sobrante que participa da formação do capital, igualmente o<br />

catador representaria um extremo da atual forma de acumulação também pela terra:<br />

“... o valor dos materiais recicláveis, em seu processo de<br />

transformação em matéria-prima, não advém somente da transferência<br />

do valor dos equipamentos aos produtos (basicamente do uso de<br />

prensas), mas porque em todas estas atividades existe o dispêndio, o<br />

consumo da energia vital dos próprios catadores. Ou seja, a<br />

transformação dos materiais recicláveis em matéria-prima se inicia no<br />

chão dos catadores, por isso estes territórios abriam a base da indústria<br />

da reciclagem.” (BURGOS, 2008, p. 132)<br />

E como esse território se dá nas chamadas periferias da cidade assim a<br />

reciclagem se realizaria no que ela denomina “urbano periférico” (BURGOS, 2008, p.6),<br />

o que demonstra que este setor produtivo constitui-se mais um meio estratégico da<br />

reprodução capitalista, que cruelmente se sustenta sobre as costas do catador, garantindo<br />

as condições básicas de acumulação pelo domínio sobre o trabalho e o território.<br />

2. Organização atual dos catadores<br />

Se a exploração sobre o catador assim se mostra tão inserida na atual fase de<br />

acumulação capitalista, por outro lado, tal como aconteceu na luta dos operários das<br />

fábricas, também conquistou avanços significativos na organização de seu trabalho e na<br />

luta por seus direitos, reconhecido socialmente e organizado em muitas cidades<br />

brasileiras em torno do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis<br />

(MNCR).<br />

Para falar, brevemente, da organização atual dos catadores, utilizemos os<br />

mesmos termos da crítica de Oliveira, o trabalho e a terra, termos elucidados por Marx<br />

como base da coesão social do modo de produção capitalista (MARX, 1968, p. 936). Do<br />

ponto de vista do trabalho, até a década de 1990 era comum encontrar formas primitivas<br />

de exploração de seu trabalho na cidade de São Paulo, na forma de quase escravidão por<br />

parte dos donos de ferros-velhos. Em troca de um local para morar e o empréstimo de<br />

uma carroça, o catador sujeitava-se a vender os materiais unicamente àquele que o<br />

acolhia, bem como a morar em condições precárias no próprio ferro-velho, dividindo<br />

espaço com os materiais acumulados. Ao menos na cidade de São Paulo, hoje esta já<br />

não é a forma que caracteriza o trabalho na catação, pois em geral atuam de forma


autônoma e individualmente, ou ainda na forma coletiva, pois desde os anos 1990 tem<br />

aumentado o número daqueles trabalhando legalmente em associações ou cooperativas.<br />

Individual ou coletivamente, a forma autônoma significa a possibilidade de<br />

buscar o melhor preço, pois podem vender os materiais coletados ao depósito, ou dono<br />

de ferro-velho, que melhor paga pelo quilo de material. Se encontra um bom “ponto” de<br />

coleta, ou seja, um bom gerador de recicláveis e/ou se tem um local para estocar o<br />

material, a venda em maiores quantidades lhe permite maiores ganhos.<br />

Mas a forma que mais tem caracterizado o trabalho dos catadores na última<br />

década é a forma coletiva, em associações ou cooperativas. Não abarcam a maioria dos<br />

catadores, mas é a forma que se sobressai e que tem conquistado espaços de<br />

fortalecimento de sua atividade. Inicialmente formadas a partir de projetos locais de<br />

inclusão social de entidades religiosas ou Organizações não Governamentais (ONGs),<br />

hoje tornou-se para muitos a forma lógica de trabalho dado o ganho de escala possível<br />

com um maior número de pessoas trabalhando. Desta forma têm a possibilidade de<br />

reunir maiores quantidades, de conseguir espaços mais adequados para triar e depositar<br />

os materiais, com melhor infra-estrutura (instalações sanitárias, bancadas, prensas e até<br />

caminhões), enfim, uma renda maior em melhores condições de trabalho.<br />

A dimensão que passa a ter o trabalho na reciclagem por meio destes grupos<br />

organizados passa a exigir uma forma mais articulada de atuação, para enfrentar as<br />

dificuldades comuns encontradas nas diversas cidades brasileiras, para participarem das<br />

políticas públicas ligadas à reciclagem, bem como para obter reconhecimento do serviço<br />

público que exercem em um dos temas mais caros para a sociedade atual, a<br />

sustentabilidade. Uma série de avanços assim se tornou possível: em 1999 alguns<br />

grupos reunidos no 1º Encontro Nacional de Catadores de Papel decidem fundar o<br />

Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), formalizado<br />

oficialmente em 1º de junho de 2001, no 1º Congresso Nacional dos Catadores(as) de<br />

