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Título: O amor desvenda o simples.<br />

Autor: José dos Reis Santos.<br />

O amor desvenda o simples.<br />

1<br />

O simples que precisa tornar-se vivo constantemente; é um refazer-se da<br />

complexidade do mundo para aparecer-se em flor, é o amor que se mostra ao<br />

desvendar-se. Porque o que há na beleza estampada de qualquer ser é a<br />

simplicidade. O simples é que faz toda beleza ser a compreensão de todos os<br />

olhos e, ao fitar a longínqua distância daquele horizonte, foi como se jamais eu<br />

tivesse estado ali. Aquele horizonte, não era mais o mesmo que brincava comigo<br />

tecendo meus sonhos de menino...<br />

Meus olhos eram outros. Assim como eu, aquele horizonte havia<br />

envelhecido e/ou renovado – eu o via de novo, e nele não havia as minhas rugas –,<br />

agora tomado pela mão deste simples que desvenda o amor, tinha, como eu,<br />

novas cores, novos tons e profundidade; havia uma certeza de existência<br />

permanente e renovada, o tempo assim renovara toda a beleza. Era o amor<br />

desvendado, não havia mais lágrimas nos olhos deste menino a enublar tanta<br />

beleza simples.<br />

Estava eu, o menino Henrique, de volta àquela frase magnífica. “O amor<br />

desvenda o simples”, agora, tudo era tão visual. Tão nítido... Como o tempo se<br />

esvai... Eu pensava nisso e voltava atrás, como se recusasse que fossem apenas<br />

lembranças.<br />

Olhava para o futuro que se fizera presente, como se este futuro presente<br />

adviesse daquele horizonte em que me extasiava e que naquele tempo atrás<br />

esteve escondido depois daquelas nuvens que pareciam beijar o chão que<br />

divisava o céu, e, que eu fitava incólume, como se este retratasse algo escrito e<br />

lido em minha infância.


2<br />

Agora tudo saltava de seu tempo, retornado de certo ventre do nada.<br />

Havia, para mim, um ventre grávido que o gerou e que ainda o gerava e aos<br />

poucos também me desvendava. Meditava assim este homem passarinho,<br />

divagando, como um menino nas suas próprias sombras, refletindo absorto,<br />

como se caminhasse em seus próprios pensamentos.<br />

Assim, era-me agora, a realidade. As palavras lidas naquele primeiro livro<br />

ficaram cravadas em mim, na minha memória. Talvez não houvesse dez, entre<br />

mil pessoas, que tenham retido e fixado na mente tantas lembranças<br />

significativas para alguém, como nesta cabeça.<br />

Havia, enfim, uma convergência entre o meu eu e o personagem daquela<br />

história, misturei-me várias vezes nela e, aquela frase... “O amor desvenda o<br />

simples”, daquela primeira página, remexia-me o cérebro sem que eu soubesse<br />

bem a razão daquela mistura do real com o irreal, e foi à vida inteira assim<br />

marcada como segundos do relógio. Não estaria vivo de fato; ou estaria morto<br />

dentro, de quem sabe, uma vida sem sentido, se assim não fosse.<br />

Até mesmo o silencioso caminhar das nuvens no céu, não me era audível,<br />

como o era em meu mundo de fantasia, agora. Estar vivo, portanto, era um bom<br />

motivo para refletir: “A fantasia me salvou da morte”. O amor desvenda o<br />

simples.<br />

Eu sabia sim que lera em um livro achado, aquela frase, sobre aquele<br />

desvendar que me enchia de mistério, curiosidade, eu não tinha certeza, mas, era<br />

o simples do amor. O amor - pressupõe-se -, seja a íntegra da felicidade, como no<br />

jogo do contente, da menina Pollyana – do livro de Heleonor H. Porther –, era o<br />

jogo da aceitação, sua forma de amor.<br />

Quando encontrei aquele livro, à procura de algum resto que fosse para me<br />

alimentar a alma, ele e sua frase inicial, me foram o perfeito alimento. Não tinha<br />

título o livro que achei; na época, não pude identificar. Achei o exemplar jogado<br />

em uma lata de lixo à beira de uma calçada de uma rua qualquer da cidade.<br />

Eu não tinha um amigo de verdade, e procurava quem me pudesse<br />

escutar. Pegava-me, às vezes, a conversar com pequenos insetos, e quando estes


3<br />

se aquietavam, eu os cutucava com algum graveto, para que eu tivesse<br />

certeza de que ainda viviam.<br />

Eu vivia um tempo em que pensava que até meus amigos imaginários,<br />

cuspiam em mim, e aquele livro caiu-me como se fosse um chapéu para me<br />

proteger do sol e mais que um amigo físico, havia ali dentro tantos quantos<br />

alimentos eu podia me valer.<br />

– Com a ilusão, também se mata a fome! Muitos mundos haveria de ter<br />

para viver, para discordar ou, concordar, assombrar, emocionar e até me fazer<br />

sorrir em gargalhadas deliciosas. Eu acreditava, sem saber com certeza de nada,<br />

seria a esperança...<br />

Descobri, enfim, que gostava de livros. Não sabia como gostava, sentia-me como<br />

com sede, quando se apanha o copo e se bebe a água, autômato. Sabia que era<br />

atraído por eles, tanto que por isso, em busca deles, passava horas fitando a<br />

vitrine da livraria com o olhar fixo naqueles exemplares trancafiados do outro<br />

lado do vidro, cheios de mistérios.<br />

Imaginava-me assim, como se estivesse de olhos vendados, ao vê-los naqueles<br />

lugares tão elitizados, onde para mim não havia portas de entrada; onde as<br />

portas eram trancafiadas pelos homens de bem e minhas mãos sujas eram meus<br />

proibitivos. Que me diziam:<br />

– Menino tira as mãos dos vidros! - diziam os donos das lojas; reprimenda que<br />

me isolava atrás de meus olhos pequenos; temerosos e que inocentemente, eram<br />

retraídos em me não atirar e arrancar deste estado profundo do medo, a<br />

resiliência. Depois de ser admoestado verbalmente pelo dono da loja, me<br />

perguntava: por que será que escrevem, e eu mesmo respondia, “devem ser para<br />

viver, é por isso que devem sobreviver, para escrever...” naquele dia, reparei<br />

minhas unhas por cortar e entranhadas de sujeiras e de terra vermelha... Eles<br />

tinham razão, eu precisava higienizar-me, era preciso fazer.


4<br />

- Aqueles livros são tão lindos e limpos... Comentei no meu íntimo. Na<br />

biblioteca da cidade eu também não podia entrar. A limpeza era perfeita a<br />

organização impecável. Devia ser por isso que me enxotam – pensava.<br />

– O que quer aqui? Vai andando, vai, vai! – alguém me dizia, como se<br />

espantasse uma mosca varejeira.<br />

Em um desses dias saí caminhando a esmo para os arredores da cidade,<br />

não pensava em nada mais que ir ao córrego me divertir nas águas, me banhar.<br />

Aquilo me era uma fuga de meu cotidiano infeliz. Ao passar por uma das<br />

moradias humildes que antecedia o caminho ao córrego, em um tanque de lavar<br />

roupas encontrei uma pedra de sabão já usada, eu a apanhei, sem imaginar que<br />

fosse um roubo, e segui para o córrego, lá, pude esfregar-me com ela e lavar<br />

minhas vestes. Ao voltar à cidade, agora limpo e me sentindo mais leve,<br />

imaginava que as pessoas me notassem. Não me notaram. Eu queria tanto ser<br />

notado, queria fazer parte daquele mesmo mundo de pessoas que podiam tocar<br />

nos livros. – O que mais estaria fechado para mim... Creio ter imaginado<br />

involuntariamente -, o que mais!<br />

- Vó! Vó! É aquele ali! Eu vi quando pegou, é aquele! Disse aos gritos um<br />

gordinho com cara de bonachão.<br />

A senhora vestida com uma roupa surrada, com dentes faltando na boca e<br />

com cabelos emaranhados, veio ao meu encontro e foi logo inquirindo:<br />

-Então foi você seu ladrãozinho vagabundo, ande, me dê, quero o meu<br />

sabão, meu neto te viu roubando o meu sabão! Sem nada que justificasse, eu<br />

disse:<br />

- Eu não sabia que era da senhora, juro! Vou lhe trazer outro, eu prometo<br />

pra senhora, só peguei para me lavar, mas esqueci no córrego, eu não sou ladrão<br />

não! – disse, tentando justificar aquele injustificável. E com medo já fui saindo<br />

devagar e depois disparando rua abaixo, após correr até ficar sem fôlego parei e<br />

me escondi. Pus-me a chorar, como se algo corroesse meu interior honesto, eu<br />

sabia, mas... quem mais sabia? Depois senti o sol bater forte em meu rosto, sem<br />

querer comecei a rir e rir sem parar, não sabia por que estava rindo, mas ria e<br />

ria até que comecei a chorar novamente. Assim meu brio me fez pensar, como se<br />

me espremesse contra um muro


5<br />

de pregos e acabei balbuciando que iria trabalhar para comprar uma<br />

pedra de sabão para aquela senhora.<br />

Desci displicente rua abaixo, eu estava limpo, me sentia leve com meu<br />

corpo banhado e limpo, deparado mais uma vez com aquela vitrine separada por<br />

aquela porta de vidro, ali fiquei a olhar aqueles livros bonitos. Muitos sonhos, ali<br />

detrás daquelas capas coloridas daqueles livros, com aqueles escritos pretos ou<br />

em ouro industrial, segredavam-se. Eram as capas as minhas portas? Estariam<br />

aqueles sonhos meus, impregnados de tinta, papel e novos mundos, eram<br />

igualmente, na literalidade do transcrito discorrido das alusões dos autores? O<br />

que precisava tanto ser despertado em mim, e o que me despertaria! O que ali<br />

dentro continha a me chamar, como o cheiro de comida me chamava a fome... O<br />

