Nota Técnica sobre Anonimato - Ouvidoria Geral
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NOTA TÉCNICA <strong>sobre</strong> o Art. 5º, §2º da Resolução nº 01/CNOMP<br />
Art. 5º Para serem recebidas na <strong>Ouvidoria</strong>, as manifestações deverão ter,<br />
preferencialmente, a autoria identificada.<br />
§ 1º Admitir-se-á excepcionalmente o sigilo dos dados pessoais, desde que o<br />
interessado o requeira de forma expressa e justificada.<br />
§ 2º As manifestações anônimas poderão ser admitidas quando forem dotadas de<br />
razoabilidade mínima e estiverem acompanhadas de informações ou documentos que<br />
as apresentem verossímeis.<br />
Designado pelo plenário do Conselho Nacional dos<br />
Ouvidores do Ministério Público –CNOMP, em sua última reunião ordinária, realizada em<br />
Goiânia, como relator de <strong>Nota</strong> <strong>Técnica</strong> acerca do Art. 5º, §1º e §2º da Resolução nº 01 do<br />
egrégio Conselho <strong>sobre</strong> a temática do anonimato em manifestações registradas nas<br />
<strong>Ouvidoria</strong>s do Ministério Público, bem como, quanto à guarda do sigilo dos dados do<br />
manifestante quando identificado, permito-me ater, neste primeiro momento, a questão do<br />
anonimato(§2º), tema tão relevante e controverso no âmbito de nossas <strong>Ouvidoria</strong>s.<br />
Relevante pela necessidade de se sopesar os valores postos em conflito quando de uma<br />
imputação apresentada sem autoria definida, juízo que implicará na validação das ações dos<br />
membros do Ministério Público. Controverso pelas variadas regulamentações, que ora<br />
vedam ou autorizam o conhecimento e processamento das informações anônimas, no<br />
âmbito de nossas instituições e de seu órgão de controle.<br />
Sob o pálio constitucional dos direitos e garantias individuais,<br />
onde se tem como livre a expressão do pensamento, ressalvada a vedação ao anonimato(art<br />
5º, IV da Constituição Federal), inúmeras decisões pretórias rechaçam a validade de<br />
qualquer procedimento originado por denúncia anônima, tomando como iníqua e inócua a<br />
imputação de fato, ainda que tipicamente delituoso, pela impossibilidade de se redargüir<br />
seu autor em caso de não comprovação ou falsidade do comunicado. A simples<br />
possibilidade da falsidade da imputação, o que ofenderia a honra e a dignidade do<br />
imputado, tem-se prestado ao pronto e peremptório afastamento da tomada de quaisquer<br />
medidas apuratórias, relegando notícias crime a categoria das aleivosias próprias dos<br />
sentimentos mesquinhos e perniciosos.<br />
A livre manifestação do pensamento é a síntese da liberdade<br />
plena do indivíduo, pois permite a ele extravasar seus conceitos, convicções e juízos, sem<br />
que limitações lhe sejam impostas. A exposição da persona implica indissociavelmente na<br />
identificação do indivíduo, pelo que sua ocultação é antinatural e revela-se odiosa quando<br />
intencionada a provocar ofensa a outrem. A assunção da responsabilidade por suas<br />
manifestações sujeita seu autor ao confronto com eventual ofendido na esfera judicial.
O patrimônio moral e as garantias individuais, aqui<br />
contempladas as inviolabilidades, merecem e tem o respeito e a proteção estatal que impõe<br />
a todos a observância desses valores como princípios básicos para a boa convivência social.<br />
A sacralização constitucional da preservação da<br />
personalidade, todavia, não pode ser absoluta, devendo ser harmonizada com outros<br />
princípios constitucionais.<br />
A mesma Constituição que protege o indivíduo, garante à<br />
sociedade a segurança pública, um governo probo e instituições que preservem a ordem e<br />
zelem pelos interesses sociais. O ordenamento jurídico compartilha com o cidadão a<br />
responsabilidade pela preservação desses direitos. Assim, o direito de petição, a<br />
inafastabilidade da jurisdição, a participação do cidadão na formulação e fiscalização das<br />
políticas públicas e no controle social da administração pública, a comunicação de fatos<br />
delituosos e a provocação da atividade estatal consistem não só em direitos, mas também<br />
em deveres para todos entes sociais.<br />
A violação da ordem e da paz, o desvirtuamento das ações e<br />
finalidades das gestões públicas, a ofensa a direitos comuns, não atingem tão-somente o<br />
cidadão individualmente considerado, mas sim toda a sociedade que clama pela proteção<br />
oficial.<br />
Com o direito e o dever compartilhado de zelar pela harmonia<br />
das relações sociais, o cidadão pode e deve comunicar transgressões às regras legais,<br />
provocando a ação estatal para a preservação ou restauração da ordem. É sabido, no<br />
entanto, que a exposição da identidade do noticiante pode violar-lhe a intimidade e a<br />
segurança, pelo justo temor de retaliações por parte dos envolvidos nos fatos noticiados.<br />
Não se trata aqui de furtar-se a responsabilidade, mas sim da preservação de seus valores<br />
individuais, valores tão caros ao noticiante quanto o são ao imputado autor da suposta<br />
transgressão.<br />
A livre manifestação do pensamento, conceitual ou analítica,<br />
implica em juízo crítico, por isso mesmo sujeita a confrontações. Muito diferente é a<br />
comunicação de fato típico e antijurídico, a notitia criminis. A comunicação de fato<br />
violador de preceitos legais, inclusive da esfera político-administrativa, constitui dever<br />
civil, sujeitando os fatos a apreciação da autoridade pública que tem como dever funcional<br />
a verificação da veracidade dos fatos e sua apuração.<br />
A denúncia anônima, ainda que por muitos seja<br />
desconsiderada, é reconhecida no ordenamento jurídico. No Código Penal Brasileiro, após<br />
tipificar a denunciação caluniosa, o legislador estabeleceu como causa de aumento de pena<br />
o fato de o agente se servir do anonimato para ensejar a instauração de procedimento contra<br />
alguém sabidamente inocente.
