Olhos de alfinete e línguas de trapos: algumas histórias de crianças ...
Olhos de alfinete e línguas de trapos: algumas histórias de crianças ...
Olhos de alfinete e línguas de trapos: algumas histórias de crianças ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>Olhos</strong> <strong>de</strong> <strong>alfinete</strong> e <strong>línguas</strong> <strong>de</strong> <strong>trapos</strong>: <strong>algumas</strong><br />
<strong>histórias</strong> <strong>de</strong> <strong>crianças</strong> e professoras que colocaram em<br />
análise práticas educativas tecidas no cotidiano<br />
escolar<br />
Fernanda Macieira Bortone<br />
Fundação Municipal <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong> Niterói<br />
Nesta comunicação pretendo narrar <strong>algumas</strong> <strong>histórias</strong> em<br />
que professoras modificaram suas práticas a partir das<br />
intervenções das <strong>crianças</strong>. Estas <strong>histórias</strong> foram<br />
recortadas da dissertação <strong>de</strong> Mestrado “Artes e manhas<br />
do cotidiano da Educação Infantil: narrativas <strong>de</strong> alguns<br />
(<strong>de</strong>s) encontros entre alunos e professoras.” que aborda<br />
as relações tecidas entre adultos e <strong>crianças</strong> no contexto<br />
da educação infantil. Propositalmente trago para este<br />
trabalho <strong>histórias</strong> que provocam uma discussão sobre a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “apren<strong>de</strong>r com as <strong>crianças</strong>”, fala corrente<br />
entre os educadores e pesquisadores, mas que ainda se<br />
apresenta distante do texto vivo do currículo <strong>de</strong> <strong>algumas</strong><br />
escolas, das propostas pedagógicas, do planejamento<br />
dos espaços/tempos e da forma como os adultos se<br />
referem, educam e convivem com as <strong>crianças</strong>.<br />
As <strong>histórias</strong> que compõem o (con) texto <strong>de</strong>ste<br />
trabalho foram ouvidas, vividas e colhidas no chão dos<br />
cotidianos das escolas públicas <strong>de</strong> educação infantil em<br />
que eu, aqui, pesquisadora-narradora, atuei como<br />
professora, como professora-pesquisadora 1 coor<strong>de</strong>nadora<br />
pedagógica ou ainda como pesquisadora e “oficineira” 2 .<br />
1 Usamos aqui, o conceito professora-pesquisadora, como a prática inquieta e<br />
reflexiva da educadora que insatisfeita com seu fazer pedagógico, busca por<br />
em análise suas práticas, buscando novas explicações, novas formas <strong>de</strong><br />
compreensão articulando teoria e prática. No entanto este processo complexo<br />
<strong>de</strong> fazer-se pesquisadora, só será possível se na escola existe um espaço <strong>de</strong><br />
discussão coletiva que alimente a conjugação<br />
observação/reflexão/observação. (Linhares, C & Garcia, R.L)<br />
2 Trata-se da participação no projeto intitulado “Artes e manhas da educação<br />
infantil: oficinas <strong>de</strong> expressão com <strong>crianças</strong>”. Este projeto buscou<br />
problematizar junto às <strong>crianças</strong> e suas professoras, <strong>algumas</strong> questões que<br />
atravessam o cotidiano escolar, tais como as relações entre <strong>crianças</strong> e adultos,<br />
os usos da escola, a rotina, o tempo, as brinca<strong>de</strong>iras e ativida<strong>de</strong>s diárias entre<br />
outros, bem como provocar a narração <strong>de</strong> <strong>histórias</strong> e memórias da escola,<br />
privilegiando-as como instrumento <strong>de</strong> análise coletiva.