eu menino daquele tempo, acreditava, voluntariamente, em alguma coisa similar<br />

a isto, neste despertar da fome.<br />

Crer que dentro de mim mesmo, no fundo de meu íntimo tinha um<br />

encantamento guardado – era-me algo de livro, de romance, de aventura, de<br />

sonho e de menino. Hoje eu sabia. Naqueles tempos, não tinha nenhuma<br />

consciência a respeito de minha sabedoria inerente. Tudo realmente havia ficado<br />

marcado como sonhos de crianças.<br />

Havia dias em que eu ficava mais fascinado pela literatura que em outros.<br />

Nesses momentos, eu sentia-me importante, era como se a sabedoria me aguçasse<br />

sem que eu soubesse, claramente, delas. Como se de dentro daqueles livros, cujas<br />

capas eu observava quase que diariamente, saíssem aos poucos, seus<br />

desvendamentos e adentrassem em mim, através de meus olhos ávidos.<br />

Naquele bom dia, enquanto caminhava, vinha-me à cabeça este fascínio<br />

que me aguçou a olhar para aquela lata de lixo. O atrativo, sem que eu soubesse,<br />

poderia bem ser uma luz subliminar da sabedoria. Imaginei faíscas, ou teria visto<br />

mesmo que aqueles luzires, como se os raios do sol estivessem tocando em cacos<br />

de vidros - e talvez até os tocassem -, fossem essa magia de minha imaginação,<br />

apertei meus olhos para desanuviá-los. Mas o brilho de astros, ou de outra<br />

forma artificial, me puxava.


6<br />

Depois que olhei atentamente, como se tivesse meio hipnotizado por<br />

aquela luz que me faiscava os olhos, que talvez fosse à luz da sabedoria, me fiz<br />

caminhar até a lata, apanhei com uma das mãos aquele amontoado de páginas<br />

meio amassadas, meio sujas, sem capa, sem foto de autor, e ainda, sobre o nome<br />

havia um risco forte de<br />

barro vermelho encalacrado no papel – as faíscas sumiram, repentinamente, de<br />

meus olhos, como se aquilo fosse para que eu mudasse de foco e atentasse para o<br />

livro ali jogado – não pude ler o nome da história ou quem a havia escrito.<br />

Agora o exemplar apoiado sobre as minhas duas mãos, parecia-se uma<br />

criança acalentada, cuja cria que o segurava, já não mais sabia o quanto ainda<br />

carecia de um colo de mãe.<br />

Após tentar limpar a sujeira com um pedaço de folha de caderno, ali<br />

também encontrado, acabei por sujar mais ainda o livro, esparramando, com<br />

isso, a sujeira sobre a folha de papel.<br />

Apesar disso, conseguiu mesmo assim, ler o primeiro nome: José. José<br />

então havia escrito o livro que o destino me havia presenteado.<br />

- Mas, José se tem tantos... – pensei excitado - talvez pelo fato de que o<br />

pertence tenha me sido disponibilizado, assim meio que abruptamente... José de<br />

quê, de onde? A princípio não importava, e isto havia ficado esclarecido para<br />

mim.<br />

Aquele autor não haveria de morrer com sua obra enterrada em algum<br />

monturo de detritos qualquer. Imaginei que aquele exemplar pudesse ser o<br />

único. E se fosse o único? Eu estaria tendo a oportunidade de salvar uma vida,<br />

sim uma vida literária. Uma vida que passaria, de ora em diante, levar a minha,<br />

fazer parte da minha, completar a minha.<br />

Contudo, o livro estava ainda muito sujo, umedecido, talvez fosse pela<br />

chuva ou água da torneira quando lavaram a casa. Mas, eu recuperaria! Sim, o<br />

leria! Eu estava determinado salvá-lo.<br />

Assim, quando o abri ali mesmo na frente daquela lata de lixo, deparei<br />

logo no primeiro parágrafo, com aquela frase que me acompanhou pela vida<br />

toda: “O amor desvenda o simples”.


7<br />

O amor... Qual seria este amor - pus-me a pensar longamente - que<br />

simples poderia ser, quais seriam as referências do livro... Eu não compreendia<br />

bem, mas o amor que pressentia sentir, mesmo sem saber, me guiava na leitura, e<br />

certamente por conta daquela frase: “O amor desvenda o simples”, fui<br />

conduzido na viagem da história ali contada.<br />

Fui descobrindo, com ele, a simplicidade das grandiosidades e o porquê<br />

da beleza ser simples, entendi justamente que era no conhecimento que tudo<br />

residia: quanto mais se sabia, mais se desvendava o complexo mundo da<br />

simplicidade, tornando-o visual, tocável, possível. Pensei no sol e como luzia,<br />

como nos fazia parecer o sol, tão simples, tão simples... - repeti - Mas o simples<br />

do sol era de uma profundidade imensa... E daí a complexidade do simples. Eu<br />

não tinha consciência, mas estava ali me dando conta de quão magnífico é a<br />

sabedoria.<br />

Era em seu profundo que eu sentia, ou que me fazia sentir, o simples<br />

aflorando para mim, como uma flor desabrocha naturalmente, sem saber direito<br />

a definição, era o simples do puro, um algo de alma que me sensibilizava, que me<br />

direcionava em busca de páginas, capas, sonhos, cores e mundos inatingíveis por<br />

minha condição social. Estaria algum anjo aposto, para atender as crianças, que<br />

poderia se tornar leitor e autor, e que por alguma razão me escolhera naquele<br />

dia, como uma chance dada por algum anjo assim... Não sabia!<br />

O que era condição social se tudo de mim estava dentro de mim, eu sabia de<br />

minhas percepções, embora eu não as identificasse de forma, pragmáticas. Mas,<br />

o destino me quisera, afinal, presentear; dar-me algo de seu para se exibir a mim<br />

e assim massagear meu ego machucado. Para mim, aquilo era uma mutação<br />

grandiosa, transformava-me em um galante cavalheiro, refugiado nas<br />

entrelinhas de minha vida real. Eu sentia de alguma forma que precisava viver<br />

um sonho bonito, emocionante, curioso. Sentia-me uma pessoa que agora podia<br />

definir coisas, então pensei que pelo fato do livro não ter nome, eu o poderia<br />

chamá-lo de “uma história sem nome”. O autor, fosse qual José fosse, não


8<br />

haveria de se importar, contanto que eu o lesse, afinal, os livros são para serem<br />

lidos.<br />

Eu estava me sentindo grandioso, e havia definido: O que eu queria era<br />

saber e viver o simples da sabedoria, mesmo que não compreendesse tudo das<br />

explicações dadas. Mesmo que por hora, nada daquele desvendar, que eu não<br />

tinha certeza, que não sabia ou, que pensava conseguir imaginar, eu pudesse<br />

saber, eu queria muito.<br />

O livro me afirmava, no contexto, que o amor desvendaria o simples,<br />

havia de sabê-lo o autor, eu havia decidido confiar nele apostar naquela<br />

incógnita, viajar por aqueles astrais, porque ao sentirmos amor por algo ou<br />

alguma coisa, todo o simples, até mesmo os dos mais complexos, apareceria como<br />

em um passe de mágica. Eu precisava muito crer, e queria acreditar. Embora eu<br />

possa confessar: Eu não sabia de nada. O que o autor teria dentro de si, talvez<br />

até para si mesmo, dentro de sua própria compreensão racional, poderia não ser<br />

fácil compreender, mas, parecia para mim que havia ali uma magia, cujo sonho<br />

também me animava o espírito, eram aqueles sonhos, das cores e dos mundos<br />

inatingíveis, passados às imagens e ao personagem, que por sua condição social<br />

parecia-se comigo, e, agora postos em minhas mãos, como comparativos, como<br />

amostras de que o mundo era assim mesmo, com aqueles altos e baixos nos<br />

decorreres dos dias.<br />

Comecei a sentir uma imensidão de muitos simples esparramados dentro<br />

de mim. Surgia em meu coração um afã de aventura de Lord Jim, mas<br />

diferentemente, não me atreveria aos desertos e outros países desconhecidos nem<br />

tampouco queria me atirar em águas e terras desconhecidas, como o português<br />

Vasco da Gama.<br />

Minha aventura não haveria de ser literalmente, mas, literariamente.<br />

Queria me aventurar dentro de mim mesmo e tomado agora da propulsão do<br />

achado, navegaria naquele mar de escrita por meu capitão, o autor. Ou como um<br />

Dom Quixote de La Mancha, lutaria contra todos os moinhos de vento se de<br />

verdade, eu tivesse que enfrentá-los. Naquele navio repleto de sonhos e mistérios<br />

a ser desvendado, haveria sim de locupletar-me.<br />

O autor dizia que o amor desvendaria o simples porque ao sentirmos<br />

amor por algo ou alguma coisa - explicava - todo o simples, até mesmo os dos<br />

mais complexos apareceria como em um passe de mágica, e, eu teria que


9<br />

descobri-lo. Um simples riso de uma criança ou uma lágrima displicente era<br />

o desvendar. Uma gota de chuva caída dos céus, à complexidade daquilo que as<br />

pessoas não entendiam nas crianças, também era um descobrir e um desvendar<br />

de alguma magnífica e coisa de pureza e simplecidade.<br />

O descobrir era algo mágico. Ao amar as pequenas criaturas, como<br />

pensava o autor, me fazia pensar que amá-las estivesse me introduzindo,<br />

também, naquele mundo do mais lindo simples desejo de ser amado, e que essa<br />

minha espontaneidade, essa minha plenitude de vida, embora até então<br />

escondida, fosse às próprias características do amor. Aquele descobrir de<br />

sentimentos em amá-las, me levaria fatalmente, àquela delícia do seu mais lindo<br />

simples, de sua espontaneidade, de sua plenitude de vida, que ninguém jamais<br />

ousara descobrir em mim, e que meus “porquês” indeferiam em relação aos<br />

outros. E desta mesma forma, ainda meio alheado, eu pensava: Eu quero<br />

desvendar-me, eu quero desvendá-lo, talvez tivesse medo do meu ser criança,<br />

mas não devia tê-lo para os outros.<br />

Da minha introspecção, quando parecida com o personagem de Magnólia,<br />

às voltas com Tomé, quando os seus besouros revoavam seu espírito. (Do Livro<br />

