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2 Agora tudo saltava de seu tempo, retornado de certo ventre do nada. Havia, para mim, um ventre grávido que o gerou e que ainda o gerava e aos poucos também me desvendava. Meditava assim este homem passarinho, divagando, como um menino nas suas próprias sombras, refletindo absorto, como se caminhasse em seus próprios pensamentos. Assim, era-me agora, a realidade. As palavras lidas naquele primeiro livro ficaram cravadas em mim, na minha memória. Talvez não houvesse dez, entre mil pessoas, que tenham retido e fixado na mente tantas lembranças significativas para alguém, como nesta cabeça. Havia, enfim, uma convergência entre o meu eu e o personagem daquela história, misturei-me várias vezes nela e, aquela frase... “O amor desvenda o simples”, daquela primeira página, remexia-me o cérebro sem que eu soubesse bem a razão daquela mistura do real com o irreal, e foi à vida inteira assim marcada como segundos do relógio. Não estaria vivo de fato; ou estaria morto dentro, de quem sabe, uma vida sem sentido, se assim não fosse. Até mesmo o silencioso caminhar das nuvens no céu, não me era audível, como o era em meu mundo de fantasia, agora. Estar vivo, portanto, era um bom motivo para refletir: “A fantasia me salvou da morte”. O amor desvenda o simples. Eu sabia sim que lera em um livro achado, aquela frase, sobre aquele desvendar que me enchia de mistério, curiosidade, eu não tinha certeza, mas, era o simples do amor. O amor - pressupõe-se -, seja a íntegra da felicidade, como no jogo do contente, da menina Pollyana – do livro de Heleonor H. Porther –, era o jogo da aceitação, sua forma de amor. Quando encontrei aquele livro, à procura de algum resto que fosse para me alimentar a alma, ele e sua frase inicial, me foram o perfeito alimento. Não tinha título o livro que achei; na época, não pude identificar. Achei o exemplar jogado em uma lata de lixo à beira de uma calçada de uma rua qualquer da cidade. Eu não tinha um amigo de verdade, e procurava quem me pudesse escutar. Pegava-me, às vezes, a conversar com pequenos insetos, e quando estes
3 se aquietavam, eu os cutucava com algum graveto, para que eu tivesse certeza de que ainda viviam. Eu vivia um tempo em que pensava que até meus amigos imaginários, cuspiam em mim, e aquele livro caiu-me como se fosse um chapéu para me proteger do sol e mais que um amigo físico, havia ali dentro tantos quantos alimentos eu podia me valer. – Com a ilusão, também se mata a fome! Muitos mundos haveria de ter para viver, para discordar ou, concordar, assombrar, emocionar e até me fazer sorrir em gargalhadas deliciosas. Eu acreditava, sem saber com certeza de nada, seria a esperança... Descobri, enfim, que gostava de livros. Não sabia como gostava, sentia-me como com sede, quando se apanha o copo e se bebe a água, autômato. Sabia que era atraído por eles, tanto que por isso, em busca deles, passava horas fitando a vitrine da livraria com o olhar fixo naqueles exemplares trancafiados do outro lado do vidro, cheios de mistérios. Imaginava-me assim, como se estivesse de olhos vendados, ao vê-los naqueles lugares tão elitizados, onde para mim não havia portas de entrada; onde as portas eram trancafiadas pelos homens de bem e minhas mãos sujas eram meus proibitivos. Que me diziam: – Menino tira as mãos dos vidros! - diziam os donos das lojas; reprimenda que me isolava atrás de meus olhos pequenos; temerosos e que inocentemente, eram retraídos em me não atirar e arrancar deste estado profundo do medo, a resiliência. Depois de ser admoestado verbalmente pelo dono da loja, me perguntava: por que será que escrevem, e eu mesmo respondia, “devem ser para viver, é por isso que devem sobreviver, para escrever...” naquele dia, reparei minhas unhas por cortar e entranhadas de sujeiras e de terra vermelha... Eles tinham razão, eu precisava higienizar-me, era preciso fazer.
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