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hiStóRia cOMPaRaDa DOS SiSteMaS BancáRiO e De cRéDitO

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A economia monetária desenvolveu as instituições bancárias, já esboçadas<br />

na época clássica grega. Em muitas cidades, sobretudo nas ilhas do Egeu,<br />

na Ásia Menor e no Egipto, existiam bancos públicos e privados que rece-<br />

biam depósitos, geralmente em mercadorias, e no Egipto sobretudo em<br />

produtos naturais como os cereais. Alguns serviam de «bancos de Estado»,<br />

como o Ptolomaico, de Alexandria. A sua missão era sobretudo a de pagar<br />

a armazenagem dos cereais e distribuir os empréstimos de semente por<br />

conta do Palácio. O sistema de contabilidade aperfeiçoou-se; a introdução<br />

de normas escritas para se dispor dos depósitos implica um progresso em<br />

relação aos métodos gregos do século IV, que os procediam por ordens<br />

verbais. Os bancos privados, radicados em Alexandria e Bizâncio, eram, ao<br />

que parece, gregos e praticavam tanto o depósito como a transferência e o<br />

empréstimo de dinheiro, mas o crédito em grande escala só se manifestava<br />

no comércio marítimo.<br />

HISTÓRIA COMPARADA <strong>DOS</strong> SISTEMAS BANCÁRIO E DE CRÉDITO<br />

História Comparada<br />

<strong>DOS</strong> SISTEMAS BANCÁRIO<br />

E DE CRÉDITO<br />

António Ramos dos Santos<br />

Pedro Gomes Barbosa<br />

Maria Leonor García da Cruz<br />

Carlos Alberto Damas<br />

Coordenação de<br />

ANTÓNIO RAMOS <strong>DOS</strong> SANTOS


HISTÓRIA COMPARADA <strong>DOS</strong> SISTEMAS<br />

BANCÁRIO E DE CRÉDITO<br />

ANTÓNIO RAMOS <strong>DOS</strong> SANTOS<br />

PEDRO GOMES BARBOSA<br />

MARIA LEONOR GARCÍA DA CRUZ<br />

CARLOS ALBERTO DAMAS<br />

Coordenação de<br />

ANTÓNIO RAMOS <strong>DOS</strong> SANTOS


Ficha técnica<br />

TíTulo<br />

história comparada dos sistemas bancário e de crédito<br />

AuTorES<br />

antónio Ramos dos Santos<br />

Pedro Gomes Barbosa<br />

Maria Leonor García da cruz<br />

carlos alberto Damas<br />

CoorDENAÇÃo<br />

antónio Ramos dos Santos<br />

DATA<br />

novembro de 2008<br />

CoNCEPÇÃo GrÁFICA<br />

clássica – artes Gráficas · Porto<br />

ImPrESSÃo<br />

clássica – artes Gráficas · Porto<br />

DEPoSITo lEGAl<br />

000 000/08<br />

ISBN<br />

978-00000-000-0<br />

FINANCIAmENTo:<br />

Programa Operacional ciência, tecnologia<br />

e inovação do Quadro comunitário de apoio iii


5 APRESENTAçãO<br />

11 O SISTEMA DE CRÉDITO E AS ACTIVIDADES FINANCEIRAS NA<br />

BABILÓNIA RECENTE<br />

antónio Ramos dos Santos*<br />

45 UM CASO DE EMPRÉSTIMO E USURA EM PORTUGAL<br />

Pedro Gomes Barbosa*<br />

ÍNDICE<br />

57 «JUSTOS» NEGÓCIOS E POLÍTICA ECONÓMICA NO PORTUGAL MODERNO<br />

Maria Leonor García da cruz*<br />

89 O BANCO ESPÍRITO SANTO E A COMPETITIVIDADE BANCÁRIA<br />

NOS ANOS 60<br />

carlos alberto Damas*


APRESENTAçãO<br />

A economia monetária desenvolveu as instituições bancárias, já esboçadas na<br />

época clássica grega. Em muitas cidades, sobretudo nas ilhas do Egeu, na Ásia Menor<br />

e no Egipto, existiam bancos públicos e privados que recebiam depósitos, geralmente<br />

em mercadorias, e no Egipto sobretudo em produtos naturais como os cereais. Alguns<br />

serviam de «bancos de Estado», como o Ptolomaico, de Alexandria. A sua missão<br />

era sobretudo a de pagar a armazenagem dos cereais e distribuir os empréstimos<br />

de semente por conta do Palácio. O sistema de contabilidade aperfeiçoou-se; a<br />

introdução de normas escritas para se dispor dos depósitos implica um progresso em<br />

relação aos métodos gregos do século IV, que os procediam por ordens verbais. Os<br />

bancos privados, radicados em Alexandria e Bizâncio, eram, ao que parece, gregos e<br />

praticavam tanto o depósito como a transferência e o empréstimo de dinheiro, mas<br />

o crédito em grande escala só se manifestava no comércio marítimo.<br />

À parte do facto de o transporte de espécies monetárias ser arriscado e difícil, a<br />

insuficiência de moeda metálica, a partir de meados do século XII da nossa Era, não<br />

permitia manter um comércio diversificado e em expansão. A flexibilidade comercial<br />

e o recurso ao crédito foram os motivos da instauração de novos instrumentos de<br />

pagamento.<br />

A organização bancária dos Florentinos, no século XV, baseada no sistema<br />

de companhias autónomas, comum na Toscânia do último terço do século XIV,<br />

outorgou-lhes a supremacia europeia por quase um século.<br />

O comércio medieval baseou-se no crédito. Os flamengos utilizavam como<br />

instrumentos creditícios a letra de câmbio e na mesma época, os Italianos utilizavam<br />

um instrumento que foi embrião da letra de câmbio, o denominado instrumentum ex<br />

causa cambii, documento notarial em que se reconhecia o recebimento de uma dada<br />

quantia. No primeiro quartel do século XIV a actividade bancária descentraliza-se<br />

instalando-se em várias praças. O contrato de câmbio autonomiza-se da carta notarial<br />

e generaliza-se a lettera di pagamento.<br />

A banca nasceu mais do câmbio da moeda do que do crédito. Os banqueiros,<br />

no âmbito local, durante o século XIV, tinham conseguido acumular as funções<br />

bancárias: aceitavam depósitos, efectuavam pagamentos mediante transferências<br />

para outros bancos, e sacavam dinheiro sobre outras praças.


<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

Os bancos mais desenvolvidos foram os chamados banchi di scritta venezianos,<br />

durante o século XV. A firma medieval mais importante foi a dos Medicis florentinos,<br />

e o primeiro banco público conhecido foi a Taula de Cambis, de Barcelona,<br />

inaugurada em 1401.<br />

Durante a segunda metade do século XVII as goldsmith’s notes eram autênticas<br />

notas ao portador. Como meios de pagamento tradicionais, ao mesmo tempo que<br />

como instrumentos de crédito, continuaram a circular, em proporção crescente, as<br />

cédulas ou letras obrigatórias e as letras de câmbio.<br />

No sentido estrito do termo, não existiram bancos durante o século XVI senão<br />

em Espanha e em algumas cidades italianas.<br />

Já em fins do século XVI o desaparecimento da banca privada, incapaz de<br />

suprir as necessidades de crédito, suscitou o desenvolvimento da banca pública,<br />

primeiro sob a forma municipal característica da Baixa Idade Média e depois, no<br />

século XVII, sob a forma estatal.<br />

Esta, efectuava as operações de depósitos, transferência e emissão, e veio também<br />

a assumir o controlo da circulação monetária, convertendo-se em banca central.<br />

Paralelamente, o cambista derivará para a banca privada de emissão.<br />

Os bancos privados (cambistas), existentes já na Idade Média, têm origem<br />

naqueles profissionais que realizavam o câmbio de moeda e a compra dos lingotes<br />

de metais preciosos para o abastecimento das casas da moeda. Alguns foram<br />

simplesmente cambistas; outros recebiam também depósitos e foram chamados na<br />

Itália banchieri e na Espanha bancos.<br />

Em 1565 estabeleceu-se o London Royal Exchange e em 1609 o Amsterdamsche<br />

Wisselbank. As casas bancárias acompanharam os centros de comércio e nos finais<br />

do século XVII, os maiores centros eram os portos de Amesterdão, Londres e<br />

Hamburgo.<br />

Durante o século XVI, criaram-se os bancos públicos. Estes eram bancos<br />

municipais sustentados pelas cidades, que os controlavam através de funcionários<br />

seus, eram caixas públicas de depósitos e transferências, e acudiam às necessidades<br />

financeiras do município. No século XVII esta velha instituição passou aos países<br />

do Norte, adequadamente rejuvenescida. O primeiro a estabelecer-se foi, em 1609,<br />

o wisselbank ou Banco de Transferências de Amesterdão. Ligado às suas operações<br />

nasceram também o Girobank de Hamburgo em 1619, e o de Estocolmo, em<br />

1656.


ApresentAção<br />

Estes bancos públicos em breve se orientaram para o controlo da circulação<br />

monetária, fornecendo de metais as casas da moeda e retirando as espécies<br />

desvalorizadas.<br />

O Banco de Inglaterra fundado em 1694 introduziu o uso de um papel especial<br />

com uma matriz (check) como garantia contra a fraude, nascia desse modo o verdadeiro<br />

cheque actual. A sua importância foi todavia muito restrita no século XVIII, tendo<br />

um papel, que grangeou prestígio, nas crises de 1720 e 1754. Em França o banco<br />

central constituía-se em 1716 - Banque Générale.<br />

Durante o século XVIII difundiram-se pela Europa os bancos estatais: na<br />

Dinamarca (1736), Áustria (1756), Prússia (1765), Rússia (1769). Na América do<br />

Norte, o primeiro banco estadual foi o de Massachusetts, em 1740.<br />

A importância da nota como instrumento monetário acentua-se em começos do<br />

século XIX na Europa e América. A partir de 1848, graças ao controlo dos bancos<br />

centrais sobre a circulação fiduciária, a nota deixa de estar apenas ligada ao grande<br />

comércio penetrando outras actividades económicas.<br />

O cheque à ordem ou as obrigações de pagamento (inland bills) descontaram-se<br />

para efeitos puramente comerciais até 1776. O warrant foi introduzido em meados<br />

do século XIX para permitir obter um empréstimo sobre mercadorias que não fossem<br />

objecto de uma transacção diferindo deste modo do cheque à ordem.<br />

O crédito a curto prazo era regulado pelos bancos particulares. Entre estes<br />

destaca-se uma elite, os denominados merchant bankers e haute banque em França<br />

que se especializaram nos grandes negócios financeiros, como a subscrição de<br />

empréstimos públicos e as concessões ferroviárias. Os mais poderosos durante a<br />

primeira metade do século XIX, foram os Rothschild. A firma Rothschild manteve<br />

uma organização estritamente familiar, e os seus membros praticavam o casamento<br />

endogâmico para manter e aumentar o controlo dos negócios.<br />

Função mais modesta, mas não menos importante no seu âmbito, tinham<br />

os bancos provinciais - County Banks - que se difundiram nos finais do século<br />

XVIII em Inglaterra. Estes bancos nasceram com o desenvolvimento económico e<br />

estavam ao serviço dos interesses da indústria e do comércio; raramente praticavam<br />

o empréstimo propriamente dito. A sua especialidade era o desconto de letras. Estes<br />

redescontavam os efeitos comerciais noutros bancos especializados nesta operação,<br />

os chamados Bill Brockers, vizinhos de Lombard Street, na City londrina.<br />

No Continente, e em particular em França, estes bancos provinciais ou locais<br />

foram raros. A nova banca de depósito e desconto surgiu na Escócia, onde, sob a<br />

forma de sociedade por acções, a lei permitia a sua continuação. Na Inglaterra as leis<br />

7


8<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

de 1697, 1708 e 1742 tinham proibido a actividade bancária a sociedades de mais de<br />

seis pessoas, com a intenção de não atenuar a responsabilidade pessoal. Este tipo de<br />

banca escocesa, formada por poucos sócios, mostrou-se muito eficiente na prática<br />

de encobrir a crise de liquidez devido à maior colecta de capitais.<br />

O banco de depósito ou comercial estendeu-se ao Continente nos anos 50 do<br />

século XIX. Em França, o primeiro foi a Société de Crédit Industriel et Commercial,<br />

fundado em 1859. Mais audaz na sua política foi o Crédit Lyonnais estabelecido em<br />

1863. Baseados no modelo desta entidade bancária fundaram-se estabelecimentos de<br />

crédito noutros países como a Banca de Credito Italiano (1860), Algemeene Maatschppij<br />

voor Handel en Nijverheid (1860) em Amesterdão.<br />

Com o avanço do capitalismo financeiro, a banca adquiriu uma importância<br />

decisiva na vida moderna. A sua função consistia em canalizar a poupança para<br />

os investimentos activos e permitir que o homem de negócios, graças ao crédito,<br />

fundasse, ampliasse ou melhorasse a sua empresa.<br />

No último quartel do século XIX distinguem-se claramente dois tipos de bancos:<br />

os de depósitos e desconto ou comerciais e os de negócios ou de investimento. Os<br />

primeiros limitavam-se a operações ordinárias enquanto que, os bancos de negócio<br />

tinham por fim a criação ou expansão de sociedades industriais ou comerciais,<br />

mediante o investimento directo de capitais, a subscrição de bónus estatais, acções<br />

e obrigações industriais ou especulações financeiras de ordem internacional.<br />

<strong>De</strong> salientar que a organização bancária alemã teve características peculiares<br />

pois não existia especialização bancária e os bancos privados transformaram-se<br />

desde cedo em bancos com forma de sociedades anónimas, como a Bleichroder de<br />

Berlim. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos da América, a estrutura<br />

bancária diferia profundamente da europeia. Existia uma grande descentralização<br />

e consequentemente um elevado número de entidades bancárias. Os national banks<br />

remontam a 1863, sendo os mais poderosos, o National City Bank of New York e<br />

o Chasse National Bank.<br />

Nos finais do século XIX e inícios do século XX emergiu um verdadeiro mercado<br />

financeiro no qual Nova Iorque se destacava como centro mundial.<br />

Não se pode abordar o tema desta obra sem assumirmos que estamos perante<br />

uma variante da disciplina que é a história económica, isto é, o estudo dos fenómenos<br />

económicos que se desenvolveram no passado. Carlo Cipolla referiu que o historiador<br />

económico tinha de incluir na sua análise desde as instituições jurídicas até às variações<br />

climáticas de longa duração (Introduzione allo Studio della Storia Economica,1988).<br />

Apesar de muito ligada aos métodos históricos e estatísticos, por vezes, para testar as


ApresentAção<br />

teorias económicas, os seus tópicos alargam-se pela história empresarial, a demografia<br />

histórica e a história do trabalho. Assim, também a história bancária surgiu intimamente<br />

ligada à história do dinheiro pois logo que os pagamentos monetários se tornaram<br />

importantes, passou a existir a preocupação de guardar em segurança o dinheiro de<br />

cada um. À medida que o comércio cresceu, os mercadores procuraram modos de<br />

terem dinheiro à sua disposição para financiarem as suas expedições comerciais. É<br />

sempre arriscado tentar datar um começo para a actividade bancária. Autores como<br />

Raymond Bogaert pretenderam situar o início da banca de depósito na Mesopotâmia<br />

(Les origines antiques da la banque de dépôt. Une mise au point accompagnée d’une<br />

esquisse des opérations de banque en Mésopotamie, 1966).<br />

Na Grécia e Roma antigas existem algumas evidências de transacções financeiras<br />

como os empréstimos e outras operações como a emissão de notas de crédito. Mas<br />

foi o comércio medieval que contribuiu para o crescimento da actividade bancária<br />

através das letras de feira e letras de câmbio que possibilitavam a transferência de largas<br />

somas de dinheiro. E apesar das objecções morais da Igreja a esse tipo de actividade<br />

foram, curiosamente, os banqueiros papais (mercatores vel scambiatores papae) os<br />

mais bem sucedidos no mundo ocidental. A organização dos cambistas e banqueiros<br />

acompanhou o aparecimento de importantes famílias como a de Guillaume Ruyelle<br />

ou os Acciaiuoli, Peruzzi, Bardi e Alberti.<br />

A importante ligação entre Finança e Poder Real possibilitou a formação<br />

de um Império patente na obra de referência de Ramón Carande (Carlos V y sus<br />

banqueros. La Hacienda Real de Castilla, 1949), e a transformação do comércio e<br />

as suas implicações está patente na obra de Joseph e Frances Gies (Merchants and<br />

Moneymen. The Commercial Revolution, 1000-1500, 1972). Também a historiografia<br />

portuguesa se preocupou com as suas principais instituições bancárias e de crédito,<br />

de que salientamos os trabalhos de Jorge Borges de Macedo (Elementos para a história<br />

bancária de Portugal (1797-1820), 1963), António Dias Farinha (O Primeiro Banco<br />

em Portugal (1465),1992), António Marques de Almeida (Banca em Portugal, 2005),<br />

Jaime Reis (Portuguese Banking 1821-1980’s, 1994), Nuno Valério, em co-autoria<br />

com Ana Bela Nunes e Carlos Bastien, (Caixa Económica Montepio Geral 150<br />

anos de história 1844-1994, 1994) e em co-autoria com Eugénia Mata (O Banco<br />

de Portugal, único banco emissor 1891-1931, 1982), Pedro Lains (História da Caixa<br />

Geral de <strong>De</strong>pósitos 1876-1910. Política e finanças no Liberalismo Português, 2002 e<br />

História da Caixa Geral de <strong>De</strong>pósito. Política, Finanças e Economia na República e<br />

no Estado Novo 1910-1974, 2008 ) Carlos Alberto Damas e Augusto de Ataíde (O<br />

Banco Espírito Santo. Uma dinastia financeira portuguesa 1869-1973, 2004).<br />

9


10<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

O presente volume é composto por quatro textos que cobrem áreas cronológicas<br />

diversas tentando percorrer problemáticas que explicitam em cada época o sistema<br />

bancário e as actividades prestamistas.<br />

O Sistema de Crédito e as Actividades Financeiras na Babilónia Recente, apresentado<br />

por António Ramos dos Santos, leva-nos para uma realidade distante e, por vezes,<br />

esquecida da Mesopotâmia antiga. Analisando as actividades de uma família, a dos<br />

descendentes de Nūr-Sîn, de Babilónia, na Época Recente, o texto apresenta-nos<br />

um quadro que fornece não só as tipologias dos documentos relativos às actividades<br />

ditas «financeiras», mas também nos introduz no mundo dos termos jurídicos que<br />

respeitam às diversas situações específicas dos actos prestamistas.<br />

Um Caso de Empréstimo e Usura em Portugal, de Pedro Gomes Barbosa da<br />

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa corresponde a uma tentativa de<br />

conhecimento dos mecanismos de circulação financeira no Portugal medievo.<br />

Precisando os conceitos de empréstimo e usura, o texto esquematiza as suas redes<br />

peninsulares de judeus e muçulmanos, e salienta outras redes financeiras instaladas<br />

em Portugal como as que estavam relacionadas com a Ordem do Templo e a Ordem<br />

de Cister.<br />

«Justos» Negócios e Política Económica no Portugal Moderno, de Maria Leonor<br />

García da Cruz da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa apresenta-se, como<br />

um texto que pretende observar uma realidade em evolução entre os séculos XV e<br />

XVIII, criando novas coesões políticas e uma nova ordem internacional e permitindo<br />

o desenvolvimento das técnicas financeiras em relação directa com a evolução<br />

monetária, com o pagamento de operações com a transferência de fundos.<br />

O Banco Espírito Santo e a Competitividade Bancária na Década de 60, de Carlos<br />

Alberto Damas, do Centro de Estudos da História do BES, coloca-nos perante as<br />

incertezas do pós-guerra e a sequência de eventos que desde a década de 50 conduziram<br />

a um reposicionamento da importância das várias instituições bancárias nacionais<br />

e à consequente expansão do Banco Espírito Santo, que no decorrer do exercício de<br />

1970 detinha o primeiro lugar no ranking bancário português.<br />

A terminar esta breve apresentação, impõe-se um agradecimento ao executivo<br />

do Centro de História da Universidade de Lisboa, sob a direcção do Professor Doutor<br />

António Ventura.<br />

António Ramos dos Santos<br />

Lisboa, <strong>De</strong>zembro de 2008


O SISTEMA DE CRÉDITO E AS<br />

ACTIVIDADES FINANCEIRAS NA<br />

BABILÓNIA RECENTE<br />

António Ramos dos Santos 1 *<br />

No decurso das suas actividades, os entrepreneurs babilónicos dos períodos<br />

mais recentes utilizavam frequentemente o crédito como base das suas transacções<br />

e mesmo como uma verdadeira actividade de tipo financeiro.<br />

Este género de actividade é patente na documentação essencialmente através<br />

das notas promissórias e dos recibos. Alguns textos de reconhecimentos de dívida<br />

apenas descrevem o produto e a quantidade em dívida, o credor e o devedor 2 , outros<br />

são mais complexos e fornecem-nos dados acerca do pagamento de uma quantia<br />

adicional 3 ou de juro, embora estes sejam minoritários nos arquivos 4 . Alguns<br />

documentos fornecem dados relativos às garantias reais 5 e garantias mútuas, como<br />

era o caso em que uma dívida era debitada a um grupo de indivíduos, ficando<br />

cada um dos devedores de providenciar a garantia para o pagamento 6 . E embora<br />

os recibos também possam expressar o pagamento de dívidas 7 , estes são menos<br />

interessantes para a análise das actividades financeiras.<br />

1 * Professor Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigador do Centro de História da<br />

Universidade de Lisboa e do Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.<br />

2 Cf. Ev.M, Nbn. 153 e Cyr. 27.<br />

3 Cf. Cyr. 141.<br />

4 Cf. Nbn. 443, TuM 2/3, 55 e TuM 2/3, 122.<br />

5 Cf. Nbn. 301, Nbn. 345 TuM 2/3, 116.<br />

6 Cf. Ner. 66.<br />

7 Cf. BE VIII, 126, NBC 8335 e NBC 8339.


12<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

Transferências<br />

Reconhecimentos de dívida<br />

3<br />

Reclamações<br />

Recibos<br />

1<br />

Pagamentos 44<br />

Obrigações 10<br />

Missiva empréstimos 1<br />

Liquidações 4<br />

Libertações 4<br />

Indicação de não pagamento<br />

recibo "imittu"<br />

1<br />

Garantias 20<br />

Empréstimos 9<br />

Cobranças 11<br />

Distribuição de documentos relativos às Actividades<br />

Financeiras<br />

440<br />

0 100 200 300 400 500 600 700 800 900<br />

Nº de Menções<br />

O aparecimento de reconhecimentos de dívida é ilustrado desde pequenos<br />

arquivos 8 como na documentação referente às grandes famílias: Ea-ilūta-bāni,<br />

Nūr-Sîn, Egibi e Murašū. O empréstimo tomou um papel relevante 9 . O crédito<br />

poderia ser efectuado em prata ou em géneros naturais, como as tâmaras. Os<br />

empréstimos efectuavam-se, ao que nos parece, aos colaboradores próximos do<br />

credor e mesmo a membros da sua família. Por vezes, entre os primeiros contavamse<br />

os seus escravos encarregues de alguma actividade, particularmente no campo<br />

agrícola. Poderiam efectuar-se esses empréstimos para efeitos de apoio ao cultivo<br />

nos casos dos créditos para a compra de alfaias agrícolas e de sementes, e por vezes<br />

para assegurar a colheita. Mas também se efectuavam para efeitos de consumo<br />

pessoal. Os produtos mais referenciados nas promissórias eram os metais preciosos,<br />

as tâmaras, os cereais e os terrenos.<br />

8 Com as famílias de Epeš-ili, Bēl-ittanu e Nabû-ušallim.<br />

9 Num conjunto de 2847 textos, os reconhecimentos de dívida têm a maior percentagem, 38,54%, com 678 textos. Os<br />

recibos possuem 18,99%, com 334 textos, representando as actividades financeiras 61,57% da totalidade das actividades<br />

representadas.<br />

822


utensílios<br />

tâmaras<br />

serviço real<br />

recipientes<br />

rações<br />

produtos de panificação<br />

produtos alimentares<br />

produtos agrícolas<br />

prebendas<br />

pessoal de trabalho<br />

metais preciosos<br />

metais<br />

materiais têxteis<br />

materiais de construção<br />

impostos e rendas<br />

gado bovino<br />

animais de trabalho<br />

estruturas de panificação<br />

casas<br />

campos<br />

barco<br />

o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />

Distribuição de produtos nos documentos de tipo<br />

financeiro<br />

0 100 200 300 400 500 600 700 800<br />

Nº de Menções<br />

Estes documentos obedeciam a uma tipologia própria 10 . Vejamos por exemplo<br />

o caso de TuM 2/3, 75 e Nbn.443, tidos, respectivamente, como um contrato de<br />

empréstimo e um reconhecimento de dívida.<br />

TuM 2/3, 75 − «2 kurru, 1 pānu de cevada, capital de Nabū-šum-iškun, filho<br />

de [Puhhuru], descendente de Ilūta-bāni, estão a cargo de /.../, filho de Liblut,<br />

descendente de Ša-pī-kalbi. No mês Ayaru, ele dá-los-á (com) 1 pānu de cevada<br />

por kurru como juro. Ele não cultivará outro terreno; se ele cultiva a terra arável<br />

num outro terreno /.../ a (?) Nabû-]šum-iškun ele pagará completamente.<br />

Testemunhas. 2- Tešritu-Nbk 15 (590 a.C.)»<br />

1. descrição do produto e respectiva quantidade.<br />

2. menção do prestamista/credor.<br />

3. menção do recebedor/devedor.<br />

4. cláusula do juro - «x panu de produto por kurru de terreno».<br />

5. testemunhas.<br />

6. localização e data.<br />

10 Ver António Ramos dos SANTOS, «Operações económicas e tipologia documental no período neobabilónico» em<br />

CADMO, nº 11, 2001, pp. 65-81 e «A tipologia dos documentos económicos da Época Recente e os seus antecedentes<br />

paleobabilónicos», António Ramos dos SANTOS em Presença de Victor Jabouille, Faculdade de Letras, Universidade<br />

de Lisboa, 2003, pp.113-124.<br />

13


14<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

Nbn. 443 − «1,2 minas de prata, pertencentes a Itti-Marduk-balātu, filho<br />

de Nabû-ahhē-iddin, descendente de Egibi, foram debitadas a Nabû-zēra-ukkin,<br />

descendente de Nabû-iddin, descendente de Ašlāku. 1 siclo de prata por mina<br />

será provido por ele mensalmente (como juro) 11 . O seu escravo Nabû-te-ka-ida’<br />

serve de garantia.<br />

Testemunhas. Escriba. Data 12 .» 13<br />

Testemunhas. Escriba. Data.<br />

1. menção da quantidade do produto.<br />

2. menção do credor, PN1.<br />

3. menção do devedor, PN2.<br />

4. cláusula de juro.<br />

5. cláusula de garantia real (opcional)<br />

6. Testemunhas.<br />

7. localização e data.<br />

Caracterização do acto de empréstimo<br />

Muitos textos do espólio documental recente revelam o papel importante<br />

do crédito na vida económica da Época Neobabilónia. Existiam várias formas de<br />

contrato mas o reconhecimento de dívida tornou-se, por excelência, no documento<br />

portador do crédito. Naquela época as duas formas contratuais coexistiam, mas o<br />

reconhecimento de dívida ultrapassou pela eficácia o contrato ina pāni 14 .<br />

O reconhecimento de dívida era mais do que um contrato verídico, o acto<br />

formal, o resultado que era visto no documento corrente, não é incluído no procedimento<br />

do documento contratual 15 . No contexto de utilização neobabilónico, o<br />

11 Os locais de pagamento são, em regra, incluídos apenas nos actos referentes a dívidas de produtos naturais, raramente<br />

nos relativos a dívidas de prata.<br />

12 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 546 a. C.<br />

13 Cf. Laurence Brian SHIFF, The Nūr-Sîn Archive: Private Entrepreneurship in Babylon (603-507 B.C.), dissert. University<br />

of Pennsylvania, Ann Harbor: UMI, 1987, p. 426.<br />

14 Cf. Raymond BOGAERT, Les origines de la banque de dèpôt ( Une mise au point accompagnée d’une esquisse des opérations<br />

de banque en Mésopotamie), Leiden: A. W. Siythoff, 1966, p. 122: «En dehors de la clause principale et essentielle qui<br />

constate l’existence d’une obligation, les reconnaissances de dette comportent souvent des clauses accidentalles comme<br />

la stipulation d’un intérêt, initial ou moratoire, la constitution d’un gage ou d’une caution, la fixation de l’échéance,<br />

le lieu de la prestation du débiteur.»<br />

15 No caso do reconhecimento de dívida, o credor detinha a tabuinha e todos os duplicados até ao reembolso estar efectuado;<br />

nessa altura as tabuinhas eram devolvidas como recibos ao vendedor. Ver Leo Oppenheim, Ancient Mesopotamia,<br />

Chicago: The University Press, 1964, p. 282.


o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />

reconhecimento de dívida implicava, simultaneamente, o reconhecimento de uma<br />

obrigação por parte do devedor, assim como uma situação de crédito estabelecida<br />

em nome do credor.<br />

Um documento designado por contrato positivo, era aquele em que o conjunto<br />

das evidências era reduzido a escrito e ligava a parte que o subscreveu à sua<br />

substância, apesar de não ser expressa uma deliberação para o efeito. Este tipo<br />

de contrato pode também ser considerado idêntico ao contrato consensual, no<br />

qual apenas o consentimento das partes contratantes, mais do que os outros actos<br />

externos, era necessário para o estabelecimento da obrigação contratual.<br />

Este tipo de contrato foi utilizado exclusivamente para as transacções de<br />

relação de dívida no período neobabilónico.<br />

A nível empírico, variados graus de controlo, posse e propriedade existem<br />

de facto em muitos acordos jurídicos babilónicos, que parecem ter perdurado<br />

n Época Neobabilónia em instituições legais como o penhor, os alugueres e as<br />

sociedades harrānu 16 .<br />

Considerando o propósito do contrato de empréstimo, que era o registo do<br />

acto de endividamento, assim como o de transferência das mercadorias emprestadas<br />

e a sua propriedade, o reconhecimento de dívida apenas reconhecia a existência<br />

do estado de endividamento 17 .<br />

O empréstimo era um contrato real que exigia para a sua formação a entrega<br />

de uma certa quantidade de coisas cuja propriedade era transferida ao que pedia<br />

emprestado. Não era necessário que as coisas passassem directamente das mãos<br />

do emprestador para as daquele que pedia emprestado; este podia receber também<br />