Magnólia de Márcia Tiburi - Ed. Bertrand Brasil). Minha noção criança era<br />

menor que minha própria infância. Estas imaginações tão inerentes ao meu eu<br />

menino eram também as do personagem, e não eram contrassensuais, embora<br />

pensasse que nunca as tivera tido. Mas, havia algo pesado no meu sentimento<br />

que, de certo modo, não queria ser Henrique, o eu Henrique era tão sofrível e<br />

desprezível para mim, Henrique parecia-me um ego desvairado que eu queria<br />

matar, sem matá-lo, sem lembrá-lo, no fundo eu não queria ser eu...<br />

Lembrava-me, de vez em quando e vagamente, de algumas atitudes<br />

místicas de meu pai: pessoas lhe atribuíam curas e profecias. Ele predizia algo<br />

que aconteceria com estas pessoas ou com seus parentes e estes o procuravam,<br />

mas não teve sequer uma previsão em relação à sua vida ou à própria morte. Eu<br />

não entendia isso, pensava que se fato fosse possível, ele teria feito algo para<br />

nunca me deixar.<br />

A morte é sempre uma surpresa concreta na vida. Chegou para meus<br />

olhos, vestida de preto, com aquela capa negra, com aquela foice implacável,<br />

retiradas de algum conto que ouvi contar, enquanto ouvia escondido atrás de<br />

alguma moita nas minhas peraltices. A morte viera para meu velho pai logo após<br />

eu ter completado meus cinco anos, ele sucumbiu obediente, teve que a


10<br />

acompanhar sem reclamar nada, e lá se foi, obediente. Era incrível como eu<br />

me lembrava. Só me faltava tê-la visto às suas costas com seu alfanje.<br />

A morte de meu pai foi muito marcante, eu imaginava que meu pai fosse<br />

uma espécie de santo, que jamais morreria. Lembro-me nitidamente de sua mão<br />

forte apertando meu braço até começar a chorar e alguém me retirar dali.<br />

Reparei, ainda antes de sair do quarto, enquanto ele se estrebuchava com a dor<br />

da partida, que chorava; olhando-me, como se quisesse dizer algo para mim.<br />

Fiquei com medo. Aquilo ficou misturado na história do conto que ele contava<br />

em certos dias, papeando com seu Araldo. E então, lembrei-me de uma vez<br />

quando me surrou com uma vara de marmelo, por conta de algo que fiz e que<br />

nunca me lembrei de ter feito ou da verdadeira razão por que devia ter<br />

apanhado.<br />

Naquele dia eu desejei não tê-lo, desejei que tivesse morrido. Meu pai tinha um<br />

pátrio poder absoluto. Eu devia saber sempre por que estava apanhando, porque<br />

ele certamente, saberia por que estava me surrando. Mas, agora já não<br />

importava mais. Mais tarde, entretanto, entendi que, mesmo assim, preferia<br />

viver sem saber de suas razões por me surrar, que perdê-lo definitivamente.<br />

No dia do falecimento de meu pai, algumas pessoas choravam, outras<br />

conversavam e ainda outras cuidavam das crianças, dentre as quais, aquele<br />

menino franzino que fugia de quando em quando para ir espiar o movimento<br />

daquele povo estranho que enchia o lugar ao redor do seu cadáver, eu senti<br />

medo, mas algo me puxava para ficar espiando, não devia ter ido tão próximo<br />

dele – ai voltei a lembrar de repente daquele momento inesquecível -, foi como<br />

uma chaga incurável. Ficou-me as marcas para sempre, não no punho, mas na<br />

alma. Ao sondar de longe o cortejo fúnebre e definitivo dele, senti escorregar<br />

uma lágrima vulgar e fria em minhas faces, talvez descobrisse que aquele<br />

momento era-me o derradeiro, definitivo, nunca mais iria vê-lo. Talvez o vulgar<br />

daquela gota translúcida e salgada, fosse pela involuntária displicência do que<br />

sentia sem compreender.<br />

Ainda com meu livro à mão, sentei-me entre o meio fio, um tronco de<br />

árvore, a lata de lixo e a rua à minha frente. A história fluía diante de meus olhos<br />

- porta para a minha mente ávida -, e nela eu mergulhava no seu mundo.


11<br />

Eram palavras duras ali contidas, algumas muito difíceis de serem<br />

entendidas por mim, outras fáceis de serem lidas, e outras ainda impossíveis para<br />

minha compreensão, naquele momento, eu não podia ainda saber. Não tinha<br />

muitas experiências com elas - não naquela época -, nem dicionário à mão para<br />

traduzi-las e entender claramente seus sentidos; tudo era desafiante. Mas persisti<br />

bravamente e a história foi-me conduzindo, primeiro às curiosidades, depois às<br />

viagens...<br />

O personagem descrito no livro era muito pobre, vivia flébil em todos os<br />

sentidos, sendo assim, as semelhanças iam se somando: Em seu ar cansado, a<br />

angústia intrínseca que lhe corroia - ele não via em seu espelho por lhe ser<br />

ininteligível, mas isso lhe transgredia as faces. Tinha uma dor avassaladora que<br />

lhe remexia como alguma coisa viva e que lhe queimava as entranhas. Este algo<br />

incompreensível haveria, ainda, de lhe dar a determinante coragem da morte.<br />

Aquela capa negra, aquela foice curva, repentinamente, tudo me saltou à<br />

memória. Ao ouvi-lo dizer,<br />

naquelas linhas, para si mesmo, que já estava cansado de tanto sofrer, me<br />

entristeceu muito. A similaridade que havia entre nós trancou-me o fôlego, como<br />

se a forte mão da desgraça dele - que agora o queria tanto -, quisesse me sufocar<br />

até a morte. Eu sentia - pela leitura -, aquilo esmagando minha garganta com sua<br />

mão de aço do mascara de ferro, entranhado em sua armadura, sem que eu<br />

pudesse ver a cor de seus olhos, e eu como ele, prisioneiro dele, nada me restava<br />

então se não a morte. Dei um leve grito e finalmente respirei, e proclamei: isso<br />

não irá acontecer, eu não sou louco ou um bandido!<br />

Olhei para os lados, a busca de algum observado, e como tive prazer de<br />

me sentir sozinho ao tronco da árvore, sentado naquela calçada. Enxuguei minha<br />

lágrima solitária que caiu bobamente de meu olho esquerdo e depois de estar<br />

refeito, voltei-me à leitura:<br />

O seu estado de espírito exagerado o levava a ter sentimentos contrários<br />

aos que devia sentir – era o que eu pensava e questionava. Deveria ser um<br />

menino feliz - crianças devem ser felizes para atenuar as cargas de infortúnios<br />

dos adultos. Imaginei ou lembrei-me de ter ouvido, certa feita, alguém dizer<br />

isso... Não sei se houvera dito seu Araldo para meu pai, ou se outra pesoa.


12<br />

No entanto, não me sentia bem ao ver a descrição daquele<br />

personagem. Percebi que, também eu, jamais havia me sentido feliz. Talvez, de<br />

verdade, eu jamais tivesse tido noção clara de algum estado de felicidade, era-me<br />

qualquer coisa de brincar com pipas que jamais tive; rodar piões, cujo riso de<br />

delícia somente compartilhava de longe ao ver outros meninos em pleno gozo da<br />

alegria, que certamente seria a tradução de algum desvendar de simples... Eu<br />

queria tanto saber de regozijos, mas, talvez o que sentisse fosse o mesmo que<br />

comer um pão com manteiga. Ah, um pão com manteiga! Lembrei-me - como me<br />

saciava a fome... Para mim era tão pouco, tão breve, tão pequeno, tão barato a<br />

felicidade, que não entendia como não tê-la. Será que aquele sentimento tão<br />

negativo, que nós, eu e José André sentíamos, não seria o reflexo dos sentimentos<br />

que víamos em adultos?<br />

Ouvíamos dizer: – A vida é barra pesada. - Que vida insuportável. - Que<br />

droga de vida! Estes jargões soavam tantas vezes em minha cabeça, e<br />

certamente na dele, que as frases, seguramente, haviam se tornado sangue,<br />

entrado em nossas circulações e nos transformados. Será que é isso que ressoa<br />

dentro dele e em mim - indaguei no silêncio.<br />

Comecei a associar os fatos de que muitos garotos da escola também haveriam de<br />

ter as mesmas similaridades que eu estava sentindo. Que tanto eles como José<br />

André e eu nunca havíamos tido grandes coisas, mas que não sentíamos aquela<br />

vontade tão sem bons propósitos. Fui remetido neste momento, às palavras da<br />

professora, quando perguntada, por que eu teria que fazer o que o outro não<br />

fazia, e ela me respondera: - “As pessoas, Henrique, são diferentes umas das<br />

outras”. Embora o personagem, ao menos até então, não portasse conduta<br />

marginal, o sentimento que mantinha em seu pobre coração era de desesperança,<br />

amargor, tristeza e desânimo.<br />

Apesar de sua pouca idade aquele personagem não era mais tão criança,<br />

bem podia saber das coisas. Os mais velhos sempre lhe aconselhavam a<br />

abandonar a revolta, mas ele fomentava sua ira, estava desiludido. Algo<br />

misterioso ou diabólico o conduzia a ser persuadido a insistir. Imaginava que seu<br />

sofrer era demasiado múltiplo. Como se tudo de doído lhe doesse em dobro.<br />

Havia em si uma ambição desproporcional, afinal estávamos no Brasil e as<br />

desigualdades eram marcantes e, para a maioria das pessoas, terem o que comer<br />

já era milagre, chegar ao final do primeiro grau era uma vitória inimaginável.<br />

