hiStóRia cOMPaRaDa DOS SiSteMaS BancáRiO e De cRéDitO
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A economia monetária desenvolveu as instituições bancárias, já esboçadas<br />
na época clássica grega. Em muitas cidades, sobretudo nas ilhas do Egeu,<br />
na Ásia Menor e no Egipto, existiam bancos públicos e privados que rece-<br />
biam depósitos, geralmente em mercadorias, e no Egipto sobretudo em<br />
produtos naturais como os cereais. Alguns serviam de «bancos de Estado»,<br />
como o Ptolomaico, de Alexandria. A sua missão era sobretudo a de pagar<br />
a armazenagem dos cereais e distribuir os empréstimos de semente por<br />
conta do Palácio. O sistema de contabilidade aperfeiçoou-se; a introdução<br />
de normas escritas para se dispor dos depósitos implica um progresso em<br />
relação aos métodos gregos do século IV, que os procediam por ordens<br />
verbais. Os bancos privados, radicados em Alexandria e Bizâncio, eram, ao<br />
que parece, gregos e praticavam tanto o depósito como a transferência e o<br />
empréstimo de dinheiro, mas o crédito em grande escala só se manifestava<br />
no comércio marítimo.<br />
HISTÓRIA COMPARADA <strong>DOS</strong> SISTEMAS BANCÁRIO E DE CRÉDITO<br />
História Comparada<br />
<strong>DOS</strong> SISTEMAS BANCÁRIO<br />
E DE CRÉDITO<br />
António Ramos dos Santos<br />
Pedro Gomes Barbosa<br />
Maria Leonor García da Cruz<br />
Carlos Alberto Damas<br />
Coordenação de<br />
ANTÓNIO RAMOS <strong>DOS</strong> SANTOS
HISTÓRIA COMPARADA <strong>DOS</strong> SISTEMAS<br />
BANCÁRIO E DE CRÉDITO<br />
ANTÓNIO RAMOS <strong>DOS</strong> SANTOS<br />
PEDRO GOMES BARBOSA<br />
MARIA LEONOR GARCÍA DA CRUZ<br />
CARLOS ALBERTO DAMAS<br />
Coordenação de<br />
ANTÓNIO RAMOS <strong>DOS</strong> SANTOS
Ficha técnica<br />
TíTulo<br />
história comparada dos sistemas bancário e de crédito<br />
AuTorES<br />
antónio Ramos dos Santos<br />
Pedro Gomes Barbosa<br />
Maria Leonor García da cruz<br />
carlos alberto Damas<br />
CoorDENAÇÃo<br />
antónio Ramos dos Santos<br />
DATA<br />
novembro de 2008<br />
CoNCEPÇÃo GrÁFICA<br />
clássica – artes Gráficas · Porto<br />
ImPrESSÃo<br />
clássica – artes Gráficas · Porto<br />
DEPoSITo lEGAl<br />
000 000/08<br />
ISBN<br />
978-00000-000-0<br />
FINANCIAmENTo:<br />
Programa Operacional ciência, tecnologia<br />
e inovação do Quadro comunitário de apoio iii
5 APRESENTAçãO<br />
11 O SISTEMA DE CRÉDITO E AS ACTIVIDADES FINANCEIRAS NA<br />
BABILÓNIA RECENTE<br />
antónio Ramos dos Santos*<br />
45 UM CASO DE EMPRÉSTIMO E USURA EM PORTUGAL<br />
Pedro Gomes Barbosa*<br />
ÍNDICE<br />
57 «JUSTOS» NEGÓCIOS E POLÍTICA ECONÓMICA NO PORTUGAL MODERNO<br />
Maria Leonor García da cruz*<br />
89 O BANCO ESPÍRITO SANTO E A COMPETITIVIDADE BANCÁRIA<br />
NOS ANOS 60<br />
carlos alberto Damas*
APRESENTAçãO<br />
A economia monetária desenvolveu as instituições bancárias, já esboçadas na<br />
época clássica grega. Em muitas cidades, sobretudo nas ilhas do Egeu, na Ásia Menor<br />
e no Egipto, existiam bancos públicos e privados que recebiam depósitos, geralmente<br />
em mercadorias, e no Egipto sobretudo em produtos naturais como os cereais. Alguns<br />
serviam de «bancos de Estado», como o Ptolomaico, de Alexandria. A sua missão<br />
era sobretudo a de pagar a armazenagem dos cereais e distribuir os empréstimos<br />
de semente por conta do Palácio. O sistema de contabilidade aperfeiçoou-se; a<br />
introdução de normas escritas para se dispor dos depósitos implica um progresso em<br />
relação aos métodos gregos do século IV, que os procediam por ordens verbais. Os<br />
bancos privados, radicados em Alexandria e Bizâncio, eram, ao que parece, gregos e<br />
praticavam tanto o depósito como a transferência e o empréstimo de dinheiro, mas<br />
o crédito em grande escala só se manifestava no comércio marítimo.<br />
À parte do facto de o transporte de espécies monetárias ser arriscado e difícil, a<br />
insuficiência de moeda metálica, a partir de meados do século XII da nossa Era, não<br />
permitia manter um comércio diversificado e em expansão. A flexibilidade comercial<br />
e o recurso ao crédito foram os motivos da instauração de novos instrumentos de<br />
pagamento.<br />
A organização bancária dos Florentinos, no século XV, baseada no sistema<br />
de companhias autónomas, comum na Toscânia do último terço do século XIV,<br />
outorgou-lhes a supremacia europeia por quase um século.<br />
O comércio medieval baseou-se no crédito. Os flamengos utilizavam como<br />
instrumentos creditícios a letra de câmbio e na mesma época, os Italianos utilizavam<br />
um instrumento que foi embrião da letra de câmbio, o denominado instrumentum ex<br />
causa cambii, documento notarial em que se reconhecia o recebimento de uma dada<br />
quantia. No primeiro quartel do século XIV a actividade bancária descentraliza-se<br />
instalando-se em várias praças. O contrato de câmbio autonomiza-se da carta notarial<br />
e generaliza-se a lettera di pagamento.<br />
A banca nasceu mais do câmbio da moeda do que do crédito. Os banqueiros,<br />
no âmbito local, durante o século XIV, tinham conseguido acumular as funções<br />
bancárias: aceitavam depósitos, efectuavam pagamentos mediante transferências<br />
para outros bancos, e sacavam dinheiro sobre outras praças.
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
Os bancos mais desenvolvidos foram os chamados banchi di scritta venezianos,<br />
durante o século XV. A firma medieval mais importante foi a dos Medicis florentinos,<br />
e o primeiro banco público conhecido foi a Taula de Cambis, de Barcelona,<br />
inaugurada em 1401.<br />
Durante a segunda metade do século XVII as goldsmith’s notes eram autênticas<br />
notas ao portador. Como meios de pagamento tradicionais, ao mesmo tempo que<br />
como instrumentos de crédito, continuaram a circular, em proporção crescente, as<br />
cédulas ou letras obrigatórias e as letras de câmbio.<br />
No sentido estrito do termo, não existiram bancos durante o século XVI senão<br />
em Espanha e em algumas cidades italianas.<br />
Já em fins do século XVI o desaparecimento da banca privada, incapaz de<br />
suprir as necessidades de crédito, suscitou o desenvolvimento da banca pública,<br />
primeiro sob a forma municipal característica da Baixa Idade Média e depois, no<br />
século XVII, sob a forma estatal.<br />
Esta, efectuava as operações de depósitos, transferência e emissão, e veio também<br />
a assumir o controlo da circulação monetária, convertendo-se em banca central.<br />
Paralelamente, o cambista derivará para a banca privada de emissão.<br />
Os bancos privados (cambistas), existentes já na Idade Média, têm origem<br />
naqueles profissionais que realizavam o câmbio de moeda e a compra dos lingotes<br />
de metais preciosos para o abastecimento das casas da moeda. Alguns foram<br />
simplesmente cambistas; outros recebiam também depósitos e foram chamados na<br />
Itália banchieri e na Espanha bancos.<br />
Em 1565 estabeleceu-se o London Royal Exchange e em 1609 o Amsterdamsche<br />
Wisselbank. As casas bancárias acompanharam os centros de comércio e nos finais<br />
do século XVII, os maiores centros eram os portos de Amesterdão, Londres e<br />
Hamburgo.<br />
Durante o século XVI, criaram-se os bancos públicos. Estes eram bancos<br />
municipais sustentados pelas cidades, que os controlavam através de funcionários<br />
seus, eram caixas públicas de depósitos e transferências, e acudiam às necessidades<br />
financeiras do município. No século XVII esta velha instituição passou aos países<br />
do Norte, adequadamente rejuvenescida. O primeiro a estabelecer-se foi, em 1609,<br />
o wisselbank ou Banco de Transferências de Amesterdão. Ligado às suas operações<br />
nasceram também o Girobank de Hamburgo em 1619, e o de Estocolmo, em<br />
1656.
ApresentAção<br />
Estes bancos públicos em breve se orientaram para o controlo da circulação<br />
monetária, fornecendo de metais as casas da moeda e retirando as espécies<br />
desvalorizadas.<br />
O Banco de Inglaterra fundado em 1694 introduziu o uso de um papel especial<br />
com uma matriz (check) como garantia contra a fraude, nascia desse modo o verdadeiro<br />
cheque actual. A sua importância foi todavia muito restrita no século XVIII, tendo<br />
um papel, que grangeou prestígio, nas crises de 1720 e 1754. Em França o banco<br />
central constituía-se em 1716 - Banque Générale.<br />
Durante o século XVIII difundiram-se pela Europa os bancos estatais: na<br />
Dinamarca (1736), Áustria (1756), Prússia (1765), Rússia (1769). Na América do<br />
Norte, o primeiro banco estadual foi o de Massachusetts, em 1740.<br />
A importância da nota como instrumento monetário acentua-se em começos do<br />
século XIX na Europa e América. A partir de 1848, graças ao controlo dos bancos<br />
centrais sobre a circulação fiduciária, a nota deixa de estar apenas ligada ao grande<br />
comércio penetrando outras actividades económicas.<br />
O cheque à ordem ou as obrigações de pagamento (inland bills) descontaram-se<br />
para efeitos puramente comerciais até 1776. O warrant foi introduzido em meados<br />
do século XIX para permitir obter um empréstimo sobre mercadorias que não fossem<br />
objecto de uma transacção diferindo deste modo do cheque à ordem.<br />
O crédito a curto prazo era regulado pelos bancos particulares. Entre estes<br />
destaca-se uma elite, os denominados merchant bankers e haute banque em França<br />
que se especializaram nos grandes negócios financeiros, como a subscrição de<br />
empréstimos públicos e as concessões ferroviárias. Os mais poderosos durante a<br />
primeira metade do século XIX, foram os Rothschild. A firma Rothschild manteve<br />
uma organização estritamente familiar, e os seus membros praticavam o casamento<br />
endogâmico para manter e aumentar o controlo dos negócios.<br />
Função mais modesta, mas não menos importante no seu âmbito, tinham<br />
os bancos provinciais - County Banks - que se difundiram nos finais do século<br />
XVIII em Inglaterra. Estes bancos nasceram com o desenvolvimento económico e<br />
estavam ao serviço dos interesses da indústria e do comércio; raramente praticavam<br />
o empréstimo propriamente dito. A sua especialidade era o desconto de letras. Estes<br />
redescontavam os efeitos comerciais noutros bancos especializados nesta operação,<br />
os chamados Bill Brockers, vizinhos de Lombard Street, na City londrina.<br />
No Continente, e em particular em França, estes bancos provinciais ou locais<br />
foram raros. A nova banca de depósito e desconto surgiu na Escócia, onde, sob a<br />
forma de sociedade por acções, a lei permitia a sua continuação. Na Inglaterra as leis<br />
7
8<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
de 1697, 1708 e 1742 tinham proibido a actividade bancária a sociedades de mais de<br />
seis pessoas, com a intenção de não atenuar a responsabilidade pessoal. Este tipo de<br />
banca escocesa, formada por poucos sócios, mostrou-se muito eficiente na prática<br />
de encobrir a crise de liquidez devido à maior colecta de capitais.<br />
O banco de depósito ou comercial estendeu-se ao Continente nos anos 50 do<br />
século XIX. Em França, o primeiro foi a Société de Crédit Industriel et Commercial,<br />
fundado em 1859. Mais audaz na sua política foi o Crédit Lyonnais estabelecido em<br />
1863. Baseados no modelo desta entidade bancária fundaram-se estabelecimentos de<br />
crédito noutros países como a Banca de Credito Italiano (1860), Algemeene Maatschppij<br />
voor Handel en Nijverheid (1860) em Amesterdão.<br />
Com o avanço do capitalismo financeiro, a banca adquiriu uma importância<br />
decisiva na vida moderna. A sua função consistia em canalizar a poupança para<br />
os investimentos activos e permitir que o homem de negócios, graças ao crédito,<br />
fundasse, ampliasse ou melhorasse a sua empresa.<br />
No último quartel do século XIX distinguem-se claramente dois tipos de bancos:<br />
os de depósitos e desconto ou comerciais e os de negócios ou de investimento. Os<br />
primeiros limitavam-se a operações ordinárias enquanto que, os bancos de negócio<br />
tinham por fim a criação ou expansão de sociedades industriais ou comerciais,<br />
mediante o investimento directo de capitais, a subscrição de bónus estatais, acções<br />
e obrigações industriais ou especulações financeiras de ordem internacional.<br />
<strong>De</strong> salientar que a organização bancária alemã teve características peculiares<br />
pois não existia especialização bancária e os bancos privados transformaram-se<br />
desde cedo em bancos com forma de sociedades anónimas, como a Bleichroder de<br />
Berlim. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos da América, a estrutura<br />
bancária diferia profundamente da europeia. Existia uma grande descentralização<br />
e consequentemente um elevado número de entidades bancárias. Os national banks<br />
remontam a 1863, sendo os mais poderosos, o National City Bank of New York e<br />
o Chasse National Bank.<br />
Nos finais do século XIX e inícios do século XX emergiu um verdadeiro mercado<br />
financeiro no qual Nova Iorque se destacava como centro mundial.<br />
Não se pode abordar o tema desta obra sem assumirmos que estamos perante<br />
uma variante da disciplina que é a história económica, isto é, o estudo dos fenómenos<br />
económicos que se desenvolveram no passado. Carlo Cipolla referiu que o historiador<br />
económico tinha de incluir na sua análise desde as instituições jurídicas até às variações<br />
climáticas de longa duração (Introduzione allo Studio della Storia Economica,1988).<br />
Apesar de muito ligada aos métodos históricos e estatísticos, por vezes, para testar as
ApresentAção<br />
teorias económicas, os seus tópicos alargam-se pela história empresarial, a demografia<br />
histórica e a história do trabalho. Assim, também a história bancária surgiu intimamente<br />
ligada à história do dinheiro pois logo que os pagamentos monetários se tornaram<br />
importantes, passou a existir a preocupação de guardar em segurança o dinheiro de<br />
cada um. À medida que o comércio cresceu, os mercadores procuraram modos de<br />
terem dinheiro à sua disposição para financiarem as suas expedições comerciais. É<br />
sempre arriscado tentar datar um começo para a actividade bancária. Autores como<br />
Raymond Bogaert pretenderam situar o início da banca de depósito na Mesopotâmia<br />
(Les origines antiques da la banque de dépôt. Une mise au point accompagnée d’une<br />
esquisse des opérations de banque en Mésopotamie, 1966).<br />
Na Grécia e Roma antigas existem algumas evidências de transacções financeiras<br />
como os empréstimos e outras operações como a emissão de notas de crédito. Mas<br />
foi o comércio medieval que contribuiu para o crescimento da actividade bancária<br />
através das letras de feira e letras de câmbio que possibilitavam a transferência de largas<br />
somas de dinheiro. E apesar das objecções morais da Igreja a esse tipo de actividade<br />
foram, curiosamente, os banqueiros papais (mercatores vel scambiatores papae) os<br />
mais bem sucedidos no mundo ocidental. A organização dos cambistas e banqueiros<br />
acompanhou o aparecimento de importantes famílias como a de Guillaume Ruyelle<br />
ou os Acciaiuoli, Peruzzi, Bardi e Alberti.<br />
A importante ligação entre Finança e Poder Real possibilitou a formação<br />
de um Império patente na obra de referência de Ramón Carande (Carlos V y sus<br />
banqueros. La Hacienda Real de Castilla, 1949), e a transformação do comércio e<br />
as suas implicações está patente na obra de Joseph e Frances Gies (Merchants and<br />
Moneymen. The Commercial Revolution, 1000-1500, 1972). Também a historiografia<br />
portuguesa se preocupou com as suas principais instituições bancárias e de crédito,<br />
de que salientamos os trabalhos de Jorge Borges de Macedo (Elementos para a história<br />
bancária de Portugal (1797-1820), 1963), António Dias Farinha (O Primeiro Banco<br />
em Portugal (1465),1992), António Marques de Almeida (Banca em Portugal, 2005),<br />
Jaime Reis (Portuguese Banking 1821-1980’s, 1994), Nuno Valério, em co-autoria<br />
com Ana Bela Nunes e Carlos Bastien, (Caixa Económica Montepio Geral 150<br />
anos de história 1844-1994, 1994) e em co-autoria com Eugénia Mata (O Banco<br />
de Portugal, único banco emissor 1891-1931, 1982), Pedro Lains (História da Caixa<br />
Geral de <strong>De</strong>pósitos 1876-1910. Política e finanças no Liberalismo Português, 2002 e<br />
História da Caixa Geral de <strong>De</strong>pósito. Política, Finanças e Economia na República e<br />
no Estado Novo 1910-1974, 2008 ) Carlos Alberto Damas e Augusto de Ataíde (O<br />
Banco Espírito Santo. Uma dinastia financeira portuguesa 1869-1973, 2004).<br />
9
10<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
O presente volume é composto por quatro textos que cobrem áreas cronológicas<br />
diversas tentando percorrer problemáticas que explicitam em cada época o sistema<br />
bancário e as actividades prestamistas.<br />
O Sistema de Crédito e as Actividades Financeiras na Babilónia Recente, apresentado<br />
por António Ramos dos Santos, leva-nos para uma realidade distante e, por vezes,<br />
esquecida da Mesopotâmia antiga. Analisando as actividades de uma família, a dos<br />
descendentes de Nūr-Sîn, de Babilónia, na Época Recente, o texto apresenta-nos<br />
um quadro que fornece não só as tipologias dos documentos relativos às actividades<br />
ditas «financeiras», mas também nos introduz no mundo dos termos jurídicos que<br />
respeitam às diversas situações específicas dos actos prestamistas.<br />
Um Caso de Empréstimo e Usura em Portugal, de Pedro Gomes Barbosa da<br />
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa corresponde a uma tentativa de<br />
conhecimento dos mecanismos de circulação financeira no Portugal medievo.<br />
Precisando os conceitos de empréstimo e usura, o texto esquematiza as suas redes<br />
peninsulares de judeus e muçulmanos, e salienta outras redes financeiras instaladas<br />
em Portugal como as que estavam relacionadas com a Ordem do Templo e a Ordem<br />
de Cister.<br />
«Justos» Negócios e Política Económica no Portugal Moderno, de Maria Leonor<br />
García da Cruz da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa apresenta-se, como<br />
um texto que pretende observar uma realidade em evolução entre os séculos XV e<br />
XVIII, criando novas coesões políticas e uma nova ordem internacional e permitindo<br />
o desenvolvimento das técnicas financeiras em relação directa com a evolução<br />
monetária, com o pagamento de operações com a transferência de fundos.<br />
O Banco Espírito Santo e a Competitividade Bancária na Década de 60, de Carlos<br />
Alberto Damas, do Centro de Estudos da História do BES, coloca-nos perante as<br />
incertezas do pós-guerra e a sequência de eventos que desde a década de 50 conduziram<br />
a um reposicionamento da importância das várias instituições bancárias nacionais<br />
e à consequente expansão do Banco Espírito Santo, que no decorrer do exercício de<br />
1970 detinha o primeiro lugar no ranking bancário português.<br />
A terminar esta breve apresentação, impõe-se um agradecimento ao executivo<br />
do Centro de História da Universidade de Lisboa, sob a direcção do Professor Doutor<br />
António Ventura.<br />
António Ramos dos Santos<br />
Lisboa, <strong>De</strong>zembro de 2008
O SISTEMA DE CRÉDITO E AS<br />
ACTIVIDADES FINANCEIRAS NA<br />
BABILÓNIA RECENTE<br />
António Ramos dos Santos 1 *<br />
No decurso das suas actividades, os entrepreneurs babilónicos dos períodos<br />
mais recentes utilizavam frequentemente o crédito como base das suas transacções<br />
e mesmo como uma verdadeira actividade de tipo financeiro.<br />
Este género de actividade é patente na documentação essencialmente através<br />
das notas promissórias e dos recibos. Alguns textos de reconhecimentos de dívida<br />
apenas descrevem o produto e a quantidade em dívida, o credor e o devedor 2 , outros<br />
são mais complexos e fornecem-nos dados acerca do pagamento de uma quantia<br />
adicional 3 ou de juro, embora estes sejam minoritários nos arquivos 4 . Alguns<br />
documentos fornecem dados relativos às garantias reais 5 e garantias mútuas, como<br />
era o caso em que uma dívida era debitada a um grupo de indivíduos, ficando<br />
cada um dos devedores de providenciar a garantia para o pagamento 6 . E embora<br />
os recibos também possam expressar o pagamento de dívidas 7 , estes são menos<br />
interessantes para a análise das actividades financeiras.<br />
1 * Professor Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador do Centro de História da<br />
Universidade de Lisboa e do Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.<br />
