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REPORTAGEM GÉSSICA VALENTINI

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6<br />

” Um silêncio<br />

que é mais que silêncio”<br />

<strong>REPORTAGEM</strong> <strong>GÉSSICA</strong> <strong>VALENTINI</strong><br />

Foto: Christina Rufatto


8<br />

Flores repousam, levemente apagadas, sobre a capa.<br />

Nada se vê além disso. Quase uma centena de páginas,<br />

cerradas há cerca de quatro anos, quando as mãos<br />

da dona, aos 88 anos, se tornaram trêmulas, a memória,<br />

cansada. Naquele diário, um mistério se guarda, tal<br />

como a vida de mulheres como ela.<br />

Maria de Jesus passa os dias a vagar pelo carmelo São<br />

José literalmente trocando palavras, sorrisos e piscadelas.<br />

Quando enfim se senta diante da lareira nos dias gelados<br />

de Cruz Alta (RS), contempla o Amado, muito diferente<br />

daquele a quem ela, um dia, devolveu a aliança de<br />

noivado. Aos poucos, compreendo a senhora de olhos<br />

amendoados, sorriso fácil e 66 anos dedicados à cultura<br />

do silêncio cultivada na clausura.<br />

“Quem entender a linguagem entende Deus / cujo<br />

Filho é Verbo / Morre quem entender / A palavra é disfarce<br />

de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada<br />

para ser calada.” Os versos de Adélia Prado exalam<br />

fé. Ainda assim, prefere o silêncio. “Não me sinto à vontade<br />

para falar do que admiro, mas não experimento”,<br />

cala-se a poeta.<br />

Como ela, as primeiras personagens também preferiram<br />

o silêncio. Lembro-me da bailarina que ainda ensaia os<br />

passos em Campo Mourão (PR). Da pianista que largou<br />

os palcos pelo carmelo em Pelotas (RS). Da doutora em<br />

química e militar prestes a ir para a clausura que quatro<br />

meses após a entrevista pediu que nada fosse revelado.<br />

Tão fortes são as palavras, mas diante do silêncio não há<br />

nada capaz de obter sequer um eco.<br />

Escolhi conversar com mulheres que optaram pela<br />

vida em silêncio da clausura. Percebo agora que caí<br />

em uma armadilha que eu mesma criei. Mas o diário<br />

fechado me provoca. Pelas grades do claustro,<br />

ouço os ruídos de uma vida silenciosa. Só lá dentro<br />

compreendo o silêncio revelador e descubro que<br />

Maria de Jesus foi, na verdade, poeta. “Chorei de<br />

gratidão / chorei de comovida / pois na verdade /<br />

eu não me achava digna / de entre tantas ser eu a<br />

escolhida.” Esse é um dos versos que escreveu no<br />

silêncio, contemplando algo que não é palpável,<br />

para alguns nem existe, para outros é demência.<br />

Penso nos versos de Marco Lucchesi: “Como há de<br />

suportar este silêncio / ermo e sombrio / este silêncio<br />

que é mais que silêncio / espanto e loucura /<br />

esse grave silêncio de Deus?”.<br />

Fora dos carmelos elas são da Silva, dos Santos. Um chamado<br />

e abandonam tudo. Este, sim, um grito, em qualquer<br />

momento da vida. A clausura começa quando se<br />

despojam do mundo e se preparam para calar o clamor.<br />

Ao entrarem, abdicam da identidade civil. Renascem esposas<br />

de Cristo – o Amado –, com novos nomes, sobrenomes,<br />

de acordo com o mistério que cerca esse casamento<br />

incomum.<br />

A poeta Maria de Jesus está com Alzheimer e as palavras<br />

lhe saem confusas. Assim, sua vida é contada<br />

por Ana Maria de São João da Cruz, de 66 anos, madre<br />

superiora do carmelo São José, a guardiã do diário. É<br />

ela quem conta que a poeta rompeu o noivado secular<br />

assim que ouviu o chamado, contrariando o que<br />

muitos dizem ser motivo para estar ali: a dor das desilusões<br />

amorosas.<br />

A caneta dá lugar ao pincel e os traços realçam outra<br />

Maria de Jesus, agora a pintora. O manto escorrega sobre<br />

o rosto delicado, cabeça inclinada, olhos levemente<br />

fechados e semblante concentrado. Nossa Senhora<br />

do Silêncio, a primeira face desenhada por ela, tem a<br />

mesma expressão da artista. Sem ouvir ruídos, proferir<br />

palavras, alcançar o palpável, inspirar o odor além das<br />

paredes e ver além da escuridão das pálpebras.<br />

Sozinha diante da tela branca, ela empunha o pincel<br />

e o desenho aparece. Mas não se considera uma criadora.<br />

“Na verdade, imito. Deus é o verdadeiro artista.”<br />

É esse traço que guia a obra dos artesãos do silêncio.<br />

Nos carmelos, essa é uma arte feita para ser contemplada<br />

por ninguém.<br />

Mas Maria de Jesus, a poeta, se refere a um “olhar” que<br />

admira seu talento: “Sim, tudo deixarei / Na oblação mais<br />

pura / Não posso resistir à força deste olhar / e foi para<br />

consegui-lo que optei pela clausura”.<br />

No caso da pintora, esse olhar se tornou um instrumento<br />