Ele pensava fielmente, que se possuíssem coisas que tantos outros tinham, seria


13<br />

mais feliz, apesar de não ter mesmo, nem ao menos um livro ou, por<br />

exemplo, um amigo de verdade, um par de sapatos usável, um relógio de pulso -<br />

tão na moda naquela época. Talvez não soubesse o quão seja efêmera e<br />

inconsistente a felicidade da matéria... Assim acabava por ponderar o autor.<br />

Haveria, certamente, de ter ouvido muitos casos de morte, de suicídio, de<br />

assassinato. Ouvira coisas do Japão, de Jerusalém, do Afeganistão, ouvira que<br />

jovens davam cabo à própria vida sem motivo aparente, que isso era bem comum<br />

e que em outros países do oriente, jovens se davam em suicídio em prol a causas<br />

seculares, sem mesmo compreenderem nada dos fatos. Diziam que usavam até<br />

suas crenças para induzi-los ao mártir. De fato, ele parecia atrair todo o tipo de<br />

informação que completava os seus sentimentos indevidos. Fiquei pensando,<br />

enquanto descansava a vista das pequenas letras, e olhava para o horizonte:<br />

Muitos daqueles garotos deviam se sentir uma espécie de Jesus Cristo e, por isso,<br />

se matavam em prol de tais causas. Essas justificativas pareceram-me<br />

verdadeiras.<br />

Aquele rapaz personagem, confundido comigo e com a minha realidade,<br />

me trazia certos parâmetros de discernimento, que jamais imaginaria possuir.<br />

Seu sentimento pífio, de “desvalorizar-se a si mesmo” o fazia mesmo muito<br />

pobre. Na<br />

minha leitura, ele repetia para si mesmo: Viver como um pobre... Ser pobre, não<br />

me parece ser digno de ter vida alguma. - Ser pobre fede. Ser pobre é dor, ser<br />

pobre é ser humilhado, é não ter estudos, é nem poder entrar nas igrejas...<br />

Ouviam-se na época, vanglorias dos que conseguiam terminar o primário, seus<br />

pais se sentiam ricos, ou ao menos poderosos, seus filhos rebitavam seus narizes<br />

como se fossem filhos de barões, quando tudo não passava de terem recebido um<br />

diploma de primário, era um júbilo, era proeza.<br />

Contudo, havia, de verdade, similaridade entre nós, mas também havia<br />

divergências e discrepâncias. De tudo aquilo que nos era comum, me embasava<br />

em contrapartida, numa postura, absolutamente contrária, moldando meu<br />

caráter para uma firmeza de espírito que viria a me dar longevidade e<br />

perseverança por toda a minha vida, apesar dos contratempos de minha infância<br />

e da juventude bem conturbada que eu vivia.


14<br />

Em meus primeiros anos de vida, principalmente depois que meu<br />

pai falecera, apesar da pouca idade, eu vivia solto, era livre como um passarinho<br />

e, por isso, perambulava pelas ruas da pequena cidade em que eu morava. Para<br />

manter-me em algumas “rédeas curtas”, logo de madrugadinha, minha mãe<br />

obrigava-me a levantar e me arrumar para ir para o trabalho na roça de<br />

algodão. Era um labor duro, pesado, sofrido. Isso é claro, quando eu não<br />

conseguia fugir no momento em que o caminhão de pau-de-arara começava a se<br />

arrastar pelas ruas de paralelepípedos, rumando para a zona rural. Neste<br />

momento, eu saltava, correndo como um cão com medo, com o velho caminhão<br />

já em movimento, e mesmo antes de a mãe me notar, já lá longe, ia eu fugindo.<br />

Aos avisos dos outros bóias-frias, ela se levantava, ficando de pé, segurando na<br />

grade da carroceria do caminhão, me gritava aos berros prometendo-me uma<br />

boa surra quando voltasse do trabalho. Eu resmungava alguma coisa e saía<br />

dando pinotes como se fosse um cabrito.<br />

– Você vai ver seu capeta, eu te pego – vociferava minha mãe, com fogo<br />

nos olhos, por entender que eu tinha obrigação de obedecer a ela. Para ela, eu já<br />

era bem grandinho, afinal de contas, estar na roça de algodão ajudando um<br />

pouco que fosse seria melhor que perambular pelas ruas - sabe-se lá fazendo o<br />

quê. - Concluía sempre assim, suas justificativas. Depois que fugia do caminhão,<br />

eu sabia que de nada adiantava voltar para casa, lá certamente, nada arranjaria<br />

para comer. Caminhava para casa de umas pessoas pobres que conhecia e às<br />

vezes dava sorte, recebendo algum<br />

alimento, na maioria das vezes, entretanto, não encontrava ninguém em casa,<br />

pois estes também, iam para a roça. Dizia meu pai, que quando não se tem o que<br />

fazer: procura-se. E eu procurava; meio que a esmo, é verdade.<br />

A cidade, não era grande, uma rua comprida e alguns arrabaldes<br />

iniciados naquela rua central e que poucas quadras depois já se findavam. Então<br />

procurava algum desocupado como eu e íamos aos furtos de frutas nos sítios<br />

circunvizinhos da cidade ou, às vezes caminhava sozinho pelos cerrados e<br />

campos à procura de Gabirobas, Pequi, Mamica-de-cadela e Marolos, – esta<br />

última uma espécie de fruta do conde gigante – que nasciam naturalmente nos<br />

campos arenosos das redondezas. Foi assim que a vida me trouxe até aqui.


15<br />

À noite eu ficava perambulando até não mais aguentar a fome e só ia<br />

para casa quando já despontava a madrugada; minha mãe ao me ouvir forçar a<br />

porta para entrar ou mexer nas panelas, à procura de algo para comer, se<br />

levantava já de posse de um cinto de couro cru e me pegava pelos braços, com<br />

aquelas suas mãos de algemas, e ali eu ficava preso, então ela me batia até seus<br />

braços não mais aguentarem. Talvez, só não me matasse, por estar quase<br />

morrendo de cansada da lida no algodão. Depois ela me fazia comer e se banhar<br />

para dormir.<br />

– Quero eu ver você não ir pra roça comigo, amanhã cedo, quero ver, eu<br />

te mato, seu moleque ordinário! Dizia separando as silabas à sua maneira: quero<br />

vê-r n-ão ir- co-mi-go...Assim, mal eu adormecia, já tinha que me pôr de pé,<br />

com as costas em chamas por causa das chibatadas de minha mãe. Ela sempre<br />

vinha olhar o estrago e ai, talvez, como fuga de consciência me botava no colo, de<br />

barriga para baixo, e sobre os ferimentos, passava um pano molhado com água<br />

morna e sal. Aos meus reclamos ela dizia:<br />

-É para sarar, é para sarar, não reclama não!<br />

No retorno do trabalho, quando a noite já caía, chegávamos de volta à<br />

nossa casa, “moídos de cansaço”, e por isso: uns poucos cruzeiros eram anotados<br />

na caderneta do empreiteiro, “o gato”, como era chamado por todos, que se<br />

somariam aos outros dias de serviços para se receber de pagamento no final da<br />

semana. Aqueles míseros valores mal davam para se comprar comida para a<br />

semana seguinte. Mas era tudo que conseguia ter com aquele trabalho miserável,<br />

era tudo que tínhamos.<br />

- Temos que dar graças a Deus, ainda por ter isso – dizia a mãe – tem<br />

gente que está pior! Ela sempre repetia.<br />

Nossas noites eram interrompidas ao meio. Três e meia da madrugada a<br />

mãe se levantava e acendia o fogão de lenha, cozinhava o que tinha, colocava<br />

dentro de um caldeirão de alumínio, envolvido com papéis para manter a caloria<br />

por mais tempo possível e o metia dentro de um embornal de pano grosso, para<br />

aguardar às nove e meia da manhã, quando era o momento de almoçar. Logo<br />

após o almoço, lá vinha o homem dos doces:


16<br />

- Gostosão, gostosão, quem vai querer, quem vai?! Eu ouvia e já ficava<br />

louco de vontade, assim, o grito do sujeito que vendia os doces, trazidos dentro<br />

de uma caixa de madeira para vender aos trabalhadores, entrava em minha<br />

cabeça orelha adentro e lá estava eu já solicitando à minha mãe que comprasse, e<br />

quando ela me negava eu ficava possesso e gritava até alguém me dar o tal do<br />

doce. Sempre que chegava a nossa casa o “chinelo cantava” no meu lombo, pela<br />

má-criação cometida no eito da roça. Em geral, comprávamos fiado e, no final da<br />

semana, no dia do pagamento, pagávamos a ele. Era a nossa sobremesa, a mãe,<br />

no entanto, não deixava a gente comprar sempre, e quando não tinha mais essa<br />

opção, pois era controlada por ela, eu ficava com aqueles olhos compridos à<br />

espera que alguém me desse um pedaço.<br />

Quando se perde a dimensão exata das coisas, uma mosca pode virar um<br />

lobisomem e um homem se torna pior que uma mosca. A vida é um mosaico de<br />

acontecimentos. Há momentos em que se riem outros que se imploram outros<br />

que se chora, e, outros ainda que o mundo se acabe sem jamais se acabar. Seu<br />

Minoro não me via como criança perdida. Conheci seu Minoro, quando fui<br />

roubar laranjas na sua chácara, próximo da cidade. Ele me pegou no flagra,<br />

tinha nas mãos uma velha espada de samurai. Neste dia meu mundo acabou sem<br />

acabar. Lá estava eu em cima da laranjeira:<br />

- O senhoro pode descero daí. Num tem vergonha, né? Fiquei sem<br />

palavras e com as faces pegando fogo. Quis sair correndo, mas ele saltou em<br />

minha frente, com aquela espada reluzente, e me disse:<br />

- Nooon, fique aí! Eu fiquei, tremia de medo, ele encostou sua espada no<br />

meu ombro e apoiou o peso de seu braço sobre o cabo, pressionando a face da<br />

lâmina, para<br />

que eu sentisse seu peso, me deixando arcado para um dos lados, devido à força<br />

que empregara na pressão. Com a outra mão sacou uma faca de aço inoxidável.<br />

- O senhoro senta aqui, né! - apontou o tronco da laranjeira em que eu<br />

havia estado trepado. Pegou uma laranja, calmamente, e fez um talho, ferindo<br />

somente a casca de fora, antes da pectina, depois outro em cruz ao primeiro.<br />

Esticou o braço e me deu a laranja.