Materiais Recicláveis em Brasília; hoje há o reconhecimento do catador como uma<br />

profissão, recebendo registro na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO); ao longo<br />

do tempo conquistam leis em diversos municípios que incluem o catador na coleta<br />

seletiva pública; recentemente participaram da formulação da Política Nacional de<br />

Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010); desde o III Congresso Latino Americano de<br />

Catadores de Materiais Recicláveis em Bogotá em 2008, sua luta política adquire escala<br />

latino-americana.<br />

Se individualmente muitos passam a exercer essa atividade por necessidade,<br />

socialmente passa a ser considerado atividade de relevância por seu apelo social e


ambiental que atrai projetos de inclusão e de geração de renda tocados por entidades<br />

religiosas e ONG´s, muitas com apoios financeiros internacionais. Estes agentes sociais<br />

assim se constituem em uma rede de apoio que se somará à construção dos avanços<br />

políticos dos catadores, o que significa um reconhecimento social cada vez mais<br />

disseminado pela sociedade.<br />

Este reconhecimento construído ao longo de décadas se mostrará fundamental<br />

no presente contexto de valorização imobiliária generalizada nas cidades brasileiras.<br />

Inúmeros grupos organizados de catadores ao longo da última década sofreram ameaças<br />

de expulsão por se localizarem em áreas de interesse imobiliário. E devido à sua<br />

organização e ao apoio social obtido muitos conseguiram permanecer. A disputa pelo<br />

espaço fica evidente diante do embate atual com a gestão municipal de São Paulo: há<br />

alguns anos os catadores conquistaram financiamento federal para a construção de<br />

alguns galpões e aquisição de maquinários, mas até hoje não puderam acessá-lo porque<br />

não encontram uma municipalidade que, como contrapartida, deve disponibilizar<br />

terrenos públicos como parte da inserção dos catadores na política pública de<br />

reciclagem.<br />

3. A visão urbana: necessidade prática e possibilidade teórica<br />

A visão industrial, ou seja, segundo o viés marxista que elucida os mecanismos<br />

da acumulação capitalista, é a base teórica dos inúmeros estudos que analisam as<br />

recentes transformações urbanas centradas na influência da atual fase de acumulação,<br />

predominantemente financeira e globalizada. Esta análise crítica, que bem nos<br />

esclareceu a forma como a reprodução capitalista adentra o urbano pelo catador, é o que<br />

Lefebvre compreende como próprio da sociedade industrial, inerentemente produtora de<br />

desigualdes sociais e que traz em seu bojo o respectivo escamoteamento pelo fetiche da<br />

mercadoria. Procurando avançar e atualizar esta leitura, a interpretação urbana de<br />

Lefebvre mostra que a superação de tal forma de reprodução social necessariamente tem<br />

que buscar outros parâmetros, ao mesmo tempo sem deixar de considerar o existente.<br />

O espaço que se tornara objeto preferencial das reflexões filosóficas de<br />

Lefebvre, em A Revolução Urbana (2004) aparece como componente de um modo<br />

diferente de reprodução social, um modo de produção que altera os atuais estatutos do<br />

trabalho e da terra. De modo mais claro, refere-se a algo distinto de uma sociedade<br />

capitalista baseada na reprodução industrial, na mais-valia: trata da sociedade urbana.<br />

Abre com isto um horizonte de alternativas possíveis para mudanças sociais hoje tão


necessárias e talvez capazes de superar a desigualdade social que grita na paisagem<br />

urbana, por meio de novos sujeitos políticos.<br />

Ele lembra que o longo período industrial é a base de reprodução da atual<br />

sociedade moderna, assim denominando-a como sociedade industrial. Precedida pela<br />

sociedade rural, seu sucedâneo seria a sociedade urbana: “Aqui, reservaremos o termo<br />

´sociedade urbana´ à sociedade que nasce da industrialização. Essas palavras designam,<br />

portanto, a sociedade constituída por esse processo que domina e absorve a produção<br />

agrícola” (LEFEBVRE, 2004, p. 15). Portanto, em uma leitura dialética, as mudanças<br />

sociais se dão em um processo que se inicia em gérmen no período anterior, ou seja, o<br />

atual período industrial já traz a potência do novo. É pela reprodução social trazida<br />

pelos catadores que se apropriam de áreas centrais que propomos visualizar este novo,<br />

em uma abordagem que recoloca os termos da visão tradicional. Sem descartar esta que<br />

vê a superação da atual sociedade capitalista pela revolução social oriunda da união das<br />

lutas sociais, observamos que tal união pode se dar nas mudanças pelo urbano, o que<br />

abre uma reflexão que permite uma construção utópica, mas que reúne teoria e prática,<br />

uma prática presente que se esclarece pelo passado, sobre a qual a reflexão é capaz de<br />

