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edgar rice burroughs tarzan e as feras - CloudMe

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EDGAR RICE BURROUGHS<br />

TARZAN<br />

E AS FERAS<br />

The Be<strong>as</strong>ts of Tarzan<br />

© Copyright 2010 Edgar Rice Burroughs<br />

Publicado originalmente em 1914<br />

Traduzido por Medeiros e Albuquerque<br />

Versão para E-Book sem fins lucrativos<br />

Cultura Digital / Sebo Digital<br />

osebodigital.blogspot.com


ÍNDICE<br />

CAPÍTULO 1: Sequestrado............................................................................................... 3<br />

CAPÍTULO 2: Abandonado............................................................................................ 12<br />

CAPÍTULO 3: Animais ameaçados ................................................................................. 22<br />

CAPÍTULO 4: Sheeta...................................................................................................... 33<br />

CAPÍTULO 5: Mugambi ................................................................................................. 43<br />

CAPÍTULO 6: Uma tripulação horrenda......................................................................... 53<br />

CAPÍTULO 7: Traído ..................................................................................................... 63<br />

CAPÍTULO 8: A dança da morte .................................................................................... 73<br />

CAPÍTULO 9: Cavalheirismo ou perversidade ................................................................ 83<br />

CAPÍTULO 10: O sueco................................................................................................. 93<br />

CAPÍTULO 11: Tambudza ........................................................................................... 103<br />

CAPÍTULO 12: Um patife negro .................................................................................. 112<br />

CAPÍTULO 13: Fuga .................................................................................................... 122<br />

CAPÍTULO 14: Sozinha na selva .................................................................................. 130<br />

CAPÍTULO 15: Descendo o rio Ugambi....................................................................... 139<br />

CAPÍTULO 16: Na escuridão da noite .......................................................................... 148<br />

CAPÍTULO 17: No tombadilho do Kincaid.................................................................. 156<br />

CAPÍTULO 18: Paulvitch planeja vingança ................................................................... 165<br />

CAPÍTULO 19: Os destroços do Kincaid ..................................................................... 176<br />

CAPÍTULO 20: A Ilha da Selva..................................................................................... 180<br />

CAPÍTULO 21: A lei da selva........................................................................................ 191<br />

SÉRIE TARZAN .......................................................................................................... 204


CAPÍTULO 1: Sequestrado<br />

— Todo o c<strong>as</strong>o está envolto em mistério — disse d’Arnot. Estou<br />

certo que nem a polícia nem os agentes especiais do quadro geral têm a menor<br />

idéia de como foi realizado. Somente sabem, como qualquer pode saber, que<br />

Nikol<strong>as</strong> Rokoff se evadiu.<br />

John Clayton, Lorde Greystoke — que tinha sido “Tarzan dos<br />

Macacos” — ficou em silêncio no apartamento do seu amigo, tenente Paul<br />

d’Arnot, em Paris, olhando pensativo para a ponta do sapato.<br />

Na sua mente revolviam-se muit<strong>as</strong> recordações, avivad<strong>as</strong> pela<br />

ev<strong>as</strong>ão do seu inimigo do presídio militar francês para o qual fora condenado<br />

à prisão perpétua, graç<strong>as</strong> ao depoimento do homem-macaco.<br />

Lembrou-se até a que extremos Rokoff tinha chegado para<br />

conseguir a sua morte, e compreendeu que tudo o que o homem já tinha feito<br />

não seria nada em comparação do que desejaria, e planejaria agora que se<br />

encontrava de novo em liberdade.<br />

Tarzan recentemente tinha levado a mulher e o filho para Londres a<br />

fim de fugirem dos dissabores e perigos da estação chuvosa na sua v<strong>as</strong>ta<br />

propriedade de Uziri — a terra dos guerreiros selvagens Waziri, cujos amplos<br />

territórios o homem-macaco, em outros tempos, tinha governado.<br />

Atravessara a Mancha para fazer uma breve visita ao seu velho<br />

amigo, porém a notícia da ev<strong>as</strong>ão do russo já anuviara o seu p<strong>as</strong>seio, tanto<br />

que, embora acab<strong>as</strong>se de chegar, já estava pensando em voltar imediatamente<br />

para Londres.<br />

— Não é que receie por mim. Paul — disse por fim. — Muit<strong>as</strong><br />

vezes no p<strong>as</strong>sado consegui antepor obstáculos aos planos de Rokoff contra a<br />

minha vida; m<strong>as</strong> agora há outr<strong>as</strong> considerações. A não ser que me engane ele<br />

terá mais pressa em vingar-se de mim por meio de minha esposa ou de meu<br />

filho do que diretamente, pois sem dúvida compreende que de nenhuma outra


maneira poderia me infligir maior angústia. Preciso voltar para junto deles<br />

imediatamente, e ficar com eles até que Rokoff seja recapturado ou morto.<br />

Enquanto os dois falavam em Paris, outros dois estavam<br />

conversando numa pequena choupana nos arredores de Londres. Ambos<br />

eram homens morenos e mal-encarados.<br />

Um era barbado, m<strong>as</strong> o outro, em cujo rosto havia a palidez<br />

causada por uma longa encarceração, somente tinha uma pequena barba. Era<br />

este que estava falando:<br />

— Precis<strong>as</strong> tirar essa barba, Alexis, disse ao seu companheiro. —<br />

Com a barba seri<strong>as</strong> reconhecido imediatamente. Precisamos separar-nos<br />

dentro duma hora, quando nos encontrarmos novamente no tombadilho do<br />

Kincaid, espero que tenhamos conosco dois hóspedes ilustres que pouco<br />

imaginam a agradável viagem que lhes arranjamos.<br />

— Dentro de du<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> devo estar a caminho de Dover com um<br />

deles, e até amanhã de noite, se seguires <strong>as</strong> minh<strong>as</strong> instruções com cuidado,<br />

chegarás com o outro, contanto que, naturalmente, ele volte para Londres tão<br />

rapidamente como penso.<br />

— Deverá haver tanto lucro como prazer, além de outr<strong>as</strong> cois<strong>as</strong><br />

bo<strong>as</strong>, para recompensar os nossos esforços, meu caro Alexis. Graç<strong>as</strong> à<br />

estupidez dos franceses, eles foram a tais extremos para esconder o fato da<br />

minha ev<strong>as</strong>ão durante tantos di<strong>as</strong> que tenho tido ampla oportunidade para<br />

calcular cada detalhe da nossa pequena aventura com tanto cuidado que vejo<br />

pouca probabilidade de haver o menor embaraço para arruinar os nossos<br />

planos. E agora, adeus, e sê feliz.<br />

Três hor<strong>as</strong> depois um mensageiro subiu os degraus da escada que<br />

dava para o apartamento do tenente Paul d’Arnot.<br />

— Um telegrama para Lorde Greystoke, disse ao criado que<br />

atendeu ao chamado. — Ele está aqui?


O homem respondeu que sim e, <strong>as</strong>sinando o recibo do telegrama,<br />

levou-o para Tarzan, que já se estava preparando a fim de partir para Londres.<br />

Tarzan r<strong>as</strong>gou o envelope, e enquanto lia empalideceu.<br />

— Leia, Paul, disse p<strong>as</strong>sando a folha de papel a d’Arnot. Já chegou.<br />

O francês tomou o telegrama e leu:<br />

“Jack raptado devido à cumplicidade do novo criado. Venha<br />

imediatamente. Jane”.<br />

Quando Tarzan saltou do automóvel que o tinha ido buscar na<br />

estação e subiu os degraus da sua c<strong>as</strong>a na cidade, foi recebido na porta por<br />

uma mulher com olhos enxutos, porém qu<strong>as</strong>e louca.<br />

Rapidamente, Jane Porter Clayton contou tudo o que pôde<br />

descobrir a respeito do rapto do menino.<br />

A ama estava p<strong>as</strong>seando com a criança no carrinho, para apanhar<br />

sol, na calçada que ficava defronte da c<strong>as</strong>a, quando um táxi fechado parou na<br />

esquina da rua. A mulher prestara pouca atenção ao veículo, notando apen<strong>as</strong><br />

que não descarregara nenhum p<strong>as</strong>sageiro, m<strong>as</strong> ficara parado junto ao meio-fio<br />

com o motor funcionando, como se estivesse esperando algum p<strong>as</strong>sageiro da<br />

residência diante da qual tinha parado.<br />

Qu<strong>as</strong>e imediatamente o novo criado, Carl, viera correndo da c<strong>as</strong>a<br />

de Greystoke, dizendo que a patroa da moça desejava falar com ela por um<br />

momento, e que ela podia deixar o pequeno Jack a seus cuidados até que<br />

volt<strong>as</strong>se.<br />

A mulher afirma que não teve a menor desconfiança até que,<br />

chegando à porta da c<strong>as</strong>a, se lembrou de avisar o homem para não virar o<br />

carrinho a fim de que o sol não batesse nos olhos da criança.<br />

Quando se virou para o avisar, ficou um tanto surpreendida, ao<br />

notar que o homem estava levando o carrinho para a esquina. Ao mesmo<br />

tempo viu a porta do táxi abrir-se e uma cara morena aparecer durante um<br />

minuto na abertura.


Intuitivamente, percebeu o perigo que a criança corria, e com um<br />

grito precipitou-se pelos degraus abaixo e sobre o p<strong>as</strong>seio em direção do táxi,<br />

para dentro do qual Carl enfiava a criança entregando-a ao tipo moreno.<br />

No momento em que alcançava o veículo, Carl pulou para dentro<br />

ao lado do seu companheiro, batendo a porta. Ao mesmo tempo o motorista<br />

procurou dar saída à sua máquina, m<strong>as</strong> era evidente que alguma coisa se tinha<br />

desarranjado, como se <strong>as</strong> engrenagens se recus<strong>as</strong>sem a mover-se, e a demora<br />

com isto, enquanto punha a alavanca em marcha-ré recuando o carro algum<strong>as</strong><br />

polegad<strong>as</strong> antes de partir novamente, deu tempo para que a ama se ach<strong>as</strong>se ao<br />

lado do táxi.<br />

Pulando no estribo, procurou arrancar a criança dos braços do<br />

estranho, e aí, gritando e lutando, ficou nesta posição, mesmo depois de ter o<br />

táxi partido; e não foi senão quando o carro tinha p<strong>as</strong>sado a residência de<br />

Greystoke a toda a velocidade, que Carl, com uma grande pancada no rosto,<br />

conseguiu atirá-la na calçada.<br />

Os seus gritos atraíram criados e membros de famíli<strong>as</strong> d<strong>as</strong><br />

residênci<strong>as</strong> próxim<strong>as</strong>, <strong>as</strong>sim como da c<strong>as</strong>a de Greystoke. Lady Greystoke<br />

presenciou a corajosa luta da moça, e ela mesma tinha feito todo o possível<br />

para alcançar o veículo em movimento, m<strong>as</strong> já era tarde.<br />

Nada mais sabiam senão isto, e Lady Greystoke nem sonhava com<br />

a possível identidade do homem responsável pelo rapto até que seu marido<br />

lhe contou a fuga de Nikol<strong>as</strong> Rokoff do presídio francês onde julgava que<br />

estivesse preso.<br />

Enquanto Tarzan e sua esposa estavam combinando o melhor<br />

modo de agir, o telefone tocou na biblioteca à sua direita. Tarzan atendeu<br />

pessoalmente.<br />

— Lorde Greystoke? perguntou a voz dum homem.<br />

— Sim.


— Seu filho foi raptado — continuou a voz, — e somente eu posso<br />

auxiliá-lo a reavê-lo. Conheço todo o plano daqueles que o levaram. De fato,<br />

fiz parte do mesmo, e ia receber uma parte da recompensa, m<strong>as</strong> agora estão<br />

querendo enganar-me, e para ficar quite com eles auxiliá-lo-ei a reaver o seu<br />

filho sob a condição de que não me processe pela minha parte no crime. Que<br />

diz?<br />

— Se me levar onde está escondido o meu filho, — respondeu o<br />

homem-macaco, — não terá nada a recear de mim.<br />

— Está bem, respondeu o outro. M<strong>as</strong> tem de vir sozinho ao meu<br />

encontro, pois já não é pouco que eu tenha de me pôr em su<strong>as</strong> mãos. Não<br />

posso correr o risco de permitir que outros saibam a minha identidade.<br />

— Onde e quando posso encontrá-lo? — perguntou Tarzan.<br />

O outro deu o nome e a direção dum botequim à beira-mar em<br />

Dover — um lugar freqüentado por marinheiros.<br />

— Venha hoje — concluiu ele — mais ou menos às 10 hor<strong>as</strong> da<br />

noite. Não seria aconselhável chegar mais cedo. Seu filho ficará em segurança<br />

neste meio tempo, e então poderei levá-lo em segredo para o lugar onde está<br />

escondido. Porém venha sozinho, e não notifique a Scotland Yard de modo<br />

algum, pois conheço-o bem e estarei à sua espera. C<strong>as</strong>o qualquer outro o<br />

acompanhe, ou c<strong>as</strong>o veja algum indivíduo suspeito que possa ser agente de<br />

polícia, não irei ao seu encontro e a sua última oportunidade de reaver o seu<br />

filho terá desaparecido.<br />

E sem mais palavr<strong>as</strong> o homem cortou a conversa.<br />

Tarzan resumiu esta conversa à esposa, que lhe pediu que a deix<strong>as</strong>se<br />

acompanhá-lo; ele porém recusou: podia resultar daí que o homem cumprisse<br />

a ameaça de negar-se a auxiliá-los c<strong>as</strong>o Tarzan não fosse sozinho. Dito isto,<br />

separaram-se, ele a fim de seguir apressadamente para Dover, ela, disposta a<br />

esperá-lo em c<strong>as</strong>a, até que soubesse do resultado da sua missão.


Nem um nem outro podiam imaginar o que ambos teriam de p<strong>as</strong>sar<br />

antes de se encontrarem de novo. M<strong>as</strong> por que antecipar?<br />

Durante dez minutos, depois que o homem-macaco a tinha<br />

deixado, Jane Clayton caminhou ansiosamente, pisando os tapetes de seda da<br />

biblioteca. O seu coração de mãe sangrava vendo roubado o seu primogênito.<br />

Seu espírito atormentava-se entre esperanç<strong>as</strong> e temores.<br />

Embora a razão lhe dissesse que tudo estaria bem se Tarzan fosse<br />

sozinho, de acordo com o que dissera o misterioso desconhecido, a sua<br />

intuição não lhe permitia pôr de lado a suspeita de grandes perigos, tanto para<br />

o marido como para o filho.<br />

Quanto mais pensava no <strong>as</strong>sunto, mais convencida ficava de que o<br />

recado telefônico poderia ser somente um pretexto para que eles fic<strong>as</strong>sem<br />

inativos até que o menino fosse bem escondido ou retirado da Inglaterra. Ou<br />

poderia ser que aquilo fosse simplesmente uma cilada para fazer Tarzan cair<br />

em poder do implacável Rokoff.<br />

Ao acudir-lhe este pensamento, ela estacou, os olhos arregalados de<br />

terror. E semelhante idéia p<strong>as</strong>sou logo de suspeita a convicção. Olhou para o<br />

grande relógio, que marcava os minutos, no canto da biblioteca.<br />

Era já muito tarde para tomar o trem de Dover, em que Tarzan<br />

devia ir. Havia porém outro mais tarde, que a levaria até o porto do Canal, a<br />

tempo de chegar ao lugar que o desconhecido designara ao marido.<br />

Chamando a criada e o chofer deu-lhes rápid<strong>as</strong> instruções. Dez<br />

minutos depois, através d<strong>as</strong> ru<strong>as</strong> movimentad<strong>as</strong>, estava a caminho da estação<br />

da Estrada de Ferro.<br />

Eram 9 hor<strong>as</strong> e 45 minutos da noite quando Tarzan chegou ao<br />

esquálido bar da praia de Dover. Ao transpor, porém, a sala nauseabunda,<br />

uma figura embuçada p<strong>as</strong>sou por ele e disse-lhe baixinho:<br />

— Venha.


O homem-macaco voltou-se e seguiu para um beco mal iluminado,<br />

a que o costume dera <strong>as</strong> honr<strong>as</strong> de rua. Uma vez aí, conduziu-o o<br />

desconhecido, guiando-o pelo escuro, até próximo do cais, onde grandes<br />

pilh<strong>as</strong> de fardos, caix<strong>as</strong> e barris faziam sombr<strong>as</strong> profund<strong>as</strong>.<br />

— Onde está o menino? — perguntou Greystoke, estacando.<br />

— Naquele pequeno vapor cuj<strong>as</strong> luzes poderá ver ali.<br />

Na escuridão Tarzan procurava distinguir os traços do<br />

companheiro, porém não o reconheceu. Não lhe parecia que já o tivesse visto.<br />

Se houvesse adivinhado que o seu guia era Alexis Paulvitch, teria<br />

compreendido que só havia traição no coração desse homem. Compreenderia<br />

qual o perigo que o ameaçava no caminho a cada p<strong>as</strong>so.<br />

— Ele agora está sem guarda — continuou o russo. — Aqueles que<br />

o levaram se acham completamente certos de não poderem ser descobertos, e<br />

com exceção de dois dos tripulantes, aos quais já dei b<strong>as</strong>tante “whisky” para<br />

sossegá-los durante algum<strong>as</strong> hor<strong>as</strong>, não há ninguém a bordo do Kincaid.<br />

Podemos ir a bordo, retirar a criança e voltar sem o menor receio.<br />

Tarzan concordou.<br />

— Vamos então tratar disso.<br />

O guia conduziu-o para uma pequena embarcação amarrada ao cais.<br />

Os dois homens embarcaram e Paulvitch remou rapidamente em direção ao<br />

vapor. A fumaça negra, que saía da chaminé, nada sugeriu a Tarzan naquele<br />

momento. Todo o seu pensamento estava concentrado na esperança de que<br />

dentro de alguns momentos teria de novo o filho nos braços.<br />

No costado do vapor encontraram uma escada de corda pendurada,<br />

e por esta os dois homens subiram furtivamente. Uma vez no tombadilho,<br />

dirigiram-se apressadamente à ré, onde o russo apontou uma escotilha.<br />

— O menino está escondido ali — disse ele. — É melhor que o<br />

senhor mesmo desça para buscá-lo, porque <strong>as</strong>sim ele não terá medo e não


chorará, o que sucederia c<strong>as</strong>o se encontr<strong>as</strong>se nos braços de um estranho. Eu<br />

ficarei de guarda aqui.<br />

Tarzan estava tão ansioso por salvar o filho, que não prestou a<br />

menor atenção às condições esquisit<strong>as</strong> em que se encontrava o Kincaid: o<br />

tombadilho estava deserto, m<strong>as</strong> <strong>as</strong> máquin<strong>as</strong> funcionavam e o volume de<br />

fumaça que saía da chaminé indicava que o vapor estava pronto a zarpar. Ele,<br />

porém, não reparou em nada disso.<br />

Com a idéia de que dentro de um instante iria abraçar aquele<br />

precioso corpozinho, o homem-macaco desceu na escuridão. Mal tinha,<br />

porém, largado a borda da escotilha a pesada tampa tornou a fechar-se com<br />

grande barulho por cima da sua cabeça.<br />

Imediatamente teve consciência de que fora vítima de uma cilada e<br />

que, longe de salvar o filho, ele mesmo tinha caído n<strong>as</strong> mãos dos seus<br />

inimigos. Embora procur<strong>as</strong>se logo alcançar a escotilha e levantar a tampa, não<br />

o conseguiu.<br />

Riscando um fósforo, explorou o que o cercava, descobrindo que<br />

um pequeno compartimento tinha sido feito em uma divisão no porão, sendo<br />

a escotilha acima da sua cabeça o único meio de entrar ou sair. Era evidente<br />

que este compartimento tinha sido preparado com o único fim de servir-lhe<br />

de prisão.<br />

Não havia nada no compartimento. Nenhuma outra pessoa. Se a<br />

criança estava a bordo do Kincaid devia achar-se presa em outro lugar.<br />

Durante mais de vinte anos, da infância à mocidade, o homem-<br />

macaco tinha vagueado pelos seus esconderijos selvagens no mato, sem<br />

companhia humana de qualquer natureza.<br />

Aprendera no período mais impressionável da vida a aceitar os<br />

prazeres e <strong>as</strong> tristez<strong>as</strong> como os animais se arranjam com os deles.<br />

Diante disso, não se irritou nem l<strong>as</strong>timou a sorte, m<strong>as</strong> ficou<br />

esperando com paciência o que lhe poderia ainda acontecer, sem entretanto


deixar de fazer o possível para livrar-se. Por isso, pôs-se a examinar a prisão<br />

com todo o cuidado, experimentando <strong>as</strong> pesad<strong>as</strong> pranch<strong>as</strong> que formavam <strong>as</strong><br />

paredes, e medindo a distância da escotilha, que lhe ficava por cima da cabeça.<br />

Enquanto estava <strong>as</strong>sim ocupado, ouviu de repente a vibração d<strong>as</strong><br />

máquin<strong>as</strong> e o barulho da hélice.<br />

O vapor estava zarpando! Para onde e para que destino o levaria?<br />

No momento em que estes pensamentos lhe p<strong>as</strong>savam pelo<br />

cérebro, ouviu, dominando o barulho d<strong>as</strong> máquin<strong>as</strong>, alguma coisa que lhe fez<br />

correr pelo corpo um calafrio de terror.<br />

Claro e agudo, ressoou no tombadilho, por cima de sua cabeça, o<br />

grito de uma mulher <strong>as</strong>sustada.


CAPÍTULO 2: Abandonado<br />

Quando Tarzan e o guia desapareceram n<strong>as</strong> sombr<strong>as</strong> do escuro cais<br />

a figura de uma mulher coberta com um véu desceu apressadamente o estreito<br />

beco até a entrada da espelunca de onde aqueles acabavam de sair.<br />

Aí parou e olhou em redor de si. Como se estivesse satisfeita por<br />

ter enfim chegado ao lugar que desejava, entrou corajosamente no interior do<br />

antro.<br />

Mais ou menos vinte marinheiros meio embriagados e vagabundos<br />

do cais encararam admirados a recém-chegada, um espetáculo realmente<br />

estranho — uma mulher ricamente trajada ali, naquele meio. Aproximou-se<br />

rapidamente da criada, que a encarava também, com um ar de inveja e cólera.<br />

— Viu aqui um homem alto, bem trajado, não faz ainda um<br />

minuto? — perguntou ela. Esse homem deve ter-se encontrado aqui com<br />

outro e saído juntos.<br />

A moça respondeu confirmando ess<strong>as</strong> indicações, m<strong>as</strong> não podia<br />

dizer que caminho os dois tinham seguido. Um marinheiro, que se aproximara<br />

para ouvir a conversa, informou que, momentos antes, quando ia entrar no<br />

bar, vira dois homens saírem, caminhando em direção do cais.<br />

mão dele.<br />

— Indique-me a direção, disse a mulher, pondo uma moeda na<br />

O rapaz conduziu-a, e juntos, caminharam apressadamente para o<br />

cais, ao longo do qual, através da água, viram um pequeno bote que se<br />

aproximava da sombra de um vapor próximo.<br />

mulher.<br />

— Lá estão — disse baixinho o homem.<br />

Dez libr<strong>as</strong> se encontrar um bote e me levar àquele vapor disse a<br />

Precisamos então andar depressa se quisermos alcançar o Kincaid,<br />

antes que parta, pois está pronto há três hor<strong>as</strong> e somente à espera daquele<br />

p<strong>as</strong>sageiro. Estive falando com um dos tripulantes há meia hora.


Enquanto dizia isto ele a conduzia até a extremidade do cais, onde<br />

sabia que havia outro bote amarrado. Ajudando então a mulher a embarcar,<br />

ela entrou também, e partiram.<br />

No costado do vapor o homem exigiu o pagamento. A mulher,<br />

mesmo sem contar a quantia exata, pôs-lhe algum<strong>as</strong> not<strong>as</strong> na mão que ele lhe<br />

estendia. Um simples olhar convenceu o rapaz que tinha sido mais que bem<br />

recompensado. Ajudou-a então a subir a escada, mantendo o bote perto do<br />

costado do vapor, para o c<strong>as</strong>o de que esse p<strong>as</strong>sageiro tão generoso desej<strong>as</strong>se<br />

ser reconduzido mais tarde para terra.<br />

M<strong>as</strong> logo o rumor d<strong>as</strong> máquin<strong>as</strong> e o ranger do cabo de aço no<br />

guincho denunciaram-lhe que a âncora do Kincaid estava sendo levantada, e<br />

um minuto depois ouviu o rumor do revolver da hélice, e viu o pequeno<br />

vapor af<strong>as</strong>tar-se vagarosamente no canal.<br />

No momento em que se dispunha a voltar para terra, ouviu o grito<br />

de uma mulher no tombadilho do vapor.<br />

— Isto é que se chama má sorte — disse ele. — Poderia ter ganho<br />

todo o pacote de not<strong>as</strong> que ela levava.<br />

Quando Jane Clayton chegou no tombadilho do Kincaid encontrou<br />

o vapor aparentemente abandonado. Não havia sinal nenhum daqueles que<br />

buscava, nem de qualquer pessoa a bordo, e, <strong>as</strong>sim, começou a procurar o<br />

marido e o filho, que esperava encontrar imediatamente.<br />

Rápida, caminhou em direção do camarote, que ficava metade por<br />

cima e metade por baixo do tombadilho. Enquanto se precipitava pela<br />

pequena escada abaixo, que dava para o camarote principal, ao lado do qual<br />

estavam os pequenos camarotes ocupados pelos oficiais, não percebeu que<br />

uma d<strong>as</strong> port<strong>as</strong> diante dela se fechara subitamente. Atravessou toda a extensão<br />

da sala principal, e, voltando pra atrás, parou diante de cada porta para<br />

escutar, experimentando furtivamente cada trinco.