«das mãos de um terceiro».<br />

O empréstimo que designamos por empréstimo de consumo, para o distinguir<br />

do empréstimo de uso, foi bastante utilizado no período neobabilónico.<br />

16 Cf. George BOYER, «Nature et formation de la vente dans l’ancien droit babylonien» em Mélanges d’Histoire du Droit<br />

Oriental, Paris: Sirey, 1965, p. 79: «Le droit babylonien use largement de purs contrats, ayant pour but exclusif la<br />

création d’obligations comme le louage, parce que cet effet est la seule conséquence possible de l’opération qu’il s’agit<br />

de sanctionner. Mais des practiciens comme l’étaient les juristes babyloniens ne pouvaient perdre de vue que, dans la<br />

vente comme dans l’échange, la création d’obligations n’est qu’un phénomène accessoire dont l’absence n’altère pas<br />

les traits essentiels de l’opération économique.»<br />

17 Anteriormente, a maior parte das convenções era fixada num acto - contrato real - que constava que o devedor recebera<br />

(subanti) ou tinha à disposição (ina pāni) a prata do credor. Existem ainda reconhecimentos de dívida abstractos (u’iltu)<br />

que por escrito fixam simplesmente a existência de uma obrigação entre as partes: o objecto da dívida, a propriedade<br />

do credor, e o devido pelo devedor (ina muhhi). A causa da dívida, o acto jurídico que está na base da obrigação, é<br />

ignorado no u’iltu este tornou-se num verdadeiro contrato positivo.<br />

15


1<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

Os Caldeus praticavam o crédito para o consumo (para aprovisionamento, a<br />

título de ajuda), o crédito para a exploração (para ter, por exemplo, os ceifeiros, para<br />

entregar a colheita), o crédito à produção (para rentabilizar as terras incultas).<br />

O empréstimo era consentido por um prazo bastante curto, que normalmente<br />

não ultrapassava, para os alimentos, a época da colheita; para os tijolos a altura em<br />

que eram fabricados. Os empréstimos de prata eram frequentemente reembolsáveis<br />

na colheita, o que se concebe bem num país agrícola. O empréstimo para comprar<br />

as provisões necessárias para uma viagem era reembolsável no final da viagem.<br />

A responsabilidade do devedor, estabelecida num empréstimo real através<br />

da aquisição das mercadorias emprestadas, estava presente no reconhecimento<br />

de dívida apenas como obrigação já existente, como era expressa na cláusula ina<br />

muhhi. O débito especificado nesta cláusula era considerado separado de uma<br />

obrigação anterior onerada ao devedor numa cláusula indocumentada.<br />

Não era feita menção de entrega, transferência, ou recibo nesta categoria de<br />

contrato positivo. Consequentemente, os reconhecimentos de dívida neobabilónicos<br />

não especificam a causa da dívida.<br />

Se o processo de endividamento não era parte integral nos u’iltu neobabilónicos<br />

no processo negociador, a sua fonte era dada ao conhecimento através dos<br />

comentários do escriba ou das partes contratantes. Em muitos casos, o próprio<br />

texto era intercalado complementarmente com referências que contribuíam para<br />

a identificação do objecto em débito.<br />

Uma excepção ao carácter positivo do u’iltu era a denominação do reconhecimento<br />

ina pāni. Aparentemente um contrato legítimo e genuíno, ele substituía a<br />

declaração de dívida ina muhhi por ina pāni, a qual indicava um acto de colocação<br />

do objecto da dívida à disposição do devedor. Este documento, todavia, era<br />

apenas superficialmente real, visto que todas as referências eram apenas relativas<br />

a acções passadas, as quais não eram incluídas ou dadas a conhecer no texto. A<br />

característica da natureza abstracta e consensual do u’iltu neobabilónico era, por<br />

essa razão, conservada.<br />

Para todos os efeitos práticos, então, os reconhecimentos de dívida ina<br />

pāni podiam ser considerados idênticos funcionalmente à sua contraparte ina<br />

muhhi 18 .<br />

Tal como as suas antecedentes, a terminologia legal neobabilónica não<br />

continha uma designação genérica para «empréstimos». É no reconhecimento de<br />

18 Ver Hugo LANZ, Die neubabylonischen harrânu − Geschäftsunternehmen, Berlim: J. Schweitzer Verlag, 1976, pp. 8-<br />

9.


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dívida, assim como nos recibos, que se podem obter informações em relação às<br />

transacções de entrega e venda creditícias no período neobabilónico.<br />

Porque a venda a crédito neobabilónica 19 aparece usualmente intitulada como<br />

reconhecimento de dívida ou recibo, a sua presença é facilmente discernível. A sua<br />

característica distintiva era a inserção do termo «preço de compra» na declaração<br />

de dívida 20 . Enquanto instrumento predominante relativamente às dívidas, o<br />

reconhecimento de dívida (u’iltu) era utilizado exclusivamente para todas as<br />

transacções de crédito de bens fungíveis 21 .<br />

O comprador, no papel de devedor, já recebera a mercadoria e prometia<br />

entregar num prazo futuro a prata que deveria ter sido imediatamente oferecida<br />

em pagamento como preço de compra. Ocasionalmente, a nota de crédito-venda<br />

podia também registar acordos para o pagamento estabelecido do preço de compra<br />

do objecto.<br />

A compensação para a vontade expressa do credor-vendedor em aceitar um<br />

reembolso adiado poderia, por vezes, custar bastante ao devedor-comprador.<br />

Quando não encontramos evidência de uma imposição de juro, era provável, ao<br />

depararmos com um preço relativo à compra que fosse anormalmente alto, que<br />

este indicasse a remuneração do credor-vendedor.<br />

O juro em geral não era mencionado nos documentos relativos ao créditovenda<br />

e era, de facto, explicitamente proibido, quando a prata devida era designada<br />

como sendo «no seu capital em dívida».<br />

É portanto concebível que as designações sem juro eram colocadas em muitos<br />

reconhecimentos de dívida como notificação de que o respectivo credor-vendedor<br />

já tinha efectuado acordos para receber um preço mais alto do que o normal<br />

em restituição de reembolsos em atraso. <strong>De</strong>ntro dos limites da estrutura dos<br />

19 Cf. George BOYER, o.c., p. 81: «L’interprétation de la vente babylonienne comme un contrat réel est, nous l’avons<br />

vu, généralment adoptée pour les ventes à crédit ou a livrer portant sur des biens fongibles.»<br />

20 Uma das disparidades entre os contratos de venda e os reconhecimentos de dívida era o grau de importância que era<br />

colocado nos documentos em relação às várias obrigações e encargos. Os primeiros eram sempre válidos e provavam a<br />

propriedade e proviam protecção contra futuras reivindicações e litígios. Os segundos, contudo, eram válidos apenas<br />

pelo período de endividamento, durante o qual era detido pelo credor. Logo que o devedor reembolsasse a dívida, o<br />

documento era destruído ou dado ao devedor como recibo.<br />

21 A venda não tinha em princípio um carácter contratual, pois ela não dava lugar a uma obrigação senão em dois casos,<br />

a venda a crédito e a venda com entrega. No primeiro caso, a recepção da mercadoria obrigava o comprador a pagar o<br />

preço no termo fixado. No segundo caso, o vendedor que recebera antecipadamente o preço era obrigado a entregar a<br />

mercadoria na data convencionada. Diferentemente da venda, a troca supunha sempre uma transmissão recíproca feita<br />

de comum acordo entre as partes. Estes actos de venda conservavam-se muitas vezes no seio das famílias, referiam-se a<br />

títulos de propriedade relativos a terras, casas ou escravos adquiridos com prata. Na troca as coisas trocadas poderiam ser<br />

também da mesma natureza (campo, casa, escravo) ou de espécie diferente (jardim, parte do cargo do templo). A troca<br />

implicava uma dupla transferência de propriedade; redigiam-se, por isso, dois actos para cada um dos interessados.<br />

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18<br />

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reconhecimentos de dívida e como um ajustamento de uma simples quantia, era,<br />

então, rotulado de «sem juro». Nestas circunstâncias, futuros encargos de juros ao<br />

devedor-comprador eram proibidos. O credor-comprador de qualquer modo estava<br />

impedido de tentar impor um segundo encargo de juro, mas não de aumentar,<br />

durante as negociações preliminares, o preço inicial a um nível lucrativo.<br />

Apenas os contratos de crédito-venda e entrega-venda provêm do único meio<br />

documental pelo qual mercadorias fungíveis eram trocadas por prata na Época<br />

Neobabilónia. Tomam a forma de reconhecimentos de dívida e recibos e nunca<br />

de verdadeiros empréstimos.<br />

Nestes acordos, o credor-comprador já tinha efectuado um pré-pagamento,<br />

isto é, emprestado o preço das mercadorias ao devedor-vendedor, e consentido uma<br />

demora na sua transferência. A quantia na cláusula de débito do reconhecimento<br />

de dívida resultante era especificada por parcelas no meio de troca nomeado pelo<br />

credor, usualmente a prata, ocasionalmente produtos naturais, enquanto a promessa<br />

de reembolso respeitava à futura entrega de mercadorias compradas.<br />

Contrariamente, os reconhecimentos de dívida das vendas-crédito e das<br />

vendas-entrega raramente eram denominados, e o termo «preço de compra» não era<br />

mencionado em relação à aguardada entrega de mercadorias. Consequentemente,<br />

esses acordos eram reconhecíveis apenas através de um exame cuidadoso da natureza<br />

das transacções reflectidas em certos reconhecimentos de dívida.<br />

Por seu turno, a vontade do credor-comprador em aceitar um retardamento<br />

na entrega tinha, frequentemente, o objectivo de assegurar uma quantidade de<br />

mercadorias maior do que a normalmente esperada pelo preço indicado. Com<br />

efeito, ele pagava um preço de compra mais baixo. Este processo de compensação<br />

era frequentemente baseado em cálculos especulativos envolvendo os preços<br />

diferenciais entre as épocas de sementeira e da colheita.<br />

No exemplo documento datado do reinado de Nabónido 22 , uma entrega<br />

de tâmaras que fosse esperada pelo credor-comprador na data da colheita no<br />

mês de Arahsamnu, colocava-o na posição de tirar partido da diferença entre o<br />

valor das tâmaras na época da redacção do contrato, no mês de Du’uzu, o último<br />

mês da época da apanha das tâmaras e a data de entrega. <strong>De</strong>vido à abundância<br />

de tâmaras durante o mês de Arahsamnu, o preço era extremamente baixo e o<br />

22 Cf. Nbn. 344/Liv. 95.


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credor-comprador era, portanto, capaz de receber mais tâmaras por siclo do que<br />

teria recebido na época do acordo original 23 .<br />

Este tipo de reconhecimento de dívida serve para confirmar a quantidade de<br />

produtos naturais esperada, da aprovação das tâmaras entregues e das situações e<br />

do estabelecimento de garantias implícitas contra pagamentos de juro adicionais<br />

pelo devedor-vendedor.<br />

A noção de que pagamentos compensatórios de juros podiam ser incluídos<br />

nas declarações dos reconhecimentos de dívida é essencial para compreender o<br />

porquê de o credor se comprometer numa transacção sem juro que não continha<br />

alguma manifesta indicação de provento. No sistema económico neobabilónico, a<br />

preocupação pelos interesses do credor era sempre uma prioridade, e era frequentemente<br />

evidente em sanções usadas como apreensão ou penhores, pagamentos por<br />

negligência, e penalidades de juro impostas sobre títulos de reembolso vencidos e<br />

não pagos. É improvável que o credor aceitasse adiantamentos do pagamento ou<br />

da entrega sem receber algum tipo de compensação. Não é razoável assumir que<br />

a protecção de «livre de juro» não seria oferecida a um devedor que não tivesse já<br />

assumido num acordo que reembolsaria convenientemente a potencial perda do<br />

credor. Consequentemente, «livre de juro» não significa necessariamente «livre de<br />

proventos/ lucros».<br />

No pagamento, a expressão «na medida de» quer dizer que a quantidade era<br />

calculada segundo a medida estalão conservada em algum lugar privado ou do<br />

23 As épocas da plantação e colheita apresentam variações nos preços dos produtos. Um preço mais alto seria esperado<br />

para um produto como a cevada durante a época da sua sementeira. Ver Waldo H. Dubberstein, «Comparative Prices<br />

in Later Babylonia 625-400 BC» em AJSL, vol. LVI, 1939, pp. 26-27. Durante a maior parte da Época Neobabilónia,<br />

1 siclo de prata comprava 11 kurru de cevada. Apesar de haver exemplos em que as tâmaras custavam menos do que a<br />

cevada, e 1 siclo de prata comprar ligeiramente mais do que 1 kurru de tâmaras, o preço médio de 1 kurru de tâmaras<br />

durante este período flutuava, geralmente, à volta de 1 siclo. Ver ibid., pp. 25-26. Apesar disso, o alho que era colhido<br />

entre os meses de Nisanu e Simanu desempenhou um papel extremamente importante em várias transacções comerciais,<br />

sendo o seu valor equivalente em prata difícil de prever. Na ocasião em que o alho era trocado pela quantia definitiva<br />

de prata, esta era descrita como sendo de inferior qualidade, Ver TEBR, p. 264. O assunto é mais complicado devido<br />

à não existência de um sistema-padrão de medida para o alho: feixes (pitu) e cordões (gidlu) eram os valores relativos<br />

que são conhecidos. Ver Waldo H. DUBBERSTEIN, o. c., p. 27. Todavia, o pitu não parece ser uma unidade de<br />

medida maior do que o gidlu. Ver Joachim OELSNER, «Die neu-und spätbabylonische Zeit», em Alfonso Archi (ed.),<br />

Circulation of Goods in Non-Palatial Context in the Ancient Near East, Roma: Edizioni dell’Ateneo, 1984, p. 233, n. 40.<br />

A kasiya, uma planta de especiaria, possuía a sua época de colheita nos meses de Ululu a Arahsamnu. O seu preço variou<br />

de cerca de 216 qû por siclo de prata nos inícios da Época Neobabilónia até 90-120 qû por siclo durante os últimos<br />

reinados do período aqueménida. Ver <strong>De</strong>nise Cocquerillat, «Palmerais et Cultures de l’Eanna d’Uruk (559-520)», em<br />

Ausgrabungen der <strong>De</strong>utschen Forschungsgemeinschaft in Uruk Warka, Band .8, Berlim: Gebr. Mann Verlag, 1968, pp.<br />

29-30. O sésamo, era semeado nos meses de Nisanu e Ayaru e a sua colheita era efectuada no mês de Tesritu. Valia<br />

cerca de 8-12 siclos de prata por kurru. Ver ibid., p. 28 e Waldo H. DUBBERSTEIN, o.c., pp. 27-28.<br />

19


20<br />

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palácio ou templo. Esta cláusula tinha o objectivo de prevenir o erro ou a fraude<br />

na formação ou na execução do contrato.<br />

O investidor privado, sem ligações ao templo ou ao palácio, e motivado pelo<br />

desejo de ganho pecuniário ou até de estatuto, não se empenhava numa especulação<br />

comercial sem alguma expectativa de lucro.<br />

A existência de uma possível pluralidade de pessoas que pediam um empréstimo<br />

era devida ao facto de este ser por vezes consentido a várias pessoas. Estas<br />

tinham, por norma, um interesse comum que indicava umas vezes as suas relações<br />

de parentesco ou de aliança, outras vezes o motivo do empréstimo, assim como<br />

as duas causas juntas. O interesse comum aparece melhor ainda quando vários<br />

associados emprestavam por um acto do seu comércio: o empréstimo colectivo<br />

podia ter por objectivo reforçar o crédito do principal interessado.<br />

Em caso de empréstimo colectivo, o credor apenas podia pedir a cada um<br />

dos co-devedores uma parte da dívida, aquela que estava fixada no contrato.<br />

Excepcionalmente, o credor tinha direito a pedir a qualquer um dos co-devedores a<br />

totalidade da dívida, de modo que o pagamento feito por um libertasse o outro.<br />

Quanto ao modo de pagamento podem-se encontrar cláusulas relativas ao<br />

modo de proceder. Quando se estipulava que a prata entregue como pagamento seria<br />

«justa e exacta», significativa que era pura de qualquer liga e de peso combinado.<br />

No caso de produtos como o trigo, podia especificar-se que este seria entregue<br />

«justo e integral», querendo dizer que ninguém contestaria a dívida.<br />

O credor podia autorizar o devedor a pagar em duas vezes sob uma cláusula<br />

penal: se a primeira conta não fosse paga, o devedor deveria 1 siclo de prata; se a<br />

segunda prestação não fosse paga, o devedor perderia o benefício do pagamento já<br />

efectuado, ele deveria pagar a totalidade da dívida. Quando um indivíduo que pediu<br />

emprestado já estivesse obrigado para com o prestamista, era necessário lembrar<br />

no acto contratual o crédito anterior, para que não existisse alguma dúvida acerca<br />

da vontade das partes de o manter e não efectuar uma renovação de contrato.<br />

Quando se registava uma falta de pagamento no prazo fixo, aquele que pedia<br />

emprestado e que pagava a sua dívida devia exigir um recibo perante testemunhas.<br />

Por falta de pagamento, ele expunha-se à servidão por dívida. Face a um devedor<br />

negligente e não solvente, pediam-se juros de compensação. O que pediu emprestado,<br />

se possuísse um palmeiral, podia oferecer ao credor como pagamento as<br />

tâmaras do seu campo. Esta oferta era suficiente para excluir a pena de prisão. O<br />

credor que aceitasse o direito à totalidade da colheita veria esse direito substituir<br />

o capital e os juros.


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O chamado empréstimo gratuito ou de favor/complacência era um serviço<br />

de amigo. Mas poderia ser acompanhado de um empréstimo com juros. Os<br />

empréstimos efectuados na época da colheita aplicavam-se a um indivíduo que<br />

não possuía meio de subsistência e que solicitava um empréstimo ao prestamista:<br />

eram os empréstimos de consumo. É o mesmo que acontece para os empréstimos<br />

feitos após as sementeiras.<br />

Por vezes, o aluguer de terras podia tratar-se de uma venda a crédito, na qual o<br />

vendedor, em lugar de transferir a propriedade do campo, entregava-o ao comprador<br />

a título de aluguer, estipulando um aluguer em géneros, equivalente ao juro do<br />

capital ficticiamente emprestado. Esta combinação tinha uma tripla vantagem para<br />

ele como senhorio. Ele teria anualmente, em produtos naturais, o juro do preço<br />

combinado; protegia a propriedade e, consequentemente, possuía uma garantia<br />

real de tal modo que não recebia o preço de compra, e, como prestamista, tinha<br />

um meio de coacção contra o comprador que não cumprisse o contrato.<br />

Outro tipo de aluguer era o de mão-de-obra, que tinha lugar quando uma<br />

pessoa emprestava, por exemplo, sésamo para ter uma certa quantidade de óleo,<br />

ou de trigo para ter farinha. Aquele que pediu emprestado encarrega-se de prensar<br />

o sésamo para lhe extrair o óleo ou de moer o trigo para obter a farinha. Ao<br />

utilizar a forma do empréstimo, o proprietário do sésamo ou do trigo geria um<br />

meio de coacção contra o prensador de óleo ou o moleiro que negligenciasse a<br />

entrega do óleo ou da farinha na época combinada. Por outro lado, o empréstimo<br />

era gratuito, porque o prestamista economizava o preço do fabrico do óleo ou da<br />

trituração do trigo.<br />

Mas a aplicação mais frequente da combinação do aluguer e do empréstimo<br />

era no aluguer de serviços, quando alguém o utilizava em vez de mão-de-obra<br />

permanente, por exemplo, o aluguer de ceifeiros. O lucro do prestamista consistiria<br />

aqui em assegurar os serviços de trabalhos que lhe eram indispensáveis numa época<br />

em que este tipo de mão-de-obra era bastante procurada.<br />

Este empréstimo apresenta-se de dois modos. O proprietário podia contratar<br />

a mão-de-obra individualmente ou com um chefe de equipa.<br />

No primeiro caso, o proprietário adiantava a cada operário, a título de<br />

empréstimo, uma soma de prata que seria compensada com uma parte do salário<br />

que ele ganharia ao trabalhar como ceifeiro. No segundo caso, o chefe da equipa<br />

recebia do proprietário uma pequena soma de prata que constituía a remuneração<br />

antecipada do trabalho que ele teria para reunir e levar os ceifeiros.<br />

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Os contratos terminavam com a fórmula «no dia de reembolsar x pagará y<br />

de juro. Trabalhará na colheita durante z período de tempo». Esta cláusula estava<br />

agregada a um contrato de empréstimo a juro. A limitação da taxa de juro tinha<br />

um efeito de exclusão. Não se podia acumular duas vantagens. Tinha de se escolher.<br />

Doravante, o empréstimo, aos ceifeiros seria gratuito; a promessa de ir trabalhar na<br />

ceifa constituía um benefício suficiente, logo que ela fosse executada. O trabalho<br />

era livre, não existia razão para supor que o trabalhador prometia serviços que<br />

representavam um valor superior ao montante da dívida.<br />

Outro facto importante quanto à aplicação do empréstimo era que se podia<br />

efectuar um adiantamento a um intermediário encarregado de procurar ao mandante<br />

certas mercadorias. Esta combinação do empréstimo e do mandato dava<br />

ao mandante um meio de coacção contra o mandatário que guardasse o dinheiro<br />

sem executar o mandato: a servidão por dívidas.<br />

Caracterização da caução<br />

Na Época Neobabilónia, o que caracterizava as operações de crédito era o<br />

emprego mais frequente das garantias pessoais e reais 24 .<br />

A cláusula de garantia aparecia também, de forma regular, nas formulações<br />

contratuais de vendas de bens móveis como uma protecção oferecida pelo vendedor<br />

contra a apreensão ilegal ou a reclamação da propriedade comprada.<br />

No caso das operações de crédito, eram colocados como penhor (maškānu)<br />

todo o tipo de bens: os campos, as casas, o gado, os escravos, as prebendas dos<br />

templos, e mesmo os filhos e outros membros da família do devedor 25 . Também,<br />

mas de forma menos frequente, a totalidade dos bens do devedor poderia garantir<br />

uma caução.<br />

As garantias recíprocas, quando um devedor ou um familiar servia como<br />

garante de outro interveniente, eram uma forma mais simples de garantia real.<br />

Mas o penhor neobabilónico não se tornava imediata e automaticamente<br />

propriedade do credor. Somente quando o facto era especificado anteriormente,<br />

24 Ver Raymond WESTBROOK, Richard JASNOW (ed.), Security for <strong>De</strong>bt in Ancient Near Eastern Law, Leiden: Brill,<br />

2001.<br />

25 <strong>De</strong> acordo com Dandamayev, nesta época, o credor não podia prender um devedor insolvente ou vendê-lo a terceiros.<br />

A prática de caucionar um indivíduo livre desaparecera e não existe informação acerca do direito do marido penhorar<br />

a sua esposa. Cf. Muhammad A. Dandamayev, Slavery in Babylonia, <strong>De</strong> Kalb, Northern Illinois University Press, 1984,<br />

pp. 177-178.


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isto é, tal transferência poderia ocorrer apenas quando uma disposição específica<br />

era inserida no acordo original de penhora.<br />

Apesar de o credor ter o direito de tomar em custódia a propriedade penhorada,<br />

a posse física não constituía a parte essencial do procedimento de penhora, e a<br />

caução, geralmente imóvel, podia permanecer na posse do devedor.<br />

Podemos distinguir dois tipos de segurança de reembolso, aquela em que a<br />

propriedade era declarada como garantia do empréstimo com ou sem direito de<br />

posse da propriedade pelo credor, e a garantia dada em termos de antícrese, isto é,<br />

o credor recebe o direito a usar a garantia como uma propriedade para a obtenção<br />

de rendimentos. Este tipo de garantia era bastante divulgado neste período. O<br />

rendimento obtido poderia servir para pagar os juros da dívida 26 .<br />

A combinação de vários tipos de penhores, ou de penhores e garantias, podia<br />

significar a existência de um certo grau de menor confiança da parte do credor na<br />

capacidade do devedor para reembolsar a sua dívida.<br />

Quando estavam em causa grandes dívidas de prata, nem a responsabilidade<br />

pessoal do devedor ou a garantia de terceiros eram suficientes ou válidas para o<br />

credor. Este último podia, por isso, pedir uma garantia real como protecção contra<br />

a possível perda do seu investimento. A utilização intensiva da hipoteca, do penhor,<br />

da caução e de outras figuras jurídicas análogas, estava relacionada com o desenvolvimento<br />

do crédito no sistema económico, durante a Época Neobabilónia.<br />

Em caso de falta de pagamento, o credor possuía recursos legais limitados 27 .<br />

Podia indirectamente pressionar o devedor-empenhador a acordar a cedência da<br />

posse da propriedade penhorada. Este tipo de privação de direitos, contudo, não<br />

era legalmente uma venda compulsória, visto que o consentimento do devedorempenhador<br />

era, não obstante, exigido. A transferência legal deveria, ainda,<br />

ser acompanhada do acordo voluntário do devedor-empenhador para alienar<br />

formalmente, através de um contrato de venda, o objecto penhorado ao credor.<br />

Esta cooperação do devedor era necessária, ainda que ele não tivesse a prata para<br />

o pagamento.<br />

Por seu turno, o credor não tinha o direito de usar o penhor em antícrese<br />

como propriedade que afectasse rendimentos.<br />

Se contudo, não existisse um acordo para a privação de direitos no documento<br />

original de penhora, ou se o devedor-empenhador não consentisse a venda da caução<br />

26 Ver ibid., pp. 139-142.<br />

27 Um bom exemplo desta situação é o texto M. II, 53.<br />

23


24<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

e não subtraísse o todo ou a parte da sua importância da quantia em dívida, então<br />

o credor não possuía acesso legal automático à posse da totalidade do penhor.<br />

Este direito era concedido apenas através de uma decisão judicial, e apenas<br />

em relação à parte do penhor que cobria a quantia da dívida activa, que era, então,<br />

directamente devolvida ao credor.<br />

Mesmo quando o penhor era eventualmente transferido para o credor, persistia<br />

a possibilidade de o valor do objecto penhorado não cobrir a quantia em dívida.<br />

Nestas circunstâncias, o credor poderia apelar ao tribunal para um embargo da<br />

propriedade global do devedor-empenhador como compensação pela diferença<br />

de valor.<br />

No caso de as vias legais terem sido diligenciadas e esgotadas, tudo o que<br />

restava ao credor era a apreensão do próprio devedor-empenhador. Porém, mesmo<br />

aqui, as opções do credor eram limitadas. Ele podia, apenas com autorização judicial,<br />

fazer encarcerar o devedor numa casa de trabalho, onde este ou os membros da sua<br />

família, incluindo os seus escravos, podiam trabalhar para liquidar a sua dívida.<br />

Ao credor não era permitido, contudo, vender como escravos o devedorempenhador,<br />

a sua esposa ou, sem o seu consentimento, os seus filhos 28 .<br />

Quando o penhor era directamente detido e controlado pelo credor, o contrato<br />

resultante frequentemente proibia o devedor de penhorar novamente o bem a um<br />

segundo credor. Esta proibição era efectiva até que o primeiro credor tivesse sido<br />

totalmente reembolsado.<br />

A colocação em penhor, nestas circunstâncias, por parte do devedor poderia<br />

ter lugar apenas quando o objecto que constituía o penhor, o devedor e o credor<br />

fossem os mesmos das transacções anteriores. <strong>De</strong> outro modo, não existe exemplo<br />

no qual um objecto já penhorado fosse novamente alvo de uma penhora por<br />

parte do devedor a outro credor. Consequentemente, o resgate de um penhor era<br />

necessário antes que o bem pudesse ser penhorado a outro credor.<br />

Embora a penhora pelo devedor-empenhador a outra qualquer pessoa que não<br />

fosse o credor actual fosse proibida, o devedor não detinha a posse suficiente sobre<br />

o objecto penhorado para ser capaz de o alienar a uma terceira parte de tal modo<br />

que os direitos do credor detentor da penhora não fossem postos em risco.<br />

Por seu lado, o credor também tinha uma funcional, ainda que limitada, posse<br />

dos artigos penhorados. Enquanto ele não podia vender o penhor a uma terceira<br />

parte, era-lhe permitido comprometer-se com ele em penhores secundários, isto<br />

28 Ver Muhammad A. DANDAMAYEV, o. c., pp. 159-180.


o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />

é, ele podia penhorá-lo em nome das suas próprias dívidas a outro credor. Nestas<br />

circunstâncias, assim que o devedor-empenhador original reembolsasse a sua dívida<br />

ao primeiro credor, o último satisfazia as obrigações ao seu próprio credor, o qual<br />

em troca devolvia o penhor ao empenhador inicial.<br />

Se ele possuísse uma licença do devedor no acordo original de penhora, era<br />

frequentemente concedido ao credor o direito de obter um uso anticrético ou<br />

usufrutuário do penhor, normalmente escravos ou casas, em vez de onerar com<br />

juros a dívida. Segundo esse acordo, no qual não era estabelecido um tempo limite<br />

para o reembolso, o credor podia utilizar a propriedade do penhor até que a dívida<br />

estivesse totalmente reembolsada.<br />

Como regra, um tal acordo anticrético, respeitante a uma casa ou a várias<br />

casas, removia as obrigações do credor a pagar salários ou rendas. Além do mais,<br />

o devedor estava isento de qualquer pagamento de juros 29 .<br />

Em alguns casos, aparece no final do contrato um juramento em nome dos<br />

deuses, em regra Marduk e Šamaš. Na maioria dos reconhecimentos de dívida<br />

era o devedor que pronunciava o juramento, mas existem casos em que o próprio<br />

credor declarava aceitar o que lhe era devido, a cláusula era uma garantia que<br />

reiterava o direito do credor à reivindicação.<br />

Mas o juramento raramente aparece na Época Neobabilónia, porque ele não<br />

institui qualquer nova responsabilidade ou consequência legal no caso de não<br />

cumprimento; o seu propósito seria mais religioso ou persuasivo do que legal 30 .<br />

A caução mútua era explicitada através de uma cláusula que se encontrava,<br />

frequentemente, nos contratos onde existiam vários devedores a qual, se encontrava<br />

também no caso de pluralidade de cauções. O acto contratual declarava que os<br />

co-devedores ou que as cauções eram garantias um de outro.<br />

Em princípio, os co-devedores eram tidos para com o credor comum cada um<br />

pela sua parte, eram co-devedores conjuntos. Quanto às cauções, a sua obrigação<br />

variava consoante os casos, ela era subsidiária. A caução era uma garantia contra<br />

a insolvência do devedor e a cláusula de garantia recíproca tinha por objectivo<br />

facilitar a pronta execução da obrigação.<br />

29 Apesar da sua utilização comum nos textos neobabilónicos, os reconhecimentos de dívida com requisitos anticréticos<br />

formais não existem, nos reconhecimentos de dívida com penhor num arquivo como o de Nūr-Sîn, contrariamente<br />

aos arquivos de outras famílias, como é o caso dos Egibi. Cf. ibid., pp. 138-156.<br />

30 Contemplado pela expressão sum DN sulû - «to take an oath». Cf. CAD, E, p. 135. Ver elû - «12. To take an oath».<br />

Ver Sophie Lafont (ed.) Jurer et maudire: pratiques politiques et usages juridiques du serment dans le Proche-Orient ancien,<br />

Paris: L’Harmattan, 1996.<br />

25


2<br />

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A noção de solidariedade entre os co-devedores tinha como traço comum o<br />

facto do direito reconhecido ao credor de pedir a um dos co-devedores o pagamento<br />

integral. A garantia contra a insolvência, que era uma função acessória da<br />

solidariedade, tornou-se na função principal como na caução. Na Mesopotâmia<br />

representava para o credor o meio de se fazer pagar sem retardamento, quando<br />

um dos seus devedores estivesse presente, isto é, residisse perto dele.<br />

Na Época Neobabilónica, os credores tinham a preocupação de se acautelarem<br />

contra o atraso do pagamento da dívida devido à distância de um ou de vários<br />

credores.<br />

A caução mútua conferia-lhes o direito de pedir o pagamento integral ao<br />

devedor que lhe estivesse mais perto, para se garantir contra o risco de insolvência<br />

de um dos devedores no prazo fixado. Todavia, pode-se ainda inferir que esta<br />

forma visava mais o pagamento da dívida por parte do devedor solvente do que a<br />

definição de proximidade como factor decisivo para determinar o pagador.<br />

Quanto ao objecto do penhor, denominado o penhor comum, era usado<br />

para assegurar o pagamento a curto prazo de uma grande dívida, e quando o<br />

devedor não podia oferecer um penhor especial de um valor suficiente. O penhor<br />

era geralmente um modo de satisfação tanto do capital como dos juros.<br />

Quando o objecto dado como penhor era de um valor insuficiente para<br />

assegurar ao credor uma satisfação completa tanto do seu capital como dos juros,<br />

o devedor poderia hipotecar subsidiariamente todos os seus bens «na cidade e na<br />

zona rural».<br />

Quando o penhor não era um modo de satisfação somente para os juros, o<br />

credor cuidava, em geral, de assegurar o pagamento rápido do capital, exigindo o<br />

penhor mútuo dos devedores; ele podia também precaver-se contra a sua insolvência,<br />

exigindo uma caução.<br />

A caução mútua dos co-devedores para o pagamento do capital era frequentemente<br />

mencionada. A caução era uma medida para a obtenção do reembolso<br />

dos adiantamentos, fazendo valer as garantias acordadas ao credor 31 .<br />

A tomada de posse era também adiada no caso da caução comum, e encontrava-se<br />

subordinada à falta de pagamento e ao prazo fixo. Neste caso, o direito<br />

31 1 - O penhor era convencional ou judicial, em função de ser instituído por contrato ou em virtude de um julgamento.<br />

O penhor convencional era ordinariamente constituído pelo devedor, ou por um terceiro; 2 - O penhor judicial provinha<br />

da faculdade dos tribunais em atribuir uma garantia real ao credor que tivesse feito reconhecer o seu direito em<br />

tribunal.