projetar um futuro.<br />

“E agora há também o alhures, o não-lugar que não acontece e,<br />

entretanto, procura seu lugar. A verticalidade, ou seja, a altura erigida<br />

não importa a que ponto a partir do plano horizontal, pode tornar-se a<br />

dimensão do alhures, o lugar da ausência-presença: do divino; da<br />

potência; do meio-fictício meio-real; do pensamento sublime. O<br />

mesmo ocorre com a profundidade subterrânea, verticalidade inversa.<br />

É evidente que, nesse sentido, o u-tópico nada tem em comum com o<br />

imaginário abstrato. Ele é real [...] Espaço paradoxal, onde o paradoxo<br />

converte-se no avesso do cotidiano.” (LEFEBVRE, 2004, p.45, 46)<br />

3.1 . Visão urbana sobre os catadores<br />

É sob este viés urbano que aqui propomos compreender a presença e a<br />

permanência da catadora e do catador nas centralidades urbanas, base do atual patamar<br />

de sua organização. O urbano que aparece teoricamente possível em Lefebvre, com eles<br />

se mostra concretamente, de modo inusitado como apropriação pelo uso do espaço<br />

urbano. Uso inusitado porque, se nasceu residualmente de antigas representações do<br />

mundo do trabalho, já não as reproduz mas as reformula concretamente. E isto se mostra<br />

possível quando compreendemos as razões da resistência de uma das maiores<br />

concentrações de catadores de materiais recicláveis do Brasil, o Glicério, nascedouro de<br />

sua atual forma organizada de atuação, hoje inseridos em um dos espaços de interesse<br />

de revitalização urbana por parte dos investidores imobiliários, o Centro da cidade de<br />

São Paulo.


Por trás desta contradição entre a simultaneidade de sua espoliação urbana e de<br />

sua permanência, ao observar a história do surgimento de sua organização, notaremos<br />

uma fissura nas regras da reprodução social. Esta região que Burgos caracteriza como o<br />

“urbano periférico” onde se dá o “chão do catadores” (BURGOS, 2008, p. 74) é<br />

historicamente desdenhada pela valorização imobiliária desde o início do século XX,<br />

quando a incipiente cidade da pujança industrial abandona a paisagem da Várzea do<br />

Carmo, em seu lado Leste, e se volta para o Oeste, o Vale do Anhangabaú. Abandonada<br />

como espaço de permanência da elite, reserva para futuras valorizações ou mero espaço<br />

de circulação de pessoas e mercadorias por seus inúmeros viadutos, torna-se espaço<br />

possível para a concentração da população mais pobre. Mas como é próprio da natureza<br />

do espaço, criam-se regras próprias de seu uso, regras diferentes daquelas que regem as<br />

áreas de interesse do mercado e do Estado.<br />

O que se observa, nesta ordem próxima específica deste urbano, é um<br />

trabalhador que se vê descartado pela sociedade e que assim busca outras maneiras de<br />

expressar os desejos surgidos das necessidades da vida, plasticidade própria da natureza<br />

humana que cria uma particularidade ligada a este espaço e a um tempo específico.<br />

Apesar de espaço desdenhado pela elite, o Glicério constitui uma centralidade urbana na<br />

qual ele encontra formas possíveis para sua reprodução social. Encontra formas de<br />

trabalho, de moradia, de consumo, de acesso a uma série de serviços devido à presença<br />

das entidades assistenciais.<br />

Entre elas, tal como ocorreu nas periferias da cidade nos anos 1980, neste<br />

mesmo período uma entidade religiosa católica decide ali atuar segundo o método da<br />

Teologia da Libertação e da pedagogia de Paulo Freire. Com isto, fez-se a mesma<br />

problematização junto às comunidades empobrecidas que gerou o caldo político das<br />

lutas sociais urbanas que marcaram o período. Além da tradicional reflexão sobre as<br />

precariedades das formas de moradia, que no caso do Centro se dá com os moradores de<br />

cortiços, no Glicério a reflexão da exploração dos trabalhadores não se dá com operários.<br />

Se dá com moradores de rua que, descartados pelas indústrias, ali encontram inúmeras<br />

formas de “bicos” ligados à pujança comercial do centro, vivendo da catação de<br />

papelões das lojas para reciclagem, como carregadores do Mercadão e da zona<br />

cerealista, entre outras atividades. Dentre estas, concluem que a reciclagem emerge<br />

como aquela a ser incentivada, como possível meio de superação da pobreza extrema e<br />

do trabalho semi-escravo a que eram submetidos os catadores de então. A vantagem<br />

evidente do trabalho conjunto dos catadores, somada à disponibilidade de um espaço<br />

para melhor organização de seu trabalho, terreno cedido pela Igreja, levou à formação


da que é considerada a primeira forma de organização dos catadores na cidade, a<br />

associação que mais tarde se formalizará como uma cooperativa, a Coopamare<br />

(Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis.).<br />

A partir disto se inicia o processo de organização crescente das catadoras e dos<br />

catadores, como já exposto anteriormente.<br />

Além desta possibilidade ligada a uma entidade, o que há por trás da conquista<br />