Tudo era silêncio, total e completo silêncio. As palpitações do seu<br />

coração agitado pareciam-lhe à imaginação superexcitada encher o vapor com<br />

o seu alarma fulminante.<br />

Uma a uma <strong>as</strong> port<strong>as</strong> se lhe abriram, patenteando-lhe somente<br />

interiores vazios. Absorta como estava, não notou a repentina atividade no<br />

vapor, o ressoar d<strong>as</strong> máquin<strong>as</strong> e a vibração da hélice. Tinha chegado à última<br />

porta à direita. Quando a empurrou, viu-se de repente agarrada por um<br />

robusto homem trigueiro, que a puxou apressadamente para dentro do<br />

camarote sem ar e nauseabundo.<br />

O choque repentino do susto, que o ataque inesperado lhe causou,<br />

fez-lhe soltar um grito agudo e estridente. O homem pôs-lhe subitamente a<br />

mão sobre a boca.<br />

— Não faça isso, antes que estejamos mais af<strong>as</strong>tados da terra,<br />

minha querida — disse ele. — Então poderá gritar à vontade.<br />

Lady Greystoke virou-se para olhar a cara barbada, que se achava<br />

tão perto da dela. O homem afrouxou os dedos sobre os lábios da senhora.<br />

— Nikol<strong>as</strong> Rokoff! — exclamou ela, com um gemido de terror,<br />

reconhecendo-o, e encolhendo-se.<br />

pequena reverência.<br />

— O seu admirador dedicado — replicou o russo, com uma<br />

— Meu filho? — indagou ela em seguida, não prestando atenção<br />

alguma ao galanteio. — Onde está meu filho? Dê-me. Como pode ser tão<br />

cruel? Não é possível que seja tão inteiramente sem misericórdia e compaixão!<br />

Diga-me: onde está ele? Está a bordo deste navio? Por favor, se um coração<br />

lhe bate dentro do peito, leve-me onde está meu filho!<br />

— Se fizer o que se lhe mandar nenhum mal lhe acontecerá —<br />

respondeu Rokoff. M<strong>as</strong> lembre-se que é por sua própria culpa que a senhora<br />

está aqui. Veio a bordo por sua livre vontade; deve suportar <strong>as</strong> conseqüênci<strong>as</strong>.<br />

“Nunca pensei”, disse ele de si para si, “que eu tivesse tanta sorte”.


Subiu depois ao tombadilho, tendo o cuidado de fechar antes a<br />

porta do camarote com a chave. Durante vários di<strong>as</strong> Jane não mais o viu. A<br />

verdade é que Nikol<strong>as</strong> Rokoff era tão mau marinheiro que os mares<br />

enfurecidos, que o Kincaid encontrou desde o princípio da viagem, o<br />

obrigaram a ficar na cabina com um tremendo enjôo.<br />

Durante esse tempo a única pessoa que penetrava no camarote da<br />

senhora era um sueco mal-educado, o imundo cozinheiro do Kincaid, que lhe<br />

trazia <strong>as</strong> refeições. Chamava-se Sven Anderssen, e seu único orgulho consistia<br />

em que o seu sobrenome se escrevia com dois ss.<br />

Era alto magro, com um bigode comprido e amarelo, feições<br />

doenti<strong>as</strong> e unh<strong>as</strong> imund<strong>as</strong>. Ao vê-lo com o polegar sujo enterrado no<br />

ensopado morno, que parecia, pela freqüência, constituir o melhor da sua arte<br />

culinária, a pobre moça perdia logo todo o apetite.<br />

Os seus pequenos olhos azuis, muito juntos, nunca olhavam para<br />

os dela diretamente. A sua aparência era de velhaco, que até encontrava<br />

expressão no seu modo de andar como um gato. A tudo isto juntava-se uma<br />

impressão sinistra: a comprida e fina faca que sempre lhe estava à cinta, presa<br />

por uma corda suja, que lhe segurava o avental imundo. Aparentemente era<br />

apen<strong>as</strong> o instrumento de sua profissão; a moça estava porém convencida de<br />

que pouco precisaria para vê-la funcionar mais perniciosamente.<br />

A maneira como ele a tratava era sempre rabugenta; Jane, porém,<br />

nunca deixou de ir ao seu encontro com um sorriso amável e uma palavra de<br />

agradecimento quando trazia a comida, embora muit<strong>as</strong> vezes jog<strong>as</strong>se fora a<br />

maior parte dela pela vigia, logo que a porta se fechava atrás dele.<br />

Durante os di<strong>as</strong> de angústia, que se seguiram à encarceração de Jane<br />

Clayton, somente esta pergunta existia no seu cérebro — onde estariam<br />

encerrados o marido e o filho? Tinha razões para crer que o filho estivesse a<br />

bordo do Kincaid, e que ainda vivia. O que não sabia era se a Tarzan sucedia<br />

o mesmo, depois de ter sido atraído para bordo da embarcação maldita.


Conhecia, naturalmente o ódio profundo que o russo nutria pelo<br />

inglês, e só lhe acudia um motivo para explicar o fato de ter aquele trazido a<br />

este para bordo; liquidá-lo de um modo mais seguro, para vingar-se de ter-se<br />

Tarzan oposto aos planos favoritos de Rokoff, e por ter sido afinal o<br />

responsável de que o russo tivesse ido parar numa prisão francesa.<br />

Tarzan estava deitado na sua cela escura, ignorando que sua mulher<br />

estivesse prisioneira no camarote, que lhe ficava qu<strong>as</strong>e por cima da cabeça.<br />

O mesmo sueco, que servia Jane, trazia-lhe su<strong>as</strong> refeições, m<strong>as</strong><br />

embora por vári<strong>as</strong> vezes Tarzan tivesse procurado travar conversa com ele,<br />

nunca fora bem sucedido.<br />

Esperava descobrir, por meio desse rapaz, se o filho estava a bordo<br />

do Kincaid, m<strong>as</strong> a qualquer pergunta sobre este ou outro <strong>as</strong>sunto semelhante<br />

o rapaz dava somente uma resposta: — Acho que logo vai haver muito vento.<br />

Por isso, depois de vári<strong>as</strong> tentativ<strong>as</strong>, Tarzan desistiu.<br />

Durante algum<strong>as</strong> seman<strong>as</strong> que pareceram meses aos dois<br />

prisioneiros, o vapor seguiu para um lugar que eles ignoravam. Certa vez o<br />

Kincaid parou para tomar carvão, m<strong>as</strong> logo depois continuou a viagem, que<br />

parecia nunca mais acabar.<br />

Rokoff somente tinha visitado Jane Clayton uma vez, desde que a<br />

trancara no pequeno camarote. Emagrecera e tinha os olhos encovados, por<br />

causa do longo enjôo que sofrera. O objeto da sua visita era obter de Jane um<br />

cheque nominal de grande soma, em retribuição da garantia de sua segurança<br />

pessoal e volta para a Inglaterra.<br />

— Quando o senhor me desembarcar em qualquer porto civilizado,<br />

com meu filho e meu marido — respondeu ela, pagar-lhe-ei em ouro du<strong>as</strong><br />

vezes a quantia que pede; antes disso, porém, não obterá de mim um centavo<br />

nem a promessa dum centavo, sob quaisquer outr<strong>as</strong> condições.


— Há de me dar o cheque que lhe peço — replicou ele com fúria<br />

— ou então nem você, nem seu filho, nem seu marido, nenhum dos três<br />

jamais pisará qualquer porto civilizado ou não.<br />

— Não tenho confiança no senhor. Que garantia posso eu ter de<br />

que não tomará o meu dinheiro e depois fará o que lhe convier comigo e os<br />

meus, sem cumprir sua promessa?<br />

— Há de acabar por fazer o que lhe exijo — disse ele, voltando-se<br />

para sair do camarote. — Lembre-se que seu filho está em meu poder. Se por<br />

ac<strong>as</strong>o ouvir um choro atroz de criança que está sendo torturada, poderá<br />

consolar-se sabendo que o sofrimento dela é devido à sua obstinação porque<br />

essa criança será o seu filho.<br />

— Não faria uma coisa dest<strong>as</strong> — exclamou a moça. — Não faria<br />

— não poderia ser tão cruel.<br />

— Não sou eu que sou cruel, é a senhora — replicou ele — porque<br />

consente que por uma miserável soma de dinheiro ele não deixe de sofrer.<br />

A ameaça surtiu efeito. Jane encheu um cheque de grande valor e<br />

deu-o a Nikol<strong>as</strong> Rokoff, que se retirou do camarote com um sorriso de<br />

satisfação nos lábios.<br />

No dia seguinte abriu-se a escotilha que ficava por cima da cela de<br />

Tarzan. Quando este olhou para cima viu a cabeça de Paulvitch no quadrado<br />

de luz acima dele.<br />

— Suba! — ordenou o russo. — Lembre-se, porém, que será<br />

fuzilado se fizer um único movimento para me atacar a mim ou a qualquer<br />

outro a bordo deste vapor.<br />

O homem-macaco pulou agilmente para o tombadilho, onde viu, a<br />

certa distância, parados, meia dúzia de marinheiros armados de carabin<strong>as</strong> e<br />

revólveres. Defronte, estava Paulvitch.<br />

Tarzan olhou em volta, à procura de Rokoff, pois tinha certeza de<br />

que este devia estar a bordo; não viu porém nenhum sinal dele.


— Lorde Greystoke, — começou o russo — o seu prolongado e<br />

desenfreado intrometimento com Rokoff e os seus planos tem afinal trazido<br />

sua família a esta situação infeliz. Só a si mesmo deve agradecer. Como pode<br />

imaginar, o Sr. Rokoff despendeu grande soma de dinheiro para custear esta<br />

expedição, e, como o senhor é a causa única da mesma, ele naturalmente<br />

conta consigo para reembolsá-lo. Ainda mais, posso dizer-lhe que unicamente<br />

se aceder aos justos pedidos do Sr. Rokoff é que poderá desviar <strong>as</strong><br />

conseqüênci<strong>as</strong> mais desagradáveis para sua mulher e seu filho, e ao mesmo<br />

tempo conservar a sua própria vida e reconquistar a liberdade.<br />

— Qual é a quantia? — perguntou Tarzan. — E que segurança me<br />

dá de cumprir o acordo ajustado? Tenho, como sabe, muita razão para não me<br />

fiar em dois canalh<strong>as</strong> como você e Rokoff.<br />

— Não está em condições de proferir insultos — disse o russo,<br />

corando. — Não tem, é certo, nenhuma garantia de que cumprirei o nosso<br />

acordo, a não ser a minha palavra; tem, porém, diante de si a prova de que<br />

podem liquidá-lo se não encher o cheque que exigimos. A não ser que seja<br />

mais tolo do que suponho, deve saber que nada nos causaria maior prazer do<br />

que dar ordens a estes homens para o fuzilarem. Se não o fazemos, é porque<br />

temos outros planos para c<strong>as</strong>tigá-lo, e esses planos ficariam inteiramente<br />

malogrados se morresse.<br />

bordo deste vapor?<br />

Responda-me a uma pergunta — disse Tarzan. Meu filho está a<br />

Não — respondeu Alexis Paulvitch. — Seu filho está bem<br />

guardado em outro lugar, m<strong>as</strong> não será morto, salvo se você se recusar a<br />

concordar com <strong>as</strong> noss<strong>as</strong> just<strong>as</strong> exigênci<strong>as</strong>. C<strong>as</strong>o se torne necessário matá-lo,<br />

não haverá motivo para não matar também a criança, porque uma vez que<br />

tenha desaparecido aquele que desejamos c<strong>as</strong>tigar por intermédio do menino,<br />

este só poderia ser para nós constante embaraço. Vê, portanto, que somente


poderá salvar a vida de seu filho salvando a sua própria, e só poderá salvar a<br />

sua dando-nos o cheque que pedimos.<br />

— Muito bem — replicou Tarzan, pois bem sabia que aqueles<br />

homens eram capazes de cumprir qualquer ameaça que Paulvitch tivesse feito<br />

e sempre havia alguma esperança de que, cedendo às su<strong>as</strong> exigênci<strong>as</strong>, pudesse<br />

salvar o menino. Não lhe parecia possível que o deix<strong>as</strong>sem viver depois que<br />

houvesse <strong>as</strong>sinado o cheque. Estava, porém, resolvido a dar-lhes uma lição de<br />

que nunca mais se esqueceriam, e talvez lev<strong>as</strong>se Paulvitch consigo para a<br />

eternidade. Sentia somente que não fosse Rokoff.<br />

— Qual é a quantia? — perguntou, sacando do bolso o livro de<br />

cheques e a caneta tinteiro.<br />

Paulvitch mencionou uma soma enorme. Tarzan mal podia conter<br />

um sorriso. A cobiça do bandido ia ser a causa do seu des<strong>as</strong>tre, ao menos no<br />

negócio do resgate. De propósito, Tarzan hesitou, regateando sobre a quantia;<br />

m<strong>as</strong> Paulvitch não transigiu. Finalmente, o homem-macaco encheu o cheque<br />

com a quantia que lhe pediam, quantia aliás superior à que possuía no banco.<br />

Ao voltar-se para entregar ao outro o pedaço de papel, que não<br />

valia nada para o russo, aconteceu olhar através do estibordo do Kincaid.<br />

Com grande surpresa viu que o vapor estava a poucos p<strong>as</strong>sos de terra. Qu<strong>as</strong>e<br />

até a beira da água existia uma densa selva, por trás da qual havia um planalto<br />

coberto de floresta.<br />

— É aqui que vai ser posto em liberdade — disse Paulvitch, que lhe<br />

notara a direção do olhar.<br />

O plano de Tarzan para tirar imediata vingança física do russo<br />

desapareceu ao pensar que a terra que ali estava era o continente africano.<br />

Sabia que, se o abandon<strong>as</strong>sem aí, sem dúvida poderia encontrar o caminho<br />

para a civilização com relativa facilidade.<br />

Paulvitch tomou o cheque.


precisará dela.<br />

— Tire a sua roupa — disse ele ao homem-macaco. — Aqui não<br />

Tarzan hesitou.<br />

Paulvitch apontou para os marinheiros armados. Então o inglês<br />

despiu-se vagarosamente.<br />

Arriaram um bote, e, ainda bem guardado, foi o homem-macaco<br />

levado para a praia. Meia hora depois os marinheiros voltaram ao Kincaid, que<br />

já se estava preparando para partir de novo.<br />

Tarzan deteve-se sobre aquele estreito pedaço de praia, olhando a<br />

saída do vapor. Eis que na amurada do navio aparece um vulto a chamar alto,<br />

para atrair-lhe a atenção.<br />

O homem-macaco começava a ler uma nota que um dos<br />

marinheiros lhe entregara, quando o pequeno bote, que o levara à praia já se<br />

dispunha a regressar ao vapor. Aos gritos que partiam do tombadilho ergueu a<br />

cabeça.<br />

Viu então um homem de barba negra, que se ria para ele,<br />

escarnecendo dele, enquanto segurava acima da cabeça o vulto de uma<br />

criança.<br />

Tarzan já ia atirar-se com ímpeto às ond<strong>as</strong>, em direção do vapor<br />

que zarpava; vendo, porém, a inutilidade de seu ato, parou à beira da água.<br />

Ficou, porém, com o olhar preso no Kincaid, acompanhando-o, até<br />

que o navio desapareceu por trás do cabo saliente da costa.<br />

Da selva que ficava atrás dele olhos ferozes, rajados de sangue,<br />

olhavam-no por baixo de sobrancelh<strong>as</strong> cabelud<strong>as</strong>.<br />

Pequenos macacos nos cimos d<strong>as</strong> árvores guinchavam e<br />

guinchavam; além, na floresta, ouvia-se o rugido de um leopardo.<br />

M<strong>as</strong> John Clayton, Lorde Greystoke, ficou ainda sem ouvir e sem<br />

ver, sofrendo <strong>as</strong> ânsi<strong>as</strong> de profundo arrependimento pela oportunidade que


perdera, por ter sido tão tolo em acreditar numa simples declaração do<br />

primeiro tenente do seu arqui-inimigo.<br />

— Resta-me, ao menos, — pensou ele — o consolo de saber que<br />

Jane está a salvo em Londres. Graç<strong>as</strong> a Deus, ela não caiu também n<strong>as</strong> garr<strong>as</strong><br />

daqueles canalh<strong>as</strong>.<br />

Atrás dele o vulto cabeludo cujos olhos maus o tinham vigiado,<br />

como o gato olha para o camundongo, arr<strong>as</strong>tava-se traiçoeiramente em sua<br />

direção.<br />

Onde estavam os sentidos treinados do homem-macaco?<br />

Onde estava o seu ouvido agudo?<br />

Onde estava o seu olfato sobrenatural?


CAPÍTULO 3: Animais ameaçados<br />

Vagarosamente Tarzan abriu o bilhete que o marinheiro lhe tinha<br />

posto na mão, e leu-o.<br />

A princípio ess<strong>as</strong> linh<strong>as</strong> pouca impressão lhe causaram nos<br />

sentidos, amortecidos de tristeza; m<strong>as</strong>, afinal, todo o horror do terrível plano<br />

de vingança desdobrou-se em sua imaginação.<br />

“Isto lhe explicará (dizia o bilhete) a natureza exata d<strong>as</strong> minh<strong>as</strong> intenções<br />

relativ<strong>as</strong> a você e ao seu filho. Quando você n<strong>as</strong>ceu era um macaco. Vivia nu no mato. Nós<br />

fizemos com que você volt<strong>as</strong>se aos seus; m<strong>as</strong> seu filho subirá um p<strong>as</strong>so acima do pai. É a lei<br />

invariável da evolução. O pai era um animal, m<strong>as</strong> o filho será um homem. Ele dará mais<br />

um p<strong>as</strong>so na escala <strong>as</strong>cendente do progresso: não será nenhum bicho-do-mato, porém usará<br />

uma tanga e argol<strong>as</strong> de cobre nos tornozelos, e talvez uma argola no nariz, porque vai ser<br />

criado por homens — uma tribo de canibais. Eu poderia ter matado você; m<strong>as</strong> isto teria<br />

diminuído o justo c<strong>as</strong>tigo que merece. Morto, você não poderia sofrer com a notícia da sorte<br />

de seu filho. Vivo, e num lugar de onde não pode fugir, para procurá-lo ou socorrê-lo, terá<br />

um sofrimento muito pior do que a morte, e isso durante todos os anos de sua vida, pensando<br />

sempre nos horrores da existência do seu filho. Isso constituirá a melhor parte do seu c<strong>as</strong>tigo<br />

por ter ousado opor-se a N. R.<br />

P. S. — O saldo do seu c<strong>as</strong>tigo será o que vai acontecer à sua mulher, e que<br />

não digo aqui, m<strong>as</strong> deixo à sua imaginação”.<br />

Ao acabar de ler o bilhete, um pequeno barulho atrás dele fê-lo<br />

tornar a si, apavorado com <strong>as</strong> terríveis realidades que o cercavam.<br />

Instantaneamente os seus sentidos despertaram, e ele voltou a ser<br />

Tarzan dos Macacos.<br />

Voltou-se; era já um animal ameaçado, tendo o instinto da própria<br />

conservação. Fez frente resolutamente a um enorme macaco, já prestes a se<br />

precipitar sobre ele.


Os dois anos que tinham decorrido desde que Tarzan saíra da<br />

floresta virgem com a companheira salva por ele, pouco lhe haviam alterado a<br />

força extraordinária que o tornara o senhor invencível d<strong>as</strong> selv<strong>as</strong>. As su<strong>as</strong><br />

grandes propriedades em Uziri haviam ocupado muito do seu tempo e<br />

atenção; aí tinha encontrado ampla largueza para o uso prático e a<br />

conservação d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> forç<strong>as</strong> qu<strong>as</strong>e sobrenaturais. M<strong>as</strong> achando-se, como se<br />

achava, nu e desarmado, para ter de combater um animal cabeludo, com um<br />

pescoço taurino, como o que agora o enfrentava, era uma prova a que o<br />

homem-macaco mal se teria abalançado em qualquer período da sua existência<br />

selvagem.<br />

M<strong>as</strong> não havia outra alternativa. Era forçoso enfrentar o animal<br />

enfurecido, embora tivesse apen<strong>as</strong> <strong>as</strong> arm<strong>as</strong> com que a natureza o dotara.<br />

Por cima do ombro do macaco, Tarzan podia ver agora <strong>as</strong> cabeç<strong>as</strong><br />

e os ombros de talvez mais de uma dúzia destes poderosos precursores do<br />

homem primitivo.<br />

Ele sabia, entretanto, que havia pouca probabilidade de que, juntos,<br />

o atac<strong>as</strong>sem. Não está no raciocínio dos antropóides pesar com justeza ou<br />

apreciar exatamente o valor da ação coletiva contra um inimigo. Se eles<br />

soubessem agir <strong>as</strong>sim, já se teriam tornado desde muito os senhores absolutos<br />

dos seus esconderijos, tal o poder de destruição que existe nos seus<br />

formidáveis músculos e dentes ferozes.<br />

Com um ronco surdo, o animal se atirou sobre Tarzan. M<strong>as</strong> o<br />

homem-macaco tinha descoberto, entre outr<strong>as</strong> cois<strong>as</strong>, nos lugares<br />

freqüentados por homens civilizados, certos métodos científicos de guerrear,<br />

que são desconhecidos aos habitantes da floresta.<br />

simples força bruta.<br />

Poucos anos antes teria respondido à força bruta também com a


M<strong>as</strong> agora agiu de outro modo. Desviou-se para um lado, furtando<br />

o corpo ao arremesso do bruto e atirando-lhe com toda a força um pontapé<br />

na boca do estômago.<br />

Com um grito, ao mesmo tempo de raiva e de angústia, o grande<br />

antropóide se dobrou vencido pela dor e caiu no chão; m<strong>as</strong> imediatamente<br />

procurou levantar-se.<br />

Antes porém que pudesse erguer-se, o inimigo de pele branca tinha-<br />

se virado e pulado em cima dele. Foi como se houvesse caído dos ombros do<br />

lorde inglês o último pedaço do manto superficial de civilização.<br />

Mais uma vez era ele o animal da selva virgem regozijando-se no<br />

conflito sangrento com a sua espécie. Mais uma vez era Tarzan, filho de Kala,<br />

a macaca.<br />

Os seus dentes fortes e brancos se cravaram no pescoço cabeludo<br />

do inimigo, enquanto procurava a veia jugular.<br />

Dedos poderosos af<strong>as</strong>tavam os dentes fortes da fera, ou fechados<br />

batiam com a força dum martelo na cara monstruosa, salpicada de espuma, do<br />

adversário.<br />

Ao redor deles o resto da tribo dos macacos contemplava, gozando<br />

a luta, rosnando uns sons surdos de aprovação quando pedaços sangrentos de<br />

couro branco ou pele cabeluda eram r<strong>as</strong>gados por um ou por outro dos<br />

contendores. M<strong>as</strong> calaram-se, entre admirados e espectantes, quando viram o<br />

grande macaco branco cavalgar <strong>as</strong> cost<strong>as</strong> do rei deles, e, com os músculos de<br />

aço, tensos, por baixo dos sovacos do antagonista, subjugá-lo, calcando com<br />

toda a força de su<strong>as</strong> mãos <strong>as</strong> cost<strong>as</strong> e o grosso cachaço do macaco, de forma<br />

que este somente podia rosnar em agonia, revolvendo-se sobre o espesso<br />

tapete de capim.<br />

Como Tarzan tinha subjugado o enorme Terkaz muitos anos antes,<br />

quando se preparava para partir à procura de entes humanos da sua própria


espécie e cor, <strong>as</strong>sim também agora subjugou este outro grande macaco com o<br />

mesmo processo de luta que descobrira por ac<strong>as</strong>o durante o outro combate.<br />