17<br />

- É só o senhoro abrir o casca e pegar gomos. Aceitei ressabiado,<br />

temendo que depois ele me matasse. Enquanto abria a laranja ao meio e retirava<br />

devagar os gomos que me ordenou, já ia imaginando aquela espada entrando em<br />

minha cabeça, e me partindo ao meio, como se fosse uma melancia. Pensei em<br />

sair correndo, mas ao mesmo tempo, quase que nitidamente, a faca entraria em<br />

minhas costas, como naqueles filmes, onde o mocinho atirava a sua faca e o<br />

bandido caía com a lâmina enterrada nas costas do fugitivo. O pomar era<br />

imenso, havia várias frutas cítricas e outras.<br />

- Está boa, né? Fara para mim: o senhoro rouba por que, por que num<br />

trabaia? A pergunta feita de súbito me fez tremer. Eu o olhei atentamente por<br />

um instante, e desviei meu olhar para o chão de seu pequeno olho semicerrado,<br />

como se fosse meio fechado de propósito. Fiquei muito envergonhado e sem saber<br />

o que lhe dizer, lembrei de minha mãe dizendo que eu tinha que estar com ela na<br />

roça, quis resmungar-lhe algo como resposta, mas, ao não entender, ficou brabo.<br />

- Fara, fara, o senhoro num entrô aqui? Tornei a fitá-lo tentando medir<br />

sua ira, e também lhe dar uma resposta convincente, para me livrar de sua<br />

enorme espada, ainda em pulso na mão direita.<br />

- Eu queria ir ao futebol – lhe respondi – vai ter jogo no domingo e eu<br />

queria vender umas laranjas para os torcedores e assim ganhar algum dinheiro<br />

para comprar comida. (Na verdade eu queria mesmo era ir ao cinema, na seção<br />

da tarde, no Domingo, chamada de matinê).<br />

- Ah!...Comprar comida? – me respondeu com jeito espantado, surpreso<br />

pela humildade da resposta. Fez aquele seu som de hum..., característico dele, e<br />

propôs que eu colhesse as laranjas, quantas eu pudesse carregar. Ao ouvi-lo<br />

pensei o que teria dado no velho japonês.<br />

- Ande, suba no árvore, apanhe os frutas, que está esperando? Mediante<br />

seu comando saí dali e subi de volta na laranjeira, enchi um saco e fiquei calado<br />

em sua frente, esperando seu novo mandado.<br />

- Agora o senhoro vende os frutas e paga os frutas, e quando quiser<br />

vender mais, vem e compra mais, né? Assim não vai precisa roubar os fruta dos<br />

quintal. Fiquei alegre a ponto de achar que de repente seu Minoro se tornara<br />

meu amigo. Quis demonstrar minha força e, gemendo, coloquei o saco cheio de<br />

laranja nas costas e sai torto com aquele peso todo. Dois dias depois lá estava eu


18<br />

com todo o dinheiro da venda, então seu Minoro me perguntou como havia<br />

me saído e, eu lhe contei todos os detalhes com muito entusiasmo, seu Minoro me<br />

olhou de novo com aqueles seus olhinhos miúdos e disse-me que eu não lhe<br />

precisava pagar nada, que pagasse a partir da outra vez em que eu fosse buscar<br />

frutas para vender. Perguntou-me se eu queria levar naquele momento mais<br />

laranjas. Respondi que não, mas que depois eu lhe procurava e fui embora com a<br />

minha grana, todo feliz.<br />

Não há ninguém que não possa aguentar os revezes da vida, se for<br />

preparado para isso. Qualquer homem pode ser forte ou pode ser frágil. Todos<br />

os meninos deveriam ser preparados para a vida, para toda a diversidade que<br />

deverá encontrar. Devíamos construir uma nação forte, com seres humanos<br />

fortes. Seu Minoro tinha me dado uma lição apropriada embora eu não soubesse<br />

que aquilo fosse, naquele miomento, uma lição. Aprendi que comida nesta vida<br />

era tudo: comida é cabelo, são dentes, são ossos, é inteligência, é cérebro, é tudo<br />

mesmo, e quando um dia eu tiver que ensinar meu filho, eu lhe direi que comida<br />

é tudo para esta vida na terra.<br />

Quando deixei seu Minoro, por um tempo fiquei com aquela imagem dele<br />

em minha cabeça, e aquela sua bondade gratuita comigo, entendi que tudo é uma<br />

questão de gratidão, podemos achar ruins coisas boas, assim como podemos<br />

achar coisas boas ruins. A lição de seu Minoro havia me valido muito. Senti, sem<br />

ter uma percepção concreta, de que dentro da severidade está o amor, e que o<br />

amor tem suas formas de se transparecer.<br />

O personagem da história, cujo livro estava em minhas mãos, tinha o<br />

nome que eu sempre quis ter: José André, pois detestava meu nome.<br />

– Onde já se viu alguém se chamar assim: Henrique José! Por que não<br />

me chamaram de José André, eu queria tanto ter me chamado José André.<br />

Naquela história sem nome, José André amanhecia naqueles dias em que<br />

ultimamente se via triste. Mal saia de um desânimo entrava em outro, ele via, em<br />

sua cabeça, a miragem de uma catástrofe. Era tão infeliz quanto poderia ser<br />

alguém sem gratidão nenhuma pela vida - por vezes me frustrei pelo fato de seu<br />

nome ser o meu nome preferido. Certamente que ele poderia ser muito mais<br />

feliz, a vida é uma dádiva divina! Poderia se ater em pensar assim, em querer<br />

viver, e vencer, e fazer nascer em si qualquer força oculta, poderia aliar-se com<br />

sua força natural a algum poder místico que milagres fazem acontecer,


19<br />

principalmente quando se crê. Isto é que se chama ter fé. Mas aquele<br />

menino havia perdido as dimensões da fé, deveria ter tido um aprendizado que<br />

lhe tivesse dado o devido embasamento de que a vida é feita de revezes,<br />

percalços, sofrimentos, mas que valeria a pena viver. Ele se supunha o pior dos<br />

infelizes e por esta suposta infelicidade, quis dar um fim em sua vida. Vida esta,<br />

também, supostamente infeliz. Na maioria das vezes, supervalorizamos o<br />

sofrimento, por iludir-nos de que o sofrer não seja uma questão ilusória, assim,<br />

perdemos a dimensão exata do que seja suportável. Por isso, ele pensava em<br />

muitas formas de livrar-se da sua própria existência. Seu Minoro me disse que o<br />

sofrer é mais suportável que a perda do status. Naquele instante eu não entendi,<br />

mas hoje entendo. Para chegar à compreensão de quase tudo na vida, leva-se<br />

tempo, eu não sabia, eu não tinha como saber, mas José André poderia ter<br />

sabido.<br />

À procura de pretextos ou embasamento para suas ideias, ele lia de tudo,<br />

leu sobre Judas enforcado por sua vergonha. Pensou no mártir de Tiradentes.<br />

Aprendeu com a crucificação de Cristo, que na morte haveria de ter algum<br />

reconhecimento, talvez chocasse os políticos, talvez a sociedade fizesse um<br />

levante, quem sabe assim os pobres se revoltassem, será que alguém o tomaria<br />

como o mártir da melhora de vida das pessoas. Será que era assim que ele se<br />

prestaria par algo? Por outro lado, quantos foram enforcados, quantos foram<br />

esquartejados, quantos tiveram seus corpos esparramados em pedaços por vários<br />

lugares. Na história do mundo, nem todos esses viraram mártires, nem mesmo<br />

foram sempre representantes de alguma coisa. E ele também, provavelmente,<br />

seria apenas mais um que disporia sua vida para um martírio incógnito, cuja<br />

glória seria para si mesmo ou, talvez sim, talvez não. Como saberia, vivendo ou<br />

morrendo, será que estaria vivo em espírito ou a vida se resume neste tempo e<br />

espaço presente. Ele estava cheio de violência em si mesmo e contra ele próprio.<br />