2 Cf. Ev.M, Nbn. 153 e Cyr. 27.<br />
3 Cf. Cyr. 141.<br />
4 Cf. Nbn. 443, TuM 2/3, 55 e TuM 2/3, 122.<br />
5 Cf. Nbn. 301, Nbn. 345 TuM 2/3, 116.<br />
6 Cf. Ner. 66.<br />
7 Cf. BE VIII, 126, NBC 8335 e NBC 8339.
12<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
Transferências<br />
Reconhecimentos de dívida<br />
3<br />
Reclamações<br />
Recibos<br />
1<br />
Pagamentos 44<br />
Obrigações 10<br />
Missiva empréstimos 1<br />
Liquidações 4<br />
Libertações 4<br />
Indicação de não pagamento<br />
recibo "imittu"<br />
1<br />
Garantias 20<br />
Empréstimos 9<br />
Cobranças 11<br />
Distribuição de documentos relativos às Actividades<br />
Financeiras<br />
440<br />
0 100 200 300 400 500 600 700 800 900<br />
Nº de Menções<br />
O aparecimento de reconhecimentos de dívida é ilustrado desde pequenos<br />
arquivos 8 como na documentação referente às grandes famílias: Ea-ilūta-bāni,<br />
Nūr-Sîn, Egibi e Murašū. O empréstimo tomou um papel relevante 9 . O crédito<br />
poderia ser efectuado em prata ou em géneros naturais, como as tâmaras. Os<br />
empréstimos efectuavam-se, ao que nos parece, aos colaboradores próximos do<br />
credor e mesmo a membros da sua família. Por vezes, entre os primeiros contavamse<br />
os seus escravos encarregues de alguma actividade, particularmente no campo<br />
agrícola. Poderiam efectuar-se esses empréstimos para efeitos de apoio ao cultivo<br />
nos casos dos créditos para a compra de alfaias agrícolas e de sementes, e por vezes<br />
para assegurar a colheita. Mas também se efectuavam para efeitos de consumo<br />
pessoal. Os produtos mais referenciados nas promissórias eram os metais preciosos,<br />
as tâmaras, os cereais e os terrenos.<br />
8 Com as famílias de Epeš-ili, Bēl-ittanu e Nabû-ušallim.<br />
9 Num conjunto de 2847 textos, os reconhecimentos de dívida têm a maior percentagem, 38,54%, com 678 textos. Os<br />
recibos possuem 18,99%, com 334 textos, representando as actividades financeiras 61,57% da totalidade das actividades<br />
representadas.<br />
822
utensílios<br />
tâmaras<br />
serviço real<br />
recipientes<br />
rações<br />
produtos de panificação<br />
produtos alimentares<br />
produtos agrícolas<br />
prebendas<br />
pessoal de trabalho<br />
metais preciosos<br />
metais<br />
materiais têxteis<br />
materiais de construção<br />
impostos e rendas<br />
gado bovino<br />
animais de trabalho<br />
estruturas de panificação<br />
casas<br />
campos<br />
barco<br />
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
Distribuição de produtos nos documentos de tipo<br />
financeiro<br />
0 100 200 300 400 500 600 700 800<br />
Nº de Menções<br />
Estes documentos obedeciam a uma tipologia própria 10 . Vejamos por exemplo<br />
o caso de TuM 2/3, 75 e Nbn.443, tidos, respectivamente, como um contrato de<br />
empréstimo e um reconhecimento de dívida.<br />
TuM 2/3, 75 − «2 kurru, 1 pānu de cevada, capital de Nabū-šum-iškun, filho<br />
de [Puhhuru], descendente de Ilūta-bāni, estão a cargo de /.../, filho de Liblut,<br />
descendente de Ša-pī-kalbi. No mês Ayaru, ele dá-los-á (com) 1 pānu de cevada<br />
por kurru como juro. Ele não cultivará outro terreno; se ele cultiva a terra arável<br />
num outro terreno /.../ a (?) Nabû-]šum-iškun ele pagará completamente.<br />
Testemunhas. 2- Tešritu-Nbk 15 (590 a.C.)»<br />
1. descrição do produto e respectiva quantidade.<br />
2. menção do prestamista/credor.<br />
3. menção do recebedor/devedor.<br />
4. cláusula do juro - «x panu de produto por kurru de terreno».<br />
5. testemunhas.<br />
6. localização e data.<br />
10 Ver António Ramos dos SANTOS, «Operações económicas e tipologia documental no período neobabilónico» em<br />
CADMO, nº 11, 2001, pp. 65-81 e «A tipologia dos documentos económicos da Época Recente e os seus antecedentes<br />
paleobabilónicos», António Ramos dos SANTOS em Presença de Victor Jabouille, Faculdade de Letras, Universidade<br />
de Lisboa, 2003, pp.113-124.<br />
13
14<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
Nbn. 443 − «1,2 minas de prata, pertencentes a Itti-Marduk-balātu, filho<br />
de Nabû-ahhē-iddin, descendente de Egibi, foram debitadas a Nabû-zēra-ukkin,<br />
descendente de Nabû-iddin, descendente de Ašlāku. 1 siclo de prata por mina<br />
será provido por ele mensalmente (como juro) 11 . O seu escravo Nabû-te-ka-ida’<br />
serve de garantia.<br />
Testemunhas. Escriba. Data 12 .» 13<br />
Testemunhas. Escriba. Data.<br />
1. menção da quantidade do produto.<br />
2. menção do credor, PN1.<br />
3. menção do devedor, PN2.<br />
4. cláusula de juro.<br />
5. cláusula de garantia real (opcional)<br />
6. Testemunhas.<br />
7. localização e data.<br />
Caracterização do acto de empréstimo<br />
Muitos textos do espólio documental recente revelam o papel importante<br />
do crédito na vida económica da Época Neobabilónia. Existiam várias formas de<br />
contrato mas o reconhecimento de dívida tornou-se, por excelência, no documento<br />
portador do crédito. Naquela época as duas formas contratuais coexistiam, mas o<br />
reconhecimento de dívida ultrapassou pela eficácia o contrato ina pāni 14 .<br />
O reconhecimento de dívida era mais do que um contrato verídico, o acto<br />
formal, o resultado que era visto no documento corrente, não é incluído no procedimento<br />
do documento contratual 15 . No contexto de utilização neobabilónico, o<br />
11 Os locais de pagamento são, em regra, incluídos apenas nos actos referentes a dívidas de produtos naturais, raramente<br />
nos relativos a dívidas de prata.<br />
12 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 546 a. C.<br />
13 Cf. Laurence Brian SHIFF, The Nūr-Sîn Archive: Private Entrepreneurship in Babylon (603-507 B.C.), dissert. University<br />
of Pennsylvania, Ann Harbor: UMI, 1987, p. 426.<br />
14 Cf. Raymond BOGAERT, Les origines de la banque de dèpôt ( Une mise au point accompagnée d’une esquisse des opérations<br />
de banque en Mésopotamie), Leiden: A. W. Siythoff, 1966, p. 122: «En dehors de la clause principale et essentielle qui<br />
constate l’existence d’une obligation, les reconnaissances de dette comportent souvent des clauses accidentalles comme<br />
la stipulation d’un intérêt, initial ou moratoire, la constitution d’un gage ou d’une caution, la fixation de l’échéance,<br />
le lieu de la prestation du débiteur.»<br />
15 No caso do reconhecimento de dívida, o credor detinha a tabuinha e todos os duplicados até ao reembolso estar efectuado;<br />
nessa altura as tabuinhas eram devolvidas como recibos ao vendedor. Ver Leo Oppenheim, Ancient Mesopotamia,<br />
Chicago: The University Press, 1964, p. 282.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
reconhecimento de dívida implicava, simultaneamente, o reconhecimento de uma<br />
obrigação por parte do devedor, assim como uma situação de crédito estabelecida<br />
em nome do credor.<br />
Um documento designado por contrato positivo, era aquele em que o conjunto<br />
das evidências era reduzido a escrito e ligava a parte que o subscreveu à sua<br />
substância, apesar de não ser expressa uma deliberação para o efeito. Este tipo<br />
de contrato pode também ser considerado idêntico ao contrato consensual, no<br />
qual apenas o consentimento das partes contratantes, mais do que os outros actos<br />
externos, era necessário para o estabelecimento da obrigação contratual.<br />
Este tipo de contrato foi utilizado exclusivamente para as transacções de<br />
relação de dívida no período neobabilónico.<br />
A nível empírico, variados graus de controlo, posse e propriedade existem<br />
de facto em muitos acordos jurídicos babilónicos, que parecem ter perdurado<br />
n Época Neobabilónia em instituições legais como o penhor, os alugueres e as<br />
sociedades harrānu 16 .<br />
Considerando o propósito do contrato de empréstimo, que era o registo do<br />
acto de endividamento, assim como o de transferência das mercadorias emprestadas<br />
e a sua propriedade, o reconhecimento de dívida apenas reconhecia a existência<br />
do estado de endividamento 17 .<br />
O empréstimo era um contrato real que exigia para a sua formação a entrega<br />
de uma certa quantidade de coisas cuja propriedade era transferida ao que pedia<br />
emprestado. Não era necessário que as coisas passassem directamente das mãos<br />
do emprestador para as daquele que pedia emprestado; este podia receber também<br />
«das mãos de um terceiro».<br />
O empréstimo que designamos por empréstimo de consumo, para o distinguir<br />
do empréstimo de uso, foi bastante utilizado no período neobabilónico.<br />
16 Cf. George BOYER, «Nature et formation de la vente dans l’ancien droit babylonien» em Mélanges d’Histoire du Droit<br />
Oriental, Paris: Sirey, 1965, p. 79: «Le droit babylonien use largement de purs contrats, ayant pour but exclusif la<br />
création d’obligations comme le louage, parce que cet effet est la seule conséquence possible de l’opération qu’il s’agit<br />
de sanctionner. Mais des practiciens comme l’étaient les juristes babyloniens ne pouvaient perdre de vue que, dans la<br />
vente comme dans l’échange, la création d’obligations n’est qu’un phénomène accessoire dont l’absence n’altère pas<br />
les traits essentiels de l’opération économique.»<br />
17 Anteriormente, a maior parte das convenções era fixada num acto - contrato real - que constava que o devedor recebera<br />
(subanti) ou tinha à disposição (ina pāni) a prata do credor. Existem ainda reconhecimentos de dívida abstractos (u’iltu)<br />
que por escrito fixam simplesmente a existência de uma obrigação entre as partes: o objecto da dívida, a propriedade<br />
do credor, e o devido pelo devedor (ina muhhi). A causa da dívida, o acto jurídico que está na base da obrigação, é<br />
ignorado no u’iltu este tornou-se num verdadeiro contrato positivo.<br />
15
1<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
Os Caldeus praticavam o crédito para o consumo (para aprovisionamento, a<br />
título de ajuda), o crédito para a exploração (para ter, por exemplo, os ceifeiros, para<br />
entregar a colheita), o crédito à produção (para rentabilizar as terras incultas).<br />
O empréstimo era consentido por um prazo bastante curto, que normalmente<br />
não ultrapassava, para os alimentos, a época da colheita; para os tijolos a altura em<br />
que eram fabricados. Os empréstimos de prata eram frequentemente reembolsáveis<br />
na colheita, o que se concebe bem num país agrícola. O empréstimo para comprar<br />
as provisões necessárias para uma viagem era reembolsável no final da viagem.<br />
A responsabilidade do devedor, estabelecida num empréstimo real através<br />
da aquisição das mercadorias emprestadas, estava presente no reconhecimento<br />
de dívida apenas como obrigação já existente, como era expressa na cláusula ina<br />
muhhi. O débito especificado nesta cláusula era considerado separado de uma<br />
obrigação anterior onerada ao devedor numa cláusula indocumentada.<br />
Não era feita menção de entrega, transferência, ou recibo nesta categoria de<br />
contrato positivo. Consequentemente, os reconhecimentos de dívida neobabilónicos<br />
não especificam a causa da dívida.<br />
Se o processo de endividamento não era parte integral nos u’iltu neobabilónicos<br />
no processo negociador, a sua fonte era dada ao conhecimento através dos<br />
comentários do escriba ou das partes contratantes. Em muitos casos, o próprio<br />
texto era intercalado complementarmente com referências que contribuíam para<br />
a identificação do objecto em débito.<br />
Uma excepção ao carácter positivo do u’iltu era a denominação do reconhecimento<br />
ina pāni. Aparentemente um contrato legítimo e genuíno, ele substituía a<br />
declaração de dívida ina muhhi por ina pāni, a qual indicava um acto de colocação<br />
do objecto da dívida à disposição do devedor. Este documento, todavia, era<br />
apenas superficialmente real, visto que todas as referências eram apenas relativas<br />
a acções passadas, as quais não eram incluídas ou dadas a conhecer no texto. A<br />
característica da natureza abstracta e consensual do u’iltu neobabilónico era, por<br />
essa razão, conservada.<br />
Para todos os efeitos práticos, então, os reconhecimentos de dívida ina<br />
pāni podiam ser considerados idênticos funcionalmente à sua contraparte ina<br />
muhhi 18 .<br />
Tal como as suas antecedentes, a terminologia legal neobabilónica não<br />
continha uma designação genérica para «empréstimos». É no reconhecimento de<br />
18 Ver Hugo LANZ, Die neubabylonischen harrânu − Geschäftsunternehmen, Berlim: J. Schweitzer Verlag, 1976, pp. 8-<br />
9.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
dívida, assim como nos recibos, que se podem obter informações em relação às<br />
transacções de entrega e venda creditícias no período neobabilónico.<br />
Porque a venda a crédito neobabilónica 19 aparece usualmente intitulada como<br />
reconhecimento de dívida ou recibo, a sua presença é facilmente discernível. A sua<br />
característica distintiva era a inserção do termo «preço de compra» na declaração<br />
de dívida 20 . Enquanto instrumento predominante relativamente às dívidas, o<br />
reconhecimento de dívida (u’iltu) era utilizado exclusivamente para todas as<br />
transacções de crédito de bens fungíveis 21 .<br />
O comprador, no papel de devedor, já recebera a mercadoria e prometia<br />
entregar num prazo futuro a prata que deveria ter sido imediatamente oferecida<br />
em pagamento como preço de compra. Ocasionalmente, a nota de crédito-venda<br />
podia também registar acordos para o pagamento estabelecido do preço de compra<br />
do objecto.<br />
A compensação para a vontade expressa do credor-vendedor em aceitar um<br />
reembolso adiado poderia, por vezes, custar bastante ao devedor-comprador.<br />
Quando não encontramos evidência de uma imposição de juro, era provável, ao<br />
depararmos com um preço relativo à compra que fosse anormalmente alto, que<br />
este indicasse a remuneração do credor-vendedor.<br />
O juro em geral não era mencionado nos documentos relativos ao créditovenda<br />
e era, de facto, explicitamente proibido, quando a prata devida era designada<br />
como sendo «no seu capital em dívida».<br />
É portanto concebível que as designações sem juro eram colocadas em muitos<br />
reconhecimentos de dívida como notificação de que o respectivo credor-vendedor<br />
já tinha efectuado acordos para receber um preço mais alto do que o normal<br />
em restituição de reembolsos em atraso. <strong>De</strong>ntro dos limites da estrutura dos<br />
19 Cf. George BOYER, o.c., p. 81: «L’interprétation de la vente babylonienne comme un contrat réel est, nous l’avons<br />
vu, généralment adoptée pour les ventes à crédit ou a livrer portant sur des biens fongibles.»<br />
20 Uma das disparidades entre os contratos de venda e os reconhecimentos de dívida era o grau de importância que era<br />
colocado nos documentos em relação às várias obrigações e encargos. Os primeiros eram sempre válidos e provavam a<br />
propriedade e proviam protecção contra futuras reivindicações e litígios. Os segundos, contudo, eram válidos apenas<br />
pelo período de endividamento, durante o qual era detido pelo credor. Logo que o devedor reembolsasse a dívida, o<br />
documento era destruído ou dado ao devedor como recibo.<br />
21 A venda não tinha em princípio um carácter contratual, pois ela não dava lugar a uma obrigação senão em dois casos,<br />
a venda a crédito e a venda com entrega. No primeiro caso, a recepção da mercadoria obrigava o comprador a pagar o<br />
preço no termo fixado. No segundo caso, o vendedor que recebera antecipadamente o preço era obrigado a entregar a<br />
mercadoria na data convencionada. Diferentemente da venda, a troca supunha sempre uma transmissão recíproca feita<br />
de comum acordo entre as partes. Estes actos de venda conservavam-se muitas vezes no seio das famílias, referiam-se a<br />
títulos de propriedade relativos a terras, casas ou escravos adquiridos com prata. Na troca as coisas trocadas poderiam ser<br />
também da mesma natureza (campo, casa, escravo) ou de espécie diferente (jardim, parte do cargo do templo). A troca<br />
implicava uma dupla transferência de propriedade; redigiam-se, por isso, dois actos para cada um dos interessados.<br />
17
18<br />
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reconhecimentos de dívida e como um ajustamento de uma simples quantia, era,<br />
então, rotulado de «sem juro». Nestas circunstâncias, futuros encargos de juros ao<br />
devedor-comprador eram proibidos. O credor-comprador de qualquer modo estava<br />
impedido de tentar impor um segundo encargo de juro, mas não de aumentar,<br />
durante as negociações preliminares, o preço inicial a um nível lucrativo.<br />
Apenas os contratos de crédito-venda e entrega-venda provêm do único meio<br />
documental pelo qual mercadorias fungíveis eram trocadas por prata na Época<br />
Neobabilónia. Tomam a forma de reconhecimentos de dívida e recibos e nunca<br />
de verdadeiros empréstimos.<br />
Nestes acordos, o credor-comprador já tinha efectuado um pré-pagamento,<br />
isto é, emprestado o preço das mercadorias ao devedor-vendedor, e consentido uma<br />
demora na sua transferência. A quantia na cláusula de débito do reconhecimento<br />
de dívida resultante era especificada por parcelas no meio de troca nomeado pelo<br />
credor, usualmente a prata, ocasionalmente produtos naturais, enquanto a promessa<br />
de reembolso respeitava à futura entrega de mercadorias compradas.<br />
Contrariamente, os reconhecimentos de dívida das vendas-crédito e das<br />
vendas-entrega raramente eram denominados, e o termo «preço de compra» não era<br />
mencionado em relação à aguardada entrega de mercadorias. Consequentemente,<br />
esses acordos eram reconhecíveis apenas através de um exame cuidadoso da natureza<br />
das transacções reflectidas em certos reconhecimentos de dívida.<br />
Por seu turno, a vontade do credor-comprador em aceitar um retardamento<br />
na entrega tinha, frequentemente, o objectivo de assegurar uma quantidade de<br />
mercadorias maior do que a normalmente esperada pelo preço indicado. Com<br />
efeito, ele pagava um preço de compra mais baixo. Este processo de compensação<br />
era frequentemente baseado em cálculos especulativos envolvendo os preços<br />
diferenciais entre as épocas de sementeira e da colheita.<br />
No exemplo documento datado do reinado de Nabónido 22 , uma entrega<br />
de tâmaras que fosse esperada pelo credor-comprador na data da colheita no<br />
mês de Arahsamnu, colocava-o na posição de tirar partido da diferença entre o<br />
valor das tâmaras na época da redacção do contrato, no mês de Du’uzu, o último<br />
mês da época da apanha das tâmaras e a data de entrega. <strong>De</strong>vido à abundância<br />
de tâmaras durante o mês de Arahsamnu, o preço era extremamente baixo e o<br />
22 Cf. Nbn. 344/Liv. 95.
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credor-comprador era, portanto, capaz de receber mais tâmaras por siclo do que<br />
teria recebido na época do acordo original 23 .<br />
Este tipo de reconhecimento de dívida serve para confirmar a quantidade de<br />
produtos naturais esperada, da aprovação das tâmaras entregues e das situações e<br />
do estabelecimento de garantias implícitas contra pagamentos de juro adicionais<br />
pelo devedor-vendedor.<br />
A noção de que pagamentos compensatórios de juros podiam ser incluídos<br />
nas declarações dos reconhecimentos de dívida é essencial para compreender o<br />
porquê de o credor se comprometer numa transacção sem juro que não continha<br />
alguma manifesta indicação de provento. No sistema económico neobabilónico, a<br />
preocupação pelos interesses do credor era sempre uma prioridade, e era frequentemente<br />
evidente em sanções usadas como apreensão ou penhores, pagamentos por<br />
negligência, e penalidades de juro impostas sobre títulos de reembolso vencidos e<br />
não pagos. É improvável que o credor aceitasse adiantamentos do pagamento ou<br />
da entrega sem receber algum tipo de compensação. Não é razoável assumir que<br />
a protecção de «livre de juro» não seria oferecida a um devedor que não tivesse já<br />
assumido num acordo que reembolsaria convenientemente a potencial perda do<br />
credor. Consequentemente, «livre de juro» não significa necessariamente «livre de<br />
proventos/ lucros».<br />
No pagamento, a expressão «na medida de» quer dizer que a quantidade era<br />
calculada segundo a medida estalão conservada em algum lugar privado ou do<br />
23 As épocas da plantação e colheita apresentam variações nos preços dos produtos. Um preço mais alto seria esperado<br />
para um produto como a cevada durante a época da sua sementeira. Ver Waldo H. Dubberstein, «Comparative Prices<br />
in Later Babylonia 625-400 BC» em AJSL, vol. LVI, 1939, pp. 26-27. Durante a maior parte da Época Neobabilónia,<br />
1 siclo de prata comprava 11 kurru de cevada. Apesar de haver exemplos em que as tâmaras custavam menos do que a<br />
cevada, e 1 siclo de prata comprar ligeiramente mais do que 1 kurru de tâmaras, o preço médio de 1 kurru de tâmaras<br />
durante este período flutuava, geralmente, à volta de 1 siclo. Ver ibid., pp. 25-26. Apesar disso, o alho que era colhido<br />
entre os meses de Nisanu e Simanu desempenhou um papel extremamente importante em várias transacções comerciais,<br />
sendo o seu valor equivalente em prata difícil de prever. Na ocasião em que o alho era trocado pela quantia definitiva<br />
de prata, esta era descrita como sendo de inferior qualidade, Ver TEBR, p. 264. O assunto é mais complicado devido<br />
à não existência de um sistema-padrão de medida para o alho: feixes (pitu) e cordões (gidlu) eram os valores relativos<br />
que são conhecidos. Ver Waldo H. DUBBERSTEIN, o. c., p. 27. Todavia, o pitu não parece ser uma unidade de<br />
medida maior do que o gidlu. Ver Joachim OELSNER, «Die neu-und spätbabylonische Zeit», em Alfonso Archi (ed.),<br />
Circulation of Goods in Non-Palatial Context in the Ancient Near East, Roma: Edizioni dell’Ateneo, 1984, p. 233, n. 40.<br />
A kasiya, uma planta de especiaria, possuía a sua época de colheita nos meses de Ululu a Arahsamnu. O seu preço variou<br />
de cerca de 216 qû por siclo de prata nos inícios da Época Neobabilónia até 90-120 qû por siclo durante os últimos<br />
reinados do período aqueménida. Ver <strong>De</strong>nise Cocquerillat, «Palmerais et Cultures de l’Eanna d’Uruk (559-520)», em<br />
Ausgrabungen der <strong>De</strong>utschen Forschungsgemeinschaft in Uruk Warka, Band .8, Berlim: Gebr. Mann Verlag, 1968, pp.<br />
29-30. O sésamo, era semeado nos meses de Nisanu e Ayaru e a sua colheita era efectuada no mês de Tesritu. Valia<br />
cerca de 8-12 siclos de prata por kurru. Ver ibid., p. 28 e Waldo H. DUBBERSTEIN, o.c., pp. 27-28.<br />
19
20<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
palácio ou templo. Esta cláusula tinha o objectivo de prevenir o erro ou a fraude<br />
na formação ou na execução do contrato.<br />
O investidor privado, sem ligações ao templo ou ao palácio, e motivado pelo<br />
desejo de ganho pecuniário ou até de estatuto, não se empenhava numa especulação<br />
comercial sem alguma expectativa de lucro.<br />
A existência de uma possível pluralidade de pessoas que pediam um empréstimo<br />
era devida ao facto de este ser por vezes consentido a várias pessoas. Estas<br />
tinham, por norma, um interesse comum que indicava umas vezes as suas relações<br />
de parentesco ou de aliança, outras vezes o motivo do empréstimo, assim como<br />
as duas causas juntas. O interesse comum aparece melhor ainda quando vários<br />
associados emprestavam por um acto do seu comércio: o empréstimo colectivo<br />
podia ter por objectivo reforçar o crédito do principal interessado.<br />
Em caso de empréstimo colectivo, o credor apenas podia pedir a cada um<br />
dos co-devedores uma parte da dívida, aquela que estava fixada no contrato.<br />
Excepcionalmente, o credor tinha direito a pedir a qualquer um dos co-devedores a<br />
totalidade da dívida, de modo que o pagamento feito por um libertasse o outro.<br />
Quanto ao modo de pagamento podem-se encontrar cláusulas relativas ao<br />
modo de proceder. Quando se estipulava que a prata entregue como pagamento seria<br />
«justa e exacta», significativa que era pura de qualquer liga e de peso combinado.<br />
No caso de produtos como o trigo, podia especificar-se que este seria entregue<br />
«justo e integral», querendo dizer que ninguém contestaria a dívida.<br />
O credor podia autorizar o devedor a pagar em duas vezes sob uma cláusula<br />
penal: se a primeira conta não fosse paga, o devedor deveria 1 siclo de prata; se a<br />
segunda prestação não fosse paga, o devedor perderia o benefício do pagamento já<br />
efectuado, ele deveria pagar a totalidade da dívida. Quando um indivíduo que pediu<br />
emprestado já estivesse obrigado para com o prestamista, era necessário lembrar<br />
no acto contratual o crédito anterior, para que não existisse alguma dúvida acerca<br />
da vontade das partes de o manter e não efectuar uma renovação de contrato.<br />
Quando se registava uma falta de pagamento no prazo fixo, aquele que pedia<br />
emprestado e que pagava a sua dívida devia exigir um recibo perante testemunhas.<br />
Por falta de pagamento, ele expunha-se à servidão por dívida. Face a um devedor<br />
negligente e não solvente, pediam-se juros de compensação. O que pediu emprestado,<br />
se possuísse um palmeiral, podia oferecer ao credor como pagamento as<br />
tâmaras do seu campo. Esta oferta era suficiente para excluir a pena de prisão. O<br />
credor que aceitasse o direito à totalidade da colheita veria esse direito substituir<br />
o capital e os juros.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
O chamado empréstimo gratuito ou de favor/complacência era um serviço<br />
de amigo. Mas poderia ser acompanhado de um empréstimo com juros. Os<br />
empréstimos efectuados na época da colheita aplicavam-se a um indivíduo que<br />
não possuía meio de subsistência e que solicitava um empréstimo ao prestamista:<br />
eram os empréstimos de consumo. É o mesmo que acontece para os empréstimos<br />
feitos após as sementeiras.<br />
Por vezes, o aluguer de terras podia tratar-se de uma venda a crédito, na qual o<br />
vendedor, em lugar de transferir a propriedade do campo, entregava-o ao comprador<br />
a título de aluguer, estipulando um aluguer em géneros, equivalente ao juro do<br />
capital ficticiamente emprestado. Esta combinação tinha uma tripla vantagem para<br />
ele como senhorio. Ele teria anualmente, em produtos naturais, o juro do preço<br />
combinado; protegia a propriedade e, consequentemente, possuía uma garantia<br />
real de tal modo que não recebia o preço de compra, e, como prestamista, tinha<br />
um meio de coacção contra o comprador que não cumprisse o contrato.<br />
Outro tipo de aluguer era o de mão-de-obra, que tinha lugar quando uma<br />
pessoa emprestava, por exemplo, sésamo para ter uma certa quantidade de óleo,<br />
ou de trigo para ter farinha. Aquele que pediu emprestado encarrega-se de prensar<br />
o sésamo para lhe extrair o óleo ou de moer o trigo para obter a farinha. Ao<br />
utilizar a forma do empréstimo, o proprietário do sésamo ou do trigo geria um<br />
meio de coacção contra o prensador de óleo ou o moleiro que negligenciasse a<br />
entrega do óleo ou da farinha na época combinada. Por outro lado, o empréstimo<br />
era gratuito, porque o prestamista economizava o preço do fabrico do óleo ou da<br />
trituração do trigo.<br />
Mas a aplicação mais frequente da combinação do aluguer e do empréstimo<br />
era no aluguer de serviços, quando alguém o utilizava em vez de mão-de-obra<br />
permanente, por exemplo, o aluguer de ceifeiros. O lucro do prestamista consistiria<br />
aqui em assegurar os serviços de trabalhos que lhe eram indispensáveis numa época<br />
em que este tipo de mão-de-obra era bastante procurada.<br />
Este empréstimo apresenta-se de dois modos. O proprietário podia contratar<br />
a mão-de-obra individualmente ou com um chefe de equipa.<br />
No primeiro caso, o proprietário adiantava a cada operário, a título de<br />
empréstimo, uma soma de prata que seria compensada com uma parte do salário<br />
que ele ganharia ao trabalhar como ceifeiro. No segundo caso, o chefe da equipa<br />
recebia do proprietário uma pequena soma de prata que constituía a remuneração<br />
antecipada do trabalho que ele teria para reunir e levar os ceifeiros.<br />
21
22<br />
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Os contratos terminavam com a fórmula «no dia de reembolsar x pagará y<br />
de juro. Trabalhará na colheita durante z período de tempo». Esta cláusula estava<br />
agregada a um contrato de empréstimo a juro. A limitação da taxa de juro tinha<br />
um efeito de exclusão. Não se podia acumular duas vantagens. Tinha de se escolher.<br />
Doravante, o empréstimo, aos ceifeiros seria gratuito; a promessa de ir trabalhar na<br />
ceifa constituía um benefício suficiente, logo que ela fosse executada. O trabalho<br />
era livre, não existia razão para supor que o trabalhador prometia serviços que<br />
representavam um valor superior ao montante da dívida.<br />
Outro facto importante quanto à aplicação do empréstimo era que se podia<br />
efectuar um adiantamento a um intermediário encarregado de procurar ao mandante<br />
certas mercadorias. Esta combinação do empréstimo e do mandato dava<br />
ao mandante um meio de coacção contra o mandatário que guardasse o dinheiro<br />
sem executar o mandato: a servidão por dívidas.<br />
Caracterização da caução<br />
Na Época Neobabilónia, o que caracterizava as operações de crédito era o<br />
emprego mais frequente das garantias pessoais e reais 24 .<br />
A cláusula de garantia aparecia também, de forma regular, nas formulações<br />
contratuais de vendas de bens móveis como uma protecção oferecida pelo vendedor<br />