Incorporada <strong>de</strong>stas experiências, inspirada pela<br />
lida com <strong>crianças</strong> pequenas e pela poesia <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong><br />
Barros 3 e dialogando com os textos <strong>de</strong> autores como<br />
Michel Foucault (1999), Michel <strong>de</strong> Certeau (1990), Walter<br />
Benjamin (1993) Sônia Kramer (2000), R.L.Garcia (2002),<br />
C.Linhares (2001) entre outros, venho buscando manter<br />
uma prática pergunta<strong>de</strong>ira, curiosa e inquieta, forjando<br />
uma pesquisa-aprendiz, que toma o cotidiano como<br />
campo <strong>de</strong> problematização, buscando nas <strong>histórias</strong> “sem<br />
importância”, nos fragmentos da vida comum, a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> estranhamentos, diferenças<br />
e indagações.<br />
Os encontros com os meninos e as leituras dos<br />
textos dos autores anteriormente citados, começaram a<br />
<strong>de</strong>senhar no meu corpo <strong>de</strong> professora e pesquisadora<br />
uma atitu<strong>de</strong> investigativa e possibilitaram um reencontro<br />
entre eu e minha bisbilhotice <strong>de</strong> menina, conjugando<br />
curiosida<strong>de</strong> e interesse pelas coisas do mundo com a<br />
necessida<strong>de</strong> política <strong>de</strong> problematização do que é<br />
consi<strong>de</strong>rado como natural ou corriqueiro e o entendimento<br />
das concepções, das coisas ou dos objetos como efeitos<br />
<strong>de</strong> uma produção histórica e social.<br />
Assim, encontrei nas inquietu<strong>de</strong>s, nas perguntas muitas<br />
vezes “<strong>de</strong>scabidas” feitas pelas <strong>crianças</strong>, inspiração para<br />
praticar a pesquisa, para <strong>de</strong>stacar das paisagens<br />
monótonas da vida que corre cenas <strong>de</strong>sestabilizadoras,<br />
produtoras <strong>de</strong> rupturas na continuida<strong>de</strong> e na repetição,<br />
enfim, cenas que pu<strong>de</strong>ssem provocar perplexida<strong>de</strong>s em<br />
meio as práticas consi<strong>de</strong>radas naturalizadas, mecânicas e<br />
sempre iguais.<br />
As narrativas que compõem o presente trabalho<br />
são “respostas” a uma pergunta efetuada aos professores<br />
durante a trajetória <strong>de</strong> construção da dissertação: O que<br />
3 Este poeta traz em suas poesias freqüentes referências as coisas pequenas, as<br />
coisas do chão, assim como um interesse pelos homens <strong>de</strong>simportantes.<br />
Interesse que po<strong>de</strong> ser conjugado ao <strong>de</strong>sta pesquisa, que busca se constituir<br />
num enfrentamento a construção da história como registro dos gran<strong>de</strong>s feitos,<br />
dos gran<strong>de</strong>s fatos, preten<strong>de</strong>-se aqui ensaiar a escrita <strong>de</strong> uma história que<br />
esteja aliada aqueles que não foram autores da historiografia oficial:<br />
mulheres, <strong>crianças</strong>, trabalhadores entre outros. Esta concepção também po<strong>de</strong><br />
ser fiada ao pensamentos <strong>de</strong> Foucault (1999) e Benjamin(1993) em sua<br />
críticas a historiografia dominante.
você apren<strong>de</strong>u/apren<strong>de</strong> com seus alunos? São narrativas<br />
retiradas <strong>de</strong> conversas informais efetuadas no caminhar<br />
pelo chão das escolas, das minhas experiências como<br />
educadora ou <strong>de</strong> discussões no curso <strong>de</strong> extensão<br />
“Memórias e <strong>histórias</strong> da Educação Infantil: em análise<br />
concepções <strong>de</strong> infância e práticas educativas”. Este curso<br />
constitui-se como campo <strong>de</strong> pesquisa e como<br />
espaço/tempo <strong>de</strong> discussão com as professoras sobre a<br />
pratica docente. No curso, as professoras foram levadas a<br />
memorar a(s) infância(s) num entrecruzamento <strong>de</strong><br />
tempos: infância(s) que experimentaram enquanto<br />
sujeitos e infâncias que encontram no dia a dia <strong>de</strong> seu<br />
trabalho. Estas memórias foram arrancadas da dimensão<br />
individualizada para serem coletivizadas, usadas como<br />
material <strong>de</strong> análise do grupo, como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