do uso deste terreno é toda uma dimensão espacial urbana. Se hoje o catador está<br />

presente nas ruas das grandes centralidades urbanas do país e do continente, uma vez<br />

que a catação se tornou uma das poucas possibilidades de renda em um contexto de<br />

mercado de trabalho cada vez mais restritivo, nesta região há décadas encontram a<br />

possibilidade de fazer uso de outras áreas, como meio comum para viabilizar a triagem<br />

e o depósito dos materiais de tantos catadores que não só da Coopamare: terrenos<br />

privados abandonados; outros terrenos, públicos ou privados, cedidos pelo poder<br />

público ou por instituições civis, principalmente religiosas; áreas públicas sem uso ou<br />

subutilizadas, principalmente sob viadutos, com ou sem autorização de uso. A terra que<br />

para o mercado não tem valor, ali serve ao uso do catador.<br />

A somar-se a esta constituição urbana, já na década de 1990 passa a contar<br />

também com a presença de movimentos sociais organizados que, tais como as ONGs e<br />

órgãos públicos, mostram-se como um espaço de oportunidades. Nos movimentos de<br />

moradia, encontram a possibilidade de um financiamento habitacional acessível, uma<br />

bolsa-aluguel ou um local provisório nas ocupações de edifícios abandonados. Nos<br />

movimentos de pessoas em situação de rua encontram estas mesmas informações, mas<br />

também algum projeto diferenciado, como albergues para famílias, repúblicas ou<br />

locação social, bem como bolsa-trabalho ou qualquer outro projeto de geração de renda.<br />

O próprio MNCR até recentemente mantinha sua sede na região do Glicério.<br />

O resultado de toda esta conjunção possível pela centralidade presente no<br />

Glicério é a diferença própria da particularidade de um lugar que Lefebvre define como<br />

heterotopia:<br />

“O termo “isotopia”, e seu correlato “heterotopia”, indicam que<br />

acontece reunirem-se, situando-se, os discursos e os léxicos em sua<br />

pluralidade. Entre os discursos que podem suscitar percursos,<br />

destaquemos as formas, as funções, as estruturas urbanas. Quem fala?<br />

Quem age? Quem se move no espaço? Um sujeito (individual ou<br />

coletivo) que entra nas relações sociais (de propriedade, de produção,<br />

de consumo). Assim, a descrição das isotopias e das heterotopias<br />

desenvolver-se-á conjuntamente com a análise dos atos e situações<br />

dos sujeitos e sua relação com os objetos que povoam o espaço urbano.<br />

O que nos leva a uma descoberta, ou melhor, a um re-conhecimento:<br />

da presença-ausência que contribui para povoar o espaço urbano, do


alhures, da u-topia (o que não tem lugar, o que não acontece).”<br />

(LEFEBVRE, 2004, p. 174)<br />

Já a ordem distante, que incide sobre estas relações espaço-temporais, parece<br />

ser dada por duas fontes. Uma é a própria forma de acumulação capitalista que gera os<br />

resíduos, tantos materiais (a terra sem valor do Glicério e os materiais residuais do<br />

mundo da mercadoria) quanto sociais (o trabalhador descartado e a indústria da<br />

reciclagem). A outra, que se materializa como práxis urbana dos religiosos e militantes<br />

de movimentos sociais, é a que procura superar as desigualdades sociais geradas pela<br />

primeira. Mais recentemente talvez se poderia falar de uma terceira, a sustentabilidade,<br />

mas que na verdade está presente nas outras duas.<br />

O resultado da confluência destas ordens desde os anos 1980 compõe assim<br />

uma dinâmica de relações sociais diferenciais, que hoje compõe toda uma rede social de<br />

apoio aos catadores: religiosos, militantes de esquerda, acadêmicos, ambientalistas,<br />

estudantes, entre outros. Trata-se de uma diversidade de grupos que se articulam em<br />

torno de uma atividade, a reciclagem, a configuração da síntese da apropriação do<br />

espaço pelo uso dos catadores, uma nova centralidade com regras de uma forma urbana<br />

na qual já atua uma outra subjetividade. Outra subjetividade porque foi o que<br />

observamos nos depoimentos de alguns catadores da principal cooperativa do Glicério,<br />

a Cooperativa dos Catadores da Baixada do Glicério (Cooperglicério).<br />

Como tantos outros trabalhadores, ao observarmos a história de vida dos<br />

catadores, veremos a trajetória da flexibilização das relações trabalhistas, do emprego<br />

com carteira assinada até a situação de rua. Se crescentemente há a diminuição das<br />

possibilidades de trabalho e renda para as camadas mais empobrecidas da população, ao<br />

lado da expulsão para moradias cada vez mais distantes e precárias, a necessidade de<br />

alguma renda faz com que continuamente busquem e até criem e recriem outras formas.<br />