contra a apreensão ilegal ou a reclamação da propriedade comprada.<br />
No caso das operações de crédito, eram colocados como penhor (maškānu)<br />
todo o tipo de bens: os campos, as casas, o gado, os escravos, as prebendas dos<br />
templos, e mesmo os filhos e outros membros da família do devedor 25 . Também,<br />
mas de forma menos frequente, a totalidade dos bens do devedor poderia garantir<br />
uma caução.<br />
As garantias recíprocas, quando um devedor ou um familiar servia como<br />
garante de outro interveniente, eram uma forma mais simples de garantia real.<br />
Mas o penhor neobabilónico não se tornava imediata e automaticamente<br />
propriedade do credor. Somente quando o facto era especificado anteriormente,<br />
24 Ver Raymond WESTBROOK, Richard JASNOW (ed.), Security for <strong>De</strong>bt in Ancient Near Eastern Law, Leiden: Brill,<br />
2001.<br />
25 <strong>De</strong> acordo com Dandamayev, nesta época, o credor não podia prender um devedor insolvente ou vendê-lo a terceiros.<br />
A prática de caucionar um indivíduo livre desaparecera e não existe informação acerca do direito do marido penhorar<br />
a sua esposa. Cf. Muhammad A. Dandamayev, Slavery in Babylonia, <strong>De</strong> Kalb, Northern Illinois University Press, 1984,<br />
pp. 177-178.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
isto é, tal transferência poderia ocorrer apenas quando uma disposição específica<br />
era inserida no acordo original de penhora.<br />
Apesar de o credor ter o direito de tomar em custódia a propriedade penhorada,<br />
a posse física não constituía a parte essencial do procedimento de penhora, e a<br />
caução, geralmente imóvel, podia permanecer na posse do devedor.<br />
Podemos distinguir dois tipos de segurança de reembolso, aquela em que a<br />
propriedade era declarada como garantia do empréstimo com ou sem direito de<br />
posse da propriedade pelo credor, e a garantia dada em termos de antícrese, isto é,<br />
o credor recebe o direito a usar a garantia como uma propriedade para a obtenção<br />
de rendimentos. Este tipo de garantia era bastante divulgado neste período. O<br />
rendimento obtido poderia servir para pagar os juros da dívida 26 .<br />
A combinação de vários tipos de penhores, ou de penhores e garantias, podia<br />
significar a existência de um certo grau de menor confiança da parte do credor na<br />
capacidade do devedor para reembolsar a sua dívida.<br />
Quando estavam em causa grandes dívidas de prata, nem a responsabilidade<br />
pessoal do devedor ou a garantia de terceiros eram suficientes ou válidas para o<br />
credor. Este último podia, por isso, pedir uma garantia real como protecção contra<br />
a possível perda do seu investimento. A utilização intensiva da hipoteca, do penhor,<br />
da caução e de outras figuras jurídicas análogas, estava relacionada com o desenvolvimento<br />
do crédito no sistema económico, durante a Época Neobabilónia.<br />
Em caso de falta de pagamento, o credor possuía recursos legais limitados 27 .<br />
Podia indirectamente pressionar o devedor-empenhador a acordar a cedência da<br />
posse da propriedade penhorada. Este tipo de privação de direitos, contudo, não<br />
era legalmente uma venda compulsória, visto que o consentimento do devedorempenhador<br />
era, não obstante, exigido. A transferência legal deveria, ainda,<br />
ser acompanhada do acordo voluntário do devedor-empenhador para alienar<br />
formalmente, através de um contrato de venda, o objecto penhorado ao credor.<br />
Esta cooperação do devedor era necessária, ainda que ele não tivesse a prata para<br />
o pagamento.<br />
Por seu turno, o credor não tinha o direito de usar o penhor em antícrese<br />
como propriedade que afectasse rendimentos.<br />
Se contudo, não existisse um acordo para a privação de direitos no documento<br />
original de penhora, ou se o devedor-empenhador não consentisse a venda da caução<br />
26 Ver ibid., pp. 139-142.<br />
27 Um bom exemplo desta situação é o texto M. II, 53.<br />
23
24<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
e não subtraísse o todo ou a parte da sua importância da quantia em dívida, então<br />
o credor não possuía acesso legal automático à posse da totalidade do penhor.<br />
Este direito era concedido apenas através de uma decisão judicial, e apenas<br />
em relação à parte do penhor que cobria a quantia da dívida activa, que era, então,<br />
directamente devolvida ao credor.<br />
Mesmo quando o penhor era eventualmente transferido para o credor, persistia<br />
a possibilidade de o valor do objecto penhorado não cobrir a quantia em dívida.<br />
Nestas circunstâncias, o credor poderia apelar ao tribunal para um embargo da<br />
propriedade global do devedor-empenhador como compensação pela diferença<br />
de valor.<br />
No caso de as vias legais terem sido diligenciadas e esgotadas, tudo o que<br />
restava ao credor era a apreensão do próprio devedor-empenhador. Porém, mesmo<br />
aqui, as opções do credor eram limitadas. Ele podia, apenas com autorização judicial,<br />
fazer encarcerar o devedor numa casa de trabalho, onde este ou os membros da sua<br />
família, incluindo os seus escravos, podiam trabalhar para liquidar a sua dívida.<br />
Ao credor não era permitido, contudo, vender como escravos o devedorempenhador,<br />
a sua esposa ou, sem o seu consentimento, os seus filhos 28 .<br />
Quando o penhor era directamente detido e controlado pelo credor, o contrato<br />
resultante frequentemente proibia o devedor de penhorar novamente o bem a um<br />
segundo credor. Esta proibição era efectiva até que o primeiro credor tivesse sido<br />
totalmente reembolsado.<br />
A colocação em penhor, nestas circunstâncias, por parte do devedor poderia<br />
ter lugar apenas quando o objecto que constituía o penhor, o devedor e o credor<br />
fossem os mesmos das transacções anteriores. <strong>De</strong> outro modo, não existe exemplo<br />
no qual um objecto já penhorado fosse novamente alvo de uma penhora por<br />
parte do devedor a outro credor. Consequentemente, o resgate de um penhor era<br />
necessário antes que o bem pudesse ser penhorado a outro credor.<br />
Embora a penhora pelo devedor-empenhador a outra qualquer pessoa que não<br />
fosse o credor actual fosse proibida, o devedor não detinha a posse suficiente sobre<br />
o objecto penhorado para ser capaz de o alienar a uma terceira parte de tal modo<br />
que os direitos do credor detentor da penhora não fossem postos em risco.<br />
Por seu lado, o credor também tinha uma funcional, ainda que limitada, posse<br />
dos artigos penhorados. Enquanto ele não podia vender o penhor a uma terceira<br />
parte, era-lhe permitido comprometer-se com ele em penhores secundários, isto<br />
28 Ver Muhammad A. DANDAMAYEV, o. c., pp. 159-180.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
é, ele podia penhorá-lo em nome das suas próprias dívidas a outro credor. Nestas<br />
circunstâncias, assim que o devedor-empenhador original reembolsasse a sua dívida<br />
ao primeiro credor, o último satisfazia as obrigações ao seu próprio credor, o qual<br />
em troca devolvia o penhor ao empenhador inicial.<br />
Se ele possuísse uma licença do devedor no acordo original de penhora, era<br />
frequentemente concedido ao credor o direito de obter um uso anticrético ou<br />
usufrutuário do penhor, normalmente escravos ou casas, em vez de onerar com<br />
juros a dívida. Segundo esse acordo, no qual não era estabelecido um tempo limite<br />
para o reembolso, o credor podia utilizar a propriedade do penhor até que a dívida<br />
estivesse totalmente reembolsada.<br />
Como regra, um tal acordo anticrético, respeitante a uma casa ou a várias<br />
casas, removia as obrigações do credor a pagar salários ou rendas. Além do mais,<br />
o devedor estava isento de qualquer pagamento de juros 29 .<br />
Em alguns casos, aparece no final do contrato um juramento em nome dos<br />
deuses, em regra Marduk e Šamaš. Na maioria dos reconhecimentos de dívida<br />
era o devedor que pronunciava o juramento, mas existem casos em que o próprio<br />
credor declarava aceitar o que lhe era devido, a cláusula era uma garantia que<br />
reiterava o direito do credor à reivindicação.<br />
Mas o juramento raramente aparece na Época Neobabilónia, porque ele não<br />
institui qualquer nova responsabilidade ou consequência legal no caso de não<br />
cumprimento; o seu propósito seria mais religioso ou persuasivo do que legal 30 .<br />
A caução mútua era explicitada através de uma cláusula que se encontrava,<br />
frequentemente, nos contratos onde existiam vários devedores a qual, se encontrava<br />
também no caso de pluralidade de cauções. O acto contratual declarava que os<br />
co-devedores ou que as cauções eram garantias um de outro.<br />
Em princípio, os co-devedores eram tidos para com o credor comum cada um<br />
pela sua parte, eram co-devedores conjuntos. Quanto às cauções, a sua obrigação<br />
variava consoante os casos, ela era subsidiária. A caução era uma garantia contra<br />
a insolvência do devedor e a cláusula de garantia recíproca tinha por objectivo<br />
facilitar a pronta execução da obrigação.<br />
29 Apesar da sua utilização comum nos textos neobabilónicos, os reconhecimentos de dívida com requisitos anticréticos<br />
formais não existem, nos reconhecimentos de dívida com penhor num arquivo como o de Nūr-Sîn, contrariamente<br />
aos arquivos de outras famílias, como é o caso dos Egibi. Cf. ibid., pp. 138-156.<br />
30 Contemplado pela expressão sum DN sulû - «to take an oath». Cf. CAD, E, p. 135. Ver elû - «12. To take an oath».<br />
Ver Sophie Lafont (ed.) Jurer et maudire: pratiques politiques et usages juridiques du serment dans le Proche-Orient ancien,<br />
Paris: L’Harmattan, 1996.<br />
25
2<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
A noção de solidariedade entre os co-devedores tinha como traço comum o<br />
facto do direito reconhecido ao credor de pedir a um dos co-devedores o pagamento<br />
integral. A garantia contra a insolvência, que era uma função acessória da<br />
solidariedade, tornou-se na função principal como na caução. Na Mesopotâmia<br />
representava para o credor o meio de se fazer pagar sem retardamento, quando<br />
um dos seus devedores estivesse presente, isto é, residisse perto dele.<br />
Na Época Neobabilónica, os credores tinham a preocupação de se acautelarem<br />
contra o atraso do pagamento da dívida devido à distância de um ou de vários<br />
credores.<br />
A caução mútua conferia-lhes o direito de pedir o pagamento integral ao<br />
devedor que lhe estivesse mais perto, para se garantir contra o risco de insolvência<br />
de um dos devedores no prazo fixado. Todavia, pode-se ainda inferir que esta<br />
forma visava mais o pagamento da dívida por parte do devedor solvente do que a<br />
definição de proximidade como factor decisivo para determinar o pagador.<br />
Quanto ao objecto do penhor, denominado o penhor comum, era usado<br />
para assegurar o pagamento a curto prazo de uma grande dívida, e quando o<br />
devedor não podia oferecer um penhor especial de um valor suficiente. O penhor<br />
era geralmente um modo de satisfação tanto do capital como dos juros.<br />
Quando o objecto dado como penhor era de um valor insuficiente para<br />
assegurar ao credor uma satisfação completa tanto do seu capital como dos juros,<br />
o devedor poderia hipotecar subsidiariamente todos os seus bens «na cidade e na<br />
zona rural».<br />
Quando o penhor não era um modo de satisfação somente para os juros, o<br />
credor cuidava, em geral, de assegurar o pagamento rápido do capital, exigindo o<br />
penhor mútuo dos devedores; ele podia também precaver-se contra a sua insolvência,<br />
exigindo uma caução.<br />
A caução mútua dos co-devedores para o pagamento do capital era frequentemente<br />
mencionada. A caução era uma medida para a obtenção do reembolso<br />
dos adiantamentos, fazendo valer as garantias acordadas ao credor 31 .<br />
A tomada de posse era também adiada no caso da caução comum, e encontrava-se<br />
subordinada à falta de pagamento e ao prazo fixo. Neste caso, o direito<br />
31 1 - O penhor era convencional ou judicial, em função de ser instituído por contrato ou em virtude de um julgamento.<br />
O penhor convencional era ordinariamente constituído pelo devedor, ou por um terceiro; 2 - O penhor judicial provinha<br />
da faculdade dos tribunais em atribuir uma garantia real ao credor que tivesse feito reconhecer o seu direito em<br />
tribunal.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
de caução do credor nascia desde o dia do contrato: o devedor não podia trazer<br />
dano, concedendo um direito análogo a um outro credor.<br />
A entrega do penhor expressava-se por «a partir de x o bem y estará à disposição<br />
de A (o credor)». O suplemento de garantia expressava-se por expressões como «o<br />
escravo do devedor, é um penhor geral sobre todos os bens de A (o devedor)».<br />
O credor afiançado tinha um direito de retenção e usufruto que subsistia até<br />
ao pagamento total. A maioria dos contratos de penhor possuía a cláusula «outro<br />
credor não poderá dispor do objecto dado em penhor, enquanto o credor actual<br />
não tiver sido pago na totalidade».<br />
Por seu turno, a cláusula de garantia contra a retracção tinha por objectivo<br />
impedir os membros da família de retomarem o imóvel alienado através do<br />
reembolso do preço de compra. Esta cláusula utilizava-se normalmente no período<br />
neobabilónico.<br />
Finalmente, a denominada cláusula de evicção 32 tinha por objectivo proteger<br />
o comprador da coisa de outrem contra a reivindicação do proprietário ou de quem<br />
de direito, ou contra uma simples pretensão à propriedade, pretensão que podia<br />
ser manifestada pela penhora da coisa.<br />
O valor dos juros<br />
O problema da duração do empréstimo é bastante importante, pois está na<br />
base do cálculo do que podemos denominar de taxa de juro 33 .<br />
O juro é uma expressão essencial da actividade financeira, todavia os contratos<br />
que mencionam sem ambiguidade, e expressamente, o facto são reduzidos, tendo<br />
em conta que os reconhecimentos de dívida são os documentos existentes em<br />
maior número.<br />
Em relação ao fenómeno do juro e do cálculo da sua importância não se<br />
tem conseguido um grande progresso na fiabilidade dos dados, porquanto eles<br />
são interpretados como sendo anuais, o que nem sempre é claro. Neste aspecto,<br />
não podemos deixar de salientar a posição de Marc van de Mieroop ao chamar a<br />
atenção para a dificuldade da questão e, segundo ele, para o erro frequentemente<br />
32 A evicção era um acto judicial pelo qual uma pessoa reivindicava uma coisa que lhe pertencia e fora alheada a outrem<br />
por quem o não podia fazer.<br />
33 Talvez o termo mais correcto fosse benefício, porquanto o conceito de juro é demasiado moderno.<br />
27
28<br />
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cometido pelos assiriólogos ao efectuarem analogias com as práticas actuais nessa<br />
matéria 34 .<br />
Encontramos nos diversos arquivos do período recente alguns valores<br />
exemplificativos das quantidades de riqueza entregues como pagamento de juros.<br />
No arquivo de Nūr-Sîn, as operações de Iddin-Marduk, a prata entregue como<br />
juro era de 1 siclo por mina mensal, o que daria um juro de 20%. No arquivo<br />
de Egibi encontramos a mesma relação nas operações de Itti-Marduk-balatu e de<br />
Marduk-nasir-apli. Mas em outros dois casos provenientes do arquivo da família<br />
Egibi, Nbk. 111, um reconhecimento de dívida da época de Šula 35 , pagaram-se<br />
as quantias de 8 siclos e 15 siclos à taxa de 13,3%. No texto Nbn. 44, um recibo<br />
proveniente da época de Nabû-ahhê-iddin 36 , pagaram as quantias de 5 minas e 1<br />
mina de prata à taxa de juro de 12 e 1/3 %.<br />
Uma série de outros exemplos podem ser dados tendo em conta fontes várias.<br />
Assim, em TuM 2/3,66, um texto datado do décimo sexto ano do reinado de<br />
Nabucodonosor pagou-se 1 panu por cada kurru de cevada. O mesmo se passou<br />
com um texto do décimo quinto ano do reinado de Nabucodonosor 37 .<br />
No texto L 1661, datado do terceiro ano do reinado de Nabónido, refere-se<br />
o pagamento de 1 mina e 12 siclos de prata anuais. Nos textos A 90 e A 91, pertencentes<br />
respectivamente aos trigésimo e trigésimo primeiro anos do reinado de<br />
Nabucodonosor indicam-se, respectivamente, os valores de 1 siclo e 1/8 de prata e<br />
de 12 siclos de prata anuais. E no texto A 152, no ano de acessão de Nabucodonosor,<br />
pagaram-se 6 siclos por mina de prata anuais, o que representa 10%.<br />
A relação percentual mais conhecida é a dos 20% de juro, tomando como<br />
unidade temporal o ano. Como, por exemplo, no texto Nbn.15 = Liv. 40, datado do<br />
34 Cf. Marc van de Mieroop, Society and Enterprise in Old Babylonian Ur, Berlim: Dietrich Reimer Verlag, 1992, p.<br />
205: «Scholars usually assume that the interest rates stated in the texts were annual, by analogy with the modern<br />
day practice. It seems to me to be difficult to maintain this position for several reasons. First of all, a year in ancient<br />
Mesopotamia did not have a standard length. Due to the use of the lunar calendar and its discrepancies with solar<br />
year, it was necessary to include an intercalary month periodically, thus creating years of thirteen months. Are we to<br />
assume that for those years the creditors obtained only the same amount on their investments as in a twelve month<br />
year? Secondly, the documents at our disposal never state explicitly that the interest rate is annual. The documents<br />
always state that at the time of repayment the debtor is obliged to pay the capital of the loan, plus an added amount<br />
for the interest. The standard terminology used in the texts was “x shekels per 60 shekels is to be added”, without any<br />
mention that such an amount was to be added only after a one year period time».<br />
35 Datado do décimo sétimo ano do reinado de Nabucodonosor e emitido em Babilónia.<br />
36 Emitido em Babilónia e datado do primeiro ano do reinado de Nabónido.<br />
37 Ver TuM 2/3,75. Cf. Francis JOANNÈS, Les Archives de Borsippa. La Famille Ea-Ilûta-Bâni, Genebra: Librairie Droz,<br />
1989, p. 110.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
ano de acessão do reinado de Nabónido 38 , no qual foram pagos 12 siclos de prata<br />
por mina anuais. M.I,19 trata-se de um documento do nono ano do reinado de<br />
Nabónido que menciona o pagamento de 24 siclos de prata pela aplicação de capital<br />
durante dois anos, de que resulta o pagamento de 12 siclos anuais se tomarmos<br />
em conta, e isso o texto não revela, a base de cálculo como sendo anual.<br />
Nos documentos Nbn. 800 39 e em BM 31 752 40 pagaram-se juros em prata à<br />
razão de 20%. Nos documentos BM 31 640 e BM 31 878 41 foi paga a quantia de<br />
1 mina de prata representando a taxa de 20%. No segundo texto essa quantidade<br />
de metal representava o preço de dois escravos.<br />
No texto ZA, 4, 147, um reconhecimento de dívida do reinado de<br />
Nabopolassar 42 pagaram-se 2 minas de prata equivalentes à taxa de 20% de juro.<br />
Mas no texto Nbk. 65, também um reconhecimento de dívida datado do oitavo<br />
ano do reinado de Nabucodonosor 43 , foram pagos 11 kurru de tâmaras e 8 kurru<br />
de cevada equivalentes a 40% de juro.<br />
O texto BM 77436, é um acto de quitação, datado do primeiro ano do<br />
reinado de Bardiya, emitido em Babilónia, no qual se pagavam 2 siclos de prata.<br />
O documento IM 65084/IA, é um reconhecimento de dívida do décimo oitavo<br />
ano do reinado de Nabopolassar, emitido em Uruk, que indica o pagamento de<br />
10 siclos de prata por cada mina, o que representa 16,6% de juro. IM 65084/ IB,<br />
é um texto que também é um reconhecimento de dívida, emitido em Uruk no<br />
vigésimo ano do reinado de Nabopolassar, no qual se pagou meia mina de prata<br />
de juro, numa relação de 10 siclos por mina.<br />
A relação da taxa de juro nesta série de documentos provenientes de Uruk 44<br />
é diversa. Assim, neste conjunto de reconhecimentos de dívida, temos:<br />
Texto Produto: prata Relação<br />
IM 65084/ID 45<br />
22 siclos 8 siclos por mina<br />
4 6<br />
IM 65084/IIF 15 siclos 1 siclo por mina<br />
IM 65084/IIG 47<br />
51 siclos 9 siclos por mina<br />
4 8<br />
IM 65084/IIi 5/6 mina 7 siclos por mina<br />
IM 65084/IIIL 49<br />
10 siclos 10 siclos por mina<br />
38 Emitido em Babilónia.<br />
39 Datado do décimo quarto ano do reinado de Nabónido e emitido em Babilónia.<br />
40 Ibidem.<br />
41 Ambos os documentos não possuem datação.<br />
42 Emitido em Uru NIGIN ti.<br />
43 Emitido em Babilónia.<br />
44 Ver K. Kessler, «Uruk. Urkunden aus Privathäusern. Die wohnhäuser westich des Eanna – Tempelbereichs», em AUWE<br />
8, Mainz am Rhein: Verlag Philipp von Zabern, 1991, pp. 129-191.<br />
29
30<br />
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5 0<br />
IM 65072<br />
M 65082 51<br />
0,5 siclos 10 siclos por mina<br />
1 mina 8 siclos por mina<br />
Em alguns textos, como A 172, um cálculo não identificável quanto à proveniência,<br />
indica-se para as quantias de 4 minas e 23 siclos e 4 minas e 46 siclos<br />
de prata o pagamento de 4 siclos de juro.<br />
Na série publicada por Moldenke encontramos tembém alguns exemplos<br />
nos seguintes documentos:<br />
Texto Produto: prata Razão<br />
M.I,1 52 1/3 de mina 2 siclos<br />
M.II, 53 3 minas 1 siclo<br />
M.II, 60 54 2/3 de mina e 5,5 siclos 1 mina/ano<br />
Outros textos indicam o pagamento do juro mais claramente como W<br />
20032,17 45 , um reconhecimento de dívida no qual se pagaram 1,5 e 8 siclos de<br />
prata, ao juro de 8 siclos por mina, o que segundo podemos apurar, representa<br />
uma taxa de 13,3%. W 200 32,18 46 , também um reconhecimento de dívida,<br />
foram pagos 16 siclos de prata e 6 siclos de prata por mina, o que representaria<br />
10% de juro na base anual. W 20032,20 47 , um reconhecimento de dívida no qual<br />
se pagaram 1 mina 10 siclos de prata com o juro mensal de 1 siclo de prata por<br />
mina. E em outra série:WHM 1654 48 , um reconhecimento de dívida do reinado<br />
de Nabónido em que se pagavam 50 kurru de cevada com o juro à razão de 1 pānu<br />
por cada kurru. WHM 1670 49 , um empréstimo com o estabelecimento de um<br />
penhor onde estavam em causa meia mina e 3 siclos de prata e cujo juro mensal<br />
foi de 1 siclo por mina.<br />
45 Emitido em Uruk no sexto ano do reinado de Nabopolassar.<br />
46 Datado do sétimo ano do reinado de Nabopolassar.<br />
47 Datado do primeiro ano do reinado de Nabucodonosor e emitido em Uruk.<br />
48 A data não é identificável mas o documento foi emitido em Hudada.<br />
49 Datado do nono ano do reinado de Nabucodonosor e emitido em Uruk, apontava a existência de um escravo na<br />
situação de garantia real da dívida.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
As operações prestamistas de Idin-Marduk, descendente de Nūr-<br />
Sîn (555-539 a. C.)<br />
Durante o reinado de Nabónido, as actividades da família de Nūr-Sîn,<br />
enquanto uma sofisticada empresa privada, envolveram-na activamente numa<br />
variedade de empreendimentos comerciais complexos e bastante proveitosos<br />
financeiramente.<br />
No centro da maioria dessas diligências estava Iddin-Marduk, dirigindo e<br />
coordenando todos os aspectos das operações negociais da família.<br />
Esta proeminente figura familiar, cerca do terceiro ano do reinado de<br />
Nabónido, iniciou uma gradual redução, mas não uma eliminação, da confiança da<br />
família sobre as transacções relacionadas com produtos naturais. Simultaneamente,<br />
antevendo lucros líquidos, mais garantidos, e talvez, mais altos, ele concentrou<br />
mais capital familiar em empréstimos em prata, de curta duração, isto é, a menos<br />
de um ano.<br />
Não mais interessado, como anteriormente tinha estado, nas transacções<br />
relativas à sociedade harrānu 50 , elaborou um plano futuro de consignatário de<br />
empréstimos de prata. Iddin-Marduk procurou nessas reivindicações sobre a<br />
prata uma retribuição mais garantida do seu capital, acrescida das taxações fixas<br />
de juros.<br />
Consequentemente, o empréstimo de prata tornou-se um crescente e atractivo<br />
veículo de investimento para Iddin-Marduk. O estilo e o formato dos seus<br />
contratos reflectem essa transição, tendo como exemplo oposto, a prática anterior,<br />
de não exigir as garantias do receptor do empréstimo para o reembolso, durante<br />
o financiamento da sociedade harrānu, que agora se encontrava excluída.<br />
Quando emitia reconhecimentos de dívida referentes a prata, ele reclamava,<br />
nesta época, várias cauções e garantias de terceiros da parte dos seus devedores.<br />
Reivindicações de pequenas porções de prata, normalmente em conjunção com<br />
outras de produtos, têm lugar nos textos deste arquivo, desde o início do reinado<br />
de Nabónido.<br />
Contudo, empréstimos de prata relativamente grandes não eram evidentes<br />
até ao início do segundo ano do reinado de Nabónido, no mês de Ayaru, quando<br />
Nabū-Kāsir, filho de Marduk-erība, garantia o pagamento de 2 minas de prata<br />
50 Cf. CAD, H, pp. 106-113. Ver harrānu - «(1) highway, road, path (2) trip, journey, travel, (3) business trip, (4) caravan,<br />
(5) business venture, (6) business capital, (7) military campaign, expedition, raid, (8) expeditionary force, army, (9)<br />
corvée work, (10) service unit, (11) times (math. term), (12) obscure mngs».<br />
31
32<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
a Iddin-Marduk, previamente devida pelo irmão de Nabū-Kāsir, denominado<br />
Rīmūt.<br />
Nbn. 63 / Liv. 54 − «Nabū-kāsir, filho de Marduk-erība, descendente de<br />
Sīn-ilī, fornece uma garantia a Iddin-Marduk, filho de Iqīša, descendente de<br />
Nūr-Sîn, para o pagamento de 2 minas de prata, que estavam oneradas a Rīmūt,<br />
filho de Marduk-erība, descendente de Sīn-ilī. Nabū-kāsir entregará a Rīmūt o<br />
recibo do pagamento das 2 minas de prata, que pertencem a Iddin-Marduk, (e)<br />
que estavam oneradas a Rīmūt do preço(?) o débito de Šamaš- /…/ eles entregarão<br />
a (nota de débito) pertencente à sociedade harrānu, (e) que está onerada a /…/. A<br />
retribuição das contas é estabelecida entre um e o outro.<br />
Testemunhas. Escriba, Data 51 .» 52<br />
Nos dois anos seguintes, assistiu-se a um aumento substancial nos adiantamentos<br />
de prata da família. Num texto publicado em Šahrīnu, uma mina<br />
de prata pertencente a Iddin-Marduk foi onerada a Nabū-apla-iddin, filho de<br />
Šuma-iddin, e a Ba’u-ētirat, filha de Šamaš-iddin. Os campos de palmeirais, que<br />
tinham sido penhorados numa ocasião anterior a Iddin-Marduk, foram, nesse<br />
momento, novamente caucionados a ele. Apesar de Iddin-Marduk esperar que o<br />
seu mandante fosse reembolsado em prata no mês de Tešritu, os 20% de juro que<br />
acompanhavam o pagamento seriam dados numa quantia equivalente de tâmaras<br />
à taxa anual de 1 pānu de tâmaras por cada siclo de prata em dívida.<br />
O texto não apresenta uma razão para o facto de ele preferir nesta altura as<br />
tâmaras à prata. Uma possível explicação para este acordo elaborado sob a patrocínio<br />
de Iddin-Marduk é a questão de a prata que era devida coincidir no tempo, o mês<br />
de Tešritu, com o facto de os oficiais da cidade calcularem o valor dos tributos<br />
e colectarem os normais impostos imittu 53 sobre a produção tamareira que ele<br />
detinha como caução 54 . Uma vez que os devedores poderiam em qualquer caso<br />
ter de estabelecer um acordo para o carregamento dessas tâmaras, Iddin-Marduk<br />
decidiu, evidentemente, também determinar, nessa época específica, um pagamento<br />
de juro em tâmaras em vez de prata.<br />
51 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 554 a. C.<br />
52 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 341.<br />
53 Cf. CAD, I/J, p. 123. Ver imittu B - «estimated yield of a garden or field, to be delivered to the owner - king, temple<br />
or private landholder - by the tenant».<br />
54 Ver Maria J. ELLIS, Agriculture and State in Ancient Mesopotamia, Philadelphia, Occasional Publications of the Babylonian<br />
Fund, I, 1976, p. 190.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
Nbn. 103 − «1 mina de prata, pertencente a Iddin-Marduk, filho de Iqīša,<br />
descendente de Nūr-Sîn, é onerada a Nabū-apla-iddin, filho de Šuma-iddin, e<br />
(onerada a) Ba’u-ētirat, filha de Šamaš-ipuš. Eles reembolsarão a prata e o seu<br />
juro 55 em Tešritu. O seu campo superior, adjacente ao (campo de) Šuma-ukīn,<br />
filho de Ša-Nabū-šū, e também o campo inferior que é adjacente à extremidade da<br />
casa do despenseiro, (e) terra (plantada) com tamareiras e (terra) que se encontra<br />
em restolho, (tudo o que) anteriormente servira como penhor a Iddin-Marduk.<br />
Outro credor não terá direito (ao penhor) até que Iddin-Marduk tenha recebido a<br />
prata e o seu juro na totalidade. Em Tešritu, (quando) eles (os oficiais da cidade)<br />
colectarem (um imposto-imittu) sobre elas!<br />
(cópia: ela) tamareiras, ele (Iddin-Marduk), tomará, segundo a taxa que<br />
prevalece em Šahrīnu, 1 pānu por siclo em vez do juro em prata. A prata é a que<br />
foi usada para a (compra) de equipamento dos soldados do rei de Babilónia 56 .<br />
Testemunhas. Escriba. Data 57 . >> 58<br />
A partir do ano de 553 a. C., encontramos outras reivindicações referentes a<br />
prata na documentação deste arquivo.<br />
No terceiro dia do mês de Simanu, o escravo Nabū-aha-rimanni, que também<br />
era um oficial aduaneiro 59 de Šubat-Gula, prometia pagar a Iddin-Marduk 1 mina<br />
e 2 siclos de prata no décimo dia do mês de Du’uzu.<br />
Nbn. 106 − «1 mina e 2 siclos de prata, pertencentes a Iddin-Marduk, filho<br />
de Iqīša, descendente de Nūr-Sîn, foram onerados 60 a Nabū-aha-rimanni, o oficial<br />