provocar uma atualização do passado num encontro com<br />
o presente e a escrita do porvir.<br />
Neste momento, <strong>de</strong>vo salientar que não busquei<br />
encontrar nas reminiscências das professoras, a pureza<br />
<strong>de</strong> um passado intocado, entendo que estas memórias<br />
foram (re)arranjadas pelo presente, que a elas foram<br />
sendo acrescentadas outros elementos <strong>de</strong> outras<br />
<strong>histórias</strong>. Aproveito a ocasião para dizer que o texto <strong>de</strong>sta<br />
comunicação, é marcado por uma concepção <strong>de</strong> memória<br />
que a aproxima da invenção, assim as <strong>histórias</strong> contadas<br />
não são transcrições fiéis da realida<strong>de</strong>, elas possuem<br />
ruídos, interferências do presente e dos sujeitos que são<br />
seus narradores e seus ouvintes.<br />
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas<br />
refazer, reconstruir, repensar, com imagens <strong>de</strong> hoje, as<br />
experiências do passado. A memória não é sonho, é<br />
trabalho. Se assim é, <strong>de</strong>ve-se duvidar da sobrevivência do<br />
passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente <strong>de</strong><br />
cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos<br />
materiais que estão, agora, à nossa disposição (...) Por mais<br />
nítida que nos pareça à lembrança <strong>de</strong> um fato antigo, ela<br />
não é a mesma imagem que experimentamos na infância,<br />
porque nós não somos os mesmos <strong>de</strong> então e porque nossa<br />
percepção alterou se, com ela, nossas idéias, nossos juízos<br />
<strong>de</strong> realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> valor. ”(Bosi,1983,p.17)<br />
Através da pergunta-intervenção “O que você<br />
apren<strong>de</strong>u ou apren<strong>de</strong> com as <strong>crianças</strong>?”, as professoras<br />
foram convocadas a pensar na dimensão <strong>de</strong>safiadora e<br />
instigante, que po<strong>de</strong> representar a convivência com a
diferença, com os modos <strong>de</strong> olhar das <strong>crianças</strong> sobre o<br />
mundo e a escola. Esta pergunta tinha uma intenção<br />
tentar produzir uma subversão, um olhar <strong>de</strong> outro tipo<br />
sobre a experiência infantil, um olhar que não fosse<br />
direcionado a perseguir ausências, faltas, mas que<br />
ousasse ver a criança em sua possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
transformação, como criadora <strong>de</strong> cultura, tomando as<br />
lógicas infantis como analisadores <strong>de</strong> nossa socieda<strong>de</strong>.<br />
Buscar justamente no que lhe falta, a a<strong>de</strong>quação aos<br />
modos <strong>de</strong> vida do adulto, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inaugurar<br />
outros mundos possíveis, <strong>de</strong> (re) escrever a nossa<br />
história.<br />
Concordando com Kramer (2000), pensamos que<br />
“apren<strong>de</strong>r com as <strong>crianças</strong> po<strong>de</strong> ajudar a compreen<strong>de</strong>r o<br />
valor da imaginação, da arte, da dimensão lúdica, da<br />
poesia. Enten<strong>de</strong>r que as <strong>crianças</strong> têm um olhar crítico que<br />
vira pelo avesso a or<strong>de</strong>m das coisas, que subverte o<br />
sentido <strong>de</strong> uma história, que muda a direção <strong>de</strong> certas<br />
situações, exige que possamos conhecer nossas<br />
<strong>crianças</strong>, o que fazem, <strong>de</strong> que brincam, como inventam,<br />
<strong>de</strong> que falam. E que possam falar mais.” (pg.51)<br />
Os fragmentos <strong>de</strong> <strong>histórias</strong> que serão contadas<br />
nesta comunicação preten<strong>de</strong>m fazer o reverso da<br />
generalização da infância, tão constante nas pesquisas e<br />
teorias sobre <strong>crianças</strong>. Eles não trazem explicações sobre<br />
o comportamento infantil, não revelam um único modo <strong>de</strong><br />
dizer como apren<strong>de</strong>m, não insinuam a existência <strong>de</strong><br />
ausências e faltas. Estes pedaços <strong>de</strong> <strong>histórias</strong> parecem<br />
sussurrar: - Reconheçam a infância como uma passagem,<br />
como um movimento singular não busque generalizações.<br />