Suas dúvidas se acumulavam como entulhos abandonados em terrenos baldios.<br />

Encontrou em sua procura, nos meandros da história mundial a sua razão<br />

torpe: os povos davam solução a tudo com a violência; as guerras santas e não<br />

santas, os mandatários do universo que determinavam à morte milhares de filhos<br />

de Deus. Os reis que mandavam matar, os escravocratas que mandavam matar,<br />

os líderes loucos que mandavam matar. Os profetas que mandavam matar em<br />

nome de Deus. Tudo lhe parecia perdido, completamente perdido; toda a


20<br />

esperança do mundo parecia-lhe, acabada. A sua conclusão o levaria,<br />

finalmente, ao máximo da fatalidade.<br />

Eu estava estarrecido naquela viagem. Imaginava-o vivo como a mim<br />

mesmo, e me punha a sentir o que lhe passava naquela mente perturbada. O que<br />

faria eu se fosse ele.<br />

Agora ele começava uma investigação minuciosa de como faria para<br />

morrer “dignamente”, como se tornaria um mártir, assim como aqueles seus<br />

ídolos do horror. Indagava aos colegas coisas a respeito, e até se sabiam como<br />

fazer para que morresse, acabou por virar chacota. Violência está em toda a<br />

parte, em todos os tempos, haveria de ter concluído, depois de vasculhar um<br />

pouco a história do mundo. Achou mais que justificável sua atitude – o mundo é<br />

um caos... Um caos. Gritava dentro dele esta fantasia tétrica. Parecia-lhe que<br />

ninguém o entendia.<br />

Tornou-se, para os garotos de sua convivência, um fanfarrão, motivo<br />

de pilhéria. De tanto falar sobre isso, já nem mais tinha crédito. Ninguém<br />

acreditava que podia cometer tal absurdo. E isso, certamente, alimentava a sua<br />

pretensa vontade, brincava com chamas, embora sem coragem aparente para<br />

cometer a bobagem – como diziam seus amigos mais chegados, quando se<br />

discutiam. Mas algo lhe aquecia a alma involuntariamente. Às vezes não sabemos<br />

que o medo é uma ótima covardia. – Tenho que mostrar para esses idiotas, para<br />

esses bestas – dizia para si mesmo como afirmativa para vencer sua falta de<br />

decisão. Ele pensava que deveria pôr um fim em tudo. Essa coisa toda era<br />

incomum demais para os meus pensamentos, mas, para os seus, me parecia um<br />

sentimento vivo. Aquilo martelando em sua cabeça, me deixava aflito, aquele<br />

sentimento que lhe era incutido por algo ou alguém além da alma. Teria,<br />

certamente, que ter uma indução extra-humana - talvez alguém chamasse a isso<br />

de demônio. O que lhe impulsionava à morte e não à vida – o sentido natural de<br />

todas as coisas vivas, estava sendo desqualificado aquilo era-lhe tão invito que,<br />

em detrimento de seus relampejos de sobriedade, de querer frutificar na vida,<br />

pensava como se fosse


21<br />

uma febril paixão, que apagava dele todas as possibilidades de qualquer<br />

amor fazer surgir o desvendar, fazer surgir o simples...<br />

De fato, eu estava aflito, lembrei-me mais uma vez de seu Minoro, o que<br />

diria o velho japonês com sua sobriedade, com sua calma e filosofia - indaguei no<br />

meu consciente, como se seu Minoro me pudesse responder por ele -, houve uma<br />

mistura de sentidos e pensamentos e acabei por ficar sem resposta alguma.<br />

Imaginei que a falta de resposta era-me a resposta que indicava o caminho que<br />

eu precisava percorrer, a minha ferrovia que tinha que trilhar, só assim é que eu<br />

desvendaria o simples proposto, e para desvendar o que se passaria adiante, na<br />

leitura. Uma coisa estava associada à outra, eu não podia fraquejar.<br />

Por fim, e contra todos que não acreditavam naquele rapagão, certo<br />

dia - e neste dia, não falou com ninguém -, decidiu, finalmente acabar com tudo –<br />

como dizia – e saiu disposto a pular de uma ponte ferroviária ou, de algum<br />

penhasco, e tudo terminaria. Estava cego, e como um cego, caminhou rua afora<br />

sem enxergar nada, sem sentir nada, estava anestesiado e extasiado, qualquer<br />

cego sentiria e veria a vida com muito mais vida que ele, neste dia. A ideia lhe<br />

deixou sem sentir coisa alguma, talvez se alguém lhe batesse na cabeça, ainda<br />

assim não sentiria nada.<br />

“Às vezes um homem morre mesmo antes de morrer, quando pensa antes<br />

do fim, que o fim já chegou. Diria seu Minoro, se pudesse vislumbrar aquele<br />

trágico final, comigo.” Eu sempre pensava em seu Minoro, sentia certa<br />

autoridade em lhe atribuir pensamentos que me completava.<br />

Lendo aquela narrativa, me ocorreu que seu Minoro me havia dito, certa<br />

vez, que há uma literalidade intrínseca em todos os acontecimentos no mundo e<br />

que isso os tornam isentos de qualquer coincidência. Coincidência – afirmava – é<br />

inexistente. Para que algo seja coincidente é necessário trilhares de<br />

acontecimentos em cadeia acontecerem, e só assim, ainda, seria possível de<br />

nenhuma interferência, e, como cada<br />

algo iria acontecer com seu próprio agir e de forma arbitrária, sem essas<br />

interferências. Seu Minoro começava a falar comigo e se esquecia que eu era<br />

apenas um menino, parecia-me, que ele não se importava com a minha<br />

ignorância, ou que tinha medo de desmerecê-la, talvez tivesse razão. Ele havia<br />

me dito, lembro-me bem, para terminar: - O senhoro deve ser um bom homem,<br />

nada é por acaso, se for um bom


22<br />

homem, as providências serão boas, né! Em seguida dava aquele sua<br />

risada quase sem som e saía como se me ignorasse ou quisesse que eu o<br />

acompanhasse, coisa que jamais fazia.<br />

José André estava destemido de seu destino. Caminhava como se seus<br />

pés não tocassem o chão. Um vento forte tocou em seus cabelos longos,<br />

espalhando-os sobre seu rosto suado grudando na pele e na boca. Com aquela<br />

rajada, misturada às folhas e ciscos, veio também uma folha de jornal amarelado<br />

da Folha de Santo Amaro, na sua manchete dizia: “TOME O TREM EM<br />

SANTO AMARO E VÁ PASSAR SUAS FÉRIAS EM SANTOS”.<br />

Era inaugurada então, a estação de Jurubatuba, a matéria dizia:<br />

“Em 16 de fevereiro de 1867 foi inaugurada a primeira ferrovia do Estado de São<br />

Paulo, a The São Paulo Railway Co. - Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, e agora a<br />

estação de Jurubatuba também é inaugurada (...)”. O jornal não era de sua época,<br />

devia ter saído de algum lixo, mas, parecia lhe prever alguma coisa que não<br />

soube definir, ou se atentar.<br />

A ferrovia saía da estação da luz e se esticava até o porto de Santos.<br />

Passando no meio de favelas e sobre viadutos. Na serra, entre curvas e<br />

precipícios, havia uma imensa ponte, este haveria de ser o lugar em que se<br />

jogaria, ele conhecia mais ou menos o local, já tinha viajado no trem indo a<br />

Santos e passado naquela ponte, não era muito longe de onde morava, hora e<br />

meia de caminhada ou pouco mais.<br />

Estava convicto que dali em diante terminaria seu sofrer, e sentiu certa paz<br />

interior, parecia-lhe que estava matando não a si, mas sua sede com uma água<br />

fresquinha de alguma daquelas muitas minas que há entre as pedras da serra.<br />

Imaginava, de verdade, que somente a morte lhe daria esta paz ou até a<br />

felicidade que tanto almejava ou, talvez, ambas as coisas...<br />

É claro que para a maioria das pessoas em geral, dentre seus amigos, suas<br />

ideias eram absolutamente absurdas, assim como ficar rico sem sacrifícios; seria<br />

uma ideia absurda. Tirar a própria vida, ainda mais. Na verdade ele não sabia o<br />

quanto era influenciável, e as influências são como poeiras invisíveis, estão por<br />

toda parte. É outdoor a lhe impingir: compre, adquira, faça, siga isso, beba<br />

aquilo, coma este ou


23<br />

aquele alimento; são, de fato, influências que muitas vezes sem que percebamos<br />

estão nos conduzindo para caminhos alheios.<br />

Saiu naquele dia, como realmente a quem caminhasse para a morte, cabeça<br />

baixa, olhar triste, angústia no peito, o coração magoado doía-lhe na alma, como<br />

se algo o estivesse espetando de dentro para fora. Depois de horas de caminhada,<br />

não havia mais em si, ou em seu refolho, alguma resignação para com o mundo.<br />

Bem no meio daquela ponte enorme estava o jovem da história do livro.<br />

Havia ainda no seu coração, em meio à confusão que lhe passava pela cabeça,<br />

uma pontinha de dúvida, se faria ou não o que pretendia, foi quando pôde<br />

externar sua última oração: - Perdoe-me Deus, se pequei... Ele queria encenar e<br />

dar entonação perfeita às suas palavras, parecia uma vaidade sua impostar a voz<br />

e por em suas palavras à mesma emoção de um ator interpretando o Cristo, visto<br />

na tela do cinema, em uma das poucas vezes em que pôde ver uma fita. Parecia<br />

uma luta inglória com o destino. A lucidez se misturando à loucura.<br />

Olhava fixamente o horizonte como se buscasse nele algum alento para<br />

sua pobre alma perturbada. Tentou buscar dentro de sua cabeça alguma<br />

lembrança de seu pai, visualizou com isso um inteligível féretro saindo de algum<br />

lugar, tentou visualizar o semblante de sua mãe, e lhe veio uma imagem ofuscada<br />

e sombria, e tudo era tão vago, havia um elo partido cujo anelo jamais havia ou<br />

haveria de ser encontrado. Sentiu-se mais só ainda. Diante de seus olhos<br />

nublados de lágrimas misturadas ao verde das montanhas, viria como em<br />

sonhos, os cabelos pretos e grossos, como os de indígenas, de sua mãe, lhe<br />

aparecer emaranhados como cipós secos e retorcidos; numa visão assustadora,<br />

ela portava nas mãos aquela foice negra. Sua pele estava toda enrugada, com<br />

aspecto de folhas quebradiças de amontoados outonos, sua voz ressoava dentro<br />

de sua cabeça – Agora eu tenho que ir e não posso te levar, não posso. - Você é<br />

um homem, um homem, entendeu? Era uma pergunta cuja resposta estava na<br />

própria pergunta.<br />

Dali, de onde lhe parecia avistar o mundo todo, tudo tão minúsculo,<br />

naquela distância infinita, o fim, certamente, suplantava os montes circundados<br />

por grandes árvores. Da ponte, nem parecia que existia terra. Lá embaixo tudo<br />

era uma sombra verde e pequena. A distância de onde estava até o chão parecia


24<br />

infinita, igualmente seu olhar para o horizonte, infindo; na verdade não<br />

havia chão, assim como nunca lhe<br />

houvera pão, o fim era-lhe mais plausível. Então pensava já meio trêmulo e<br />

confuso, e como se recitasse uma Sutra indiana, balbuciava palavras<br />

entrecortadas numa mussitação quase incompreensível, para sua própria<br />

autoafirmação à morte. A vida e tudo mais que se podia ter nela havia se<br />

tornado um nada. Ínfima razão, da qual sua culpa suplantava em muito. – Sou<br />

um fracassado, jamais terá lugar para que eu viva de verdade, neste mundo de<br />

ricos e poderosos.<br />

Naquele momento, embora pássaros cantassem nas árvores, embora<br />

aeronave vencesse os ares, mesmo com os gruídos dos falcões, e os bandos de<br />

maritacas cortando os céus, devido a sua displicência ou a uma surdez inevitável<br />