das alfândegas de Šubat-Gula, o escravo de Bēl- [X] . Ele reembolsará (a prata)<br />
no décimo dia de Tammuz 61 /… (quebrada)<br />
Testemunhas. Escriba. Data 62 . 63<br />
55 O termo hubullu significa que possui o pagamento do «juro». Por vezes aparece o termo hubuttatu que significa «sem<br />
juro». Eles constituem uma protecção para o devedor contra alguma despesa de juro suplementar na quantia que já<br />
inclui uma carga inicial suplementar ou de juro.<br />
56 Este parágrafo sugere a satisfação das obrigações devidas ao rei dentro de um quadro de um sistema de vassalagem.<br />
57 Emitido em Šahrīnu e datado do reinado de Nabónido, 553 a. C.<br />
58 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 353.<br />
59 Cf. AHw, p 451. Ver kāru(m) - «1 d) rab kari – kainspector». Cf. CAD, K, p. 239. Ver Karu A em rabi kari - «official<br />
in charge of a custom station; MA, SB, NA, NB».<br />
60 Os autores germânicos utilizam na classificação de documentos deste tipo o conceito de «zahlungsverpflichtung», ou<br />
seja, o compromisso de pagamento que explicita a noção de uma maior força jurídica. No contexto neobabilónico a<br />
promissória implica, simultaneamente, o reconhecimento de uma obrigação por parte do devedor e uma situação de<br />
crédito estabelecida a favor do credor.<br />
61 Trata-se do mês de Du’uzu.<br />
62 Emitido em Šubat-Gula e datado do reinado de Nabónido, 553 a. C.<br />
63 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 354.<br />
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<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
Mais tarde, uma dívida de 1 mina e 5 siclos foi onerada por Iddin-Marduk<br />
a Bēl-ibni, filho de Nabū-zēra-iddin, que reembolsaria a prata, sem juros, quatro<br />
meses depois. Nessa data, o devedor também efectuaria um pagamento suplementar<br />
de 2 pānu e 3 sūtu de cebolas, talvez no lugar do juro ausente.<br />
Durante o decurso do tempo ainda restante do reinado de Nabónido, os<br />
reconhecimentos de dívida de curto prazo em prata, que diziam respeito a quantias<br />
acima de 1 mina, eram emitidos numa taxa mais comum 64 .<br />
No mês de Šebatu do ano de 548 a. C., Iddin-Marduk levou a efeito uma<br />
das suas maiores reivindicações: 12 minas de prata foram oneradas a Šuma-iddin,<br />
filho de Zēriya, ao seu irmão Kidin-Marduk e Nergal-ubalitt, filho de Tābnēa.<br />
Visto que 20% de juro proveio do primeiro dia do mês, ou seja, seis dias antes,<br />
isso significa que, provavelmente, uma porção do crédito havia sido já concedida<br />
aos devedores, antes do documento ter sido, de facto, escrito.<br />
Como era próprio para uma dívida deste tamanho com múltiplos devedores,<br />
todos os indivíduos que pediram emprestado levaram a cabo, em conjunto, o<br />
estabelecimento de várias garantias, tendo as suas propriedades sido caucionadas<br />
a Iddin-Marduk.<br />
Liv. 2 − «12 minas de prata, pertencentes a Iddin-Marduk, filho de Iqīša,<br />
descendente de Nūr-Sîn, foram debitadas a Šuma-iddin, filho de Zēriya, descendente<br />
do sacerdote-šangû de Gula, (a) Nergal-uballit, filho de Tabnēa, descendente<br />
de /.../ e (a) Kidinnu, filho de Zēriya, descendente do sacerdote-šangû de Gula.<br />
1 siclo de prata por mina por mês será por eles provido (como juro) a partir do<br />
primeiro dia de Šebatu. [Cada um] providencia uma garantia para o outro. Toda<br />
a sua propriedade na cidade e na zona rural constitui o penhor a Iddin-Marduk.<br />
Outro credor não terá direito (à caução) até que Iddin-Marduk receba a sua (prata)<br />
na totalidade.<br />
Testemunhas. Escriba. Data 65 . 66<br />
Segundo Nbn. 1079, 35 siclos de prata eram devidos com juros por um<br />
indivíduo denominado Kiddin-Marduk a Iddin-Marduk.<br />
64 São vinte e dois os exemplos de reconhecimentos de dívida de curto prazo no arquivo de Nūr-Sîn. Ver Laurence Brian<br />
SHIFF, o. c., pp. 368-369, 372, 373, 374, 379, 382, 394, 395, 396, 397, 400, 401-402, 404, 406, 407, 432, 433,<br />
438, 452-453, 459, 482, 504-505. Outra monografia acerca deste arquivo é de autoria de Cornelia Wunsch. Ver<br />
Cornelia Wunsch, Die Urkunden des babylonischen Geschäftsmannes Iddin- Marduk. Zum Handel mit Naturalien im<br />
6.Jahrhundert v.Chr, (2 vols.), Groningen: Styx, 1993.<br />
65 Emitido em Babilónia no reinado de Nabónido, 547 a. C.<br />
66 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 403.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
<strong>De</strong> novo encontramos uma situação em que todas as propriedades do devedor<br />
estavam hipotecadas a Iddin-Marduk.<br />
Nbn. 1079 − «1/3 de mina e 5 siclos de prata, pertencentes a Iddin-Marduk,<br />
filho de Iqīša, descendente de Nūr-Sîn, foram debitados a Kiddin-Marduk,<br />
filho de Zēriya, descendente do (sacerdote-šangû 67 de Gula). Do primeiro dia de<br />
Arahsamnu do décimo quarto ano de Nabónido, rei de Babilónia, 1 siclo de prata<br />
por mina será provido mensalmente por ele (como juro). Toda a sua propriedade<br />
constitui o penhor a Iddin-Marduk. Outro credor não terá o direito (à propriedade<br />
penhorada) até que Iddin-Marduk receba a sua prata na totalidade 68 . (Esta dívida<br />
está) separada de (uma dívida anterior de) meio talento (?) /.../ (a qual) ele pagará<br />
na sua quantia principal (sem juro).<br />
Testemunhas. Escriba. Data 69 . 70<br />
Uma ilustração interessante da natureza de um dos mais complexos investimentos<br />
em prata de Iddin-Marduk, e do procedimento seguido para a sua<br />
implementação, é-nos apresentada em cinco textos, ainda, do reinado de Nabónido.<br />
São eles Nbn. 85, Nbn. 187 e M.I, 18 71 , Nbn. 356 e Nbn. 1104.<br />
Em Nbn. 85, redigido no dia vinte e quatro do mês de Šebatu do ano de<br />
554 a. C., o cunhado de Iddin-Marduk, Madānu-šuma-iddin, filho de Zēriya,<br />
aparece como sendo o agente de Apil-Addu-natānu, filho de Addiya, e de sua<br />
esposa Bunānitu, filha de Harisā. Ele comprou a seu favor uma casa em Borsippa<br />
por 11,5 minas de prata, de Ibā, filho de Sillā. <strong>De</strong> acordo com a prática comum<br />
em transacções similares conduzidas por agentes com o capital do seu mandante,<br />
Madānu-šuma-iddin «não possui parte da casa nem da prata».<br />
67 Cf. CAD, S, p. 146. Ver šangû -« (temple administrator) see sangû». Este termo refere-se ao sacerdote que era o chefe<br />
da hierarquia eclesiástica que também podia ter autoridade administrativa. Ver P. GARELLI, V. NIKIPROWETZKY<br />
El Próximo Oriente Asiático (los imperios mesopotámicos. Israel), Barcelona: Labor, 1981, p. 116.<br />
68 A expressão ina qaqqadišu contempla a ideia de pagamento na totalidade. Cf. CAD, Q, pp. 110-111. Ver qaqqadu<br />
- «1. head (as part of the body) 2. person, self, 3. head of an organization, leader, 4. top, top part, 5. beginning (of<br />
time spans), 6. original amount, principal, 7. (a stone), 8. (in idioms), 9. head tax»; «6. original amount, principal - a)<br />
in OB: qá-qá-ad kaspim ana tamkarim utâr he will return the original amount of silver to the merchant. e) in NB: ša<br />
PN ina muhhi PN2 ina MN še. BAR ana SAG. Du-sú inandin x barley, principal belonging to PN, charged against<br />
PN2 in MN he will repay the barley in ( the amount of) the principal of it». Ver Émile SZLECHTER, «Les Lois<br />
Néo-Bayloniennes (I)», RIDA, 3e Série, Tome XVIII, 1971, pp.43-107, pp. 81-87.<br />
69 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 543 a. C.<br />
70 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., pp. 504-505.<br />
71 Nbn. 187 e M.I, 18 foram ambos emitidos em Borsippa.<br />
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O título de venda, tal como o que dizia respeito a qualquer outro documento<br />
relativo à casa, seria entregue a Apil-Addu-natānu e a Bunānitu. Iddin-Marduk<br />
aparece, todavia, como uma das testemunhas no processo.<br />
Nbn. 85 − «(Documento relativo) a um lote de casa de 7 canas, 5 cúbitos,<br />
18 dedos 72 (no) quarteirão de kirātu, 73 que está no interior de Borsippa, no qual<br />
Madānu-šuma-iddin, filho de Zēriya, descendente de Nabaya, comprou pela prata<br />
total (preço) de 11,5 minas de prata a Ibā, filho de Sillā, descendente de Nagaru.<br />
Ele (Madānu-šuma-iddin), (agindo) ao serviço de Apil-Addu-natānu, filho de<br />
Addiya, e Bunānitu, sua esposa, filha de Harisaya, comprou essa casa. A prata de<br />
Apil-Addu-natānu e Bunānitu foi dada como o preço da casa. Madānu-šumaiddin<br />
não possui parte na casa nem na prata. Ele (Madānu-šuma-iddin) entregou<br />
a tabuinha, que Madānu-šuma-iddin selou em seu nome, a Apil-Addu-natānu e<br />
Bunānitu. No dia em que a cópia do selado título de venda ou qualquer outro<br />
contrato dessa casa aparecer na casa de Madānu-šuma-iddin ou em qualquer outro<br />
lugar, pertencerá a Apil-Addu-natānu e a Bunānitu.<br />
Testemunhas. Escribas. Data 74 . Selos. 75<br />
Dois anos mais tarde, de acordo com Nbn. 187, Apil-Adu-natānu e Bunānitu<br />
deviam 1 mina e 38,5 siclos de prata a Iddin-Marduk. O texto descreve a prata<br />
como a dívida pendente, parte do saldo do custo da compra da casa que fora dada,<br />
em Nbn. 85, a Ibā.<br />
Foi Iddin-Marduk quem, então, adiantou pelo menos uma parte do preço de<br />
compra, 11,5 minas de prata, pago por Madānu-šuma-iddin a favor do casal. Este<br />
documento era, portanto, uma renovação do prolongamento original de crédito<br />
de Iddin-Marduk a Apil-Addu-natānu e Bunānitu, embora o reconhecimento de<br />
dívida original não fosse existente, à data, e a quantia de prata emprestada por<br />
Iddin-Marduk não fosse perceptível de imediato. Também é claro, apesar do seu<br />
pretenso uso em Nbn. 85 por Apil-Addu-natānu e Bunānitu, que Madānu-šumaiddin<br />
foi empossado, ou pelo menos recomendado como o seu representante, por<br />
parte de Iddin-Marduk, provavelmente por causa da sua última determinação em<br />
manter uma supervisão no seu investimento.<br />
72 As canas mediam cerca de 3 a 3,5 metros e continham 6 ou 7 cúbitos. Cada cúbito media 40 a 50 cm e dividia-se em<br />
24 dedos.<br />
73 O termo pode significar «jardins», talvez fosse o nome de um bairro de Borsippa. Cf. AHw, p. 485. Ver Kirû(m) -<br />
«Garten».<br />
74 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 553 a. C.<br />
75 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 349.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
Uma vez que Nbn. 187 continha uma data específica para o reembolso, a<br />
compensação da quantia principal era efectuada na base da pretensão, isto é, podia<br />
ser reivindicada a qualquer altura por Iddin-Marduk. Além disso, o pagamento<br />
do juro da dívida pendente em prata, que aumentaria em resultado da taxa padrão<br />
anual de 20%, seria efectuado mensalmente. O que representava mais que o normal<br />
aumento da quantia total pagável na data devida. Tanto a forma da pretensão como<br />
a estipulação para pagamentos mensais indicavam algumas dúvidas por parte de<br />
Iddin-Marduk quanto à solvência do casal.<br />
Esta incerteza não era injustificada tendo em vista o facto de que parte do<br />
débito permaneceu por pagar após dois anos, muito mais tempo do que a duração<br />
do intervalo temporal que era padrão para o reembolso, menos de um ano, e que era<br />
usualmente esperado por Iddin-Marduk dos seus credores. Ele estava determinado<br />
a recuperar rapidamente tudo o que fosse possível do seu investimento.<br />
Nbn. 187 − «1,5 minas e 8,5 siclos de prata, pertencentes a Iddin-Marduk,<br />
filho de Iqīša, descendente de Nūr-Sîn, foram debitados a Apil-Addu-natānu,<br />
filho de Addiya e (a) Bunānitu sua esposa. 1 siclo de prata por mina será provido<br />
por eles mensalmente (como juro). Eles pagarão juro a partir do primeiro dia de<br />
Simanu do quinto ano de Nabónido, rei de Babilónia. A prata (quantia principal)<br />
que foi dada é o saldo da prata que foi dada (pelos devedores) a Ibā sobre o preço<br />
da casa. Eles pagarão o (juro em) prata mensalmente 76 .<br />
Testemunhas. Escriba. Data 77 . 78<br />
Três anos passaram e a obrigação de Apil-Addu-natānu e Bunānitu para com<br />
o empréstimo de Iddin-Marduk permanecia pendente.<br />
<strong>De</strong> acordo com um memorando, o texto M. I, 18, Bunānitu, agora viúva, fez<br />
um pagamento de juros de 9 siclos a Iddin-Marduk. Finalmente, foi apresentado<br />
o reembolso completo no vigésimo sexto dia do mês de Ululu do ano de 547 a.<br />
C., sete anos após a compra da casa segundo Nbn. 85.<br />
M.I, 18 − «Iddin-Marduk, filho de Iqīša, descendente, de Nūr-Sîn, recebeu<br />
de Bunānitu, junto com o pagamento telittu 79 , 9 siclos de prata, (i. e.,) aqueles<br />
76 Os locais de pagamento são, em regra, incluídos apenas nos actos referentes a dívidas de produtos naturais, raramente<br />
nos relativos a dívidas de prata.<br />
77 Emitido em Borsippa e datado do reinado de Nabónido, 551 a.C.<br />
78 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., pp. 379-380.<br />
79 Este tipo de pagamento era um imposto geralmente devido em produtos naturais. Cf. AHw, p. 1345. Ver telittu -<br />
«Ertrag, Abgabe».<br />
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(siclos) que (eram devidos) antes da morte de Apla-[Ad] da-natānu, seu marido,<br />
do juro da sua prata, (que é devida a Iddin-Marduk).<br />
Testemunhas. Data 80 .<br />
Este memorando 81 não deve ser esquecido. 82<br />
Na data do reembolso completo, Bunānitu participou num processo judicial,<br />
no qual ela descreve como o seu marido tomou de empréstimo o seu dote de<br />
3,5 minas de prata como parte da compra da casa de Ibā. Ele também tomara<br />
conhecimento que Iddin-Marduk tinha concedido um empréstimo, o qual eles<br />
usavam como depósito pelo pagamento da casa 83 . A quantia geralmente devida<br />
a Iddin-Marduk era estimada como sendo de 2,5 minas de prata com o juro<br />
incluído.<br />
Bunānitu testemunhou ainda que, dois anos após a compra da casa de Borsippa,<br />
ela tinha demandado em juízo, como era seu direito, uma reivindicação contra o<br />
marido, para obter as garantias legais de que o dote exaurido seria reposto.<br />
Apil-Addu-natānu, que era, como a maior parte dos receptores de dotes, apenas<br />
um tutor e não um proprietário dos bens do dote, tomou conhecimento da sua<br />
responsabilidade pela substituição do espólio depositado, e transferiu para o nome<br />
da sua esposa o título da casa de Borsippa, para o uso futuro por parte dela.<br />
Porque o empréstimo de Iddin-Marduk permanecia pendente na época e<br />
consequentemente existia uma sobrecarga sobre a casa, Bunānitu também teve de<br />
aceitar igual responsabilidade no respeitante ao reembolso do empréstimo.<br />
Em vez da transferência da casa para Bunānitu, após a morte de Apil-Addunatānu,<br />
o seu irmão Aqabbi-ilu intentou reivindicar para ele próprio a casa de<br />
Borsippa, assim como um escravo que Bunānitu tinha anteriormente comprado<br />
com o seu marido.<br />
Após escutarem as deposições e examinarem as provas, os juízes 84 emitiram<br />
uma directiva a favor de Bunānitu e de seus filhos, e anularam a pretensão de<br />
80 Emitido em Borsippa no reinado de Nabónido, 547 a.C.<br />
81 Cf. CAD, M/I, p. 399. Ver masû C) - «d) (ana / ša masê - do not forget, not neglect».<br />
82 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 405.<br />
83 Trata-se de um pagamento que pode ser entendido como um pré-pagamento. Cf. AHw, p. 795. Ver nishu - «6) wohl<br />
eine Anzahlung, vorauszahlung».<br />
84 A justiça era administrada por juízes e assembleias assim como pelas autoridades reais e do templo. Os juízes podiam<br />
efectuar as suas próprias determinações ou podiam remeter o caso a um tribunal de mais baixa instância. Os juízes do<br />
palácio tinham as suas audições e julgamentos nos tribunais do rei, nas cidades, nas assembleias ou na Porta do Rei.<br />
Por vezes, os procedimentos do tribunal talvez tenham sido conduzidos debaixo da vigilância do governador. Mas<br />
a referência, na maioria dos períodos, é limitada, sabe-se mais dos procedimentos legais dos tribunais do templo do<br />
que dos do domínio público. Ver Leo OPPENHEIM, o. c., pp. 98-103 e Muhammad A. DANDAMAYEV, «The
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
Aqabbi-ilu à casa e ao escravo. Contudo, reafirmaram no seu juízo que o reeembolso<br />
das 2,5 minas permanecia a prioridade que deveria ser completamente levada a<br />
efeito antes que Bunānitu pudesse recuperar o seu dote ou a sua parte de benefício<br />
no escravo.<br />
Nbn. 356 − «Bunānitu, filha de Harīsaya, disse o seguinte aos juízes de<br />
Nabónido, rei de Babilónia − Apil-Addu-natan(u), filho de Nikbadu, tomou-me<br />
como esposa. Ele recebeu 3,5 minas de prata como meu dote, e eu dei à luz<br />
uma filha. Eu e Apil-addu-natān(u), meu marido, através da prata do meu dote<br />
comprometemo-nos numa transacção. Juntos, nós recebemos um lote de casa de<br />
8 canas no bairro (chamado) Ahula-qallu, o qual é em Borsippa, e demos como<br />
o preço da casa 9 minas e 1/3 de mina de prata, junto com (uma quantia que<br />
actualmente soma) 2 ,5 minas de prata, que aceitámos de Iddin-Marduk, filho de<br />
Iqīša, descendente de Nūr-Sîn (e utilizámos) como um depósito (para a casa). No<br />
quarto ano de Nabónido, rei de Babilónia, eu levantei uma queixa legal contra<br />
o meu marido Apil-Addu-natān(u) relativa ao meu dote. Appil Adddu-natān(u)<br />
voluntariamente fez um documento selado (relativo) à casa de 8 canas, que está em<br />
Borsippa, e confiou-ma para o futuro. Na minha tabuinha ele fez saber o seguinte:<br />
(uma quantia que actualmente soma) 2,5 minas de prata, que Apil-Addu-natānu e<br />
Bunānitu aceitaram (como crédito) de Iddin-Marduk, eles deram como parte do<br />
preço da casa. Juntos, eles reembolsaram (Iddin-Marduk). “Ele selou a tabuinha,<br />
ele escreveu nela a maldição dos grandes deuses.<br />
No quinto ano de Nabónido, rei de Babilónia, eu e Apil-Addu-natā(nu), meu<br />
marido, tomámos Apil-Addu-amāra em adopção. Escrevemos a sua tabuinha de<br />
adopção. Nós (também) fizemos saber que 2 minas e 10 siclos de prata e o conteúdo<br />
da casa são o dote de Nūbtā, minha filha.<br />
A morte levou o meu marido. Agora, Aqabbi-ilu, o filho do meu sogro, estabeleceu<br />
uma reivindicação pela casa e tudo o que tinha sido selado e nomeou-me<br />
a mim, e (também) pelo (escravo) Nabû-nūr-ilāni, que nós comprámos a Nabûahhē-iddin.<br />
Perante vós eu trouxe este (assunto). Pronunciai a vossa decisão.<br />
Os juízes escutaram as suas palavras; leram as tabuinhas e contratos que<br />
Bunānitu trouxera perante eles, e consideraram que Aqabbi-ilu não possuía<br />
uma reivindicação sobre qualquer outra coisa pertencente a Apil-Addu-natān(u).<br />
Neo-Babylonian Elders», em Societies and Languages of the Ancient Near East, Warminster: Aris & Phillips, 1982, pp.<br />
38-41.<br />
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Eles registaram esta (sentença relativa a) Bunānitu a Apil-Addu-amāra nas suas<br />
tabuinhas.<br />
Iddin-Marduk receberá antecipadamente e recuperará na totalidade 2,5<br />
minas de prata, que foram dadas (como parte) do preço dessa casa. Posteriormente,<br />
Bunānitu receberá o seu dote de 3,5 minas de prata e também a sua quota parte<br />
(do escravo). Segundo o contrato do seu pai, Nūbtā receberá Nabû-nūr-ilāni.<br />
Pela decisão deste julgamento.<br />
Lista de juízes. Escribas. Data 85 . 86<br />
Este documento tem como interesse adicional o facto de pertencer a uma nova<br />
formulação. No final do século VIII, uma nova categoria de documentos fez o seu<br />
aparecimento. Trata-se do documento dialogado, «Zwiegesprächsurkunde», escrito<br />
de uma maneira mais subjectiva, isto é, os precedimentos legais eram apresentados<br />
em dircurso directo entre os participantes principais. Este novo formato ocorre<br />
numa variedade de acordos neobabilónicos, desde vendas de escravos a alugueres<br />
ou contratos matrimoniais. Todavia, a maioria dos documentos desta época<br />
permaneceu no estilo objectivo característico dos escribas 87 .<br />
O processo terminou com o pagamento do remanescente da prata relativa<br />
ao custo da habitação.<br />
Nbn. 1104 − «2 minas 11 siclos de prata, o res(to do) preço da casa pertencente<br />
a Apil-Addu-[amāra], filho de Apil-Addu-natānu e Bunānitu, sua esposa, está à<br />
disposição de Nabû - [ X] /…/ (quebrado)<br />
Testemunhas. Data 88 . 89<br />
Outra situação que teve lugar nos casos de dívida é a do estabelecimento de<br />
um novo reconhecimento de dívida após a renegociação do contrato inicial. No<br />
exemplo de Nbn. 1125 o pagamento renegociado mantém o sistema de garantias<br />
pré-estabelecido, com o penhor do mesmo escravo.<br />
85 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 547 a C.<br />
86 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., pp. 412-413.<br />
87 Os contratos especificam o nome das partes contratantes, a notificação de que a transacção teve lugar de livre vontade<br />
e uma série de cláusulas padrão como detalhes legais, nomes das testemunhas, escriba, localização e data da sua elaboração.<br />
88 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, sem datação específica mas, provavelmente, entre 550-539<br />
a. C.<br />
89 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 507.
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
Nbn. 1125 − «[x] prata], (obrigação) de Iddin-Marduk, a cargo de Šamasšuma-iddin<br />
e de Amtiya, sua esposa. O escravo anteriormente objecto de penhor<br />
de Iddin-Marduk, continua penhorado a Iddin-Marduk. Um outro credor sobre<br />
ele não poderá dispor. Ardiya e Tapaššara, sua esposa, respondem pelo pagamento<br />
da prata. À parte da nota de obrigação anterior a cargo de Šamaš-šuma-iddin e<br />
Amtiya, sua esposa. À parte de um reconhecimento de dívida sobre tâmaras e prata<br />
a cargo de Ardiya e Tapaššara, pelo qual um responde pelo outro 90 . 91<br />
Actividades financeiras<br />
Actividades comerciais<br />
Conclusão<br />
Registos e<br />
correspondência<br />
Actividades laborais<br />
Actividades judiciais<br />
Distribuição das actividades no arquivo de Nur-Sîn<br />
0 50 100 150 200 250 300 350<br />
Nº de Menções<br />
Embora esteja ausente qualquer vestígio de banca de depósito na época em<br />
análise, a actividade prestamista teve uma relevância significativa nos negócios<br />
privados das famílias neobabilónicas, actuando como suporte de actividades tão<br />
decisivas para essas sociedades como a agricultura ou como meio de obter proventos<br />
para os entrepreneurs investidores.<br />
Siglas<br />
A − Tabuinhas da Bodleian Library (Oxford).<br />
AHw − von Soden, W., Akkadisches Handwörterbuch (Wiesbaden: 1959-1981).<br />
AJSL − American Journal of Semitic Languages and Literatures (Chicago).<br />
90 Emitido em Babilónia e com datação incerta (555/539 a.C.).<br />
91 Cf. Cornelia WUNSCH, o. c., p. 213.<br />
41
42<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
AUWE − Ausgraben in Uruk-Warka. Endberichte (Mainz).<br />
BE − The Babylonian Expedition of the University of Pennsylvania; Series A: Cuneiforme Texts.<br />
Vol. 8: Clay, A. T., Legal and Commercial Transactions Dated in the Assyrian, Neo-babylonian,<br />
and Persian Periods, Chiefly from Nippur (Philadelphia, 1908); Vol. 9: Hilprecht, H. V., and<br />
Clay, A. T., Business Documents of Murashû Sons of Nippur Dated in the Reign of Artaxerxes<br />
I (1898); Vol. 10: Clay, A. T., Business Documents of Murashû Sons of Nippur Dated in the<br />
Reign of Darius II (1904).<br />
BM − British Museum.<br />
CAD − The Assyrian Dictionary of the University of Chicago (Chicago & Glückstadt: 1965).<br />
CADMO − Revista do Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.<br />
Cyr. − Strassmaier, J. N., Inschriften von Cyrus, König von Babylon (Leipzig, 1897).<br />
Ev.M − Evetts, B., − Ev. −M., Ner., Lab.: Inscriptions of the reigns of Evil-Merodach (562-559<br />
BC), Neriglissar (559-555 BC) and Laborosoarchod (555 BC) (Leipzig, 1892).<br />
IM − Tabuinhas do Museu do Iraque em Bagdad.<br />
Liv. − Strassmaier, J., Liv: Die babylonischen Insshriften im Museum zu Liverpool nebst anderen<br />
aus der Zeit von Nebukadnezzar bis Darius (Leiden, 1885).<br />
M. I/II − Moldenke, A.: Cuneiforme Texts in the Metropolitan Museum of Art. Parts I and II.<br />
(Nova Iorque, 1893).<br />
NBC − Nies Babylonian Collection (Yale).<br />
Nbk. − Inschriften von Nabuchodnosor, König von Babylon (555-538 v. Chr.). Babylonische<br />
Texte, Hefte I-IV. (Leipzig: 1889).<br />
Nbn. − Strassmaier, J. N., Inschriften von Nabonidus, König von Babylon (555-538 v. Chr.),<br />
Leipzig: 1891.<br />
Ner. − ver Evetts.<br />
RIDA − Revue International des Droits de l’Antiquité.<br />
TEBR − Joannès, F., Textes Économiques de la Babylonie Récente (Paris: 1982).<br />
TuM − Texte und Materialen der Frau Professor Hilprecht Collection im Eigentum der (Friedrich-<br />
Schiller) Universität Jena.<br />
W − Tabuinhas de Warka.<br />
WHM − World Heritage Museum Collection.<br />
ZA - Zeitschrift für Assyriologie (Leipzig/Berlim)
o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />
43
«JUSTOS» NEGÓCIOS E POLÍTICA<br />
ECONÓMICA NO PORTUGAL MODERNO<br />
Uma realidade evolutiva, complexa e poliédrica<br />
Maria Leonor García da Cruz 1 *<br />
Esta minha comunicação tem por finalidade não a de fazer uma síntese de<br />
resultados obtidos pela investigação histórica sobre o tema do crédito e da banca<br />
no Período Moderno, antes a de levantar temas de reflexão e problemas que se<br />
colocam a quem investiga a História dos tempos modernos, particularmente os<br />
séculos XV, XVI, XVII e XVIII, numa área de confluência de factores de natureza<br />
distinta mas adjuvante, que se altera a cada conjuntura e a cada espaço, implicando<br />
estudos particulares e convergentes para a compreensão de uma realidade evolutiva,<br />
complexa e poliédrica nas perspectivas de abordagem.<br />
Para a sua análise é forçoso que se desenvolvam pesquisas pluridisciplinares,<br />
abrangendo campos tão diversos como o da Linguística, do Direito, da Filosofia,<br />
da Ciência política, da Economia, da Teologia, com os quais se relaciona a<br />
História no desenvolvimento da sua tarefa de recuperar e interpretar no devir<br />
histórico fenómenos ou tessituras condicionados a curto e a longo prazo por outros<br />
fenómenos. O tema do crédito e da banca e dos sistemas criados, implicando<br />
sem sombra de dúvida uma análise de longo espectro, por tempos e áreas que se<br />
definem à partida – provisoriamente – e que se redefinirão em sucessivos avanços<br />
da investigação – sempre provisoriamente –, exige igualmente o apuramento de<br />
técnicas de pesquisa em história social, económica, política, financeira, cultural,<br />
1 * Professora auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigadora do Centro de História da<br />
Universidade de Lisboa.
58<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
cujos resultados se deverão cruzar, corrigindo orientações e reajustando novos<br />
programas de investigação.<br />
O título que defini – “ justos” negócios e política económica no Portugal moderno<br />
– sintetiza, desde logo, alguns dos vectores de problemática que o Colóquio “História<br />
Comparada dos Sistemas Bancário e de Crédito” me despertou aquando da sua<br />
realização em Maio de 2004:<br />
1. Ser a época que escolhi para debate um tempo ou uma sucessão de tempos<br />
marcados por considerações éticas, pesando sobre a actividade humana, as formas<br />
de explorar os recursos materiais, a orientação dos investimentos, a administração<br />
da riqueza, juízos de valor que, provenientes de um substrato cultural de teor<br />
marcadamente religioso contudo reflectem tendências laicizantes, debates<br />
institucionais, evoluções do pensamento político que claramente irão definir a<br />
partir dos séculos XIV e XV o perfil dos novos Estados europeus.<br />
2. Situarmo-nos numa época de crescente intervenção do Estado e de sensibilidade<br />
para os assuntos de natureza económica, particularmente no que respeita ao<br />
comércio e à circulação monetária, em virtude de uma Expansão ultramarina<br />
que abre à Europa novos horizontes físicos e mentais, rotas intercontinentais de<br />
comércio, amplos espaços produtivos e mercados de consumo, estimulando-a<br />
à mobilidade demográfica, à transferência e adaptação de instituições 2 e a um<br />
sincretismo cultural.<br />
3. Constatar a necessidade de averiguar até que ponto grupos e organizações<br />
relacionadas com o câmbio e com formas de crédito penetraram na economia<br />
em diferentes sectores, não exclusivamente como fontes de crédito nem somente<br />
no âmbito mercantil.<br />
Note-se que a ética que define o “justo”, constituída por regras de conduta<br />
inspiradas em textos sagrados e orientações eclesiásticas que impregnam a consciência<br />
e a acção dos homens no Ocidente cristão, irá ela própria modificar-se nas<br />
centúrias seguintes perante as transformações na mundividência do europeu, a<br />
valorização do homem pelo seu poder de realização, a reestruturação das socie-<br />
2 A “exportação do Estado”, importante tema de debate entre historiadores que versam a época da Expansão europeia e<br />
a formação dos espaços coloniais, foi escolhida como temática fundamental para a reflexão da equipa de investigadores<br />
coordenada por Jean-Philippe Genet que se reuniu em Lisboa (AN-TT), integrada no projecto sobre a génese do Estado<br />
Moderno que este investigador tem dirigido com outros grupos e linhas de inquérito. <strong>De</strong>sses trabalhos resultou a edição<br />
do volume intitulado The Heritage of The Pre-Industrial European State (ed. Wim Blockmans, Jorge Borges de Macedo<br />
e Jean-Philippe Genet), Lisboa, 1996. Nele participou Borges de Macedo com o estudo sobre “The Portuguese model<br />
of State Exportation”, pp. 25-39.