O pequeno círculo de ferozes antropóides ouvia o ranger do<br />

pescoço do seu rei, que estrebuchava entre gemidos de agonia e urros<br />

hediondos.<br />

Súbito, ouviu-se um estalo como o de uma árvore que se quebra<br />

com a fúria do vento. A cabeça do macaco descaiu para a frente, o pescoço<br />

frouxo contra o grande peito cabeludo. Os urros e os gemidos cessaram.<br />

Os olhos dos espectadores — olhos como os dos porcos — iam e<br />

vinham do corpo imóvel de seu chefe ao daquele outro macaco branco, que se<br />

erguia ao lado do vencido. Admiravam-se de que o rei não se levant<strong>as</strong>se<br />

também e não mat<strong>as</strong>se esse orgulhoso estrangeiro.<br />

Viram o que tinha chegado havia pouco colocar um pé sobre o<br />

pescoço do corpo imóvel a seus pés, e, sacudindo a cabeça para trás, soltar um<br />

grito selvagem, como o dos macacos, quando acabam de matar alguém.<br />

Compreenderam então que o seu rei estava morto, e bem morto.<br />

Através da selva repercutiram <strong>as</strong> not<strong>as</strong> horríveis do grito de vitória.<br />

Os macacos nos cumes d<strong>as</strong> árvores cessaram de guinchar. Os pássaros de<br />

cantos ásperos e plumagens brilhantes estavam quietos. De longe, vinham,<br />

como um eco, o urro do leopardo e o rouco rugido do leão.<br />

Tarzan voltou olhos interrogativos para o pequeno grupo de<br />

macacos diante dele, e sacudiu a sua cabeça como se quisesse jogar para trás a<br />

pesada cabeleira, que lhe caía pelo rosto — velho hábito que datava dos di<strong>as</strong><br />

em que os cabelos, ásperos e negros, lhe caíam sobre os ombros, e às vezes<br />

lhe tapavam os olhos.<br />

O homem-macaco sabia que podia ser imediatamente atacado por<br />

outro macaco, que se julg<strong>as</strong>se em melhores condições para disputar o posto<br />

de rei da sua tribo. Entre os seus próprios macacos sabia que não era raro que


um estrangeiro, depois de ter despachado o rei, <strong>as</strong>sumisse o lugar de chefe da<br />

tribo.<br />

Se não os acompanh<strong>as</strong>se, eles se retirariam vagarosamente, para<br />

mais tarde brigarem entre si pela supremacia real. Que podia ser o rei deles, se<br />

quisesse, tinha a certeza; m<strong>as</strong> não via nenhuma vantagem em <strong>as</strong>sumir <strong>as</strong><br />

obrigações, às vezes enfadonh<strong>as</strong>, daquela posição.<br />

Um dos macacos mais novos, um enorme bruto, com grandes<br />

músculos, avançou ameaçadoramente para mais perto do homem-macaco.<br />

Com os dentes à mostra, pronto para a luta, soltou um ronco surdo. Tarzan,<br />

rígido como uma estátua, acompanhava-lhe com o olhar todos os<br />

movimentos. C<strong>as</strong>o se volt<strong>as</strong>se contra ele, arriscava-se a precipitar os<br />

acontecimentos. Talvez pudesse também fazer o valente fugir. Tudo dependia<br />

da coragem que manifest<strong>as</strong>se o jovem macaco.<br />

Ficou, pois, completamente quieto, m<strong>as</strong> em guarda. Bem podia ser<br />

que o macaco, de acordo com o costume dos da sua espécie, se aproxim<strong>as</strong>se<br />

apen<strong>as</strong> do objeto da sua atenção, roncando horrivelmente e mostrando os<br />

dentes. E foi o que sucedeu, tal como Tarzan tinha previsto.<br />

Poderia ser um blefe real, disfarçando <strong>as</strong> su<strong>as</strong> intenções, para que<br />

em dado momento se atir<strong>as</strong>se sobre o inimigo sem que nada fizesse prever a<br />

agressão.<br />

Enquanto o bruto rodeava Tarzan, este se voltava vagarosamente,<br />

conservando os olhos sempre fitos nos olhos do seu antagonista. Pareceu-lhe<br />

que o jovem macaco não se julgava capaz de superar o seu antigo rei.<br />

Contudo, seria bom não confiar demais nesta suposição. Tarzan viu que o<br />

animal era de proporções maravilhos<strong>as</strong>, com uma estatura de mais de sete pés.<br />

Os seus grandes braços cabeludos alcançavam qu<strong>as</strong>e o chão,<br />

quando ficava ereto, e <strong>as</strong> su<strong>as</strong> pres<strong>as</strong>, agora bem chegad<strong>as</strong> à face de Tarzan,<br />

eram excepcionalmente long<strong>as</strong> e agud<strong>as</strong>. Como os outros da sua tribo, era<br />

diferente em vari<strong>as</strong> qualidades inferiores dos macacos da mocidade de Tarzan.


A princípio o homem-macaco experimentou certa esperança, à vista<br />

dos corpos cabeludos dos antropóides, de que por algum estranho capricho<br />

da sorte tinha regressado mais uma vez à sua própria tribo. M<strong>as</strong> um exame<br />

mais minucioso convenceu-o de que estes eram de outra espécie.<br />

Entretanto, o macaco ameaçador continuava a rodar incerto em<br />

volta do homem-macaco. Era um rodar parecido com o dos cães quando<br />

outro cão estranho se chega para o meio deles. Ocorreu a Tarzan a idéia de<br />

verificar se a linguagem da sua própria tribo era idêntica à desta outra família.<br />

Falou então ao bruto na linguagem da tribo de Kerchak.<br />

Macacos?<br />

— Quem és tu? — perguntou ele. — Por que ameaç<strong>as</strong> Tarzan dos<br />

O bruto cabeludo mostrou a sua surpresa.<br />

— Eu sou Akut — respondeu o outro na mesma linguagem<br />

simples e primitiva, tão baixa na escala d<strong>as</strong> língu<strong>as</strong> falad<strong>as</strong>, que, como Tarzan<br />

tinha pensado, era idêntica à daquela tribo em que tinha p<strong>as</strong>sado os primeiros<br />

vinte anos da sua vida. — Eu sou Akut — repetiu o macaco. — Molak está<br />

morto. Eu sou o rei. Vai-te embora ou eu te matarei!<br />

— Viste com que facilidade eu matei Molak — respondeu Tarzan.<br />

— Assim eu poderia te matar também se quisesse ser rei. M<strong>as</strong> Tarzan dos<br />

Macacos não quer ser o rei da tribo de Akut. Somente o que ele deseja é viver<br />

em paz neste país. Sejamos amigos. Tarzan dos Macacos pode auxiliar-te e tu<br />

podes ajudar Tarzan dos Macacos.<br />

— Não pode matar Akut — replicou o outro. — Ninguém é tão<br />

forte como Akut. Se não tivesse matado Molak, Akut tê-lo-ia feito, pois Akut<br />

estava pronto para ser rei.<br />

Como única resposta o homem-macaco se atirou sobre o grande<br />

bruto, que durante a conversa diminuíra um pouco a sua vigilância.


Num abrir e fechar de olhos o homem segurou o pulso do grande<br />

macaco, e antes que o outro pudesse agarrar-se com ele, tinha-o voltado,<br />

pulando-lhe sobre <strong>as</strong> larg<strong>as</strong> cost<strong>as</strong>.<br />

Ambos caíram, m<strong>as</strong> tão bem executado tinha sido o plano de<br />

Tarzan, que, antes que toc<strong>as</strong>sem o chão, o homem empregou sobre Akut o<br />

mesmo golpe que tinha quebrado o pescoço de Molak.<br />

Devagar, fez-lhe sentir a pressão dos seus músculos, e tal como<br />

antigamente tinha dado a Kerchak a oportunidade de render-se continuando a<br />

viver, <strong>as</strong>sim também agora quis proceder com Akut — no qual via um<br />

possível aliado de grande força e recursos. Propôs-lhe viver amigavelmente<br />

com ele ou morrer como acabava de ver sucumbir o seu rei até então<br />

invencível.<br />

subjugado.<br />

— Ka-goda? — murmurou Tarzan ao macaco, inteiramente<br />

Era a mesma pergunta que murmurara a Kerchak, e que na<br />

linguagem dos macacos quer dizer: “Rende-se?”.<br />

Akut lembrou-se dos estalos que ouvira quando o grosso pescoço<br />

de Molak estava a partir-se, e estremeceu.<br />

Custava-lhe renunciar à autoridade de rei. Por isso, mais uma vez,<br />

lutou para se livrar; porém um aperto mais forte e torturante n<strong>as</strong> vértebr<strong>as</strong>, fê-<br />

lo articular um agonizante “ka-goda!”<br />

Tarzan afrouxou um pouco a pressão dos dedos.<br />

— Poderás ainda ser rei, Akut — disse ele. — Tarzan já te disse<br />

que não deseja ser rei. Se alguém te negar esse direito, Tarzan dos Macacos te<br />

auxiliará na luta.<br />

O homem-macaco levantou-se e Akut vagarosamente se pôs de pé.<br />

Sacudindo a cabeça redonda e, rosnando amuadamente, dirigiu-se aos<br />

cambaleios em direção da sua tribo, olhando para um e para outro dos<br />

maiores macacos que receava lhe disput<strong>as</strong>sem o seu lugar de chefe.


M<strong>as</strong> nenhum se opôs. Ao contrário, af<strong>as</strong>tavam-se ao p<strong>as</strong>so que ele<br />

se ia aproximando. Todo o grupo sumiu-se na floresta, e Tarzan ficou mais<br />

uma vez só na praia. O homem-macaco sentia fortes dores n<strong>as</strong> ferid<strong>as</strong> que lhe<br />

fizera Molak; como, porém, desde muito se habituara ao sofrimento físico,<br />

suportou-o com a calma e o ânimo dos animais bravios, que lhe tinham<br />

ensinado a levar a vida selvagem da mesma maneira que todos os que<br />

n<strong>as</strong>ceram para ela.<br />

A sua primeira necessidade, logo o verificou, era arranjar arm<strong>as</strong> de<br />

ataque e defesa, pois o seu encontro com os macacos, e os sons distantes d<strong>as</strong><br />

vozes selvagens de Numa, o leão e Sheeta, a pantera, o avisavam de que a vida<br />

não lhe ia ser nenhuma vida de descanso indolente e tranqüila.<br />

Cumprir-lhe-ia voltar à antiga existência de morticínio e constante<br />

perigo. Ser caçador ou caça. Animais medonhos o espreitariam, como o<br />

tinham espreitado outrora; dia e noite, teria que manter-se em contínua<br />

vigilância, lançando mão d<strong>as</strong> rudes arm<strong>as</strong> que pudesse fabricar com os<br />

materiais que lhe fornecesse a floresta.<br />

Na praia descobriu um rochedo saliente. Com muito trabalho<br />

conseguiu quebrar uma l<strong>as</strong>ca estreita, de mais ou menos doze polegad<strong>as</strong> de<br />

comprimento por 1/4 de polegada de grossura. Uma d<strong>as</strong> pont<strong>as</strong> da pedra<br />

serviu-lhe para fabricar uma faca tosca e grosseira.<br />

Com essa arma, dirigiu-se para a floresta procurando uma árvore de<br />

certa qualidade de madeira que conhecia. Desta cortou um galho pequeno e<br />

reto, no qual fez uma ponta.<br />

Cavou então um pequeno buraco redondo na superfície do tronco<br />

derribado, colocou dentro do buraco alguns pedaços de c<strong>as</strong>ca seca, picados<br />

em miúdos fragmentos, enfiou nele a ponta do pau aguçado, e, cavalgando o<br />

tronco da árvore girou a delgada vara rapidamente entre <strong>as</strong> palm<strong>as</strong> d<strong>as</strong> mãos.<br />

Depois de algum tempo uma tênue fumaça começou a sair do<br />

pequeno monte de c<strong>as</strong>c<strong>as</strong>, e pouco depois elevou-se uma chama. Colocando


alguns galhos maiores e paus por cima do pequeno fogo, Tarzan conseguiu<br />

uma pequena fogueira na cavidade da árvore seca.<br />

Dentro desta cavidade introduziu a lâmina da faca de pedra; quando<br />

esta ficava aquecida ele a retirava, umedecendo ligeiramente o gume da pedra.<br />

Na superfície do lugar umedecido um pequeno floco de matéria vidrosa<br />

rachava e se escamava.<br />

Assim, vagarosamente, o homem-macaco começou a operação<br />

tediosa de conseguir um gume fino para a sua faca de caça. Grande foi o seu<br />

contentamento quando conseguiu obter uma lâmina cortante de du<strong>as</strong><br />

polegad<strong>as</strong>, com a qual talhou um arco grande e flexível, um cabo para a sua<br />

faca, um grosso varapau, e uma boa quantidade de flech<strong>as</strong>.<br />

Est<strong>as</strong> ele escondeu numa árvore alta ao lado dum pequeno riacho,<br />

onde construiu uma plataforma com uma coberta de folh<strong>as</strong> de palmeira.<br />

tinha fome.<br />

Quando tod<strong>as</strong> est<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> ficaram pront<strong>as</strong>, já escurecia, e Tarzan<br />

Vira, durante o breve p<strong>as</strong>seio que fizera na floresta, que à pequena<br />

distância do riacho havia um bebedouro muito freqüentado, onde, pela lama<br />

pisada em amb<strong>as</strong> <strong>as</strong> margens, era evidente que animais de toda qualidade e em<br />

grande número aí vinham beber. O homem-macaco dirigiu-se em silêncio<br />

para esse lugar, esgueirando-se por entre <strong>as</strong> árvores e os galhos com a graça e<br />

facilidade de um macaco. Se não fossem os cuidados que lhe pesavam no<br />

coração, teria ficado contente em voltar à antiga vida livre da mocidade.<br />

Mesmo <strong>as</strong>sim, com esses cuidados e apreensões, voltou Tarzan aos<br />

pequenos hábitos e costumes da vida antiga, que, em verdade, tinham mais<br />

força na sua natureza do que o verniz que a civilização, nos últimos três anos<br />

da sua vida com os homens brancos, tinha espalhado levemente sobre ele —<br />

verniz que apen<strong>as</strong> disfarçava a rudez do animal que fora Tarzan dos Macacos.<br />

Se os seus pares da Câmara dos Lordes pudessem vê-lo agora<br />

teriam erguido, horrorizados, <strong>as</strong> su<strong>as</strong> nobres mãos.


Silencioso, encolheu-se nos galhos baixos dum grande gigante da<br />

floresta que se achava perto dos r<strong>as</strong>tros e com os olhos penetrantes e os<br />

ouvidos atentos, ficou alerta para a selva distante, da qual sabia que tinha<br />

afinal de sair o seu jantar.<br />

E não teve de esperar muito tempo.<br />

Mal se tinha acomodado numa posição confortável, <strong>as</strong> pern<strong>as</strong><br />

maleáveis e musculos<strong>as</strong> bem encolhid<strong>as</strong> por baixo dele, como a pantera<br />

encolhe os quartos tr<strong>as</strong>eiros, preparando-se para o bote, Bara, a corça, veio-se<br />

chegando elegantemente para beber. M<strong>as</strong> Bara não vinha só. Atrás do<br />

gracioso gamo, vinha também outro animal, que a corça, nem via nem<br />

pressentia pelo olfato, m<strong>as</strong> cujos movimentos eram visíveis a Tarzan dos<br />

Macacos, devido à elevada posição em que se achava.<br />

Ele ainda não podia distinguir exatamente a natureza da coisa que<br />

se movia traiçoeiramente pela selva, atrás da corça; estava, porém, convencido<br />

de que era algum grande animal de presa, que perseguia Bara. Numa, talvez,<br />

ou Sheeta, a pantera.<br />

Em todo c<strong>as</strong>o, Tarzan via que a sua refeição ia escapar-se-lhe d<strong>as</strong><br />

mãos, a não ser que Bara apress<strong>as</strong>se os p<strong>as</strong>sos em direção ao bebedouro.<br />

Enquanto estes pensamentos p<strong>as</strong>savam pela mente de Tarzan, devia<br />

a corça ter ouvido algum rumor à retaguarda pois estacou repentinamente por<br />

um instante, tremendo, e de ouvido atento. Com um pulo, correu diretamente<br />

em direção do rio e de Tarzan, com a intenção de fugir pelo r<strong>as</strong>o riacho e<br />

p<strong>as</strong>sar para a margem oposta.<br />

A pequena distância dela vinha Numa, o leão. Tarzan podia vê-lo<br />

claramente agora. Bara ia p<strong>as</strong>sar por baixo do homem-macaco. Poderia fazê-<br />

lo? M<strong>as</strong> enquanto ele perguntava isto a si mesmo, o homem esfomeado<br />

atirou-se do seu poleiro em cima d<strong>as</strong> cost<strong>as</strong> da <strong>as</strong>sustada corça.


Mais um instante e Numa estaria sobre ambos. Se, portanto, o<br />

homem-macaco quisesse jantar aquela noite, e no dia seguinte, tinha de agir<br />

com rapidez.<br />

Mal tocara no couro liso da corça, o peso repentino fez o animal<br />

cair de joelhos. Tarzan agarrou-o pelos chifres, um em cada mão, e, com um<br />

rápida puxão, torceu o pescoço do animal, até sentir quebrarem-se-lhe <strong>as</strong><br />

vértebr<strong>as</strong> n<strong>as</strong> mãos.<br />

O leão rugia agora raivoso atrás dele. Tarzan atirou a corça por<br />

cima do ombro e, agarrando-lhe a perna dianteira com os dentes fortes, pulou<br />

para um dos galhos mais baixos, que estavam por cima da sua cabeça.<br />

Com amb<strong>as</strong> <strong>as</strong> mãos agarrou o galho, e, no instante em que Numa<br />

saltou sobre a corça, ele pondo-se de pé, suspendeu rapidamente a presa,<br />

furtando-a ao alcance d<strong>as</strong> unh<strong>as</strong> cruéis do animal.<br />

Houve um ruído embaixo quando o leão caiu novamente em terra.<br />

Tarzan dos Macacos, carregando o seu jantar mais para cima, pô-lo em<br />

segurança num galho mais alto, olhou para baixo com uma cara risonha,<br />

fitando os olhos amarelos e brilhantes do animal selvagem, que olhava para<br />

ele. Com ar de zombaria mostrou-lhe Tarzan a presa que lhe havia roubado.<br />

Com a tosca faca de pedra cortou um bife gostoso da parte tr<strong>as</strong>eira,<br />

e enquanto o grande leão p<strong>as</strong>seava rosnando, de um lado para outro, por<br />

baixo dele, Lorde Greystoke se rep<strong>as</strong>tou à vontade, e jamais teve no melhor<br />

dos seus clubes de Londres uma refeição tão saborosa.<br />

O sangue quente da presa sujava-lhe <strong>as</strong> mãos e a cara acariciando-<br />

lhe <strong>as</strong> narin<strong>as</strong> com o cheiro que o carnívoro selvagem mais aprecia.<br />

Ao terminar a refeição, acomodou o resto da carcaça em uma<br />

forquilha alta da árvore onde tinha jantado e, como Numa ainda o vigi<strong>as</strong>se,<br />

embaixo, sedento de vingança, continuou em seu abrigo no cume da árvore,<br />

onde dormiu até o dia seguinte, quando o sol já estava alto.


CAPÍTULO 4: Sheeta<br />

Os di<strong>as</strong> que se seguiram foram ocupados por Tarzan em completar<br />

<strong>as</strong> su<strong>as</strong> arm<strong>as</strong> e explorar a selva. Encordoou o arco com tendões da corça que<br />

lhe servira de jantar na primeira tarde, e embora preferisse uma tripa de Sheeta<br />

para esse fim, estava satisfeito. Esperaria até achar oportunidade que lhe<br />

permitisse matar um destes grandes gatos.<br />

Trançou também uma comprida corda de embira — corda igual à<br />

que tinha usado muitos anos antes para atormentar o mal-humorado Tublat, e<br />

que mais tarde se tinha tornado uma arma muito eficiente na mão habilidosa<br />

do pequeno menino-macaco.<br />

Fez uma bainha e um cabo para a sua faca de caça e uma aljava para<br />

<strong>as</strong> flech<strong>as</strong>; e do couro de Bara um cinto e uma tanga. Partiu então a explorar<br />

os arredores da estranha terra onde se achava. Que não era a sua velha costa<br />

conhecida do oeste do continente da África, sabia-o pelo fato de n<strong>as</strong>cer o sol<br />

n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do mar que ficava diante da selva.<br />

Que não era também a costa leste da África tinha igualmente<br />

certeza, pois sabia que o Kincaid não tinha p<strong>as</strong>sado pelo Mediterrâneo, pelo<br />

Canal de Suez, pelo Mar Vermelho, nem tampouco tivera tempo para p<strong>as</strong>sar<br />

pelo Cabo da Boa Esperança.<br />

Não tinha, por tudo isso, nenhuma idéia de onde se achava.<br />

Às vezes conjeturava se o vapor teria atravessado o grande oceano<br />

Atlântico para depositá-lo em alguma praia selvagem da América do Sul. M<strong>as</strong><br />

a presença de Numa, o leão fê-lo compreender que isto não podia ser.<br />

Quando Tarzan seguia sozinho pela selva em marcha paralela à<br />

praia, sentiu um grande desejo de ter alguma companhia. Aos poucos,<br />

começou a arrepender-se de não se ter <strong>as</strong>sociado aos macacos. Não tinha<br />

visto nenhum deles desde o primeiro dia, quando o influxo da civilização<br />

ainda o dominava.


Agora ele se parecia mais com o antigo Tarzan e, embora avali<strong>as</strong>se<br />

o pouco que poderia haver de comum entre ele e os grandes antropóides,<br />

ainda <strong>as</strong>sim estes eram melhores que qualquer outra companhia.<br />

Caminhando vagarosamente, às vezes no chão e outr<strong>as</strong> vezes nos<br />

galhos baixos d<strong>as</strong> árvores, apanhando uma fruta de vez em quando, ou<br />

virando um tronco derrubado à procura de grandes vermes, que ainda achava<br />

tão saborosos como antigamente, Tarzan tinha andado uma milha ou mais<br />

quando a sua atenção foi atraída pelo cheiro de Sheeta, que o vento lhe trazia.<br />

Agora, Sheeta, a pantera, era uma presa que Tarzan estava bem<br />

satisfeito de encontrar, pois tinha em mente não somente utilizar-se da tripa<br />

resistente do grande gato para o seu arco, como também para fazer uma nova<br />

aljava e uma tanga de pedaços do seu couro. Portanto, se o homem-macaco<br />

tinha andado descuidado até aí, tornou-se de então em diante furtivo e<br />

silencioso.<br />

perseguindo-o.<br />

Ligeiro e calado, deslizou pela floresta atrás do gato selvagem,<br />

Quando se viu perto de Sheeta, descobriu que a pantera por seu<br />

lado, estava também perseguindo caça para si. Ao mesmo tempo chegou-lhe<br />

às narin<strong>as</strong>, soprado da direita por uma brisa suave, o cheiro forte de um bando<br />

de grandes macacos.<br />

A pantera tinha subido numa grande árvore, quando Tarzan a<br />

avistou, além disso, por baixo dela estava a tribo de Akut acampada numa<br />

pequena clareira. Alguns cochilavam recostados aos troncos d<strong>as</strong> árvores,<br />

enquanto outros vagueavam revirando pedaços de c<strong>as</strong>c<strong>as</strong> de árvores por baixo<br />

dos quais encontravam vermes e besouros, que achavam saborosos.<br />

Akut era o que se achava mais perto de Sheeta.<br />

O grande gato estava encolhido sobre um galho grosso, oculto aos<br />

olhos do macaco pela folhagem espessa, esperando pacientemente que o<br />

antropóide cheg<strong>as</strong>se ao alcance do seu pulo.