Na doutrina, os ensinamentos de José Afonso da Silva em seu<br />
comentário à Constituição: “a notitia criminis anônima, eivada de um mínimo de<br />
veracidade e, tratando-se de ação penal pública, merece todo respeito no ordenamento<br />
jurídico pátrio.”<br />
No mesmo sentido Frederico Marques, Rogério Lauria Tucci,<br />
Mirabete e Fernando Capez, sendo do Curso de Processo Penal deste último: “a delação<br />
anônima(notitia criminis inqualificada) não deve ser repelida de plano, sendo<br />
incorreto considerá-la sempre inválida: contudo, requer cautela redobrada por parte<br />
da autoridade policial, a qual deverá, antes de tudo, investigar a verossimilhança das<br />
informações”.<br />
Em acórdãos recentes, o Supremo Tribunal Federal e o<br />
Superior Tribunal de Justiça tem admitido o conhecimento das denúncias anônimas para<br />
que se proceda, em investigação preliminar, a verificação da veracidade dos fatos<br />
noticiados:<br />
Supremo Tribunal Federal<br />
HC 98345/RJ(16.06.2010)<br />
Relator Ministro Marco Aurélio<br />
Ementa: Possibilidade de denúncia anônima, desde que acompanhada de demais<br />
elementos colhidos a partir dela. Inexistência de constrangimento ilegal. Firmou-se a<br />
orientação de que a autoridade policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes<br />
realizar diligências preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa “denúncia”<br />
são materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações.<br />
Supremo Tribunal Federal<br />
HC 99490/SP(23.11.2010)<br />
Relator Ministro Joaquim Barbosa<br />
Ementa : Segundo precedentes do Supremo Tribunal Federal, nada impede a<br />
deflagração da persecução penal pela chamada “denúncia anônima”, desde que<br />
seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados.<br />
Superior Tribunal de Justiça<br />
HC 114846/MG(15.06.2010)<br />
Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima<br />
Ainda que com reservas, a denúncia anônima é admitida em nosso ordenamento<br />
jurídico, sendo considerada apta a deflagrar procedimentos de averiguação, como o<br />
inquérito policial, conforme contenham ou não elementos informativos idôneos<br />
suficientes, e desde que observadas as devidas cautelas no que diz respeito à<br />
identidade do investigado(HC 44.649/SP)
Superior Tribunal de Justiça<br />
RMS 32065/PR(17.02.2011)<br />
Relator Ministro Mauro Campbell Marques<br />
Impõe-se destacar também que a “denúncia” anônima, quando fundada –vale dispor,<br />
desde que forneça, por qualquer meio legalmente permitido, informações <strong>sobre</strong> o fato<br />
e seu provável autor, bem como a qualificação mínima que permita sua identificação e<br />
localização-, não impede a respectiva investigação <strong>sobre</strong> a sua veracidade, porquanto<br />
o anonimato não pode servir de escudo para eventuais práticas ilícitas.<br />
Dessume-se destes entendimentos que, apresentada<br />
anonimamente uma denúncia de transgressão legal, e no confronto de direitos igualmente<br />
tutelados, sopesados com a prevalência do interesse social ao individual, cumpre às<br />
autoridades públicas que tem como dever a persecução dos atos ilícitos, proceder<br />
informalmente investigação prévia para a apuração da veracidade dos fatos e identificação<br />
de autoria, acautelando-se na preservação da identidade e dos valores individuais do<br />
investigado. Valer-se de direitos e garantias para a prática de delitos e escusar-se da<br />
persecução estatal é tão pérfido e mais socialmente ofensivo que se valer do anonimato para<br />
denunciá-los.<br />
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) ao<br />
regulamentar a instauração e tramitação dos inquéritos civis contemplou a recepção de<br />
denúncia anônima, dizendo textualmente que não implicará na ausência de providências,<br />
o conhecimento dos fatos assim apresentados(art. 2º, §3º da Res. 23/07).<br />
Mais recentemente, em 18 de maio de 2011, o mesmo<br />
Conselho aprovou proposta de emenda regimental, de autoria do Conselheiro Luiz Moreira,<br />