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de caução do credor nascia desde o dia do contrato: o devedor não podia trazer<br />

dano, concedendo um direito análogo a um outro credor.<br />

A entrega do penhor expressava-se por «a partir de x o bem y estará à disposição<br />

de A (o credor)». O suplemento de garantia expressava-se por expressões como «o<br />

escravo do devedor, é um penhor geral sobre todos os bens de A (o devedor)».<br />

O credor afiançado tinha um direito de retenção e usufruto que subsistia até<br />

ao pagamento total. A maioria dos contratos de penhor possuía a cláusula «outro<br />

credor não poderá dispor do objecto dado em penhor, enquanto o credor actual<br />

não tiver sido pago na totalidade».<br />

Por seu turno, a cláusula de garantia contra a retracção tinha por objectivo<br />

impedir os membros da família de retomarem o imóvel alienado através do<br />

reembolso do preço de compra. Esta cláusula utilizava-se normalmente no período<br />

neobabilónico.<br />

Finalmente, a denominada cláusula de evicção 32 tinha por objectivo proteger<br />

o comprador da coisa de outrem contra a reivindicação do proprietário ou de quem<br />

de direito, ou contra uma simples pretensão à propriedade, pretensão que podia<br />

ser manifestada pela penhora da coisa.<br />

O valor dos juros<br />

O problema da duração do empréstimo é bastante importante, pois está na<br />

base do cálculo do que podemos denominar de taxa de juro 33 .<br />

O juro é uma expressão essencial da actividade financeira, todavia os contratos<br />

que mencionam sem ambiguidade, e expressamente, o facto são reduzidos, tendo<br />

em conta que os reconhecimentos de dívida são os documentos existentes em<br />

maior número.<br />

Em relação ao fenómeno do juro e do cálculo da sua importância não se<br />

tem conseguido um grande progresso na fiabilidade dos dados, porquanto eles<br />

são interpretados como sendo anuais, o que nem sempre é claro. Neste aspecto,<br />

não podemos deixar de salientar a posição de Marc van de Mieroop ao chamar a<br />

atenção para a dificuldade da questão e, segundo ele, para o erro frequentemente<br />

32 A evicção era um acto judicial pelo qual uma pessoa reivindicava uma coisa que lhe pertencia e fora alheada a outrem<br />

por quem o não podia fazer.<br />

33 Talvez o termo mais correcto fosse benefício, porquanto o conceito de juro é demasiado moderno.<br />

27


28<br />

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cometido pelos assiriólogos ao efectuarem analogias com as práticas actuais nessa<br />

matéria 34 .<br />

Encontramos nos diversos arquivos do período recente alguns valores<br />

exemplificativos das quantidades de riqueza entregues como pagamento de juros.<br />

No arquivo de Nūr-Sîn, as operações de Iddin-Marduk, a prata entregue como<br />

juro era de 1 siclo por mina mensal, o que daria um juro de 20%. No arquivo<br />

de Egibi encontramos a mesma relação nas operações de Itti-Marduk-balatu e de<br />

Marduk-nasir-apli. Mas em outros dois casos provenientes do arquivo da família<br />

Egibi, Nbk. 111, um reconhecimento de dívida da época de Šula 35 , pagaram-se<br />

as quantias de 8 siclos e 15 siclos à taxa de 13,3%. No texto Nbn. 44, um recibo<br />

proveniente da época de Nabû-ahhê-iddin 36 , pagaram as quantias de 5 minas e 1<br />

mina de prata à taxa de juro de 12 e 1/3 %.<br />

Uma série de outros exemplos podem ser dados tendo em conta fontes várias.<br />

Assim, em TuM 2/3,66, um texto datado do décimo sexto ano do reinado de<br />

Nabucodonosor pagou-se 1 panu por cada kurru de cevada. O mesmo se passou<br />

com um texto do décimo quinto ano do reinado de Nabucodonosor 37 .<br />

No texto L 1661, datado do terceiro ano do reinado de Nabónido, refere-se<br />

o pagamento de 1 mina e 12 siclos de prata anuais. Nos textos A 90 e A 91, pertencentes<br />

respectivamente aos trigésimo e trigésimo primeiro anos do reinado de<br />

Nabucodonosor indicam-se, respectivamente, os valores de 1 siclo e 1/8 de prata e<br />

de 12 siclos de prata anuais. E no texto A 152, no ano de acessão de Nabucodonosor,<br />

pagaram-se 6 siclos por mina de prata anuais, o que representa 10%.<br />

A relação percentual mais conhecida é a dos 20% de juro, tomando como<br />

unidade temporal o ano. Como, por exemplo, no texto Nbn.15 = Liv. 40, datado do<br />

34 Cf. Marc van de Mieroop, Society and Enterprise in Old Babylonian Ur, Berlim: Dietrich Reimer Verlag, 1992, p.<br />

205: «Scholars usually assume that the interest rates stated in the texts were annual, by analogy with the modern<br />

day practice. It seems to me to be difficult to maintain this position for several reasons. First of all, a year in ancient<br />

Mesopotamia did not have a standard length. Due to the use of the lunar calendar and its discrepancies with solar<br />

year, it was necessary to include an intercalary month periodically, thus creating years of thirteen months. Are we to<br />

assume that for those years the creditors obtained only the same amount on their investments as in a twelve month<br />

year? Secondly, the documents at our disposal never state explicitly that the interest rate is annual. The documents<br />

always state that at the time of repayment the debtor is obliged to pay the capital of the loan, plus an added amount<br />

for the interest. The standard terminology used in the texts was “x shekels per 60 shekels is to be added”, without any<br />

mention that such an amount was to be added only after a one year period time».<br />

35 Datado do décimo sétimo ano do reinado de Nabucodonosor e emitido em Babilónia.<br />

36 Emitido em Babilónia e datado do primeiro ano do reinado de Nabónido.<br />

37 Ver TuM 2/3,75. Cf. Francis JOANNÈS, Les Archives de Borsippa. La Famille Ea-Ilûta-Bâni, Genebra: Librairie Droz,<br />

1989, p. 110.


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ano de acessão do reinado de Nabónido 38 , no qual foram pagos 12 siclos de prata<br />

por mina anuais. M.I,19 trata-se de um documento do nono ano do reinado de<br />

Nabónido que menciona o pagamento de 24 siclos de prata pela aplicação de capital<br />

durante dois anos, de que resulta o pagamento de 12 siclos anuais se tomarmos<br />

em conta, e isso o texto não revela, a base de cálculo como sendo anual.<br />

Nos documentos Nbn. 800 39 e em BM 31 752 40 pagaram-se juros em prata à<br />

razão de 20%. Nos documentos BM 31 640 e BM 31 878 41 foi paga a quantia de<br />

1 mina de prata representando a taxa de 20%. No segundo texto essa quantidade<br />

de metal representava o preço de dois escravos.<br />

No texto ZA, 4, 147, um reconhecimento de dívida do reinado de<br />

Nabopolassar 42 pagaram-se 2 minas de prata equivalentes à taxa de 20% de juro.<br />

Mas no texto Nbk. 65, também um reconhecimento de dívida datado do oitavo<br />

ano do reinado de Nabucodonosor 43 , foram pagos 11 kurru de tâmaras e 8 kurru<br />

de cevada equivalentes a 40% de juro.<br />

O texto BM 77436, é um acto de quitação, datado do primeiro ano do<br />

reinado de Bardiya, emitido em Babilónia, no qual se pagavam 2 siclos de prata.<br />

O documento IM 65084/IA, é um reconhecimento de dívida do décimo oitavo<br />

ano do reinado de Nabopolassar, emitido em Uruk, que indica o pagamento de<br />

10 siclos de prata por cada mina, o que representa 16,6% de juro. IM 65084/ IB,<br />

é um texto que também é um reconhecimento de dívida, emitido em Uruk no<br />

vigésimo ano do reinado de Nabopolassar, no qual se pagou meia mina de prata<br />

de juro, numa relação de 10 siclos por mina.<br />

A relação da taxa de juro nesta série de documentos provenientes de Uruk 44<br />

é diversa. Assim, neste conjunto de reconhecimentos de dívida, temos:<br />

Texto Produto: prata Relação<br />

IM 65084/ID 45<br />

22 siclos 8 siclos por mina<br />

4 6<br />

IM 65084/IIF 15 siclos 1 siclo por mina<br />

IM 65084/IIG 47<br />

51 siclos 9 siclos por mina<br />

4 8<br />

IM 65084/IIi 5/6 mina 7 siclos por mina<br />

IM 65084/IIIL 49<br />

10 siclos 10 siclos por mina<br />

38 Emitido em Babilónia.<br />

39 Datado do décimo quarto ano do reinado de Nabónido e emitido em Babilónia.<br />

40 Ibidem.<br />

41 Ambos os documentos não possuem datação.<br />

42 Emitido em Uru NIGIN ti.<br />

43 Emitido em Babilónia.<br />

44 Ver K. Kessler, «Uruk. Urkunden aus Privathäusern. Die wohnhäuser westich des Eanna – Tempelbereichs», em AUWE<br />

8, Mainz am Rhein: Verlag Philipp von Zabern, 1991, pp. 129-191.<br />

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5 0<br />

IM 65072<br />

M 65082 51<br />

0,5 siclos 10 siclos por mina<br />

1 mina 8 siclos por mina<br />

Em alguns textos, como A 172, um cálculo não identificável quanto à proveniência,<br />

indica-se para as quantias de 4 minas e 23 siclos e 4 minas e 46 siclos<br />

de prata o pagamento de 4 siclos de juro.<br />

Na série publicada por Moldenke encontramos tembém alguns exemplos<br />

nos seguintes documentos:<br />

Texto Produto: prata Razão<br />

M.I,1 52 1/3 de mina 2 siclos<br />

M.II, 53 3 minas 1 siclo<br />

M.II, 60 54 2/3 de mina e 5,5 siclos 1 mina/ano<br />

Outros textos indicam o pagamento do juro mais claramente como W<br />

20032,17 45 , um reconhecimento de dívida no qual se pagaram 1,5 e 8 siclos de<br />

prata, ao juro de 8 siclos por mina, o que segundo podemos apurar, representa<br />

uma taxa de 13,3%. W 200 32,18 46 , também um reconhecimento de dívida,<br />

foram pagos 16 siclos de prata e 6 siclos de prata por mina, o que representaria<br />

10% de juro na base anual. W 20032,20 47 , um reconhecimento de dívida no qual<br />

se pagaram 1 mina 10 siclos de prata com o juro mensal de 1 siclo de prata por<br />

mina. E em outra série:WHM 1654 48 , um reconhecimento de dívida do reinado<br />

de Nabónido em que se pagavam 50 kurru de cevada com o juro à razão de 1 pānu<br />

por cada kurru. WHM 1670 49 , um empréstimo com o estabelecimento de um<br />

penhor onde estavam em causa meia mina e 3 siclos de prata e cujo juro mensal<br />

foi de 1 siclo por mina.<br />

45 Emitido em Uruk no sexto ano do reinado de Nabopolassar.<br />

46 Datado do sétimo ano do reinado de Nabopolassar.<br />

47 Datado do primeiro ano do reinado de Nabucodonosor e emitido em Uruk.<br />

48 A data não é identificável mas o documento foi emitido em Hudada.<br />

49 Datado do nono ano do reinado de Nabucodonosor e emitido em Uruk, apontava a existência de um escravo na<br />

situação de garantia real da dívida.


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As operações prestamistas de Idin-Marduk, descendente de Nūr-<br />

Sîn (555-539 a. C.)<br />

Durante o reinado de Nabónido, as actividades da família de Nūr-Sîn,<br />

enquanto uma sofisticada empresa privada, envolveram-na activamente numa<br />

variedade de empreendimentos comerciais complexos e bastante proveitosos<br />

financeiramente.<br />

No centro da maioria dessas diligências estava Iddin-Marduk, dirigindo e<br />

coordenando todos os aspectos das operações negociais da família.<br />

Esta proeminente figura familiar, cerca do terceiro ano do reinado de<br />

Nabónido, iniciou uma gradual redução, mas não uma eliminação, da confiança da<br />

família sobre as transacções relacionadas com produtos naturais. Simultaneamente,<br />

antevendo lucros líquidos, mais garantidos, e talvez, mais altos, ele concentrou<br />

mais capital familiar em empréstimos em prata, de curta duração, isto é, a menos<br />

de um ano.<br />

Não mais interessado, como anteriormente tinha estado, nas transacções<br />

relativas à sociedade harrānu 50 , elaborou um plano futuro de consignatário de<br />

empréstimos de prata. Iddin-Marduk procurou nessas reivindicações sobre a<br />

prata uma retribuição mais garantida do seu capital, acrescida das taxações fixas<br />

de juros.<br />

Consequentemente, o empréstimo de prata tornou-se um crescente e atractivo<br />

veículo de investimento para Iddin-Marduk. O estilo e o formato dos seus<br />

contratos reflectem essa transição, tendo como exemplo oposto, a prática anterior,<br />

de não exigir as garantias do receptor do empréstimo para o reembolso, durante<br />

o financiamento da sociedade harrānu, que agora se encontrava excluída.<br />

Quando emitia reconhecimentos de dívida referentes a prata, ele reclamava,<br />

nesta época, várias cauções e garantias de terceiros da parte dos seus devedores.<br />

Reivindicações de pequenas porções de prata, normalmente em conjunção com<br />

outras de produtos, têm lugar nos textos deste arquivo, desde o início do reinado<br />

de Nabónido.<br />

Contudo, empréstimos de prata relativamente grandes não eram evidentes<br />

até ao início do segundo ano do reinado de Nabónido, no mês de Ayaru, quando<br />

Nabū-Kāsir, filho de Marduk-erība, garantia o pagamento de 2 minas de prata<br />

50 Cf. CAD, H, pp. 106-113. Ver harrānu - «(1) highway, road, path (2) trip, journey, travel, (3) business trip, (4) caravan,<br />

(5) business venture, (6) business capital, (7) military campaign, expedition, raid, (8) expeditionary force, army, (9)<br />

corvée work, (10) service unit, (11) times (math. term), (12) obscure mngs».<br />

31


32<br />

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a Iddin-Marduk, previamente devida pelo irmão de Nabū-Kāsir, denominado<br />

Rīmūt.<br />

Nbn. 63 / Liv. 54 − «Nabū-kāsir, filho de Marduk-erība, descendente de<br />

Sīn-ilī, fornece uma garantia a Iddin-Marduk, filho de Iqīša, descendente de<br />

Nūr-Sîn, para o pagamento de 2 minas de prata, que estavam oneradas a Rīmūt,<br />

filho de Marduk-erība, descendente de Sīn-ilī. Nabū-kāsir entregará a Rīmūt o<br />

recibo do pagamento das 2 minas de prata, que pertencem a Iddin-Marduk, (e)<br />

que estavam oneradas a Rīmūt do preço(?) o débito de Šamaš- /…/ eles entregarão<br />

a (nota de débito) pertencente à sociedade harrānu, (e) que está onerada a /…/. A<br />

retribuição das contas é estabelecida entre um e o outro.<br />

Testemunhas. Escriba, Data 51 .» 52<br />

Nos dois anos seguintes, assistiu-se a um aumento substancial nos adiantamentos<br />

de prata da família. Num texto publicado em Šahrīnu, uma mina<br />

de prata pertencente a Iddin-Marduk foi onerada a Nabū-apla-iddin, filho de<br />

Šuma-iddin, e a Ba’u-ētirat, filha de Šamaš-iddin. Os campos de palmeirais, que<br />

tinham sido penhorados numa ocasião anterior a Iddin-Marduk, foram, nesse<br />

momento, novamente caucionados a ele. Apesar de Iddin-Marduk esperar que o<br />

seu mandante fosse reembolsado em prata no mês de Tešritu, os 20% de juro que<br />

acompanhavam o pagamento seriam dados numa quantia equivalente de tâmaras<br />

à taxa anual de 1 pānu de tâmaras por cada siclo de prata em dívida.<br />

O texto não apresenta uma razão para o facto de ele preferir nesta altura as<br />

tâmaras à prata. Uma possível explicação para este acordo elaborado sob a patrocínio<br />

de Iddin-Marduk é a questão de a prata que era devida coincidir no tempo, o mês<br />

de Tešritu, com o facto de os oficiais da cidade calcularem o valor dos tributos<br />

e colectarem os normais impostos imittu 53 sobre a produção tamareira que ele<br />

detinha como caução 54 . Uma vez que os devedores poderiam em qualquer caso<br />

ter de estabelecer um acordo para o carregamento dessas tâmaras, Iddin-Marduk<br />

decidiu, evidentemente, também determinar, nessa época específica, um pagamento<br />

de juro em tâmaras em vez de prata.<br />

51 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 554 a. C.<br />

52 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 341.<br />

53 Cf. CAD, I/J, p. 123. Ver imittu B - «estimated yield of a garden or field, to be delivered to the owner - king, temple<br />

or private landholder - by the tenant».<br />

54 Ver Maria J. ELLIS, Agriculture and State in Ancient Mesopotamia, Philadelphia, Occasional Publications of the Babylonian<br />

Fund, I, 1976, p. 190.


o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />

Nbn. 103 − «1 mina de prata, pertencente a Iddin-Marduk, filho de Iqīša,<br />

descendente de Nūr-Sîn, é onerada a Nabū-apla-iddin, filho de Šuma-iddin, e<br />

(onerada a) Ba’u-ētirat, filha de Šamaš-ipuš. Eles reembolsarão a prata e o seu<br />

juro 55 em Tešritu. O seu campo superior, adjacente ao (campo de) Šuma-ukīn,<br />

filho de Ša-Nabū-šū, e também o campo inferior que é adjacente à extremidade da<br />

casa do despenseiro, (e) terra (plantada) com tamareiras e (terra) que se encontra<br />

em restolho, (tudo o que) anteriormente servira como penhor a Iddin-Marduk.<br />

Outro credor não terá direito (ao penhor) até que Iddin-Marduk tenha recebido a<br />

prata e o seu juro na totalidade. Em Tešritu, (quando) eles (os oficiais da cidade)<br />

colectarem (um imposto-imittu) sobre elas!<br />

(cópia: ela) tamareiras, ele (Iddin-Marduk), tomará, segundo a taxa que<br />

prevalece em Šahrīnu, 1 pānu por siclo em vez do juro em prata. A prata é a que<br />

foi usada para a (compra) de equipamento dos soldados do rei de Babilónia 56 .<br />

Testemunhas. Escriba. Data 57 . >> 58<br />

A partir do ano de 553 a. C., encontramos outras reivindicações referentes a<br />

prata na documentação deste arquivo.<br />

No terceiro dia do mês de Simanu, o escravo Nabū-aha-rimanni, que também<br />

era um oficial aduaneiro 59 de Šubat-Gula, prometia pagar a Iddin-Marduk 1 mina<br />

e 2 siclos de prata no décimo dia do mês de Du’uzu.<br />

Nbn. 106 − «1 mina e 2 siclos de prata, pertencentes a Iddin-Marduk, filho<br />

de Iqīša, descendente de Nūr-Sîn, foram onerados 60 a Nabū-aha-rimanni, o oficial<br />

das alfândegas de Šubat-Gula, o escravo de Bēl- [X] . Ele reembolsará (a prata)<br />

no décimo dia de Tammuz 61 /… (quebrada)<br />

Testemunhas. Escriba. Data 62 . 63<br />

55 O termo hubullu significa que possui o pagamento do «juro». Por vezes aparece o termo hubuttatu que significa «sem<br />

juro». Eles constituem uma protecção para o devedor contra alguma despesa de juro suplementar na quantia que já<br />

inclui uma carga inicial suplementar ou de juro.<br />

56 Este parágrafo sugere a satisfação das obrigações devidas ao rei dentro de um quadro de um sistema de vassalagem.<br />

57 Emitido em Šahrīnu e datado do reinado de Nabónido, 553 a. C.<br />

58 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 353.<br />

59 Cf. AHw, p 451. Ver kāru(m) - «1 d) rab kari – kainspector». Cf. CAD, K, p. 239. Ver Karu A em rabi kari - «official<br />

in charge of a custom station; MA, SB, NA, NB».<br />

60 Os autores germânicos utilizam na classificação de documentos deste tipo o conceito de «zahlungsverpflichtung», ou<br />

seja, o compromisso de pagamento que explicita a noção de uma maior força jurídica. No contexto neobabilónico a<br />

promissória implica, simultaneamente, o reconhecimento de uma obrigação por parte do devedor e uma situação de<br />

crédito estabelecida a favor do credor.<br />

61 Trata-se do mês de Du’uzu.<br />

62 Emitido em Šubat-Gula e datado do reinado de Nabónido, 553 a. C.<br />

63 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 354.<br />

33


34<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

Mais tarde, uma dívida de 1 mina e 5 siclos foi onerada por Iddin-Marduk<br />

a Bēl-ibni, filho de Nabū-zēra-iddin, que reembolsaria a prata, sem juros, quatro<br />

meses depois. Nessa data, o devedor também efectuaria um pagamento suplementar<br />

de 2 pānu e 3 sūtu de cebolas, talvez no lugar do juro ausente.<br />

Durante o decurso do tempo ainda restante do reinado de Nabónido, os<br />

reconhecimentos de dívida de curto prazo em prata, que diziam respeito a quantias<br />

acima de 1 mina, eram emitidos numa taxa mais comum 64 .<br />

No mês de Šebatu do ano de 548 a. C., Iddin-Marduk levou a efeito uma<br />

das suas maiores reivindicações: 12 minas de prata foram oneradas a Šuma-iddin,<br />

filho de Zēriya, ao seu irmão Kidin-Marduk e Nergal-ubalitt, filho de Tābnēa.<br />

Visto que 20% de juro proveio do primeiro dia do mês, ou seja, seis dias antes,<br />

isso significa que, provavelmente, uma porção do crédito havia sido já concedida<br />

aos devedores, antes do documento ter sido, de facto, escrito.<br />

Como era próprio para uma dívida deste tamanho com múltiplos devedores,<br />

todos os indivíduos que pediram emprestado levaram a cabo, em conjunto, o<br />

estabelecimento de várias garantias, tendo as suas propriedades sido caucionadas<br />

a Iddin-Marduk.<br />

Liv. 2 − «12 minas de prata, pertencentes a Iddin-Marduk, filho de Iqīša,<br />

descendente de Nūr-Sîn, foram debitadas a Šuma-iddin, filho de Zēriya, descendente<br />

do sacerdote-šangû de Gula, (a) Nergal-uballit, filho de Tabnēa, descendente<br />

de /.../ e (a) Kidinnu, filho de Zēriya, descendente do sacerdote-šangû de Gula.<br />

1 siclo de prata por mina por mês será por eles provido (como juro) a partir do<br />

primeiro dia de Šebatu. [Cada um] providencia uma garantia para o outro. Toda<br />

a sua propriedade na cidade e na zona rural constitui o penhor a Iddin-Marduk.<br />

Outro credor não terá direito (à caução) até que Iddin-Marduk receba a sua (prata)<br />

na totalidade.<br />

Testemunhas. Escriba. Data 65 . 66<br />

Segundo Nbn. 1079, 35 siclos de prata eram devidos com juros por um<br />

indivíduo denominado Kiddin-Marduk a Iddin-Marduk.<br />

64 São vinte e dois os exemplos de reconhecimentos de dívida de curto prazo no arquivo de Nūr-Sîn. Ver Laurence Brian<br />

SHIFF, o. c., pp. 368-369, 372, 373, 374, 379, 382, 394, 395, 396, 397, 400, 401-402, 404, 406, 407, 432, 433,<br />

438, 452-453, 459, 482, 504-505. Outra monografia acerca deste arquivo é de autoria de Cornelia Wunsch. Ver<br />

Cornelia Wunsch, Die Urkunden des babylonischen Geschäftsmannes Iddin- Marduk. Zum Handel mit Naturalien im<br />

6.Jahrhundert v.Chr, (2 vols.), Groningen: Styx, 1993.<br />

65 Emitido em Babilónia no reinado de Nabónido, 547 a. C.<br />

66 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 403.


o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />

<strong>De</strong> novo encontramos uma situação em que todas as propriedades do devedor<br />

estavam hipotecadas a Iddin-Marduk.<br />

Nbn. 1079 − «1/3 de mina e 5 siclos de prata, pertencentes a Iddin-Marduk,<br />

filho de Iqīša, descendente de Nūr-Sîn, foram debitados a Kiddin-Marduk,<br />

filho de Zēriya, descendente do (sacerdote-šangû 67 de Gula). Do primeiro dia de<br />

Arahsamnu do décimo quarto ano de Nabónido, rei de Babilónia, 1 siclo de prata<br />

por mina será provido mensalmente por ele (como juro). Toda a sua propriedade<br />

constitui o penhor a Iddin-Marduk. Outro credor não terá o direito (à propriedade<br />

penhorada) até que Iddin-Marduk receba a sua prata na totalidade 68 . (Esta dívida<br />

está) separada de (uma dívida anterior de) meio talento (?) /.../ (a qual) ele pagará<br />

na sua quantia principal (sem juro).<br />

Testemunhas. Escriba. Data 69 . 70<br />

Uma ilustração interessante da natureza de um dos mais complexos investimentos<br />

em prata de Iddin-Marduk, e do procedimento seguido para a sua<br />

implementação, é-nos apresentada em cinco textos, ainda, do reinado de Nabónido.<br />

São eles Nbn. 85, Nbn. 187 e M.I, 18 71 , Nbn. 356 e Nbn. 1104.<br />

Em Nbn. 85, redigido no dia vinte e quatro do mês de Šebatu do ano de<br />

554 a. C., o cunhado de Iddin-Marduk, Madānu-šuma-iddin, filho de Zēriya,<br />

aparece como sendo o agente de Apil-Addu-natānu, filho de Addiya, e de sua<br />

esposa Bunānitu, filha de Harisā. Ele comprou a seu favor uma casa em Borsippa<br />

por 11,5 minas de prata, de Ibā, filho de Sillā. <strong>De</strong> acordo com a prática comum<br />

em transacções similares conduzidas por agentes com o capital do seu mandante,<br />