Não tomem como referência <strong>de</strong> análise mo<strong>de</strong>los e<br />
padrões, procurem evitar a tentação <strong>de</strong> não<br />
compreen<strong>de</strong>ndo os feitos infantis, inventar categorias<br />
patológicas ou técnicas <strong>de</strong> encaixe a um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
infância normalizada.<br />
A dissertação que inspirou esta comunicação revela<br />
uma pesquisa da infância que se inventa todo dia, procura<br />
fazer uma análise do modo como a criança evolui, cria e<br />
recria sua passagem pelo mundo como criança, com os<br />
elementos que possui entre eles a intervenção dos<br />
adultos, o <strong>de</strong>scolamento <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los dominantes <strong>de</strong> viver<br />
(que ainda não possuem como referência), o modo como
lhe apresentam a vida e a forma como resiste às<br />
expectativas que os adultos têm sobre elas. Tomo o termo<br />
evolução como é usado para <strong>de</strong>screver uma passagem 4 ,<br />
pervertendo um <strong>de</strong> seus sentidos mais recorrentes que<br />
indica progresso, resultado <strong>de</strong> sucessivos avanços, e me<br />
aproximo do sentido dado pelos sambistas ao<br />
<strong>de</strong>screverem a passagem <strong>de</strong> uma escola <strong>de</strong> samba, o<br />
mover-se da bateria, dos mestres sala e porta ban<strong>de</strong>iras,<br />
o ritmo, a cadência e os possíveis atravessamentos do<br />
samba, enfim a processualida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sfilar como escola<br />
<strong>de</strong> samba.<br />
É a processualida<strong>de</strong> do caminhar das <strong>crianças</strong> na<br />
escola, que envolve paradas, movimentos inesperados,<br />
rupturas, invenções, <strong>de</strong>svios e os atravessamentos dos<br />
adultos neste processo, que alimenta a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
escrever e narrar estas <strong>histórias</strong>. Histórias que afirmam a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar a infância, como produção<br />
histórica e social, nos advertindo “que as <strong>crianças</strong> são<br />
diferentes porque têm <strong>histórias</strong> diferentes, em que se<br />
revelam as diferenças <strong>de</strong> classe, <strong>de</strong> raça e etnia, <strong>de</strong><br />
gênero, <strong>de</strong> valores, <strong>de</strong> religião, <strong>de</strong> local on<strong>de</strong> vivem, <strong>de</strong><br />
grupo sócio-cultural ao qual pertencem, e por fim, porque<br />
a singularida<strong>de</strong> sempre marca a forma única <strong>de</strong> reagir ao<br />
que marca cada um. (Garcia, R.L, 2002 - contracapa).”.<br />
As <strong>crianças</strong> que não são avessas ao que acontece<br />
no mundo, que também são introduzidas nas<br />
necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> consumo, que apren<strong>de</strong>m cada vez mais<br />
cedo a lidar com dinheiro ou com a falta <strong>de</strong>le, que<br />
apren<strong>de</strong>m a sonhar todo dia com um novo brinquedo, que<br />
logo se torna velho, abandonado em qualquer canto.<br />
Estas <strong>crianças</strong> que logo po<strong>de</strong>m ser adaptadas às lógicas<br />
<strong>de</strong> mercado também po<strong>de</strong>m resistir, e aquelas que ainda<br />
não sofreram um “imprinting” do controle social (Guattari,<br />
1987), po<strong>de</strong>m nos ensinar a rever os nossos valores,<br />
nossas necessida<strong>de</strong>s, nosso modo <strong>de</strong> sentir, usar ou<br />
consumir a vida. Po<strong>de</strong>m nos ensinar a inventar outros<br />
sentidos para a escola, para as ativida<strong>de</strong>s que ali são<br />
4 Esta idéia <strong>de</strong> passagem e evolução, assim como toda a comparação com a<br />
escola <strong>de</strong> samba, foram presentes da orientadora da dissertação em que esta<br />
comunicação se inspira, a professora Lilia Lobo, para que eu pu<strong>de</strong>sse<br />
compreen<strong>de</strong>r a pesquisa como uma análise da processualida<strong>de</strong>, das relações<br />
entre os termos, do entre e não dos termos isoladamente, mas dos termos que<br />
foram produzidos por estas relações e que por elas são alimentadas.