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
dades, as cisões no seio da Igreja universal e as diferentes soluções buscadas para<br />
a recolocação do crente perante o mundo, <strong>De</strong>us e os outros homens.<br />
Mesmo numa época profundamente confessional, as alterações ocorrem e<br />
revelam-se em juízos de valor sobre o lugar de cada homem na sociedade, os tipos<br />
de relação preconizada e possível com comunidades diferentes culturalmente,<br />
coabitando num mesmo território ou separadas pela distância geográfica, todavia<br />
distintas, pelas relações político-sociais dos seus membros, pelas diferentes avaliações<br />
da base material de sustento e dos artigos de troca, pelas suas cosmovisões e<br />
simbolismos marcando diferentes formas de vida. As clivagens e reajustamentos<br />
socioeconómicos e as tensões exacerbadas pela luta política e a exaltação religiosa,<br />
realidades tão presentes nos territórios da Europa dos sécs. XVI e XVII, reveladoras<br />
quantas vezes de tendências particularistas que sobrevivem e do dinamismo de<br />
forças minoritárias, alia-se a percepção das diferenças entre populações, interesses e<br />
potencialidades, desníveis cada vez mais perceptíveis à medida que se desenvolve a<br />
expansão material e técnica dos Estados e a mundialização dos negócios dependentes<br />
da abertura e do investimento em novas vias marítimas intercontinentais.<br />
Configuram-se, ao longo da Época Moderna, novas coesões políticas e uma<br />
nova ordem internacional. Estados europeus soberanos, de confissões diversas,<br />
assumem em pleno século XVII a sua individualidade sem tutelas supranacionais<br />
embora não desdenhem ligações extra-fronteiras, procurando nos princípios<br />
decorrentes do direito natural novas normas de relacionamento internacional.<br />
O confronto, seja pelo domínio político ou comercial e marítimo, bem como<br />
a procura de equilíbrio, conduzem à observação das capacidades do potencial<br />
adversário, em termos de população activa e inactiva, produção e exportações,<br />
atracção e arrecadação de metal precioso, níveis que se quantificam para calcular<br />
perdas e compensações, indemnizações em tratados internacionais que modificam<br />
o quadro político da Europa e do Mundo.<br />
As lutas e os debates internos obrigam, também eles, a reequacionar toda a<br />
comunidade e os mecanismos internos da sua coesão, seja a nível das leis, do suporte<br />
material e da reavaliação de funções, da redefinição de estatutos e de obrigações,<br />
do peso das liberdades individuais e da salvaguarda colectiva em novas teorizações.<br />
<strong>De</strong>finem-se na relação entre governante e governados as novas conceptualizações<br />
de bem público, de confiança e de razão de Estado.<br />
Indivíduos e grupos de diferentes estames sociais, incluindo nobres, cidades,<br />
homens de negócios e funcionários (cuja participação culmina na intervenção<br />
e co-direcção em grandes Companhias comerciais nos séculos XVII e XVIII),<br />
59
0<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
investem capitais (pelo menos de imediato e no caso português não aplicados<br />
na compra de bens de raiz) em empreendimentos particulares ou em contratos<br />
propostos pela Coroa, participando de forma organizada e com responsabilidade<br />
em determinados negócios relacionados com o Estado. Naturalmente que dos<br />
privilégios concedidos por esta instituição dependeu em muito a adesão de capitais,<br />
assim como o sucesso dos empreendimentos dependeria em grande medida das<br />
ligações regionais e internacionais desses indivíduos ou grupos financeiros aos<br />
grandes centros europeus (rede distribuidora).<br />
Ética e economia - percepções e práticas<br />
A sociedade portuguesa nunca ficou alheia destas transformações que se<br />
verificam na Europa do Período Moderno. É sem dúvida alguma nos séculos<br />
XV e XVI, como tantas outras e ainda além destas centúrias, uma sociedade<br />
atormentada pelo terror ocasionado por desastres naturais, por crises de subsistência,<br />
sobretudo cerealíferas, ocorridas na sequência daqueles, e por epidemias<br />
que assolam ocasionalmente cidades e regiões motivando mobilidade de gente e<br />
medidas de segurança nas comunicações e abastecimentos, na assistência pública,<br />
no suporte espiritual.<br />
É, contudo, uma sociedade em expansão, do ponto de vista demográfico 3 ,<br />
tendo em linha de conta os índices apurados 4 – que se reflectem no crescimento de<br />
vilas e cidades, no desbravamento de zonas arborizadas e no aproveitamento para<br />
cultivo de zonas maninhas, em reformas administrativas e no desenvolvimento<br />
de uma grande Expansão ultramarina –, bem como o progresso material das<br />
regiões produtivas cuja riqueza alimenta não somente mercados locais e regionais<br />
mas assegura o comércio de exportação ou a matéria-prima e artigos necessários a<br />
uma indústria, sobretudo regional e de suporte àquele grande empreendimento 5 .<br />
3 Fenómeno dos mais importantes que condicionam o desenvolvimento e a expansão europeias, positivamente neste<br />
pe-ríodo após meados do século XV, assim como mais tarde, a partir dos anos 20-30 do século XVIII. O crescimento<br />
demográfico desperta os mecanismos internos das sociedades, provocando dinamismos sociais e técnicos na procura<br />
de soluções para um novo equilíbrio.<br />
4 Fontes descritivas de âmbito regional, nomeações de tabeliães e juízes dos órfãos, procuradores de número, etc., para<br />
lá de medidas políticas bem patentes na redistribuição de jurisdições, subdivisões de comarcas (entre 1532 e 1536,<br />
criação de 14, desaparecendo das antigas apenas uma), cartas de elevação de lugares, novos forais, etc.<br />
5 Fabrico de utensílios de suporte ao apetrechamento das embarcações, confecção de vestuário destinado às tripulações<br />
e a mercados consumidores em áreas ultramarinas, preparação de vitualhas para abastecimento das armadas. Outras<br />
matérias-primas se cultivam, tintureiras, sobretudo nas Ilhas atlânticas e em particular nos Açores destinadas à exportação<br />
para as indústrias têxteis europeias. Ver esclarecimentos sobre a “indústria” do período moderno em Portugal
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
Circuitos de produtos naturais do Reino, do sal à fruta, cruzam-se com rotas de<br />
exportação de artigos provenientes das áreas ultramarinas, engrossando um caudal<br />
comercial com origem na longa distância, intercontinental, suportado, não raras<br />
vezes, por circuitos regionais complementares 6 .<br />
Se muitos dos fenómenos sociais revelados em fontes do século XVI remontam<br />
a épocas anteriores, devendo sopesar-se de forma faseada o entrecruzamento e<br />
mútua influência dos variados factores condicionantes, do económico ao político,<br />
do institucional ao psicológico, é certo que o processo de transformação e a complexidade<br />
de relações consolida-se após 1499 com o regresso da armada de Vasco<br />
da Gama, uma vez ampliado o espaço marítimo, comercial e político, e assegurado<br />
o domínio da navegação oceânica entre o Atlântico e o Índico. O regresso da<br />
nau de Nicolau Coelho despoleta manifestações públicas e uma correspondência<br />
intensa de informações que se repercute e completa com as notícias transmitidas<br />
via Veneza e Roma, a que se irá juntar de imediato a propaganda oficialmente<br />
conduzida pela própria Coroa de Portugal.<br />
O impacto dos acontecimentos sente-se em Portugal e nos meios comerciais<br />
europeus 7 , ampliando-se consideravelmente a nível internacional o interesse pela<br />
participação de grupos, famílias e indivíduos no empreendimento dirigido pela<br />
Coroa portuguesa 8 . <strong>De</strong>sde então desenvolve-se em função de um empreendimento<br />
sobretudo em artigos de Jorge Borges de Macedo para o Dicionário de História de Portugal (dir. Joel Serrão) e em estudos<br />
desenvolvidos, entre os quais, Problemas de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII (2ª ed., Lisboa, Querco,<br />
1982); em análises incluídas no terceiro volume da História de Portugal (dir. José Mattoso, Lisboa, Ed. Estampa, 1993),<br />
coordenado por Joaquim Romero Magalhães e intitulado No alvorecer da modernidade (1480-1620); e em bibliografia<br />
especializada sobre a economia portuguesa no período moderno.<br />
6 Ver trabalhos de síntese, uns vigorosamente actuais, outros só parcialmente ultrapassados (em pormenores ou na<br />
concepção historiográfica), como as Épocas de Portugal Económico de João Lúcio de Azevedo, os estudos de Virgínia<br />
Rau, Os <strong>De</strong>scobrimentos e a Economia Mundial de Vitorino Magalhães Godinho, ou de Russell-Wood “Os movimentos<br />
de mercadorias no império marítimo português” in História de Portugal (dir. João Medina, 1993, reed. 1999, v.V, pp.<br />
19-43) e Um Mundo em Movimento. Os Portugueses na África, Ásia e América (1415-1818); a obra de Fernand Braudel,<br />
Civilização Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII; e análises mais específicas, de regiões ou de portos e<br />
rotas, sejam as de Joaquim Romero Magalhães, Alberto Vieira, ou as de Leonor Freire Costa. V. infra nota 8.<br />
7 Ver a esse propósito as cartas de D. Manuel aos Reis católicos, ao Sumo Pontífice, a Maximiliano de Habsburgo e a<br />
outras entidades, bem como os discursos de Damião de Góis justificativos da causa portuguesa (in Opúsculos Históricos,<br />
trad. latim por Dias de Carvalho, Porto, Civilização, 1945).<br />
8 Sobre as relações internacionais, o sistema comercial da Coroa portuguesa e a correspondência de negócios entre mercados<br />
e mercadores, deve consultar-se sobretudo os trabalhos de Virgínia Rau acerca do comércio do sal, do sistema<br />
das feitorias e dos interesses de comunidades mercantis estrangeiras estantes em Portugal; os de A.H. de Oliveira<br />
Marques sobre as relações com a Hansa e com homens de negócio alemães ligados a diferentes áreas e contactos; para<br />
lá dos estudos sobre fontes de Braamcamp Freire, as análises de J.A. Goris e J. Gentil da Silva, sobre as intensas relações<br />
no séc. XVI com Antuérpia e outras praças internacionais do Norte europeu, sobre contratos, redes de mercadores e<br />
colónias também em áreas ultramarinas; os trabalhos sobre o sistema comercial da Coroa portuguesa levados a cabo<br />
por M. Nunes Dias, ao reflectir sobre o “capitalismo monárquico” em Portugal e sobre grandes companhias, por Maria<br />
do Rosário Themudo Barata A. Cruz e por A.A. Marques de Almeida, ao interpretarem o envolvimento, a partir dos<br />
1
2<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
de cariz nacionalista e imperial, actuante tanto no Índico como no Magrebe atlântico,<br />
toda uma ampliação do domínio político português além-mar acompanhado<br />
do necessário suporte institucional, seja este assegurado por meios diplomáticos,<br />
militares ou comerciais, com diferentes sociedades e soberanias.<br />
A sociedade portuguesa do século XVI revela-se, por tudo isso, uma sociedade<br />
em reestruturação, onde à heterogeneidade de situações que se acentua dentro das<br />
grandes clivagens sociais ainda persistentes (separação do nobre do não nobre, do<br />
leigo do detentor de ordens sacras), se acrescenta a intervenção do poder público<br />
e a reavaliação acelerada de ideais e de funções.<br />
O despoletar de uma coerência de actuação, independentemente da existência<br />
de controvérsias no centro do poder político e em áreas ultramarinas sobre a melhor<br />
forma e ocasião de investir 9 , repercute-se também no próprio Reino. Cabe ao poder<br />
real, e aos poderes e agentes delegados por ele instruídos, controlar a informação,<br />
seleccionar os parceiros, concluir os contratos, determinar a orientação política.<br />
Para isso, todavia, é necessário um forte suporte logístico, através da canalização<br />
de recursos humanos e materiais internos e externos.<br />
O fenómeno da guerra, gerido habilmente por instâncias políticas centrais,<br />
terá sido, em vários países europeus desde os finais da Idade Média, segundo as<br />
modernas interpretações em torno do Estado moderno, um dos factores fortemente<br />
condicionantes da génese deste, pela coesão de esforços e suporte social e pelo<br />
desenvolvimento concomitante de mecanismos administrativos que, actuantes,<br />
pressupunham um reconhecimento ideológico e prático, da existência de uma<br />
força interna superior, orientadora e controladora, identificada aos interesses gerais<br />
números conseguidos, de homens, de capitais e de produtos nos empreendimentos marítimos, as variações no tipo de<br />
investimento e as estratégias do Estado e dos grupos financeiros. Ver supra nota 6.<br />
9 As controvérsias que, aliás, acompanham desde o início a Expansão ultramarina, vão persistir ao longo da centúria de<br />
Quinhentos com épocas de particular exacerbamento e, quase sempre, motivado pela própria instância régia. Para uma<br />
visão global consultar <strong>De</strong> Ceuta a Timor de Luís Filipe Thomaz e O Império Asiático Português, 1500-1700. Uma História<br />
Política e Económica de Sanjay Subrahmanyam. Para uma análise específica de debates conjunturais, ver os estudos de<br />
Maria Leonor García da Cruz sobre Norte de África versus Índia, sobretudo As Controvérsias ao Tempo de D. João III<br />
sobre a Política Portuguesa no Norte de África, que a Comissão Nacional para as Comemorações dos <strong>De</strong>scobrimentos<br />
Portugueses editou na revista Mare Liberum nº 13 (Jun.97, pp. 123-199) e nº 14 (<strong>De</strong>z. 97, pp. 117-198), com uma<br />
separata especial datada de 1998 (na sua segunda parte transcrevo alguns dos discursos de 1534/35, 1541 e 1543<br />
menos divulgados, recuperando totalmente o seu conteúdo através de nova leitura e transcrição dos originais); para o<br />
comércio da pimenta, Luís Filipe Thomaz, A Questão da Pimenta em meados do século XVI. Um debate político do governo<br />
de D. João de Castro (Lisboa, CEPCEP-UCP, 1998); para a “questão de Baçorá”, Maria do Rosário Themudo Barata<br />
A. Cruz (Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, 5ª s., n. 6, 1986, e Portugaliae Historica, 2ª s., v.I , Lisboa, FLUL /<br />
IHIDH, 1991); <strong>De</strong>janirah Potache (Stvdia, n. 48, 1989); e A. Dias Farinha (Homo Viator. Estudos em Homenagem a<br />
Fernando Cristóvão, Lisboa, Colibri, 2004).
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
da comunidade, para quem, cada vez mais, representa uma garantia pública,<br />
nacional 10 .<br />
A guerra representa, na verdade, um dos principais factores condicionantes<br />
pela repercussão nos índices de mortalidade (em virtude não apenas da violência da<br />
luta e por atingir indivíduos em idade fértil, mas sobretudo pela ruína dos campos<br />
de cultura que deixam de produzir o suficiente a uma população endemicamente<br />
enfraquecida...) e pela reacção que provoca na sociedade, alterando práticas<br />
comerciais, diálogo entre poderes e grupos, reavaliação de funções, argumentação<br />
ideológica e fundamentação política e jurídica. Ocasiona, sobretudo, o desenvolvimento<br />
de uma administração específica com a definição de uma hierarquia de<br />
mando, com toda a logística que implica, desde as reorganizações do exército e de<br />
corpos especializados, evolução do armamento e do transporte, até à reformulação<br />
do recrutamento e dos mecanismos de financiamento.<br />
Poderá, então, afirmar-se que em Portugal a construção do Estado moderno<br />
se alia, sem sombra de dúvida, ao empreendimento ultramarino, isto é, ao<br />
investimento da Coroa portuguesa numa acção interna e externa onde a guerra,<br />
o interesse comercial e a força ideológica se entrelaçam, galvanizando a participação<br />
de diversificados grupos sociais e o financiamento, e com isso reforçando<br />
uma ordenação e uma solidariedade de corpos que constitui a maior garantia de<br />
equilíbrio e de paz social.<br />
Esta sociedade – recordemo-lo sempre – configura-se no seio de uma ordem<br />
mais alargada, a do Ocidente europeu cristão, marcado ideologicamente, durante<br />
todo o período medieval 11 e em parte ainda no século XVI, pela necessidade de,<br />
num combate sem tréguas, recuperar a unidade perdida de uma Cristandade<br />
que sofrera a fragmentação do império romano, a expansão muçulmana e, mais<br />
recentemente, a perda dos lugares santos para os turcos otomanos.<br />
Apesar das lutas intestinas entre Estados cristãos e do crescente envolvimento<br />
temporal que se critica à própria Igreja, esta é reconhecida e respeitada como<br />
entidade supranacional, superior enquanto medianeira e guia espiritual dos<br />
governantes cristãos. Até aos finais do primeiro quartel do século XVI ou mesmo<br />
10 Ver perspectivas historiográficas em debate sobre a guerra e a génese do Estado moderno em Maurice Hauriou,<br />
Henri Lapeyre, Fritz Hartung e Roland Mousnier, André Corvisier, Geoffrey Parker, Jean-Philippe Genet e Philippe<br />
Contamine; incluindo o caso português sobretudo em Jorge Borges de Macedo na obra sobre História Diplomática<br />
Portuguesa / Constantes e linhas de força. Estudo de Geopolítica e em “Absolutismo”, entre outros artigos seus incluídos<br />
no Dicionário de História de Portugal e em Polis – v. infra nota 23; em trabalhos revelados nos Colóquios anuais sobre a<br />
História Militar organizados pela CPHM e na Nova História Militar de Portugal de Nuno Severiano Teixeira e Manuel<br />
Themudo Barata.<br />
11 Bernard Guenée, L’Occident aux XIV e et XV e siècles. Les États (Paris, Nouvelle Clio, 1971).<br />
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4<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
ainda na década de 30, e já em pleno processo interno de reforma disciplinar 12 ,<br />
é nessa qualidade de condutora universal de almas que irá funcionar ainda como<br />
árbitro, conselheira e legitimadora de acções que tenham por objectivo os fins<br />
últimos da felicidade humana, pressupondo com isto a adequação das práticas do<br />
mundo aos princípios da justiça divina.<br />
Embora já distantes da dependência pontifícia para a determinação de jurisdições<br />
temporais, Portugal e Espanha 13 continuam a fundamentar a legitimidade<br />
da sua intervenção à escala universal na definição do seu papel de instrumentos de<br />
evangelização. A conversão dos povos ao cristianismo transforma-se de justificação<br />
em fundamentação da Expansão portuguesa, reflectindo-se na ordem interna e<br />
externa, nas relações com a Igreja e com as diversas nações e poderes, no próprio<br />
título do Rei de Portugal, em discursos durante toda a Época Moderna. Recordese,<br />
a esse propósito, quanto a expansão da fé se torna argumento fundamental de<br />
Damião de Góis na defesa da política nacional de monopólio e de controlo dos<br />
preços de especiarias trazidas do Oriente, face à reacção condenatória de mercados<br />
europeus, sobretudo Veneza. Trata-se no entanto de um humanista particularmente<br />
crítico da política da Coroa e de certas orientações da acção eclesiástica. 14<br />
Cada vez mais acentuadamente, os objectivos finais que salvaguardam a<br />
comunidade cristã constituem argumentos legitimantes da prática temporal do<br />
príncipe cristão. Não deixa de ser uma constatação do êxito de tal política, insistir<br />
12 Para lá do caso precoce da Igreja nacional sob a monarquia dos Reis católicos, Isabel de Castela e Fernando de Aragão,<br />
e de outros fenómenos específicos de reforma anteriores ao grande movimento do século XVI, recorde-se iniciativas em<br />
dioceses portuguesas, particularmente a instâncias do Cardeal infante D. Afonso (1509-1540, em Évora e em Lisboa),<br />
algumas das quais numa orientação que se tornará universal após o Concílio de Trento. Ver o meu comentário à época<br />
e ao estudo desta figura em “Alguns elementos sobre a situação eclesiástica em Portugal nos começos do reinado de D.<br />
João III” e a nota biográfica seguida de documentos de Isaías da Rosa Pereira em “Uma figura histórica mal conhecida:<br />
o Cardeal-Infante D. Afonso (1509-1540)”, nas Actas do Congresso de História no IV centenário do seminário de Évora<br />
(Évora, Instituto Superior de Teologia - Seminário Maior de Évora, 1994, 2 vols.); Marcello Caetano, “Recepção e<br />
execução dos decretos do Concílio de Trento em Portugal” (Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,<br />
V.XIX, 1965).<br />
13 O Tratado de Tordesilhas, ao contrário de vários acordos anteriores firmados entre poderes ibéricos, conclui-se entre<br />
dois Estados soberanos que partilham áreas de influência, antes de receberem a bênção apostólica. O apoio espiritual<br />
da Igreja irá trazer-lhes superioridade e legitimidade de intervenção sobre os outros poderes do mundo. Ver importantes<br />
estudos em “El Tratado de Tordesillas y su Epoca”. Congreso Internacional de Historia (1994, pub. Sociedad “V Centenario<br />
del Tratado de Tordesillas”, CNCDP, Madrid, 1995, 3 vols.), bem como estudos sobre a temática reunidos em 1973<br />
(Universidade de Valhadolide), 1991 (Luís Adão da Fonseca), 1994 (Banco Bilbao Viscaya - Portugal, S.A.). Veja-se<br />
adiante os novos princípios do direito internacional manifestados em tratados internacionais em pleno século XVII.<br />
14 <strong>De</strong> salientar também o discurso de João de Barros nas Décadas da Ásia, Déc. I, Liv. VI, Cap. I. Sobre Damião de Góis<br />
ver supra nota 7 e Luís Filipe Barreto, Damião de Goes. Os Caminhos de um Humanista (Lisboa, CTT de Portugal,<br />
2002). Consulte-se ainda António Vasconcelos de Saldanha, Iustum Imperium. Dos Tratados como fundamento do Império<br />
dos Portugueses no Oriente. Estudo de História do Direito Internacional e do Direito Português (Lisboa, Fundação Oriente<br />
/ Instituto Português do Oriente, 1997); Maria Leonor García da Cruz, Os “Fumos da Índia”: uma leitura crítica da<br />
Expansão Portuguesa (Lisboa, Cosmos, 1998).
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
Maquiavel, no primeiro quartel do século XVI, nas virtudes cristãs que o bom<br />
governante deveria sempre exibir, pois a religião era um factor de coesão a ter em<br />
conta no relacionamento com as multidões e estas a força de qualquer governo 15 .<br />
Os humanistas cristãos, por outro lado, encorajam o chefe político a dignificar a<br />
sua conduta, no tocante à administração de pessoas e bens dos seus súbditos, pela<br />
imitação de Cristo, submetendo-se à lei divina, cumprindo o juramento sagrado<br />
de se votar à defesa do bem comum, julgando por igual as acções de grandes e<br />
humildes, servindo a República e reconhecendo em <strong>De</strong>us a verdadeira majestade.<br />
Afinal, por esta designação se reconhecia o verdadeiro Senhor, ainda em pleno<br />
século XVI 16 .<br />
Aliás, o crime de Lesa-Majestade que as Ordenações do Reino 17 começam<br />
por classificar como traição que conduz o homem a errar contra <strong>De</strong>us, contra<br />
o seu Senhor natural e contra todos os homens 18 , definido já claramente na<br />
centúria de Quinhentos como “traiçam cometida contra a Pessoa do Rey, ou seu<br />
Real Estado” e de “a pior cousa, e mais abominauel crime que no homem pode<br />
auer” 19 – expressões estas que se reafirmam nos séculos XVII e XVIII no suporte<br />
legislativo fundamentado nas Ordenações filipinas 20 –, reconhecia-o Erasmo 21<br />
nas atitudes tirânicas do próprio governante quando atentava contra as leis de<br />
15 Proveitoso o confronto de duas obras fundamentais de Nicolau Maquiavel, os Discorsi ou, na tradução portuguesa,<br />
Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Discorsi (2ª ed. rev., Brasília, Universidade de Brasília, 1982), e Il<br />
principe (intr.e notas de Federico Chabod, Turim, Unione Tipografico-Editrice Torinese [1924]) ou O Príncipe em<br />
diversas traduções portuguesas.<br />
16 Por Sua Majestade designava-o continuamente Santa Teresa de Ávila, na mesma centúria. Sobre a utilização tardia desse<br />
título pelo Rei de Portugal, ver Martim de Albuquerque, O Poder Político no Renascimento Português (Lisboa, ISCSPU,<br />
1968).<br />
17 Utilizei as edições fac-similadas da F.C. Gulbenkian: Ordenações Afonsinas (fac-simile da ed. de Coimbra, 1792), Lisboa,<br />
1984, 5 Livros; Ordenações Manuelinas (fac-simile da ed.de 1797 da Real Imprensa da Universidade de Coimbra),<br />
Lisboa, 1984, 5 Livros; Ordenações Filipinas (fac-simile da ed.de 1870 feita no Rio de Janeiro por Cândido Mendes<br />
de Almeida), Lisboa, 1985, 5 Livros. <strong>De</strong> lembrar aqui quanto o trabalhoso itinerário da compilação das Ordenações<br />
manuelinas (em reformulação desde 1505, com impressões em 1512/13 e edição corrigida em 1514), cujo texto<br />
definitivo se publica em 1521, foi objecto de análise de importantes estudos como o de Guilherme Braga da Cruz,<br />
O Direito Subsidiário na História do Direito Português (Coimbra, 1975), e os de Nuno J. Espinosa Gomes da Silva<br />
publicados na Scientia Iuridica (Braga, 1977 e 1981). Comentei “O Crime de Lesa-Majestade nos Séculos XVI-XVII:<br />
Leituras, Juízo e Competências” in Rumos e Escrita da História. Estudos em Homenagem a A.A. Marques de Almeida<br />
(coord. Maria de Fátima Reis), Lisboa, Colibri, 2006, pp. 581-597.<br />
18 Ordenações Afonsinas, Liv. V, título II.<br />
19 Ordenações Manuelinas, Liv. V, título III.<br />
20 Ordenações Filipinas, Liv. V, título VI.<br />
21 Nunca conviertas en tu particular provecho lo que es del servicio común, antes bien da con liberalidad de lo tuyo. El pueblo<br />
te debe mucho, pero tú le debes a él todo. Los ambiciosos títulos de “invicto”, “sacrosanto”, “Majestad”, si llegan a tus oídos,<br />
que no pasen al corazón, antes bien procura referirlos a Cristo, a quien sólo competen. El crimen de lesa majestad, que otros<br />
señalan con voz de tragedia, tú repútalo por muy leve. Mancha verdaderamente la majestad del príncipe aquel que, en<br />
nombre del mismo príncipe, obra contra derecho, con crueldad y violencia desaforada. Ninguna injuria te debe alterar menos<br />
que la que se te hace a ti solo. (Enchiridion Militis Christiani, na tradução espanhola Enquiridion. Manual del caballero<br />
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Cristo (cuja imitação, pelo bem comum, sustentava a autoridade real e garantia<br />
a obediência dos súbditos).<br />
O governante cristão, atém-se, pois, por obrigação de consciência e garantia<br />
do respeito dos súbditos, a regras de conduta ditadas pelos mandamentos divinos 22 ,<br />
respeitando os direitos naturais dos seus súbditos, revalorizados ao longo da Época<br />
Moderna por teorias políticas que desejavam acautelar actos arbitrários e tirânicos,<br />
da mesma forma que deveria respeitar as leis do Reino, também elas construídas<br />
segundo os princípios de justiça, e elaborar, obedecendo ele próprio, a leis positivas<br />
que por necessidade as completassem, mesmo que para isso houvesse que revogar<br />
ou alterar antigos costumes locais.<br />
Esta concepção de um poder público de conteúdo espiritual – constantemente<br />
reafirmada em escritos portugueses do século XVI, de tratados de filosofia<br />
política e de crónicas a criações literárias e iconográficas e a textos de intervenção<br />
política e moralizadora – orientará também a Coroa portuguesa no sentido de<br />
preservar a sua autonomia relativamente a qualquer tutela 23 , viesse uma tentativa<br />
de concretizá-la de dentro (da parte de algum órgão ou grupo social) ou de fora<br />
(de um outro Estado, da pressão internacional ou do Papado).<br />
cristiano, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1995, “Opiniones dignas de un cristiano” entre a Regra 6 e a 7,<br />
pp. 211-212).<br />
22 Os ditames divinos provinham sempre das Sagradas Escrituras, fossem estas interpretadas por ministros da Igreja ou, na<br />
sequência da Reforma protestante, pela leitura individualizada do cristão. Conhecem-se as intensas controvérsias que<br />
sobre estas e outras matérias, tocantes quantas vezes mais ao foro teológico e dogmático do que ao disciplinar, opuseram<br />
católicos, luteranos e calvinistas. Também no tocante à direcção política, ficaria sempre em aberto, solucionando-se de<br />
diferentes maneiras, consoante as circunstâncias regionais e epocais, o tipo de relação a desenvolver entre a autoridade<br />
civil e a religiosa (ou eclesial).<br />
23 Sobre a evolução do sistema político em Portugal, suas condicionantes e fases, teorizações e mecanismos internos,<br />
reformulação de conceitos incluindo o de Estado, importa conhecer as análises, aliás nem sempre coincidentes, de<br />
investigadores com vasta obra neste domínio. <strong>De</strong> entre elas destaco de Martim de Albuquerque O Poder Político no<br />
Renascimento Português (v. supra nota 16); de Jorge Borges de Macedo os artigos “Absolutismo” e “<strong>De</strong>spotismo esclarecido”<br />
publicados no Dicionário de História de Portugal (dir. Joel Serrão, Lisboa, Iniciativas Editoriais, v.I, 1971) e a<br />
nova versão editada em Polis. Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado (vols. 1 e 2, 1983-1984); de Maria do Rosário<br />
Themudo Barata A. Cruz “Para a História da Europa no século XVI: Tipologia de regime e instituições” (in Estudos<br />
em homenagem a Jorge Borges de Macedo, Lisboa, INIC / CAHUL, 1992, 199-225) e As Regências na Menoridade de<br />
D. Sebastião. Elementos para uma história estrutural (Lisboa, IN-CM, 1992, 2 vols.); de António Manuel Hespanha As<br />
Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal - séc.XVII (versão abreviada, Coimbra, Almedina, 1994).<br />
O conceito de Estado é particularmente tratado por Martim de Albuquerque em estudo que se cita na nota seguinte e<br />
por A. M. Hespanha em Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime (Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1984), obra esta<br />
que, ao reunir em colectânea diversos outros autores como Pierangelo Schiera e J.A. Maravall, propicia um ensaio de<br />
história comparada. Particularmente atento às transformações dos finais do “Antigo Regime”, incluindo a conceitos<br />
como o de Lesa-Majestade, está, em trabalhos que importa debater, A.M. Hespanha. Daqueles saliento “Da ‘iustitia’<br />
à ‘disciplina’. Textos, poder e política penal no Antigo Regime” (in Justiça e Litigiosidade: História e Prospectica, Porto,<br />
F.C. Gulbenkian, 1993). Ver ainda, de Bartolomé Clavero, “<strong>De</strong>lito y pecado. Noción y escala de transgresiones” (in<br />
Sexo Barroco y otras transgresiones premodernas, Madrid, Alianza Editorial, 1990).