– também em relação ao trem que por ali poderia passar a qualquer momento –,<br />

iludia-se que isso jamais aconteceria e tudo sairia perfeito, até que<br />

surpreendentemente, apita o maquinista. Era aquela buzina de trem, estridente,<br />

longa, infinita, definitiva. Ele não sabia se o maquinista o havia visto ou se<br />

apenas era de costume buzinar por alguma precaução. Se por ali tivesse uma<br />

placa de sinalização, certamente ele não tinha visto.<br />

Assustou-se ao ouvir o forte apito daquela máquina gigante a poucos metros da<br />

ponte, viu-a avançando impiedosamente contra ele. – Chegou o meu fim...<br />

Balbucia. Entre o trem que iria passar, e a grade de aço da ponte, não tinha<br />

espaço para ambos estarem sem se tocar. Agora sua voz estava mais audível,<br />

quase um grito, porém, abafado pelo trilhar das rodas dos vagões e dos atritos do<br />

ferro nos trilhos. Então naquele momento decidiu que, esmagado por aquele<br />

trem, não morreria! Ele já havia feito sua escolha. Decidiu que do jeito que<br />

primeiramente havia pensado, com tanto cuidado e esmero, assim o faria.<br />

E salta em um rompante de desespero, como se não fosse ele próprio,<br />

como se seu destino o empurrasse, ao ermo, ponte abaixo. - Mas, algo haveria de<br />

acontecer fora de seus planos! Neste momento da leitura senti um frio na<br />

barriga, como se a adrenalina do coração de José André, tivesse transposto da<br />

folha do papel e tocado meu corpo. Como se deslizasse por minha coluna, toda a<br />

sua angústia. Senti certo amargor na minha boca, era uma vivência nítida,<br />

naquele momento. Na vastidão da cena, seu corpo voava em queda livre, parecia-


25<br />

lhe que tinha perdido totalmente seu peso, para mim, ele, flutuava<br />

realmente. Diante da imensidão era uma pena solta. Adejava como folhas secas<br />

com asas de borboleta. O vento frio gelava seu peito, a brisa molhava seu rosto, o<br />

tempo parecia interminável na grandeza do verde, o tempo havia se tornado um<br />

vulto dentro do espaço.<br />

Era seu corpo pressionando para baixo, em uma queda sem fim, e o vento<br />

empurrando seu frágil e agora indefeso corpo, para cima. Seu peso - que para ele<br />

havia desaparecido -, o levava para o chão, mas, o vento o queria para o céu, com<br />

isso seu tempo de queda se prolongava. Seu corpo pareceu-lhe ter sido<br />

transformado em alma. O vento chegou a levá-lo planando como um verdadeiro<br />

pássaro. Lembrou-se de quando criancinha, que queria ser ave de rapina ou uma<br />

gaivota, passava horas a ver o gavião parado no ar a espreitar alguma presa.<br />

Depois abria seus braços e brincava de estar voando, contornando as moitas de<br />

matos. O vento que subia das montanhas, vindo do mar, levava-o como se ele<br />

estivesse dormindo sobre a relva, tornando sua queda aparentemente<br />

infindável... Estava tão perto das nuvens... – Mas onde estaria Deus... Estaria<br />

com ele? –, perpassava-lhe na cabeça.<br />

Inesperadamente, eis que surge um pássaro gigante. Como se do<br />

horizonte, onde o sol busca seu sono, viesse invisível, como mágica do infinito, e<br />

entre nuvens e neves e tempestades, aragens e chuviscos, que a todo tempo o<br />

escondesse para agora soltá-lo, misteriosamente, e para transportá-lo dali e<br />

salvar aquela vida jovem e insegura, daquele menino desventurado, surgia como<br />

quase do nada, o belo gigante.<br />

Um pavão gigante... Seria um milagre? Pavões não voam! – balbuciou o<br />

garoto entre o “sonho” e a aventura. - Ora um pássaro gigante! – exclamava em<br />

brados, o bravo aviador – Se a vida é assim, um milagre, por que não poderia<br />

surgir do nada um pássaro gigante... Estou morto? – perguntou-se em breve<br />

reconciliação dos sentidos. Será aqui o outro lado da vida? – devaneou em<br />

seguida, sem resposta, o jovem. Assim seguia nestas misturas de sentidos e<br />

sentimentos.<br />

Sendo para desvendar o simples das coisas extraordinárias que o amor<br />

existe, e é do nada que tudo advém, o amor é mesmo inexplicável, até mesmo<br />

quando se manifesta e materializa-se do nada. Seria a morte um dos projetos do


26<br />

amor? – Deixe-me viver, deixe-me viver! – Arrependei e aceitai - teria<br />

ouvido ou lido, e agora lhe ressurgiam como um tilintar de sino na cabeça, era<br />

um som, eram palavras, era algo explicável, inexplicável... Vozes do além, das<br />

montanhas, das relvas, das árvores... De onde eram as vozes!<br />

Tinha tantas penas coloridas, aquele bicho; e as asas eram longas, suas<br />

cores eram vivas, e o vento chiava nelas, os raios de sol tremeluziam tornando-as<br />

multicores como espelhos coloridos, que ele ao ver, enquanto caía como se fosse<br />

uma<br />

pluma de paina, imediatamente também se arrependia do que acabara de fazer,<br />

surgia dentro dele aquela angústia de quem devia ter consultado todas as<br />

possibilidades dentro da alma ou, de quem não soubesse de mais nenhuma<br />

possibilidade, mas ainda que tardiamente, ele se arrependia. Ao contemplá-lo, ou<br />

seja, ao perceber aquele lindo animal surgindo, se aproximando... Esquecera da<br />

vida, e até de sua possível morte. Era indubitável sua incerteza, não tinha mais<br />

nenhum caminho certo, tudo virara-lhe incógnita, era o findar absoluto da<br />

esperança na sua mais concreta literalidade. Com a morte da esperança da<br />

morte, incrível, ele renascia para a vida!<br />

Embora, tanto para viver como para morrer, aparentemente, já fosse<br />

tarde demais... Tudo poderia ter volta, e ainda que certamente, não mais<br />

houvesse dentro de si o mais remoto resquício de sobrevivência, mas afinal o que<br />

são milagres, se não incógnitas vertentes do nada, quantas vezes haveria de ouvir<br />

dizer: - para Deus, nada é impossível! Afinal os impossíveis, somente o são,<br />

enquanto não realizáveis. Contudo, por incrível que poderia parecer, sentia um<br />

regozijo pleno, uma calma de silêncio, entremeados com aquelas vozes, um<br />

dulçor na alma, que realmente o lirismo vivo do instante o fizera abandonar todo<br />

o medo, completamente todo o seu medo... Eram tão lindas as penas do animal.<br />

Jamais José André havia visto ou, imaginado ver, em toda sua vida um<br />

pássaro tão grande, (ou seria uma ave?) e também tão bonito, não importava, –<br />

lembro-me de sua vida ali contada, naquelas páginas de meu livro achado, e<br />

reflito que aquele gigante também não tinha um livro para ler, seus pés não eram<br />

belos, eram cascudos e feios, também não tinha uns sapatos para esconder a<br />

feiura de seus pés, e os homens ainda atiravam nas espécies dele, matando-os<br />

para comer ou apenas por esporte. Contudo, ele, ainda assim, não pulava de um<br />

precipício para dar cabo da própria existência, senão, absolutamente, por<br />

obediência àquele mistério. Viver e se dar à vida; era sim sua simples meta de


27<br />

existência. Pensei ainda, na veracidade daquela história e se ali não estaria à<br />

verdade do autor... Seu “amor desvendava o simples”. Havia em tudo, um<br />

profundo realismo, mas para mim, este profundo devia ser desvendado pelo<br />

simples.<br />

A ordem natural da vida é a ordem natural do crescer e multiplicar e<br />

talvez por isso, houvesse recebido aquela concessão especial, aquela missão tão<br />

importante, que de tão importante, lhe fora permitido voar... Ou quem sabe,<br />

seria para mostrar a<br />

grandeza da generosidade, a grandeza que está contida nas palavras que tanto<br />

deixamos de sentir. Calharam-me de repente tantas dúvidas. Talvez, se soubesse<br />

desta história, seu Minoro certamente me diria: “O senhoro poderá voar, se<br />

souber conservar a verdade!” Refletindo e voando sobre o dorso do vento, a<br />

mercê de uma sorte Divina, sim, porque talvez Deus houvesse retido os ponteiros<br />

do tempo, contendo o tempo e o ar numa densa camada protetora em espécie de<br />

nuvem, para que o suportasse e para que ele flutuasse, mesmo contra a lei da<br />

física, da força de atração, da gravidade. Será que os anjos, que não tem idades<br />

cronológicas, não o quisessem vivo, como um jovem anjo na terra... Percebia que<br />

naquela imensa inocuidade havia algo consistente, havia uma matéria<br />

impalpável, intocável, mas que agora podia sentir. Mergulhava com aquelas<br />

suas penas coloridas voando com leveza e elegância singular, como se fosse<br />

mágico voar! Quem sabe não seria ou fora a primeira e única vez que voara em<br />

toda sua vida de pavão! – Será que os deuses dos pavões não estariam atendendo<br />