ealizadas, nos dizendo: - Me dê a mão eu posso ensinálo<br />
a resistir ao consumo 5 do espaço tempo escolar,<br />
aprenda com minhas artes e manhas a resistir à<br />
burocratização das relações pessoais, à hierarquia, aos<br />
valores e comportamentos dominantes, não se <strong>de</strong>ixem<br />
encaixar em perfis e, <strong>de</strong> vez em quando, permitam<br />
experimentar outros modos <strong>de</strong> ser adulto, encontrando<br />
brechas no dia a dia cronometrado para cometerem<br />
absurdos. Preocupem-se menos com os resultados,<br />
olhem a poesia dos meus movimentos e atentem para o<br />
prazer dos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta.<br />
Assim as <strong>histórias</strong> que serão narradas mostram a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> uma relação com a<br />
infância em que o professor misturando-se às <strong>crianças</strong><br />
po<strong>de</strong> subverter o papel <strong>de</strong> quem sempre ensina e <strong>de</strong><br />
repente apren<strong>de</strong>r com elas.<br />
Estas narrativas insinuam que nenhum mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />
infância, nenhuma essência infantil, nenhuma seqüência<br />
<strong>de</strong> fases <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento ou padrões <strong>de</strong> formas <strong>de</strong><br />
apren<strong>de</strong>r dão conta da multiplicida<strong>de</strong> dos modos <strong>de</strong> ser<br />
menino e menina e das infinitas formas <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r<br />
coisas, usar e fazer a escola. Elas <strong>de</strong>safiam a produção<br />
<strong>de</strong> um corpo infantil, mas também <strong>de</strong> um corpo adulto <strong>de</strong><br />
professora que não po<strong>de</strong> se aproximar muito da criança,<br />
correndo o risco <strong>de</strong> contaminar-se pelos trejeitos infantis,<br />
por suas traquinagens, por suas atitu<strong>de</strong>s “pueris” e<br />
“ingênuas”, afinal “quem dorme com <strong>crianças</strong> amanhece<br />
molhado.” Corpo adulto treinado que já apren<strong>de</strong>u que<br />
“manda quem po<strong>de</strong> e obe<strong>de</strong>ce quem tem juízo”, e agora<br />
precisa transmitir este ensinamento aos infantes, por que<br />
“é <strong>de</strong> pequenino que se torce o pepino.”.<br />
Narrativas que anunciam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
invenção cotidiana <strong>de</strong> outras relações entre adultos e<br />
<strong>crianças</strong> que não precisam ser baseadas em mo<strong>de</strong>los, em<br />
apreciação <strong>de</strong> fases <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, em uma<br />
essência infantil ou adulta. Produção <strong>de</strong> corpos mutantes,<br />
que se moldam no encontro <strong>de</strong> outros corpos, corpos <strong>de</strong><br />
5 Gostaria <strong>de</strong> relembrar a distinção entre consumidor e usuário estabelecida<br />
por Certeau (1990), para ele o primeiro seria aquele que consome<br />
passivamente os objetos que lhe são impostos pelo po<strong>de</strong>r dominante, e<br />
usuário seriam aqueles que operam uma transformação <strong>de</strong>stes objetos,<br />
utilizando-os <strong>de</strong> acordo com a ocasião, com a necessida<strong>de</strong>, emprestando-lhes<br />
outros sentidos.
adultos que ao encontrarem com a criança po<strong>de</strong>m se<br />
“ameninar”. Corpos <strong>de</strong> <strong>crianças</strong> que po<strong>de</strong>m se<br />
encompridar e virar gente gran<strong>de</strong> e <strong>de</strong>stituir o po<strong>de</strong>r dos<br />
adultos.<br />
Deste modo este trabalho não preten<strong>de</strong> tomar as<br />
narrações <strong>de</strong> vidas e mortes da escola como<br />
representativas <strong>de</strong> um único e novo modo <strong>de</strong> viver hoje o<br />
espaço tempo da escola, um único modo <strong>de</strong> usá-la, <strong>de</strong> ser<br />
criança ou professor. Não preten<strong>de</strong> apropriar-se do texto<br />
vivo e pulsante das narrativas para sublinhar o que existe<br />
em comum entre elas, a<strong>de</strong>quando-as em categorias a fim<br />
<strong>de</strong> produzir universais ou homogeneida<strong>de</strong>s.<br />
