30 não a alimentava com mais sofrimentos do que tinha. Toda aquela sua casa de livro, feita em folhas de papel, linhas e frases, ali sujas e desleixadas, tornando-se lixo. E o personagem, entranhado naquele texto em meio ao fedor e resíduos molhados daquela lata, me colocava, naquele momento, como um ser humano que efetivamente podia fazer alguma coisa em prol de alguém, ali no caso, os personagens do livro e o próprio livro. Senti orgulho de mim, aquele exemplar literário me fez sentir uma pessoa de verdade. Pareceu-me que eles (os personagens), e o livro, estivessem tão desvalorizados quanto a minha pessoa, antes daquele momento, e que os personagens daquela história, não mais queriam viver, junto com aquele livro, mas eu o havia encontrado. Ele me salvaria e eu retribuiria de alguma forma. Isso não era um pensamento premeditado em mim, mas era como se eu ouvisse uma voz silenciosa dizendo nos meus ouvidos, vindo de meu coração: – Não hesite, apanhe-o, salve-o! Assim como também o personagem tinha sido encontrado e salvo por um pavão gigante, que podia misteriosamente voar como uma andorinha. Eu, como um garimpeiro, acabava de encontrar uma pepita valiosa, e tudo movido por aquele meu fascínio escondido dentro do sentido, pela avidez do meu querer conhecer, descobrir mundos e sentimentos, cheguei a concluir que talvez tudo isso nos levasse a uma vida eterna, talvez esta história nos imortalizasse... Talvez tudo estivesse no... Talvez, entre o acertar e o errar. – O talvez... É aquele ponto entre o pensamento e a decisão. O que nem sempre se consegue fazer sem antes pensar, e pensar, e pensar até errar ou acertar, este mundo é mesmo um mundo de incertezas - concluo finalmente. Sobre o dorso do pássaro gigante, o nosso personagem encantava-se com tantas belezas que jamais vira em toda sua vida ou jamais veria, se tivesse concretizado seu intento nefasto de morrer, mas sua morte estava mesmo naquele ponto do incerto, naquele talvez. Era tão jovem, havia de merecer viver ainda por muito tempo. Mas jovens também morrem, e como morrem! Mas ele estava vivo e descobria ninhos de aves sobre galhos das imensas árvores, filhotes sendo tratados carinhosamente por mamães pássaras, saguis saltitando alegres sobre galhos davam movimentos à vida. Por que todos os seres têm mães e pais? Em certo sentido, alguns animais só têm mães; os pais vêm e se acasalam e depois
31 somem, as mães chocam os ovos e criam os filhotes, ou seriam os pais, ele não saberia dizer... E estes por sua vez voam e se perdem nas matas adentro.