«Um centro na margem»: o caso do cinema português - SciELO
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Jacques Lemière<br />
ser <strong>português</strong>»), as preocupações fundamentais <strong>do</strong> <strong>cinema</strong> <strong>português</strong> destes<br />
anos centram-se no pensar o país.<br />
Invenção formal e inscrição <strong>na</strong> modernidade <strong>cinema</strong>tográfica: trata-se<br />
muito simplesmente de relevar, num conjunto de filmes produzi<strong>do</strong>s no perío<strong>do</strong><br />
em consideração, uma unidade temática que coloca em jogo esta<br />
questão <strong>do</strong> «país», sen<strong>do</strong> muito importante sublinhar a dimensão de invenção<br />
formal que se associa a esta unidade temática. De mo<strong>do</strong> que o grupo de<br />
realiza<strong>do</strong>res em cujos filmes identificamos essa sequência se organiza<br />
também em re<strong>do</strong>r da partilha de certos da<strong>do</strong>s formais (como a importância<br />
<strong>do</strong> material literário ou a teatralidade como instrumento anti<strong>na</strong>turalista).<br />
Afirmação da liberdade <strong>do</strong> cineasta e procura constante <strong>do</strong>s meios dessa<br />
liberdade: a unidade desta «escola» forja-se igualmente <strong>na</strong> apropriação (mais<br />
ou menos colectiva e mais ou menos contraditória), por um certo número<br />
de artistas, de um certo número de meios, postos em prática para contor<strong>na</strong>r<br />
ou reduzir as dificuldades de produção e os entraves à criação ou para<br />
conseguir controlar rigorosamente a fonte fi<strong>na</strong>nceira.<br />
O CASO PORTUGUÊS: AS BATALHAS DA LEGITIMIDADE<br />
Assim definida, a «configuração portuguesa da modernidade <strong>cinema</strong>tográfica»<br />
19 conquistou então, sob o nome de «<strong>cinema</strong> <strong>português</strong>», uma forte legitimidade<br />
exterior nos festivais inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e, por consequência, certas posições<br />
no espaço da distribuição comercial de certos países (a França é o país<br />
onde mais regularmente são distribuí<strong>do</strong>s filmes portugueses, mas isso acontece<br />
igualmente noutros países, como é o <strong>caso</strong> de Itália, Bélgica, Japão...).<br />
Esta conquista resulta de uma dinâmica desenvolvida por um grupo de<br />
cineastas em nome de uma concepção de <strong>cinema</strong> e à custa de confrontos<br />
com concepções diferentes no interior <strong>do</strong> próprio <strong>cinema</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
Esta mobilização começou pela acção colectiva de um grupo de cineastas,<br />
que arrastou consigo técnicos (os quais apelidaremos, daqui em diante, de<br />
«grupo funda<strong>do</strong>r»), sob o regime salazarista, nos anos 60, para se constituir<br />
uma legitimidade inter<strong>na</strong> e para obter uma lei protectora para o <strong>cinema</strong>. Esta<br />
legitimidade inter<strong>na</strong>, que se revelou sempre precária, numa <strong>na</strong>ção onde o<br />
automenosprezo (enquanto país) é uma atitude cultural constante, articulou-<br />
-se com um esforço de construção de um reconhecimento exterior, esforço<br />
que se acentuou quan<strong>do</strong> Portugal saiu de um relativo isolamento, no contexto<br />
da queda <strong>do</strong> antigo regime «estadualista-absolutista» 20 , ou seja, após a revo-<br />
19 Denis Lévy (retoman<strong>do</strong> de Alain Badiou o conceito de «configuração artística»,<br />
introdução ao número especial (21-22-23) Manoel de Oliveira da revista L’art du cinéma,<br />
Paris, Outono de 1998.<br />
20 A expressão é <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r americano Douglas Wheeler (Republican Portugal. A<br />
Political History, 1910-1926, Universidade de Wisconsin, 1978).