Para aqueles que talvez nem se lembrem do trabalho com carteira assinada, sem<br />

formação suficiente, alguns velhos demais, outros sem experiência, ou com alguma<br />

limitação física, ou que simplesmente já não conseguem pagar o transporte público para<br />

procurar um trabalho fora de seus locais de moradia, a reciclagem torna-se a forma de<br />

obter alguma renda.<br />

Eles entram na atividade da catação da mesma maneira com que conseguem<br />

outros meios de suprir as necessidades da vida, por meio dos conhecimentos presentes<br />

em uma rede social que lhe permite conseguir um atendimento médico, algum curso de<br />

formação profissional gratuito, a inscrição em alguma política pública de assistência<br />

social (bolsa-trabalho, bolsa-família, creches, etc.), entre outras. Ele assim também


facilmente encontra algum projeto social de uma Igreja ou da associação de moradores<br />

da região, que em convênio com alguma ONG ou órgão público desenvolvem um<br />

programa de geração de renda com a reciclagem, tão em voga em tempos em que o<br />

debate ambiental é premente.<br />

Mas isto que sob algumas análises são meras estatégias de sobrevivência, sob o<br />

olhar urbano pode tornar-se um meio de incluir-se. Numa abordagem diferenciada<br />

Pereira nota uma forma de inclusão no que se tornou o espaço emblemático da exclusão<br />

social nos anos 1980, a periferia:<br />

“Na realidade, esta representação tradicional do crescimento da cidade<br />

expressava um padrão que segregava a população pobre em áreas<br />

precárias e distantes do centro metropolitano. Provocava, a rigor, uma<br />

urbanização predatória que tinha um caráter tanto excludente como<br />

desigual, mas que podia não se revelar como tal: a exclusão<br />

transformava-se no seu contrário. O trabalhador se integrava a cidade<br />

pelo padrão periférico. A exclusão ficava esmaecida porque a<br />

produção imobiliária extensiva, apesar do seu caráter predatório e<br />

excludente, funcionava como um processo de inclusão dos pobres na<br />

dinâmica imobiliária”. (PEREIRA, 1997, p.5)<br />

Esta inclusão na cidade por meio da produção imobiliária, segundo a “questão<br />

da terra” lembrada por Oliveira, igualmente pode ser interpretada como uma inclusão<br />

pelo urbano. Foi nestas periferias que grupos de moradores e trabalhadores da indústria<br />

problematizaram, junto à Igreja católica e sindicatos, as condições de vida nestas<br />

periferias. Eram conversas do cotidiano feitas nas centralidades locais destas periferias,<br />

nos encontros nas ruas, nos salões paroquiais, nas associações de moradores, nos clubes<br />

de mães, gerando a expressividade dos movimentos sociais urbanos e sindicais que<br />

levaram às greves metalúrgicas e às lutas urbanas por creche, por saúde, por moradia,<br />

entre outras. A esta confluência que Kowarick denominou “fusão de lutas” (2000)<br />

somamos a dimensão espacial, pois configuradas com base em incipientes centralidades<br />

urbanas criadas em torno das igrejas ou centros comerciais locais espalhados nessas<br />

periferias. É devido a esta mobilização social que se conquistou uma urbanidade, pelos<br />

equipamentos e infra-estrutura, como parte de políticas públicas voltadas para a saúde, a<br />

educação, a moradia, entre outros.<br />

Esta reinterpretação do crescimento da cidade de São Paulo torna-se um<br />

argumento mais explícito diante da centralidade encontrada na história e no espaço dos<br />

catadores no centro da cidade de São Paulo. Não fosse o Glicério uma centralidade e<br />

região desdenhada pela elite, não existiriam as condições que são a base de sua<br />

organização. Não teria atraído tantas pessoas quase sem renda a tirar partido da<br />

proximidade do pujante comércio e serviços, da moradia barata e dos equipamentos


públicos. Logo, não atrairia as entidades religisoas e assistenciais, logo seguidas pelas<br />

ONGs e academia; não teria tantos recursos para os inúmeros projetos de enfrentamento<br />

da pobreza da região, com financiamentos nacionais e internacionais, privados e<br />

públicos. É parte, também, da chamada indústria da pobreza, mas ao menos do ponto de<br />

vista da atividade dos catadores, pode ser outra coisa, algo diferente em relação a pontos<br />

centrais da lógica de reprodução capitalista.<br />

3.2. Negação da coesão capitalista<br />

O que leva à apropriação do espaço do Glicério pelo uso do catador, são as<br />

condições próprias do trabalho na reciclagem. Por esta atividade, as condições básicas<br />

da constituição da coesão capitalista, que se baseia na apropriação da riqueza produzida<br />

pelo trabalhador pelo domínio da terra e do trabalho (MARX, 1968, p. 936), são<br />

quebradas.<br />

Na produção capitalista o trabalhador depende do empresário, devido à<br />

propriedade da fábrica e de seus maquinários, os meios de produção, e assim concorda<br />