Tarzan cuidadosamente alcançou posição na mesma árvore em que<br />

estava a pantera, m<strong>as</strong> um pouco acima dela. Teria preferido usar o seu laço,<br />

porém a folhagem em volta do gato grande impedia a possibilidade de uma<br />

laçada certa com a corda.<br />

Akut achava-se agora muito perto da árvore onde a morte o<br />

esperava. Sheeta vagarosamente firmou <strong>as</strong> pat<strong>as</strong> tr<strong>as</strong>eir<strong>as</strong> no galho que estava<br />

mais abaixo dela, e com um grito horrível lançou-se sobre o grande macaco.<br />

Ao mesmo tempo, e dando também um pulo, outro animal de caça saltou-lhe<br />

em cima, soltando um grito esquisito e selvagem que se misturou com o dela.<br />

Quando Akut, <strong>as</strong>sustado, olhou em volta de si, viu a pantera qu<strong>as</strong>e<br />

em cima dele, e já n<strong>as</strong> cost<strong>as</strong> da fera o macaco branco que o tinha vencido no<br />

outro dia, perto do mar.<br />

Os dentes do homem-macaco estavam fortemente cravados no<br />

pescoço de Sheeta. O braço direito daquele apertava o pescoço desta,<br />

enquanto a mão esquerda, segurando a faca de pedra, caía em poderos<strong>as</strong><br />

pancad<strong>as</strong> sobre a paleta esquerda da pantera.<br />

Akut mal teve tempo de pular para um lado, a fim de não ficar<br />

preso por baixo destes monstruosos lutadores da selva.<br />

Com enorme estrondo caíram ambos por terra a seus pés. Sheeta<br />

urrava, rosnava e berrava horrivelmente; o macaco branco agarrava-se, porém,<br />

com firmeza e em silêncio ao corpo inquieto da sua presa.<br />

Com firmeza e sem remorso a faca de pedra enterrava-se no seu<br />

couro, cada vez mais fundo, até que, com uma estocada final e um grito<br />

agonizante, a grande gata rolou para o lado, e com um derradeiro movimento<br />

esp<strong>as</strong>módico dos músculos, quedou-se imóvel, morta.<br />

Então o homem-macaco levantou a cabeça, fincando um pé sobre<br />

o cadáver da pantera, e mais uma vez, através da selva, ouviu-se o seu grito<br />

selvagem de vitória.


Akut e os companheiros ficaram imóveis, olhando com admiração<br />

<strong>as</strong>sustada para o corpo de Sheeta e para o vulto do homem que a tinha<br />

matado.<br />

Tarzan foi o primeiro a falar.<br />

Tinha salvado a vida de Akut; e como conhecia os limites do<br />

intelecto do macaco, sabia que precisava tornar bem claro o seu plano ao<br />

antropóide, se dele quisesse tirar o proveito que visava.<br />

— Eu sou Tarzan dos Macacos, — disse ele — poderoso caçador,<br />

poderoso lutador. Ao lado da grande água poupei a vida de Akut quando<br />

poderia tê-lo morto e ficado rei da tribo de Akut. Agora salvei Akut dos<br />

dentes dilacerantes de Sheeta. Quando Akut ou a tribo de Akut estiver em<br />

perigo, podem chamar a Tarzan <strong>as</strong>sim — e o homem macaco soltou um grito<br />

horrível com o qual a tribo de Kerchak estava habituada a chamar os seus<br />

membros ausentes em oc<strong>as</strong>iões de perigo.<br />

E continuou:<br />

— M<strong>as</strong> quando ouvirem também chamar Tarzan <strong>as</strong>sim, que se<br />

lembrem do que fez por Akut, e venham ao seu encontro com toda a rapidez.<br />

Será como Tarzan diz?<br />

— Huh! — afirmou Akut, e esta exclamação foi unanimemente<br />

confirmada pelos membros da sua tribo.<br />

Em seguida, recomeçaram a comer como se nada tivesse<br />

acontecido, e com eles comeu também John Clayton, Lorde Greystoke.<br />

Este reparou que Akut ficava sempre perto dele, e muit<strong>as</strong> vezes o<br />

olhava com admiração estranha nos seus pequenos olhos rajados de sangue.<br />

Certa vez fez até uma coisa que Tarzan, durante todo o tempo que tinha<br />

p<strong>as</strong>sado entre os macacos nunca tinha visto um macaco fazer: escolheu um<br />

pedaço de raiz bem tenro e deu-o a Tarzan.<br />

Quando a tribo caçava, o corpo luzidio do homern-macaco<br />

confundia-se com os corpos c<strong>as</strong>tanhos e cabeludos dos seus companheiros.


Muit<strong>as</strong> vezes, eles se roçavam, m<strong>as</strong> os macacos já aceitavam a presença do<br />

outro como sendo natural, de forma que para eles Tarzan era tão macaco<br />

como o próprio Akut.<br />

Se ele se chegava para perto de uma fêmea com o filho, ela lhe<br />

mostrava os seus dentes ferozes e soltava um rosnar de mau agouro. De vez<br />

em quando algum truculento macaco jovem rosnava também, se Tarzan se<br />

aproximava enquanto ele estava comendo.<br />

Nisto, porém, o tratamento não era diferente daquele que davam a<br />

qualquer outro membro da tribo.<br />

Tarzan por sua parte achava-se bem acomodado com estes<br />

progenitores ferozes e cabeludos do homem primitivo. Pulava com ligeireza<br />

para fora do alcance de cada fêmea ameaçadora, pois tal é o costume dos<br />

macacos, se não estão com um dos seus ataques oc<strong>as</strong>ionais de raiva bestial;<br />

rosnava também para os macacos novos e ferozes mostrando-lhes os seus<br />

dentes da mesma forma. Assim, voltou facilmente aos costumes da sua vida<br />

antiga e nem parecia já que se tivesse <strong>as</strong>sociado com semelhantes criatur<strong>as</strong>.<br />

Durante qu<strong>as</strong>e uma semana vagueou pela selva com os seus novos<br />

amigos, em parte devido ao desejo de ter companhia e em parte por um bem<br />

calculado plano para imprimir-se indelevelmente na memória dos macacos, a<br />

qual não é de grande retenção. Tarzan, por sua experiência p<strong>as</strong>sada, sabia que<br />

lhe seria de muita vantagem ter uma tribo destes poderosos e terríveis animais<br />

prontos a atender ao seu chamado.<br />

Quando se convenceu de que tinha conseguido até certo ponto<br />

fixar a sua identidade na memória deles, decidiu retornar às su<strong>as</strong> explorações.<br />

Com este fim, partiu um dia cedo em direção ao norte, e, marchando sempre<br />

paralelamente à praia, caminhou até o anoitecer.<br />

Quando, no dia seguinte, o sol se levantou viu que este se elevava<br />

qu<strong>as</strong>e à sua direita; já não era, pois, em sua frente sobre o mar, como dantes.


Por isso concluiu que a praia se dirigia para oeste. Durante todo o segundo dia<br />

continuou a sua excursão.<br />

Quando queria andar depressa, p<strong>as</strong>sava pelo meio d<strong>as</strong> árvores da<br />

floresta com a rapidez de um esquilo.<br />

Naquela tarde o sol mergulhou diretamente no mar, do lado oposto<br />

à terra. Então o homem-macaco descobriu a verdade de que tinha suspeitado.<br />

Rokoff tinha-o colocado numa ilha.<br />

Ele devia ter previsto esse fato!<br />

Se havia qualquer plano que torn<strong>as</strong>se mais crítica a sua posição, esse<br />

tinha de ser o adotado pelo russo. Que outra coisa poderia ser mais terrível<br />

que deixá-lo durante toda a vida na dúvida, em uma ilha deserta?<br />

Rokoff teria por certo navegado diretamente para o continente,<br />

onde seria relativamente fácil para ele achar os meios de entregar o pequeno<br />

Jack à gente cruel e selvagem, que, como ele ameaçara em sua carta, trataria da<br />

criação do pequeno.<br />

Tarzan estremeceu ao pensar quanto o filho deveria sofrer em tal<br />

meio, mesmo se caísse n<strong>as</strong> mãos de indivíduos cuj<strong>as</strong> intenções fossem d<strong>as</strong><br />

melhores. O homem-macaco tinha tido experiência suficiente com os<br />

selvagens de baixa categoria da África para saber que mesmo aí se podem<br />

encontrar <strong>as</strong> virtudes mais rudes de caridade e humanidade: porém, a vida aí<br />

era, n<strong>as</strong> melhores condições, unicamente uma série de terríveis privações,<br />

perigos e sofrimentos.<br />

Havia ainda a pavorosa sorte que aguardava a criança quando<br />

cheg<strong>as</strong>se a ser homem. Os costumes horríveis que fariam parte da sua criação<br />

seriam por si sós suficientes para apartá-lo para sempre do convívio com os<br />

da sua própria raça e da sua pátria.<br />

Um canibal! O seu filho, um selvagem comedor de gente! Era<br />

horrível imaginar semelhante hipótese.


etalhado!<br />

Os dentes limados, o nariz rachado, o rosto horrivelmente<br />

Tarzan soltou um gemido. Se ao menos pudesse sentir a garganta<br />

daquele russo demoníaco entre os seus dedos de aço!<br />

E Jane!<br />

Que tormentos de dúvida, medo e incerteza devia estar sofrendo!<br />

Sentiu que o seu estado era infinitamente menos terrível que o dela, pois ele<br />

ao menos sabia que uma d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> querid<strong>as</strong> afeições estava em segurança em<br />

c<strong>as</strong>a, enquanto ela não tinha idéia alguma do lugar onde se achariam seu<br />

marido e seu filho.<br />

Era bom para Tarzan que não adivinh<strong>as</strong>se a verdade, pois tal<br />

conhecimento lhe teria aumentado cem vezes o sofrimento.<br />

Enquanto caminhava vagarosamente pela selva, a mente absorvida<br />

nestes tristes pensamentos, chegou aos seus ouvidos um barulho estranho,<br />

como alguma coisa que arranhava e que ele não podia explicar.<br />

Cuidadosamente caminhou em direção de onde partia o ruído. Viu<br />

então o que era: uma enorme pantera presa por baixo duma árvore caída.<br />

Quando Tarzan se aproximou o animal virou-se, rosnando,<br />

esforçando-se para se libertar; porém, o tronco da árvore sobre <strong>as</strong> cost<strong>as</strong> e os<br />

galhos embaraçados segurando-lhe <strong>as</strong> pern<strong>as</strong> não o deixavam mexer-se senão<br />

pouc<strong>as</strong> polegad<strong>as</strong> em qualquer direção.<br />

O homem-macaco parou diante do gato indefeso, e colocou uma<br />

flecha no arco para desferi-la contra o animal que de outra forma morreria de<br />

fome. Quando, porém, já ia esticar o arco, uma idéia repentina fê-lo deter-se.<br />

Para que roubar à pobre criatura a vida e a liberdade, quando seria<br />

tão fácil restituir-lhe amb<strong>as</strong>! Tinha certeza, pela maneira como a pantera<br />

movia todos os membros, na luta vã para reconquistar a liberdade, que a sua<br />

espinha não estava quebrada, bem como nenhum dos seus membros.


Afrouxando, pois, a corda, repôs a flecha na aljava e, atirando o<br />

arco sobre o ombro, aproximou-se do animal prisioneiro.<br />

A pantera ronronava brandamente, como fazem os próprios gatos<br />

quando estão contentes e satisfeitos. Era na linguagem de Sheeta o melhor<br />

indício para um avanço amigável, que Tarzan podia fazer.<br />

O animal cessou de rosnar e encarou o homem-macaco. Para<br />

levantar o grande peso da árvore, era necessário chegar ao alcance daquel<strong>as</strong><br />

comprid<strong>as</strong> e fortes garr<strong>as</strong>, e quando a árvore tivesse sido removida o homem<br />

estaria completamente à mercê do animal. M<strong>as</strong> o medo era uma coisa<br />

desconhecida para Tarzan dos Macacos.<br />

Tendo <strong>as</strong>sim decidido, agiu prontamente.<br />

Sem hesitar, penetrou pelo meio dos galhos embaraçados ao lado<br />

da pantera, a qual, rosnando ainda amistosa e conciliadoramente, voltou a<br />

cabeça para Tarzan, fitando-o firmemente — como quem indaga. Os dentes<br />

compridos estavam à mostra, porém, mais em defesa que ameaçadores.<br />

Tarzan pôs um ombro por baixo do tronco da árvore. Sua perna nua roçava<br />

contra o pêlo sedoso do gato tão perto estava o homem do grande animal.<br />

Vagarosamente Tarzan estendeu os seus fortes músculos.<br />

A grande árvore, com seus galhos trançados ergueu-se<br />

gradualmente de sobre a pantera, que, sentindo o peso diminuir, ligeiramente<br />

saiu de baixo. Tarzan deixou então recair a árvore, e os animais se viraram a<br />

fim de olhar um para o outro.<br />

Um sorriso terrível pairava nos lábios do homem-macaco, pois<br />

sabia que tinha arriscado a vida para livrar este habitante selvagem da selva.<br />

Não lhe teria causado surpresa, se o gato lhe tivesse pulado em cima no<br />

instante em que foi solto.<br />

M<strong>as</strong> o gato não fez isto. Ao contrário, ficou a alguns p<strong>as</strong>sos da<br />

árvore, vendo o homem-macaco sair do labirinto de galhos caídos.


Uma vez fora, Tarzan estava a menos de três p<strong>as</strong>sos da pantera.<br />

Poderia ter subido nos galhos mais altos d<strong>as</strong> árvores do lado oposto, pois<br />

Sheeta não pode subir às altur<strong>as</strong> a que pode subir o homem-macaco; porém<br />

alguma coisa, talvez um espírito de bravata, o levou a aproximar-se da pantera,<br />

como se quisesse descobrir se qualquer sentimento de gratidão atraía o animal<br />

à sua amizade.<br />

Quando se aproximou, porém, do poderoso gato, este pulou<br />

prudentemente para um lado. O homem-macaco roçou então por ele. Estava<br />

a um palmo da goela gotejante. Não querendo interromper o caminho,<br />

continuou Tarzan a andar pela floresta. A pantera seguiu então atrás dele,<br />

como um cão que acompanha o dono.<br />

Durante muito tempo, Tarzan não poderia dizer se o animal o<br />

estava seguindo por impulso de seus sentimentos amistosos ou simplesmente<br />

porque o espreitava para quando tivesse fome. Teve, porém, finalmente de<br />

acreditar que era o primeiro incentivo o que inspirava a ação do animal.<br />

Di<strong>as</strong> depois, o cheiro de uma corça fez que Tarzan subisse a uma<br />

árvore, e quando deixou cair o laço em volta do pescoço do animal, chamou<br />

Sheeta, emitindo um som semelhante aos que fazia antes, para apaziguar <strong>as</strong><br />

suspeit<strong>as</strong> dela. M<strong>as</strong> o som desta vez foi um pouco mais alto e mais agudo,<br />

igual ao que tinha ouvido às panter<strong>as</strong> depois que matavam algum animal,<br />

quando andavam caçando aos pares.<br />

Qu<strong>as</strong>e imediatamente houve um estalido no mato próximo, e o<br />

corpo comprido e flexível do seu estranho companheiro apareceu.<br />

À vista do corpo de Bara e sentindo o cheiro de sangue, a pantera<br />

soltou um grito agudo, e momentos depois dois animais se estavam<br />

alimentando, lado a lado, com a tenra carne da corça.<br />

Durante vários di<strong>as</strong> este estranho par vagueou pela selva.<br />

Quando um dos dois matava qualquer animal, chamava o outro, e<br />

<strong>as</strong>sim comiam fartamente, muit<strong>as</strong> vezes.


Em certa oc<strong>as</strong>ião, quando estavam jantando a carcaça de um javali,<br />

que Sheeta tinha matado, Numa, o leão, sério e terrível, irrompeu do mato<br />

trançado, bem perto deles.<br />

Com um urro de cólera e ameaçador, atirou-se para af<strong>as</strong>tá-los da<br />

presa. Sheeta pulou para dentro de um mato próximo, enquanto Tarzan subia<br />

para os galhos baixos duma árvore pendente.<br />

Aqui o homem-macaco desatou a sua corda de embira, que trazia<br />

enrolada no pescoço, e quando Numa ficou parado sobre o corpo do javali<br />

com a cabeça erguida em atitude de desafio, Tarzan atirou o laço sinuoso em<br />

volta do pescoço coberto de juba, puxando logo a corda com um movimento<br />

repentino. Ao mesmo tempo que gritava, chamando Sheeta, ia ele içando o<br />

leão para a árvore, até que só <strong>as</strong> pat<strong>as</strong> tr<strong>as</strong>eir<strong>as</strong> ficaram tocando no chão.<br />

Ligeiro, amarrou a corda num grosso galho e quando a pantera,<br />

atendendo ao chamado, apareceu novamente, Tarzan desceu da árvore, ao<br />

lado de Numa, que se debatia furioso, e com a comprida e aguda faca atirou-<br />

se a ele de um lado, enquanto Sheeta, por outro lado, atacava também o leão.<br />

A pantera r<strong>as</strong>gou e despedaçou Numa do lado direito, enquanto o<br />

homem-macaco afundava a faca de pedra do outro lado, de forma que, antes<br />

que o rei dos animais pudesse partir a corda com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> garr<strong>as</strong>, ficou<br />

pendurado, morto e inofensivo, no laço.<br />

Então reboou pela selva um grito simultâneo de du<strong>as</strong> gargant<strong>as</strong><br />

selvagens: o grito de vitória do macaco e o da pantera, unidos num só grito<br />

horrível e medonho.<br />

Quando <strong>as</strong> últim<strong>as</strong> not<strong>as</strong> desapareceram num lamento continuado e<br />

trêmulo, mais ou menos vinte guerreiros pintados, arr<strong>as</strong>tando a sua comprida<br />

canoa de guerra para a praia, pararam para escutar, e olharem fixamente na<br />

direção da selva.


CAPÍTULO 5: Mugambi<br />

Depois de ter percorrido toda a costa da ilha, e feito vári<strong>as</strong><br />

explorações no interior, Tarzan se convencera de que era ali o único ente<br />

humano.<br />

Não achou em parte alguma sinal de que homens tivessem estado,<br />

mesmo temporariamente, na ilha, embora não ignor<strong>as</strong>se que a vegetação<br />

viçosa dos trópicos apaga tudo, até o mais permanente dos monumentos<br />

humanos. Isso acontece tão rapidamente que era bem possível que se<br />

engan<strong>as</strong>se em su<strong>as</strong> conclusões.<br />

No dia seguinte à morte de Numa, Tarzan e Sheeta se encontraram<br />

com a tribo de Akut. À vista da pantera os grandes macacos fugiram, m<strong>as</strong><br />

depois de algum tempo Tarzan conseguiu chamá-los de novo.<br />

Ocorreu-lhe que seria ao menos uma experiência interessante tentar<br />

reconciliar estes inimigos hereditários. Ele bendizia qualquer coisa que lhe<br />

ocup<strong>as</strong>se o tempo e a mente, distraindo-o dos pensamentos tristes que o<br />

preocupavam sempre que ficava sem fazer nada.<br />

Para comunicar o seu plano aos macacos não era dem<strong>as</strong>iadamente<br />

difícil, apesar do seu vocabulário limitado. M<strong>as</strong> gravar no pequeno e malvado<br />

cérebro de Sheeta, a idéia de que teriam de caçar <strong>as</strong>sociados, era uma tarefa<br />

qu<strong>as</strong>e além d<strong>as</strong> forç<strong>as</strong> do homem-macaco.<br />

Tarzan, entre <strong>as</strong> su<strong>as</strong> outr<strong>as</strong> arm<strong>as</strong>, possuía um varapau comprido e<br />

grosso. Depois de amarrar a corda em volta do pescoço da pantera serviu-se<br />

deste instrumento para convencer o animal impertinente de que não devia<br />

atacar <strong>as</strong> grandes criatur<strong>as</strong> cabelud<strong>as</strong> e varonis, que se tinham aproximado,<br />

quando viram para que servia a corda ao redor do pescoço de Sheeta.<br />

Du<strong>as</strong> vezes a pantera se virou contra Tarzan, rosnando para o<br />

homem-macaco; este, porém, bateu-lhe com força no focinho sensível,<br />

inculcando-lhe desta forma um respeitável receio do pau e dos macacos que<br />

estavam atrás de Tarzan.


Seria uma questão a debater se a causa original da sua amizade para<br />

Tarzan ainda estava de qualquer forma bem presente na memória da pantera.<br />

É de crer, entretanto, que essa razão primária, auxiliada e incitada pelo hábito<br />

dos últimos di<strong>as</strong>, tinha concorrido muito para obrigar o animal a tolerar um<br />

tratamento d<strong>as</strong> mãos do homem-macaco, que o teria atirado sobre a garganta<br />

de qualquer outra criatura.<br />

Haveria também outra força compulsória: a da vontade do homem<br />

executando a sua poderosa influência sobre esta criatura de baixa categoria.<br />

Era essa de fato a prova mais forte da supremacia de Tarzan sobre<br />

Sheeta e os outros animais da selva, que haviam, há tempos, caído sob o seu<br />

domínio.<br />

Seja como for, durante alguns di<strong>as</strong>, o homem, a pantera e os<br />

grandes macacos vaguearam pelos seus esconderijos selvagens, lado a lado,<br />

matando juntos e repartindo <strong>as</strong> pres<strong>as</strong> uns com os outros. De todo o bando<br />

feroz e selvagem nenhum, porém, era mais terrível que o poderoso animal de<br />

pele lisa, que tinha sido poucos meses antes uma figura familiar em muitos<br />

salões londrinos.<br />

Às vezes, os animais se separavam para seguir <strong>as</strong> su<strong>as</strong> própri<strong>as</strong><br />

inclinações por uma hora ou um dia. Foi numa dest<strong>as</strong> oc<strong>as</strong>iões, quando o<br />

homem-macaco, depois de vaguear por entre <strong>as</strong> árvores em direção à praia, se<br />

estendeu ao sol quente sobre a areia, que na pequena iminência de um cabo<br />

próximo um par de olhos penetrantes o descobriram.<br />

Por momentos o dono dos olhos contemplou admirado a figura do<br />

homem branco selvagem aquecendo-se aos raios daquele sol quente e tropical.<br />

Em seguida, voltou-se, fazendo sinal para alguém que estava atrás. Logo outro<br />

par de olhos fixou-se, igualmente, no homem-macaco. Não parou aí: outro e<br />

outro, vinte ou mais guerreiros selvagens, horrivelmente enfeitados, estavam<br />

deitados sobre os ventres ao longo da crista do cume, vigiando o estranho de<br />

pele branca.


Como estavam a favor do vento, o cheiro deles não foi sentido pelo<br />

homem-macaco, o qual não percebeu também o avanço cuidadoso deles pela<br />

beira do promontório e por baixo do fértil capim, em direção da praia areenta<br />

onde Tarzan estava.<br />

Eram indivíduos grandes, todos eles, com os seus toucados<br />

bárbaros e <strong>as</strong> car<strong>as</strong> grotescamente pintad<strong>as</strong>, muitos ornamentos de metal e<br />

pen<strong>as</strong> magnificamente colorid<strong>as</strong>, que lhes aumentavam a aparência selvagem e<br />

feroz.<br />

Uma vez ao pé do cume, levantaram-se cautelosamente e dobrados<br />

qu<strong>as</strong>e pelo meio, avançaram silenciosamente para o homem branco que não<br />

dera pela presença deles. Traziam n<strong>as</strong> mãos <strong>as</strong> su<strong>as</strong> pesad<strong>as</strong> clav<strong>as</strong> de guerra,<br />

que agitavam de modo ameaçador.<br />

O sofrimento moral que os tristes pensamentos causavam a Tarzan<br />

teve o efeito de amortecer-lhe <strong>as</strong> faculdades penetrantes e perceptíveis, o que<br />

permitiu que os selvagens avanç<strong>as</strong>sem até qu<strong>as</strong>e perto dele, antes que Tarzan<br />

percebesse que não estava mais sozinho na praia.<br />

M<strong>as</strong> seu espírito e seus músculos estavam acostumados a agir tão<br />

prontamente em conjunto, ao menor alarme, que num salto pôs-se de pé,<br />

encarando os seus inimigos, logo que verificou que havia alguma coisa atrás<br />

dele. Quando rapidamente se pôs de pé os guerreiros saltaram sobre ele com<br />

<strong>as</strong> clav<strong>as</strong> levantad<strong>as</strong> e soltando gritos selvagens. M<strong>as</strong> o primeiro caiu logo<br />

morto a um golpe do comprido e grosso varapau do homem-macaco; e,<br />

rápido, a flexível e vigorosa figura saltou para o meio deles, batendo a torto e<br />

a direito, com tal fúria, poder e precisão, que trouxe um verdadeiro pânico às<br />

fileir<strong>as</strong> dos negros.<br />

Recuaram um pouco, m<strong>as</strong> não fugiram. Reuniram-se então em<br />

confabulação a pequena distância do homem-macaco, que ficou parado com<br />

os braços cruzados e um meio sorriso nos lábios, olhando firme para eles.<br />

Durou pouco esta trégua. Avançaram mais uma vez sobre ele, brandindo <strong>as</strong>


su<strong>as</strong> pesad<strong>as</strong> lanç<strong>as</strong>. Estavam entre Tarzan e a selva, num pequeno<br />

semicírculo. Ao homem-macaco parecia difícil escapar à carga final quando<br />

tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> grandes lanç<strong>as</strong> fossem atirad<strong>as</strong> simultaneamente contra ele, pois ainda<br />

que tent<strong>as</strong>se fugir não havia outro caminho senão varando <strong>as</strong> fileir<strong>as</strong> dos<br />

selvagens.<br />

A sua situação era, na verdade, bem crítica, quando uma idéia lhe<br />

ocorreu, iluminando-lhe o rosto com um largo e tranqüilo sorriso. Os<br />

guerreiros estavam ainda a pequena distância, avançando vagarosamente e<br />

fazendo, como é costume, um barulho horrível com os seus gritos selvagens e<br />

o bater dos pés nus sobre o chão, enquanto pulavam numa fantástica dança de<br />

guerra.<br />

Foi então que o homem-macaco levantou a sua voz, soltando uma<br />

série de gritos selvagens e terríveis. Os negros pararam de repente. Olharam<br />

uns para os outros, intrigados, pois eram gritos tão horríveis, que o que eles<br />

faziam nem se ouvia. Nenhuma garganta humana poderia emitir aquel<strong>as</strong> not<strong>as</strong><br />

bestiais. Teriam disso certeza se com os seus próprios olhos não houvessem<br />

visto o homem branco abrir a boca para soltar aqueles horríveis gritos.<br />

M<strong>as</strong> hesitaram só por um momento. De comum acordo<br />

continuaram o seu avanço fantástico sobre a sua presa. Nesse momento,<br />

porém, um estalido na selva, atrás deles, os fez parar novamente, e quando<br />

viraram para olhar na direção deste novo barulho, surgiu aos seus olhos<br />

<strong>as</strong>sustados uma cena que gelaria o sangue de homens ainda mais corajosos do<br />

que os Wagambis.<br />

Pulando da vegetação entrelaçada da beira da selva irrompeu a<br />

enorme pantera, com os olhos chamejantes e os dentes à mostra. Atrás dela<br />

vinham poderosos macacos cabeludos caminhando rapidamente, meio eretos<br />

sobre <strong>as</strong> pern<strong>as</strong> curt<strong>as</strong> e tort<strong>as</strong>, os braços compridos tocando no chão, com os<br />

nós dos dedos duros sustentando o peso dos seus corpos enquanto se<br />

balançavam, no seu avançar grotesco.