Madānu-šuma-iddin «não possui parte da casa nem da prata».<br />

67 Cf. CAD, S, p. 146. Ver šangû -« (temple administrator) see sangû». Este termo refere-se ao sacerdote que era o chefe<br />

da hierarquia eclesiástica que também podia ter autoridade administrativa. Ver P. GARELLI, V. NIKIPROWETZKY<br />

El Próximo Oriente Asiático (los imperios mesopotámicos. Israel), Barcelona: Labor, 1981, p. 116.<br />

68 A expressão ina qaqqadišu contempla a ideia de pagamento na totalidade. Cf. CAD, Q, pp. 110-111. Ver qaqqadu<br />

- «1. head (as part of the body) 2. person, self, 3. head of an organization, leader, 4. top, top part, 5. beginning (of<br />

time spans), 6. original amount, principal, 7. (a stone), 8. (in idioms), 9. head tax»; «6. original amount, principal - a)<br />

in OB: qá-qá-ad kaspim ana tamkarim utâr he will return the original amount of silver to the merchant. e) in NB: ša<br />

PN ina muhhi PN2 ina MN še. BAR ana SAG. Du-sú inandin x barley, principal belonging to PN, charged against<br />

PN2 in MN he will repay the barley in ( the amount of) the principal of it». Ver Émile SZLECHTER, «Les Lois<br />

Néo-Bayloniennes (I)», RIDA, 3e Série, Tome XVIII, 1971, pp.43-107, pp. 81-87.<br />

69 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 543 a. C.<br />

70 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., pp. 504-505.<br />

71 Nbn. 187 e M.I, 18 foram ambos emitidos em Borsippa.<br />

35


3<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

O título de venda, tal como o que dizia respeito a qualquer outro documento<br />

relativo à casa, seria entregue a Apil-Addu-natānu e a Bunānitu. Iddin-Marduk<br />

aparece, todavia, como uma das testemunhas no processo.<br />

Nbn. 85 − «(Documento relativo) a um lote de casa de 7 canas, 5 cúbitos,<br />

18 dedos 72 (no) quarteirão de kirātu, 73 que está no interior de Borsippa, no qual<br />

Madānu-šuma-iddin, filho de Zēriya, descendente de Nabaya, comprou pela prata<br />

total (preço) de 11,5 minas de prata a Ibā, filho de Sillā, descendente de Nagaru.<br />

Ele (Madānu-šuma-iddin), (agindo) ao serviço de Apil-Addu-natānu, filho de<br />

Addiya, e Bunānitu, sua esposa, filha de Harisaya, comprou essa casa. A prata de<br />

Apil-Addu-natānu e Bunānitu foi dada como o preço da casa. Madānu-šumaiddin<br />

não possui parte na casa nem na prata. Ele (Madānu-šuma-iddin) entregou<br />

a tabuinha, que Madānu-šuma-iddin selou em seu nome, a Apil-Addu-natānu e<br />

Bunānitu. No dia em que a cópia do selado título de venda ou qualquer outro<br />

contrato dessa casa aparecer na casa de Madānu-šuma-iddin ou em qualquer outro<br />

lugar, pertencerá a Apil-Addu-natānu e a Bunānitu.<br />

Testemunhas. Escribas. Data 74 . Selos. 75<br />

Dois anos mais tarde, de acordo com Nbn. 187, Apil-Adu-natānu e Bunānitu<br />

deviam 1 mina e 38,5 siclos de prata a Iddin-Marduk. O texto descreve a prata<br />

como a dívida pendente, parte do saldo do custo da compra da casa que fora dada,<br />

em Nbn. 85, a Ibā.<br />

Foi Iddin-Marduk quem, então, adiantou pelo menos uma parte do preço de<br />

compra, 11,5 minas de prata, pago por Madānu-šuma-iddin a favor do casal. Este<br />

documento era, portanto, uma renovação do prolongamento original de crédito<br />

de Iddin-Marduk a Apil-Addu-natānu e Bunānitu, embora o reconhecimento de<br />

dívida original não fosse existente, à data, e a quantia de prata emprestada por<br />

Iddin-Marduk não fosse perceptível de imediato. Também é claro, apesar do seu<br />

pretenso uso em Nbn. 85 por Apil-Addu-natānu e Bunānitu, que Madānu-šumaiddin<br />

foi empossado, ou pelo menos recomendado como o seu representante, por<br />

parte de Iddin-Marduk, provavelmente por causa da sua última determinação em<br />

manter uma supervisão no seu investimento.<br />

72 As canas mediam cerca de 3 a 3,5 metros e continham 6 ou 7 cúbitos. Cada cúbito media 40 a 50 cm e dividia-se em<br />

24 dedos.<br />

73 O termo pode significar «jardins», talvez fosse o nome de um bairro de Borsippa. Cf. AHw, p. 485. Ver Kirû(m) -<br />

«Garten».<br />

74 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 553 a. C.<br />

75 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 349.


o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />

Uma vez que Nbn. 187 continha uma data específica para o reembolso, a<br />

compensação da quantia principal era efectuada na base da pretensão, isto é, podia<br />

ser reivindicada a qualquer altura por Iddin-Marduk. Além disso, o pagamento<br />

do juro da dívida pendente em prata, que aumentaria em resultado da taxa padrão<br />

anual de 20%, seria efectuado mensalmente. O que representava mais que o normal<br />

aumento da quantia total pagável na data devida. Tanto a forma da pretensão como<br />

a estipulação para pagamentos mensais indicavam algumas dúvidas por parte de<br />

Iddin-Marduk quanto à solvência do casal.<br />

Esta incerteza não era injustificada tendo em vista o facto de que parte do<br />

débito permaneceu por pagar após dois anos, muito mais tempo do que a duração<br />

do intervalo temporal que era padrão para o reembolso, menos de um ano, e que era<br />

usualmente esperado por Iddin-Marduk dos seus credores. Ele estava determinado<br />

a recuperar rapidamente tudo o que fosse possível do seu investimento.<br />

Nbn. 187 − «1,5 minas e 8,5 siclos de prata, pertencentes a Iddin-Marduk,<br />

filho de Iqīša, descendente de Nūr-Sîn, foram debitados a Apil-Addu-natānu,<br />

filho de Addiya e (a) Bunānitu sua esposa. 1 siclo de prata por mina será provido<br />

por eles mensalmente (como juro). Eles pagarão juro a partir do primeiro dia de<br />

Simanu do quinto ano de Nabónido, rei de Babilónia. A prata (quantia principal)<br />

que foi dada é o saldo da prata que foi dada (pelos devedores) a Ibā sobre o preço<br />

da casa. Eles pagarão o (juro em) prata mensalmente 76 .<br />

Testemunhas. Escriba. Data 77 . 78<br />

Três anos passaram e a obrigação de Apil-Addu-natānu e Bunānitu para com<br />

o empréstimo de Iddin-Marduk permanecia pendente.<br />

<strong>De</strong> acordo com um memorando, o texto M. I, 18, Bunānitu, agora viúva, fez<br />

um pagamento de juros de 9 siclos a Iddin-Marduk. Finalmente, foi apresentado<br />

o reembolso completo no vigésimo sexto dia do mês de Ululu do ano de 547 a.<br />

C., sete anos após a compra da casa segundo Nbn. 85.<br />

M.I, 18 − «Iddin-Marduk, filho de Iqīša, descendente, de Nūr-Sîn, recebeu<br />

de Bunānitu, junto com o pagamento telittu 79 , 9 siclos de prata, (i. e.,) aqueles<br />

76 Os locais de pagamento são, em regra, incluídos apenas nos actos referentes a dívidas de produtos naturais, raramente<br />

nos relativos a dívidas de prata.<br />

77 Emitido em Borsippa e datado do reinado de Nabónido, 551 a.C.<br />

78 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., pp. 379-380.<br />

79 Este tipo de pagamento era um imposto geralmente devido em produtos naturais. Cf. AHw, p. 1345. Ver telittu -<br />

«Ertrag, Abgabe».<br />

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38<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

(siclos) que (eram devidos) antes da morte de Apla-[Ad] da-natānu, seu marido,<br />

do juro da sua prata, (que é devida a Iddin-Marduk).<br />

Testemunhas. Data 80 .<br />

Este memorando 81 não deve ser esquecido. 82<br />

Na data do reembolso completo, Bunānitu participou num processo judicial,<br />

no qual ela descreve como o seu marido tomou de empréstimo o seu dote de<br />

3,5 minas de prata como parte da compra da casa de Ibā. Ele também tomara<br />

conhecimento que Iddin-Marduk tinha concedido um empréstimo, o qual eles<br />

usavam como depósito pelo pagamento da casa 83 . A quantia geralmente devida<br />

a Iddin-Marduk era estimada como sendo de 2,5 minas de prata com o juro<br />

incluído.<br />

Bunānitu testemunhou ainda que, dois anos após a compra da casa de Borsippa,<br />

ela tinha demandado em juízo, como era seu direito, uma reivindicação contra o<br />

marido, para obter as garantias legais de que o dote exaurido seria reposto.<br />

Apil-Addu-natānu, que era, como a maior parte dos receptores de dotes, apenas<br />

um tutor e não um proprietário dos bens do dote, tomou conhecimento da sua<br />

responsabilidade pela substituição do espólio depositado, e transferiu para o nome<br />

da sua esposa o título da casa de Borsippa, para o uso futuro por parte dela.<br />

Porque o empréstimo de Iddin-Marduk permanecia pendente na época e<br />

consequentemente existia uma sobrecarga sobre a casa, Bunānitu também teve de<br />

aceitar igual responsabilidade no respeitante ao reembolso do empréstimo.<br />

Em vez da transferência da casa para Bunānitu, após a morte de Apil-Addunatānu,<br />

o seu irmão Aqabbi-ilu intentou reivindicar para ele próprio a casa de<br />

Borsippa, assim como um escravo que Bunānitu tinha anteriormente comprado<br />

com o seu marido.<br />

Após escutarem as deposições e examinarem as provas, os juízes 84 emitiram<br />

uma directiva a favor de Bunānitu e de seus filhos, e anularam a pretensão de<br />

80 Emitido em Borsippa no reinado de Nabónido, 547 a.C.<br />

81 Cf. CAD, M/I, p. 399. Ver masû C) - «d) (ana / ša masê - do not forget, not neglect».<br />

82 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 405.<br />

83 Trata-se de um pagamento que pode ser entendido como um pré-pagamento. Cf. AHw, p. 795. Ver nishu - «6) wohl<br />

eine Anzahlung, vorauszahlung».<br />

84 A justiça era administrada por juízes e assembleias assim como pelas autoridades reais e do templo. Os juízes podiam<br />

efectuar as suas próprias determinações ou podiam remeter o caso a um tribunal de mais baixa instância. Os juízes do<br />

palácio tinham as suas audições e julgamentos nos tribunais do rei, nas cidades, nas assembleias ou na Porta do Rei.<br />

Por vezes, os procedimentos do tribunal talvez tenham sido conduzidos debaixo da vigilância do governador. Mas<br />

a referência, na maioria dos períodos, é limitada, sabe-se mais dos procedimentos legais dos tribunais do templo do<br />

que dos do domínio público. Ver Leo OPPENHEIM, o. c., pp. 98-103 e Muhammad A. DANDAMAYEV, «The


o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />

Aqabbi-ilu à casa e ao escravo. Contudo, reafirmaram no seu juízo que o reeembolso<br />

das 2,5 minas permanecia a prioridade que deveria ser completamente levada a<br />

efeito antes que Bunānitu pudesse recuperar o seu dote ou a sua parte de benefício<br />

no escravo.<br />

Nbn. 356 − «Bunānitu, filha de Harīsaya, disse o seguinte aos juízes de<br />

Nabónido, rei de Babilónia − Apil-Addu-natan(u), filho de Nikbadu, tomou-me<br />

como esposa. Ele recebeu 3,5 minas de prata como meu dote, e eu dei à luz<br />

uma filha. Eu e Apil-addu-natān(u), meu marido, através da prata do meu dote<br />

comprometemo-nos numa transacção. Juntos, nós recebemos um lote de casa de<br />

8 canas no bairro (chamado) Ahula-qallu, o qual é em Borsippa, e demos como<br />

o preço da casa 9 minas e 1/3 de mina de prata, junto com (uma quantia que<br />

actualmente soma) 2 ,5 minas de prata, que aceitámos de Iddin-Marduk, filho de<br />

Iqīša, descendente de Nūr-Sîn (e utilizámos) como um depósito (para a casa). No<br />

quarto ano de Nabónido, rei de Babilónia, eu levantei uma queixa legal contra<br />

o meu marido Apil-Addu-natān(u) relativa ao meu dote. Appil Adddu-natān(u)<br />

voluntariamente fez um documento selado (relativo) à casa de 8 canas, que está em<br />

Borsippa, e confiou-ma para o futuro. Na minha tabuinha ele fez saber o seguinte:<br />

(uma quantia que actualmente soma) 2,5 minas de prata, que Apil-Addu-natānu e<br />

Bunānitu aceitaram (como crédito) de Iddin-Marduk, eles deram como parte do<br />

preço da casa. Juntos, eles reembolsaram (Iddin-Marduk). “Ele selou a tabuinha,<br />

ele escreveu nela a maldição dos grandes deuses.<br />

No quinto ano de Nabónido, rei de Babilónia, eu e Apil-Addu-natā(nu), meu<br />

marido, tomámos Apil-Addu-amāra em adopção. Escrevemos a sua tabuinha de<br />

adopção. Nós (também) fizemos saber que 2 minas e 10 siclos de prata e o conteúdo<br />

da casa são o dote de Nūbtā, minha filha.<br />

A morte levou o meu marido. Agora, Aqabbi-ilu, o filho do meu sogro, estabeleceu<br />

uma reivindicação pela casa e tudo o que tinha sido selado e nomeou-me<br />

a mim, e (também) pelo (escravo) Nabû-nūr-ilāni, que nós comprámos a Nabûahhē-iddin.<br />

Perante vós eu trouxe este (assunto). Pronunciai a vossa decisão.<br />

Os juízes escutaram as suas palavras; leram as tabuinhas e contratos que<br />

Bunānitu trouxera perante eles, e consideraram que Aqabbi-ilu não possuía<br />

uma reivindicação sobre qualquer outra coisa pertencente a Apil-Addu-natān(u).<br />

Neo-Babylonian Elders», em Societies and Languages of the Ancient Near East, Warminster: Aris & Phillips, 1982, pp.<br />

38-41.<br />

39


40<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

Eles registaram esta (sentença relativa a) Bunānitu a Apil-Addu-amāra nas suas<br />

tabuinhas.<br />

Iddin-Marduk receberá antecipadamente e recuperará na totalidade 2,5<br />

minas de prata, que foram dadas (como parte) do preço dessa casa. Posteriormente,<br />

Bunānitu receberá o seu dote de 3,5 minas de prata e também a sua quota parte<br />

(do escravo). Segundo o contrato do seu pai, Nūbtā receberá Nabû-nūr-ilāni.<br />

Pela decisão deste julgamento.<br />

Lista de juízes. Escribas. Data 85 . 86<br />

Este documento tem como interesse adicional o facto de pertencer a uma nova<br />

formulação. No final do século VIII, uma nova categoria de documentos fez o seu<br />

aparecimento. Trata-se do documento dialogado, «Zwiegesprächsurkunde», escrito<br />

de uma maneira mais subjectiva, isto é, os precedimentos legais eram apresentados<br />

em dircurso directo entre os participantes principais. Este novo formato ocorre<br />

numa variedade de acordos neobabilónicos, desde vendas de escravos a alugueres<br />

ou contratos matrimoniais. Todavia, a maioria dos documentos desta época<br />

permaneceu no estilo objectivo característico dos escribas 87 .<br />

O processo terminou com o pagamento do remanescente da prata relativa<br />

ao custo da habitação.<br />

Nbn. 1104 − «2 minas 11 siclos de prata, o res(to do) preço da casa pertencente<br />

a Apil-Addu-[amāra], filho de Apil-Addu-natānu e Bunānitu, sua esposa, está à<br />

disposição de Nabû - [ X] /…/ (quebrado)<br />

Testemunhas. Data 88 . 89<br />

Outra situação que teve lugar nos casos de dívida é a do estabelecimento de<br />

um novo reconhecimento de dívida após a renegociação do contrato inicial. No<br />

exemplo de Nbn. 1125 o pagamento renegociado mantém o sistema de garantias<br />

pré-estabelecido, com o penhor do mesmo escravo.<br />

85 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, 547 a C.<br />

86 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., pp. 412-413.<br />

87 Os contratos especificam o nome das partes contratantes, a notificação de que a transacção teve lugar de livre vontade<br />

e uma série de cláusulas padrão como detalhes legais, nomes das testemunhas, escriba, localização e data da sua elaboração.<br />

88 Emitido em Babilónia e datado do reinado de Nabónido, sem datação específica mas, provavelmente, entre 550-539<br />

a. C.<br />

89 Cf. Laurence Brian SHIFF, o. c., p. 507.


o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />

Nbn. 1125 − «[x] prata], (obrigação) de Iddin-Marduk, a cargo de Šamasšuma-iddin<br />

e de Amtiya, sua esposa. O escravo anteriormente objecto de penhor<br />

de Iddin-Marduk, continua penhorado a Iddin-Marduk. Um outro credor sobre<br />

ele não poderá dispor. Ardiya e Tapaššara, sua esposa, respondem pelo pagamento<br />

da prata. À parte da nota de obrigação anterior a cargo de Šamaš-šuma-iddin e<br />

Amtiya, sua esposa. À parte de um reconhecimento de dívida sobre tâmaras e prata<br />

a cargo de Ardiya e Tapaššara, pelo qual um responde pelo outro 90 . 91<br />

Actividades financeiras<br />

Actividades comerciais<br />

Conclusão<br />

Registos e<br />

correspondência<br />

Actividades laborais<br />

Actividades judiciais<br />

Distribuição das actividades no arquivo de Nur-Sîn<br />

0 50 100 150 200 250 300 350<br />

Nº de Menções<br />

Embora esteja ausente qualquer vestígio de banca de depósito na época em<br />

análise, a actividade prestamista teve uma relevância significativa nos negócios<br />

privados das famílias neobabilónicas, actuando como suporte de actividades tão<br />

decisivas para essas sociedades como a agricultura ou como meio de obter proventos<br />

para os entrepreneurs investidores.<br />

Siglas<br />

A − Tabuinhas da Bodleian Library (Oxford).<br />

AHw − von Soden, W., Akkadisches Handwörterbuch (Wiesbaden: 1959-1981).<br />

AJSL − American Journal of Semitic Languages and Literatures (Chicago).<br />

90 Emitido em Babilónia e com datação incerta (555/539 a.C.).<br />

91 Cf. Cornelia WUNSCH, o. c., p. 213.<br />

41


42<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

AUWE − Ausgraben in Uruk-Warka. Endberichte (Mainz).<br />

BE − The Babylonian Expedition of the University of Pennsylvania; Series A: Cuneiforme Texts.<br />

Vol. 8: Clay, A. T., Legal and Commercial Transactions Dated in the Assyrian, Neo-babylonian,<br />

and Persian Periods, Chiefly from Nippur (Philadelphia, 1908); Vol. 9: Hilprecht, H. V., and<br />

Clay, A. T., Business Documents of Murashû Sons of Nippur Dated in the Reign of Artaxerxes<br />

I (1898); Vol. 10: Clay, A. T., Business Documents of Murashû Sons of Nippur Dated in the<br />

Reign of Darius II (1904).<br />

BM − British Museum.<br />

CAD − The Assyrian Dictionary of the University of Chicago (Chicago & Glückstadt: 1965).<br />

CADMO − Revista do Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.<br />

Cyr. − Strassmaier, J. N., Inschriften von Cyrus, König von Babylon (Leipzig, 1897).<br />

Ev.M − Evetts, B., − Ev. −M., Ner., Lab.: Inscriptions of the reigns of Evil-Merodach (562-559<br />

BC), Neriglissar (559-555 BC) and Laborosoarchod (555 BC) (Leipzig, 1892).<br />

IM − Tabuinhas do Museu do Iraque em Bagdad.<br />

Liv. − Strassmaier, J., Liv: Die babylonischen Insshriften im Museum zu Liverpool nebst anderen<br />

aus der Zeit von Nebukadnezzar bis Darius (Leiden, 1885).<br />

M. I/II − Moldenke, A.: Cuneiforme Texts in the Metropolitan Museum of Art. Parts I and II.<br />

(Nova Iorque, 1893).<br />

NBC − Nies Babylonian Collection (Yale).<br />

Nbk. − Inschriften von Nabuchodnosor, König von Babylon (555-538 v. Chr.). Babylonische<br />

Texte, Hefte I-IV. (Leipzig: 1889).<br />

Nbn. − Strassmaier, J. N., Inschriften von Nabonidus, König von Babylon (555-538 v. Chr.),<br />

Leipzig: 1891.<br />

Ner. − ver Evetts.<br />

RIDA − Revue International des Droits de l’Antiquité.<br />

TEBR − Joannès, F., Textes Économiques de la Babylonie Récente (Paris: 1982).<br />

TuM − Texte und Materialen der Frau Professor Hilprecht Collection im Eigentum der (Friedrich-<br />

Schiller) Universität Jena.<br />

W − Tabuinhas de Warka.<br />

WHM − World Heritage Museum Collection.<br />

ZA - Zeitschrift für Assyriologie (Leipzig/Berlim)


o sIsteMA <strong>De</strong> CrÉDIto e As ACtIVIDA<strong>De</strong>s FInAnCeIrAs nA BABILÓnIA reCente<br />

43


«JUSTOS» NEGÓCIOS E POLÍTICA<br />

ECONÓMICA NO PORTUGAL MODERNO<br />

Uma realidade evolutiva, complexa e poliédrica<br />

Maria Leonor García da Cruz 1 *<br />

Esta minha comunicação tem por finalidade não a de fazer uma síntese de<br />

resultados obtidos pela investigação histórica sobre o tema do crédito e da banca<br />

no Período Moderno, antes a de levantar temas de reflexão e problemas que se<br />

colocam a quem investiga a História dos tempos modernos, particularmente os<br />

séculos XV, XVI, XVII e XVIII, numa área de confluência de factores de natureza<br />

distinta mas adjuvante, que se altera a cada conjuntura e a cada espaço, implicando<br />

estudos particulares e convergentes para a compreensão de uma realidade evolutiva,<br />

complexa e poliédrica nas perspectivas de abordagem.<br />

Para a sua análise é forçoso que se desenvolvam pesquisas pluridisciplinares,<br />

abrangendo campos tão diversos como o da Linguística, do Direito, da Filosofia,<br />

da Ciência política, da Economia, da Teologia, com os quais se relaciona a<br />

História no desenvolvimento da sua tarefa de recuperar e interpretar no devir<br />

histórico fenómenos ou tessituras condicionados a curto e a longo prazo por outros<br />

fenómenos. O tema do crédito e da banca e dos sistemas criados, implicando<br />

sem sombra de dúvida uma análise de longo espectro, por tempos e áreas que se<br />

definem à partida – provisoriamente – e que se redefinirão em sucessivos avanços<br />

da investigação – sempre provisoriamente –, exige igualmente o apuramento de<br />

técnicas de pesquisa em história social, económica, política, financeira, cultural,<br />

1 * Professora auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigadora do Centro de História da<br />

Universidade de Lisboa.


58<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

cujos resultados se deverão cruzar, corrigindo orientações e reajustando novos<br />

programas de investigação.<br />

O título que defini – “ justos” negócios e política económica no Portugal moderno<br />

– sintetiza, desde logo, alguns dos vectores de problemática que o Colóquio “História<br />

Comparada dos Sistemas Bancário e de Crédito” me despertou aquando da sua<br />

realização em Maio de 2004:<br />

1. Ser a época que escolhi para debate um tempo ou uma sucessão de tempos<br />

marcados por considerações éticas, pesando sobre a actividade humana, as formas<br />

de explorar os recursos materiais, a orientação dos investimentos, a administração<br />

da riqueza, juízos de valor que, provenientes de um substrato cultural de teor<br />

marcadamente religioso contudo reflectem tendências laicizantes, debates<br />

institucionais, evoluções do pensamento político que claramente irão definir a<br />

partir dos séculos XIV e XV o perfil dos novos Estados europeus.<br />

2. Situarmo-nos numa época de crescente intervenção do Estado e de sensibilidade<br />

para os assuntos de natureza económica, particularmente no que respeita ao<br />

comércio e à circulação monetária, em virtude de uma Expansão ultramarina<br />

que abre à Europa novos horizontes físicos e mentais, rotas intercontinentais de<br />

comércio, amplos espaços produtivos e mercados de consumo, estimulando-a<br />

à mobilidade demográfica, à transferência e adaptação de instituições 2 e a um<br />

sincretismo cultural.<br />

3. Constatar a necessidade de averiguar até que ponto grupos e organizações<br />

relacionadas com o câmbio e com formas de crédito penetraram na economia<br />

em diferentes sectores, não exclusivamente como fontes de crédito nem somente<br />

no âmbito mercantil.<br />

Note-se que a ética que define o “justo”, constituída por regras de conduta<br />

inspiradas em textos sagrados e orientações eclesiásticas que impregnam a consciência<br />

e a acção dos homens no Ocidente cristão, irá ela própria modificar-se nas<br />

centúrias seguintes perante as transformações na mundividência do europeu, a<br />

valorização do homem pelo seu poder de realização, a reestruturação das socie-<br />

2 A “exportação do Estado”, importante tema de debate entre historiadores que versam a época da Expansão europeia e<br />

a formação dos espaços coloniais, foi escolhida como temática fundamental para a reflexão da equipa de investigadores<br />

coordenada por Jean-Philippe Genet que se reuniu em Lisboa (AN-TT), integrada no projecto sobre a génese do Estado<br />

Moderno que este investigador tem dirigido com outros grupos e linhas de inquérito. <strong>De</strong>sses trabalhos resultou a edição<br />

do volume intitulado The Heritage of The Pre-Industrial European State (ed. Wim Blockmans, Jorge Borges de Macedo<br />

e Jean-Philippe Genet), Lisboa, 1996. Nele participou Borges de Macedo com o estudo sobre “The Portuguese model<br />

of State Exportation”, pp. 25-39.