a um pedido daquele coração em dúvida? Ou daquela “pós-atitude pensada”. De<br />

seu arrependimento? Quem saberia?... Rapidamente o pavão fez uma curva<br />

acentuada e quase que milagrosamente se colocou abaixo do corpo do menino.<br />

Sim, era mesmo um menino, não apenas porque não tinha coisas, como sapatos e<br />

tal, mas, por que a vida ainda não tivera tempo de transformá-lo. Viver é<br />

renascer a cada dia, haveria de ter pensado, compreendido: A vida é certamente,<br />

um fogo que nos forja.<br />

Um segundo de bons pensamentos pode valer, invariavelmente, uma vida,<br />

a felicidade, o amor que desvenda e faz florescer as rosas. Mas, porque achava<br />

que sua esperança tinha ido embora, o deixado, é que ali estava ele. Tinha em si<br />

um anjo seu que estava a lhe salvar e assim ele acabava por concluir, finalmente,<br />

esta verdade inconteste: “O amor desvenda o simples”. Quem sabe, de ora em


28<br />

diante, não passasse a ser o mais rico dos homens, reconhecendo que a vida<br />

era, a sua e de toda a humanidade, a nossa melhor preciosidade. Então, ao invés<br />

do personagem se estatelar lá embaixo, no meio de pedras, montanhas e árvores,<br />

ele pousa sobre o dorso do gigante pavão, agarrando-se, primeiro como se fosse<br />

um carrapato grudado no lombo de um touro, depois com medo de cair daquela<br />

altura, pois já havia desistido de perder sua vida naquela bobagem de desilusão.<br />

Eu estou com a garganta estagnada e a voz embargada e do meio da<br />

minha compenetração sinto precisar de uma pausa. O simples de meu ser<br />

criança, toca no profundo medo de meu herói, então não resisto e choro.<br />

Neste momento, o pássaro gigante voava entre montanhas cheias de<br />

arvoredos gigantes. Embaixo, um braço de mar circundava as montanhas<br />

também gigantes, tão humilde quanto majestoso, azul, infinitamente azul...<br />

Eram eles, ali diante de tantas coisas grandes, seres pequenos. Pequeninos, como<br />

aquilo que dos olhos deles desapareciam pela distância... Agora, o personagem<br />

que fora salvo por aquele animal emplumado e enorme, tinha uma companhia a<br />

mais, o sentimento daquele menino, que era eu. Eu que também não tinha<br />

sequer, até aquele instante, um livro para ler. Eu que adentrava naquela história<br />

de José André de tal maneira que as palavras lidas transformavam-se em atos e<br />

em movimentos em meu cérebro. Ele também não tinha uns sapatos e, por<br />

ironia do destino, também não tinha um amigo ou irmão. Tive vontade de<br />

abraçá-lo e dizer-lhe: - Você tem a mim, sou seu amigo!<br />

Apenas o que tinha era alguns colegas de escola, que praticavam bullying<br />

e o faziam de escudo para esta prática. Era o carregador de objetos tomados de<br />

outros garotos, vítimas dos abusos deles; como recompensa, dava-lhe pedaços de<br />

pão com manteiga, sobrados de seus lanches. Esses meninos pertenciam à classe<br />

média e eu à escória da sociedade Essa mistura do irreal com o real dentro de<br />

mim era mais que verdadeira e eu tomava partido a favor de meu herói. Eu<br />

torcia muito para que ele se salvasse daquele sofrimento. Para mim ele tinha<br />

vida, eu queria dar-lhe minha mão, queria dar-lhe meu abraço, queria lhe dizer<br />

coisas positivistas! Havia, ainda, outro ponto em comum comigo, sua única irmã<br />

havia desaparecido logo ao nascer, talvez morta ou levada por algum homem do<br />

mal. A menina estaria brincando na porta da casa sem muros e dali jamais<br />

alguém soube para onde teria ido ou teria sido levada por alguém, sobre isso o<br />

autor se limitou apenas a dizer de seu sumiço. Deixou nas entrelinhas que talvez<br />

vivesse ainda, em algum país estrangeiro.


29<br />

José André havia ouvido falar do tráfico de crianças para venderem<br />

seus órgãos. Era a máfia dos órgãos, diziam. E, apesar de tudo, de certa forma,<br />

senti inveja dele, eu nem mesmo um pássaro gigante sonhava ter, também não<br />

tinha um herói, pelo menos até então; mas parecia sim, que a partir daquele<br />

instante achara mais que um em uma lata de lixo. - Quem diria... Em uma lata de<br />

lixo! Quase sem crer, balbuciei lendo. E ainda, ao abrir sua capa e encontrar em<br />

suas páginas: um pavão que podia voar, na mágica materialidade dos<br />

sentimentos e dos pensamentos – se penso, logo existo – lembrou-se da frase, dita<br />

por seu professor, citando Descartes, que também não imaginava quem seria.<br />

Encontrei, talvez, os amigos que sempre eu quis ter e que agora, os teria<br />

para sempre, cravados na minha memória: para sempre! E estes amigos nunca<br />

lhe diriam não; sempre que quisesse senti-los, era só abrir aquele velho livro, que<br />

fora posto no lixo por alguém que jamais, talvez, o tenha lido. - Nunca jogarei<br />

um livro no lixo... Nunca pularei de uma ponte de trem... – Balbuciei convencido<br />

de que a vida que queria para mim haveria de ser cheia de aventuras felizes.<br />

O personagem do livro, sobre o dorso do pavão via encantado, bichos e<br />

matas imensas, e eu por seus olhos, nem piscava, era um viver intenso dentro de<br />

mim, eu sentia me tremerem as entranhas como uma carne de rã às vésperas da<br />

fritura. A história me havia tomado e me embalava naquela sua viagem. Era de<br />

ambos a viagem. Em rápidas retomadas da realidade, eu achava incrível, sua<br />

mente, seu sentido, sua penetração naquele mundo, suas sensações, suas<br />

reflexões, suas alegrias... Sim, eu estava certo, sobre meus sonhos estarem<br />

contidos dentro de páginas, entre capas e cores... Havia mesmo um mundo que as<br />

letras, sílabas, frases, palavras desvendavam em tudo, havia amor descrito em<br />

montes, em céus, em pessoas, em capins, árvores, relvas, sofrimentos, lágrimas e<br />

alegrias, pareceu-me que cada coisa transformada em palavras, renascia, revivia,<br />

crescia por fim.<br />

Mesmo sem sair do lugar em que eu estava, ali, perto daquela lata de lixo,<br />

escondido dentro daquele exemplar sujo e amassado, visto pelos olhos daquele<br />

meu herói - agora meu herói. Eu podia viver e ser feliz, mesmo diante de tantos<br />

motivos infelizes de minha vida. Eu não estava em mim, ele estava em mim.<br />

Sentia-me o próprio José André, antes daquele primeiro momento<br />

inusitado do encontro com o livro; minha vida tinha pouco sentido, apenas eu


30<br />

não a alimentava com mais sofrimentos do que tinha. Toda aquela sua casa de<br />

livro, feita em folhas de papel, linhas e frases, ali sujas e desleixadas, tornando-se<br />

lixo. E o personagem, entranhado naquele texto em meio ao fedor e resíduos<br />

molhados daquela lata, me colocava, naquele momento, como um ser humano<br />

que efetivamente podia fazer alguma coisa em prol de alguém, ali no caso, os<br />

personagens do livro e o próprio livro. Senti orgulho de mim, aquele exemplar<br />

literário me fez sentir uma pessoa de verdade. Pareceu-me que eles (os<br />

personagens), e o livro, estivessem tão desvalorizados quanto a minha pessoa,<br />

antes daquele momento, e que os personagens daquela história, não mais<br />

queriam viver, junto com aquele livro, mas eu o havia<br />

encontrado. Ele me salvaria e eu retribuiria de alguma forma. Isso não era um<br />

pensamento premeditado em mim, mas era como se eu ouvisse uma voz<br />

silenciosa dizendo nos meus ouvidos, vindo de meu coração: – Não hesite,<br />

apanhe-o, salve-o! Assim como também o personagem tinha sido encontrado e<br />

salvo por um pavão gigante, que podia misteriosamente voar como uma<br />

andorinha. Eu, como um garimpeiro, acabava de encontrar uma pepita valiosa, e<br />

tudo movido por aquele meu fascínio escondido dentro do sentido, pela avidez do<br />

meu querer conhecer, descobrir mundos e sentimentos, cheguei a concluir que<br />

talvez tudo isso nos levasse a uma vida eterna, talvez esta história nos<br />

imortalizasse... Talvez tudo estivesse no... Talvez, entre o acertar e o errar. – O<br />

talvez... É aquele ponto entre o pensamento e a decisão. O que nem sempre se<br />

consegue fazer sem antes pensar, e pensar, e pensar até errar ou acertar, este<br />

mundo é mesmo um mundo de incertezas - concluo finalmente.<br />

Sobre o dorso do pássaro gigante, o nosso personagem encantava-se<br />

com tantas belezas que jamais vira em toda sua vida ou jamais veria, se tivesse<br />

concretizado seu intento nefasto de morrer, mas sua morte estava mesmo<br />

naquele ponto do incerto, naquele talvez. Era tão jovem, havia de merecer viver<br />

ainda por muito tempo. Mas jovens também morrem, e como morrem! Mas ele<br />

estava vivo e descobria ninhos de aves sobre galhos das imensas árvores, filhotes<br />

sendo tratados carinhosamente por mamães pássaras, saguis saltitando alegres<br />

sobre galhos davam movimentos à vida. Por que todos os seres têm mães e pais?<br />

Em certo sentido, alguns animais só têm mães; os pais vêm e se acasalam e depois


31<br />

somem, as mães chocam os ovos e criam os filhotes, ou seriam os pais, ele<br />

não saberia dizer... E estes por sua vez voam e se perdem nas matas adentro.

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