Os animais de Tarzan acudiam em resposta ao seu chamado.<br />

Antes que os Wagambis pudessem recuperar o sangue frio, a<br />

terrível horda avançou sobre eles de um lado e Tarzan dos Macacos, do outro.<br />

Pesad<strong>as</strong> lanç<strong>as</strong> foram jogad<strong>as</strong> e poderos<strong>as</strong> clav<strong>as</strong> de guerra brandid<strong>as</strong>, e<br />

embora alguns macacos caíssem para nunca mais se levantar, da mesma forma<br />

também caíram os Wagambis.<br />

Os dentes cruéis e <strong>as</strong> garr<strong>as</strong> dilacerantes de Sheeta rompiam e<br />

r<strong>as</strong>gavam <strong>as</strong> carnes negr<strong>as</strong>. Os poderosos dentes amarelos de Akut acharam a<br />

jugular de mais de um selvagem de pele lisa, e Tarzan dos Macacos parecia<br />

estar ao mesmo tempo em toda parte, incitando os seus ferozes aliados e<br />

matando muitos com a sua comprida e fina faca.<br />

Em um momento os negros tinham-se dispersado para salvar <strong>as</strong><br />

su<strong>as</strong> vid<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> dos vinte que se arr<strong>as</strong>taram pelos lados cobertos pela grama<br />

do promontório, somente um guerreiro conseguiu escapar à horda, que lhe<br />

tinha matado os companheiros.<br />

Esse era Mugambi, chefe dos Wagambis de Ugambi. Quando<br />

desapareceu no meio de vegetação embaraçada e viçosa sobre o cume,<br />

somente os olhos penetrantes do homem-macaco viram a direção da sua fuga.<br />

Deixando à sua matilha, para se satisfazer, a carne d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> vítim<strong>as</strong><br />

— carne que ele não podia comer — Tarzan dos Macacos perseguiu o único<br />

sobrevivente da sangrenta luta. Pouco além do cume avistou o negro,<br />

correndo aos pulos na direção duma comprida canoa de guerra.<br />

Silencioso como a sombra, o homem-macaco correu atrás do negro<br />

aterrorizado. Na mente do homem branco n<strong>as</strong>ceu um plano novo, despertado<br />

pela vista da canoa de guerra. Se estes homens tinham aportado àquela ilha,<br />

vindos de outra ilha, ou do continente, porque não utilizar a sua embarcação,<br />

a fim de encaminhar-se para o país do qual tinham vindo? Evidentemente era<br />

um país habitado, tendo sem dúvida comunicação oc<strong>as</strong>ional com o<br />

continente, se não fosse mesmo o próprio continente da África.


Uma mão pesada caiu sobre o ombro de Mugambi que se escapava,<br />

antes que percebesse que estava sendo perseguido. Quando se virou para lutar<br />

com o seu <strong>as</strong>saltante, dedos de gigante apertaram-lhe os pulsos e atiraram-no<br />

por terra, cavalgando-lhe Tarzan o corpo, antes que ele pudesse defender-se.<br />

Na linguagem da Costa Ocidental, Tarzan falou ao homem:<br />

— Quem és tu? — perguntou ele.<br />

— Mugambi, chefe dos Wagambis — respondeu o negro.<br />

— Pouparei a tua vida — disse Tarzan — se prometer ajudar-me a<br />

deixar esta ilha. Que responde?<br />

— Eu te auxiliarei — respondeu Mugambi. — M<strong>as</strong> agora, que<br />

mat<strong>as</strong>te todos os meus guerreiros, não sei se eu mesmo posso deixar teu país,<br />

pois não haverá ninguém para manejar os remos, e sem remadores não<br />

podemos atravessar o mar.<br />

Tarzan levantou-se, permitindo que o prisioneiro fic<strong>as</strong>se de pé. Este<br />

era um exemplar magnífico da raça negra — um corpo igual em estatura ao do<br />

homem branco que o encarava.<br />

— Vem comigo — disse o homem-macaco, e voltou para trás na<br />

direção de onde podiam ouvir o rosnar e grunhir da matilha que se regalava.<br />

Mugambi acompanhou-o.<br />

— Eles nos matarão — disse o negro.<br />

— Penso que não — replicou Tarzan. São meus amigos.<br />

O negro ainda hesitou, receoso de aproximar-se d<strong>as</strong> terríveis<br />

criatur<strong>as</strong> que se estavam regalando com os corpos dos seus guerreiros, m<strong>as</strong><br />

Tarzan forçou-o a acompanhá-lo, e logo os dois saíram da selva, mostrando-<br />

se claramente. À vista dos homens, os animais olharam para cima, rosnando<br />

ameaçadoramente. M<strong>as</strong> Tarzan entrou no meio deles, puxando pela mão o<br />

trêmulo Wagambi.<br />

Como tinha ensinado os macacos a aceitarem Sheeta, <strong>as</strong>sim<br />

também os ensinou a adotar Mugambi, e com muito mais facilidade. M<strong>as</strong>


Sheeta não podia compreender que, tendo sido chamada para devorar os<br />

guerreiros de Mugambi, não lhe fosse permitido proceder da mesma forma<br />

com Mugambi.<br />

Todavia, como já estava satisfeita, contentou-se em andar à volta do<br />

selvagem cheio de terror, rosnando baixo e ameaçadoramente, com os olhos<br />

flamejantes e malignos fixos no negro.<br />

Mugambi, de sua parte, agarrara-se a Tarzan; o homem-macaco mal<br />

podia conter um sorriso pela condição miserável a que o medo o tinha<br />

reduzido. Finalmente o homem branco tomou a pantera pelo pescoço, e<br />

puxando-a para bem perto do Wagambi, dava-lhe uma forte pancada sobre o<br />

nariz cada vez que ela rosnava para o estranho.<br />

À vista disso — um homem espancando com <strong>as</strong> mãos desarmad<strong>as</strong><br />

um dos seres mais implacáveis e ferozes da fauna carnívora da floresta — os<br />

olhos de Mugambi qu<strong>as</strong>e lhe saltavam d<strong>as</strong> órbit<strong>as</strong>, tão grande o seu espanto.<br />

Tomou-se de respeito pelo grande homem branco que o tinha feito<br />

prisioneiro. Era mesmo mais do que respeito: qu<strong>as</strong>e adoração.<br />

A educação de Sheeta progrediu tão bem que em pouco tempo<br />

Mugambi deixou de ser o objeto da sua atenção faminta, e o negro sentia-se<br />

um pouco mais tranqüilo na sua companhia.<br />

Dizer que Mugambi estava inteiramente satisfeito ou<br />

despreocupado nest<strong>as</strong> nov<strong>as</strong> condições, não seria bem a verdade. Os seus<br />

olhos rolavam sempre apreensivos de um para outro lado, quando acontecia<br />

ora, um, ora outro do bando feroz chegar perto dele. Pode-se mesmo dizer<br />

que a maior parte do tempo o que mais se via dele era principalmente o<br />

branco dos olhos.<br />

Juntos, Tarzan e Mugambi, com Sheeta e Akut, ficaram de<br />

emboscada para apanhar a corça, e quando, a uma palavra do homem-macaco<br />

os quatro pularam sobre o animal <strong>as</strong>sustado, o negro teve a certeza que a


pobre criatura morrera de susto antes mesmo de ter sido tocada por qualquer<br />

dos grandes animais.<br />

Mugambi preparou fogo e cozinhou a sua porção da caça. M<strong>as</strong><br />

Tarzan, Sheeta e Akut r<strong>as</strong>garam <strong>as</strong> deles, cru<strong>as</strong>, com os dentes agudos,<br />

rosnando entre si, quando algum parecia querer tomar a parte do outro.<br />

Não era, afinal de cont<strong>as</strong>, estranho que os modos do homem-<br />

macaco se parecessem mais com os dos animais, do que com os dos negros<br />

selvagens. Somos, todos nós, escravos do hábito e quando a necessidade de<br />

instruir-nos em hábitos superiores deixa de existir em nós, caímos natural e<br />

facilmente nos modos e costumes, que existem dentro de nós atavicamente.<br />

Mugambi, desde criança, não tinha comido carne que não estivesse<br />

cozida; ao p<strong>as</strong>so que Tarzan, por seu lado, nunca tinha experimentado comida<br />

cozida de qualquer espécie até chegar qu<strong>as</strong>e à idade adulta; só nos últimos três<br />

ou quatro anos é que p<strong>as</strong>sara a comer carne cozida. Não foi somente o hábito<br />

de qu<strong>as</strong>e toda a sua vida que o incitou a comê-la crua. Foi também o desejo de<br />

seu paladar. Para ele carne cozida era carne estragada, em comparação com a<br />

carne suculenta e sumarenta duma caça recente e quente ainda de vida.<br />

Que pudesse comer com prazer carne crua, que ele mesmo<br />

enterrara seman<strong>as</strong> antes, e que cheg<strong>as</strong>se a apreciar roedores e bichos nojentos,<br />

parece a nós outros, que temos sido sempre civilizados, um fato revoltante.<br />

M<strong>as</strong>, se nós tivéssemos aprendido em criança a comer est<strong>as</strong> cois<strong>as</strong>, e<br />

tivéssemos visto todos em torno de nós comê-l<strong>as</strong> também, não nos<br />

pareceriam agora mais nojent<strong>as</strong> do que muit<strong>as</strong> d<strong>as</strong> noss<strong>as</strong> maiores gulodices,<br />

que um canibal selvagem africano olharia com repugnância e às quais torceria<br />

o nariz.<br />

Há, por exemplo, uma tribo n<strong>as</strong> vizinhanç<strong>as</strong> do Lago Rudolph, que<br />

não come nem carneiro nem gado, embora os seus vizinhos façam isso todos<br />

os di<strong>as</strong>. Próximo existe outra tribo que se regala com carne de burro — o que


parece um costume revoltante às tribos que a cercam e que não seriam<br />

capazes de fazer isso.<br />

Quem poderá dizer que é bom comer caracóis, ostr<strong>as</strong>, pern<strong>as</strong> de<br />

rãs, m<strong>as</strong> é nojento comer bichos e besouros? Por ac<strong>as</strong>o ostr<strong>as</strong> cru<strong>as</strong>, pat<strong>as</strong> de<br />

bois e rabos, são menos revoltantes que a carne limpa e tenra duma corça, que<br />

se acaba de matar?<br />

Tarzan ocupou-se nos di<strong>as</strong> seguintes em tecer uma vela de c<strong>as</strong>c<strong>as</strong><br />

de árvore com a qual ia equipar a canoa. Desanimara de poder ensinar os<br />

macacos a manejar os remos, embora conseguisse fazer alguns deles<br />

embarcarem na frágil embarcação, enquanto ele e Mugambi remavam por<br />

dentro do recife, onde a água estava calma.<br />

Durante estes p<strong>as</strong>seios tinham colocado remos n<strong>as</strong> mãos dos<br />

macacos, para os fazer imitar os movimentos dele e de Mugambi. M<strong>as</strong> era-lhes<br />

tão difícil concentrarem muito tempo a atenção em qualquer coisa, que logo<br />

percebeu que levariam seman<strong>as</strong> de paciente treinamento, antes que pudessem<br />

fazer qualquer uso efetivo de sua aprendizagem, c<strong>as</strong>o realmente a adquirissem.<br />

Havia, contudo, uma exceção: era Akut. Desde o princípio<br />

demonstrou real interesse por esse novo esporte. Mostrou um grau de<br />

inteligência muito mais alto que o obtido por qualquer dos da tribo. Ele<br />

parecia compreender a utilidade dos remos, e quando Tarzan notou esse fato<br />

esforçou-se para explicar na pobre linguagem do antropóide como os remos<br />

podiam ser usados com vantagem.<br />

Por Mugambi soube Tarzan que o continente ficava a pouca<br />

distância da ilha. Concluiu que os guerreiros Wagambis se tinham aventurado<br />

longe demais em sua frágil embarcação, e, apanhados pela maré forte e um<br />

vento rijo de terra, foram arr<strong>as</strong>tados até perderem esta de vista. Depois de<br />

remarem uma noite inteira, pensando que iam na direção do continente, viram<br />

a ilha ao levantar do sol, e, ainda supondo que fosse o continente, saudaram-


na com alegria. O próprio Mugambi só soube que era uma ilha quando Tarzan<br />

lho disse.<br />

O chefe dos Wagambis estava em dúvida, quanto ao êxito da vela,<br />

pois nunca tinha visto usar tal artifício. O seu país era situado muito acima do<br />

largo rio de Ugambi, e essa fora a primeira oc<strong>as</strong>ião que ele e alguns de sua<br />

tribo fizeram caminho para o oceano.<br />

Tarzan, contudo, estava certo de que, se apanh<strong>as</strong>se bom vento de<br />

oeste, poderia fazer navegar a pequena embarcação na direção do continente.<br />

Em todo c<strong>as</strong>o, decidiu que seria preferível morrer no caminho a ficar<br />

indefinidamente na ilha que, de resto, não figurava em nenhum mapa<br />

geográfico, à qual não havia por isso probabilidade alguma de vir algum navio.<br />

Foi <strong>as</strong>sim que, quando na boa direção soprou o primeiro vento<br />

favorável, deu ele início à viagem, levando consigo uma tripulação, a mais<br />

estranha e mais selvagem de que jamais se teve notícia.<br />

Mugambi e Akut foram com ele. Com ele foram também Sheeta, a<br />

pantera, e uma dúzia de grandes macacos da tribo de Akut.


CAPÍTULO 6: Uma tripulação horrenda<br />

A canoa de guerra com a sua carga selvagem movia-se<br />

vagarosamente, na direção da abertura do recife pela qual deveria p<strong>as</strong>sar, a fim<br />

de alcançar o alto mar. Tarzan, Mugambi e Akut manejavam os remos, pois a<br />

proximidade da praia fazia que o vento do oeste embatesse ainda frouxo na<br />

pequena vela.<br />

Sheeta encolhia-se na proa aos pés do homem-macaco, pois<br />

parecera melhor a Tarzan conservar sempre o bicho feroz af<strong>as</strong>tado dos outros<br />

membros da companhia quanto fosse possível, porque não seria necessário<br />

grande provocação para fazê-lo lançar-se à garganta de qualquer, mesmo do<br />

homem branco, a quem ele evidentemente considerava como o seu chefe.<br />

Na popa estava Mugambi, e defronte dele acaçapava-se Akut. Entre<br />

Akut e Tarzan, os doze macacos cabeludos estavam sentados de cócor<strong>as</strong><br />

pestanejando, e voltando de vez em quando os olhos com saudades para a<br />

praia.<br />

Tudo foi bem até que a canoa transpôs o recife. A partir daí a brisa<br />

bateu na vela, fazendo com que a rude embarcação jog<strong>as</strong>se sobre <strong>as</strong> ond<strong>as</strong>,<br />

que aumentavam cada vez mais com o af<strong>as</strong>tamento da praia.<br />

A agitação da canoa fez com que os macacos fic<strong>as</strong>sem cheios de<br />

terror. Primeiramente se mostraram inquietos e começaram a se queixar e<br />

choramingar. Com dificuldade Akut sossegou-os durante algum tempo; m<strong>as</strong><br />

quando uma grande onda bateu na embarcação simultaneamente com uma<br />

pequena rajada de vento, o terror deles excedeu todos os limites, e pondo-se<br />

imediatamente de pé, qu<strong>as</strong>e viraram a canoa antes que Akut e Tarzan, juntos,<br />

pudessem sossegá-los. Finalmente a calma foi restabelecida, e os macacos<br />

acostumaram-se aos estranhos movimentos da sua embarcação. Acabaram por<br />

não dar mais trabalho algum.<br />

A viagem daí por diante se fez sem novidade, o vento continuou<br />

firme, e depois de dez hor<strong>as</strong> de navegação, <strong>as</strong> sombr<strong>as</strong> longínqu<strong>as</strong> da costa


apareceram pela proa, diante dos olhos penetrantes do homem-macaco. Era<br />

escuro demais para distinguir se tinham se aproximado da foz do Ugambi. Por<br />

isso Tarzan entrou pelo recife, no porto mais próximo, para esperar a<br />

madrugada.<br />

Assim que a embarcação tocou na praia rodou de bordo, e virou,<br />

com toda a sua tripulação, lutando todos como loucos para alcançar a terra<br />

firme.<br />

Outra onda os rolou repetid<strong>as</strong> vezes; m<strong>as</strong> todos conseguiram<br />

arr<strong>as</strong>tar-se para a praia, e um momento depois a feia embarcação era também<br />

atirada ao lado deles.<br />

Durante o resto da noite os macacos acocoraram-se bem juntos uns<br />

dos outros para se aquecerem, enquanto Mugambi fez perto deles uma<br />

fogueira junto da qual se agacharam para buscar calor. Tarzan e Sheeta, apesar<br />

de tudo, eram de outra opinião, pois nem um nem outro temiam a noite na<br />

selva, e o desejo forte da fome fez com que ambos partissem para o escuro da<br />

floresta, à procura de caça.<br />

Caminhavam, lado a lado, quando havia lugar para os dois andarem<br />

juntos. Nos outros c<strong>as</strong>os, andavam separados, um atrás e outro na frente. Foi<br />

Tarzan que primeiro sentiu o cheiro da carne — um búfalo — e logo os dois<br />

se aproximaram, sorrateiramente, do animal que dormia no meio de um<br />

bambuzal, perto de um rio.<br />

Eles foram-se chegando cada vez mais para perto do búfalo. Sheeta<br />

ia pela direita e Tarzan pela esquerda. Tinham já vári<strong>as</strong> vezes caçado juntos, de<br />

forma que sabiam trabalhar de comum acordo. Tinham um modo de rosnar<br />

baixo, que lhes servia como sinal.<br />

Por um momento ficaram bem quietos perto da presa. De repente,<br />

a um sinal do homem-macaco, Sheeta lançou-se sobre <strong>as</strong> grandes cost<strong>as</strong> do<br />

búfalo, enterrando os fortes dentes no pescoço do bicho. Instantaneamente o<br />

bruto pôs-se de pé, saltando, com um berro de dor e raiva; ao mesmo tempo


Tarzan precipitou-se sobre o seu lado esquerdo com a faca de pedra, ferindo-<br />

o repetidamente na paleta.<br />

Uma d<strong>as</strong> mãos do homem-macaco agarrou a crina grossa quando o<br />

bruto se pôs a correr como um louco no meio do bambuzal.<br />

Sheeta agarrou-se ferozmente ao pescoço e às cost<strong>as</strong> da vítima<br />

mordendo-a bem fundo, procurando alcançar-lhe a espinha.<br />

O bruto, berrando sempre, arr<strong>as</strong>tou por uns cem metros os seus<br />

dois antagonist<strong>as</strong> selvagens, até que finalmente a lâmina da faca de Tarzan<br />

encontrou-lhe o coração. Com um berro final tombou de cabeça para baixo<br />

sobre a terra. Então Tarzan e Sheeta regalaram-se até ficarem satisfeitos.<br />

Depois da refeição os dois se encolheram juntos um do outro. A<br />

cabeça do homem descansava sobre um dos flancos mosqueados da pantera.<br />

Logo depois da aurora acordaram e comeram de novo. Voltaram então à<br />

praia, a fim de que Tarzan pudesse conduzir o resto da caça ao bando.<br />

Quando acabaram a refeição os brutos puseram-se a dormir. Tarzan<br />

e Mugambi partiram à procura do rio Ugambi. Mal tinham andado cem<br />

metros chegaram de repente perto de um rio, que o negro logo reconheceu<br />

como sendo aquele pelo qual ele e os seus guerreiros tinham descido para o<br />

mar quando fizeram a sua mal afortunada expedição.<br />

Os dois seguiram o rio até o oceano. Descobriram que<br />

desembocava em uma baía que não distava mais de uma milha do ponto da<br />

praia em que a canoa tinha sido arremessada na véspera.<br />

Tarzan ficou satisfeito com a descoberta, pois sabia que na<br />

vizinhança de um grande rio encontraria decerto indígen<strong>as</strong>, e de alguns destes<br />

tinha alguma esperança de obter notíci<strong>as</strong> de Rokoff e da criança, pois tinha<br />

qu<strong>as</strong>e certeza que o russo se livraria do menino tão depressa quanto possível,<br />

depois de ter-se livrado de Tarzan.<br />

Este e Mugambi empurraram a canoa para o mar. Era uma façanha<br />

bem difícil, por causa da arrebentação d<strong>as</strong> ond<strong>as</strong> que se atiravam


continuamente sobre a praia. M<strong>as</strong> afinal conseguiram o que desejavam e<br />

puseram-se a remar pela costa, na direção da foz do Ugambi.<br />

Aí sentiram considerável dificuldade em forçar a entrada contra a<br />

corrente e a vazante da maré; m<strong>as</strong> aproveitando-se dos remansos,<br />

conseguiram ao pôr do sol chegar a um ponto qu<strong>as</strong>e defronte do lugar onde<br />

tinham deixado a dormir o bando dos animais.<br />

Amarrando bem a embarcação a um galho pendente, caminharam<br />

os dois para a selva, onde se encontraram logo com alguns dos macacos<br />

comendo fruta, um pouco além do bambuzal onde tinha caído o búfalo.<br />

Sheeta não aparecia, e nem voltou naquela noite. Tarzan pensou que ela<br />

estivesse vagueando, à procura dos da sua própria espécie.<br />

Cedo, no dia seguinte, o homem-macaco conduziu o bando para o<br />

rio, e enquanto caminhava emitia uma série de gritos agudos. Logo, de muito<br />

longe e fracamente veio um grito como resposta, e meia hora depois o corpo<br />

flexível de Sheeta apareceu de um salto no lugar em que os do bando estavam<br />

embarcando com cuidado na canoa.<br />

O grande animal, com <strong>as</strong> cost<strong>as</strong> arcad<strong>as</strong> e rosnando como um gato<br />

contente, roçou-se contra o homem-macaco. A uma palavra deste, pulou<br />

agilmente para o seu primitivo lugar na proa da canoa.<br />

Quando todos estavam em seus lugares, descobriram que faltavam<br />

dois dos macacos de Akut, e embora tanto o macaco-rei como Tarzan os<br />

cham<strong>as</strong>sem durante qu<strong>as</strong>e uma hora, não responderam. Não foi possível<br />

esperá-los mais. A canoa partiu sem eles. Como estes dois que faltavam eram<br />

precisamente os que tinham manifestado menos desejo de acompanhar a<br />

expedição, e os que mais tinham sofrido de susto durante a viagem, Tarzan<br />

concluiu que tinham preferido fugir a viajar de novo na canoa.<br />

Quando o bando já aproava para a beira do rio, pouco depois do<br />

meio-dia, à procura de comida, um selvagem magro e nu observou-os durante<br />

algum tempo por detrás do abrigo de ramos que margeavam <strong>as</strong> bord<strong>as</strong> do rio.