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
Não se estranha, por isso, a atitude de maior independência de um monarca<br />
piedoso, como D. João III, que, a despeito de possíveis contestações e reticências<br />
da própria Cúria pontifícia, negoceia nomeações eclesiásticas, a instituição de<br />
órgãos de composição mista, já não inteiramente do foro eclesiástico, mas com<br />
funções de natureza ética e política, como a Mesa da Consciência em 1532 24 e,<br />
poucos anos depois, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, aliás já requerido<br />
no reinado anterior, que se irá revelar num futuro próximo um eficaz utensílio de<br />
controlo social, a nível de doutrina e de comportamentos 25 .<br />
As reformas administrativas e eclesiásticas desenvolvidas nas décadas de 30<br />
e de 40 desta centúria, bem como as reorientações na política de ensino, e na<br />
formação do funcionalismo, particularmente o jurista, revelam todo um novo<br />
ambiente cultural que marcará as décadas seguintes 26 .<br />
A crença continua a impregnar toda a centúria de Quinhentos, século de<br />
prosperidade económica e de consolidação da soberania dos Estados europeus,<br />
mas época que também experimenta a perturbação, motivada pelo fracasso de um<br />
império universal, pelos confrontos com povos e sociedades de culturas diferentes,<br />
e, sobretudo, pelas escolhas confessionais de forças internas de Estados que haviam<br />
formado até há bem pouco tempo uma Cristandade guiada espiritualmente pelo<br />
Sumo Pontífice. <strong>De</strong>para-se-nos uma Europa dividida e dilacerada no interior dos<br />
próprios Estados por facções ou corpos políticos que se hostilizam e massacram,<br />
fundamentando a autoridade de quem os rege numa profissão de fé, não reconhecendo<br />
uma estrutura superior unitária ou, pelo menos, dominante e controladora<br />
das demais.<br />
Também em Portugal se avaliam, com o rigor possível, as acções do Rei, assim<br />
como as motivações dos seus súbditos, tanto em matérias de fé e de relações com<br />
a Igreja, como em questões políticas e de gestão financeira, sobretudo quando é o<br />
monarca, ele próprio (directamente ou por deputação), quem estabelece tratados e<br />
contratos com indivíduos, grupos e sociedades fora do mundo cristão e católico 27 ,<br />
24 Sobre este órgão consulte-se Martim de Albuquerque, “Política, Moral e Direito na construção do conceito de Estado<br />
em Portugal” (in Estudos de Cultura Portuguesa, 1º v., Lisboa, IN-CM, 1984) e Maria do Rosário Themudo Barata<br />
A.Cruz, “A Mesa da Consciência e Ordens, o Padroado e as perspectivas da Missionação” (in Congresso Internacional<br />
de História. “Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas”, v. III, Braga, UCP/ CNCDP/ FEC, 1993).<br />
25 Chamei a atenção para estes fenómenos em outro estudo recente: Maria Leonor García da Cruz, “Relações entre Poder<br />
real e Inquisição (sécs. XVI - XVII): fontes de renda, realidade social e política financeira” in Inquisição Portuguesa:<br />
Tempo, Razão e Circunstância, Lisboa – São Paulo, ed. Prefácio, 2007, pp. 107-126.<br />
26 A consultar sobretudo os trabalhos de J.S. Silva Dias, Mário Brandão e Martim de Albuquerque.<br />
27 Comunidades e redes de indivíduos pré- ou coexistem e condicionam as relações dos portugueses com os poderes<br />
e mercados regionais principalmente no interior do continente africano e no Oriente. A manutenção de relações<br />
com judeus – incluindo em áreas ultramarinas de domínio português muito após a unificação religiosa que impôs<br />
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os utiliza como agentes ao seu serviço, ou os pretende subjugar ou controlar numa<br />
guerra “justa”.<br />
Afinal não é ao Rei enquanto Pai do seu povo que compete na Época Moderna<br />
a Economia, considerando esta a disciplina 28 que até então se dirigia ao pai de família<br />
a fim de o orientar na realização da Justiça e da “Prudência” (virtude do particular<br />
e do contingente, do agir concreto no quotidiano, conservando e acrescentando<br />
os bens e evitando e diminuindo os males) numa esfera doméstica mas que agora,<br />
cada vez mais complexificada, se liga intimamente com a vida social e política?<br />
Gestão de “justos” negócios<br />
A Coroa portuguesa investe fortemente do ponto de vista comercial e<br />
militar e é importante interveniente em transacções comerciais e financeiras de<br />
âmbito alargado, integrando-se inevitavelmente nos mecanismos internacionais<br />
de crédito.<br />
Trata-se, ao fim e ao cabo, de saber gerir problemas e práticas decorrentes<br />
de uma sociedade política em Expansão que suporta concomitantemente grandes<br />
encargos financeiros pela manutenção de carreiras do trato ultramarino no Atlântico<br />
e no Índico e pela defesa de posições e de domínios atacados em crescendo por<br />
concorrentes em diversificadas partes do mundo (sociedades, religiões e povos<br />
que disputam o controlo de rotas comerciais, de portos e rendas, de produções e<br />
de mercados de consumo).<br />
A defesa e salvaguarda de pessoas e bens do senhorio do Rei de Portugal, seja<br />
na Península Ibérica, em Marrocos, no Brasil ou no Oriente, isto é, a salvaguarda<br />
dos interesses do Reino face à actuação de corsários e de infiéis, justificará por<br />
a conversão ao cristianismo a quantos permanecessem em Portugal – justificam-se frequentemente pela necessidade<br />
de intermediários e de canais de informação extra-fronteiras. Ligações familiares e de parceria comercial relacionam<br />
indivíduos que, distantes, se correspondem servindo simultaneamente de informadores se não mesmo de espiões.<br />
Salientaram a importância destes correios e veículos de informação a Portugal, investigadores como Maria Augusta<br />
Lima Cruz Fagundes, Maria do Rosário Themudo Barata A. Cruz, Anthony Disney e José Alberto R. Silva Tavim.<br />
28 Distinção após Boécio das disciplinas morais em ética, economia e política, dirigidas respectivamente ao próprio<br />
indivíduo, às coisas familiares e à res publica, mas que, conforme as reavaliações até ao Renascimento, incluindo as<br />
de Santo Isidoro de Sevilha com as designações que atribui às partes da filosofia actualis (moralis, dispensativa e civil),<br />
não se consideram se não “regiões confins e as técnicas específicas de um único saber ético dirigido à formação de um<br />
indivíduo capaz de realizar a virtus e a justiça nos vários ambientes da vida social”, conforme afirma Daniela Frigo no<br />
seu estudo sobre “ ‘Disciplina Rei Familiarae’: a Economia como Modelo Administrativo de Ancien Régime” (publicado<br />
no nº 6 de Penélope. Fazer e <strong>De</strong>sfazer a História, 1991, pp. 47-62). A nova visão, partindo do modelo aristotélico e<br />
de reelaborações medievais, sublimava definitivamente a vida civil e política, subordinando o homem e o seu agir a<br />
princípios éticos e virtudes incarnadas no pai de família e no príncipe.
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
parte do soberano o desenvolvimento de estratégias políticas, técnicas de gestão<br />
e transacções comerciais e financeiras, incluindo uma aparente venda de bens da<br />
Coroa e a instituição de padrões de juro em consequência de empréstimos feitos<br />
à Fazenda real por particulares que desviam os seus capitais de investimentos<br />
fundiários. Em troca, e até à restituição do montante adiantado, eles receberão<br />
uma renda anual calculada escrupulosamente 29 .<br />
Exige-se um cuidado suplementar em matérias do foro da res publica quando,<br />
como aqui, se pressupõe a “venda” a particulares de bens por natureza inalienáveis<br />
30 , questão ou negócio este complexo do ponto de vista político e do Direito<br />
e que implica a inclusão de cláusulas e de justificações aliviadoras de qualquer<br />
suspeita de usura. O monarca esclarece no próprio documento que este contrato<br />
não encobre qualquer forma de usura mas, para isso, garante – necessariamente<br />
na fórmula jurídica empregue – possuir o parecer favorável de letrados e de<br />
canonistas, “vender” tais bens com o comum acordo do seu Conselho e, antes de<br />
mais, manifestar com isso a suprema preocupação pela protecção dos seus povos,<br />
defendendo-os e evitando novos impostos.<br />
O bem último da República de que o Rei é garantia e protecção, identificando-se<br />
neste sentido o Rei com o Reino, enquanto entidade pública, e cristã<br />
– recordêmo-lo uma vez mais – justifica e legitima, desta forma, a canalização<br />
de todos os recursos disponíveis dos seus súbditos e, convém aqui lembrá-lo, da<br />
própria Igreja 31 .<br />
A administração régia portuguesa, mesmo na utilização dos diferentes<br />
meios militares e financeiros de suporte ao empreendimento expansionista, não<br />
obedece ela, ao fim e ao cabo, ao fim último de preservar a comunidade cristã e<br />
de acrescentá-la? Não é o monarca o supremo juiz na terra, a garantia em pessoa<br />
do que é justo, aquele que mediante a “economia da graça” (operante nas relações<br />
por ele criadas na Corte e alargando-se a outras relações sociais) altera e viabiliza<br />
aquilo que a Justiça e as leis dos homem não permitem alcançar? Não exige ele,<br />
cumprindo as Ordenações do Reino, que também os seus oficiais da Fazenda sejam<br />
29 Ver Maria Leonor García da Cruz, A Governação de D. João III: a Fazenda real e os seus Vedores, Lisboa, Centro de<br />
História da Universidade de Lisboa, 2001.<br />
30 A inalienabilidade dos Bens da Coroa – princípio que o monarca deve respeitar como lei do reino, superior a si próprio<br />
– fica claramente enunciada na Lei Mental, transcrita para as Ordenações do Reino e destas para o Regimento da Fazenda<br />
(1516) juntamente com a explicação minuciosa dos Direitos reais. Ver o meu estudo citado na nota anterior.<br />
31 Já Guilherme de Ockam e Marsílio de Pádua, nos inícios do século XIV, teorizando a relação entre poderes, legitimavam<br />
o uso de bens ecesiásticos pela autoridade política, nestas circunstâncias.<br />
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de “sã consciência” pois a eles cabem decisões que não seguem exclusivamente os<br />
regimentos e as regras do Direito 32 ?<br />
A religião, sobretudo nos seus compromissos institucionais ou eclesiais, parece,<br />
definitivamente ceder a prioridade a uma moral ou ética política que, todavia, não<br />
desvaloriza os princípios de conduta por aquela ditados, antes os utiliza firmemente,<br />
intervindo no ordenamento social, orientando a mobilidade entre grupos, recolhendo<br />
e redistribuindo recursos, avaliando da competência e da conduta ética dos seus<br />
servidores, com isso impondo uma disciplina socialmente aceite.<br />
É então essa a sociedade que segundo alguns discursos historiográficos<br />
elaborados desde o século XVIII se transformara numa sociedade sufocada pela<br />
intolerância religiosa e por tabus daí decorrentes que a haviam conduzido a expulsar<br />
os judeus e a condenar criptojudeus, afugentando com isso forças vivas identificadas<br />
quase totalmente com o mundo do comércio e das finanças?<br />
Não nos deixemos conduzir por leituras apressadas. Está-se bem longe de<br />
aceitar sem restrições e crítica teses como a de Sombardt ou a de Max Weber que<br />
atribuíam o nascimento do capitalismo e do seu espírito ao séc. XVI e em particular<br />
ao dinamismo das comunidades judaicas ou às reformulações calvinistas.<br />
Fenómenos que isoladamente caracterizarão a dinâmica do capitalismo verificam-se<br />
já em centúrias anteriores. Basta recordar a prosperidade dos negócios, em época<br />
anterior a esta, em Barcelona, nas repúblicas italianas ou na Flandres.<br />
Conhecem-se, além disso, os esforços que de há muito a Igreja vinha fazendo<br />
por conciliar os seus preceitos morais e doutrinais com a complexidade da gerência<br />
dos mecanismos seculares da sua própria instituição e com a evolução de uma<br />
economia cada vez mais fundamentada no crédito, em empreendimentos mercantis<br />
que pressupunham a constituição de sociedades, formas diversas de participação<br />
em lucros e perdas, contratos de exploração e de transporte, financiamentos que<br />
enredavam numa mesma tessitura os Estados, a Igreja, grandes homens de negócio<br />
e diversas outras entidades.<br />
Numa época de florescimento do comércio à distância, intercontinental,<br />
como é o século XVI, de grandes transacções, financiamentos e modalidades de<br />
crédito, a que recorrem, aliás, com frequência, os outros governantes europeus tal<br />
como a Coroa portuguesa, e em que estão envolvidos grupos nobres e não nobres,<br />
mercadores e banqueiros católicos, judeus e protestantes, corpos da Igreja e o<br />
32 Visível no testemunho de um Vedor da Fazenda de D. João III de 1532 a 1557, D. António de Ataíde, primeiro Conde<br />
da Castanheira. Sobre a consciência do político e conselheiro que neste âmbito supera o jurista, ver o seu discurso de<br />
1554, que publico no estudo sobre A Governação de D. João III: a Fazenda real e os seus Vedores (v. supra nota 29).
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
próprio Papado, continua a sopesar-se necessariamente à luz dos novos tempos as<br />
diversas formas de negócio, os contratos de venda, seja de especiarias ou de moeda<br />
em operações cambiais, as formas de financiamento, voluntárias e impostas, os<br />
empréstimos a juros, assim como o controlo dos preços, o regime de monopólio,<br />
o do comércio livre, etc.<br />
Por outro lado, considerando a sociedade portuguesa quinhentista em<br />
grande parte mercantilizada, será que as suas elites intelectuais a definiam como<br />
descaracterizada em relação ao seu passado histórico em virtude de um avassalador<br />
espírito mercantil, cobiçoso e individualista, que a teria dominado desde o início<br />
da Expansão (conquista de Ceuta e descobrimentos no Atlântico) 33 , levando-a a<br />
abandonar costumes e valores tradicionais? Teria ficado condenada a fenecer em<br />
virtude das regras que persistiam de cariz moral, fossem eclesiásticas ou civis?<br />
Sentiam-na os Portugueses coevos ameaçada de alguma forma? A estar, não se<br />
distinguiria da restante Europa cristã dados os debates espirituais, e não apenas em<br />
matéria disciplinar, que no seu âmago atingem profundamente a Igreja universal.<br />
São questões de fé e de dogma que abalam a Cristandade e a dividem mais do que<br />
a secularização dos Estados e a sua subtracção à tutela pontifícia.<br />
A ameaça maior da época às sociedades europeias não decorre dessa secularização<br />
de instituições e de costumes, nem da prosperidade material ou da generalizada<br />
materialização de interesses que de há muito, de facto e de direito, se processava.<br />
Ela parece provir, segundo muitos testemunhos de autores portugueses, sobretudo<br />
da conduta dos indivíduos (negativa dada a má gestão individual de ideais e de<br />
sentimentos). Não é a riqueza em si que se condena na centúria de Quinhentos<br />
mas, correntemente, as formas desonestas de a adquirir e aplicar, isto é, o roubo e<br />
a usura. A crítica de políticos e de intelectuais, aliás, concorre na maioria das vezes<br />
em sintonia com as práticas políticas de moralização de costumes, de controlo<br />
social e de catequização religiosa.<br />
A prosperidade material só é condenada quando a sua aquisição se denuncia<br />
como criminosa perante <strong>De</strong>us e os homens.<br />
Cerca de 1543, um autor português anónimo, ao dirigir-se ao Rei ponderando<br />
na necessidade de se reinvestir na conquista de Marrocos, em detrimento do<br />
envolvimento maior nos negócios da Índia, por diversas ocasiões do seu discurso<br />
insiste nos proveitos decorrentes da Expansão portuguesa – o ouro da Mina<br />
teria sido a coisa mais importante que o Reino alcançara até então e do futuro<br />
33 Ver crítica a este tipo de abordagem tão cara a alguns autores dos sécs. XIX e XX sobretudo no meu estudo Os “Fumos<br />
da Índia”: uma leitura crítica da Expansão Portuguesa (ver supra nota 14).<br />
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senhorio de África esperava pingues proventos em tributos e mercadorias. O seu<br />
juízo ganha, todavia, contornos diferentes ao sopesar riquezas rápidas e efémeras,<br />
referindo-se às provenientes do comércio com o Oriente que de direito pertenciam<br />
somente à Coroa que tomara esse ganho com “justa causa”. O discurso revela-se<br />
assim, para lá de moralizador, fundamentalmente político ao esclarecer os efeitos<br />
corruptores na natureza humana das riquezas alcançadas na Índia, referindo-se<br />
concretamente às obtidas por efeito dos interesses e acções de particulares, em<br />
contraste com a intervenção (conquista) movida pelo Rei de Portugal que ao<br />
combater os poderes regionais que impediam o comércio, engrandecia-se como<br />
defensor e garante do direito natural e das gentes, definindo-se desta forma a<br />
justiça da própria causa 34 .<br />
Curiosamente concordam neste ponto (“boa razão” e “justa causa” do Rei<br />
face a desordens dos particulares) outros pareceres aparentemente contrários<br />
como o que pela mesma época defende um maior investimento no Oriente em<br />
detrimento da conquista no Magrebe 35 . O proveito da Índia (e a utilidade do<br />
comércio no contexto geral da presença lusa na Ásia) acaba por ser extensível a<br />
outras nações para além da portuguesa e a conquista para garantir o trato serviria<br />
para “enriquecimento e conservação da pátria”. Verificavam-se então perdas de<br />
rendimento, de vidas e de honras em virtude das “delícias asianas”? Pois tudo<br />
seria remediável se os súbditos e principalmente os ministros do Rei na Índia o<br />
servissem honradamente imitando-o nos seus propósitos.<br />
A um “justo” comércio cuja segurança se assegurava com uma “justa” guerra,<br />
se referem, pois, estes pareceres políticos ao classificarem a Expansão portuguesa<br />
no Oriente em pleno século XVI.<br />
São preciosos os pormenores do quotidiano reveladores de marcas indiscutíveis<br />
de fenómenos mais profundos e de mais longa duração, que se podem testemunhar<br />
em escritos da época, sejam os compilados no Cancioneiro Geral organizado por<br />
Garcia de Resende e publicado em 1516, os elaborados pelo próprio Resende em<br />
34 Se a conquista de África não levantava dúvidas sobre a causa justa que a motivava, a da Índia ficava assim também<br />
ela legitimada no que respeitava à direcção do empreendimento pela Coroa portuguesa, o mesmo não acontecendo,<br />
contudo, no que se referia a acções de particulares nos tratos e nas próprias guerras na Índia, pois, segundo o autor<br />
do parecer, nada se sabia sobre as razões dos capitães... “. Ver “A pedido do Rei em Almeirim, parecer anónimo sobre<br />
a conquista dos reinos de Fez e de Marrocos”, documento da Biblioteca da Ajuda (Lisboa) que publiquei como doc.<br />
XIII (1543, após Março, s.l.), em As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de África<br />
(v. supra nota 9).<br />
35 “Parecer anónimo justificando conquista da Índia”, documento da Biblioteca da Ajuda (Lisboa) que publiquei como<br />
doc. XIV (1543, após Março, s.l.), em As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de<br />
África (v. nota anterior).
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
crónicas ou na sua Miscelânea dos anos 30 36 , ou os de Gil Vicente (entre 1502 e<br />
1536) e de Jorge Ferreira de Vasconcelos (dos anos 40 e 50). Importa igualmente<br />
frisar as inúmeras epístolas, sonetos, odes e epitáfios de forte cariz crítico, político e<br />
ideológico, sobre os ideais e as desilusões da sociedade portuguesa de Quinhentos,<br />
as virtudes do seu Rei e a dura tarefa que a este se impõe de endireitar o desconcerto<br />
em que os súbditos vivem, que cortesãos e homens de leis escrevem e publicam<br />
nesta centúria 37 .<br />
Juntando a estes testemunhos o dito e o silenciado das crónicas, uma vez<br />
comparadas, os tratados e reflexões sobre filosofia política e ordenação social,<br />
bem como o numeroso manancial de histórias e anedotas que se redigiram de<br />
comentário não apenas ao quotidiano da Corte portuguesa do século XVI mas<br />
também ao das ruas e dos funcionários públicos, de justiça e de finanças 38 , alargamos<br />
consideravelmente a panóplia de documentação coeva a ter em linha de conta e a<br />
confrontar com discursos e pareceres sobre as orientações da política ultramarina 39<br />
e a relação existente, positiva e negativa, e a reformular entre o governante e os<br />
numerosos corpos de governados. <strong>De</strong> soldados, agentes comerciais e mercadores,<br />
funcionários de diferentes instâncias, existem centenas de cartas e apontamentos a<br />
confrontar com anais e narrativas, e com manifestos e projectos de reforma como<br />
os de Diogo do Couto e de Rodrigues Silveira 40 , dos finais da centúria.<br />
36 1530-1534, publicada apenas em 1554. Ver Crónica de Dom João II e Miscelânea por Garcia de Resende com in-trodução<br />
de Joaquim Veríssimo Serrão (Lisboa, IN-CM, 1991).<br />
37 Sá de Miranda e António Ferreira, Diogo Bernardes e Pero Vaz de Caminha, Luís de Camões..., embora naturalmente<br />
se revelem leituras coevas apaixonadas e, sujeitas a fortes condicionantes circunstanciais. As suas críticas devem por isso<br />
mesmo contextualizar-se com o cuidado possível antes de se proceder a qualquer análise. Ver o meu artigo “Mentalidades<br />
e Sociedade no Discurso Literário Quinhentista: um balanço de estímulos e reacções face à Expansão Ultramarina” in<br />
A Escola e os <strong>De</strong>scobrimentos. No tempo de D. Manuel (Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as<br />
Comemorações dos <strong>De</strong>scobrimentos Portugueses, 1999).<br />
38 Anedotas Portuguesas e Memórias Biográficas da Corte Quinhentista, pub. Christopher C. Lund (Coimbra, Almedina,<br />
1980); Ditos Portugueses Dignos de Memória, pub. José H. Saraiva (2.ª ed., Lisboa, Europa-América, s.d.).<br />
39 Consultar Maria Leonor García da Cruz, Os “Fumos da Índia”: uma leitura crítica da Expansão Portuguesa (ver supra nota<br />
14) e “Reavaliações até ao século XVIII do discurso crítico sobre a Expansão portuguesa ultramarina e as directrizes<br />
da Governação” (Clio - Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2000). Quanto aos numerosos<br />
pareceres e discursos sobre a política expansionista, que deverão cruzar-se com as ideias formuladas em obras de diferente<br />
cariz, ver As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de África (v. supra nota 9).<br />
40 <strong>De</strong> recordar ainda a importância de outro tipo de fontes em Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos<br />
e bibliografias (Lisboa, Cosmos/ CLEPUL, 1999). Sobre Diogo do Couto e Rodrigues Silveira atender às análises em<br />
edições críticas ou anotadas de Maria Augusta Lima Cruz, António Coimbra Martins, Luís Filipe Barreto e George<br />
Davison Winius. <strong>De</strong> salientar a desmistificação da “lenda negra” da Índia portuguesa que este último autor leva a<br />
cabo em A Lenda Negra da Índia Portuguesa. Diogo do Couto, os seus contemporâneos e o “Soldado Prático”. Contributo<br />
para o estudo da corrupção política nos impérios do início da Europa moderna (Lisboa, Antígona, 1994), desconstruindo<br />
discursos condenatórios coevos e posteriores ao século XVII que ao utilizarem acriticamente e/ou com preconceito<br />
narrativas anteriores e autores como Couto e Silveira, entre outros testemunhos, interpretam a história maliciosamente,<br />
construindo uma ficção.<br />
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A reflexão sobre acções que de há muito deixaram de ser diabólicas e vis para<br />
se considerarem necessárias às comunidades humanas, como sejam as práticas<br />
comerciais e financeiras, motivaram na verdade e desde cedo debates e reformulações<br />
nos próprios corpos da Igreja, também ela instituição com mecanismos de centralização<br />
administrativa, com recursos e despesas, com investimentos e contratos. O<br />
que importa aos quinhentistas, e em particular aos humanistas cristãos, é que nos<br />
negócios, nas artes e nos ofícios (seja qual for o seu prestígio na ordenação social),<br />
como nos outros aspectos da vivência humana, se controlem as paixões mundanais<br />
que afastam o homem dos desígnios divinos e da sua salvação eterna.<br />
Mesmo a usura e o usurário – resultantes do interesse que se pode tirar do<br />
empréstimo de dinheiro ou do ganho superior a taxas estipuladas oficialmente<br />
– não estão à partida irremediavelmente condenados pelas sociedades europeias.<br />
Se é certo que continua a condenar-se a usura em Concílios e na documentação<br />
emanada da Igreja, nem por isso os Médicis, tão intimamente ligados ao Papado<br />
nos sécs. XV e XVI, ou importantes famílias de negociantes alemães como os<br />
Fugger ou os Welser deixam a fé católica ou de investir no lado católico da Europa<br />
dividida dos séculos XVI e XVII.<br />
Além disso, a doutrina católica defende a possibilidade do arrependimento,<br />
da contrição e da penitência, até à hora da morte e a prová-lo ficaram testamentos<br />
e doações a pobres e organizações de assistência por parte de indivíduos que desta<br />
forma intentaram reparar as suas faltas agindo nesse sentido na derradeira fase da<br />
sua vida 41 ou deixando a herdeiros e testamenteiros obrigações de índole espiritual<br />
de forma a obter, mediante o poder da oração e da penitência, o resgate das almas<br />
do Purgatório.<br />
Também no tempo pós-Reforma, do lado luterano, calvinista ou anglicano,<br />
vão prevalecer as preocupações doutrinais e práticas pelo uso cristão (ou pelos<br />
cristãos) do comércio e do dinheiro. Lutero, numa fidelidade surpreendente à<br />
tradição da jurisprudência eclesiástica, opõe-se ao grande comércio, aos monopólios<br />
e a qualquer forma de especulação que, segundo ele, só beneficiava a ostentação,<br />
a avarícia e a usura. Tal como o faz com a direcção da Reforma, remete para os<br />
governantes seculares mais esta responsabilidade, a da gestão económica e financeira<br />
dos seus territórios.<br />
Contra os profissionais do crédito também se levanta Calvino com as suas<br />
Ordenações eclesiásticas que redige primitivamente para Genebra. O combate à usura,<br />
41 Na sua obra A Bolsa e a Vida. Economia e Religião na Idade Média (Lisboa, Teorema, 1987), Jacques Le Goff esclarece<br />
o tema para a época medieval.
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
como a muitos outros erros da conduta humana, implica uma vigilância constante<br />
por parte desta Igreja 42 , devendo revelar-se actuantes nesse sentido tanto pastores e<br />
ministros como outros membros da comunidade de fiéis e órgãos de composição<br />
mista como o Consistório. Mas, torna-se importante na concepção calvinista,<br />
distinguir o que traz lucro e ostentação individual do que representa benefícios<br />
para a comunidade, adquirido no trabalho produtivo e rentável 43 . A formação<br />
jurídica do doutrinador revela-se em tudo. <strong>De</strong>ixando ao Estado a obrigação de<br />
regular as taxas dos empréstimos e a vida económica, reforça doutrinalmente o<br />
apelo à consciência de cada um e ao cumprimento da Palavra de <strong>De</strong>us.<br />
Os movimentos de Reforma, tanto os protestantes quanto os católicos, apelam<br />
à moderação em muitos aspectos da vida humana e social, incluindo no que toca<br />
a ganhos materiais, e o interesse da comunidade em defender uma ordem a que<br />
obedeçam todos os seus membros (toda a sociedade numa só profissão de fé)<br />
constitui importante factor de coesão e de força a nível de Estados e de territórios<br />
lutando pela sua soberania, não obstante a religião que professam. No combate<br />
à heresia investem sociedades políticas como Portugal e Espanha tanto como a<br />
Inglaterra e as Províncias Unidas...<br />
Se é certo que na segunda metade do século XVI emergem vozes no mundo<br />
católico inspiradas nos novos tempos pós-Trento, de renovação e de reformas<br />
disciplinares a par da defesa do dogma, sobretudo com uma maior preocupação<br />
em controlar rigorosamente a interpretação que se faz das acções e dos objectivos<br />
da Igreja, também se reestrutura todo um discurso político e pragmático, que<br />
antes fora mais laicizado, e agora surge com fórmulas impregnadas de moral<br />
cristã. Basta recordar a esse propósito o discurso do jurista Giovanni Botero sobre<br />
a Razão de Estado (1586). Trata-se, todavia, de um fenómeno não só conjuntural<br />
como alargado no âmbito europeu, independentemente das orientações políticas<br />
e religiosas adoptadas por Estados, por poderes ou por corpos sociais.<br />
A Europa protestante, nas suas múltiplas profissões de fé, do luteranismo<br />
ao calvinismo, definindo-se presbiteriana ou anglicana, encontrando fórmulas<br />
particulares segundo as áreas, conformes ao contexto local, social e cultural, e<br />
42 “Igreja-tecto” ou “Igreja-mãe”, protectora terrestre e guia dos membros da Igreja invisível / conjunto dos crentes em<br />
Cristo. Ver concepções de Calvino em Emile Léonard, “La Notion et le Fait de l’Église dans la Réforme Protestante”,<br />
Relazioni – X Congresso Internazionale di Scienze Storiche, V. IV, Storia Moderna (Firenze, 1955, 75-110) e em La<br />
Réformation / Histoire Générale du Protestantisme (I, Paris, 1961) ou em estudos coligidos no Manual de Historia de la<br />
Iglesia (dir. Hubert Jedin, 2ª ed., Barcelona, Herder, 1978-1988, 10 vols.).<br />
43 Daí a necessidade de encarar criticamente a tese desenvolvida por Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do<br />
Capitalismo (4ª ed., Lisboa, Presença, 1996).<br />
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sobretudo às circunstâncias políticas e ao suporte internacional, também ela, tal<br />
como a Europa católica, sofre controvérsias e até cisões. As tensões e a busca de<br />
solução resultam num debate sobre o fundamento da autoridade, as relações entre<br />
Igreja e Estado e as respectivas áreas de influência sobre a vida social, a conduta<br />
do crente e a sua forma de comunicar com <strong>De</strong>us, os instrumentos de controlo<br />
do rigor doutrinário, as formas de instruir, orientar e de assistir os membros da<br />
comunidade, conduzir o governo, dirigir a vida económica...<br />
Para compreender as atitudes e percepções dos homens da época, não se pode<br />
desligar, na condução orientada das suas acções, a base material (de sustento e de<br />
prestígio) dos preceitos de ordem espiritual que lhe são veiculados e enformam<br />
todo o seu quotidiano.<br />
A sociedade portuguesa irá reagir de variadas maneiras aos estímulos das<br />
diferentes conjunturas ao longo da Época Moderna, contudo, sempre, de forma<br />
dinâmica como o demonstra a prossecução com êxito da Expansão ultramarina,<br />
na sua faceta poliédrica, de investimento comercial, bélico, diplomático,<br />
religioso e produtivo, sempre político e sempre justificado pelos seus objectivos<br />
ideológicos.<br />
Trata-se em todo o Período Moderno de uma sociedade em permanente<br />
transformação, quiçá reestruturação, condicionada por fenómenos de natureza<br />
e tempos diferentes, quase sempre de âmbito internacional dada a amplitude da<br />
presença do domínio português no espaço extra-europeu, o carácter planetário<br />
do seu sistema comercial, os circuitos intercontinentais e inter-regionais que<br />
mantém ainda no século XVIII. Vicissitudes diversas, umas regionais outras de<br />
maior abrangência, que a afectam, provocarão reavaliações económicas, sociais e<br />
políticas. Embora fundamentalmente rural – sobre isso abundam os testemunhos<br />
– como de um modo geral se revelava a restante Europa, não o era em exclusivo,<br />
nem antes da sua Expansão, e muito menos de forma cristalizada 44 .<br />
Quanto à riqueza das suas forças vivas 45 , para compreendê-las é preciso<br />
clarificar processos e fenómenos já atrás referidos, que não sendo exclusivos da<br />
sociedade portuguesa nela tomam um cunho específico. Refiro-me à heterogenei-<br />
44 Essa dupla feição, aliás, foi sempre bem evidente, conforme o evidenciaram as análises de Orlando Ribeiro e de Jaime<br />
Cortesão que deitaram por terra teses que defendiam ter ocorrido uma viragem no carácter nacional no início da<br />
Expansão ultramarina. Ver sobretudo a análise crítica que sobre isso fiz em Os “Fumos da Índia”: uma leitura crítica da<br />
Expansão Portuguesa (cit. supra nota 14).<br />
45 Situação antes e depois da unidade religiosa definida claramente desde as disposições de D. Manuel de <strong>De</strong>zembro de 1496<br />
sobre a saída do Reino de todos os não cristãos. <strong>De</strong> salientar àcerca deste assunto o estudo actualizado sobre “Expulsão<br />
ou Integração” de Maria José Ferro Tavares em Judaísmo e Inquisição. Estudos (Lisboa, Ed. Presença, 1987).