que tem que lhe repassar parte da riqueza produzida. Na catação isto inexiste. Para o<br />

catador torna-se evidente que é estritamente seu trabalho que permite a riqueza da<br />

indústria da reciclagem, pois somente seu esforço físico permite a disponibilização dos<br />

recicláveis. Isto se tornou claro quando o catador superou a intermediação do dono do<br />

ferro-velho.<br />

Em relação à terra há duas especificidades que se baseiam nas condições<br />

urbanas. Primeiramente, seu trabalho acontece nos locais que não têm valor de troca, ou<br />

seja, a catação se dá nos espaços públicos (ruas, praças e espaços cedidos pelo poder<br />

público) ou em espaços privados sem valor, como os imóveis abandonados tão comuns<br />

na baixada do Glicério, seja por serem da Igreja católica, por conterem complicações<br />

jurídicas de heranças de difícil solução ou porque seus proprietários estão há décadas à<br />

espera de valorização. Uma segunda razão são os próprios materiais recicláveis que não<br />

tem valor para quem os produz, pois são meramente “lixo”. É como se o catador<br />

estivesse garimpando materiais de uma jazida, no caso as calçadas da cidade ou as<br />

garagens dos edifícios, sem ter de pagar a parte do proprietário da terra onde se<br />

encontraria a “jazida”.<br />

Assim, o que o catador faz é criar valor a partir daquilo que para a sociedade,<br />

ao menos até agora, não tem valor monetário, mas que em tempos de crise ambiental e<br />

social torna-se um outro valor, tradicionalmente entendido como de geração de renda,


de inclusão social e de atuação ambientalmente correta. É a perda da base de<br />

sustentação do fetiche da mercadoria.<br />

4. Novas representações<br />

Como consequência ocorrem alterações nas representações tradicionais da<br />

sociedade cuja lógica reprodutiva é definida pela produção de mercadorias. Segundo<br />

Lefebvre para além das ideologias “las representaciones... forman parte de una<br />

estrategia ´inconsciente´. Nacen como símbolos en lo imaginario y se fortalecen<br />

volviéndose corrientes, casi instituidas” (LEFEBVRE, 1983, p. 60). Isto pode ser<br />

observado nas entrevistas sobre a história de vida dos catadores da Cooperglicério, em<br />

que muitas falas expressam a negação da própria lógica de reprodução capitalista, com<br />

sua organização de trabalho hierárquico, homogêneo e fragmentado.<br />

Uma das mudanças aparece com a forma coletiva de trabalho, segundo duas<br />

exigências práticas que leva o catador a crescentemente trabalhar desta maneira mais<br />

organizada. De um lado conseguem aumentar o valor do quilo de material coletado ao<br />

reunirem o montante de vários catadores, a ponto de permitir eliminar intermediários e<br />

assim vender diretamente para a indústria de reciclagem. De outro, têm seu trabalho<br />

reconhecido pela sociedade, que valoriza iniciativas coletivas ligadas à solidariedade,<br />

em um misto que soma a moral do trabalho e do assistêncialismo. Esta forma chega a<br />

ser quase inevitável para aqueles que circulam em áreas centrais de interesse para a<br />

valorização imobiliário, uma vez que seu material e sua carroça podem facilmente ser<br />

confiscados pela Prefeitura. Enfim, seja pelo ganho de escala, seja pelo reconhecimento<br />

ou exigência social, passam a se organizar em associações e cooperativas.<br />

Posteriormente passam a articular-se em rede com outros grupos de reciclagem,<br />

distanciando o catador daquele indivíduo atendido por uma política assistencial para<br />

participar ativamente da construção das politicas públicas de reciclagem, tal como hoje<br />

no debate da Política Nacional de Resíduos Sólidos.<br />

Disto tem-se uma segunda mudança, a alteração da representação do trabalho<br />

entre aqueles que chegaram a trabalhar em empresas: a valorização do trabalho na<br />

cooperativa também é uma forma de negação de uma experiência que o expulsou do<br />

mercado de trabalho formal, devido a relações hierárquicas de poder da estrutura<br />

organizativa empresarial, de relações injustas devido à competição para a ascensão nos<br />

cargos, redutora das diferentes potencialidades e conhecimentos dos seus funcionários.<br />