relatada pelo Conselheiro Cláudio Barros –visando adequar aos princípios do Estado<br />
Democrático de Direito e potencializar o papel do órgão, que regulamenta o procedimento a<br />
ser dado às manifestações que aportem anonimamente e que em razão da gravidade dos<br />
fatos ou de sua relevância exigirem apuração(Emenda Regimental nº 05).<br />
O Conselho Nacional dos Procuradores Gerais(CNPG)<br />
está veiculando na televisão uma vinheta <strong>sobre</strong> o combate à corrupção e lavagem de<br />
dinheiro em que, após esclarecimentos gerais, pede aos cidadãos que denunciem, ainda que<br />
anonimamente, fatos que tenham conhecimento.<br />
A experiência à frente da <strong>Ouvidoria</strong> tem demonstrado que das<br />
manifestações registradas sem identificação, grande parte gera procedimento formal para<br />
investigação dos fatos noticiados.<br />
Destaco, neste ponto, que a <strong>Ouvidoria</strong> é um órgão autônomo<br />
da administração da instituição, definitivamente não possuindo atribuições próprias dos<br />
órgãos de execução. Não pode, pois, a <strong>Ouvidoria</strong> furtar do Promotor de Justiça o<br />
conhecimento de denúncia anônima de fatos afetos às suas atribuições, cabendo a este, e<br />
tão-somente a ele, o juízo exclusivo <strong>sobre</strong> seu recebimento e apuração. No que se refere a
denúncias anônimas quanto a conduta de membros da instituição, compete exclusivamente<br />
a Corregedoria conhecer da notícia e tomar as providências que entender cabíveis. No<br />
entanto, membros e órgão correicional deverão acautelar-se na verificação da autenticidade<br />
e veracidade das informações, resguardando os direitos e preservando a personalidade do<br />
imputado.<br />
Feitas essas considerações, proponho o seguinte enunciado<br />
orientador das <strong>Ouvidoria</strong>s no que se refere ao recebimento de manifestações anônimas:<br />
1) A <strong>Ouvidoria</strong> do Ministério Público receberá e registrará as manifestações anônimas<br />
que pela descrição dos fatos forneçam indícios suficientes a verificação de sua<br />
verossimilhança.<br />
1a) Recebida manifestação anônima contendo notícia de fato certo e determinado<br />
ensejador da atuação do Ministério Público, e que em razão da gravidade ou<br />
relevância exigir apuração, a <strong>Ouvidoria</strong> deverá encaminha-la ao órgão detentor das<br />
atribuições para conhecimento e providências a seu juízo.<br />
1b) Recebida manifestação anônima contendo notícia de fato certo e determinado<br />
imputado a membro do Ministério Público, e que em razão de sua natureza,<br />
gravidade ou relevância exigir apuração, a <strong>Ouvidoria</strong> deverá encaminha-la a<br />
Corregedoria <strong>Geral</strong> do Ministério Público, detentora das atribuições para<br />
conhecimento e providências a seu juízo.<br />
Aprovada a presente proposição de enunciado, sugiro:<br />
a) ao titular da <strong>Ouvidoria</strong> das unidades do Ministério Público<br />
–aquelas que rejeitam o conhecimento das manifestações apresentadas sem identificação de<br />
autoria, que revejam seu posicionamento, tomando como norte o poder-dever de<br />
investigação e persecução dos ilícitos e a preponderância de sua missão constitucional na<br />
defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais.<br />
b) ao titular da <strong>Ouvidoria</strong> das unidades do Ministério Público<br />
que já tem regulamentada a recepção de manifestações de autoria não identificada que<br />
promova junto à Corregedoria a edição de recomendação aos Promotores de Justiça, para<br />
que conheçam as “denúncias anônimas” e procedam investigações preliminares para a<br />
comprovação de sua veracidade, desde que se refiram a fato determinado e contenham<br />
indícios que permitam a identificação de sua autoria, preservados os direitos inerentes a<br />
personalidade do imputado.<br />
setembro de 2011.<br />
Relatório apresentado em Fortaleza aos 02 dias do mês de<br />
Mauro Flávio Ferreira Brandão<br />
Conselheiro<br />
Ouvidor do Ministério Público de Minas Gerais