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dade de condições cada vez mais acentuada dentro das grandes clivagens sociais,<br />
verificando-se alterações sucessivas na maioria dos casos em virtude da intervenção<br />
crescente do poder real e das tentativas de regular os recursos materiais e humanos<br />
no Reino e nos seus senhorios. Com as reestruturações e os dinamismos de corpos<br />
sociais em áreas e em conjunturas diferentes, vão também sendo reavaliados de<br />
diferentes formas os ideais e as funções, emitindo-se juízos de valor sobre o lugar<br />
que cada um ocupa nessa sociedade em transformação 46 .<br />
Note-se que bem longe ainda do século XVII já a prosperidade material<br />
que se reflectia no prestígio do Rei de Portugal e na sua imagem e representação,<br />
se definia com base na riqueza dos seus súbditos. Muitos conselheiros em 1534<br />
e 1535 chamavam a atenção do monarca, em pareceres orais e escritos, para as<br />
disponibilidades financeiras de nobres, cidades, estruturas eclesiásticas e ordens<br />
religiosas, incluindo as militares, cujo contraste com a Coroa portuguesa era abissal<br />
em termos de liquidez de capital 47 .<br />
A Corte, cujo engrandecimento e ambiente gerador de maledicência tanto se<br />
critica na literatura política de cariz moralizante, acaba por ser para lá de sede régia,<br />
um centro político e um local de auscultação. A sua própria itinerância permite<br />
a reavaliação sucessiva de regiões e de grupos de indivíduos e a oportunidade de<br />
alterar, em moldes aliás previstos pelas Ordenações do Reino, o exercício directo<br />
da justiça real. Permite, igualmente, exponenciar a manifestação pública da<br />
magnanimidade da graça régia 48 .<br />
Com o grande nobre e alto funcionário da Casa Real cruzavam-se no mesmo<br />
local o nobre de proeminência política, com maior ou menor autonomia na gestão<br />
de homens e de serviços em órgãos centrais de Justiça e de Fazenda, o Secretário<br />
do Rei e o seu abastado Tesoureiro-mor, o jurista (quantas vezes com parentes no<br />
46 Consultar a obra clássica de Vitorino Magalhães Godinho sobre a Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa (4ª ed.,<br />
Lisboa, Arcádia, 1980) e análises posteriores sobretudo de Maria do Rosário Themudo Barata A. Cruz, “As transformações<br />
na sociedade portuguesa (1450-1570)”, Clio. Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa (n. sér.,<br />
nº 4, 1999, entre outros trabalhos); de António de Oliveira, “Poder e Sociedade nos séculos XVI e XVII” in História<br />
de Portugal (dir. João Medina, V.VII, entre outros trabalhos); e de João Cordeiro Pereira, “A Estrutura Social e o seu<br />
devir” in Nova História de Portugal (dir. Joel Serrão e A.H. Oliveira Marques, V.V, Lisboa, Presença, 1998).<br />
47 Maria Leonor García da Cruz, As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de África<br />
(v. supra nota 9).<br />
48 Quiçá procurando aplacar tensões, corrigindo ou colmatando a inadaptação de juízes locais ou de âmbito regional<br />
às exigências de novas leis. A esse propósito recorde-se a crítica ambivalente de Gil Vicente por volta de 1525/26 ao<br />
nomear o iletrado e até boçal, porém grande proprietário, Pero Marques juiz da Beira, que guiado pela leitura que sua<br />
mulher lhe vai fazendo da Lei, julga mais pela sua consciência ou falta de senso do que pelo direito ordinário. Novas<br />
disposições legislativas confirmam sobretudo desde a década de 30 a valorização da instrução e profissionalização dos<br />
juízes e desembargadores, mas situações absurdas continuam a prevalecer no quotidiano das populações. As queixas<br />
chegam ao Rei em Cortes e fora destas.<br />
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mesmo corpo) que almeja os principais cargos em órgãos intimamente unidos à<br />
soberania régia e que, ao clarificar ordenações, regimentos e tratados, alicerça os<br />
direitos reais dentro e fora do Reino 49 . Este constitui apenas um dos grupos de<br />
não nobres que, dada a sua formação universitária e prática profissional, colocadas<br />
ao serviço dos interesses régios, anseia por uma promoção social que só a graça<br />
régia lhe poderá proporcionar. Outros há, e das mais variadas proveniências,<br />
que, residentes na Corte, ou nesta estantes temporariamente, a requerer mercês,<br />
esperam pela sua vez de embarcar com alguma nomeação para um ofício no mar<br />
ou em terra.<br />
Se para uns o engrossamento dos moradores da Casa Real representa um<br />
depauperamento das casas senhoriais 50 e um desperdício na vida de Corte de gente<br />
vocacionada para a guerra, outros vêem na colocação directa ao serviço do Rei a<br />
via por excelência para indivíduos e Casas ganharem prestígio social e benefícios<br />
materiais, através da boa colocação de parentes e dependentes, pelo exercício de<br />
funções e na realização de missões de serviço público que, embora com restrições<br />
ordenadas, proporcionarão por vezes pingues dividendos e, sobretudo, despertarão<br />
mais tarde ou mais cedo actos de graça régia, tão incontestáveis quanto<br />
invejáveis.<br />
Fidalgos de sangue ou recém-nobilitados, eram inúmeros, os auxiliares do<br />
monarca entre os quais gente formada em Direito canónico e em Direito civil,<br />
cujo parecer em matérias de consciência o Rei muito prezava. Recorde-se que,<br />
mesmo tendo sido Évora centro do poder político por alguns anos na década 30<br />
49 O papel fundamental do jurista na preparação de prólogos e preâmbulos em ordenações, isto é, no suporte teórico<br />
do poder régio e da sua prática, e na enunciação de cláusulas, cada vez mais claras e especificadas, em regimentos e<br />
noutras disposições que criam ou reformulam, assim como a sua acção em Cortes salvaguardando os interesses do Rei<br />
/ Reino face a protestos e reivindicações de corpos sociais nelas presentes ou representados, tem vindo a ser estudado<br />
em História do Direito (Paulo Merêa, Martim de Albuquerque, Marcello Caetano, Nuno Espinosa Gomes da Silva<br />
e António Manuel Hespanha), assim como pela História institucional, social e política, pela económica e pela das<br />
mentalidades. Ver Maria Leonor García da Cruz, A Governação de D. João III: a Fazenda Real e os seus Vedores (v. supra<br />
nota 29); Maria do Rosário Themudo Barata A. Cruz, As Regências na Menoridade de D. Sebastião. Elementos para uma<br />
história estrutural (v. supra nota 23).<br />
50 Crítica presente em pareceres políticos destas décadas, manifestados através da poesia de Francisco Sá de Miranda,<br />
sobretudo na Carta “A António Pereira”, Senhor do Basto, quando partiu para a Corte com a casa toda (inserta nas<br />
Obras editadas em 1595, que publico em Os “Fumos da Índia”: uma leitura crítica da Expansão Portuguesa, pp. 192-<br />
199, cit. supra nota 14), quer no discurso do conselheiro régio Manuel de Sousa que, escrevendo ao monarca a 1 de<br />
Janeiro de 1535 de Arronches, onde é Alcaide-mor, o esclarece num longo parecer acerca do que considera serem as<br />
preocupações maiores da intervenção de Portugal nas áreas ultramarinas e dos fenómenos da sociedade portuguesa que<br />
ao Rei caberia disciplinar, ditando leis e regras de comportamento para a reforma do todo social. Ver a este propósito<br />
estudos que publiquei, entre os quais, As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de<br />
África (cit. supra nota 9) e “Mentalidades e Sociedade no Discurso Literário Quinhentista: um balanço de estímulos<br />
e reacções face à Expansão Ultramarina” in A Escola e os <strong>De</strong>scobrimentos. No tempo de D. Manuel (v. supra nota 37).
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
do séc. XVI 51 , enquanto a Corte nela se manteve devido à peste que grassava em<br />
Lisboa, de há muito que a cidade de Lisboa se transformara em sede permanente<br />
das principais instituições de gestão administrativa e espelho de um império<br />
ultramarino, mesmo que membros ou comissões de certos órgãos centrais tivessem<br />
ainda de acompanhar o Rei nas suas deslocações ou de acorrer à sua presença<br />
sempre que se considerasse oportuno.<br />
Subjacente à análise da realidade social, ela própria indissociável de condicionantes<br />
culturais, políticas e económicas, e de factores sempre em mutação que se<br />
interinfluenciam, permanecem questões que se relacionam com a complexidade de<br />
uma estrutura social sempre em movimento 52 , com o dinamismo de indivíduos e<br />
grupos, a sua articulação com os poderes existentes na sociedade e com instâncias<br />
externas, as suas definições jurídicas e a reavaliação de actividades, funções e<br />
conceitos.<br />
Ao longo da Época Moderna em Portugal, haverá períodos de frequentes<br />
consultas e de debates, de circulação de pareceres, alvitres ou memórias, sobre<br />
investimentos e gestão de recursos humanos e materiais, formas de colonização,<br />
relações comerciais e políticas, reformas administrativas e militares, no Reino e<br />
nos territórios ultramarinos. Corresponderam alguns a épocas de grande tensão,<br />
disputas e mobilidade de gente de diferentes camadas, incluindo na heterogénea<br />
nobreza e nos homens de negócio, de cepa cristã mais ou menos antiga. Há os que<br />
partem para áreas ultramarinas não apenas portuguesas, aí investindo a nível de<br />
exploração de recursos ou de serviços, ou mobilizam-se dentro da própria Europa.<br />
Outros vivem no Reino as vicissitudes de regime, os afluxos e refluxos de riquezas, as<br />
crises e as “viragens” económicas, os debates na Corte (esteja esta em solo nacional<br />
ou em Madrid durante o domínio filipino) ou noutros órgãos e instâncias, em<br />
reuniões dos Estados do Reino, em círculos mais ou menos alargados, políticos<br />
e/ou eruditos, nas Academias...<br />
Vários investigadores têm vindo a aprofundar o conhecimento sobre o envolvimento<br />
de homens, de capitais e de produtos nos empreendimentos marítimos<br />
portugueses, feitorias, colónias, redes e circuitos, o sistema comercial da Coroa e<br />
a gestão da Fazenda, as estratégias do Estado e dos grupos financeiros, as relações<br />
com praças internacionais, a correspondência entre mercados e mercadores, os<br />
51 Maria de <strong>De</strong>us B. Manso, Évora, Capital de Portugal 1531-1537 (Tese de mestrado, Lisboa, FLUL, 1990, 2 vols.).<br />
52 À variação dos índices demográficos, sobretudo da mortalidade, numa população em crescimento, aduz-se como<br />
importante factor caracterizador a mobilidade, seja a nível das migrações de indivíduos e de comunidades, seja a nível<br />
de promoções na hierarquia e no prestígio social.<br />
79
80<br />
<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
interesses de comunidades, casas ou agentes mercantis nacionais e estrangeiros<br />
estantes em Portugal ou nos seus domínios, as variações no tipo de investimento,<br />
contratos e sociedades... 53<br />
O peso da “consciência” no desenvolvimento das técnicas<br />
financeiras<br />
Conhece-se como as técnicas mercantis se desenvolveram na Idade Média<br />
desde a revolução comercial e como atingiram a sua generalização e apogeu nos<br />
séculos XIV e XV. Basta recordar, a título de exemplo, dois fenómenos: o desenvolvimento<br />
de métodos de seguro para o comércio por terra e para o marítimo,<br />
com numerosos tipos de contrato, distinguindo-se nestes últimos seguradores e<br />
proprietários de navios; e a divulgação do uso da letra de câmbio com práticas de<br />
endosso e de desconto vulgarizadas desde o começo do século XVI. Em relação com<br />
a evolução monetária, servirão as letras de câmbio para pagamento de operações<br />
comerciais e transferência de fundos, revelando-se importante fonte de crédito e<br />
de lucro financeiro.<br />
No que respeita ao câmbio, outros fenómenos e técnicas ocorrem, devendo<br />
salientar-se:<br />
§ uma generalização paulatina de moedas fiduciárias e escriturárias que, embora<br />
adjuvantes da moeda metálica, se autonomizam das massas monetárias. Entram<br />
na engrenagem em relação íntima com as moedas reais e, portanto, com preços,<br />
economias, estruturas sociais, câmbios e intervenção de instâncias políticas, que<br />
variam também segundo as épocas;<br />
§ o uso de papéis por decalcamento da moeda de conta;<br />
§ os juros por empréstimo a Estados e cidades;<br />
§ as cédulas enquanto formas de reconhecimento de dívidas postas em<br />
circulação;<br />
§ rendas privadas que dependem de fenómenos monetários;<br />
§ contratos de asientos na Corte de Espanha, de banqueiros genoveses que substituem<br />
os alemães;<br />
§ venda e resgate de juros de resguardo / garantia de empréstimos, etc.<br />
53 Ver anteriores referências a autores e estudos, sobretudo nas notas 6 e 8.
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
Todo este desenvolvimento de técnicas financeiras está em relação directa<br />
com a evolução monetária, com o pagamento de operações comerciais, com a<br />
transferência de fundos, assim como com a concepção que se tem e com o uso<br />
que se faz das fontes de crédito e dos lucros financeiros. Com estas práticas se<br />
relaciona também o desenvolvimento da própria contabilidade e o surgimento da<br />
nova técnica por partidas dobradas conhecida por “escrita à veneziana”, já utilizada<br />
antes de meados do séc. XIV em Luca e em Génova, divulgada na Europa no séc.<br />
XVI a partir de Antuérpia, com provável uso em Portugal nos sécs. XV e XVI,<br />
utilizada sistematicamente pelos Jesuítas no séc. XVII e aplicado à contabilidade<br />
pública desde 1761 54 . <strong>De</strong>las decorre, ainda, o investimento em áreas de presença<br />
ou domínio, ou em circuitos de espionagem e de informação, muitas vezes difíceis<br />
de manter, tendo em vista a correspondência directa do sucesso de negócios e<br />
transacções com a chegada mais ou menos rápida de notícias sobre vicissitudes<br />
político-militares, incluindo acções de corso, estado das colheitas, circulação e<br />
chegada de navios.<br />
A própria Igreja católica e os Estados que, na centúria seguinte e já após o<br />
impacto da Reforma, a continuaram a respeitar como pastora universal das almas,<br />
integram-se nos novos tempos, gerindo e adaptando os seus mecanismos sociais e<br />
institucionais de acordo com as transformações políticas e financeiras.<br />
Se a prática do Rei de Portugal em distribuir aos seus financiadores padrões<br />
de juro, como atrás mencionei, ou em negociar perdões que ilibam de inquérito<br />
e de confisco de bens cristãos-novos suspeitos e acusados de heresia 55 , encobre na<br />
verdade transacções exclusivamente financeiras 56 , o câmbio nas praças internacionais<br />
54 A.A. Marques de Almeida, Estudos de História da Matemática, Sintra, Ed. Inquérito, 1997.<br />
55 Os cristãos-novos acusados do crime de heresia judaica e apostasia estiveram, na verdade, desde a Bula de perdão<br />
de 1533 até cerca de 1568, ao abrigo de perdões que os salvaguardavam de investigações e de confiscos de bens. Na<br />
sequência da atenção que mereceram a J. Lúcio de Azevedo e a J. Mendes dos Remédios, os perdões gerais e a sua<br />
venda como um dos expediente de financiamento da Coroa, particularmente desde finais de Quinhentos – recordemse<br />
as disposições nem sempre pacíficas de 1577, 1587 e 1605 –, o assunto tem sido aprofundado por historiadores do<br />
período como António de Oliveira, A.A. Marques de Almeida sobretudo em “Dívida Pública: Técnicas e Práticas de<br />
Refinanciamento do Estado no Período da União Ibérica” in A União Ibérica e o Mundo Atlântico (coord. M. Graça<br />
M. Ventura, Lisboa, Eds. Colibri, 1997, pp. 15-28) e António Borges Coelho sobretudo em “Política, Dinheiro e Fé:<br />
Cristãos-Novos e Judeus Portugueses no Tempo dos Filipes”, Cadernos de Estudos Sefarditas, 1, 2001 (pp. 101-130).<br />
Quanto ao processo de sequestro de bens, mediante inventário por oficiais da Coroa (dirigido pelo juiz do fisco),<br />
diferenciado de um possível e ulterior confisco, foi esclarecido em M. Leonor García da Cruz, “Relações entre Poder<br />
real e Inquisição (sécs. XVI - XVII)” (v. supra nota 25).<br />
56 No primeiro caso referido só aparentemente se poderia tratar de uma venda, uma vez que as cláusulas sobre a restituição<br />
dos bens à Coroa e a natureza destes (inalienáveis segundo as leis do Reino que condicionam o próprio monarca)<br />
impediam a sua absoluta concretização. Os limites ficam claramente enunciados desde as Ordenações afonsinas. A<br />
ausência da sua enunciação sistemática nas Ordenações manuelinas editadas em 1521 deve-se somente ao facto deste<br />
Códice remeter tais matérias para um corpo legislativo apartado especificamente referente à Fazenda real, suas ordenações<br />
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<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
continua a esconder, também de forma cada vez mais sofisticada, o empréstimo a<br />
juros e a usura. Para definir o limite entre o aceitável e o condenável dispõem-se<br />
juristas e homens de letras a rever o dito e o escrito, o comentado, a partir das<br />
Sagradas Escrituras, dos textos canónicos e das normas civis.<br />
Recorde-se a esse propósito a importância que tiveram os debates e escritos da<br />
chamada escola de Salamanca no pensamento económico e como em Portugal se<br />
publicavam tratados no último quartel do séc. XVI procurando esclarecer conceitos<br />
e delimitar com rigor o lícito e o ilícito nas práticas usurárias 57 . A persistência da<br />
legislação sobre usura e a sua clarificação, precisando termos e renovando cláusulas<br />
ao sabor dos novos tempos, revela uma prática que sobrevive e os embustes que<br />
se vão criando para mascará-la. Recorra-se por exemplo ao Liv. IV das Ordenações<br />
manuelinas, a títulos só por si expressivos como o XIV: “Das usuras como sam<br />
defesas. E em que maneira se podem leuar” e o XV: “Que nom faça pessoa algüa<br />
contractos simulados”. O primeiro destes mas com introdução de novas cláusulas<br />
é transposto para o Liv. IV das Ordenações filipinas, Tít. LXVII, intitulando-se<br />
simplesmente “Dos contractos usurarios”.<br />
Da denúncia dos contratos resulta confisco para a Coroa e isenção para a parte<br />
denunciante. Considera-se lícito o ganho recebido em determinados contratos de<br />
câmbio entre lugares. A novidade no documento dos finais do século XVI é o alerta<br />
sobre transacções que eram sobrecarregadas consoante o pagamento para câmbio<br />
se fazia em dinheiro (de contado), por letras ou por livranças. Quanto a penas de<br />
degredo, estas passam a fazer-se para África, e as multas a distribuirem-se entre o<br />
denunciante e os cativos. Por ser coisa “que traz peccado e carrego de conciencia”,<br />
estipula-se que havendo dúvida sobre algum caso respeitar-se-á o Direito canónico<br />
e as determinações da Igreja.<br />
A prosperidade de indivíduos e de grupos financeiros resulta em muitos<br />
casos dos problemas de liquidez dos Estados e de outras instâncias políticas. O<br />
empréstimo que vem desafogar dificuldades de capital, militares, administrativos<br />
e sociais, representará para grandes mercadores – e em certas áreas para fabricantes<br />
– uma aliança com mútuas vantagens. Poderão estes grupos (nobres e não nobres)<br />
usufruir de uma protecção que lhes permita facilidades de circulação, acesso a<br />
e regimentos, publicado em 1516. Ver Maria Leonor García da Cruz, A Governação de D. João III: a Fazenda real e os<br />
seus Vedores (ver supra nota 29).<br />
57 El Pensamiento Económico en la Escuela de Salamanca,Una visión multidisciplinar (eds. Francisco Gómez Camacho S.I.<br />
e Ricardo Robledo, Salamanca: Ed. Universidad Salamanca / Fund.Duques de Soria, 1998) e Virgínia Rau, Estudos<br />
sobre História Económica e Social do Antigo Regime (Lisboa, Presença, 1984).
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
funções inclusive de recolha de impostos e de exploração de domínios, a contratos,<br />
a frutos de ordens militares e até a maior liberdade de especulação.<br />
Basta a esse propósito recordar quanto os Welser e os Fugger até às primeiras<br />
décadas de Seiscentos beneficiaram de circunstâncias que os relacionaram, através<br />
de filiais, agentes e intermediários, não só a explorações na Europa como também<br />
ao Oriente e às Américas, para finalmente soçobrar em virtude da ligação à<br />
monarquia espanhola.<br />
Por seu turno, em repúblicas italianas como Florença, conhece-se nos inícios do<br />
séc. XV uma variedade de bancos (como já eram conhecidas diversas casas italianas<br />
desde a centúria anterior), desde estabelecimentos de empréstimo sobre penhores,<br />
de venda de jóias a crédito, até organismos de câmbio directo e os chamados<br />
banchi grossi (Médicis e Bardi). Os bancos dos cambistas transformavam-se em<br />
instituições financeiras aptas a diversas operações, dotadas de dinamismo próprio<br />
e solidez nos negócios em que se especializavam.<br />
Em Portugal, a lei de 1415 interditava a troca e transacção de ouro e prata fora<br />
dos câmbios d’ el-Rei em Lisboa e no Porto. A D. Afonso de Vasconcelos, senhor<br />
de Penela, serão doados em 1465 os câmbios do Reino por dez anos, podendo<br />
ele colocar feitores e rendeiros em todas as cidades, vilas e lugares à frente das<br />
transacções, reservando o Rei apenas um banco em Lisboa pela doação feita por<br />
5 anos a Mossém Rafael Vivas, embaixador do Rei de Tunes e enviado pelo Rei<br />
de Portugal a Fez em 1463. Embora a mais antiga referência a banco (enquanto<br />
instituição financeira) detectada em documentação portuguesa date de 1446,<br />
conforme o provou António Dias Farinha 58 , parece ser o banco citado na fonte<br />
de 1465 o primeiro estabelecido em Portugal. O vocábulo aparece plenamente<br />
integrado na terminologia oficial utilizada no séc. XVI.<br />
Os bancos genoveses, por outro lado, irão no século XVI especializar-se no<br />
empréstimo a soberanos e a outros particulares, dedicando-se igualmente à especulação<br />
cambial. Com um sistema centralizado ou descentralizado, combinando<br />
associações e filiais, estas casas comerciais irão desenvolver monopólios e cartéis,<br />
conseguindo operações comerciais e financeiras, empréstimos e privilégios.<br />
A vulnerabilidade das casas bancárias cujas falências marcam sucessivamente a<br />
história europeia, conduzirá à criação de bancos públicos que recebiam e guardavam<br />
depósitos, como o de Amesterdão (1609) – ou o do seu congénere em Barcelona,<br />
58 António Dias Farinha, “O Primeiro Banco em Portugal (1465)” in Estudos em Homenagem a Jorge Borges de Macedo,<br />
Lisboa, INIC-CAHUL, 1992, pp. 153-171.<br />
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84<br />
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ou ainda o do Rialto em Veneza nos finais do século XVI. 59 Trata-se agora de um<br />
banco permanente que aceita depósitos em qualquer moeda a partir de um certo<br />
valor e que efectua transferências, tendo, para além disso, o monopólio das trocas,<br />
pagando qualquer carta de crédito sobre Amesterdão. Não é contudo um banco de<br />
crédito que adiante títulos ou desconte notas. Só o faz em relação à Companhia<br />
das Índias e ao município.<br />
Recebendo algum lucro sobre as trocas, assim como pela venda às Casas da<br />
Moeda de barras de metal amoedável e pelo lançamento em circulação das moedas<br />
dos grandes negócios, irá revelar solidez e, nos finais da centúria de Seiscentos,<br />
passar a receber toda a espécie de capitais estrangeiros. Só então começa a revelar<br />
operações de crédito, recebendo um direito mínimo sobre a realização de pagamentos<br />
e de transferências, e a conceder adiantamentos a particulares mediante uma<br />
taxa. Inicia-se a circulação do papel bancário a servir de troca como moeda. No<br />
século XVIII, continua todavia, a conservar um papel de regulador e distribuidor<br />
da existência do metal que servia o grande comércio. O metal precioso vinha então<br />
do Brasil e da América espanhola.<br />
Um tanto diferente se revela o Banco de Inglaterra em 1694. <strong>De</strong>corre da<br />
constituição pelos mercadores de Londres de uma sociedade por acções cujo capital<br />
emprestam ao Rei. Uma vez que as notas emitidas circulam e servem de pagamento<br />
e a instituição adianta a particulares, cedo se prestou a operações de crédito.<br />
Mais do que a banca será o comércio a suscitar sociedades que não se limitam<br />
ao meio familiar, antes ganham personalidade jurídica e independência em relação<br />
aos seus membros, acumulam apreciável capital e privilégios que, embora pressupondo<br />
determinada regulamentação ou controlo, irão representar uma garantia.<br />
Grande parte dos fundos utilizados pela Coroa Portuguesa durante o Período<br />
Moderno eram internacionais absorvendo o pagamento dos juros do empréstimo<br />
parte dos lucros desse investimento. Tais circunstâncias teriam justificado, pelo<br />
menos em parte, as alterações funcionais de 1549 na feitoria de Antuérpia. Contudo,<br />
detectam-se, por outro lado, organizações ou propostas (alternativas a bancos), para<br />
apoio de actividades económicas no sector agrícola (Montes de Piedade, 1562/63 e<br />
1572) ou para fomento da agricultura, artes e comércio (montes pios pecuniários<br />
e pequenos bancos para desenvolvimento provincial, 1781 e 1798).<br />
59 V. History of the Principal Public Banks ed. J.G. Van Dillen (Londres, 1934) e estudos de especialistas com vasta obra<br />
sobre estas matérias (citam-se apenas alguns exemplos), como de Raymond de Roover L’evolution de la lettre de change,<br />
XIVe-XVIIIe siècles (Paris, 1953) e de Henri Lapeyre «La banque, les changes, et le crédit au XVI e siècle» (Revue d’histoire<br />
moderne et contemporaine, 3, 1956).
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
Como instância ligada à circulação financeira no âmbito de actividades<br />
comerciais, foi concebida a fundação de um Banco por doutrinadores portugueses<br />
como Duarte Gomes Solis (1622, Discursos sobre los Comercios de las dos Indias,<br />
donde se tratan materias importantes de Estado, y de guerra) e o Padre António<br />
Vieira (Razões apontadas a El-Rei D. João IV a favor dos cristãos novos, para se lhe<br />
haver de perdoar a confiscação dos seus bens, que entrassem no comércio deste Reino).<br />
Considerava este o problema do confisco de bens e a possibilidade dos cristãosnovos<br />
instituírem companhias comerciais e bancos à semelhança do de Amsterdão.<br />
<strong>De</strong> facto será criada apenas a Companhia do Comércio do Brasil, em 1649, com<br />
administração estatizada em 1663, depois transformada na Junta do Comércio<br />
até ser extinta em 1720.<br />
Na entrada da segunda metade de Setecentos considerava-se ainda que as<br />
Grandes Companhias ofereciam segurança como os bancos públicos (encarados<br />
estes apenas em termos de depósito público). Só nos finais da centúria se emitem<br />
apólices (títulos de empréstimos públicos), negociáveis e passíveis de serem trocados<br />
como “dinheiro de metal” 60 .<br />
Continuava a faltar uma instituição, de garantia, que além de trocar moeda<br />
assegurasse também a emissão de papel fiduciário. Será essa a proposta de D.<br />
Rodrigo de Sousa Coutinho. Pretendia reformar o sistema de forma a regularizar<br />
as contas públicas e obter fundos sólidos e crédito do Estado, ao mesmo tempo que<br />
alvitra a criação de um banco (de accionistas) com extensa actividade. O projecto<br />
data, pois, de 1799-1800. Em 1808 renova a proposta, desta feita estando a Corte<br />
portuguesa no Brasil (Rio de Janeiro) devido a vicissitudes internacionais.<br />
Só em 1821 será fundado o Banco de Lisboa, casa bancária, suporte das actividades<br />
económicas através do desconto de letras e abertura de créditos, que, fundido em 1846<br />
com a Companhia Confiança Nacional, originará o Banco de Portugal 61 .<br />
O político exalta o poder do homem, a capacidade de administrar os bens,<br />
vencer pela astúcia e pela inteligência, pelo desenvolvimento técnico e através<br />
60 Ganharão a denominação de papel-moeda, com valor simbólico, garantido oficialmente. Diferiam, assim, de outros<br />
papéis que anteriormente serviram de pagamento: recibos passados pelo tesoureiro da Casa da Moeda (contra a<br />
entrega de ouro e prata) que os mercadores podiam nos inícios do século XVI utilizar para pagamentos na Casa da<br />
Índia, documentos de dívida da Casa da Moeda (escritos, passados durante processos de recunhagem de moedas) que<br />
os comerciantes em 1689 usavam nos negócios como dinheiro de contado, ou ainda acções das Companhias Gerais,<br />
bilhetes das Alfândegas e títulos, em uso cerca de um século depois.<br />
61 Damião Peres, História do Banco de Portugal (Lisboa: Banco de Portugal, v. I, 1971); J. Borges de Macedo, Elementos<br />
para a História Bancária de Portugal (1797-1820) (Lisboa: IAC-CEH, 1963); A.A. Marques de Almeida, “Banca em<br />
Portugal”, Dicionário Temático da Lusofonia, Lisboa, ACLUS-Texto Editores, 2005, pp. 131-132.<br />
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8<br />
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de uma boa organização. Afirmava Nicolau Maquiavel, nos alvores da Época<br />
Moderna, possuir o governante bem sucedido a força do leão e a astúcia da raposa.<br />
Tais capacidades revelavam-se na boa ordem da sua República, através de uma<br />
cuidada organização militar e um corpus legislativo que salvaguardasse acima dos<br />
interesses privados a manutenção da ordem pública, sinónimo da conservação do<br />
governo. No final de contas tinha o homem a capacidade de ser dono de mais de<br />
metade do seu destino, se à observação da conjuntura aliasse a acção e a agilidade<br />
na adaptação circunstancial.