de trabalho. “Um dia em que estava triste, recebi um<br />

olhar de compreensão. Hoje, só de encarar as pessoas,<br />

sei como elas estão e por isso dou muita importância a<br />

esse sentido nas pinturas.” Aos 47 anos, perdeu a conta<br />

de quantas obras já fez. Em estolas de padres, estandartes<br />

e quadros, inclusive para outros países. Encomendas que<br />

se revertem em renda para o carmelo Sagrado Coração<br />

Eucarístico, de Giruá (RS). Os carmelos sobrevivem de doações,<br />

mas trabalhos como a pintura contribuem muito.<br />

Ana Maria, a guardiã, desdobra-se para não deixar que<br />

nada falte ao carmelo de Cruz Alta. “Cada uma tem uma<br />

função específica na comunidade, é chamada para isso.”<br />

Às 15 horas de um dia quente de 1951, Maria de Lourdes<br />

Teixeira da Cruz foi à igreja de Ponte Alta (MG), fitou a<br />

imagem de Jesus e ouviu algo que mudou sua vida. “Eu<br />

quero que você seja toda minha, não vai namorar e vai ser<br />

consagrada.” Ela nem sabia o que significava, mas concordou.<br />

Anos depois, diante da repressão da mãe, fugiu para<br />

se tornar Ana Maria, a guardiã.<br />

No interior dos carmelos, a cultura<br />

do silêncio é cultivada em clausura<br />

por mulheres que abdicam de<br />

suas histórias pessoais para se<br />

dedicarem a Cristo.<br />

A professora Armelinda Kufner também precisou fugir.<br />

A mãe chorava, achando que ela estava em uma casa<br />

de prostituição. Ao saber que a filha havia se tornado<br />

irmã Melânia da Santíssima Trindade, continuou lamentando<br />

por décadas.<br />

Com a nova identidade, é como se morressem. É assim<br />

que grande parte das famílias reage: como alguém<br />

que perde o outro para sempre. As novas irmãs passam<br />

dois anos no postulantado, vão para o noviciado e, enfim,<br />

se consagram, com votos de castidade, pobreza<br />

e obediência. Algo inconcebível para muitos e que<br />

mesmo elas afirmam ser um processo difícil, principalmente<br />

para as que acabaram de chegar, como Helena<br />

Monteiro Lima Verde, de 31 anos.


0<br />

Irmãs Melânia (esq.) e Helena trabalham no jardim do Carmelo São José.<br />

Foto: Christina Rufatto<br />

Antes de deixar a família, Helena queimou cartas e bilhetes,<br />

deu as fotos à irmã e entregou à mãe um santinho.<br />

“Naquele momento ela soube.” Iria para, talvez, nunca<br />

mais voltar. No entardecer do dia seguinte, a moça de<br />

rosto miúdo saltou do táxi em Cruz Alta. Vinha em busca<br />

do Amado, com o qual ela sonhava no quintal da rua<br />

Sargento Boening Castellani, número 195, em Petrópolis<br />

(RJ), desde os 6 anos de idade.<br />

Já Graciele Bottger, de 7 anos, olhos claros e traços perfeitos,<br />

sabe o que quer: “Um dia Jesus disse: ‘Minha menina,<br />

você vai ser carmelita’ ”. Ela até pensou no príncipe da<br />

Branca de Neve, mas “agora não penso mais”. O momento<br />

mais feliz de sua vida? “Quando entreguei uma flor às irmãs<br />

no aniversário de 50 anos do carmelo São José.” A<br />

roupa da festa foi feita sob medida. Naquele dia, foi um<br />

pouco carmelita. Sonho de criança ou chamado verdadeiro?<br />

O silêncio é a resposta.<br />

Passeando pela casa, irmã Melânia entra em um cômodo.<br />

Ajoelha e fecha os olhos. Quando estes se abrem, sussurra,<br />

como se fosse contar um importante segredo. “Você<br />

veio para entender a cultura do silêncio.” Aponta para o<br />

sacrário, onde, para os cristãos, está o corpo de Jesus, motivo<br />

pelo qual abdicam, para sempre, da vida fora dali. “Ele<br />

é o eco do nosso silêncio.”<br />

Volta e meia um carro buzina, a campainha ou o telefone<br />

tocam. O alarme dispara. Um cachorro late. Fora isso,<br />

qualquer passo no assoalho parece a denúncia de uma<br />

grande travessura.<br />

Segundo Ana Maria, a guardiã, o passatempo preferido<br />

de Maria de Jesus, a poeta, é contemplar a lareira acesa.<br />

“Ela diz que é Jesus.” Há alguns anos, ela recebeu a visita<br />

de uma velha amiga, que lhe trouxe um doce de banana,<br />

seu preferido. Era um presente do antigo noivo. “Ele mora<br />

em Porto Alegre [RS] e pelo que soubemos nunca se casou”,<br />

diz a guardiã. Enclausurou-se como a amada.<br />

O que a poeta escreveu em seu diário naquele dia de<br />

despedida, só o Amado sabe. Eu procurava revelações na<br />

clausura e descobri a poeta, tão alheia ao mundo que se<br />

trancou fora de si mesma. Procurei resquícios de sua vida,<br />

mas só encontrei o diário, escondido em uma caixa, quase<br />

esquecido. O caderno fechado imita a vida enclausurada<br />

de Maria de Jesus. A guardiã o folheia e decide sussurrar a<br />

última frase que a poeta nele anotou: “Adeus, até o céu...”.<br />

O resto é silêncio.

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