Inspirada em Walter Benjamin 6 (1993), busco nas<br />
narrativas <strong>de</strong> professoras que se misturaram com as<br />
<strong>crianças</strong> e com elas apren<strong>de</strong>ram, provocar o surgimento<br />
<strong>de</strong> conselhos e <strong>de</strong>ste modo disparar a continuida<strong>de</strong> da<br />
tessitura da narrativa, potencializando o construir coletivo<br />
em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> um sujeito<br />
ensimesmado (Benjamin, 1993).<br />
“O narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se<br />
dar conselhos <strong>de</strong>ixou parece hoje algo <strong>de</strong> antiquado, é<br />
porque as experiências estão <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser<br />
comunicáveis. Em conseqüência, não po<strong>de</strong>mos dar<br />
conselhos nem a nós mesmos nem aos outros. Aconselhar<br />
é menos que dar uma resposta a uma pergunta que fazer<br />
uma sugestão sobre a continuação da história que está<br />
6 Walter Benjamim, no artigo “O narrador” (1993), traz uma discussão<br />
sobre o <strong>de</strong>clínio da arte <strong>de</strong> narrar, como um efeito do advento do<br />
capitalismo, que intensificou a difusão da informação através dos<br />
meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa, privilegiando como forma <strong>de</strong><br />
comunicabilida<strong>de</strong> a informação em <strong>de</strong>trimento da narrativa. Afirma<br />
ainda que o capitalismo reduziu os espaços tempos <strong>de</strong> narrar, através<br />
<strong>de</strong> uma nova divisão e organização do trabalho, que criou novos<br />
ritmos aos modos <strong>de</strong> produção. Para este autor, enquanto a “arte da<br />
narração” está em evitar explicações e intercambiar experiências <strong>de</strong><br />
vida, a informação precisa ser plausível, aspirar uma verificação<br />
imediata, precisa ser compreensível “em si e para si”. Na narração, o<br />
sujeito é livre para interpretar, enquanto a informação transmite o<br />
“puro em si”, uma “verda<strong>de</strong>” completa, única, fechada.<br />
(Benjamin,1993)
sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário<br />
primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem<br />
só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a<br />
sua situação). O conselho tecido na substância viva da<br />
existência têm um nome sabedoria.” (Benjamin, 1993, p.20).<br />
Deste modo convido os leitores/ ouvintes <strong>de</strong>sta<br />
comunicação, para que se misturem ao fuso <strong>de</strong> <strong>algumas</strong><br />
pequenas <strong>histórias</strong> contadas por professoras e teçam<br />
conjuntamente outros fios híbridos, re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> poesia,<br />
sabedoria e porque não lutas coletivas por uma escola<br />
que ouse ouvir, brincar, inventar, fazer arte, se misturar e<br />
apren<strong>de</strong>r com as <strong>crianças</strong>.<br />
Margarida (<strong>de</strong>s)encontra Fábio:<br />
Todo dia antes <strong>de</strong> anunciar na rodinha <strong>de</strong> conversa, a<br />
história que seria contada, a professora Margarida<br />
cantava com a turma uma música famosa entre as<br />
professoras da educação infantil, canção que há muitos<br />
anos ecoa pelos diversos espaços <strong>de</strong> educar <strong>crianças</strong><br />
pequenas (Creches, Pré-Escolas, Jardins <strong>de</strong> infância,<br />
Casas da Criança) e que muitos adultos ainda guardam<br />
em suas lembranças da escola. “E agora minha gente<br />
uma história eu vou contar, uma história bem bonita para<br />
todos alegrar... Trê, lê, lê, lá, lá, lá.”<br />
E assim todo dia Margarida fazia o “sempre igual”,<br />
sentava na roda com as <strong>crianças</strong>, escolhia um livro, e<br />
começava a cantar... até que uma voz estri<strong>de</strong>nte começou<br />
a perturbar a or<strong>de</strong>m, começou a <strong>de</strong>safiar a “paz” que<br />
trazia aquela canção... E uma nova versão da música<br />
começou a tomar conta da sala, penetrando nos corpos<br />
dos meninos e da professora. “E agora minha gente uma<br />
história eu vou contar uma história bem feinha para todos<br />