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

dades, as cisões no seio da Igreja universal e as diferentes soluções buscadas para<br />

a recolocação do crente perante o mundo, <strong>De</strong>us e os outros homens.<br />

Mesmo numa época profundamente confessional, as alterações ocorrem e<br />

revelam-se em juízos de valor sobre o lugar de cada homem na sociedade, os tipos<br />

de relação preconizada e possível com comunidades diferentes culturalmente,<br />

coabitando num mesmo território ou separadas pela distância geográfica, todavia<br />

distintas, pelas relações político-sociais dos seus membros, pelas diferentes avaliações<br />

da base material de sustento e dos artigos de troca, pelas suas cosmovisões e<br />

simbolismos marcando diferentes formas de vida. As clivagens e reajustamentos<br />

socioeconómicos e as tensões exacerbadas pela luta política e a exaltação religiosa,<br />

realidades tão presentes nos territórios da Europa dos sécs. XVI e XVII, reveladoras<br />

quantas vezes de tendências particularistas que sobrevivem e do dinamismo de<br />

forças minoritárias, alia-se a percepção das diferenças entre populações, interesses e<br />

potencialidades, desníveis cada vez mais perceptíveis à medida que se desenvolve a<br />

expansão material e técnica dos Estados e a mundialização dos negócios dependentes<br />

da abertura e do investimento em novas vias marítimas intercontinentais.<br />

Configuram-se, ao longo da Época Moderna, novas coesões políticas e uma<br />

nova ordem internacional. Estados europeus soberanos, de confissões diversas,<br />

assumem em pleno século XVII a sua individualidade sem tutelas supranacionais<br />

embora não desdenhem ligações extra-fronteiras, procurando nos princípios<br />

decorrentes do direito natural novas normas de relacionamento internacional.<br />

O confronto, seja pelo domínio político ou comercial e marítimo, bem como<br />

a procura de equilíbrio, conduzem à observação das capacidades do potencial<br />

adversário, em termos de população activa e inactiva, produção e exportações,<br />

atracção e arrecadação de metal precioso, níveis que se quantificam para calcular<br />

perdas e compensações, indemnizações em tratados internacionais que modificam<br />

o quadro político da Europa e do Mundo.<br />

As lutas e os debates internos obrigam, também eles, a reequacionar toda a<br />

comunidade e os mecanismos internos da sua coesão, seja a nível das leis, do suporte<br />

material e da reavaliação de funções, da redefinição de estatutos e de obrigações,<br />

do peso das liberdades individuais e da salvaguarda colectiva em novas teorizações.<br />

<strong>De</strong>finem-se na relação entre governante e governados as novas conceptualizações<br />

de bem público, de confiança e de razão de Estado.<br />

Indivíduos e grupos de diferentes estames sociais, incluindo nobres, cidades,<br />

homens de negócios e funcionários (cuja participação culmina na intervenção<br />

e co-direcção em grandes Companhias comerciais nos séculos XVII e XVIII),<br />

59


0<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

investem capitais (pelo menos de imediato e no caso português não aplicados<br />

na compra de bens de raiz) em empreendimentos particulares ou em contratos<br />

propostos pela Coroa, participando de forma organizada e com responsabilidade<br />

em determinados negócios relacionados com o Estado. Naturalmente que dos<br />

privilégios concedidos por esta instituição dependeu em muito a adesão de capitais,<br />

assim como o sucesso dos empreendimentos dependeria em grande medida das<br />

ligações regionais e internacionais desses indivíduos ou grupos financeiros aos<br />

grandes centros europeus (rede distribuidora).<br />

Ética e economia - percepções e práticas<br />

A sociedade portuguesa nunca ficou alheia destas transformações que se<br />

verificam na Europa do Período Moderno. É sem dúvida alguma nos séculos<br />

XV e XVI, como tantas outras e ainda além destas centúrias, uma sociedade<br />

atormentada pelo terror ocasionado por desastres naturais, por crises de subsistência,<br />

sobretudo cerealíferas, ocorridas na sequência daqueles, e por epidemias<br />

que assolam ocasionalmente cidades e regiões motivando mobilidade de gente e<br />

medidas de segurança nas comunicações e abastecimentos, na assistência pública,<br />

no suporte espiritual.<br />

É, contudo, uma sociedade em expansão, do ponto de vista demográfico 3 ,<br />

tendo em linha de conta os índices apurados 4 – que se reflectem no crescimento de<br />

vilas e cidades, no desbravamento de zonas arborizadas e no aproveitamento para<br />

cultivo de zonas maninhas, em reformas administrativas e no desenvolvimento<br />

de uma grande Expansão ultramarina –, bem como o progresso material das<br />

regiões produtivas cuja riqueza alimenta não somente mercados locais e regionais<br />

mas assegura o comércio de exportação ou a matéria-prima e artigos necessários a<br />

uma indústria, sobretudo regional e de suporte àquele grande empreendimento 5 .<br />

3 Fenómeno dos mais importantes que condicionam o desenvolvimento e a expansão europeias, positivamente neste<br />

pe-ríodo após meados do século XV, assim como mais tarde, a partir dos anos 20-30 do século XVIII. O crescimento<br />

demográfico desperta os mecanismos internos das sociedades, provocando dinamismos sociais e técnicos na procura<br />

de soluções para um novo equilíbrio.<br />

4 Fontes descritivas de âmbito regional, nomeações de tabeliães e juízes dos órfãos, procuradores de número, etc., para<br />

lá de medidas políticas bem patentes na redistribuição de jurisdições, subdivisões de comarcas (entre 1532 e 1536,<br />

criação de 14, desaparecendo das antigas apenas uma), cartas de elevação de lugares, novos forais, etc.<br />

5 Fabrico de utensílios de suporte ao apetrechamento das embarcações, confecção de vestuário destinado às tripulações<br />

e a mercados consumidores em áreas ultramarinas, preparação de vitualhas para abastecimento das armadas. Outras<br />

matérias-primas se cultivam, tintureiras, sobretudo nas Ilhas atlânticas e em particular nos Açores destinadas à exportação<br />

para as indústrias têxteis europeias. Ver esclarecimentos sobre a “indústria” do período moderno em Portugal


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

Circuitos de produtos naturais do Reino, do sal à fruta, cruzam-se com rotas de<br />

exportação de artigos provenientes das áreas ultramarinas, engrossando um caudal<br />

comercial com origem na longa distância, intercontinental, suportado, não raras<br />

vezes, por circuitos regionais complementares 6 .<br />

Se muitos dos fenómenos sociais revelados em fontes do século XVI remontam<br />

a épocas anteriores, devendo sopesar-se de forma faseada o entrecruzamento e<br />

mútua influência dos variados factores condicionantes, do económico ao político,<br />

do institucional ao psicológico, é certo que o processo de transformação e a complexidade<br />

de relações consolida-se após 1499 com o regresso da armada de Vasco<br />

da Gama, uma vez ampliado o espaço marítimo, comercial e político, e assegurado<br />

o domínio da navegação oceânica entre o Atlântico e o Índico. O regresso da<br />

nau de Nicolau Coelho despoleta manifestações públicas e uma correspondência<br />

intensa de informações que se repercute e completa com as notícias transmitidas<br />

via Veneza e Roma, a que se irá juntar de imediato a propaganda oficialmente<br />

conduzida pela própria Coroa de Portugal.<br />

O impacto dos acontecimentos sente-se em Portugal e nos meios comerciais<br />

europeus 7 , ampliando-se consideravelmente a nível internacional o interesse pela<br />

participação de grupos, famílias e indivíduos no empreendimento dirigido pela<br />

Coroa portuguesa 8 . <strong>De</strong>sde então desenvolve-se em função de um empreendimento<br />

sobretudo em artigos de Jorge Borges de Macedo para o Dicionário de História de Portugal (dir. Joel Serrão) e em estudos<br />

desenvolvidos, entre os quais, Problemas de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII (2ª ed., Lisboa, Querco,<br />

1982); em análises incluídas no terceiro volume da História de Portugal (dir. José Mattoso, Lisboa, Ed. Estampa, 1993),<br />

coordenado por Joaquim Romero Magalhães e intitulado No alvorecer da modernidade (1480-1620); e em bibliografia<br />

especializada sobre a economia portuguesa no período moderno.<br />

6 Ver trabalhos de síntese, uns vigorosamente actuais, outros só parcialmente ultrapassados (em pormenores ou na<br />

concepção historiográfica), como as Épocas de Portugal Económico de João Lúcio de Azevedo, os estudos de Virgínia<br />

Rau, Os <strong>De</strong>scobrimentos e a Economia Mundial de Vitorino Magalhães Godinho, ou de Russell-Wood “Os movimentos<br />

de mercadorias no império marítimo português” in História de Portugal (dir. João Medina, 1993, reed. 1999, v.V, pp.<br />

19-43) e Um Mundo em Movimento. Os Portugueses na África, Ásia e América (1415-1818); a obra de Fernand Braudel,<br />

Civilização Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII; e análises mais específicas, de regiões ou de portos e<br />

rotas, sejam as de Joaquim Romero Magalhães, Alberto Vieira, ou as de Leonor Freire Costa. V. infra nota 8.<br />

7 Ver a esse propósito as cartas de D. Manuel aos Reis católicos, ao Sumo Pontífice, a Maximiliano de Habsburgo e a<br />

outras entidades, bem como os discursos de Damião de Góis justificativos da causa portuguesa (in Opúsculos Históricos,<br />

trad. latim por Dias de Carvalho, Porto, Civilização, 1945).<br />

8 Sobre as relações internacionais, o sistema comercial da Coroa portuguesa e a correspondência de negócios entre mercados<br />

e mercadores, deve consultar-se sobretudo os trabalhos de Virgínia Rau acerca do comércio do sal, do sistema<br />

das feitorias e dos interesses de comunidades mercantis estrangeiras estantes em Portugal; os de A.H. de Oliveira<br />

Marques sobre as relações com a Hansa e com homens de negócio alemães ligados a diferentes áreas e contactos; para<br />

lá dos estudos sobre fontes de Braamcamp Freire, as análises de J.A. Goris e J. Gentil da Silva, sobre as intensas relações<br />

no séc. XVI com Antuérpia e outras praças internacionais do Norte europeu, sobre contratos, redes de mercadores e<br />

colónias também em áreas ultramarinas; os trabalhos sobre o sistema comercial da Coroa portuguesa levados a cabo<br />

por M. Nunes Dias, ao reflectir sobre o “capitalismo monárquico” em Portugal e sobre grandes companhias, por Maria<br />

do Rosário Themudo Barata A. Cruz e por A.A. Marques de Almeida, ao interpretarem o envolvimento, a partir dos<br />

1


2<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

de cariz nacionalista e imperial, actuante tanto no Índico como no Magrebe atlântico,<br />

toda uma ampliação do domínio político português além-mar acompanhado<br />

do necessário suporte institucional, seja este assegurado por meios diplomáticos,<br />

militares ou comerciais, com diferentes sociedades e soberanias.<br />

A sociedade portuguesa do século XVI revela-se, por tudo isso, uma sociedade<br />

em reestruturação, onde à heterogeneidade de situações que se acentua dentro das<br />

grandes clivagens sociais ainda persistentes (separação do nobre do não nobre, do<br />

leigo do detentor de ordens sacras), se acrescenta a intervenção do poder público<br />

e a reavaliação acelerada de ideais e de funções.<br />

O despoletar de uma coerência de actuação, independentemente da existência<br />

de controvérsias no centro do poder político e em áreas ultramarinas sobre a melhor<br />

forma e ocasião de investir 9 , repercute-se também no próprio Reino. Cabe ao poder<br />

real, e aos poderes e agentes delegados por ele instruídos, controlar a informação,<br />

seleccionar os parceiros, concluir os contratos, determinar a orientação política.<br />

Para isso, todavia, é necessário um forte suporte logístico, através da canalização<br />

de recursos humanos e materiais internos e externos.<br />

O fenómeno da guerra, gerido habilmente por instâncias políticas centrais,<br />

terá sido, em vários países europeus desde os finais da Idade Média, segundo as<br />

modernas interpretações em torno do Estado moderno, um dos factores fortemente<br />

condicionantes da génese deste, pela coesão de esforços e suporte social e pelo<br />

desenvolvimento concomitante de mecanismos administrativos que, actuantes,<br />

pressupunham um reconhecimento ideológico e prático, da existência de uma<br />

força interna superior, orientadora e controladora, identificada aos interesses gerais<br />

números conseguidos, de homens, de capitais e de produtos nos empreendimentos marítimos, as variações no tipo de<br />

investimento e as estratégias do Estado e dos grupos financeiros. Ver supra nota 6.<br />

9 As controvérsias que, aliás, acompanham desde o início a Expansão ultramarina, vão persistir ao longo da centúria de<br />

Quinhentos com épocas de particular exacerbamento e, quase sempre, motivado pela própria instância régia. Para uma<br />

visão global consultar <strong>De</strong> Ceuta a Timor de Luís Filipe Thomaz e O Império Asiático Português, 1500-1700. Uma História<br />

Política e Económica de Sanjay Subrahmanyam. Para uma análise específica de debates conjunturais, ver os estudos de<br />

Maria Leonor García da Cruz sobre Norte de África versus Índia, sobretudo As Controvérsias ao Tempo de D. João III<br />

sobre a Política Portuguesa no Norte de África, que a Comissão Nacional para as Comemorações dos <strong>De</strong>scobrimentos<br />

Portugueses editou na revista Mare Liberum nº 13 (Jun.97, pp. 123-199) e nº 14 (<strong>De</strong>z. 97, pp. 117-198), com uma<br />

separata especial datada de 1998 (na sua segunda parte transcrevo alguns dos discursos de 1534/35, 1541 e 1543<br />

menos divulgados, recuperando totalmente o seu conteúdo através de nova leitura e transcrição dos originais); para o<br />

comércio da pimenta, Luís Filipe Thomaz, A Questão da Pimenta em meados do século XVI. Um debate político do governo<br />

de D. João de Castro (Lisboa, CEPCEP-UCP, 1998); para a “questão de Baçorá”, Maria do Rosário Themudo Barata<br />

A. Cruz (Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, 5ª s., n. 6, 1986, e Portugaliae Historica, 2ª s., v.I , Lisboa, FLUL /<br />

IHIDH, 1991); <strong>De</strong>janirah Potache (Stvdia, n. 48, 1989); e A. Dias Farinha (Homo Viator. Estudos em Homenagem a<br />

Fernando Cristóvão, Lisboa, Colibri, 2004).


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

da comunidade, para quem, cada vez mais, representa uma garantia pública,<br />

nacional 10 .<br />

A guerra representa, na verdade, um dos principais factores condicionantes<br />

pela repercussão nos índices de mortalidade (em virtude não apenas da violência da<br />

luta e por atingir indivíduos em idade fértil, mas sobretudo pela ruína dos campos<br />

de cultura que deixam de produzir o suficiente a uma população endemicamente<br />

enfraquecida...) e pela reacção que provoca na sociedade, alterando práticas<br />

comerciais, diálogo entre poderes e grupos, reavaliação de funções, argumentação<br />

ideológica e fundamentação política e jurídica. Ocasiona, sobretudo, o desenvolvimento<br />

de uma administração específica com a definição de uma hierarquia de<br />

mando, com toda a logística que implica, desde as reorganizações do exército e de<br />

corpos especializados, evolução do armamento e do transporte, até à reformulação<br />

do recrutamento e dos mecanismos de financiamento.<br />

Poderá, então, afirmar-se que em Portugal a construção do Estado moderno<br />

se alia, sem sombra de dúvida, ao empreendimento ultramarino, isto é, ao<br />

investimento da Coroa portuguesa numa acção interna e externa onde a guerra,<br />

o interesse comercial e a força ideológica se entrelaçam, galvanizando a participação<br />

de diversificados grupos sociais e o financiamento, e com isso reforçando<br />

uma ordenação e uma solidariedade de corpos que constitui a maior garantia de<br />

equilíbrio e de paz social.<br />

Esta sociedade – recordemo-lo sempre – configura-se no seio de uma ordem<br />

mais alargada, a do Ocidente europeu cristão, marcado ideologicamente, durante<br />

todo o período medieval 11 e em parte ainda no século XVI, pela necessidade de,<br />

num combate sem tréguas, recuperar a unidade perdida de uma Cristandade<br />

que sofrera a fragmentação do império romano, a expansão muçulmana e, mais<br />

recentemente, a perda dos lugares santos para os turcos otomanos.<br />

Apesar das lutas intestinas entre Estados cristãos e do crescente envolvimento<br />

temporal que se critica à própria Igreja, esta é reconhecida e respeitada como<br />

entidade supranacional, superior enquanto medianeira e guia espiritual dos<br />

governantes cristãos. Até aos finais do primeiro quartel do século XVI ou mesmo<br />

10 Ver perspectivas historiográficas em debate sobre a guerra e a génese do Estado moderno em Maurice Hauriou,<br />

Henri Lapeyre, Fritz Hartung e Roland Mousnier, André Corvisier, Geoffrey Parker, Jean-Philippe Genet e Philippe<br />

Contamine; incluindo o caso português sobretudo em Jorge Borges de Macedo na obra sobre História Diplomática<br />

Portuguesa / Constantes e linhas de força. Estudo de Geopolítica e em “Absolutismo”, entre outros artigos seus incluídos<br />

no Dicionário de História de Portugal e em Polis – v. infra nota 23; em trabalhos revelados nos Colóquios anuais sobre a<br />

História Militar organizados pela CPHM e na Nova História Militar de Portugal de Nuno Severiano Teixeira e Manuel<br />

Themudo Barata.<br />

11 Bernard Guenée, L’Occident aux XIV e et XV e siècles. Les États (Paris, Nouvelle Clio, 1971).<br />

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<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

ainda na década de 30, e já em pleno processo interno de reforma disciplinar 12 ,<br />

é nessa qualidade de condutora universal de almas que irá funcionar ainda como<br />

árbitro, conselheira e legitimadora de acções que tenham por objectivo os fins<br />

últimos da felicidade humana, pressupondo com isto a adequação das práticas do<br />

mundo aos princípios da justiça divina.<br />

Embora já distantes da dependência pontifícia para a determinação de jurisdições<br />

temporais, Portugal e Espanha 13 continuam a fundamentar a legitimidade<br />

da sua intervenção à escala universal na definição do seu papel de instrumentos de<br />

evangelização. A conversão dos povos ao cristianismo transforma-se de justificação<br />

em fundamentação da Expansão portuguesa, reflectindo-se na ordem interna e<br />

externa, nas relações com a Igreja e com as diversas nações e poderes, no próprio<br />

título do Rei de Portugal, em discursos durante toda a Época Moderna. Recordese,<br />

a esse propósito, quanto a expansão da fé se torna argumento fundamental de<br />

Damião de Góis na defesa da política nacional de monopólio e de controlo dos<br />

preços de especiarias trazidas do Oriente, face à reacção condenatória de mercados<br />

europeus, sobretudo Veneza. Trata-se no entanto de um humanista particularmente<br />

crítico da política da Coroa e de certas orientações da acção eclesiástica. 14<br />

Cada vez mais acentuadamente, os objectivos finais que salvaguardam a<br />

comunidade cristã constituem argumentos legitimantes da prática temporal do<br />

príncipe cristão. Não deixa de ser uma constatação do êxito de tal política, insistir<br />

12 Para lá do caso precoce da Igreja nacional sob a monarquia dos Reis católicos, Isabel de Castela e Fernando de Aragão,<br />

e de outros fenómenos específicos de reforma anteriores ao grande movimento do século XVI, recorde-se iniciativas em<br />

dioceses portuguesas, particularmente a instâncias do Cardeal infante D. Afonso (1509-1540, em Évora e em Lisboa),<br />

algumas das quais numa orientação que se tornará universal após o Concílio de Trento. Ver o meu comentário à época<br />

e ao estudo desta figura em “Alguns elementos sobre a situação eclesiástica em Portugal nos começos do reinado de D.<br />

João III” e a nota biográfica seguida de documentos de Isaías da Rosa Pereira em “Uma figura histórica mal conhecida:<br />

o Cardeal-Infante D. Afonso (1509-1540)”, nas Actas do Congresso de História no IV centenário do seminário de Évora<br />

(Évora, Instituto Superior de Teologia - Seminário Maior de Évora, 1994, 2 vols.); Marcello Caetano, “Recepção e<br />

execução dos decretos do Concílio de Trento em Portugal” (Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,<br />

V.XIX, 1965).<br />

13 O Tratado de Tordesilhas, ao contrário de vários acordos anteriores firmados entre poderes ibéricos, conclui-se entre<br />

dois Estados soberanos que partilham áreas de influência, antes de receberem a bênção apostólica. O apoio espiritual<br />

da Igreja irá trazer-lhes superioridade e legitimidade de intervenção sobre os outros poderes do mundo. Ver importantes<br />

estudos em “El Tratado de Tordesillas y su Epoca”. Congreso Internacional de Historia (1994, pub. Sociedad “V Centenario<br />

del Tratado de Tordesillas”, CNCDP, Madrid, 1995, 3 vols.), bem como estudos sobre a temática reunidos em 1973<br />

(Universidade de Valhadolide), 1991 (Luís Adão da Fonseca), 1994 (Banco Bilbao Viscaya - Portugal, S.A.). Veja-se<br />

adiante os novos princípios do direito internacional manifestados em tratados internacionais em pleno século XVII.<br />

14 <strong>De</strong> salientar também o discurso de João de Barros nas Décadas da Ásia, Déc. I, Liv. VI, Cap. I. Sobre Damião de Góis<br />

ver supra nota 7 e Luís Filipe Barreto, Damião de Goes. Os Caminhos de um Humanista (Lisboa, CTT de Portugal,<br />

2002). Consulte-se ainda António Vasconcelos de Saldanha, Iustum Imperium. Dos Tratados como fundamento do Império<br />

dos Portugueses no Oriente. Estudo de História do Direito Internacional e do Direito Português (Lisboa, Fundação Oriente<br />

/ Instituto Português do Oriente, 1997); Maria Leonor García da Cruz, Os “Fumos da Índia”: uma leitura crítica da<br />

Expansão Portuguesa (Lisboa, Cosmos, 1998).


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

Maquiavel, no primeiro quartel do século XVI, nas virtudes cristãs que o bom<br />

governante deveria sempre exibir, pois a religião era um factor de coesão a ter em<br />

conta no relacionamento com as multidões e estas a força de qualquer governo 15 .<br />

Os humanistas cristãos, por outro lado, encorajam o chefe político a dignificar a<br />

sua conduta, no tocante à administração de pessoas e bens dos seus súbditos, pela<br />

imitação de Cristo, submetendo-se à lei divina, cumprindo o juramento sagrado<br />

de se votar à defesa do bem comum, julgando por igual as acções de grandes e<br />

humildes, servindo a República e reconhecendo em <strong>De</strong>us a verdadeira majestade.<br />

Afinal, por esta designação se reconhecia o verdadeiro Senhor, ainda em pleno<br />

século XVI 16 .<br />

Aliás, o crime de Lesa-Majestade que as Ordenações do Reino 17 começam<br />

por classificar como traição que conduz o homem a errar contra <strong>De</strong>us, contra<br />

o seu Senhor natural e contra todos os homens 18 , definido já claramente na<br />

centúria de Quinhentos como “traiçam cometida contra a Pessoa do Rey, ou seu<br />

Real Estado” e de “a pior cousa, e mais abominauel crime que no homem pode<br />

auer” 19 – expressões estas que se reafirmam nos séculos XVII e XVIII no suporte<br />

legislativo fundamentado nas Ordenações filipinas 20 –, reconhecia-o Erasmo 21<br />

nas atitudes tirânicas do próprio governante quando atentava contra as leis de<br />

15 Proveitoso o confronto de duas obras fundamentais de Nicolau Maquiavel, os Discorsi ou, na tradução portuguesa,<br />

Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Discorsi (2ª ed. rev., Brasília, Universidade de Brasília, 1982), e Il<br />

principe (intr.e notas de Federico Chabod, Turim, Unione Tipografico-Editrice Torinese [1924]) ou O Príncipe em<br />

diversas traduções portuguesas.<br />

16 Por Sua Majestade designava-o continuamente Santa Teresa de Ávila, na mesma centúria. Sobre a utilização tardia desse<br />

título pelo Rei de Portugal, ver Martim de Albuquerque, O Poder Político no Renascimento Português (Lisboa, ISCSPU,<br />

1968).<br />

17 Utilizei as edições fac-similadas da F.C. Gulbenkian: Ordenações Afonsinas (fac-simile da ed. de Coimbra, 1792), Lisboa,<br />

1984, 5 Livros; Ordenações Manuelinas (fac-simile da ed.de 1797 da Real Imprensa da Universidade de Coimbra),<br />

Lisboa, 1984, 5 Livros; Ordenações Filipinas (fac-simile da ed.de 1870 feita no Rio de Janeiro por Cândido Mendes<br />

de Almeida), Lisboa, 1985, 5 Livros. <strong>De</strong> lembrar aqui quanto o trabalhoso itinerário da compilação das Ordenações<br />

manuelinas (em reformulação desde 1505, com impressões em 1512/13 e edição corrigida em 1514), cujo texto<br />

definitivo se publica em 1521, foi objecto de análise de importantes estudos como o de Guilherme Braga da Cruz,<br />

O Direito Subsidiário na História do Direito Português (Coimbra, 1975), e os de Nuno J. Espinosa Gomes da Silva<br />

publicados na Scientia Iuridica (Braga, 1977 e 1981). Comentei “O Crime de Lesa-Majestade nos Séculos XVI-XVII:<br />

Leituras, Juízo e Competências” in Rumos e Escrita da História. Estudos em Homenagem a A.A. Marques de Almeida<br />

(coord. Maria de Fátima Reis), Lisboa, Colibri, 2006, pp. 581-597.<br />

18 Ordenações Afonsinas, Liv. V, título II.<br />

19 Ordenações Manuelinas, Liv. V, título III.<br />

20 Ordenações Filipinas, Liv. V, título VI.<br />

21 Nunca conviertas en tu particular provecho lo que es del servicio común, antes bien da con liberalidad de lo tuyo. El pueblo<br />

te debe mucho, pero tú le debes a él todo. Los ambiciosos títulos de “invicto”, “sacrosanto”, “Majestad”, si llegan a tus oídos,<br />

que no pasen al corazón, antes bien procura referirlos a Cristo, a quien sólo competen. El crimen de lesa majestad, que otros<br />

señalan con voz de tragedia, tú repútalo por muy leve. Mancha verdaderamente la majestad del príncipe aquel que, en<br />

nombre del mismo príncipe, obra contra derecho, con crueldad y violencia desaforada. Ninguna injuria te debe alterar menos<br />

que la que se te hace a ti solo. (Enchiridion Militis Christiani, na tradução espanhola Enquiridion. Manual del caballero<br />

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<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

Cristo (cuja imitação, pelo bem comum, sustentava a autoridade real e garantia<br />

a obediência dos súbditos).<br />

O governante cristão, atém-se, pois, por obrigação de consciência e garantia<br />

do respeito dos súbditos, a regras de conduta ditadas pelos mandamentos divinos 22 ,<br />

respeitando os direitos naturais dos seus súbditos, revalorizados ao longo da Época<br />

Moderna por teorias políticas que desejavam acautelar actos arbitrários e tirânicos,<br />

da mesma forma que deveria respeitar as leis do Reino, também elas construídas<br />

segundo os princípios de justiça, e elaborar, obedecendo ele próprio, a leis positivas<br />

que por necessidade as completassem, mesmo que para isso houvesse que revogar<br />

ou alterar antigos costumes locais.<br />

Esta concepção de um poder público de conteúdo espiritual – constantemente<br />

reafirmada em escritos portugueses do século XVI, de tratados de filosofia<br />

política e de crónicas a criações literárias e iconográficas e a textos de intervenção<br />

política e moralizadora – orientará também a Coroa portuguesa no sentido de<br />

preservar a sua autonomia relativamente a qualquer tutela 23 , viesse uma tentativa<br />

de concretizá-la de dentro (da parte de algum órgão ou grupo social) ou de fora<br />

(de um outro Estado, da pressão internacional ou do Papado).<br />

cristiano, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1995, “Opiniones dignas de un cristiano” entre a Regra 6 e a 7,<br />

pp. 211-212).<br />

22 Os ditames divinos provinham sempre das Sagradas Escrituras, fossem estas interpretadas por ministros da Igreja ou, na<br />

sequência da Reforma protestante, pela leitura individualizada do cristão. Conhecem-se as intensas controvérsias que<br />

sobre estas e outras matérias, tocantes quantas vezes mais ao foro teológico e dogmático do que ao disciplinar, opuseram<br />

católicos, luteranos e calvinistas. Também no tocante à direcção política, ficaria sempre em aberto, solucionando-se de<br />

diferentes maneiras, consoante as circunstâncias regionais e epocais, o tipo de relação a desenvolver entre a autoridade<br />

civil e a religiosa (ou eclesial).<br />

23 Sobre a evolução do sistema político em Portugal, suas condicionantes e fases, teorizações e mecanismos internos,<br />

reformulação de conceitos incluindo o de Estado, importa conhecer as análises, aliás nem sempre coincidentes, de<br />

investigadores com vasta obra neste domínio. <strong>De</strong> entre elas destaco de Martim de Albuquerque O Poder Político no<br />

Renascimento Português (v. supra nota 16); de Jorge Borges de Macedo os artigos “Absolutismo” e “<strong>De</strong>spotismo esclarecido”<br />

publicados no Dicionário de História de Portugal (dir. Joel Serrão, Lisboa, Iniciativas Editoriais, v.I, 1971) e a<br />

nova versão editada em Polis. Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado (vols. 1 e 2, 1983-1984); de Maria do Rosário<br />

Themudo Barata A. Cruz “Para a História da Europa no século XVI: Tipologia de regime e instituições” (in Estudos<br />

em homenagem a Jorge Borges de Macedo, Lisboa, INIC / CAHUL, 1992, 199-225) e As Regências na Menoridade de<br />

D. Sebastião. Elementos para uma história estrutural (Lisboa, IN-CM, 1992, 2 vols.); de António Manuel Hespanha As<br />

Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal - séc.XVII (versão abreviada, Coimbra, Almedina, 1994).<br />

O conceito de Estado é particularmente tratado por Martim de Albuquerque em estudo que se cita na nota seguinte e<br />

por A. M. Hespanha em Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime (Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1984), obra esta<br />

que, ao reunir em colectânea diversos outros autores como Pierangelo Schiera e J.A. Maravall, propicia um ensaio de<br />

história comparada. Particularmente atento às transformações dos finais do “Antigo Regime”, incluindo a conceitos<br />

como o de Lesa-Majestade, está, em trabalhos que importa debater, A.M. Hespanha. Daqueles saliento “Da ‘iustitia’<br />

à ‘disciplina’. Textos, poder e política penal no Antigo Regime” (in Justiça e Litigiosidade: História e Prospectica, Porto,<br />

F.C. Gulbenkian, 1993). Ver ainda, de Bartolomé Clavero, “<strong>De</strong>lito y pecado. Noción y escala de transgresiones” (in<br />

Sexo Barroco y otras transgresiones premodernas, Madrid, Alianza Editorial, 1990).


