A Raposa e a Águia - Programa de Pós-Graduação em História ...
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A explicação parece residir nas características da retórica política usuais no início da República.<br />
Como aponta José Murilo <strong>de</strong> Carvalho (1999), no artigo “<strong>História</strong> intelectual: a retórica como<br />
chave <strong>de</strong> leitura”, a <strong>de</strong>squalificação do adversário era um recurso regular <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse campo<br />
discursivo. O autor informa que a tradição incorporada pelos letrados brasileiros do século XIX,<br />
visível nos compêndios educativos da época, r<strong>em</strong>onta à retórica cívica romana, que incluía as<br />
qualida<strong>de</strong>s morais do orador como critério <strong>de</strong> validação do discurso. O conteúdo do discurso era<br />
inseparável do valor do seu enunciador. Assim, o argumento “ad personam”, a agressão pessoal<br />
ao adversário, era, como é ainda hoje, um recurso usual no <strong>em</strong>bate político.<br />
Nos jornais baianos da Primeira República, entretanto, a <strong>de</strong>squalificação encontrava o caminho<br />
da troça, resultando na criação <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iras caricaturas verbais. Era frequente, por ex<strong>em</strong>plo, a<br />
criação <strong>de</strong> apelidos relacionados a animais, configurando uma espécie <strong>de</strong> “zoologia política” 15 .<br />
Severino Vieira, com seus olhos saltados, era o sapo-cururu; Araújo Pinho, consi<strong>de</strong>rado lento e<br />
antiquado, era a lesma <strong>de</strong> suíças; Virgílio <strong>de</strong> L<strong>em</strong>os, chamado <strong>de</strong> porco pelos jovens seabristas,<br />
respon<strong>de</strong>u dizendo que eles eram os rafeiros (cães que ajudam na condução e vigia do gado) <strong>de</strong><br />
Seabra. Para Muniz Sodré, provavelmente o seabrista mais hostil a Rui Barbosa, a célebre <strong>Águia</strong><br />
<strong>de</strong> Haia não passava <strong>de</strong> um peru.<br />
As agressões pessoais incluiam tudo que pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>svalorizar o adversário no campo político da<br />
época. Alguns, como Aurelino Leal, tiveram sua ascendência africana posta <strong>em</strong> cena. Outros<br />
sofriam alusões à sua sexualida<strong>de</strong>, honestida<strong>de</strong>, inteligência, vícios (bebida, jogo). José Inácio da<br />
Silva, político <strong>de</strong> Juazeiro, foi ridicularizado pelos primos Muniz Sodré e Antônio Muniz porque<br />
vinha <strong>de</strong> uma orig<strong>em</strong> sertaneja e mo<strong>de</strong>sta. Em troca, ironizou os Munizes, muito ciosos <strong>de</strong> suas<br />
raízes aristocráticas, chamando-os <strong>de</strong> “fidalgotes <strong>de</strong> meia tigela”. Arlindo Fragoso, secretário <strong>de</strong><br />
Estado do primeiro governo Seabra, foi alvo <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira campanha difamatória por parte <strong>de</strong><br />
Simões Filho, que o acusava, entre outras coisas, <strong>de</strong> ser boêmio e andar com “cocotes” no carro<br />
oficial. O secretário entrou com processo na Justiça contra o jornalista, por calúnia.<br />
É preciso observar, contudo, que n<strong>em</strong> todas as agressões eram toleradas. Alguns dos ofendidos<br />
<strong>de</strong>cidiam “lavar a honra”, o que dava marg<strong>em</strong> a ocasionais atos <strong>de</strong> violência, como o que vitimou<br />
o tenente e <strong>de</strong>putado seabrista Propício da Fontoura, <strong>em</strong> 1918. Ele foi morto pelo jornalista<br />
Artur Ferreira, ligado à oposição ruísta, após confrontá-lo sobre artigos que consi<strong>de</strong>rou ofensivos<br />
à sua honra. Esse é apenas um ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> caso que extrapolou a dimensão política para invadir<br />
o terreno pessoal, com trágicas consequências.<br />
15 A expressão é usada por Marco Morel (1998), <strong>em</strong> um artigo sobre animais, monstros e <strong>de</strong>formida<strong>de</strong>s no vocabulário<br />
político brasileiro após a In<strong>de</strong>pendência. Esses el<strong>em</strong>entos faz<strong>em</strong> parte da cultura política do país.<br />
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