Na forma cooperativa de trabalho afirmam encontrar um trabalho em que todos são<br />

igualmente catadores, em que não faz sentido a relação de mando nem de subordinação,


mas de discussão para a garantia e avanços na organização do trabalho, independente da<br />

idade, do nível de educação, de uma certa limitação física.<br />

Esta coesão de organização ganha maior importância com o atual processo de<br />

intervenções urbanas por parte do poder público. Nas proximidades da cooperativa já<br />

está em andamento um projeto de embelezamento urbano que, entre outras intervenções,<br />

eliminou 768 unidades habitacionais onde viviam famílias de baixa renda, superando<br />

inclusive restrições legais de zoneamento urbano. A cooperativa que já passou por uma<br />

tentativa de expulsão, teme passar pela mesma experiência, pois se a prefeitura em uma<br />

dada gestão permitiu que ali se instalasse, na seguinte não lhe permite legalmente a<br />

concessão de uso. Sua permanência dependerá da correlação de forças na disputa com a<br />

valorização imobiliária de seu entorno. A seu favor está toda a rede social construída em<br />

torno de sua atividade e da constituição urbana do Glicério.<br />

Devido a estes dois elementos, o deslocamento das representações do mundo<br />

do trabalho, e a apropriação do espaço pelo uso (em oposição à troca), que o catador<br />

institui seu desejo como sujeito político. E o faz no cerne da reprodução capitalista,<br />

como reprodução de relações sociais que se diferenciam do modo de reprodução da<br />

sociedade da mais-valia. É toda esta conjunção que lhe permite participar ativamente<br />

dos debates e das disputas urbanas, nos quais negocia, tanto pela institucionalidade das<br />

leis do Estado quanto pela disputa social das manifestações reivindicativas, a<br />

permanência de sua atividade na centralidade urbana.<br />

Vale lembrar que, tal como a estratégia homogeneizante e globalizada<br />

neoliberal que procura adentrar todos os países, também a reciclagem é uma repetição<br />

que se reproduz nas inúmeras cidades do mundo. Como trata-se também de uma<br />

apropriação local intrinsecamente urbana, segundo uma lógica de reprodução social<br />

urbana criada pela própria sociedade da mais-valia, toda a ordem próxima encontrada<br />

no entorno da Cooperglicério é potencialmente reproduzível em cidades do Brasil, da<br />

Argentina, da Colômbia, entre tantas outras. A Rede Latino Americana de Organizações<br />

Recicladoras/Catadores (RLOR) surgida no III Congresso Latino Americano de<br />

catadores reflete a escala da organização dos catadores para a defesa de sua atuação na<br />

reciclagem. A centralidade urbana assim apropriada em diferentes lugares pelo uso dos<br />

catadores, tem portanto o potencial de conter vários grupos, que somado à rede social na<br />

qual se apoiam, têm de repensar as formas em que garantem seu trabalho, de acordo<br />

com as condições de cada localidade.<br />

5. Novo Patamar


Se foi o processo de apropriação de uma centralidade urbana pelos catadores<br />

que até o momento garantiram sua presença no urbano, em oposição ao processo de<br />

expulsão da valorização imobiliária, é possível avaliar a possibilidade de continuidade?<br />

De pronto, a atual forma de reprodução de relações sociais de produção trazida<br />

pela apropriação do espaço urbano pelo uso dos catadores em si contém o potencial de<br />

continuidade. Sabemos que faz parte da lógica da acumulação o contínuo e crescente<br />

descarte de trabalhadores pelas empresas, ou mesmo a diminuição crescente dos salários.<br />

A catação assim tende a atrair cada vez mais pessoas em busca de soluções de obtenção<br />

de alguma renda, até porque não raro permite maiores ganhos que o emprego formal.<br />

A geração da condição principal de trabalho do catador, os recicláveis, também<br />

irá continuar, pois é inerente à produção de mercadorias. O que se mostra como possível<br />

alteração deste quadro seria a interrupção do fornecimento por seus geradores, pois hoje<br />

a Prefeitura de São Paulo tende a permitir isto somente a empresas privadas ou a grupos<br />

de catadores cadastrados (LEI Nº 13.478/2002), ou seja, em dia com as exigências<br />

burocráticas próprias do Estado. Isto tem várias consequências.<br />

A primeira é que se torna um grande filtro que inviabilizará o trabalho dos<br />

catadores autônomos, como se fosse uma forma atualizada do conflito dos anos 1980,<br />

quando o então prefeito Jânio Quadros afirmava ser o lixo de sua propriedade e os<br />

chamava de “Sugismundos”. No caso dos grupos organizados, a grande dificuldade de<br />

estar em dia com toda a burocracia solicitada pode afetar muitos grupos. No entanto, ao<br />

mesmo tempo reforça a própria organização em um trabalho coletivo. O que era uma<br />

forma de aceitação pela sociedade passa a ser exigência legal.<br />

Há uma pressão de setores empresariais para a criação de incineradores, sob o<br />

argumento de geração de energia e de que seria uma última etapa após a reciclagem.<br />

Independente dos argumentos das partes, do ponto de vista do catador isto significaria<br />

queimar a condição do trabalho dos catadores, os recicláveis, considerando a<br />

ineficiência da coleta seletiva pela municipalidade e as exigências técnicas da própria<br />

incineração. Por outro lado, prejudicará algumas indústrias que se beneficiam do<br />

material reciclado, que diminuem custos de produção em relação à matéria-prima bruta.<br />