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

Não se estranha, por isso, a atitude de maior independência de um monarca<br />

piedoso, como D. João III, que, a despeito de possíveis contestações e reticências<br />

da própria Cúria pontifícia, negoceia nomeações eclesiásticas, a instituição de<br />

órgãos de composição mista, já não inteiramente do foro eclesiástico, mas com<br />

funções de natureza ética e política, como a Mesa da Consciência em 1532 24 e,<br />

poucos anos depois, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, aliás já requerido<br />

no reinado anterior, que se irá revelar num futuro próximo um eficaz utensílio de<br />

controlo social, a nível de doutrina e de comportamentos 25 .<br />

As reformas administrativas e eclesiásticas desenvolvidas nas décadas de 30<br />

e de 40 desta centúria, bem como as reorientações na política de ensino, e na<br />

formação do funcionalismo, particularmente o jurista, revelam todo um novo<br />

ambiente cultural que marcará as décadas seguintes 26 .<br />

A crença continua a impregnar toda a centúria de Quinhentos, século de<br />

prosperidade económica e de consolidação da soberania dos Estados europeus,<br />

mas época que também experimenta a perturbação, motivada pelo fracasso de um<br />

império universal, pelos confrontos com povos e sociedades de culturas diferentes,<br />

e, sobretudo, pelas escolhas confessionais de forças internas de Estados que haviam<br />

formado até há bem pouco tempo uma Cristandade guiada espiritualmente pelo<br />

Sumo Pontífice. <strong>De</strong>para-se-nos uma Europa dividida e dilacerada no interior dos<br />

próprios Estados por facções ou corpos políticos que se hostilizam e massacram,<br />

fundamentando a autoridade de quem os rege numa profissão de fé, não reconhecendo<br />

uma estrutura superior unitária ou, pelo menos, dominante e controladora<br />

das demais.<br />

Também em Portugal se avaliam, com o rigor possível, as acções do Rei, assim<br />

como as motivações dos seus súbditos, tanto em matérias de fé e de relações com<br />

a Igreja, como em questões políticas e de gestão financeira, sobretudo quando é o<br />

monarca, ele próprio (directamente ou por deputação), quem estabelece tratados e<br />

contratos com indivíduos, grupos e sociedades fora do mundo cristão e católico 27 ,<br />

24 Sobre este órgão consulte-se Martim de Albuquerque, “Política, Moral e Direito na construção do conceito de Estado<br />

em Portugal” (in Estudos de Cultura Portuguesa, 1º v., Lisboa, IN-CM, 1984) e Maria do Rosário Themudo Barata<br />

A.Cruz, “A Mesa da Consciência e Ordens, o Padroado e as perspectivas da Missionação” (in Congresso Internacional<br />

de História. “Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas”, v. III, Braga, UCP/ CNCDP/ FEC, 1993).<br />

25 Chamei a atenção para estes fenómenos em outro estudo recente: Maria Leonor García da Cruz, “Relações entre Poder<br />

real e Inquisição (sécs. XVI - XVII): fontes de renda, realidade social e política financeira” in Inquisição Portuguesa:<br />

Tempo, Razão e Circunstância, Lisboa – São Paulo, ed. Prefácio, 2007, pp. 107-126.<br />

26 A consultar sobretudo os trabalhos de J.S. Silva Dias, Mário Brandão e Martim de Albuquerque.<br />

27 Comunidades e redes de indivíduos pré- ou coexistem e condicionam as relações dos portugueses com os poderes<br />

e mercados regionais principalmente no interior do continente africano e no Oriente. A manutenção de relações<br />

com judeus – incluindo em áreas ultramarinas de domínio português muito após a unificação religiosa que impôs<br />

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os utiliza como agentes ao seu serviço, ou os pretende subjugar ou controlar numa<br />

guerra “justa”.<br />

Afinal não é ao Rei enquanto Pai do seu povo que compete na Época Moderna<br />

a Economia, considerando esta a disciplina 28 que até então se dirigia ao pai de família<br />

a fim de o orientar na realização da Justiça e da “Prudência” (virtude do particular<br />

e do contingente, do agir concreto no quotidiano, conservando e acrescentando<br />

os bens e evitando e diminuindo os males) numa esfera doméstica mas que agora,<br />

cada vez mais complexificada, se liga intimamente com a vida social e política?<br />

Gestão de “justos” negócios<br />

A Coroa portuguesa investe fortemente do ponto de vista comercial e<br />

militar e é importante interveniente em transacções comerciais e financeiras de<br />

âmbito alargado, integrando-se inevitavelmente nos mecanismos internacionais<br />

de crédito.<br />

Trata-se, ao fim e ao cabo, de saber gerir problemas e práticas decorrentes<br />

de uma sociedade política em Expansão que suporta concomitantemente grandes<br />

encargos financeiros pela manutenção de carreiras do trato ultramarino no Atlântico<br />

e no Índico e pela defesa de posições e de domínios atacados em crescendo por<br />

concorrentes em diversificadas partes do mundo (sociedades, religiões e povos<br />

que disputam o controlo de rotas comerciais, de portos e rendas, de produções e<br />

de mercados de consumo).<br />

A defesa e salvaguarda de pessoas e bens do senhorio do Rei de Portugal, seja<br />

na Península Ibérica, em Marrocos, no Brasil ou no Oriente, isto é, a salvaguarda<br />

dos interesses do Reino face à actuação de corsários e de infiéis, justificará por<br />

a conversão ao cristianismo a quantos permanecessem em Portugal – justificam-se frequentemente pela necessidade<br />

de intermediários e de canais de informação extra-fronteiras. Ligações familiares e de parceria comercial relacionam<br />

indivíduos que, distantes, se correspondem servindo simultaneamente de informadores se não mesmo de espiões.<br />

Salientaram a importância destes correios e veículos de informação a Portugal, investigadores como Maria Augusta<br />

Lima Cruz Fagundes, Maria do Rosário Themudo Barata A. Cruz, Anthony Disney e José Alberto R. Silva Tavim.<br />

28 Distinção após Boécio das disciplinas morais em ética, economia e política, dirigidas respectivamente ao próprio<br />

indivíduo, às coisas familiares e à res publica, mas que, conforme as reavaliações até ao Renascimento, incluindo as<br />

de Santo Isidoro de Sevilha com as designações que atribui às partes da filosofia actualis (moralis, dispensativa e civil),<br />

não se consideram se não “regiões confins e as técnicas específicas de um único saber ético dirigido à formação de um<br />

indivíduo capaz de realizar a virtus e a justiça nos vários ambientes da vida social”, conforme afirma Daniela Frigo no<br />

seu estudo sobre “ ‘Disciplina Rei Familiarae’: a Economia como Modelo Administrativo de Ancien Régime” (publicado<br />

no nº 6 de Penélope. Fazer e <strong>De</strong>sfazer a História, 1991, pp. 47-62). A nova visão, partindo do modelo aristotélico e<br />

de reelaborações medievais, sublimava definitivamente a vida civil e política, subordinando o homem e o seu agir a<br />

princípios éticos e virtudes incarnadas no pai de família e no príncipe.


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

parte do soberano o desenvolvimento de estratégias políticas, técnicas de gestão<br />

e transacções comerciais e financeiras, incluindo uma aparente venda de bens da<br />

Coroa e a instituição de padrões de juro em consequência de empréstimos feitos<br />

à Fazenda real por particulares que desviam os seus capitais de investimentos<br />

fundiários. Em troca, e até à restituição do montante adiantado, eles receberão<br />

uma renda anual calculada escrupulosamente 29 .<br />

Exige-se um cuidado suplementar em matérias do foro da res publica quando,<br />

como aqui, se pressupõe a “venda” a particulares de bens por natureza inalienáveis<br />

30 , questão ou negócio este complexo do ponto de vista político e do Direito<br />

e que implica a inclusão de cláusulas e de justificações aliviadoras de qualquer<br />

suspeita de usura. O monarca esclarece no próprio documento que este contrato<br />

não encobre qualquer forma de usura mas, para isso, garante – necessariamente<br />

na fórmula jurídica empregue – possuir o parecer favorável de letrados e de<br />

canonistas, “vender” tais bens com o comum acordo do seu Conselho e, antes de<br />

mais, manifestar com isso a suprema preocupação pela protecção dos seus povos,<br />

defendendo-os e evitando novos impostos.<br />

O bem último da República de que o Rei é garantia e protecção, identificando-se<br />

neste sentido o Rei com o Reino, enquanto entidade pública, e cristã<br />

– recordêmo-lo uma vez mais – justifica e legitima, desta forma, a canalização<br />

de todos os recursos disponíveis dos seus súbditos e, convém aqui lembrá-lo, da<br />

própria Igreja 31 .<br />

A administração régia portuguesa, mesmo na utilização dos diferentes<br />

meios militares e financeiros de suporte ao empreendimento expansionista, não<br />

obedece ela, ao fim e ao cabo, ao fim último de preservar a comunidade cristã e<br />

de acrescentá-la? Não é o monarca o supremo juiz na terra, a garantia em pessoa<br />

do que é justo, aquele que mediante a “economia da graça” (operante nas relações<br />

por ele criadas na Corte e alargando-se a outras relações sociais) altera e viabiliza<br />

aquilo que a Justiça e as leis dos homem não permitem alcançar? Não exige ele,<br />

cumprindo as Ordenações do Reino, que também os seus oficiais da Fazenda sejam<br />

29 Ver Maria Leonor García da Cruz, A Governação de D. João III: a Fazenda real e os seus Vedores, Lisboa, Centro de<br />

História da Universidade de Lisboa, 2001.<br />

30 A inalienabilidade dos Bens da Coroa – princípio que o monarca deve respeitar como lei do reino, superior a si próprio<br />

– fica claramente enunciada na Lei Mental, transcrita para as Ordenações do Reino e destas para o Regimento da Fazenda<br />

(1516) juntamente com a explicação minuciosa dos Direitos reais. Ver o meu estudo citado na nota anterior.<br />

31 Já Guilherme de Ockam e Marsílio de Pádua, nos inícios do século XIV, teorizando a relação entre poderes, legitimavam<br />

o uso de bens ecesiásticos pela autoridade política, nestas circunstâncias.<br />

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de “sã consciência” pois a eles cabem decisões que não seguem exclusivamente os<br />

regimentos e as regras do Direito 32 ?<br />

A religião, sobretudo nos seus compromissos institucionais ou eclesiais, parece,<br />

definitivamente ceder a prioridade a uma moral ou ética política que, todavia, não<br />

desvaloriza os princípios de conduta por aquela ditados, antes os utiliza firmemente,<br />

intervindo no ordenamento social, orientando a mobilidade entre grupos, recolhendo<br />

e redistribuindo recursos, avaliando da competência e da conduta ética dos seus<br />

servidores, com isso impondo uma disciplina socialmente aceite.<br />

É então essa a sociedade que segundo alguns discursos historiográficos<br />

elaborados desde o século XVIII se transformara numa sociedade sufocada pela<br />

intolerância religiosa e por tabus daí decorrentes que a haviam conduzido a expulsar<br />

os judeus e a condenar criptojudeus, afugentando com isso forças vivas identificadas<br />

quase totalmente com o mundo do comércio e das finanças?<br />

Não nos deixemos conduzir por leituras apressadas. Está-se bem longe de<br />

aceitar sem restrições e crítica teses como a de Sombardt ou a de Max Weber que<br />

atribuíam o nascimento do capitalismo e do seu espírito ao séc. XVI e em particular<br />

ao dinamismo das comunidades judaicas ou às reformulações calvinistas.<br />

Fenómenos que isoladamente caracterizarão a dinâmica do capitalismo verificam-se<br />

já em centúrias anteriores. Basta recordar a prosperidade dos negócios, em época<br />

anterior a esta, em Barcelona, nas repúblicas italianas ou na Flandres.<br />

Conhecem-se, além disso, os esforços que de há muito a Igreja vinha fazendo<br />

por conciliar os seus preceitos morais e doutrinais com a complexidade da gerência<br />

dos mecanismos seculares da sua própria instituição e com a evolução de uma<br />

economia cada vez mais fundamentada no crédito, em empreendimentos mercantis<br />

que pressupunham a constituição de sociedades, formas diversas de participação<br />

em lucros e perdas, contratos de exploração e de transporte, financiamentos que<br />

enredavam numa mesma tessitura os Estados, a Igreja, grandes homens de negócio<br />

e diversas outras entidades.<br />

Numa época de florescimento do comércio à distância, intercontinental,<br />

como é o século XVI, de grandes transacções, financiamentos e modalidades de<br />

crédito, a que recorrem, aliás, com frequência, os outros governantes europeus tal<br />

como a Coroa portuguesa, e em que estão envolvidos grupos nobres e não nobres,<br />

mercadores e banqueiros católicos, judeus e protestantes, corpos da Igreja e o<br />

32 Visível no testemunho de um Vedor da Fazenda de D. João III de 1532 a 1557, D. António de Ataíde, primeiro Conde<br />

da Castanheira. Sobre a consciência do político e conselheiro que neste âmbito supera o jurista, ver o seu discurso de<br />

1554, que publico no estudo sobre A Governação de D. João III: a Fazenda real e os seus Vedores (v. supra nota 29).


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

próprio Papado, continua a sopesar-se necessariamente à luz dos novos tempos as<br />

diversas formas de negócio, os contratos de venda, seja de especiarias ou de moeda<br />

em operações cambiais, as formas de financiamento, voluntárias e impostas, os<br />

empréstimos a juros, assim como o controlo dos preços, o regime de monopólio,<br />

o do comércio livre, etc.<br />

Por outro lado, considerando a sociedade portuguesa quinhentista em<br />

grande parte mercantilizada, será que as suas elites intelectuais a definiam como<br />

descaracterizada em relação ao seu passado histórico em virtude de um avassalador<br />

espírito mercantil, cobiçoso e individualista, que a teria dominado desde o início<br />

da Expansão (conquista de Ceuta e descobrimentos no Atlântico) 33 , levando-a a<br />

abandonar costumes e valores tradicionais? Teria ficado condenada a fenecer em<br />

virtude das regras que persistiam de cariz moral, fossem eclesiásticas ou civis?<br />

Sentiam-na os Portugueses coevos ameaçada de alguma forma? A estar, não se<br />

distinguiria da restante Europa cristã dados os debates espirituais, e não apenas em<br />

matéria disciplinar, que no seu âmago atingem profundamente a Igreja universal.<br />

São questões de fé e de dogma que abalam a Cristandade e a dividem mais do que<br />

a secularização dos Estados e a sua subtracção à tutela pontifícia.<br />

A ameaça maior da época às sociedades europeias não decorre dessa secularização<br />

de instituições e de costumes, nem da prosperidade material ou da generalizada<br />

materialização de interesses que de há muito, de facto e de direito, se processava.<br />

Ela parece provir, segundo muitos testemunhos de autores portugueses, sobretudo<br />

da conduta dos indivíduos (negativa dada a má gestão individual de ideais e de<br />

sentimentos). Não é a riqueza em si que se condena na centúria de Quinhentos<br />

mas, correntemente, as formas desonestas de a adquirir e aplicar, isto é, o roubo e<br />

a usura. A crítica de políticos e de intelectuais, aliás, concorre na maioria das vezes<br />

em sintonia com as práticas políticas de moralização de costumes, de controlo<br />

social e de catequização religiosa.<br />

A prosperidade material só é condenada quando a sua aquisição se denuncia<br />

como criminosa perante <strong>De</strong>us e os homens.<br />

Cerca de 1543, um autor português anónimo, ao dirigir-se ao Rei ponderando<br />

na necessidade de se reinvestir na conquista de Marrocos, em detrimento do<br />

envolvimento maior nos negócios da Índia, por diversas ocasiões do seu discurso<br />

insiste nos proveitos decorrentes da Expansão portuguesa – o ouro da Mina<br />

teria sido a coisa mais importante que o Reino alcançara até então e do futuro<br />

33 Ver crítica a este tipo de abordagem tão cara a alguns autores dos sécs. XIX e XX sobretudo no meu estudo Os “Fumos<br />

da Índia”: uma leitura crítica da Expansão Portuguesa (ver supra nota 14).<br />

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senhorio de África esperava pingues proventos em tributos e mercadorias. O seu<br />

juízo ganha, todavia, contornos diferentes ao sopesar riquezas rápidas e efémeras,<br />

referindo-se às provenientes do comércio com o Oriente que de direito pertenciam<br />

somente à Coroa que tomara esse ganho com “justa causa”. O discurso revela-se<br />

assim, para lá de moralizador, fundamentalmente político ao esclarecer os efeitos<br />

corruptores na natureza humana das riquezas alcançadas na Índia, referindo-se<br />

concretamente às obtidas por efeito dos interesses e acções de particulares, em<br />

contraste com a intervenção (conquista) movida pelo Rei de Portugal que ao<br />

combater os poderes regionais que impediam o comércio, engrandecia-se como<br />

defensor e garante do direito natural e das gentes, definindo-se desta forma a<br />

justiça da própria causa 34 .<br />

Curiosamente concordam neste ponto (“boa razão” e “justa causa” do Rei<br />

face a desordens dos particulares) outros pareceres aparentemente contrários<br />

como o que pela mesma época defende um maior investimento no Oriente em<br />

detrimento da conquista no Magrebe 35 . O proveito da Índia (e a utilidade do<br />

comércio no contexto geral da presença lusa na Ásia) acaba por ser extensível a<br />

outras nações para além da portuguesa e a conquista para garantir o trato serviria<br />

para “enriquecimento e conservação da pátria”. Verificavam-se então perdas de<br />

rendimento, de vidas e de honras em virtude das “delícias asianas”? Pois tudo<br />

seria remediável se os súbditos e principalmente os ministros do Rei na Índia o<br />

servissem honradamente imitando-o nos seus propósitos.<br />

A um “justo” comércio cuja segurança se assegurava com uma “justa” guerra,<br />

se referem, pois, estes pareceres políticos ao classificarem a Expansão portuguesa<br />

no Oriente em pleno século XVI.<br />

São preciosos os pormenores do quotidiano reveladores de marcas indiscutíveis<br />

de fenómenos mais profundos e de mais longa duração, que se podem testemunhar<br />

em escritos da época, sejam os compilados no Cancioneiro Geral organizado por<br />

Garcia de Resende e publicado em 1516, os elaborados pelo próprio Resende em<br />

34 Se a conquista de África não levantava dúvidas sobre a causa justa que a motivava, a da Índia ficava assim também<br />

ela legitimada no que respeitava à direcção do empreendimento pela Coroa portuguesa, o mesmo não acontecendo,<br />

contudo, no que se referia a acções de particulares nos tratos e nas próprias guerras na Índia, pois, segundo o autor<br />

do parecer, nada se sabia sobre as razões dos capitães... “. Ver “A pedido do Rei em Almeirim, parecer anónimo sobre<br />

a conquista dos reinos de Fez e de Marrocos”, documento da Biblioteca da Ajuda (Lisboa) que publiquei como doc.<br />

XIII (1543, após Março, s.l.), em As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de África<br />

(v. supra nota 9).<br />

35 “Parecer anónimo justificando conquista da Índia”, documento da Biblioteca da Ajuda (Lisboa) que publiquei como<br />

doc. XIV (1543, após Março, s.l.), em As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de<br />

África (v. nota anterior).


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

crónicas ou na sua Miscelânea dos anos 30 36 , ou os de Gil Vicente (entre 1502 e<br />

1536) e de Jorge Ferreira de Vasconcelos (dos anos 40 e 50). Importa igualmente<br />

frisar as inúmeras epístolas, sonetos, odes e epitáfios de forte cariz crítico, político e<br />

ideológico, sobre os ideais e as desilusões da sociedade portuguesa de Quinhentos,<br />

as virtudes do seu Rei e a dura tarefa que a este se impõe de endireitar o desconcerto<br />

em que os súbditos vivem, que cortesãos e homens de leis escrevem e publicam<br />

nesta centúria 37 .<br />

Juntando a estes testemunhos o dito e o silenciado das crónicas, uma vez<br />

comparadas, os tratados e reflexões sobre filosofia política e ordenação social,<br />

bem como o numeroso manancial de histórias e anedotas que se redigiram de<br />

comentário não apenas ao quotidiano da Corte portuguesa do século XVI mas<br />

também ao das ruas e dos funcionários públicos, de justiça e de finanças 38 , alargamos<br />

consideravelmente a panóplia de documentação coeva a ter em linha de conta e a<br />

confrontar com discursos e pareceres sobre as orientações da política ultramarina 39<br />

e a relação existente, positiva e negativa, e a reformular entre o governante e os<br />

numerosos corpos de governados. <strong>De</strong> soldados, agentes comerciais e mercadores,<br />

funcionários de diferentes instâncias, existem centenas de cartas e apontamentos a<br />

confrontar com anais e narrativas, e com manifestos e projectos de reforma como<br />

os de Diogo do Couto e de Rodrigues Silveira 40 , dos finais da centúria.<br />

36 1530-1534, publicada apenas em 1554. Ver Crónica de Dom João II e Miscelânea por Garcia de Resende com in-trodução<br />

de Joaquim Veríssimo Serrão (Lisboa, IN-CM, 1991).<br />

37 Sá de Miranda e António Ferreira, Diogo Bernardes e Pero Vaz de Caminha, Luís de Camões..., embora naturalmente<br />

se revelem leituras coevas apaixonadas e, sujeitas a fortes condicionantes circunstanciais. As suas críticas devem por isso<br />

mesmo contextualizar-se com o cuidado possível antes de se proceder a qualquer análise. Ver o meu artigo “Mentalidades<br />

e Sociedade no Discurso Literário Quinhentista: um balanço de estímulos e reacções face à Expansão Ultramarina” in<br />

A Escola e os <strong>De</strong>scobrimentos. No tempo de D. Manuel (Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as<br />

Comemorações dos <strong>De</strong>scobrimentos Portugueses, 1999).<br />

38 Anedotas Portuguesas e Memórias Biográficas da Corte Quinhentista, pub. Christopher C. Lund (Coimbra, Almedina,<br />

1980); Ditos Portugueses Dignos de Memória, pub. José H. Saraiva (2.ª ed., Lisboa, Europa-América, s.d.).<br />

39 Consultar Maria Leonor García da Cruz, Os “Fumos da Índia”: uma leitura crítica da Expansão Portuguesa (ver supra nota<br />

14) e “Reavaliações até ao século XVIII do discurso crítico sobre a Expansão portuguesa ultramarina e as directrizes<br />

da Governação” (Clio - Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2000). Quanto aos numerosos<br />

pareceres e discursos sobre a política expansionista, que deverão cruzar-se com as ideias formuladas em obras de diferente<br />

cariz, ver As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de África (v. supra nota 9).<br />

40 <strong>De</strong> recordar ainda a importância de outro tipo de fontes em Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens. Estudos<br />

e bibliografias (Lisboa, Cosmos/ CLEPUL, 1999). Sobre Diogo do Couto e Rodrigues Silveira atender às análises em<br />

edições críticas ou anotadas de Maria Augusta Lima Cruz, António Coimbra Martins, Luís Filipe Barreto e George<br />

Davison Winius. <strong>De</strong> salientar a desmistificação da “lenda negra” da Índia portuguesa que este último autor leva a<br />

cabo em A Lenda Negra da Índia Portuguesa. Diogo do Couto, os seus contemporâneos e o “Soldado Prático”. Contributo<br />

para o estudo da corrupção política nos impérios do início da Europa moderna (Lisboa, Antígona, 1994), desconstruindo<br />

discursos condenatórios coevos e posteriores ao século XVII que ao utilizarem acriticamente e/ou com preconceito<br />

narrativas anteriores e autores como Couto e Silveira, entre outros testemunhos, interpretam a história maliciosamente,<br />

construindo uma ficção.<br />

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A reflexão sobre acções que de há muito deixaram de ser diabólicas e vis para<br />

se considerarem necessárias às comunidades humanas, como sejam as práticas<br />

comerciais e financeiras, motivaram na verdade e desde cedo debates e reformulações<br />

nos próprios corpos da Igreja, também ela instituição com mecanismos de centralização<br />

administrativa, com recursos e despesas, com investimentos e contratos. O<br />

que importa aos quinhentistas, e em particular aos humanistas cristãos, é que nos<br />

negócios, nas artes e nos ofícios (seja qual for o seu prestígio na ordenação social),<br />

como nos outros aspectos da vivência humana, se controlem as paixões mundanais<br />

que afastam o homem dos desígnios divinos e da sua salvação eterna.<br />

Mesmo a usura e o usurário – resultantes do interesse que se pode tirar do<br />

empréstimo de dinheiro ou do ganho superior a taxas estipuladas oficialmente<br />

– não estão à partida irremediavelmente condenados pelas sociedades europeias.<br />

Se é certo que continua a condenar-se a usura em Concílios e na documentação<br />

emanada da Igreja, nem por isso os Médicis, tão intimamente ligados ao Papado<br />

nos sécs. XV e XVI, ou importantes famílias de negociantes alemães como os<br />

Fugger ou os Welser deixam a fé católica ou de investir no lado católico da Europa<br />

dividida dos séculos XVI e XVII.<br />

Além disso, a doutrina católica defende a possibilidade do arrependimento,<br />

da contrição e da penitência, até à hora da morte e a prová-lo ficaram testamentos<br />

e doações a pobres e organizações de assistência por parte de indivíduos que desta<br />

forma intentaram reparar as suas faltas agindo nesse sentido na derradeira fase da<br />

sua vida 41 ou deixando a herdeiros e testamenteiros obrigações de índole espiritual<br />

de forma a obter, mediante o poder da oração e da penitência, o resgate das almas<br />

do Purgatório.<br />

Também no tempo pós-Reforma, do lado luterano, calvinista ou anglicano,<br />

vão prevalecer as preocupações doutrinais e práticas pelo uso cristão (ou pelos<br />

cristãos) do comércio e do dinheiro. Lutero, numa fidelidade surpreendente à<br />

tradição da jurisprudência eclesiástica, opõe-se ao grande comércio, aos monopólios<br />

e a qualquer forma de especulação que, segundo ele, só beneficiava a ostentação,<br />

a avarícia e a usura. Tal como o faz com a direcção da Reforma, remete para os<br />

governantes seculares mais esta responsabilidade, a da gestão económica e financeira<br />

dos seus territórios.<br />

Contra os profissionais do crédito também se levanta Calvino com as suas<br />

Ordenações eclesiásticas que redige primitivamente para Genebra. O combate à usura,<br />

41 Na sua obra A Bolsa e a Vida. Economia e Religião na Idade Média (Lisboa, Teorema, 1987), Jacques Le Goff esclarece<br />

o tema para a época medieval.


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

como a muitos outros erros da conduta humana, implica uma vigilância constante<br />

por parte desta Igreja 42 , devendo revelar-se actuantes nesse sentido tanto pastores e<br />

ministros como outros membros da comunidade de fiéis e órgãos de composição<br />

mista como o Consistório. Mas, torna-se importante na concepção calvinista,<br />

distinguir o que traz lucro e ostentação individual do que representa benefícios<br />

para a comunidade, adquirido no trabalho produtivo e rentável 43 . A formação<br />

jurídica do doutrinador revela-se em tudo. <strong>De</strong>ixando ao Estado a obrigação de<br />

regular as taxas dos empréstimos e a vida económica, reforça doutrinalmente o<br />

apelo à consciência de cada um e ao cumprimento da Palavra de <strong>De</strong>us.<br />

Os movimentos de Reforma, tanto os protestantes quanto os católicos, apelam<br />

à moderação em muitos aspectos da vida humana e social, incluindo no que toca<br />

a ganhos materiais, e o interesse da comunidade em defender uma ordem a que<br />

obedeçam todos os seus membros (toda a sociedade numa só profissão de fé)<br />

constitui importante factor de coesão e de força a nível de Estados e de territórios<br />

lutando pela sua soberania, não obstante a religião que professam. No combate<br />

à heresia investem sociedades políticas como Portugal e Espanha tanto como a<br />

Inglaterra e as Províncias Unidas...<br />

Se é certo que na segunda metade do século XVI emergem vozes no mundo<br />

católico inspiradas nos novos tempos pós-Trento, de renovação e de reformas<br />

disciplinares a par da defesa do dogma, sobretudo com uma maior preocupação<br />

em controlar rigorosamente a interpretação que se faz das acções e dos objectivos<br />

da Igreja, também se reestrutura todo um discurso político e pragmático, que<br />

antes fora mais laicizado, e agora surge com fórmulas impregnadas de moral<br />

cristã. Basta recordar a esse propósito o discurso do jurista Giovanni Botero sobre<br />

a Razão de Estado (1586). Trata-se, todavia, de um fenómeno não só conjuntural<br />

como alargado no âmbito europeu, independentemente das orientações políticas<br />

e religiosas adoptadas por Estados, por poderes ou por corpos sociais.<br />

A Europa protestante, nas suas múltiplas profissões de fé, do luteranismo<br />

ao calvinismo, definindo-se presbiteriana ou anglicana, encontrando fórmulas<br />

particulares segundo as áreas, conformes ao contexto local, social e cultural, e<br />

42 “Igreja-tecto” ou “Igreja-mãe”, protectora terrestre e guia dos membros da Igreja invisível / conjunto dos crentes em<br />

Cristo. Ver concepções de Calvino em Emile Léonard, “La Notion et le Fait de l’Église dans la Réforme Protestante”,<br />

Relazioni – X Congresso Internazionale di Scienze Storiche, V. IV, Storia Moderna (Firenze, 1955, 75-110) e em La<br />

Réformation / Histoire Générale du Protestantisme (I, Paris, 1961) ou em estudos coligidos no Manual de Historia de la<br />

Iglesia (dir. Hubert Jedin, 2ª ed., Barcelona, Herder, 1978-1988, 10 vols.).<br />

43 Daí a necessidade de encarar criticamente a tese desenvolvida por Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do<br />

Capitalismo (4ª ed., Lisboa, Presença, 1996).<br />

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sobretudo às circunstâncias políticas e ao suporte internacional, também ela, tal<br />

como a Europa católica, sofre controvérsias e até cisões. As tensões e a busca de<br />

solução resultam num debate sobre o fundamento da autoridade, as relações entre<br />

Igreja e Estado e as respectivas áreas de influência sobre a vida social, a conduta<br />

do crente e a sua forma de comunicar com <strong>De</strong>us, os instrumentos de controlo<br />

do rigor doutrinário, as formas de instruir, orientar e de assistir os membros da<br />

comunidade, conduzir o governo, dirigir a vida económica...<br />

Para compreender as atitudes e percepções dos homens da época, não se pode<br />

desligar, na condução orientada das suas acções, a base material (de sustento e de<br />

prestígio) dos preceitos de ordem espiritual que lhe são veiculados e enformam<br />

todo o seu quotidiano.<br />

A sociedade portuguesa irá reagir de variadas maneiras aos estímulos das<br />

diferentes conjunturas ao longo da Época Moderna, contudo, sempre, de forma<br />

dinâmica como o demonstra a prossecução com êxito da Expansão ultramarina,<br />

na sua faceta poliédrica, de investimento comercial, bélico, diplomático,<br />

religioso e produtivo, sempre político e sempre justificado pelos seus objectivos<br />

ideológicos.<br />

Trata-se em todo o Período Moderno de uma sociedade em permanente<br />

transformação, quiçá reestruturação, condicionada por fenómenos de natureza<br />

e tempos diferentes, quase sempre de âmbito internacional dada a amplitude da<br />

presença do domínio português no espaço extra-europeu, o carácter planetário<br />

do seu sistema comercial, os circuitos intercontinentais e inter-regionais que<br />

mantém ainda no século XVIII. Vicissitudes diversas, umas regionais outras de<br />

maior abrangência, que a afectam, provocarão reavaliações económicas, sociais e<br />

políticas. Embora fundamentalmente rural – sobre isso abundam os testemunhos<br />

– como de um modo geral se revelava a restante Europa, não o era em exclusivo,<br />

nem antes da sua Expansão, e muito menos de forma cristalizada 44 .<br />

Quanto à riqueza das suas forças vivas 45 , para compreendê-las é preciso<br />

clarificar processos e fenómenos já atrás referidos, que não sendo exclusivos da<br />

sociedade portuguesa nela tomam um cunho específico. Refiro-me à heterogenei-<br />

44 Essa dupla feição, aliás, foi sempre bem evidente, conforme o evidenciaram as análises de Orlando Ribeiro e de Jaime<br />

Cortesão que deitaram por terra teses que defendiam ter ocorrido uma viragem no carácter nacional no início da<br />

Expansão ultramarina. Ver sobretudo a análise crítica que sobre isso fiz em Os “Fumos da Índia”: uma leitura crítica da<br />

Expansão Portuguesa (cit. supra nota 14).<br />

45 Situação antes e depois da unidade religiosa definida claramente desde as disposições de D. Manuel de <strong>De</strong>zembro de 1496<br />

sobre a saída do Reino de todos os não cristãos. <strong>De</strong> salientar àcerca deste assunto o estudo actualizado sobre “Expulsão<br />

ou Integração” de Maria José Ferro Tavares em Judaísmo e Inquisição. Estudos (Lisboa, Ed. Presença, 1987).