Pouco depois desapareceu, rio acima, antes que qualquer dos que iam na<br />

canoa o descobrisse. Pulou, como um veado, ao longo da vereda estreita, até<br />

que ansioso de transmitir <strong>as</strong> notíci<strong>as</strong> entrou a correr por uma aldeia indígena,<br />

algum<strong>as</strong> milh<strong>as</strong> acima do ponto, no qual Tarzan e seu bando tinham parado<br />

para caçar.<br />

— Outro homem branco vem aí! — gritou para o chefe que estava<br />

agachado diante da entrada de sua choupana circular. — Outro homem<br />

branco, e com ele muitos guerreiros. Vêm numa grande canoa de guerra para<br />

matar e roubar, como fez aquele outro de barba negra que acaba de nos<br />

deixar.<br />

Kaviri pôs-se logo de pé. Ele tinha tido bem recentemente uma<br />

prova do que valiam os homens brancos, e seu coração de selvagem estava<br />

cheio de amargura e ódio. Minutos depois se ouvia o barulho dos tambores de<br />

guerra na aldeia, chamando os caçadores da floresta e os lavradores dos<br />

campos.<br />

Sete cano<strong>as</strong> de guerra foram descid<strong>as</strong> e guarnecid<strong>as</strong> por guerreiros<br />

com <strong>as</strong> car<strong>as</strong> pintad<strong>as</strong> e <strong>as</strong> cabeç<strong>as</strong> cobert<strong>as</strong> de pen<strong>as</strong>. Lanç<strong>as</strong> comprid<strong>as</strong><br />

enchiam os rudes barcos de guerra, que deslizavam silenciosamente, impelidos<br />

por músculos gigantescos que retesavam <strong>as</strong> peles de ébano resplandecentes.<br />

Em caminho, não rufaram mais os tambores, nem tocaram a<br />

trombeta indígena. Kaviri era um guerreiro <strong>as</strong>tuto e estava disposto a não<br />

correr perigos inúteis. Desceria silenciosamente com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> sete cano<strong>as</strong> sobre<br />

a do homem branco, e antes que <strong>as</strong> espingard<strong>as</strong> desse pudessem infligir algum<br />

dano ao seu povo teria vencido o inimigo pela força do número.<br />

A canoa de Kaviri ia na frente d<strong>as</strong> outr<strong>as</strong>, a pequena distância,<br />

quando ao fazer uma curva rápida do rio, arrebatada pela correnteza, chegou<br />

de repente perto daquilo que Kaviri procurava.<br />

Tão perto estavam <strong>as</strong> du<strong>as</strong> cano<strong>as</strong>, que o negro somente teve<br />

tempo de notar a cara branca na proa da embarcação. Antes que <strong>as</strong> du<strong>as</strong>


embarcações se toc<strong>as</strong>sem já os homens estavam de pé, gritando como diabos<br />

loucos, apontando su<strong>as</strong> long<strong>as</strong> lanç<strong>as</strong> contra os tripulantes da outra canoa.<br />

M<strong>as</strong> um momento depois, quando Kaviri pôde verificar a natureza<br />

da tripulação que guarnecia a canoa do homem branco, teria dado certamente<br />

tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> cont<strong>as</strong> e arame de ferro que possuía para estar a salvo, em sua aldeia<br />

distante.<br />

Mal se tinham abordado <strong>as</strong> du<strong>as</strong> embarcações quando os macacos<br />

horrorosos de Akut se levantaram, rosnando e gritando, no fundo da canoa, e,<br />

com os braços compridos e cabeludos bem estendidos, tiraram <strong>as</strong> lanç<strong>as</strong><br />

ameaçador<strong>as</strong> d<strong>as</strong> mãos dos guerreiros de Kaviri.<br />

Os negros foram acometidos de terror, m<strong>as</strong> não havia outra coisa a<br />

fazer senão combater. Rapidamente <strong>as</strong> outr<strong>as</strong> cano<strong>as</strong> de guerra desceram<br />

sobre <strong>as</strong> du<strong>as</strong> embarcações. As tripulações estavam ansios<strong>as</strong> para lutar, pois<br />

julgavam que os seus inimigos eram homens brancos e remadores indígen<strong>as</strong>.<br />

Juntaram-se ao redor da embarcação de Tarzan. M<strong>as</strong> quando viram<br />

a natureza do inimigo, tod<strong>as</strong> menos uma viraram de bordo, remando<br />

rapidamente rio acima. A que ficou achegara-se muito perto da embarcação<br />

do homem-macaco antes que a tripulação percebesse que os seus<br />

companheiros estavam lutando contra demônios em vez de homens. Quando<br />

<strong>as</strong> du<strong>as</strong> cano<strong>as</strong> se tocaram Tarzan disse algum<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> baixinho a Sheeta e<br />

Akut, de forma que antes que os guerreiros atacantes pudessem retirar-se,<br />

saltou-lhes em cima, com um grito de fazer gelar o sangue n<strong>as</strong> vei<strong>as</strong>, uma<br />

enorme pantera, e pela outra extremidade da canoa subiu um grande macaco.<br />

De um lado a pantera fez um estrago horrível, com <strong>as</strong> su<strong>as</strong><br />

poderos<strong>as</strong> garr<strong>as</strong> e dentes compridos e agudos, enquanto Akut na outra<br />

extremidade afundava os seus dentes caninos amarelos nos pescoços daqueles<br />

que lhe chegavam ao alcance, atirando os negros cheios de terror para fora da<br />

canoa enquanto ele abria caminho para o centro dela.


Kaviri estava tão ocupado com os demônios que tinham entrado<br />

em sua própria embarcação que não podia oferecer nenhum auxílio aos<br />

guerreiros da outra. Um diabo branco gigantesco tinha arrancado a lança de<br />

Kaviri como se este, o poderoso selvagem, fosse um recém-n<strong>as</strong>cido. Monstros<br />

cabeludos estavam subjugando os seus homens que lutavam, e um negro,<br />

também chefe como ele, estava lutando ombro a ombro com o bando<br />

horroroso que se lhe opunha.<br />

Kaviri lutou corajosamente contra o seu antagonista, pois sentia que<br />

a morte já o estava chamando, e <strong>as</strong>sim o menos que podia fazer era vender a<br />

sua vida tão caro quanto fosse possível; logo, porém, se convenceu que o seu<br />

maior esforço era completamente inútil contra os músculos e agilidade<br />

daquela sobre-humana criatura, a qual, por fim, agarrando-o pelo pescoço, o<br />

derrubou no fundo da canoa.<br />

A cabeça de Kaviri começou a girar. Os objetos dançavam-lhe<br />

confusos e obscuros diante dos olhos. Sentiu uma grande dor no peito e,<br />

acreditando chegada a sua última hora, perdeu os sentidos.<br />

Quando abriu os olhos, viu com muita surpresa que não estava<br />

morto. Jazia fortemente amarrado, no fundo da sua própria canoa. Uma<br />

grande pantera estava sentada, olhando para ele.<br />

Kaviri estremeceu e fechou os olhos outra vez, esperando que o<br />

animal feroz salt<strong>as</strong>se sobre ele e acab<strong>as</strong>se de vez com a sua miséria e o seu<br />

terror.<br />

Depois dum momento, como verific<strong>as</strong>se que nenhum dente<br />

dilacerante se lhe tinha cravado no corpo trêmulo, mais uma vez arriscou-se a<br />

abrir os olhos. Além da pantera, viu ajoelhado perto dele o gigante branco,<br />

que o tinha subjugado.<br />

O homem estava manejando um remo, enquanto, logo atrás, Kaviri<br />

viu alguns dos seus próprios guerreiros ocupados no mesmo trabalho. Atrás<br />

deles, de cócor<strong>as</strong>, estavam diversos macacos cabeludos.


palavra:<br />

Tarzan, vendo que o chefe tinha recobrado os sentidos, dirigiu-lhe a<br />

— Os teus guerreiros dizem-me que és o chefe de um povo<br />

numeroso e que o teu nome é Kaviri.<br />

— Sim, respondeu o negro.<br />

— Por que me atac<strong>as</strong>te? Eu vim em paz.<br />

— Também o outro homem branco veio em paz há três meses,<br />

respondeu Kaviri; e depois de lhe termos trazido como presentes um cabrito,<br />

mandioca e leite, ele nos atacou com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> espingard<strong>as</strong> e matou muitos de<br />

minha gente. Só então se foi embora, levando todos os nossos cabritos e<br />

muitos dos nossos rapazes e mulheres.<br />

— Eu não sou igual a esse outro homem branco, replicou Tarzan.<br />

Não te haveria feito mal se não me tivesses atacado. Dize-me como era a cara<br />

desse homem mau. Eu estou procurando um que foi também perverso<br />

comigo. Talvez seja o mesmo.<br />

— Era um homem mal-encarado, com uma grande barba negra; era<br />

muito, muito ruim — sim, muito ruim.<br />

— Não havia uma criança branca com ele? perguntou Tarzan, com<br />

o coração ansioso, enquanto esperava a resposta do negro.<br />

— Não — replicou Kaviri — a criança branca não estava na<br />

companhia desse homem — estava na companhia dos outros.<br />

— Dos outros! exclamou Tarzan — Que outros?<br />

— Com aqueles que o homem branco muito ruim estava<br />

perseguindo; havia um homem branco, uma mulher e uma criança, com seis<br />

carregadores Mosul<strong>as</strong>. Eles subiram o rio três di<strong>as</strong> antes de o fazer também o<br />

homem branco muito ruim. Penso que estavam fugindo dele.<br />

Um homem branco, uma mulher, e uma criança! Tarzan ficou<br />

perplexo. A criança deveria ser o seu filho Jack; m<strong>as</strong> quem poderiam ser a<br />

mulher e o homem? Seria possível que um dos companheiros de Rokoff


tivesse conspirado com alguma mulher — que houvesse acompanhado o<br />

russo — para roubar-lhe a criança?<br />

Se <strong>as</strong>sim era, eles tinham sem dúvida resolvido levar a criança de<br />

novo para a civilização, e aí requererem uma recompensa ou conservarem<br />

prisioneiro o menino, para negociarem depois o seu resgate.<br />

M<strong>as</strong> agora que Rokoff tinha conseguido persegui-los no interior,<br />

pelo rio selvagem acima, ele talvez os alcançaria, a não ser que, como era mais<br />

provável, fossem capturados e mortos pelos mesmos canibais mais acima do<br />

Ugambi, aos quais (Tarzan agora estava convencido) era intenção de Rokoff<br />

entregar a criança.<br />

Enquanto Tarzan falava a Kaviri, <strong>as</strong> cano<strong>as</strong> tinham subido<br />

seguidamente rio acima na direção da aldeia do chefe. Os guerreiros de Kaviri<br />

manejavam os remos n<strong>as</strong> três cano<strong>as</strong> lançando de soslaio olhares de pavor aos<br />

seus horríveis p<strong>as</strong>sageiros. Três dos macacos de Akut haviam sido mortos no<br />

combate, m<strong>as</strong> restavam ainda, com Akut, oito dos medonhos animais, e havia<br />

Sheeta, a pantera, Tarzan e Mugambi.<br />

Os guerreiros de Kaviri estavam certos de nunca ter visto uma<br />

tripulação tão horrível. Esperavam a qualquer momento que esses animais<br />

pul<strong>as</strong>sem para cima deles e os dilacer<strong>as</strong>sem. De fato, tudo quanto Tarzan,<br />

Mugambi e Akut procuravam evitar era que estes brutos mal-humorados<br />

mordessem os corpos nus e brilhantes que roçavam de vez em quando contra<br />

eles com os movimentos dos remadores, cujo próprio medo incitava <strong>as</strong> fer<strong>as</strong>.<br />

No acampamento de Kaviri demorou-se Tarzan apen<strong>as</strong> o tempo<br />

suficiente para comer o que os negros lhe forneceram, e arranjar com o chefe<br />

uma dúzia de homens que manej<strong>as</strong>sem os remos da canoa.<br />

Kaviri consentira e conformava-se de boa mente com qualquer<br />

pedido que o homem-macaco lhe pudesse fazer, pois <strong>as</strong>sim apressava a<br />

retirada do bando horrível. M<strong>as</strong> era mais fácil prometer homens do que<br />

fornecê-los, pois quando o seu povo soube d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> intenções, aqueles que


ainda não tinham fugido ganharam sem perda de tempo a floresta, de modo<br />

que, quando Kaviri se virou para indicar os que deviam acompanhar Tarzan,<br />

viu com espanto que era o único membro da sua tribo que se achava na aldeia.<br />

Tarzan não pôde deixar de sorrir.<br />

— Eles não parecem sentir grande desejo de nos acompanhar —<br />

disse Tarzan; — m<strong>as</strong> fica quieto aqui, Kaviri, e logo verás teu povo acorrer<br />

para o teu lado.<br />

Então o homem-macaco levantou-se e, chamando o seu bando,<br />

mandou que Mugambi fic<strong>as</strong>se com Kaviri, e desapareceu na selva com Sheeta<br />

e os macacos.<br />

Durante meia hora, o silêncio da floresta foi apen<strong>as</strong> interrompido<br />

pelos sons costumeiros da vida fértil que ainda mais aumentam a sua triste<br />

solidão. Kaviri e Mugambi ficaram sozinhos na aldeia cercada de estac<strong>as</strong>,<br />

esperando.<br />

Súbito, de grande distância, veio um barulho horrível. Mugambi<br />

reconheceu o esquisito rugido do homem-macaco. Imediatamente de<br />

diferentes pontos do mato se levantaram outros gritos, pontuados de vez em<br />

quando pelo urro terrível duma pantera faminta.


CAPÍTULO 7: Traído<br />

Os dois selvagens, Kaviri e Mugambi, de cócor<strong>as</strong> diante da entrada<br />

da choupana de Kaviri entreolharam-se. Kaviri mal disfarçava o pavor.<br />

— Que é? — murmurou.<br />

— É Tarzan e su<strong>as</strong> fer<strong>as</strong> — respondeu Mugambi. — M<strong>as</strong> o que<br />

estão fazendo não sei, a não ser que estejam devorando o teu povo que fugiu.<br />

Kaviri estremeceu e voltou os olhos com terror na direção da selva.<br />

Em toda a sua longa vida na floresta selvagem nunca tinha ouvido barulho tão<br />

pavoroso e terrível.<br />

Os sons aproximavam-se cada vez mais, e agora de mistura com os<br />

gritos <strong>as</strong>sustados de mulheres, de crianç<strong>as</strong> e de homens.<br />

Durante vinte longos minutos os gritos horríveis continuaram, até<br />

que pareciam bem pertinho da estacada. Kaviri levantou-se para fugir. M<strong>as</strong><br />

Mugambi segurou-o, pois tal tinha sido a ordem de Tarzan.<br />

Um momento mais, e uma horda de indígen<strong>as</strong> amedrontados saiu<br />

correndo da selva, buscando a proteção d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> choupan<strong>as</strong>, correndo como<br />

carneiros <strong>as</strong>sustados; atrás deles, enxotando-os, como podiam ser enxotad<strong>as</strong><br />

ovelh<strong>as</strong>, vinham Tarzan, Sheeta e os horríveis macacos de Akut.<br />

Tarzan parou diante de Kaviri com o seu antigo sorriso nos lábios.<br />

— O teu povo voltou, disse ele. Agora podes escolher aqueles que<br />

têm de me acompanhar e remar na minha canoa.<br />

Tremendo, Kaviri ordenou que o seu povo saísse d<strong>as</strong> su<strong>as</strong><br />

choupan<strong>as</strong>. M<strong>as</strong> ninguém atendeu às ordens do chefe.<br />

— Dize-lhes, explicou Tarzan, que se não vierem mandarei <strong>as</strong><br />

minh<strong>as</strong> fer<strong>as</strong> atrás deles.<br />

Kaviri fez o que o outro lhe dissera, e num instante toda a<br />

população da aldeia saiu d<strong>as</strong> choupan<strong>as</strong>. Com os olhos <strong>as</strong>sustados, ess<strong>as</strong><br />

criatur<strong>as</strong> selvagens, que vagueavam na rua da aldeia, olhavam para um e outro<br />

lado.


Kaviri designou logo uma dúzia de guerreiros para acompanhar<br />

Tarzan. Os pobres homens ficaram qu<strong>as</strong>e brancos de terror à idéia de terem<br />

de ficar tão perto da pantera e dos macacos, no estreito limite d<strong>as</strong> cano<strong>as</strong>.<br />

Quando, porém, Kaviri lhes explicou que não havia meio de<br />

escapar e que Tarzan os perseguiria com a sua horda horrível se tent<strong>as</strong>sem<br />

fugir ao seu dever, decidiram-se finalmente a marchar, tristes, para o rio e<br />

tomaram os seus lugares na canoa.<br />

Foi com um suspiro de alívio que o chefe viu a tripulação<br />

desaparecer na curva de um promontório, a pequena distância, rio acima.<br />

Durante três di<strong>as</strong> o estranho conjunto avançou cada vez mais para<br />

o centro do país selvagem que fica de cada lado do qu<strong>as</strong>e desconhecido rio<br />

Ugambi. Três dos doze guerreiros desertaram durante aquele tempo, m<strong>as</strong><br />

como alguns dos macacos tinham finalmente aprendido o manejo dos remos,<br />

Tarzan não ficou desanimado com essa falta.<br />

Poderia ter viajado muito mais rapidamente por terra, m<strong>as</strong><br />

acreditava não poder <strong>as</strong>sim conservar reunida a sua própria tripulação<br />

selvagem. Parecia-lhe de mais vantagem guardá-los embarcados. Du<strong>as</strong> vezes<br />

por dia, desembarcavam para caçar e comer. De noite dormiam sobre a<br />

margem ou em alguma d<strong>as</strong> numeros<strong>as</strong> ilhot<strong>as</strong> que pontilhavam o rio.<br />

Os indígen<strong>as</strong> fugiam alarmados diante deles, isso fazia com que só<br />

ach<strong>as</strong>sem aldei<strong>as</strong> desert<strong>as</strong> no seu caminho. Tarzan estava ansioso para abordar<br />

alguns dos selvagens que moravam n<strong>as</strong> margens do rio, m<strong>as</strong> até então isso não<br />

lhe tinha sido possível.<br />

Finalmente decidiu continuar por terra, sozinho, deixando os seus<br />

companheiros seguir de canoa. Explicou a Mugambi o que tinha em mente, e<br />

disse a Akut que obedecesse às ordens do negro.<br />

— Eu os encontrarei outra vez dentro de poucos di<strong>as</strong>. Agora vou<br />

adiante para saber o que aconteceu ao homem branco muito mau que eu<br />

procuro.


animais.<br />

Na parada seguinte Tarzan foi à praia, m<strong>as</strong> não avistou mais os seus<br />

As primeir<strong>as</strong> pouc<strong>as</strong> aldei<strong>as</strong> que encontrou estavam desert<strong>as</strong>,<br />

demonstrando que <strong>as</strong> notíci<strong>as</strong> da chegada do seu bando tinham viajado<br />

rapidamente. Ao anoitecer encontrou, porém, um grupo distante de<br />

choupan<strong>as</strong>, cobert<strong>as</strong> de palha, e cercad<strong>as</strong> por uma tosca estacada, dentro da<br />

qual havia mais ou menos duzentos indígen<strong>as</strong>.<br />

As mulheres estavam preparando a refeição da noite, quando<br />

Tarzan dos Macacos apareceu por cima deles nos galhos de uma grande<br />

árvore que ficava sobre a estacada.<br />

O homem-macaco não sabia como podia entrar em comunicação<br />

com este povo sem <strong>as</strong>sustá-lo ou despertar nele o seu amor selvagem de<br />

combater. Não tinha agora desejo algum de brigar, pois estava empenhado em<br />

uma missão muito mais importante que a de guerrear com cada tribo que por<br />

ac<strong>as</strong>o encontr<strong>as</strong>se.<br />

Por fim, acudiu-lhe um plano. Como estava escondido, e não podia<br />

ser visto pelos que estavam embaixo, soltou alguns grunhidos roucos,<br />

imitando os da pantera. Todos os olhos imediatamente se voltaram para cima<br />

em direção à folhagem da árvore.<br />

Estava, porém, escurecendo, e nada podiam ver através da<br />

folhagem que abrigava o homem-macaco. Tarzan deixou-se cair no chão, fora<br />

da estacada, e, com a ligeireza de um veado, correu rapidamente em volta até<br />

o portão da aldeia.<br />

Aí bateu n<strong>as</strong> estac<strong>as</strong> amarrad<strong>as</strong> com cipó, gritando aos indígen<strong>as</strong> na<br />

sua própria linguagem que era um amigo e desejava apen<strong>as</strong> comida e abrigo<br />

para aquela noite.<br />

Tarzan conhecia bem a natureza do homem negro. Sabia que o<br />

grunhido e os gritos de Sheeta na árvore, por cima deles, fariam que todos


fic<strong>as</strong>sem nervosos, e que o seu bater no portão da estacada, depois do<br />

escurecer, aumentaria ainda mais o terror deles.<br />

Por isso o não responderem ao seu chamado não foi motivo de<br />

surpresa para ele, pois os indígen<strong>as</strong> ficam receosos de qualquer voz que lhes<br />

vem à noite, de fora d<strong>as</strong> estacad<strong>as</strong>, atribuindo-a sempre a algum demônio ou<br />

outro visitante sobrenatural. Continuou, porém, a chamar.<br />

— Deixem-me entrar, meus amigos! gritou. Sou um homem branco<br />

que persegue o homem branco muito mau que p<strong>as</strong>sou por aqui há poucos<br />

di<strong>as</strong>. Venho c<strong>as</strong>tigá-lo pelos pecados que cometeu contra mim e contra vocês.<br />

Se duvidarem de minha amizade, eu a provarei trepando na árvore, que fica<br />

por cima da aldeia, e enxotarei Sheeta para a selva, antes que ela possa pular<br />

no meio de vocês; c<strong>as</strong>o não prometam dar entrada e me tratar como amigo,<br />

deixarei Sheeta devorá-los a todos.<br />

Durante um momento, houve ainda silêncio. M<strong>as</strong> a voz de um<br />

velho elevou-se finalmente no silêncio da rua da aldeia.<br />

— Se você é realmente um homem branco e amigo, te deixaremos<br />

entrar; m<strong>as</strong> primeiro é necessário que enxote Sheeta.<br />

— Muito bem, replicou Tarzan. Escuta, e ouvirá Sheeta fugir.<br />

O homem-macaco voltou ligeiro para a árvore, e desta vez fez um<br />

grande barulho ao p<strong>as</strong>sar por entre os galhos, ao mesmo tempo que rosnava<br />

ameaçadoramente como faz a pantera, a fim de que os selvagens acredit<strong>as</strong>sem<br />

que o grande animal ainda estava lá.<br />

Quando alcançou um ponto bem por cima da rua da aldeia sacudiu<br />

a árvore com violência, gritando alto para a pantera que fugisse, pois, do<br />

contrário, morreria. E pontuava a própria voz com os gritos de um animal<br />

enraivecido.<br />

A seguir correu para o lado oposto da árvore e para dentro da selva,<br />

batendo contra os troncos d<strong>as</strong> árvores no caminho, imitando os grunhidos da<br />

pantera, que diminuíam enquanto ela parecia af<strong>as</strong>tar-se cada vez mais.


Alguns minutos depois, Tarzan voltou para o portão da aldeia,<br />

chamando os indígen<strong>as</strong>.<br />

prometeram.<br />

— Enxotei Sheeta, disse alto. Agora, deixem-me entrar como<br />

Durante algum tempo houve o barulho de uma discussão acalorada<br />

dentro da estacada, m<strong>as</strong> por fim, meia dúzia de guerreiros vieram abrir o<br />

portão, olhando ansiosamente e com receio quanto à natureza da criatura que<br />

deveriam encontrar aí. Não ficaram muito satisfeitos quando viram um<br />

homem branco, qu<strong>as</strong>e nu; m<strong>as</strong> quando Tarzan os acalmou, confirmando a sua<br />

amizade, abriram um pouco mais a barreira e o deixaram entrar.<br />

Quando o portão se tornou a fechar, recobraram os selvagens a<br />

confiança. Tarzan, que caminhava pela rua da aldeia na direção da choupana<br />

do chefe, viu-se logo cercado por uma porção de homens, mulheres e<br />

crianç<strong>as</strong>, todos curiosos por saber quem era o homem branco.<br />

Pelo chefe soube que Rokoff tinha subido o rio uma semana antes.<br />

Disseram-lhe mais que ele tinha chifres na testa, e era acompanhado por mil<br />

demônios. O chefe disse ainda que o homem branco muito mau tinha ficado<br />

um mês nessa aldeia.<br />

Embora nenhuma dest<strong>as</strong> declarações concord<strong>as</strong>se com a de Kaviri,<br />

que lhe dissera que o russo somente tinha saído da aldeia do chefe três di<strong>as</strong><br />

antes e que os que o acompanhavam eram menos do que o número agora<br />

indicado, Tarzan não ficou admirado com ess<strong>as</strong> contradições, pois estava<br />

habituado ao estranho funcionamento d<strong>as</strong> inteligênci<strong>as</strong> selvagens.<br />

O que mais o interessava era saber que estava na pista certa, em<br />

direção ao interior. Nest<strong>as</strong> circunstânci<strong>as</strong>, Rokoff não lhe poderia escapar.<br />

Depois de vári<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> de interrogações e contra-interrogações, o<br />

homem-macaco soube que alguns di<strong>as</strong> antes outro bando tinha precedido o<br />

russo — três brancos; um homem, uma mulher e um menino, com diversos<br />

Mosul<strong>as</strong>.