alegrar...”.<br />
O menino Fábio começou a acompanhar a professora<br />
por dias a fio (<strong>de</strong>safios), nada fazia com que mudasse <strong>de</strong><br />
idéia e cantasse a música original, não adiantaram<br />
castigos, não adiantaram brigas, lições <strong>de</strong> moral ou<br />
tentativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo, até que um dia irritada e<br />
percebendo que a turma po<strong>de</strong>ria contagiar-se e começar<br />
a não “dançar conforme a música...” A professora<br />
resolveu conversar com Fábio explicando a importância<br />
<strong>de</strong> contar <strong>histórias</strong> e blá, blá, blá. O menino então olhou<br />
matreiro para a educadora e disse:
- Tudo bem, mas eu não posso achar a história<br />
bem feinha?<br />
Fraya (<strong>de</strong>s)encontra Maria:<br />
Numa tar<strong>de</strong> qualquer, enquanto eu me arrumava<br />
apressadamente para sair, vi Maria, menina-ventoprincesa<br />
- riso - pirata... e também choro, <strong>de</strong>rramando-se<br />
todinha num chorinho fino que ecoava pelos cantos da<br />
creche.<br />
Deixei por um instante os meus afazeres, e com<br />
a rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> quem está interessada, mas não misturada<br />
ao choro, ao soluço e à vida da menina, perguntei por que<br />
chorava. Ela me disse com olhos <strong>de</strong> nuvem, embaçados,<br />
que sua professora iria embora e que isto a <strong>de</strong>ixava muito<br />
triste.<br />
Restituir a calma, manter o controle da situação,<br />
“administrar o conflito”, trazer <strong>de</strong> volta a qualquer preço<br />
seu sorriso e dar a ela uma resposta rápida e cômoda, era<br />
minha missão <strong>de</strong> educadora.<br />
Então, mais rápida que caixa <strong>de</strong> supermercado,<br />
que funcionário <strong>de</strong> lanchonete fast food, respondi que não<br />
se preocupasse, afinal logo outra professora tão especial<br />
chegaria para ocupar aquele lugar.<br />
A menina me olhou com olhos <strong>de</strong> <strong>alfinete</strong>, colocou<br />
as mãos na cintura e disse:<br />
- Ora, mas não vai ser a professora Lílian.<br />
Neste momento a professora ganhou nome: Lílian.<br />
Ganhou também cor, cheiro, corpo, história, memória e<br />
afeto.<br />
Bibliografia:<br />
BARROS, M. O livro das ignorãnças. SP/RJ. Record,<br />
2000<br />
___________.Exercícios <strong>de</strong> ser criança.<br />
RJ.Salamandra,1999.<br />
___________. Memórias Inventadas: A infância. SP.<br />
Planeta,2003.<br />
BENJAMIN, Walter. O narrador. IN: Obras escolhidas I.<br />
Magia e técnica, Arte e política, São Paulo, Brasiliense,<br />
1993.
_________________ Teses sobre a história. IN: Obras<br />
escolhidas I. Magia e técnica, Arte e política,<br />
SP.Brasiliense,1993.<br />
BOSI, Ecléa. Memória e socieda<strong>de</strong>. Lembranças <strong>de</strong><br />
velhos. SP, EDUSP, T. A. Queiroz, 1983.<br />
BORTONE, F.M. “Artes e manhas do cotidiano da<br />
Educação Infantil: narrativas <strong>de</strong> alguns (<strong>de</strong>s)encontros<br />
entre alunos e professoras” Dissertação <strong>de</strong> Mestrado em<br />
Educação/Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense, Niterói,<br />
2003.<br />
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano – Artes do Fazer.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Vozes,1990.<br />
FOUCAULT, Michel. Nietszche, a genealogia e a história.<br />
In: Microfísica do Po<strong>de</strong>r. Rio <strong>de</strong> Janeiro. Ed. Graal,1999.<br />
__________________. A vida dos homens infames. IN: O<br />
que é um autor? Portugal, Veja – Passagens s/d.<br />
GARCIA, R.L. (org) Crianças essas conhecidas tão<br />
<strong>de</strong>sconhecidas. RJ. DP&A,2002.<br />
GUATTARI, F. Revolução Molecular: pulsações políticas<br />
do <strong>de</strong>sejo. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1981.<br />
LINHARES, Célia & GARCIA, R.L. Observando jardins no<br />
chão da escola. IN: Simpósio Internacional Crise da<br />
Razão e da Política na Formação Docente. Niterói, 2001.<br />
KRAMER, S. Infância, Cultura Contemporânea e<br />
Educação contra a Barbárie. IN: Infância e Educação<br />
Infantil: Reflexões para um novo século – OMEP – 2000.