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

dade de condições cada vez mais acentuada dentro das grandes clivagens sociais,<br />

verificando-se alterações sucessivas na maioria dos casos em virtude da intervenção<br />

crescente do poder real e das tentativas de regular os recursos materiais e humanos<br />

no Reino e nos seus senhorios. Com as reestruturações e os dinamismos de corpos<br />

sociais em áreas e em conjunturas diferentes, vão também sendo reavaliados de<br />

diferentes formas os ideais e as funções, emitindo-se juízos de valor sobre o lugar<br />

que cada um ocupa nessa sociedade em transformação 46 .<br />

Note-se que bem longe ainda do século XVII já a prosperidade material<br />

que se reflectia no prestígio do Rei de Portugal e na sua imagem e representação,<br />

se definia com base na riqueza dos seus súbditos. Muitos conselheiros em 1534<br />

e 1535 chamavam a atenção do monarca, em pareceres orais e escritos, para as<br />

disponibilidades financeiras de nobres, cidades, estruturas eclesiásticas e ordens<br />

religiosas, incluindo as militares, cujo contraste com a Coroa portuguesa era abissal<br />

em termos de liquidez de capital 47 .<br />

A Corte, cujo engrandecimento e ambiente gerador de maledicência tanto se<br />

critica na literatura política de cariz moralizante, acaba por ser para lá de sede régia,<br />

um centro político e um local de auscultação. A sua própria itinerância permite<br />

a reavaliação sucessiva de regiões e de grupos de indivíduos e a oportunidade de<br />

alterar, em moldes aliás previstos pelas Ordenações do Reino, o exercício directo<br />

da justiça real. Permite, igualmente, exponenciar a manifestação pública da<br />

magnanimidade da graça régia 48 .<br />

Com o grande nobre e alto funcionário da Casa Real cruzavam-se no mesmo<br />

local o nobre de proeminência política, com maior ou menor autonomia na gestão<br />

de homens e de serviços em órgãos centrais de Justiça e de Fazenda, o Secretário<br />

do Rei e o seu abastado Tesoureiro-mor, o jurista (quantas vezes com parentes no<br />

46 Consultar a obra clássica de Vitorino Magalhães Godinho sobre a Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa (4ª ed.,<br />

Lisboa, Arcádia, 1980) e análises posteriores sobretudo de Maria do Rosário Themudo Barata A. Cruz, “As transformações<br />

na sociedade portuguesa (1450-1570)”, Clio. Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa (n. sér.,<br />

nº 4, 1999, entre outros trabalhos); de António de Oliveira, “Poder e Sociedade nos séculos XVI e XVII” in História<br />

de Portugal (dir. João Medina, V.VII, entre outros trabalhos); e de João Cordeiro Pereira, “A Estrutura Social e o seu<br />

devir” in Nova História de Portugal (dir. Joel Serrão e A.H. Oliveira Marques, V.V, Lisboa, Presença, 1998).<br />

47 Maria Leonor García da Cruz, As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de África<br />

(v. supra nota 9).<br />

48 Quiçá procurando aplacar tensões, corrigindo ou colmatando a inadaptação de juízes locais ou de âmbito regional<br />

às exigências de novas leis. A esse propósito recorde-se a crítica ambivalente de Gil Vicente por volta de 1525/26 ao<br />

nomear o iletrado e até boçal, porém grande proprietário, Pero Marques juiz da Beira, que guiado pela leitura que sua<br />

mulher lhe vai fazendo da Lei, julga mais pela sua consciência ou falta de senso do que pelo direito ordinário. Novas<br />

disposições legislativas confirmam sobretudo desde a década de 30 a valorização da instrução e profissionalização dos<br />

juízes e desembargadores, mas situações absurdas continuam a prevalecer no quotidiano das populações. As queixas<br />

chegam ao Rei em Cortes e fora destas.<br />

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mesmo corpo) que almeja os principais cargos em órgãos intimamente unidos à<br />

soberania régia e que, ao clarificar ordenações, regimentos e tratados, alicerça os<br />

direitos reais dentro e fora do Reino 49 . Este constitui apenas um dos grupos de<br />

não nobres que, dada a sua formação universitária e prática profissional, colocadas<br />

ao serviço dos interesses régios, anseia por uma promoção social que só a graça<br />

régia lhe poderá proporcionar. Outros há, e das mais variadas proveniências,<br />

que, residentes na Corte, ou nesta estantes temporariamente, a requerer mercês,<br />

esperam pela sua vez de embarcar com alguma nomeação para um ofício no mar<br />

ou em terra.<br />

Se para uns o engrossamento dos moradores da Casa Real representa um<br />

depauperamento das casas senhoriais 50 e um desperdício na vida de Corte de gente<br />

vocacionada para a guerra, outros vêem na colocação directa ao serviço do Rei a<br />

via por excelência para indivíduos e Casas ganharem prestígio social e benefícios<br />

materiais, através da boa colocação de parentes e dependentes, pelo exercício de<br />

funções e na realização de missões de serviço público que, embora com restrições<br />

ordenadas, proporcionarão por vezes pingues dividendos e, sobretudo, despertarão<br />

mais tarde ou mais cedo actos de graça régia, tão incontestáveis quanto<br />

invejáveis.<br />

Fidalgos de sangue ou recém-nobilitados, eram inúmeros, os auxiliares do<br />

monarca entre os quais gente formada em Direito canónico e em Direito civil,<br />

cujo parecer em matérias de consciência o Rei muito prezava. Recorde-se que,<br />

mesmo tendo sido Évora centro do poder político por alguns anos na década 30<br />

49 O papel fundamental do jurista na preparação de prólogos e preâmbulos em ordenações, isto é, no suporte teórico<br />

do poder régio e da sua prática, e na enunciação de cláusulas, cada vez mais claras e especificadas, em regimentos e<br />

noutras disposições que criam ou reformulam, assim como a sua acção em Cortes salvaguardando os interesses do Rei<br />

/ Reino face a protestos e reivindicações de corpos sociais nelas presentes ou representados, tem vindo a ser estudado<br />

em História do Direito (Paulo Merêa, Martim de Albuquerque, Marcello Caetano, Nuno Espinosa Gomes da Silva<br />

e António Manuel Hespanha), assim como pela História institucional, social e política, pela económica e pela das<br />

mentalidades. Ver Maria Leonor García da Cruz, A Governação de D. João III: a Fazenda Real e os seus Vedores (v. supra<br />

nota 29); Maria do Rosário Themudo Barata A. Cruz, As Regências na Menoridade de D. Sebastião. Elementos para uma<br />

história estrutural (v. supra nota 23).<br />

50 Crítica presente em pareceres políticos destas décadas, manifestados através da poesia de Francisco Sá de Miranda,<br />

sobretudo na Carta “A António Pereira”, Senhor do Basto, quando partiu para a Corte com a casa toda (inserta nas<br />

Obras editadas em 1595, que publico em Os “Fumos da Índia”: uma leitura crítica da Expansão Portuguesa, pp. 192-<br />

199, cit. supra nota 14), quer no discurso do conselheiro régio Manuel de Sousa que, escrevendo ao monarca a 1 de<br />

Janeiro de 1535 de Arronches, onde é Alcaide-mor, o esclarece num longo parecer acerca do que considera serem as<br />

preocupações maiores da intervenção de Portugal nas áreas ultramarinas e dos fenómenos da sociedade portuguesa que<br />

ao Rei caberia disciplinar, ditando leis e regras de comportamento para a reforma do todo social. Ver a este propósito<br />

estudos que publiquei, entre os quais, As Controvérsias ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de<br />

África (cit. supra nota 9) e “Mentalidades e Sociedade no Discurso Literário Quinhentista: um balanço de estímulos<br />

e reacções face à Expansão Ultramarina” in A Escola e os <strong>De</strong>scobrimentos. No tempo de D. Manuel (v. supra nota 37).


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do séc. XVI 51 , enquanto a Corte nela se manteve devido à peste que grassava em<br />

Lisboa, de há muito que a cidade de Lisboa se transformara em sede permanente<br />

das principais instituições de gestão administrativa e espelho de um império<br />

ultramarino, mesmo que membros ou comissões de certos órgãos centrais tivessem<br />

ainda de acompanhar o Rei nas suas deslocações ou de acorrer à sua presença<br />

sempre que se considerasse oportuno.<br />

Subjacente à análise da realidade social, ela própria indissociável de condicionantes<br />

culturais, políticas e económicas, e de factores sempre em mutação que se<br />

interinfluenciam, permanecem questões que se relacionam com a complexidade de<br />

uma estrutura social sempre em movimento 52 , com o dinamismo de indivíduos e<br />

grupos, a sua articulação com os poderes existentes na sociedade e com instâncias<br />

externas, as suas definições jurídicas e a reavaliação de actividades, funções e<br />

conceitos.<br />

Ao longo da Época Moderna em Portugal, haverá períodos de frequentes<br />

consultas e de debates, de circulação de pareceres, alvitres ou memórias, sobre<br />

investimentos e gestão de recursos humanos e materiais, formas de colonização,<br />

relações comerciais e políticas, reformas administrativas e militares, no Reino e<br />

nos territórios ultramarinos. Corresponderam alguns a épocas de grande tensão,<br />

disputas e mobilidade de gente de diferentes camadas, incluindo na heterogénea<br />

nobreza e nos homens de negócio, de cepa cristã mais ou menos antiga. Há os que<br />

partem para áreas ultramarinas não apenas portuguesas, aí investindo a nível de<br />

exploração de recursos ou de serviços, ou mobilizam-se dentro da própria Europa.<br />

Outros vivem no Reino as vicissitudes de regime, os afluxos e refluxos de riquezas, as<br />

crises e as “viragens” económicas, os debates na Corte (esteja esta em solo nacional<br />

ou em Madrid durante o domínio filipino) ou noutros órgãos e instâncias, em<br />

reuniões dos Estados do Reino, em círculos mais ou menos alargados, políticos<br />

e/ou eruditos, nas Academias...<br />

Vários investigadores têm vindo a aprofundar o conhecimento sobre o envolvimento<br />

de homens, de capitais e de produtos nos empreendimentos marítimos<br />

portugueses, feitorias, colónias, redes e circuitos, o sistema comercial da Coroa e<br />

a gestão da Fazenda, as estratégias do Estado e dos grupos financeiros, as relações<br />

com praças internacionais, a correspondência entre mercados e mercadores, os<br />

51 Maria de <strong>De</strong>us B. Manso, Évora, Capital de Portugal 1531-1537 (Tese de mestrado, Lisboa, FLUL, 1990, 2 vols.).<br />

52 À variação dos índices demográficos, sobretudo da mortalidade, numa população em crescimento, aduz-se como<br />

importante factor caracterizador a mobilidade, seja a nível das migrações de indivíduos e de comunidades, seja a nível<br />

de promoções na hierarquia e no prestígio social.<br />

79


80<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

interesses de comunidades, casas ou agentes mercantis nacionais e estrangeiros<br />

estantes em Portugal ou nos seus domínios, as variações no tipo de investimento,<br />

contratos e sociedades... 53<br />

O peso da “consciência” no desenvolvimento das técnicas<br />

financeiras<br />

Conhece-se como as técnicas mercantis se desenvolveram na Idade Média<br />

desde a revolução comercial e como atingiram a sua generalização e apogeu nos<br />

séculos XIV e XV. Basta recordar, a título de exemplo, dois fenómenos: o desenvolvimento<br />

de métodos de seguro para o comércio por terra e para o marítimo,<br />

com numerosos tipos de contrato, distinguindo-se nestes últimos seguradores e<br />

proprietários de navios; e a divulgação do uso da letra de câmbio com práticas de<br />

endosso e de desconto vulgarizadas desde o começo do século XVI. Em relação com<br />

a evolução monetária, servirão as letras de câmbio para pagamento de operações<br />

comerciais e transferência de fundos, revelando-se importante fonte de crédito e<br />

de lucro financeiro.<br />

No que respeita ao câmbio, outros fenómenos e técnicas ocorrem, devendo<br />

salientar-se:<br />

§ uma generalização paulatina de moedas fiduciárias e escriturárias que, embora<br />

adjuvantes da moeda metálica, se autonomizam das massas monetárias. Entram<br />

na engrenagem em relação íntima com as moedas reais e, portanto, com preços,<br />

economias, estruturas sociais, câmbios e intervenção de instâncias políticas, que<br />

variam também segundo as épocas;<br />

§ o uso de papéis por decalcamento da moeda de conta;<br />

§ os juros por empréstimo a Estados e cidades;<br />

§ as cédulas enquanto formas de reconhecimento de dívidas postas em<br />

circulação;<br />

§ rendas privadas que dependem de fenómenos monetários;<br />

§ contratos de asientos na Corte de Espanha, de banqueiros genoveses que substituem<br />

os alemães;<br />

§ venda e resgate de juros de resguardo / garantia de empréstimos, etc.<br />

53 Ver anteriores referências a autores e estudos, sobretudo nas notas 6 e 8.


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

Todo este desenvolvimento de técnicas financeiras está em relação directa<br />

com a evolução monetária, com o pagamento de operações comerciais, com a<br />

transferência de fundos, assim como com a concepção que se tem e com o uso<br />

que se faz das fontes de crédito e dos lucros financeiros. Com estas práticas se<br />

relaciona também o desenvolvimento da própria contabilidade e o surgimento da<br />

nova técnica por partidas dobradas conhecida por “escrita à veneziana”, já utilizada<br />

antes de meados do séc. XIV em Luca e em Génova, divulgada na Europa no séc.<br />

XVI a partir de Antuérpia, com provável uso em Portugal nos sécs. XV e XVI,<br />

utilizada sistematicamente pelos Jesuítas no séc. XVII e aplicado à contabilidade<br />

pública desde 1761 54 . <strong>De</strong>las decorre, ainda, o investimento em áreas de presença<br />

ou domínio, ou em circuitos de espionagem e de informação, muitas vezes difíceis<br />

de manter, tendo em vista a correspondência directa do sucesso de negócios e<br />

transacções com a chegada mais ou menos rápida de notícias sobre vicissitudes<br />

político-militares, incluindo acções de corso, estado das colheitas, circulação e<br />

chegada de navios.<br />

A própria Igreja católica e os Estados que, na centúria seguinte e já após o<br />

impacto da Reforma, a continuaram a respeitar como pastora universal das almas,<br />

integram-se nos novos tempos, gerindo e adaptando os seus mecanismos sociais e<br />

institucionais de acordo com as transformações políticas e financeiras.<br />

Se a prática do Rei de Portugal em distribuir aos seus financiadores padrões<br />

de juro, como atrás mencionei, ou em negociar perdões que ilibam de inquérito<br />

e de confisco de bens cristãos-novos suspeitos e acusados de heresia 55 , encobre na<br />

verdade transacções exclusivamente financeiras 56 , o câmbio nas praças internacionais<br />

54 A.A. Marques de Almeida, Estudos de História da Matemática, Sintra, Ed. Inquérito, 1997.<br />

55 Os cristãos-novos acusados do crime de heresia judaica e apostasia estiveram, na verdade, desde a Bula de perdão<br />

de 1533 até cerca de 1568, ao abrigo de perdões que os salvaguardavam de investigações e de confiscos de bens. Na<br />

sequência da atenção que mereceram a J. Lúcio de Azevedo e a J. Mendes dos Remédios, os perdões gerais e a sua<br />

venda como um dos expediente de financiamento da Coroa, particularmente desde finais de Quinhentos – recordemse<br />

as disposições nem sempre pacíficas de 1577, 1587 e 1605 –, o assunto tem sido aprofundado por historiadores do<br />

período como António de Oliveira, A.A. Marques de Almeida sobretudo em “Dívida Pública: Técnicas e Práticas de<br />

Refinanciamento do Estado no Período da União Ibérica” in A União Ibérica e o Mundo Atlântico (coord. M. Graça<br />

M. Ventura, Lisboa, Eds. Colibri, 1997, pp. 15-28) e António Borges Coelho sobretudo em “Política, Dinheiro e Fé:<br />

Cristãos-Novos e Judeus Portugueses no Tempo dos Filipes”, Cadernos de Estudos Sefarditas, 1, 2001 (pp. 101-130).<br />

Quanto ao processo de sequestro de bens, mediante inventário por oficiais da Coroa (dirigido pelo juiz do fisco),<br />

diferenciado de um possível e ulterior confisco, foi esclarecido em M. Leonor García da Cruz, “Relações entre Poder<br />

real e Inquisição (sécs. XVI - XVII)” (v. supra nota 25).<br />

56 No primeiro caso referido só aparentemente se poderia tratar de uma venda, uma vez que as cláusulas sobre a restituição<br />

dos bens à Coroa e a natureza destes (inalienáveis segundo as leis do Reino que condicionam o próprio monarca)<br />

impediam a sua absoluta concretização. Os limites ficam claramente enunciados desde as Ordenações afonsinas. A<br />

ausência da sua enunciação sistemática nas Ordenações manuelinas editadas em 1521 deve-se somente ao facto deste<br />

Códice remeter tais matérias para um corpo legislativo apartado especificamente referente à Fazenda real, suas ordenações<br />

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82<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

continua a esconder, também de forma cada vez mais sofisticada, o empréstimo a<br />

juros e a usura. Para definir o limite entre o aceitável e o condenável dispõem-se<br />

juristas e homens de letras a rever o dito e o escrito, o comentado, a partir das<br />

Sagradas Escrituras, dos textos canónicos e das normas civis.<br />

Recorde-se a esse propósito a importância que tiveram os debates e escritos da<br />

chamada escola de Salamanca no pensamento económico e como em Portugal se<br />

publicavam tratados no último quartel do séc. XVI procurando esclarecer conceitos<br />

e delimitar com rigor o lícito e o ilícito nas práticas usurárias 57 . A persistência da<br />

legislação sobre usura e a sua clarificação, precisando termos e renovando cláusulas<br />

ao sabor dos novos tempos, revela uma prática que sobrevive e os embustes que<br />

se vão criando para mascará-la. Recorra-se por exemplo ao Liv. IV das Ordenações<br />

manuelinas, a títulos só por si expressivos como o XIV: “Das usuras como sam<br />

defesas. E em que maneira se podem leuar” e o XV: “Que nom faça pessoa algüa<br />

contractos simulados”. O primeiro destes mas com introdução de novas cláusulas<br />

é transposto para o Liv. IV das Ordenações filipinas, Tít. LXVII, intitulando-se<br />

simplesmente “Dos contractos usurarios”.<br />

Da denúncia dos contratos resulta confisco para a Coroa e isenção para a parte<br />

denunciante. Considera-se lícito o ganho recebido em determinados contratos de<br />

câmbio entre lugares. A novidade no documento dos finais do século XVI é o alerta<br />

sobre transacções que eram sobrecarregadas consoante o pagamento para câmbio<br />

se fazia em dinheiro (de contado), por letras ou por livranças. Quanto a penas de<br />

degredo, estas passam a fazer-se para África, e as multas a distribuirem-se entre o<br />

denunciante e os cativos. Por ser coisa “que traz peccado e carrego de conciencia”,<br />

estipula-se que havendo dúvida sobre algum caso respeitar-se-á o Direito canónico<br />

e as determinações da Igreja.<br />

A prosperidade de indivíduos e de grupos financeiros resulta em muitos<br />

casos dos problemas de liquidez dos Estados e de outras instâncias políticas. O<br />

empréstimo que vem desafogar dificuldades de capital, militares, administrativos<br />

e sociais, representará para grandes mercadores – e em certas áreas para fabricantes<br />

– uma aliança com mútuas vantagens. Poderão estes grupos (nobres e não nobres)<br />

usufruir de uma protecção que lhes permita facilidades de circulação, acesso a<br />

e regimentos, publicado em 1516. Ver Maria Leonor García da Cruz, A Governação de D. João III: a Fazenda real e os<br />

seus Vedores (ver supra nota 29).<br />

57 El Pensamiento Económico en la Escuela de Salamanca,Una visión multidisciplinar (eds. Francisco Gómez Camacho S.I.<br />

e Ricardo Robledo, Salamanca: Ed. Universidad Salamanca / Fund.Duques de Soria, 1998) e Virgínia Rau, Estudos<br />

sobre História Económica e Social do Antigo Regime (Lisboa, Presença, 1984).


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

funções inclusive de recolha de impostos e de exploração de domínios, a contratos,<br />

a frutos de ordens militares e até a maior liberdade de especulação.<br />

Basta a esse propósito recordar quanto os Welser e os Fugger até às primeiras<br />

décadas de Seiscentos beneficiaram de circunstâncias que os relacionaram, através<br />

de filiais, agentes e intermediários, não só a explorações na Europa como também<br />

ao Oriente e às Américas, para finalmente soçobrar em virtude da ligação à<br />

monarquia espanhola.<br />

Por seu turno, em repúblicas italianas como Florença, conhece-se nos inícios do<br />

séc. XV uma variedade de bancos (como já eram conhecidas diversas casas italianas<br />

desde a centúria anterior), desde estabelecimentos de empréstimo sobre penhores,<br />

de venda de jóias a crédito, até organismos de câmbio directo e os chamados<br />

banchi grossi (Médicis e Bardi). Os bancos dos cambistas transformavam-se em<br />

instituições financeiras aptas a diversas operações, dotadas de dinamismo próprio<br />

e solidez nos negócios em que se especializavam.<br />

Em Portugal, a lei de 1415 interditava a troca e transacção de ouro e prata fora<br />

dos câmbios d’ el-Rei em Lisboa e no Porto. A D. Afonso de Vasconcelos, senhor<br />

de Penela, serão doados em 1465 os câmbios do Reino por dez anos, podendo<br />

ele colocar feitores e rendeiros em todas as cidades, vilas e lugares à frente das<br />

transacções, reservando o Rei apenas um banco em Lisboa pela doação feita por<br />

5 anos a Mossém Rafael Vivas, embaixador do Rei de Tunes e enviado pelo Rei<br />

de Portugal a Fez em 1463. Embora a mais antiga referência a banco (enquanto<br />

instituição financeira) detectada em documentação portuguesa date de 1446,<br />

conforme o provou António Dias Farinha 58 , parece ser o banco citado na fonte<br />

de 1465 o primeiro estabelecido em Portugal. O vocábulo aparece plenamente<br />

integrado na terminologia oficial utilizada no séc. XVI.<br />

Os bancos genoveses, por outro lado, irão no século XVI especializar-se no<br />

empréstimo a soberanos e a outros particulares, dedicando-se igualmente à especulação<br />

cambial. Com um sistema centralizado ou descentralizado, combinando<br />

associações e filiais, estas casas comerciais irão desenvolver monopólios e cartéis,<br />

conseguindo operações comerciais e financeiras, empréstimos e privilégios.<br />

A vulnerabilidade das casas bancárias cujas falências marcam sucessivamente a<br />

história europeia, conduzirá à criação de bancos públicos que recebiam e guardavam<br />

depósitos, como o de Amesterdão (1609) – ou o do seu congénere em Barcelona,<br />

58 António Dias Farinha, “O Primeiro Banco em Portugal (1465)” in Estudos em Homenagem a Jorge Borges de Macedo,<br />

Lisboa, INIC-CAHUL, 1992, pp. 153-171.<br />

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84<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

ou ainda o do Rialto em Veneza nos finais do século XVI. 59 Trata-se agora de um<br />

banco permanente que aceita depósitos em qualquer moeda a partir de um certo<br />

valor e que efectua transferências, tendo, para além disso, o monopólio das trocas,<br />

pagando qualquer carta de crédito sobre Amesterdão. Não é contudo um banco de<br />

crédito que adiante títulos ou desconte notas. Só o faz em relação à Companhia<br />

das Índias e ao município.<br />

Recebendo algum lucro sobre as trocas, assim como pela venda às Casas da<br />

Moeda de barras de metal amoedável e pelo lançamento em circulação das moedas<br />

dos grandes negócios, irá revelar solidez e, nos finais da centúria de Seiscentos,<br />

passar a receber toda a espécie de capitais estrangeiros. Só então começa a revelar<br />

operações de crédito, recebendo um direito mínimo sobre a realização de pagamentos<br />

e de transferências, e a conceder adiantamentos a particulares mediante uma<br />

taxa. Inicia-se a circulação do papel bancário a servir de troca como moeda. No<br />

século XVIII, continua todavia, a conservar um papel de regulador e distribuidor<br />

da existência do metal que servia o grande comércio. O metal precioso vinha então<br />

do Brasil e da América espanhola.<br />

Um tanto diferente se revela o Banco de Inglaterra em 1694. <strong>De</strong>corre da<br />

constituição pelos mercadores de Londres de uma sociedade por acções cujo capital<br />

emprestam ao Rei. Uma vez que as notas emitidas circulam e servem de pagamento<br />

e a instituição adianta a particulares, cedo se prestou a operações de crédito.<br />

Mais do que a banca será o comércio a suscitar sociedades que não se limitam<br />

ao meio familiar, antes ganham personalidade jurídica e independência em relação<br />

aos seus membros, acumulam apreciável capital e privilégios que, embora pressupondo<br />

determinada regulamentação ou controlo, irão representar uma garantia.<br />

Grande parte dos fundos utilizados pela Coroa Portuguesa durante o Período<br />

Moderno eram internacionais absorvendo o pagamento dos juros do empréstimo<br />

parte dos lucros desse investimento. Tais circunstâncias teriam justificado, pelo<br />

menos em parte, as alterações funcionais de 1549 na feitoria de Antuérpia. Contudo,<br />

detectam-se, por outro lado, organizações ou propostas (alternativas a bancos), para<br />

apoio de actividades económicas no sector agrícola (Montes de Piedade, 1562/63 e<br />

1572) ou para fomento da agricultura, artes e comércio (montes pios pecuniários<br />

e pequenos bancos para desenvolvimento provincial, 1781 e 1798).<br />

59 V. History of the Principal Public Banks ed. J.G. Van Dillen (Londres, 1934) e estudos de especialistas com vasta obra<br />

sobre estas matérias (citam-se apenas alguns exemplos), como de Raymond de Roover L’evolution de la lettre de change,<br />

XIVe-XVIIIe siècles (Paris, 1953) e de Henri Lapeyre «La banque, les changes, et le crédit au XVI e siècle» (Revue d’histoire<br />

moderne et contemporaine, 3, 1956).


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

Como instância ligada à circulação financeira no âmbito de actividades<br />

comerciais, foi concebida a fundação de um Banco por doutrinadores portugueses<br />

como Duarte Gomes Solis (1622, Discursos sobre los Comercios de las dos Indias,<br />

donde se tratan materias importantes de Estado, y de guerra) e o Padre António<br />

Vieira (Razões apontadas a El-Rei D. João IV a favor dos cristãos novos, para se lhe<br />

haver de perdoar a confiscação dos seus bens, que entrassem no comércio deste Reino).<br />

Considerava este o problema do confisco de bens e a possibilidade dos cristãosnovos<br />

instituírem companhias comerciais e bancos à semelhança do de Amsterdão.<br />

<strong>De</strong> facto será criada apenas a Companhia do Comércio do Brasil, em 1649, com<br />

administração estatizada em 1663, depois transformada na Junta do Comércio<br />

até ser extinta em 1720.<br />

Na entrada da segunda metade de Setecentos considerava-se ainda que as<br />

Grandes Companhias ofereciam segurança como os bancos públicos (encarados<br />

estes apenas em termos de depósito público). Só nos finais da centúria se emitem<br />

apólices (títulos de empréstimos públicos), negociáveis e passíveis de serem trocados<br />

como “dinheiro de metal” 60 .<br />

Continuava a faltar uma instituição, de garantia, que além de trocar moeda<br />

assegurasse também a emissão de papel fiduciário. Será essa a proposta de D.<br />

Rodrigo de Sousa Coutinho. Pretendia reformar o sistema de forma a regularizar<br />

as contas públicas e obter fundos sólidos e crédito do Estado, ao mesmo tempo que<br />

alvitra a criação de um banco (de accionistas) com extensa actividade. O projecto<br />

data, pois, de 1799-1800. Em 1808 renova a proposta, desta feita estando a Corte<br />

portuguesa no Brasil (Rio de Janeiro) devido a vicissitudes internacionais.<br />

Só em 1821 será fundado o Banco de Lisboa, casa bancária, suporte das actividades<br />

económicas através do desconto de letras e abertura de créditos, que, fundido em 1846<br />

com a Companhia Confiança Nacional, originará o Banco de Portugal 61 .<br />

O político exalta o poder do homem, a capacidade de administrar os bens,<br />

vencer pela astúcia e pela inteligência, pelo desenvolvimento técnico e através<br />

60 Ganharão a denominação de papel-moeda, com valor simbólico, garantido oficialmente. Diferiam, assim, de outros<br />

papéis que anteriormente serviram de pagamento: recibos passados pelo tesoureiro da Casa da Moeda (contra a<br />

entrega de ouro e prata) que os mercadores podiam nos inícios do século XVI utilizar para pagamentos na Casa da<br />

Índia, documentos de dívida da Casa da Moeda (escritos, passados durante processos de recunhagem de moedas) que<br />

os comerciantes em 1689 usavam nos negócios como dinheiro de contado, ou ainda acções das Companhias Gerais,<br />

bilhetes das Alfândegas e títulos, em uso cerca de um século depois.<br />

61 Damião Peres, História do Banco de Portugal (Lisboa: Banco de Portugal, v. I, 1971); J. Borges de Macedo, Elementos<br />

para a História Bancária de Portugal (1797-1820) (Lisboa: IAC-CEH, 1963); A.A. Marques de Almeida, “Banca em<br />

Portugal”, Dicionário Temático da Lusofonia, Lisboa, ACLUS-Texto Editores, 2005, pp. 131-132.<br />

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8<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

de uma boa organização. Afirmava Nicolau Maquiavel, nos alvores da Época<br />

Moderna, possuir o governante bem sucedido a força do leão e a astúcia da raposa.<br />

Tais capacidades revelavam-se na boa ordem da sua República, através de uma<br />

cuidada organização militar e um corpus legislativo que salvaguardasse acima dos<br />

interesses privados a manutenção da ordem pública, sinónimo da conservação do<br />

governo. No final de contas tinha o homem a capacidade de ser dono de mais de<br />

metade do seu destino, se à observação da conjuntura aliasse a acção e a agilidade<br />

na adaptação circunstancial.