Tarzan explicou ao chefe que o seu grupo o seguiria numa canoa,<br />

provavelmente no dia seguinte, e mesmo que ele seguisse adiante deles o chefe<br />

devia recebê-los com amizade e sem nenhum receio, pois Mugambi tomaria<br />

cuidado que não molest<strong>as</strong>sem o povo do chefe, se fossem bem recebidos.<br />

— E agora, concluiu, vou deitar-me debaixo desta árvore para<br />

dormir. Estou muito cansado. Não deixem ninguém me perturbar.<br />

O chefe ofereceu-lhe uma choupana, m<strong>as</strong> Tarzan, por su<strong>as</strong><br />

experiênci<strong>as</strong> em moradi<strong>as</strong> indígen<strong>as</strong>, preferiu ficar ao relento, e, além disso,<br />

tinha seus planos que poderiam ser melhor executados se fic<strong>as</strong>se debaixo da<br />

árvore. Deu como razão desse seu desejo a possibilidade de Sheeta voltar, e<br />

depois dessa explicação o chefe concordou em deixá-lo dormir debaixo da<br />

árvore.<br />

A Tarzan sempre lhe pareceu de bom aviso deixar nos indígen<strong>as</strong> a<br />

impressão de que possuía alguns poderes sobrenaturais.<br />

Poderia ter entrado na aldeia com facilidade sem bater ao portão,<br />

m<strong>as</strong> acreditava que um desaparecimento repentino e inexplicável quando<br />

estava pronto para deixá-los causaria uma impressão mais duradoura sobre <strong>as</strong><br />

su<strong>as</strong> mentes infantis, e <strong>as</strong>sim logo que a aldeia ficou adormecida, levantou-se<br />

e, pulando nos galhos da árvore acima dele, desapareceu na misteriosa<br />

escuridão da selva.<br />

Durante o resto da noite o homem-macaco p<strong>as</strong>sou rapidamente por<br />

entre a folhagem de cima e do meio da floresta. Quando era fácil, preferia os<br />

galhos mais altos d<strong>as</strong> grandes árvores, pois aí o caminho estava bem<br />

iluminado pela lua; m<strong>as</strong> tão acostumados se achavam todos os seus sentidos<br />

ao severo mundo do seu n<strong>as</strong>cimento que lhe era possível fazer seu caminho<br />

mesmo n<strong>as</strong> sombr<strong>as</strong> dens<strong>as</strong>, perto do chão, movendo-se com facilidade e<br />

rapidez. Ninguém, em qualquer cidade, andando por qualquer rua, poderia<br />

caminhar com segurança maior ou com um décimo de velocidade do ágil<br />

homem-macaco, pelos labirintos escuros.


Ao amanhecer, parou para comer, e depois dormiu durante divers<strong>as</strong><br />

hor<strong>as</strong>, continuando de novo a caminhar até mais ou menos ao meio-dia.<br />

Du<strong>as</strong> vezes encontrou-se com indígen<strong>as</strong> e embora tivesse muita<br />

dificuldade em aproximar-se deles, conseguiu de amb<strong>as</strong> <strong>as</strong> vezes tranqüilizar-<br />

lhes os receios e intenções guerreir<strong>as</strong>, e soube que estava na pista do russo.<br />

Dois di<strong>as</strong> depois, ainda seguindo o Ugambi, chegou a uma grande<br />

aldeia. O chefe, sujeito mal-encarado, com os dentes aguçados, que muit<strong>as</strong><br />

vezes denunciam o canibal, recebeu-o com amizade aparente.<br />

O homem-macaco estava agora bem fatigado e, pois, determinara<br />

descansar durante oito ou dez hor<strong>as</strong>, para tornar-se vigoroso e forte quando<br />

alcanç<strong>as</strong>se Rokoff, como tinha certeza que o alcançaria dentro de muito<br />

pouco tempo.<br />

O chefe disse-lhe que o homem branco barbado havia deixado a<br />

sua aldeia na manhã anterior, e que sem dúvida Tarzan poderia alcançá-lo em<br />

pouco tempo. O outro bando, o chefe não o tinha visto, nem dele ouvira<br />

falar. Foi, pelo menos, o que ele informou.<br />

Tarzan não gostou da aparência nem dos modos do selvagem, que<br />

parecia, embora fingindo amizade, ter um certo desprezo por aquele homem<br />

branco, qu<strong>as</strong>e nu, que vinha sem companheiros e não lhe oferecia presentes.<br />

Precisava, porém, do descanso e da comida que a aldeia lhe oferecia com<br />

menos esforço que a selva, <strong>as</strong>sim como não sabia o que fosse medo do<br />

homem, animal, ou demônio, encolheu-se na sombra duma choupana e logo<br />

adormeceu.<br />

Mal tinha deixado o chefe, quando este chamou dois dos seus<br />

guerreiros, a quem murmurou algum<strong>as</strong> instruções. Momentos depois os<br />

corpos lisos e negros estavam correndo ao longo do caminho do rio, riacho<br />

acima, na direção do leste.<br />

Na aldeia o chefe manteve tranqüilidade completa. Não permitiria<br />

que ninguém se aproxim<strong>as</strong>se do visitante que dormia, nem que cant<strong>as</strong>sem ou


fal<strong>as</strong>sem em voz alta. Era extremamente solícito, com medo que o seu<br />

hóspede fosse perturbado.<br />

Três hor<strong>as</strong> mais tarde divers<strong>as</strong> cano<strong>as</strong> apareceram silenciosamente<br />

no Ugambi. Eram impelid<strong>as</strong> rapidamente para a frente pelos músculos<br />

poderosos d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> tripulações negr<strong>as</strong>. Sobre a margem do rio estava o chefe,<br />

com a lança levantada em posição horizontal acima da cabeça, como se isso<br />

indic<strong>as</strong>se de algum modo um sinal combinado, com os que estavam dentro<br />

d<strong>as</strong> cano<strong>as</strong>.<br />

Tal era realmente o fim desta sua atitude. Ela significava que o<br />

estrangeiro branco ainda dormia sossegadamente dentro da aldeia.<br />

Na proa de du<strong>as</strong> d<strong>as</strong> cano<strong>as</strong> estavam os mensageiros que o chefe<br />

tinha mandado três hor<strong>as</strong> antes. Era evidente que haviam sido despachados<br />

para seguir e trazer de volta este bando, e que o sinal feito da margem era o<br />

que tinham combinado antes de deixar a aldeia.<br />

Dentro de poucos momentos <strong>as</strong> embarcações chegaram à margem<br />

do rio. Os guerreiros indígen<strong>as</strong> saltaram, e com eles meia dúzia de homens<br />

brancos. Eram sujeitos mal-humorados e carrancudos, tais como o homem<br />

barbado mal-encarado que os dirigia.<br />

— Onde está o homem branco que os teus mensageiros dizem<br />

achar-se aqui? — Perguntou ao chefe.<br />

— Por aqui bwana, respondeu o indígena. — Cuidadosamente<br />

tenho guardado silêncio na aldeia para que ele pudesse dormir até que<br />

cheg<strong>as</strong>ses. Não sei se é aquele que procura fazer-te mal, m<strong>as</strong> ele me perguntou<br />

vári<strong>as</strong> vezes por tua vinda e a tua partida. Parece-se muito com aquele que<br />

descreveste, isto é, com o homem que julgav<strong>as</strong> seguro no país que chamav<strong>as</strong><br />

Ilha da Selva. Se não me tivesses contado essa história eu não o teria<br />

reconhecido, e então ele poderia ter te perseguido e matado. Se for amigo,<br />

nenhum mal lhe será feito; m<strong>as</strong> ser for inimigo, gostaria muito que me dessem<br />

uma carabina e alguma munição.


— Fizeste bem — replicou o homem branco — e terás uma<br />

carabina e munição, quer ele seja amigo, quer inimigo, contanto que fiques ao<br />

meu lado.<br />

— Ficarei ao teu lado, bwana — disse o chefe — e agora vem ver o<br />

estrangeiro, que dorme na minha aldeia.<br />

Assim dizendo, virou-se e indicou o caminho para a choupana, na<br />

sombra da qual Tarzan dormia sossegadamente.<br />

Atrás dos dois homens, vinham os outros guerreiros brancos; m<strong>as</strong><br />

os dedos indicadores levantados do chefe e do seu companheiro conservaram-<br />

nos a todos em absoluto silêncio.<br />

Quando dobraram o canto da choupana, pisando cuidadosamente<br />

na ponta dos pés, um sorriso cruel surgiu nos lábios do branco ao avistar o<br />

grande corpo do homem-macaco que dormia.<br />

O chefe fitou o outro, como quem indaga. O branco acenou com a<br />

cabeça, para indicar que o chefe não se tinha enganado em su<strong>as</strong> suspeit<strong>as</strong>.<br />

Virou-se então para os que estavam atrás dele e, apontando para o homem<br />

que dormia, fez um sinal para que o agarr<strong>as</strong>sem e amarr<strong>as</strong>sem.<br />

Imediatamente uma dúzia de brutos atiraram-se sobre Tarzan<br />

surpreendido, e tão rápido o fizeram que este, antes que pudesse fazer o<br />

menor esforço para escapar, se viu subjugado e amarrado.<br />

Deitado no chão, de cost<strong>as</strong>, os seus olhos se voltando para os que<br />

lhe ficavam perto caíram sobre a face maligna de Nikol<strong>as</strong> Rokoff. Um sorriso<br />

de escárnio franzia os lábios do russo, o qual disse, chegando bem perto de<br />

Tarzan:<br />

— Porco! — gritou. — Ainda não aprendeste o b<strong>as</strong>tante para te<br />

af<strong>as</strong>tares de Nikol<strong>as</strong> Rokoff?<br />

E, batendo-lhe com o pé na cara:


— Isto é para a tua recepção — disse. — Hoje à noite, antes que os<br />

meus amigos etíopes te comam, eu te direi o que já aconteceu à tua mulher e a<br />

teu filho, e quais os outros planos que tenho para o futuro deles.


CAPÍTULO 8: A dança da morte<br />

Pela vegetação luxuriante e emaranhada da selva um grande corpo<br />

flexível caminhava sinuosamente e em silêncio completo sobre <strong>as</strong> su<strong>as</strong> pat<strong>as</strong><br />

maci<strong>as</strong>.<br />

Somente dois pontos brilhantes de reflexos esverdeados<br />

resplandeciam de vez em quando, à luz da lua equatorial que, uma vez ou<br />

outra, aparecia no alto da folhagem suavemente agitada pelo vento da noite.<br />

procurando.<br />

Às vezes o animal parava, com o nariz no ar, farejando,<br />

Outr<strong>as</strong> vezes, uma exploração breve e rápida pelos galhos que lhe<br />

roçavam a cabeça faziam-no demorar-se um pouco em sua viagem firme para<br />

leste. Às su<strong>as</strong> narin<strong>as</strong> sensíveis chegava o cheiro sutil de muit<strong>as</strong> criatur<strong>as</strong><br />

tenr<strong>as</strong> de quatro pés, provocando-lhe o apetite ao queixo cruel e caído.<br />

M<strong>as</strong>, firmemente, continuou seu caminho, resistindo às solicitações<br />

do apetite, que em outr<strong>as</strong> oc<strong>as</strong>iões teriam feito que os seus músculos<br />

possantes, cobertos de pêlo, se atir<strong>as</strong>sem em alguma garganta macia.<br />

Toda aquela noite a criatura prosseguiu o seu caminho solitário,<br />

parando somente no dia seguinte, para abater uma presa, que dilacerou aos<br />

pedacinhos, devorando e rosnando.<br />

Estava escurecendo quando ela chegou à estacada que cercava uma<br />

grande aldeia indígena. Como a sombra da morte, rodeou silenciosa a aldeia,<br />

com o nariz no chão, parando por fim perto da estacada, onde se<br />

encontravam os fundos de vári<strong>as</strong> choupan<strong>as</strong>. Aí o animal farejou por alguns<br />

momentos e, então, virando a cabeça para um lado, escutou com <strong>as</strong> orelh<strong>as</strong><br />

em pé.<br />

O que ele ouviu não era nenhum som que pudesse ser percebido<br />

por ouvidos humanos, m<strong>as</strong> unicamente pelos órgãos delicados e afinados do<br />

animal. Uma maravilhosa transformação ocorreu naquela m<strong>as</strong>sa de ossos e


músculos que um momento antes estava imóvel à semelhança de uma<br />

escultura de bronze.<br />

Como se estivesse colocada sobre mol<strong>as</strong> de aço, que de repente se<br />

tivessem soltado, subiu ligeira e silenciosamente para cima da estacada,<br />

pulando, furtivamente, como um gato, para dentro do espaço escuro entre a<br />

parede e os fundos de uma choupana próxima.<br />

Além, na rua da aldeia, <strong>as</strong> mulheres preparavam br<strong>as</strong>eiros e traziam<br />

panel<strong>as</strong> chei<strong>as</strong> de água, pois uma grande festa ia ser celebrada dentro de<br />

algum<strong>as</strong> hor<strong>as</strong>. Ao redor de um grosso poste perto do centro d<strong>as</strong> fogueir<strong>as</strong> em<br />

círculo, um pequeno grupo de guerreiros negros estava conversando, com os<br />

seus corpos pintados de azul, branco e amarelo em larg<strong>as</strong> listr<strong>as</strong> grotesc<strong>as</strong>.<br />

Grandes círculos de cor eram feitos em torno dos olhos e lábios, dos peitos e<br />

barrig<strong>as</strong>. D<strong>as</strong> su<strong>as</strong> cabeleir<strong>as</strong> cobert<strong>as</strong> de barro saíam pen<strong>as</strong> alegres e pedaços<br />

de arame compridos e direitos.<br />

A aldeia estava se preparando para a festa, enquanto numa<br />

choupana que ficava ao lado da cena da orgia que se apresentava, a vítima<br />

fadada a satisfazer aqueles apetites bestiais estava esperando o fim. E que fim!<br />

Tarzan dos Macacos, retesando os seus poderosos músculos, torceu<br />

os laços que o prendiam; m<strong>as</strong> estes tinham sido reforçados muit<strong>as</strong> vezes a<br />

pedido do russo. Nem os fortes músculos do homem-macaco podiam<br />

remover aquele obstáculo.<br />

A Morte!<br />

Tarzan tinha fitado a horrível caçadora cara a cara muit<strong>as</strong> vezes,<br />

sorrindo. E sorriria outra vez, ainda nessa noite, quando soubesse que o seu<br />

fim estava próximo. M<strong>as</strong> agora os seus pensamentos não se detinham nele<br />

mesmo. Estava naqueles outros — os entes queridos, que sofreriam com a sua<br />

morte mais do que ele mesmo.<br />

Jane nunca saberia como ele tinha morrido. Por isso ele agradecia a<br />

Deus; sobretudo por estar certo de que ela, ao menos, estava em segurança no


centro da maior cidade do mundo, entre amáveis e queridos amigos que<br />

fariam tudo para aliviar a sua miséria.<br />

M<strong>as</strong>, e o menino?<br />

Tarzan retorceu-se todo ao recordar-se dele. Seu filho!<br />

E agora ele — o poderoso Senhor da Selva — ele, Tarzan, Rei dos<br />

Macacos, o único em todo o mundo capaz de achar e salvar seu filho dos<br />

horrores, que a mente má de Rokoff tinha planejado, via-se enlaçado como<br />

uma criatura tola e muda. Ia morrer dentro em pouc<strong>as</strong> hor<strong>as</strong>, e com ele<br />

desapareceria a última esperança de socorrer a criança.<br />

Rokoff veio visitá-lo, afrontá-lo e insultá-lo vári<strong>as</strong> vezes durante a<br />

tarde, m<strong>as</strong> não conseguiu arrancar nenhuma palavra de queixa nem um<br />

murmúrio de dor dos lábios do cativo gigante.<br />

Acabou desistindo, reservando a sua intensa alegria para o último<br />

momento, quando — pouco antes d<strong>as</strong> lanç<strong>as</strong> selvagens dos canibais tornarem<br />

para sempre o objeto do seu ódio incapaz de maior sofrimento — ele então<br />

revelaria ao seu inimigo onde se achava a mulher que este julgava em<br />

segurança na Inglaterra.<br />

A noite tinha caído sobre a aldeia, e o homem-macaco podia ouvir<br />

os preparativos que faziam para a tortura e a festa. A dança da morte que ele<br />

já podia visualizar mentalmente, pois já a tinha <strong>as</strong>sistido muit<strong>as</strong> vezes.<br />

Agora, ia ser a figura central amarrado ao poste.<br />

A tortura da morte lenta, enquanto os guerreiros em volta o<br />

cort<strong>as</strong>sem em pedaços com habilidade infernal, que mutilava sem fazer perder<br />

os sentidos, não lhe infundia horror. Estava acostumado a sofrer, a ver<br />

sangue, a presenciar mortes cruéis. M<strong>as</strong> o desejo de viver não era menos forte<br />

nele, e até que o último alento de vida se apag<strong>as</strong>se, alimentaria ainda uma<br />

esperança. Se relax<strong>as</strong>sem a vigilância somente por um momento, ele sabia que<br />

a sua mente <strong>as</strong>tuta e os enormes músculos de que era dotado achariam um<br />

meio de escapar — fuga e vingança.


Enquanto estava deitado, pensando furiosamente em qualquer<br />

possibilidade de salvação, veio-lhe às narin<strong>as</strong> sensíveis um odor familiar.<br />

Imediatamente tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> faculdades da sua mente despertaram. Os seus<br />

ouvidos treinados perceberam fora, por trás da choupana onde estava, um<br />

som que era imperceptível para os outros.<br />

Os seus lábios se moveram, e ainda que deles nenhum som tivesse<br />

saído dos que pudessem ser percebidos por ouvidos humanos, além d<strong>as</strong><br />

paredes da sua prisão, mesmo <strong>as</strong>sim sabia que aquele que estava lá fora o<br />

ouviria. Ele já sabia quem era. Su<strong>as</strong> narin<strong>as</strong> lhe disseram tão claramente como<br />

se os seus olhos lhe revel<strong>as</strong>sem a presença de um velho amigo que<br />

encontr<strong>as</strong>se em plena luz do dia.<br />

Um instante depois ouviu o som macio de um corpo coberto de<br />

pêlo e pat<strong>as</strong> almofadad<strong>as</strong>, escalando a parede de fora, atrás da choupana,<br />

arranhando e separando os paus que a forravam. Pelo buraco feito desta<br />

maneira p<strong>as</strong>sou um grande animal.<br />

Era Sheeta, a pantera.<br />

O animal farejou em volta do homem caído, choramingando um<br />

pouco. Havia um limite para a comunicação que se podia fazer entre os dois.<br />

Tarzan não tinha a certeza de que Sheeta entendia tudo que procurava<br />

comunicar-lhe. Que o homem estava amarrado e sem defesa, Sheeta podia,<br />

naturalmente, ver; m<strong>as</strong> que isto sugerisse à mente da pantera a idéia de<br />

qualquer mal ao seu dono, Tarzan não podia adivinhar.<br />

O que teria trazido o animal até ali? Fosse o que fosse era de bom<br />

agouro. M<strong>as</strong> quando Tarzan experimentou fazer Sheeta roer <strong>as</strong> cord<strong>as</strong>, o<br />

grande animal não parecia compreender o que era preciso praticar, e, em vez<br />

disto, pôs-se a lamber os pulsos e os braços do prisioneiro.<br />

Alguém, porém, estava se aproximando da choupana. Sheeta<br />

rosnou baixinho e agachou-se em um canto, no escuro. Evidentemente o


visitante nada percebeu, pois imediatamente entrou na choupana. Era um<br />

guerreiro selvagem, alto e nu.<br />

Aproximou-se de Tarzan e espetou-o com uma lança; dos lábios do<br />

homem-macaco saiu um som esquisito e sobrenatural, e logo pulou da<br />

escuridão um aríete de morte vestido de pêlo... O grande animal bateu em<br />

cheio sobre o peito do selvagem pintado, enterrando <strong>as</strong> garr<strong>as</strong> agud<strong>as</strong> na carne<br />

negra e afundando os grandes dentes amarelos na garganta de ébano.<br />

Houve um horrível grito de angústia e terror do negro, e, misturado<br />

com ele, o desafio hediondo da pantera. Fez-se então silêncio — silêncio em<br />

que só se ouvia o r<strong>as</strong>gar de carnes sangrent<strong>as</strong> e o trincar de ossos humanos<br />

por entre poderos<strong>as</strong> mandíbul<strong>as</strong>.<br />

O barulho produzira repentino silêncio lá fora na aldeia. Em<br />

seguida, ouviu-se o som de vozes em consulta.<br />

Vozes agud<strong>as</strong>, chei<strong>as</strong> de medo, em tons profundos e baixos de<br />

autoridade, enquanto o chefe falava. Tarzan e a pantera ouviram os p<strong>as</strong>sos de<br />

muitos homens que se aproximavam, e então, para surpresa de Tarzan, o<br />

grande gato levantou-se de cima do corpo de sua vítima, e saiu<br />

silenciosamente da choupana pela abertura por onde tinha entrado.<br />

O homem ouviu-lhe o arr<strong>as</strong>tar macio do corpo quando p<strong>as</strong>sou por<br />

cima da estacada. Reinou de novo o silêncio. Do lado oposto da choupana<br />

ouviu Tarzan os selvagens que chegavam para investigar.<br />

Tinha pouca esperança que Sheeta volt<strong>as</strong>se, pois se esta tivesse a<br />

idéia de defendê-lo contra os que chegavam, teria ficado a seu lado, quando<br />

ouviu os selvagens se aproximarem.<br />

Tarzan conhecia como era estranha a inteligência da poderosa<br />

carnívora da selva e quão diabolicamente às vezes se mostrava em face de<br />

morte certa, e outr<strong>as</strong> vezes quão tímida parecia à menor provocação. Não<br />

havia dúvida que alguma nota dos negros que se aproximavam, trêmulos de


medo, tinha inspirado uma nota igual no sistema nervoso da pantera, fazendo-<br />

a fugir ocultamente pela selva, com o rabo entre <strong>as</strong> pern<strong>as</strong>.<br />

O homem encolheu os ombros. Fosse o que fosse! Ele esperava<br />

morrer, e, afinal de cont<strong>as</strong>, que poderia ter feito Sheeta senão matar dois ou<br />

três dos seus inimigos antes que uma carabina n<strong>as</strong> mãos de um dos brancos a<br />

tivesse matado.<br />

Ah! Se a pantera pudesse tê-lo soltado! Ah! Então <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> se<br />

p<strong>as</strong>sariam de modo diferente. O c<strong>as</strong>o ia, porém, além da compreensão de<br />

Sheeta. O animal partira e Tarzan tinha de perder a esperança definitivamente.<br />

Os indígen<strong>as</strong> estavam agora na entrada da choupana olhando<br />

timidamente para o interior escuro. Dois, na frente, seguravam toch<strong>as</strong> aces<strong>as</strong><br />

na mão esquerda e lanç<strong>as</strong> na direita. Apoiavam-se medrosamente contra os<br />

que estavam atrás, que por sua vez estavam a empurrá-los para a frente.<br />

Os gritos da vítima da pantera, misturados com os da grande fera,<br />

tinham trabalhado poderosamente os seus pobres nervos, e agora o silêncio<br />

horrível do interior escuro parecia ainda mais agourento que os gritos<br />

pavorosos.<br />

Logo um daqueles que estavam sendo empurrados para dentro<br />

contra a sua vontade, achou um meio de saber a natureza exata do perigo que<br />

os ameaçava do interior. Com um movimento ligeiro jogou a tocha acesa no<br />

centro da choupana. Imediatamente tudo ficou iluminado.<br />

Havia a figura do prisioneiro branco, ainda seguramente amarrado<br />

como da última vez que o viram, e no centro da choupana uma outra figura<br />

igualmente sem movimento, com a garganta e o peito horrivelmente r<strong>as</strong>gados<br />

e mutilados.<br />

O que viram os selvagens que estavam n<strong>as</strong> primeir<strong>as</strong> fil<strong>as</strong> inspirou<br />

mais terror às su<strong>as</strong> alm<strong>as</strong> supersticios<strong>as</strong> do que o teria feito a vista da própria<br />

Sheeta.