«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />
87
Introdução<br />
O BANCO ESPÍRITO SANTO E A<br />
COMPETITIVIDADE BANCÁRIA NOS<br />
ANOS 60<br />
Carlos Alberto Damas 1 *<br />
Ultrapassadas as dificuldades e as incertezas geradas no pós-guerra, a economia<br />
portuguesa − tal como a generalidade das suas congéneres europeias − no dealbar<br />
da década de 50 iniciou um longo período de estabilidade, ponto de partida para<br />
uma conjuntura expansiva que esteve na origem de um notável desenvolvimento<br />
económico que se iria prolongar até inícios dos anos 70.<br />
Componente importante para este desenvolvimento e progresso, foi o facto<br />
de Portugal em 1948 ter sido membro fundador da OECE (Organização Europeia<br />
para a Cooperação Económica), em 1950 integrar a União Europeia de Pagamentos,<br />
em 1955 a Organização das Nações Unidas e, já no final de uma década e começos<br />
de outra, ter-se associado à EFTA, ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco<br />
Mundial e ao GATT (Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio), adesões<br />
que abriram caminho à internacionalização da economia portuguesa.<br />
A par de muitos outros factores, estas condições, aliadas a um ténue anseio de<br />
autarcia por parte do Estado Novo, impulsionaram significativamente os principais<br />
ramos de actividade da economia nacional, cuja taxa de crescimento chegou a<br />
atingir os 6%, a mais alta então verificada no continente europeu.<br />
Contudo, pouco antes de finalizarem os anos 60, a conjuntura económicofinanceira<br />
ocidental viria a ser dominada por preocupações quanto à sua evolução. O<br />
deficiente funcionamento do sistema monetário internacional, muito afectado pela<br />
1 * Centro de Estudos de História do Banco Espírito Santo.
90<br />
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crise do dólar, obrigou à adopção de políticas anti-inflacionistas, que prejudicaram<br />
as economias dos restantes países. Em consequência, o quadro desenvolvimentista<br />
iria registar visíveis sinais, primeiro de abrandamento, depois de inversão. A breve<br />
prazo a chamada golden age chegaria ao fim.<br />
A solicitação do Estado, as principais instituições de crédito foram desde os<br />
inícios dos anos 50 chamadas a uma intervenção directa muito intensa nesse boom,<br />
assumindo-se como a principal fonte de financiamento dos investimentos produtivos,<br />
quer por via do aumento dos meios de intervenção no mercado monetário, quer<br />
pela concessão do crédito necessário para apoio ao surto económico em curso.<br />
Estas oportunidades iriam estimular (com maior ênfase a partir de meados<br />
da década de 60) uma acrisolada competitividade interbancária, que obrigaria à<br />
intervenção das entidades da tutela antes que os seus efeitos fizessem perigar a<br />
estabilidade do sector. Nessa linha, a reformulação do quadro legal regulador das<br />
operações bancárias mereceu especial atenção por parte do Governo. Numa fase<br />
inicial (1955-1965) para o actualizar, depois, de 1967 em diante, para, com nova<br />
legislação, refrear e combater acções especulativas que vinham sendo praticadas<br />
por alguns bancos.<br />
Líder da banca privada portuguesa entre 1936 e 1964, o Banco Espírito<br />
Santo então sob a presidência de Manuel Espírito Santo 2 − em consequência de<br />
um ambiente competitivo cujos métodos não quis acompanhar − viria a perder<br />
a sua posição, arrebatada pelo Banco Português do Atlântico em 1965 e, logo<br />
depois, pelo Banco Pinto & Sotto Mayor em 1967. Resultante da emergência desse<br />
desafio concorrencial a empresa accionou um conjunto de reformas em várias áreas<br />
decisivas: estrutura organizacional, gestão dos recursos humanos e inovação de<br />
produtos bancários. Os resultados dessa estratégia combinada fariam reverter a<br />
situação, retomando o BES no decorrer do exercício de 1970, o primeiro lugar<br />
do ranking bancário.<br />
A presente comunicação aborda alguns dos aspectos mais relevantes dessa<br />
conjuntura, pretendendo assumir-se como um pequeno contributo para o estudo<br />
detalhado de uma faceta menos divulgada da história bancária portuguesa dos anos<br />
60, a partir das acções desenvolvidas pelo Banco Espírito Santo, enquanto resposta<br />
criativa e eficiente aos bancos competidores que lhe disputavam a liderança.<br />
2 1 Presidente do Conselho de Administração do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa de 1955 a 1973.
o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />
O Banco Espírito Santo e a banca portuguesa do pós-guerra à crise<br />
de 1973<br />
Ultrapassados os problemas originados pela transição para a economia de<br />
paz, as facilidades disponibilizadas ao País pela participação no Plano Marshall<br />
e a execução do I Plano de Fomento (1953-1958) constituíram, a nível interno,<br />
algumas das determinantes mais significativas que encaminharam o País na senda<br />
do progresso económico. Mas não só. Outras causas contribuíram para a expansão,<br />
de que são exemplos entre outros, o crescimento da produção industrial (mais<br />
marcante na 2ª metade da década de 50), a modernização das empresas ligadas<br />
aos sectores produtivos e a alteração das regras do condicionamento industrial,<br />
aliviando as restrições que até então pesavam sobre as iniciativas privadas 3 .<br />
Não obstante o espartilho legal que limitava a livre iniciativa, e que apenas<br />
perto do final dos anos 50 viria a ser alterado, as favoráveis condições económicas<br />
e financeiras existentes desde os primórdios desse decénio criariam oportunidades<br />
únicas para a intervenção activa do sistema bancário nacional no quadro desenvolvimentista.<br />
Na expansão desse período «o desenvolvimento foi financiado<br />
pelo Estado e por cinco grandes bancos, propriedade de alguns grandes grupos<br />
económicos» 4 , um dos quais o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa que<br />
desfrutava da sua posição de líder no mercado bancário português.<br />
Não obstante o que parecia ser o cenário ideal para uma intensa cooperação<br />
em prol das necessidades do País, com benefícios para ambas as partes, a banca<br />
seria acusada de ser responsável pela insuficiente redistribuição do crédito,<br />
desadequada em função dos investimentos necessários. Em 1956, Ramos Pereira<br />
era de opinião que «os bancos não têm podido, ou não têm querido, escoar<br />
por operações financeiras, o caudal de capitais que lhes teria sido teoricamente<br />
possível» 5 . E avançava a hipótese de a situação resultar mais de um efeito das<br />
circunstâncias jurídicas e económicas criadas, do que a tradução de uma política<br />
deliberada do sector bancário para limitar o crédito. Apontava como causas desse<br />
estrangulamento a deficiente estrutura do mercado, o quadro jurídico e as escassas<br />
garantias oferecidas pelos credores, consideradas insuficientes para cobrir o risco<br />
que a banca estaria disposta a assumir 6 . Incertezas que, numa época caracterizada<br />
3 Vd. João César das NEVES, «Portuguese post war growht», em Economic growth in Europe since 1945, p. 339, Pedro<br />
LAINS, O Estado e a industrialização em Portugal, p. 936 e Abel MATEUS, Economia Portuguesa, p. 77 e seguintes.<br />
4 João César das Neves, ob. cit., p. 341.<br />
5 António Ramos Pereira, «Considerações gerais sobre o mercado financeiro em Portugal», pp. 159-161.<br />
6 Anabela Sérgio, O sistema bancário e a expansão da economia portuguesa (1947-1959), pp. 97-101.<br />
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<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
ainda pelo forte intervencionismo estatal, condicionavam os interesses da Banca<br />
cuja acção se sentia naturalmente tolhida.<br />
Espartilhada entre margens estreitas e prazos curtos, desde os alvores da<br />
década de 50 era já notório que a Banca se sentia pouco motivada para ampliar o<br />
crédito comercial, desvanecimento esse que se manifestava com maior evidência<br />
nas duas principais instituições bancárias nacionais, o Banco Espírito Santo e<br />
Comercial de Lisboa (BESCL) e o Banco Fonsecas, Santos & Vianna (BFSV),<br />
que não afectavam os seus recursos disponíveis para além de ponderada proporção.<br />
Com efeito, no BESCL a média do rácio CC/DO 7 na primeira metade da<br />
década de cinquenta foi de 46%, enquanto na instituição liderada pelo banqueiro<br />
Mário Luiz de Souza, aquele valor não ultrapassava os 30%. Situação diferente<br />
dos bancos mais «jovens», como o Pinto & Sotto Mayor (BPSM) com 75%, ou o<br />
Português do Atlântico (BPA) com 61%, acompanhados, de perto, pelo tradicional<br />
Lisboa & Açores (BLA) com 68%. Só nos últimos cinco anos da década, e em<br />
consequência do aumento do volume de crédito concedido, a média do Espírito<br />
Santo subiria para 59%, acompanhando, embora à distância, o BPA (78%) e o<br />
BLA (83%). Essa tendência ascensional continuou na década seguinte alimentada<br />
pelas exigências do mercado. Em Janeiro de 1961, Manuel Espírito Santo Silva<br />
dirigia-se em tom optimista aos accionistas reunidos em Assembleia Geral: «Os<br />
vastos empreendimentos de fomento que se estão realizando para valorização<br />
das fontes de riqueza nacional e o intenso desenvolvimento industrial que se está<br />
operando para progresso e adaptação da nossa economia à da Europa futura, têm<br />
sido, quase exclusivamente, financiados por capitais e créditos internos, trazendo,<br />
como consequência, uma larga aplicação das disponibilidades bancárias» 8 . Como<br />
lhe competia, e em sintonia com os principais bancos nacionais, o BES colaborou<br />
mais activamente no desenvolvimento do surto económico, embora ressalvando que<br />
a concessão de crédito se pautava «dentro dos limites que a orgânica e os princípios<br />
que sempre o orientam lho permitem», mantendo viva a preocupação em não<br />
correr riscos desnecessários, política que se assumia como um dos fios condutores<br />
desde que ascendera à presidência do Banco em 1955, após o falecimento de seu<br />
irmão Ricardo Espírito Santo.<br />
Até ao final do exercício de 1962, os valores do crédito concedido pela empresa<br />
manter-se-iam sensivelmente iguais aos dos anos anteriores. Posteriormente, e<br />
em consequência não apenas da liquidez acumulada, mas também da resposta,<br />
7 (CC/DO) Rácio Carteira Comercial/<strong>De</strong>pósitos à Ordem.<br />
8 Actas do Conselho de Administração, 6 de Janeiro de 1961.
o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />
prudente ainda, ao incremento da acção de alguma concorrência – que originava<br />
a saída de poupanças e capitais privados até então depositados no BES para<br />
bancos que ofereciam melhores remunerações –, regista-se ligeira subida da média<br />
CC/DO, que de 72% no período de 1960 a 1963, progrediu para 80% nos dois<br />
anos imediatos.<br />
No último lustro desse decénio o valor médio abrandou (76%), subindo no<br />
quadriénio 1970-73 para os 102%, acompanhando a vertigem da banca em geral<br />
nesses anos finais dos chamados «trente glorieuses» 9 .<br />
A reforma legislativa<br />
A poucos dias do final de 1955 o Governo fez publicar a Lei 2 079 de 21 de<br />
<strong>De</strong>zembro, onde se comprometia a fomentar a reorganização da política de crédito<br />
por forma a assegurar a assistência bancária «indispensável à consecução dos fins<br />
superiores da economia nacional, e a organizar o mercado de capitais com vista<br />
ao financiamento do fomento».<br />
Contudo, a tão ansiada reforma só chegaria através do <strong>De</strong>creto-Lei n.º 41<br />
403 de 27 de Novembro de 1957, primeiro passo para o ajustamento da actividade<br />
creditícia à conjuntura de progresso do período. Este diploma propunha fixar<br />
directivas e adoptar providências tendentes a promover e a orientar a distribuição<br />
do crédito canalizando-o para o desenvolvimento económico e, em simultâneo,<br />
estabelecer algumas regras sobre o funcionamento do mercado financeiro. Entre<br />
outras medidas, criava o Conselho Nacional de Crédito − órgão consultivo do<br />
Governo para os problemas financeiros da política de crédito − e dividia os<br />
bancos em várias categorias: de Estado, emissores, comerciais e, regulando a<br />
especialização bancária, de investimento. Esta reforma desde há muito que se vinha<br />
impondo. Com efeito, a existência de muitos diplomas parcialmente revogados, e<br />
de disposições, umas nunca regulamentadas, outras nunca executadas, tornavam<br />
imprescindível a sua publicação, por forma a adaptar, a acção das instituições<br />
de crédito às transformações da estrutura económica do País. A sua inexistência<br />
suscitava amiúde problemas de concessão de crédito que preceitos desactualizados<br />
não podiam satisfazer.<br />
Em 1959, e no ano em que o Governo lançava o III Plano de Fomento, a<br />
publicação do <strong>De</strong>creto-Lei n.º. 42 641 de 12 de Novembro regulamentava na<br />
9 Jean Fourastié, Les trente glorieuses ou, La Révolution invisible de 1946 à 1975.<br />
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parte «respeitante aos aspectos gerais do crédito e à banca comercial», algumas das<br />
determinações da lei anterior. <strong>De</strong> notar que este diploma veio substituir legislação<br />
que desde 1925 regulamentava o exercício do comércio bancário. Pelo meio, o<br />
<strong>De</strong>creto-Lei 41 957 de 13 de Novembro de 1958 criara o Banco de Fomento<br />
Nacional que vinha preencher uma lacuna no sistema bancário, facilitando um<br />
melhor aproveitamento do caudal de crédito externo ao alcance do País.<br />
A situação era considerada já tão preocupante que o <strong>De</strong>creto nº 42 641 consignava<br />
no seu clausulado a proibição das instituições de crédito celebrarem entre<br />
si contratos ou acordos de qualquer natureza, tendentes a assegurar uma situação<br />
de domínio sobre os mercados monetário, cambial e financeiro, ou a procurar a<br />
alteração das condições normais do seu funcionamento.<br />
Um dos capítulos era mesmo dedicado à «defesa do crédito», propondo-se o<br />
Estado, através de directivas emanadas pelo Ministério das Finanças, «promover<br />
a coordenação do volume global do crédito com o ritmo da actividade económica».<br />
Quanto à candente questão da taxa de juros, e como forma de garantir a<br />
continuação da política do dinheiro barato, fixou-se que as instituições de crédito<br />
não poderiam exceder em 1,5% a taxa de desconto do Banco de Portugal para as<br />
operações de desconto e empréstimos a curto prazo.<br />
A importância que os contemporâneos atribuíram a este decreto-lei foi de<br />
tal modo relevante que em Janeiro de 1960, Carlos Hermenegildo de Sousa, num<br />
artigo intitulado «Política de investimentos em perspectiva», desenvolvia a ideia de<br />
que a reorganização do crédito operada a partir da legislação produzida desde 1957<br />
dera início a «uma nova política de carácter económico-financeiro, com tão altas<br />
perspectivas nacionais, como aquela que em 1928 trouxe o equilíbrio orçamental<br />
e das contas públicas do País» 10 .<br />
A Banca tinha finalmente um enquadramento legal regulador do exercício da<br />
sua actividade, abrindo novas perspectivas à cobertura financeira da reorganização<br />
económica do País. Uma parte do problema poderia estar resolvida se todos<br />
cumprissem as «regras do jogo». O que manifestamente não aconteceu porque<br />
a velocidade do crescimento das necessidades de crédito tornara obsoletas as<br />
disposições recentemente promulgadas, situação que alguns bancos aproveitaram,<br />
pois, segundo se dizia, nada tendo a perder continuaram a conceder crédito a<br />
empresas e a iniciativas de duvidosa viabilidade muito para além do que a prudência<br />
justificava.<br />
10 Carlos Hermenegildo de SOUSA, «Política de investimentos em perspectiva», em Jornal do Comércio, 24 de Janeiro<br />
de1960.
o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />
Estavam assim estabelecidas as bases para que «uma concorrência indisciplinada»<br />
segundo o parecer de alguns analistas e banqueiros, no decénio seguinte<br />
actuasse ao arrepio das normas estabelecidas. Contudo, as exigências de crédito,<br />
em particular para o comércio de exportação, justificavam a opção tomada por<br />
esses bancos, ao ultrapassarem de forma sistemática os limites estabelecidos nos<br />
diplomas legais mais recentes. Não sendo acompanhados pelos maiores bancos<br />
nacionais, o reflexo dessa ousada política de crédito trouxe-lhes o crescimento da<br />
sua quota de mercado, é certo, mas também futuros dissabores com o progressivo<br />
aumento do crédito mal parado. Mas foi precisamente a subida da quota de mercado<br />
dessas instituições de crédito que viriam a provocar algumas reacções por parte<br />
dos banqueiros mais conservadores ou, se se quiser, mais prudentes.<br />
A concorrência bancária nos anos 60<br />
No decurso dos anos que se seguiram à publicação do «pacote legislativo» a<br />
que fizemos referência, e até quase ao final da década, a concorrência tornar-se-ia<br />
um dos principais desafios que os bancos mais ortodoxos nesta matéria iriam<br />
enfrentar, apostados que estavam em não viabilizar operações consideradas<br />
inconvenientes para o equilíbrio do sector bancário, não cedendo na questão das<br />
taxas de juro a aplicar.<br />
Com efeito, alguns bancos, casos do BPA e do BPSM, entre outros de menor<br />
dimensão, passaram a remunerar os depósitos a taxas superiores às legalmente<br />
estabelecidas e a praticar taxas activas inferiores aos já baixos juros com que o<br />
Estado procurava facilitar o acesso ao crédito.<br />
Datam deste período as primeiras manifestações de descontentamento<br />
provocadas por esta questão. Nos relatórios e contas então publicados os banqueiros<br />
evocavam o mal estar que se instalara devido às práticas da concorrência<br />
«segundo métodos em desacordo com as nossas tradições” 11 , pela utilização de<br />
“certos processos contrários aos elevados objectivos de bem servir os interesses do<br />
País» 12 . Outros justificavam resultados menos conseguidos porque o seu ritmo de<br />
desenvolvimento se processava «dentro da mais rigorosa observância dos princípios<br />
tradicionais e salutares da política de crédito e da técnica bancária, com a preocupação<br />
de evitar qualquer todo e qualquer procedimento menos ortodoxo em<br />
11 Banco Lisboa & Açores, Relatório e Contas, 1964.<br />
12 Banco Fonsecas, Santos & Vianna, Relatório e Contas, 1964.<br />
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relação às regras a cujo escrupuloso cumprimento se deve o conceito favorável de<br />
que têm gozado junto do público as instituições de crédito» 13 , cristalina indicação<br />
de que o rigor ético da actividade bancária estava claramente a ser subvertido.<br />
Também os administradores do BESCL, atentos às movimentações que bancos<br />
de média dimensão faziam para captar clientes e negócios, deixaram exaradas nos<br />
livros de actas extensas referências ao tema.<br />
Mas este era apenas um aspecto do problema, se bem que o mais grave.<br />
Outros interesses, não acautelados no entender da Banca, fomentavam hesitações<br />
no sector financeiro quanto à resposta a dar à crescente procura do mercado,<br />
condição suficiente para que alguns bancos agissem quase como que por conta<br />
própria. Paradigma dessa situação foi a posição do presidente do Banco Português<br />
do Atlântico, dizendo que «apesar da modéstia das taxas de juro, o dinheiro não<br />
se regateia às iniciativas e se não retrai perante as necessidades do desenvolvimento<br />
económico» 14 , justificando desse modo a sua actuação no mercado.<br />
Os responsáveis do BES, por sua vez, insistiam no argumento de que a acção<br />
desenvolvida por essas instituições de crédito, em particular na delicada questão<br />
da remuneração dos depósitos a prazo, tinha implicações negativas nos mercados<br />
monetário e financeiro, sendo por isso impreterível a exigência de uma maior<br />
vigilância por parte das autoridades.<br />
Manuel Espírito Santo, desde os começos da década de 60, seria dos banqueiros<br />
que mais pugnaram pela urgência de uma enérgica intervenção no problema das<br />
taxas de juro praticadas que, deixadas à livre iniciativa do mercado e sem que da<br />
parte do Governo existissem medidas que obrigassem à reposição da legalidade,<br />
conduziria a uma situação insustentável.<br />
Foi só em 1965 – ano da entrada em execução do Plano de Fomento intercalar<br />
(1965-1967) – e após sistemática pressão de alguns banqueiros, que o Ministério<br />
das Finanças, na intenção de melhorar os instrumentos financeiros e monetários,<br />
fez publicar em 18 de Agosto o <strong>De</strong>creto-Lei nº 46 492 que, numa tentativa para<br />
restringir os abusos, determinava os montantes máximos das taxas de juros a<br />
abonar, vedando às instituições de crédito a atribuição de «vantagens ou prémios<br />
que, directa ou indirectamente, possam traduzir-se em retribuições dos seus<br />
depósitos superiores às taxas máximas fixadas» no diploma. Consignava-se mesmo<br />
a aplicação de sanções disciplinares aos membros do Grémio Nacional dos Bancos<br />
13 Banco Borges & Irmão, Relatório e Contas, 1965.<br />
14 Assembleia Geral do Banco Português do Atlântico, Fevereiro de 1955.
o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />
e Casas Bancárias que adoptassem práticas «incompatíveis com os princípios de<br />
uma competição razoável, ou que estejam em desacordo coma ética bancária».<br />
Intransigente face às pressões concorrenciais, e ainda decidido a não seguir as<br />
mesmas práticas, o Banco Espírito Santo via atenuar-se a distância que o separava<br />
dos bancos que ainda poucos anos antes se encontravam no fundo da tabela<br />
com reduzidas quotas de mercado, na ordem dos 1 a 3%. Em Janeiro de 1965,<br />
discursando na assembleia geral do BESCL, Manuel Espírito Santo reforçava a<br />
ideia de que a interferência do mercado monetário no financeiro, pelas altas taxas<br />
de juro praticadas (na remuneração dos depósitos), era um factor de desordem que<br />
o Governo não devia negligenciar.<br />
A última providência legislativa, como cedo se depreendeu, não conseguiu<br />
atingir os objectivos propostos. Entre outras razões, porque os baixos valores<br />
fixados «forçaram» alguns bancos – e para cativar as poupanças - a subir as taxas<br />
das operações passivas, necessitados que estavam de fundos para prover à crescente<br />
procura do crédito, por parte de clientes atraídos pelas favoráveis condições que<br />
lhes eram oferecidas.<br />
O presidente do Grémio dos Bancos e Casas Bancárias, António Júlio de Castro<br />
Fernandes, no discurso proferido na Assembleia Nacional quando da discussão da<br />
lei de autorização das receitas e despesas para 1968, atribuiu o insucesso do diploma<br />
do Verão de 65 à subida das taxas de juro no mercado financeiro internacional,<br />
motivada por balanças de pagamentos desequilibradas, pelo combate à inflação<br />
e pela escassez conjuntural de capitais, fenómenos que afectaram igualmente a<br />
evolução da economia nacional, que sofreu ligeira recessão a que não foi alheio o<br />
forçado desvio de meios para a guerra colonial 15 . A exposição do político foi omissa<br />
na referências às causas que estavam subjacentes ao insucesso da regulamentação,<br />
antes preferindo deixar as leis do mercado funcionarem livremente, até que nova<br />
disposição legislativa veio tentar impor, uma vez mais, regras que todos acatassem,<br />
situação que cada vez mais se demonstrava improvável.<br />
Em 7 de Setembro de 1967, e para «dar forma a um conjunto de disposições<br />
tendentes ao mesmo objectivo», isto é, melhorar as condições de funcionamento<br />
dos mercados monetário e financeiro, o <strong>De</strong>creto Lei nº 47 912, consignava como<br />
transgressão «a simples proposta de taxas de juro superiores aos limites legais»,<br />
considerando-se infractores os depositantes que contratassem ou tentassem contratar<br />
taxas de juros que excedessem os limites estabelecidos. O mesmo diploma tornava<br />
15 Vd., Abel MATEUS, Economia Portuguesa, pp. 88 e seguintes.<br />
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<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />
extensiva a proibição a vantagens ou prémios que pudessem traduzir o abono de<br />
taxas superiores às máximas legais.<br />
A publicação de um diploma nestes termos fez com que os bancos firmassem<br />
um compromisso prometendo acatar as normas expressas na lei mais recente.<br />
Também este pacto, assinado em 24 de Outubro de 1967 pelos presidentes dos<br />
Conselhos de Administração das instituições bancárias não seria respeitado, circunstância<br />
que levou o Conselho Geral do BESCL, em Abril de 1968, a autorizar o<br />
seu Presidente do Conselho de Administração a retirar a assinatura do mesmo.<br />
Com efeito, confrontado com a consumação da perda de quota de mercado<br />
e com a ultrapassagem em 1965, pelo Banco Português do Atlântico 16 , e em 1967<br />
pelo Banco Pinto & Sotto Mayor, e para não caminhar no que poderia converter-se<br />
num “suicídio institucional”, o Banco Espírito Santo, depois de dar conhecimento<br />
ao Ministério das Finanças das razões que determinavam a inflexão da sua política<br />
tradicional nesta matéria, optou por acompanhar a concorrência, sacrificando - tal<br />
como os outros Bancos vinham fazendo desde há vários anos – a rendibilidade,<br />
por via do maior custo do dinheiro dos depósitos.<br />
A par dessa nova maneira de actuar no mercado, e para responder criativamente<br />
às oportunidades emergentes no mercado, o BESCL voltaria a recuperar a posição<br />
perdida no exercício de 1970. Datam da primeira metade dos anos 60 algumas<br />
das reformas internas que revolucionaram quer a sua estrutura organizacional e<br />
tecnológica, adaptando-a à modernidade dos tempos, adaptando novos métodos<br />
de selecção de pessoal, quer apresentando novos produtos bancários (crédito<br />
individual, cheques de viagem, entre outros) que fossem ao encontro da procura<br />
de sectores de clientela que até então não tinham acesso aos Bancos, num mercado<br />
em franca expansão devido ao aumento da capacidade financeira de alguns sectores<br />
da população, em particular da área dos serviços.<br />
Mas a nova década começava com inquietantes indícios de desequilíbrios não<br />
só financeiros, como do sistema económico em geral: crise monetária internacional,<br />
16 Segundo testemunhos coetâneos, os números apresentados nos balanços dos outros bancos e que confirmavam a<br />
ultrapassagem do BESCL, configurava uma situação mais fictícia do que real. Com efeito, para além do facto de dois<br />
dos mais directos concorrentes consolidarem as suas contas na Metrópole com os resultados obtidos nos bancos ultramarinos<br />
seus afiliados, a constituição de provisões (para aquisição de equipamentos para a modernização do banco e<br />
para a cobertura de riscos de crédito), e a preocupação em manter um crescimento mais seguro, influíram nos resultados<br />
explicitados, de tal modo que a nível interno havia consciência que o BES estava melhor do que os números expressos<br />
no balanço. Essa terá sido uma das razões, pelo menos válida para a primeira metade da década, por que os responsáveis<br />
consideravam não ser necessário caminhar muito depressa, não correndo nem os riscos que os outros corriam, nem a<br />
perda de rendibilidade derivada da alta remuneração dos depósitos paga pelos bancos concorrentes, com implicações<br />
na quota de mercado, dos bancos mais tradicionais.
o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />
contracção na liquidez, agravamento da balança comercial, pressões inflacionistas,<br />
especulação bolsista e distorções do mercado financeiro, entre vários outros,<br />
são alguns dos factores assinalados por Manuel Espírito Santo – tal como pela<br />
generalidade dos responsáveis dos outros bancos – nos relatórios e contas desses<br />
exercícios.<br />
Entre 1970 e 1973, o sistema bancário viria a ser afectado na sua rendibilidade,<br />
numa época marcada pelo agravamento das despesas dos bancos (investimento<br />
tecnológico, pessoal, contribuições e impostos, entre outras), e pela constituição de<br />
reservas e provisões adequadas ao risco envolvido na prestação de crédito em contínua<br />
expansão, e que os mais avisados banqueiros não deixavam de abastecer.<br />
Em 1972 e 1973 a situação da economia portuguesa «deteriorou-se dramaticamente<br />
e, na prática, cessaram as condições de crescimento. (...) No fundo,<br />
desaparecida a confiança, praticamente paralisado o investimento produtivo, o<br />
sistema perdera condições de funcionamento» 17 .<br />
A nível externo também a situação tomava inquietantes proporções com<br />
a crise monetária a afectar vários países salientando-se, pela sua importância e<br />
repercussões, a grave situação institucional dos Estados Unidos.<br />
Na conjuntura económica e política que então dominava o mundo ocidental,<br />
a competitividade bancária que existira nos quinze anos precedentes deixava de ter<br />
condições para se manter, exauridas que estavam as distorções que a sustentaram.<br />
A vida económica e financeira desta época (1973-74) mais não era do que o reflexo<br />
do «espelho do tempo» social e político que se vivia, e no qual não tinham mais<br />
acolhimento algumas das práticas bancárias que influenciaram o comportamento<br />
das instituições bancárias nacionais no período mais florescente da nossa história<br />
económica recente.<br />
17 Fernando Rosas, Portugal depois da guerra: estado velho, mundo novo (1950-1974), p, 471.<br />
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