«jUstos» neGÓCIos e poLítICA eConÓMICA no portUGAL Mo<strong>De</strong>rno<br />

87


Introdução<br />

O BANCO ESPÍRITO SANTO E A<br />

COMPETITIVIDADE BANCÁRIA NOS<br />

ANOS 60<br />

Carlos Alberto Damas 1 *<br />

Ultrapassadas as dificuldades e as incertezas geradas no pós-guerra, a economia<br />

portuguesa − tal como a generalidade das suas congéneres europeias − no dealbar<br />

da década de 50 iniciou um longo período de estabilidade, ponto de partida para<br />

uma conjuntura expansiva que esteve na origem de um notável desenvolvimento<br />

económico que se iria prolongar até inícios dos anos 70.<br />

Componente importante para este desenvolvimento e progresso, foi o facto<br />

de Portugal em 1948 ter sido membro fundador da OECE (Organização Europeia<br />

para a Cooperação Económica), em 1950 integrar a União Europeia de Pagamentos,<br />

em 1955 a Organização das Nações Unidas e, já no final de uma década e começos<br />

de outra, ter-se associado à EFTA, ao Fundo Monetário Internacional, ao Banco<br />

Mundial e ao GATT (Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio), adesões<br />

que abriram caminho à internacionalização da economia portuguesa.<br />

A par de muitos outros factores, estas condições, aliadas a um ténue anseio de<br />

autarcia por parte do Estado Novo, impulsionaram significativamente os principais<br />

ramos de actividade da economia nacional, cuja taxa de crescimento chegou a<br />

atingir os 6%, a mais alta então verificada no continente europeu.<br />

Contudo, pouco antes de finalizarem os anos 60, a conjuntura económicofinanceira<br />

ocidental viria a ser dominada por preocupações quanto à sua evolução. O<br />

deficiente funcionamento do sistema monetário internacional, muito afectado pela<br />

1 * Centro de Estudos de História do Banco Espírito Santo.


90<br />

<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

crise do dólar, obrigou à adopção de políticas anti-inflacionistas, que prejudicaram<br />

as economias dos restantes países. Em consequência, o quadro desenvolvimentista<br />

iria registar visíveis sinais, primeiro de abrandamento, depois de inversão. A breve<br />

prazo a chamada golden age chegaria ao fim.<br />

A solicitação do Estado, as principais instituições de crédito foram desde os<br />

inícios dos anos 50 chamadas a uma intervenção directa muito intensa nesse boom,<br />

assumindo-se como a principal fonte de financiamento dos investimentos produtivos,<br />

quer por via do aumento dos meios de intervenção no mercado monetário, quer<br />

pela concessão do crédito necessário para apoio ao surto económico em curso.<br />

Estas oportunidades iriam estimular (com maior ênfase a partir de meados<br />

da década de 60) uma acrisolada competitividade interbancária, que obrigaria à<br />

intervenção das entidades da tutela antes que os seus efeitos fizessem perigar a<br />

estabilidade do sector. Nessa linha, a reformulação do quadro legal regulador das<br />

operações bancárias mereceu especial atenção por parte do Governo. Numa fase<br />

inicial (1955-1965) para o actualizar, depois, de 1967 em diante, para, com nova<br />

legislação, refrear e combater acções especulativas que vinham sendo praticadas<br />

por alguns bancos.<br />

Líder da banca privada portuguesa entre 1936 e 1964, o Banco Espírito<br />

Santo então sob a presidência de Manuel Espírito Santo 2 − em consequência de<br />

um ambiente competitivo cujos métodos não quis acompanhar − viria a perder<br />

a sua posição, arrebatada pelo Banco Português do Atlântico em 1965 e, logo<br />

depois, pelo Banco Pinto & Sotto Mayor em 1967. Resultante da emergência desse<br />

desafio concorrencial a empresa accionou um conjunto de reformas em várias áreas<br />

decisivas: estrutura organizacional, gestão dos recursos humanos e inovação de<br />

produtos bancários. Os resultados dessa estratégia combinada fariam reverter a<br />

situação, retomando o BES no decorrer do exercício de 1970, o primeiro lugar<br />

do ranking bancário.<br />

A presente comunicação aborda alguns dos aspectos mais relevantes dessa<br />

conjuntura, pretendendo assumir-se como um pequeno contributo para o estudo<br />

detalhado de uma faceta menos divulgada da história bancária portuguesa dos anos<br />

60, a partir das acções desenvolvidas pelo Banco Espírito Santo, enquanto resposta<br />

criativa e eficiente aos bancos competidores que lhe disputavam a liderança.<br />

2 1 Presidente do Conselho de Administração do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa de 1955 a 1973.


o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />

O Banco Espírito Santo e a banca portuguesa do pós-guerra à crise<br />

de 1973<br />

Ultrapassados os problemas originados pela transição para a economia de<br />

paz, as facilidades disponibilizadas ao País pela participação no Plano Marshall<br />

e a execução do I Plano de Fomento (1953-1958) constituíram, a nível interno,<br />

algumas das determinantes mais significativas que encaminharam o País na senda<br />

do progresso económico. Mas não só. Outras causas contribuíram para a expansão,<br />

de que são exemplos entre outros, o crescimento da produção industrial (mais<br />

marcante na 2ª metade da década de 50), a modernização das empresas ligadas<br />

aos sectores produtivos e a alteração das regras do condicionamento industrial,<br />

aliviando as restrições que até então pesavam sobre as iniciativas privadas 3 .<br />

Não obstante o espartilho legal que limitava a livre iniciativa, e que apenas<br />

perto do final dos anos 50 viria a ser alterado, as favoráveis condições económicas<br />

e financeiras existentes desde os primórdios desse decénio criariam oportunidades<br />

únicas para a intervenção activa do sistema bancário nacional no quadro desenvolvimentista.<br />

Na expansão desse período «o desenvolvimento foi financiado<br />

pelo Estado e por cinco grandes bancos, propriedade de alguns grandes grupos<br />

económicos» 4 , um dos quais o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa que<br />

desfrutava da sua posição de líder no mercado bancário português.<br />

Não obstante o que parecia ser o cenário ideal para uma intensa cooperação<br />

em prol das necessidades do País, com benefícios para ambas as partes, a banca<br />

seria acusada de ser responsável pela insuficiente redistribuição do crédito,<br />

desadequada em função dos investimentos necessários. Em 1956, Ramos Pereira<br />

era de opinião que «os bancos não têm podido, ou não têm querido, escoar<br />

por operações financeiras, o caudal de capitais que lhes teria sido teoricamente<br />

possível» 5 . E avançava a hipótese de a situação resultar mais de um efeito das<br />

circunstâncias jurídicas e económicas criadas, do que a tradução de uma política<br />

deliberada do sector bancário para limitar o crédito. Apontava como causas desse<br />

estrangulamento a deficiente estrutura do mercado, o quadro jurídico e as escassas<br />

garantias oferecidas pelos credores, consideradas insuficientes para cobrir o risco<br />

que a banca estaria disposta a assumir 6 . Incertezas que, numa época caracterizada<br />

3 Vd. João César das NEVES, «Portuguese post war growht», em Economic growth in Europe since 1945, p. 339, Pedro<br />

LAINS, O Estado e a industrialização em Portugal, p. 936 e Abel MATEUS, Economia Portuguesa, p. 77 e seguintes.<br />

4 João César das Neves, ob. cit., p. 341.<br />

5 António Ramos Pereira, «Considerações gerais sobre o mercado financeiro em Portugal», pp. 159-161.<br />

6 Anabela Sérgio, O sistema bancário e a expansão da economia portuguesa (1947-1959), pp. 97-101.<br />

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<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

ainda pelo forte intervencionismo estatal, condicionavam os interesses da Banca<br />

cuja acção se sentia naturalmente tolhida.<br />

Espartilhada entre margens estreitas e prazos curtos, desde os alvores da<br />

década de 50 era já notório que a Banca se sentia pouco motivada para ampliar o<br />

crédito comercial, desvanecimento esse que se manifestava com maior evidência<br />

nas duas principais instituições bancárias nacionais, o Banco Espírito Santo e<br />

Comercial de Lisboa (BESCL) e o Banco Fonsecas, Santos & Vianna (BFSV),<br />

que não afectavam os seus recursos disponíveis para além de ponderada proporção.<br />

Com efeito, no BESCL a média do rácio CC/DO 7 na primeira metade da<br />

década de cinquenta foi de 46%, enquanto na instituição liderada pelo banqueiro<br />

Mário Luiz de Souza, aquele valor não ultrapassava os 30%. Situação diferente<br />

dos bancos mais «jovens», como o Pinto & Sotto Mayor (BPSM) com 75%, ou o<br />

Português do Atlântico (BPA) com 61%, acompanhados, de perto, pelo tradicional<br />

Lisboa & Açores (BLA) com 68%. Só nos últimos cinco anos da década, e em<br />

consequência do aumento do volume de crédito concedido, a média do Espírito<br />

Santo subiria para 59%, acompanhando, embora à distância, o BPA (78%) e o<br />

BLA (83%). Essa tendência ascensional continuou na década seguinte alimentada<br />

pelas exigências do mercado. Em Janeiro de 1961, Manuel Espírito Santo Silva<br />

dirigia-se em tom optimista aos accionistas reunidos em Assembleia Geral: «Os<br />

vastos empreendimentos de fomento que se estão realizando para valorização<br />

das fontes de riqueza nacional e o intenso desenvolvimento industrial que se está<br />

operando para progresso e adaptação da nossa economia à da Europa futura, têm<br />

sido, quase exclusivamente, financiados por capitais e créditos internos, trazendo,<br />

como consequência, uma larga aplicação das disponibilidades bancárias» 8 . Como<br />

lhe competia, e em sintonia com os principais bancos nacionais, o BES colaborou<br />

mais activamente no desenvolvimento do surto económico, embora ressalvando que<br />

a concessão de crédito se pautava «dentro dos limites que a orgânica e os princípios<br />

que sempre o orientam lho permitem», mantendo viva a preocupação em não<br />

correr riscos desnecessários, política que se assumia como um dos fios condutores<br />

desde que ascendera à presidência do Banco em 1955, após o falecimento de seu<br />

irmão Ricardo Espírito Santo.<br />

Até ao final do exercício de 1962, os valores do crédito concedido pela empresa<br />

manter-se-iam sensivelmente iguais aos dos anos anteriores. Posteriormente, e<br />

em consequência não apenas da liquidez acumulada, mas também da resposta,<br />

7 (CC/DO) Rácio Carteira Comercial/<strong>De</strong>pósitos à Ordem.<br />

8 Actas do Conselho de Administração, 6 de Janeiro de 1961.


o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />

prudente ainda, ao incremento da acção de alguma concorrência – que originava<br />

a saída de poupanças e capitais privados até então depositados no BES para<br />

bancos que ofereciam melhores remunerações –, regista-se ligeira subida da média<br />

CC/DO, que de 72% no período de 1960 a 1963, progrediu para 80% nos dois<br />

anos imediatos.<br />

No último lustro desse decénio o valor médio abrandou (76%), subindo no<br />

quadriénio 1970-73 para os 102%, acompanhando a vertigem da banca em geral<br />

nesses anos finais dos chamados «trente glorieuses» 9 .<br />

A reforma legislativa<br />

A poucos dias do final de 1955 o Governo fez publicar a Lei 2 079 de 21 de<br />

<strong>De</strong>zembro, onde se comprometia a fomentar a reorganização da política de crédito<br />

por forma a assegurar a assistência bancária «indispensável à consecução dos fins<br />

superiores da economia nacional, e a organizar o mercado de capitais com vista<br />

ao financiamento do fomento».<br />

Contudo, a tão ansiada reforma só chegaria através do <strong>De</strong>creto-Lei n.º 41<br />

403 de 27 de Novembro de 1957, primeiro passo para o ajustamento da actividade<br />

creditícia à conjuntura de progresso do período. Este diploma propunha fixar<br />

directivas e adoptar providências tendentes a promover e a orientar a distribuição<br />

do crédito canalizando-o para o desenvolvimento económico e, em simultâneo,<br />

estabelecer algumas regras sobre o funcionamento do mercado financeiro. Entre<br />

outras medidas, criava o Conselho Nacional de Crédito − órgão consultivo do<br />

Governo para os problemas financeiros da política de crédito − e dividia os<br />

bancos em várias categorias: de Estado, emissores, comerciais e, regulando a<br />

especialização bancária, de investimento. Esta reforma desde há muito que se vinha<br />

impondo. Com efeito, a existência de muitos diplomas parcialmente revogados, e<br />

de disposições, umas nunca regulamentadas, outras nunca executadas, tornavam<br />

imprescindível a sua publicação, por forma a adaptar, a acção das instituições<br />

de crédito às transformações da estrutura económica do País. A sua inexistência<br />

suscitava amiúde problemas de concessão de crédito que preceitos desactualizados<br />

não podiam satisfazer.<br />

Em 1959, e no ano em que o Governo lançava o III Plano de Fomento, a<br />

publicação do <strong>De</strong>creto-Lei n.º. 42 641 de 12 de Novembro regulamentava na<br />

9 Jean Fourastié, Les trente glorieuses ou, La Révolution invisible de 1946 à 1975.<br />

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parte «respeitante aos aspectos gerais do crédito e à banca comercial», algumas das<br />

determinações da lei anterior. <strong>De</strong> notar que este diploma veio substituir legislação<br />

que desde 1925 regulamentava o exercício do comércio bancário. Pelo meio, o<br />

<strong>De</strong>creto-Lei 41 957 de 13 de Novembro de 1958 criara o Banco de Fomento<br />

Nacional que vinha preencher uma lacuna no sistema bancário, facilitando um<br />

melhor aproveitamento do caudal de crédito externo ao alcance do País.<br />

A situação era considerada já tão preocupante que o <strong>De</strong>creto nº 42 641 consignava<br />

no seu clausulado a proibição das instituições de crédito celebrarem entre<br />

si contratos ou acordos de qualquer natureza, tendentes a assegurar uma situação<br />

de domínio sobre os mercados monetário, cambial e financeiro, ou a procurar a<br />

alteração das condições normais do seu funcionamento.<br />

Um dos capítulos era mesmo dedicado à «defesa do crédito», propondo-se o<br />

Estado, através de directivas emanadas pelo Ministério das Finanças, «promover<br />

a coordenação do volume global do crédito com o ritmo da actividade económica».<br />

Quanto à candente questão da taxa de juros, e como forma de garantir a<br />

continuação da política do dinheiro barato, fixou-se que as instituições de crédito<br />

não poderiam exceder em 1,5% a taxa de desconto do Banco de Portugal para as<br />

operações de desconto e empréstimos a curto prazo.<br />

A importância que os contemporâneos atribuíram a este decreto-lei foi de<br />

tal modo relevante que em Janeiro de 1960, Carlos Hermenegildo de Sousa, num<br />

artigo intitulado «Política de investimentos em perspectiva», desenvolvia a ideia de<br />

que a reorganização do crédito operada a partir da legislação produzida desde 1957<br />

dera início a «uma nova política de carácter económico-financeiro, com tão altas<br />

perspectivas nacionais, como aquela que em 1928 trouxe o equilíbrio orçamental<br />

e das contas públicas do País» 10 .<br />

A Banca tinha finalmente um enquadramento legal regulador do exercício da<br />

sua actividade, abrindo novas perspectivas à cobertura financeira da reorganização<br />

económica do País. Uma parte do problema poderia estar resolvida se todos<br />

cumprissem as «regras do jogo». O que manifestamente não aconteceu porque<br />

a velocidade do crescimento das necessidades de crédito tornara obsoletas as<br />

disposições recentemente promulgadas, situação que alguns bancos aproveitaram,<br />

pois, segundo se dizia, nada tendo a perder continuaram a conceder crédito a<br />

empresas e a iniciativas de duvidosa viabilidade muito para além do que a prudência<br />

justificava.<br />

10 Carlos Hermenegildo de SOUSA, «Política de investimentos em perspectiva», em Jornal do Comércio, 24 de Janeiro<br />

de1960.


o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />

Estavam assim estabelecidas as bases para que «uma concorrência indisciplinada»<br />

segundo o parecer de alguns analistas e banqueiros, no decénio seguinte<br />

actuasse ao arrepio das normas estabelecidas. Contudo, as exigências de crédito,<br />

em particular para o comércio de exportação, justificavam a opção tomada por<br />

esses bancos, ao ultrapassarem de forma sistemática os limites estabelecidos nos<br />

diplomas legais mais recentes. Não sendo acompanhados pelos maiores bancos<br />

nacionais, o reflexo dessa ousada política de crédito trouxe-lhes o crescimento da<br />

sua quota de mercado, é certo, mas também futuros dissabores com o progressivo<br />

aumento do crédito mal parado. Mas foi precisamente a subida da quota de mercado<br />

dessas instituições de crédito que viriam a provocar algumas reacções por parte<br />

dos banqueiros mais conservadores ou, se se quiser, mais prudentes.<br />

A concorrência bancária nos anos 60<br />

No decurso dos anos que se seguiram à publicação do «pacote legislativo» a<br />

que fizemos referência, e até quase ao final da década, a concorrência tornar-se-ia<br />

um dos principais desafios que os bancos mais ortodoxos nesta matéria iriam<br />

enfrentar, apostados que estavam em não viabilizar operações consideradas<br />

inconvenientes para o equilíbrio do sector bancário, não cedendo na questão das<br />

taxas de juro a aplicar.<br />

Com efeito, alguns bancos, casos do BPA e do BPSM, entre outros de menor<br />

dimensão, passaram a remunerar os depósitos a taxas superiores às legalmente<br />

estabelecidas e a praticar taxas activas inferiores aos já baixos juros com que o<br />

Estado procurava facilitar o acesso ao crédito.<br />

Datam deste período as primeiras manifestações de descontentamento<br />

provocadas por esta questão. Nos relatórios e contas então publicados os banqueiros<br />

evocavam o mal estar que se instalara devido às práticas da concorrência<br />

«segundo métodos em desacordo com as nossas tradições” 11 , pela utilização de<br />

“certos processos contrários aos elevados objectivos de bem servir os interesses do<br />

País» 12 . Outros justificavam resultados menos conseguidos porque o seu ritmo de<br />

desenvolvimento se processava «dentro da mais rigorosa observância dos princípios<br />

tradicionais e salutares da política de crédito e da técnica bancária, com a preocupação<br />

de evitar qualquer todo e qualquer procedimento menos ortodoxo em<br />

11 Banco Lisboa & Açores, Relatório e Contas, 1964.<br />

12 Banco Fonsecas, Santos & Vianna, Relatório e Contas, 1964.<br />

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relação às regras a cujo escrupuloso cumprimento se deve o conceito favorável de<br />

que têm gozado junto do público as instituições de crédito» 13 , cristalina indicação<br />

de que o rigor ético da actividade bancária estava claramente a ser subvertido.<br />

Também os administradores do BESCL, atentos às movimentações que bancos<br />

de média dimensão faziam para captar clientes e negócios, deixaram exaradas nos<br />

livros de actas extensas referências ao tema.<br />

Mas este era apenas um aspecto do problema, se bem que o mais grave.<br />

Outros interesses, não acautelados no entender da Banca, fomentavam hesitações<br />

no sector financeiro quanto à resposta a dar à crescente procura do mercado,<br />

condição suficiente para que alguns bancos agissem quase como que por conta<br />

própria. Paradigma dessa situação foi a posição do presidente do Banco Português<br />

do Atlântico, dizendo que «apesar da modéstia das taxas de juro, o dinheiro não<br />

se regateia às iniciativas e se não retrai perante as necessidades do desenvolvimento<br />

económico» 14 , justificando desse modo a sua actuação no mercado.<br />

Os responsáveis do BES, por sua vez, insistiam no argumento de que a acção<br />

desenvolvida por essas instituições de crédito, em particular na delicada questão<br />

da remuneração dos depósitos a prazo, tinha implicações negativas nos mercados<br />

monetário e financeiro, sendo por isso impreterível a exigência de uma maior<br />

vigilância por parte das autoridades.<br />

Manuel Espírito Santo, desde os começos da década de 60, seria dos banqueiros<br />

que mais pugnaram pela urgência de uma enérgica intervenção no problema das<br />

taxas de juro praticadas que, deixadas à livre iniciativa do mercado e sem que da<br />

parte do Governo existissem medidas que obrigassem à reposição da legalidade,<br />

conduziria a uma situação insustentável.<br />

Foi só em 1965 – ano da entrada em execução do Plano de Fomento intercalar<br />

(1965-1967) – e após sistemática pressão de alguns banqueiros, que o Ministério<br />

das Finanças, na intenção de melhorar os instrumentos financeiros e monetários,<br />

fez publicar em 18 de Agosto o <strong>De</strong>creto-Lei nº 46 492 que, numa tentativa para<br />

restringir os abusos, determinava os montantes máximos das taxas de juros a<br />

abonar, vedando às instituições de crédito a atribuição de «vantagens ou prémios<br />

que, directa ou indirectamente, possam traduzir-se em retribuições dos seus<br />

depósitos superiores às taxas máximas fixadas» no diploma. Consignava-se mesmo<br />

a aplicação de sanções disciplinares aos membros do Grémio Nacional dos Bancos<br />

13 Banco Borges & Irmão, Relatório e Contas, 1965.<br />

14 Assembleia Geral do Banco Português do Atlântico, Fevereiro de 1955.


o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />

e Casas Bancárias que adoptassem práticas «incompatíveis com os princípios de<br />

uma competição razoável, ou que estejam em desacordo coma ética bancária».<br />

Intransigente face às pressões concorrenciais, e ainda decidido a não seguir as<br />

mesmas práticas, o Banco Espírito Santo via atenuar-se a distância que o separava<br />

dos bancos que ainda poucos anos antes se encontravam no fundo da tabela<br />

com reduzidas quotas de mercado, na ordem dos 1 a 3%. Em Janeiro de 1965,<br />

discursando na assembleia geral do BESCL, Manuel Espírito Santo reforçava a<br />

ideia de que a interferência do mercado monetário no financeiro, pelas altas taxas<br />

de juro praticadas (na remuneração dos depósitos), era um factor de desordem que<br />

o Governo não devia negligenciar.<br />

A última providência legislativa, como cedo se depreendeu, não conseguiu<br />

atingir os objectivos propostos. Entre outras razões, porque os baixos valores<br />

fixados «forçaram» alguns bancos – e para cativar as poupanças - a subir as taxas<br />

das operações passivas, necessitados que estavam de fundos para prover à crescente<br />

procura do crédito, por parte de clientes atraídos pelas favoráveis condições que<br />

lhes eram oferecidas.<br />

O presidente do Grémio dos Bancos e Casas Bancárias, António Júlio de Castro<br />

Fernandes, no discurso proferido na Assembleia Nacional quando da discussão da<br />

lei de autorização das receitas e despesas para 1968, atribuiu o insucesso do diploma<br />

do Verão de 65 à subida das taxas de juro no mercado financeiro internacional,<br />

motivada por balanças de pagamentos desequilibradas, pelo combate à inflação<br />

e pela escassez conjuntural de capitais, fenómenos que afectaram igualmente a<br />

evolução da economia nacional, que sofreu ligeira recessão a que não foi alheio o<br />

forçado desvio de meios para a guerra colonial 15 . A exposição do político foi omissa<br />

na referências às causas que estavam subjacentes ao insucesso da regulamentação,<br />

antes preferindo deixar as leis do mercado funcionarem livremente, até que nova<br />

disposição legislativa veio tentar impor, uma vez mais, regras que todos acatassem,<br />

situação que cada vez mais se demonstrava improvável.<br />

Em 7 de Setembro de 1967, e para «dar forma a um conjunto de disposições<br />

tendentes ao mesmo objectivo», isto é, melhorar as condições de funcionamento<br />

dos mercados monetário e financeiro, o <strong>De</strong>creto Lei nº 47 912, consignava como<br />

transgressão «a simples proposta de taxas de juro superiores aos limites legais»,<br />

considerando-se infractores os depositantes que contratassem ou tentassem contratar<br />

taxas de juros que excedessem os limites estabelecidos. O mesmo diploma tornava<br />

15 Vd., Abel MATEUS, Economia Portuguesa, pp. 88 e seguintes.<br />

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<strong>hiStóRia</strong> <strong>cOMPaRaDa</strong> <strong>DOS</strong> <strong>SiSteMaS</strong> <strong>BancáRiO</strong> e <strong>De</strong> <strong>cRéDitO</strong><br />

extensiva a proibição a vantagens ou prémios que pudessem traduzir o abono de<br />

taxas superiores às máximas legais.<br />

A publicação de um diploma nestes termos fez com que os bancos firmassem<br />

um compromisso prometendo acatar as normas expressas na lei mais recente.<br />

Também este pacto, assinado em 24 de Outubro de 1967 pelos presidentes dos<br />

Conselhos de Administração das instituições bancárias não seria respeitado, circunstância<br />

que levou o Conselho Geral do BESCL, em Abril de 1968, a autorizar o<br />

seu Presidente do Conselho de Administração a retirar a assinatura do mesmo.<br />

Com efeito, confrontado com a consumação da perda de quota de mercado<br />

e com a ultrapassagem em 1965, pelo Banco Português do Atlântico 16 , e em 1967<br />

pelo Banco Pinto & Sotto Mayor, e para não caminhar no que poderia converter-se<br />

num “suicídio institucional”, o Banco Espírito Santo, depois de dar conhecimento<br />

ao Ministério das Finanças das razões que determinavam a inflexão da sua política<br />

tradicional nesta matéria, optou por acompanhar a concorrência, sacrificando - tal<br />

como os outros Bancos vinham fazendo desde há vários anos – a rendibilidade,<br />

por via do maior custo do dinheiro dos depósitos.<br />

A par dessa nova maneira de actuar no mercado, e para responder criativamente<br />

às oportunidades emergentes no mercado, o BESCL voltaria a recuperar a posição<br />

perdida no exercício de 1970. Datam da primeira metade dos anos 60 algumas<br />

das reformas internas que revolucionaram quer a sua estrutura organizacional e<br />

tecnológica, adaptando-a à modernidade dos tempos, adaptando novos métodos<br />

de selecção de pessoal, quer apresentando novos produtos bancários (crédito<br />

individual, cheques de viagem, entre outros) que fossem ao encontro da procura<br />

de sectores de clientela que até então não tinham acesso aos Bancos, num mercado<br />

em franca expansão devido ao aumento da capacidade financeira de alguns sectores<br />

da população, em particular da área dos serviços.<br />

Mas a nova década começava com inquietantes indícios de desequilíbrios não<br />

só financeiros, como do sistema económico em geral: crise monetária internacional,<br />

16 Segundo testemunhos coetâneos, os números apresentados nos balanços dos outros bancos e que confirmavam a<br />

ultrapassagem do BESCL, configurava uma situação mais fictícia do que real. Com efeito, para além do facto de dois<br />

dos mais directos concorrentes consolidarem as suas contas na Metrópole com os resultados obtidos nos bancos ultramarinos<br />

seus afiliados, a constituição de provisões (para aquisição de equipamentos para a modernização do banco e<br />

para a cobertura de riscos de crédito), e a preocupação em manter um crescimento mais seguro, influíram nos resultados<br />

explicitados, de tal modo que a nível interno havia consciência que o BES estava melhor do que os números expressos<br />

no balanço. Essa terá sido uma das razões, pelo menos válida para a primeira metade da década, por que os responsáveis<br />

consideravam não ser necessário caminhar muito depressa, não correndo nem os riscos que os outros corriam, nem a<br />

perda de rendibilidade derivada da alta remuneração dos depósitos paga pelos bancos concorrentes, com implicações<br />

na quota de mercado, dos bancos mais tradicionais.


o BAnCo espírIto sAnto e A CoMpetItIVIDA<strong>De</strong> BAnCÁrIA nos Anos 60<br />

contracção na liquidez, agravamento da balança comercial, pressões inflacionistas,<br />

especulação bolsista e distorções do mercado financeiro, entre vários outros,<br />

são alguns dos factores assinalados por Manuel Espírito Santo – tal como pela<br />

generalidade dos responsáveis dos outros bancos – nos relatórios e contas desses<br />

exercícios.<br />

Entre 1970 e 1973, o sistema bancário viria a ser afectado na sua rendibilidade,<br />

numa época marcada pelo agravamento das despesas dos bancos (investimento<br />

tecnológico, pessoal, contribuições e impostos, entre outras), e pela constituição de<br />

reservas e provisões adequadas ao risco envolvido na prestação de crédito em contínua<br />

expansão, e que os mais avisados banqueiros não deixavam de abastecer.<br />

Em 1972 e 1973 a situação da economia portuguesa «deteriorou-se dramaticamente<br />

e, na prática, cessaram as condições de crescimento. (...) No fundo,<br />

desaparecida a confiança, praticamente paralisado o investimento produtivo, o<br />

sistema perdera condições de funcionamento» 17 .<br />

A nível externo também a situação tomava inquietantes proporções com<br />

a crise monetária a afectar vários países salientando-se, pela sua importância e<br />

repercussões, a grave situação institucional dos Estados Unidos.<br />

Na conjuntura económica e política que então dominava o mundo ocidental,<br />

a competitividade bancária que existira nos quinze anos precedentes deixava de ter<br />

condições para se manter, exauridas que estavam as distorções que a sustentaram.<br />

A vida económica e financeira desta época (1973-74) mais não era do que o reflexo<br />

do «espelho do tempo» social e político que se vivia, e no qual não tinham mais<br />

acolhimento algumas das práticas bancárias que influenciaram o comportamento<br />

das instituições bancárias nacionais no período mais florescente da nossa história<br />

económica recente.<br />

17 Fernando Rosas, Portugal depois da guerra: estado velho, mundo novo (1950-1974), p, 471.<br />

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