Novamente a rede social de apoio se soma às inúmeras manifestações que o MNCR e<br />

ambientalistas têm organizado contra esta proposta.<br />

Sobre as condições favoráveis à continuidade do trabalho pelos catadores já há<br />

várias leis nos diversos níveis de governo e vários programas, públicos e privados, de<br />

incentivo à sua organização e aprimoramento do trabalho, grande parte ligado ao apelo<br />

ambiental que tem absorvido grande parte das linhas de financiamento nacionais e


internacionais. Uma delas, que tem sido foco das ações do MNCR na cidade de São<br />

Paulo, constitui-se em um conjunto de projetos para a construção de cerca de 17 galpões<br />

para grupo de catadores, todos dependentes do nível Municipal de governo para sua<br />

concretização. Dez destes galpões referem-se a incentivos do principal programa do<br />

governo federal, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e somente com a<br />

aproximação do prazo final de utilização do recurso, e após pressão política por parte do<br />

MNCR e ambientalistas, é que se inicia a viabilização dos primeiros galpões.<br />

A Política Nacional surge como uma necessidade surgida do debate da<br />

sustentabilidade, e mostra-se simultaneamente como uma potencialidade e uma<br />

exigência para os catadores. De um lado há o incentivo à reciclagem por meio de grupos<br />

organizados, que pode significar maiores ganhos de escala e maior atendimento por<br />

políticas públicas locais. Por outro a logística reversa exigirá um nível maior de<br />

organização para ajuste às demandas da produção das empresas, que agora são<br />

obrigadas a garantir a reciclagem de todos os descartes gerados por seus produtos.<br />

O apelo ambiental efetivamente é o maior argumento para a permanência dos<br />

catadores, que se soma ao apelo da responsabilidade social e combate à pobreza. A<br />

questão aqui seria a garantia de sua autonomia, em torno da qual erigiu-se todo o avanço<br />

que os catadores construiram no sentido da busca de mudanças sociais pelo urbano. É o<br />

que se observou no Ecoponto Glicério administrado pela Prefeitura, em que catadores<br />

que atuavam individualmente são agora obrigados a vender a um único aparista, que<br />

para tanto passou por um processo de concorrência.<br />

Inúmeros outros fatores complementam este universo de desejos em torno da<br />

permanência ou expulsão dos catadores na cidade de São Paulo. O que sua história no<br />

Glicério nos mostra é que é preciso tirar partido das centralidades que os incitam a<br />

surgir de modo incipientemente organizados, pois constituintes da potencialidade de<br />

uma segunda centralidade já como práxis urbana, em torno de toda uma rede social da<br />

reciclagem surgida pelo catador. Claro, não sob um viés assistencialista ou<br />

ecologicamente correto, mas porque mostra-se como solução socialmente encontrada<br />

que melhor responde estruturalmente a parte destes que são problemas urbanos trazidos<br />

pela sociedade da mais-valia, o domínio da reprodução social pelo controle do trabalho<br />

e da terra.<br />

Torna-se estratégico, portanto, consolidar a autonomia e a conquista de áreas<br />

para receber os recursos para a construção de galpões e aquisição de equipamentos,<br />

principalmente em locais de confluência das facilidades urbanas (como ocorreu com a<br />

Coopamare e a Cooperglicério), e onde redes sociais aglutinam mecanismos sociais de


defesa dos catadores, como ocorre com o apoio, por exemplo, das incubadoras<br />

universitárias.<br />

Se antes grupos de catadores mobilizavam-se para terem sua atividade<br />

reconhecida, mesmo que somente para garantir a mera circulação de seus carrinhos nas<br />

ruas, hoje deve se dar pela permanência e ampliação sob melhores condições de<br />

trabalho como parte da própria produção do urbano. Mesmo diante da pressão da<br />

valorização imobiliária, o catador que soube se apropriar das condições urbanas,<br />

encontra no urbano a possibilidade de resistência, pois as relações sociais de produção<br />

desse urbano passam a exigir sua reprodução. Os crescentes problemas sociais e<br />

ecológicos, que afetam a maioria dos moradores das cidades, cada vez mais adentram os<br />

debates cotidianos e a solução concreta que se mostra possível pelos catadores pode<br />

nisto reverberar. As representações em reformulação encontradas entre os catadores<br />

podem assim também se aprofundar e difundir a negação da reprodução social<br />

hierárquica, homogênea e fragmentada. É o urbano em si que resiste e quer avançar<br />

sobre o espaço da sociedade da mais-valia.<br />

Apenas insere-se aqui uma releitura da visão urbana de Lefebvre com base em<br />

um estudo de caso, os catadores do Glicério. É preciso avançar na reflexão teórica, mas<br />

a presença dos catadores já mostra uma possibilidade concreta de resistência à atual<br />

forma de acumulação financeirizada, bem como indica uma nova estratégia para a<br />

atuação das diversas mobilizações sociais: a apropriação do espaço urbano como parte<br />

do fazer político e da constituição de sujeitos políticos.<br />

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