Viam somente o resultado de um ataque feroz a um dos seus<br />

companheiros, m<strong>as</strong> não lhe atinavam com a causa; <strong>as</strong> su<strong>as</strong> mentes<br />

sobrecarregad<strong>as</strong> de medo estavam pront<strong>as</strong> a atribuir o terrível trabalho a<br />

caus<strong>as</strong> sobrenaturais. Foi um pavor. Com este pensamento retrocederam,<br />

gritando, da choupana, fazendo cair aquela que ficava diretamente por trás<br />

deles.<br />

Durante uma hora Tarzan ouviu somente o murmúrio de vozes<br />

excitad<strong>as</strong> na outra extremidade da aldeia. Evidentemente os selvagens estavam<br />

querendo levantar os seus fracos ânimos, a fim de invadir novamente a<br />

choupana, pois de vez em quando soltavam um grito selvagem, tal como o<br />

fazem os guerreiros, para sustentar a sua coragem no campo de batalha.<br />

Afinal dois dos homens brancos entraram primeiro, carregando<br />

toch<strong>as</strong> e espingard<strong>as</strong>. Tarzan não se admirou de ver que nem um nem outro<br />

era Rokoff. Teria apostado a sua alma que nenhum poder na terra poderia ter<br />

tentado aquele grande covarde a encarar a desconhecida ameaça da choupana.<br />

Quando os indígen<strong>as</strong> viram que os homens brancos não tinham<br />

sido atacados entraram também calados, cheios de terror, enquanto olhavam o<br />

corpo mutilado do companheiro. Os brancos procuraram em vão obter uma<br />

explicação de Tarzan; m<strong>as</strong> a tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> su<strong>as</strong> pergunt<strong>as</strong> ele somente sacudia<br />

sorrindo a cabeça.<br />

Por fim, chegou Rokoff. Este empalideceu quando os seus olhos<br />

deram com o corpo sangrento no chão, rindo para ele, a cara fixa numa<br />

máscara de morte de horror atroz.<br />

— Neula! — disse ao chefe. Vamos acabar com este demônio antes<br />

que tenha uma oportunidade de repetir a mesma coisa com outros da nossa<br />

gente.<br />

O chefe deu ordens para que Tarzan fosse levantado e levado ao<br />

poste; m<strong>as</strong> decorreram vários minutos antes que pudesse persuadir alguns dos<br />

homens a tocar no prisioneiro.


Por fim, quatro dos guerreiros mais jovens arr<strong>as</strong>taram Tarzan<br />

brutalmente para fora da choupana.<br />

Mais ou menos vinte negros empurraram então o prisioneiro aos<br />

murros pela rua abaixo e amarraram-no ao poste, no centro do círculo de<br />

fogueir<strong>as</strong> e panel<strong>as</strong>.<br />

Quando por fim, todo amarrado, parecia completamente indefeso,<br />

sem a menor esperança de socorro, Rokoff recobrou a sua coragem, a qual só<br />

aparecia quando não havia perigo algum.<br />

Aproximou-se do homem-macaco, e, apanhando uma lança d<strong>as</strong><br />

mãos de um dos selvagens, foi o primeiro a espetar a vítima indefesa. O<br />

sangue corria pela pele lisa do gigante; m<strong>as</strong> este não demonstrava nenhum<br />

sinal de dor.<br />

O seu sorriso de desprezo parecia enfurecer ainda mais o russo, o<br />

qual, proferindo injúri<strong>as</strong>, saltou sobre o indefeso cativo dando-lhe na cara com<br />

os punhos fechados e atirando-lhe barbaramente pontapés n<strong>as</strong> pern<strong>as</strong>. Por<br />

fim, levantou a pesada lança para enterrá-la no generoso coração do<br />

prisioneiro. M<strong>as</strong> Tarzan dos Macacos sorria com desprezo.<br />

Antes, porém, que Rokoff pudesse enterrar a arma, o chefe saltou<br />

sobre ele, af<strong>as</strong>tando-o da sua pretendida vítima.<br />

— Pare, homem branco! — gritou ele. — Se nos roubares este<br />

prisioneiro e impedires <strong>as</strong>sim a nossa dança da morte, tu mesmo terás de<br />

tomar o seu lugar.<br />

A ameaça conseguiu impedir que o russo fizesse mais agressões ao<br />

prisioneiro. Ficou um pouco af<strong>as</strong>tado, atirando sempre insultos ao seu<br />

inimigo. Disse a Tarzan que ele mesmo ia comer-lhe o coração. Aumentou os<br />

horrores da vida futura que aguardava o filho de Tarzan, e afirmou-lhe que a<br />

sua vingança alcançaria também Jane Clayton.<br />

— Julg<strong>as</strong> que tua mulher está a salvo na Inglaterra? — disse<br />

Rokoff. — Idiota! Ela está agora n<strong>as</strong> mãos de um tipo de baixa cl<strong>as</strong>se, longe


da segurança de Londres e da proteção dos seus amigos. Não era minha<br />

intenção dizer-te isto antes que eu pudesse levar-te à Ilha da Selva e aí te dar a<br />

prova da sua sorte. M<strong>as</strong> agora que vais padecer a pior morte possível que um<br />

homem branco pode sofrer, quero que est<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> sobre o destino da tua<br />

mulher aumentem os tormentos que te devem martirizar antes que o último<br />

golpe de lança te livre da tua tortura.<br />

A dança tinha começado e os gritos dos guerreiros em volta<br />

sustaram outr<strong>as</strong> tentativ<strong>as</strong> de Rokoff para atormentar a sua vítima.<br />

Os selvagens, pulando, com <strong>as</strong> cham<strong>as</strong> tremulantes refletindo-se<br />

nos seus corpos pintados, faziam um círculo em torno da vítima, atada ao<br />

poste.<br />

Na memória de Tarzan surgiu uma cena semelhante: quando ele<br />

salvara d’Arnot de uma situação bem parecida com a sua, no último<br />

momento, antes que o derradeiro golpe de lança lhe acab<strong>as</strong>se com o<br />

sofrimento. Quem havia agora ali para salvá-lo? Em todo o mundo não havia<br />

ninguém capaz de livrá-lo do tormento e da morte.<br />

A idéia de que estes demônios humanos o devorariam quando a<br />

dança estivesse acabada não lhe causou, porém, o menor sentimento de<br />

horror ou desgosto. Não lhe aumentou os sofrimentos como teria aumentado<br />

os de outro homem branco qualquer, pois durante toda a sua vida, Tarzan<br />

tinha visto os animais da selva devorarem a carne d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> pres<strong>as</strong>.<br />

Não tinha ele mesmo lutado, há muitos anos, em Dum-Dum, braço<br />

a braço com um grande macaco, fazendo <strong>as</strong>sim que os macacos de Kerchak o<br />

respeit<strong>as</strong>sem graç<strong>as</strong> à morte que infligira ao famoso Tublat?<br />

Os dançadores estavam agora pulando mais perto dele. As lanç<strong>as</strong><br />

começavam a tocar-lhe o corpo com <strong>as</strong> primeir<strong>as</strong> picad<strong>as</strong> horríveis que<br />

antecederam outr<strong>as</strong> piores.<br />

Não demoraria, porém, muito tempo, a sua agonia. O homem-<br />

macaco ansiava pela última estocada que poria fim à sua miséria.


agudo.<br />

M<strong>as</strong> de repente, lá longe, no labirinto da selva, ecoou um grito<br />

Os dançarinos pararam por alguns instantes.<br />

Dos lábios do homem branco, fortemente amarrado, rompeu um<br />

grito, como em resposta ao que se ouvira, mais terrível, porém, do que o que<br />

viera da floresta.<br />

Durante alguns minutos, os negros se conservaram imóveis,<br />

hesitando. M<strong>as</strong> a instânci<strong>as</strong> de Rokoff e do chefe, pularam para perto de<br />

Tarzan, a fim de acabar com a dança e com a vítima. Antes, porém, que outra<br />

lança toc<strong>as</strong>se no corpo moreno, um vulto escuro, de olhos esverdeados,<br />

chispando ódio e ferocidade, saltou da porta da choupana onde Tarzan tinha<br />

estado preso, e Sheeta, a pantera, apareceu rosnando ao lado do chefe dos<br />

negros.<br />

Os negros e os brancos ficaram tresp<strong>as</strong>sados de terror, ao fixarem<br />

os olhos nos dentes caninos da fera.<br />

escuro da choupana.<br />

Somente Tarzan dos Macacos viu o que estava saindo do interior


CAPÍTULO 9: Cavalheirismo ou perversidade<br />

Da portinhola do seu camarote no Kincaid, Jane Clayton tinha visto<br />

o marido ser levado à praia verdejante da Ilha da Selva. O vapor mais uma vez<br />

seguiu o seu caminho.<br />

Durante vários di<strong>as</strong> ela não viu ninguém senão Sven Anderssen, o<br />

cozinheiro taciturno e repulsivo do Kincaid. Perguntou-lhe um dia o nome da<br />

praia na qual o marido tinha sido colocado.<br />

— Penso que vai ventar logo mais, e b<strong>as</strong>tante — respondeu o<br />

sueco. Foi só isto que pôde ouvir dele.<br />

Chegara qu<strong>as</strong>e à conclusão de que ele do inglês não conhecia mais<br />

do que isto. Deixou portanto de importuná-lo pedindo-lhe informações.<br />

Nunca, entretanto, deixou de cumprimentá-lo amavelmente ou agradecer-lhe<br />

<strong>as</strong> refeições horríveis e nauseabund<strong>as</strong> que lhe trazia.<br />

Três di<strong>as</strong> após a partida do lugar onde Tarzan tinha sido<br />

abandonado, o Kincaid fundeou na foz de um grande rio, e logo Rokoff veio<br />

ao camarote de Jane Clayton.<br />

— Chegamos minha querida — disse ele com um volver de olhos<br />

traiçoeiros. — Venho oferecer-lhe segurança, liberdade e conforto. Tomei-me<br />

de simpatia pelo seu sofrimento, e procurarei ser o mais agradável possível.<br />

Seu marido foi um bruto — sabe isto melhor do que eu, porque o achou nu<br />

na selva, vagando com os animais selvagens que eram os seus companheiros.<br />

Esse não é o meu c<strong>as</strong>o: sou um cavalheiro, não somente de sangue nobre, m<strong>as</strong><br />

criado como deve ser um homem de qualidade. Ofereço-lhe, querida Jane, o<br />

amor de um homem culto e a companhia de uma pessoa de cultura, uma<br />

pessoa polida. De cultura e polidez deve ter sentido muita falta em su<strong>as</strong><br />

relações com esse pobre macaco, com quem, devido à sua leviandade de<br />

menina, c<strong>as</strong>ou tão descuidadamente. Amo-a, Jane. B<strong>as</strong>ta que diga uma palavra<br />

e nenhuma tristeza mais a afligirá. Seu filho lhe será restituído são e salvo.


Fora, à porta, Sven Anderssen parou um pouco trazendo a refeição<br />

do meio-dia para Lady Greystoke. Na extremidade do pescoço, comprido e<br />

fino, a cabeça lhe inclinava-se para um lado, e os olhos, muito próximos um<br />

do outro, semicerraclos. Toda a sua atitude era de um escutador clandestino.<br />

Inclinado para a frente — até o bigode comprido, amarelo e esc<strong>as</strong>so parecia<br />

descrever uma curva sorrateira.<br />

Quando Rokoff acabou de fazer o estranho pedido, e aguardava<br />

ansioso a resposta, o olhar de surpresa e o rosto de Jane Clayton revelaram<br />

um imenso desgosto.<br />

— Eu não me teria admirado, Sr. Rokoff — disse estremecendo —<br />

se tivesse tentado forçar-me a submeter-me aos seus maus desejos. Nunca,<br />

porém, imaginei que seria tão estúpido em supor que eu, mulher de John<br />

Clayton, me submeteria voluntariamente ao seu capricho, mesmo para salvar a<br />

minha vida. Sabia que era um canalha, Sr. Rokoff; m<strong>as</strong>, até agora não o tinha<br />

julgado imbecil.<br />

Os olhos de Rokoff diminuíram. O rubor da humilhação tingiu-lhe<br />

a palidez d<strong>as</strong> faces. Deu um p<strong>as</strong>so na direção da moça, ameaçadoramente.<br />

— Veremos depois quem de nós dois é o tolo — sibilou ele, entre<br />

dentes — quando eu a tiver dobrado à minha vontade e a sua plebéia<br />

obstinação de americana lhe tiver custado tudo o que mais ama — até a vida<br />

do seu filho — pois, pelos ossos de São Pedro, eu não farei o que planejei<br />

quanto ao maroto de seu marido, m<strong>as</strong> cortarei o seu coração, diante dos seus<br />

próprios olhos. Há de aprender o que significa insultar Nikol<strong>as</strong> Rokoff.<br />

Jane Clayton deu-lhe <strong>as</strong> cost<strong>as</strong>, enf<strong>as</strong>tiada.<br />

— De que serve — disse ela — discorrer sobre os abismos a que a<br />

sua natureza vingativa possa chegar? Não poderá demover-me nem por<br />

ameaç<strong>as</strong>, nem por ações. O meu filho não pode julgar ainda por si, m<strong>as</strong> eu,<br />

sua mãe, posso prever que c<strong>as</strong>o ele chegue a ser homem, de boa vontade<br />

sacrificará a sua vida pela honra de sua mãe. Amando-o como o amo, eu não


compraria a sua vida à custa de tal sacrifício. Se eu fizesse uma coisa dest<strong>as</strong>,<br />

ele detestaria a minha memória até o dia de sua morte.<br />

Rokoff estava agora furioso, vendo que não conseguira infundir<br />

medo à moça. Sentia apen<strong>as</strong> ódio por ela, m<strong>as</strong> a sua mente doentia tinha<br />

concebido a idéia de que se ele pudesse forçá-la a ceder a seus pedidos, em<br />

troca da própria vida e da do filho, a sua vingança seria completa, quando<br />

pudesse ostentar a mulher de Lorde Greystoke n<strong>as</strong> capitais da Europa como<br />

sua amante.<br />

Mais uma vez chegou-se para perto dela. Tinha <strong>as</strong> feições convuls<strong>as</strong><br />

de raiva e desejo. Como um animal feroz, avançou para ela, e apertando-lhe<br />

com os dedos fortes a garganta, atirou-a para trás sobre o leito.<br />

No mesmo instante a porta do camarote abriu-se ruidosamente.<br />

Rokoff, voltando-se, deu de rosto com o cozinheiro sueco.<br />

Nos olhos usualmente sorrateiros do rapaz havia agora uma<br />

expressão de estupidez completa. Ocupou-se em arranjar a refeição de Lady<br />

Greystoke sobre a mesinha, a um lado do seu camarote.<br />

expressão.<br />

O russo olhou fixamente para ele.<br />

— Com que ousadia — gritou — entra aqui sem licença? Saia!<br />

O cozinheiro fitou os seus olhos azuis nos de Rokoff, e sorriu, sem<br />

— Penso que vai ventar logo mais, e b<strong>as</strong>tante —- disse e voltou a<br />

arranjar de novo <strong>as</strong> travess<strong>as</strong> sobre a mesinha.<br />

— Saia, ou o atirarei pela porta afora, miserável estúpido! gritou<br />

Rokoff, dando um p<strong>as</strong>so ameaçador na direção do sueco.<br />

Anderssen continuou a sorrir alvamente para ele, m<strong>as</strong> a mão, que<br />

parecia um presunto, empunhou disfarçadamente o cabo duma faca comprida<br />

e fina, que pendia da corda gordurosa que lhe prendia o avental imundo.<br />

Rokoff notou, porém, o movimento e estacou repentinamente.<br />

Voltou-se então para Jane Clayton.


— Espero até amanhã — disse — para que reconsidere a sua<br />

resposta à minha oferta. Todos serão mandados para terra sob qualquer<br />

pretexto, menos nós dois, a criança e Paulvitch. Assistirá então à morte do seu<br />

filho.<br />

Est<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> foram dit<strong>as</strong> em francês, para que o cozinheiro não<br />

compreendesse a sinistra ameaça, que acabava de dirigir à moça. Quando<br />

acabou de falar, retirou-se brutalmente do camarote. Nem mesmo se voltou<br />

para o homem que o tinha interrompido no seu intento.<br />

Quando ele desapareceu, Sven Anderssen virou-se para Lady<br />

Greystoke. A expressão tola com que ocultava os seus pensamentos tinha<br />

desaparecido, cedendo lugar a uma expressão de <strong>as</strong>túcia e esperteza.<br />

— Está com certeza pensando que tenho sido um imbecil — disse<br />

ele. — Não é tanto <strong>as</strong>sim. Eu conheço o francês.<br />

Jane Clayton olhou para ele admirada.<br />

— Compreendeste então tudo que ele disse?<br />

— Perfeitamente — respondeu Anderssen, sorrindo.<br />

— Ouviste o que estava acontecendo aqui e vieste proteger-me?<br />

— Tem sido tão boa para mim — explicou o sueco. — Ele me<br />

trata como cachorro vagabundo. Estou disposto a ajudá-la. Espere e eu a<br />

auxiliarei. Tenho estado na Costa Ocidental muit<strong>as</strong> vezes.<br />

estão contra nós?<br />

— M<strong>as</strong> como pode ajudar-me, Sven, quando todos esses homens<br />

— Penso — disse Sven Anderssen — que vai ventar logo mais, e<br />

b<strong>as</strong>tante. — E voltando-se, saiu do camarote.<br />

Embora Jane Clayton duvid<strong>as</strong>se da capacidade do cozinheiro, e do<br />

auxílio que este lhe pudesse prestar, sentiu-se, todavia, profundamente grata<br />

pelo que ele já tinha feito. A idéia de que, entre estes inimigos tinha um amigo,<br />

foi o primeiro raio de conforto que lhe veio aliviar a carga d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> miseráveis<br />

apreensões durante a longa viagem do Kincaid.


Ela não viu mais Rokoff naquele dia, nem nenhuma outra pessoa,<br />

até que Sven lhe trouxe a refeição da tarde. Procurou fazê-lo conversar a<br />

respeito dos seus planos para auxiliá-la, m<strong>as</strong> a única coisa que pôde tirar dele<br />

foi a sua profecia usual quanto ao estado futuro do vento. Parecia que o<br />

cozinheiro tinha voltado repentinamente ao seu habitual estado de estupidez<br />

profunda.<br />

murmurou baixinho:<br />

logo mais.<br />

Contudo, quando ele ia sair do camarote com <strong>as</strong> travess<strong>as</strong> vazi<strong>as</strong>,<br />

— Fique vestida e enrole-se nos seus cobertores. Virei buscá-la<br />

E dispunha-se a sair. M<strong>as</strong> Jane reteve-o pelo braço:<br />

— Meu filho? Não posso ir sem ele!<br />

— Faça o que lhe digo e não discuta — disse Anderssen meio<br />

zangado. — Estou ajudando-a. Não me atrapalhe.<br />

Quando ele partiu, Jane atirou-se ao leito completamente<br />

desorientada. Que devia fazer? Suspeit<strong>as</strong> quanto às intenções do sueco,<br />

vieram-lhe ao cérebro. Não poderia ficar em piores condições em poder dele?<br />

Viu, porém, que essa era uma idéia louca. Não estaria em piores condições na<br />

própria companhia do diabo, do que com Nikol<strong>as</strong> Rokoff, pois o diabo ao<br />

menos tem a reputação de ser cavalheiro.<br />

Jurou uma dúzia de vezes que não sairia do Kincaid sem seu filho.<br />

Conservou-se vestida muito tempo além da sua hora habitual de deitar-se,<br />

envolta nos seus cobertores bem enrolados e amarrados com uma corda<br />

grossa, quando por volta da meia-noite ouviu um arranhar furtivo na porta.<br />

Atravessou rapidamente o quarto e puxou o trinco. A porta abriu-<br />

se sem barulho, para deixar entrar a figura embuçado do sueco. Num braço<br />

levava um embrulho — evidentemente os seus cobertores. A outra mão,<br />

levantada num movimento de quem pede silêncio, erguia o dedo indicador aos<br />

lábios.


— Leve isto — disse ele, chegando-se bem para perto da moça. —<br />

Não faça barulho quando vir o que é. É o seu filho.<br />

Mãos ligeir<strong>as</strong> arrebataram o embrulho da mão do cozinheiro,<br />

braços da mãe abraçaram a criança que dormia, enquanto lágrim<strong>as</strong> quentes de<br />

alegria corriam pel<strong>as</strong> faces de Jane, e o seu corpo todo estremecia com a<br />

emoção do momento.<br />

— Venha! — disse Anderssen. — Não temos tempo a perder.<br />

Pegou a trouxa dela, e, já do lado de fora da porta do camarote, a<br />

trouxa dele também. Conduziu-a então para o costado do vapor, preparou a<br />

escada de corda, e desceu por ela, segurando a criança, enquanto Jane descia<br />

também para o bote que os esperava embaixo. Momentos depois, cortada a<br />

corda que segurava o pequeno bote ao costado do vapor, inclinou-se para os<br />

remos, e, procurando a escuridão, seguiu pelo rio Ugambi acima.<br />

Anderssen remava como se tivesse a certeza para onde ia. Quando,<br />

depois de meia hora, a lua apareceu por entre <strong>as</strong> nuvens, deparou-se à<br />

esquerda com a foz de um afluente que entrava no Ugambi. Para este estreito<br />

canal o sueco virou a proa do pequeno bote.<br />

Jane Clayton estava perguntando a si mesma se o homem sabia para<br />

onde se dirigia. Ignorava que, na sua qualidade de cozinheiro, ele viera, a<br />

remos naquele mesmo dia, por este riacho até uma pequena aldeia, onde havia<br />

negociado com os indígen<strong>as</strong> os víveres que estes tinham à venda. Nessa<br />

oc<strong>as</strong>ião combinara os detalhes do seu plano para a aventura que estava agora<br />

mesmo iniciando.<br />

Embora fosse lua cheia, a superfície do pequeno rio estava<br />

completamente às escur<strong>as</strong>. As árvores grandes pendiam sobre <strong>as</strong> margens<br />

estreit<strong>as</strong>, formando um grande arco no centro do rio. Dos galhos,<br />

graciosamente inclinados, pendiam cipós, e enormes trepadeir<strong>as</strong> subiam em<br />

profusão pelos ramos mais altos, caindo em curv<strong>as</strong> qu<strong>as</strong>e até a tranqüila<br />

superfície da água.


Uma ou outra vez a superfície do rio era repentinamente agitada<br />

diante deles por um enorme crocodilo, <strong>as</strong>sustado pelo movimento dos remos.<br />

Outr<strong>as</strong> vezes, soprando e roncando, uma família de hipopótamos mergulhava<br />

de um banco de areia para o fundo fresco e seguro.<br />

Da selva espessa de cada lado vinham os gritos estranhos da noite<br />

— a voz rouca da hiena, o rosnar da pantera, o urro profundo e terrível do<br />

leão. E com eles sons estranhos e sobrenaturais que à moça, não podendo<br />

atribuí-los a qualquer ladrão da noite, mais terríveis pareciam, devido ao seu<br />

mistério.<br />

Na popa do bote ia ela sentada, com o filho apertado ao peito, e<br />

esse entezinho tenro e indefeso fazia-a mais feliz nessa noite do que os muitos<br />

di<strong>as</strong> que ela tinha p<strong>as</strong>sado a bordo.<br />

Conquanto não soubesse para onde ia, nem, tampouco, a sorte que<br />

a aguardava, sentia-se ao menos, naquele momento, contente e agradecida,<br />

por poder apertar o filho nos braços, embora fosse por tão pouco tempo.<br />

Esperava ansiosa que amanhecesse, para contemplar mais uma vez o rostinho<br />

alegre do seu pequeno Jack de olhos negros.<br />

Muit<strong>as</strong> vezes procurou forçar os olhos a verem através da escuridão<br />

da noite, ainda que fosse apen<strong>as</strong> um rápido momento, aqueles traços queridos,<br />

m<strong>as</strong> somente um fraco esboço do rosto infantil recompensou os seus<br />

esforços. Então, mais uma vez, ela abraçava o embrulhinho tépido,<br />

aconchegando-o ao seu coração palpitante.<br />

Deviam ser qu<strong>as</strong>e três hor<strong>as</strong> da manhã quando Anderssen atracou o<br />

bote em uma praia diante de um espaço, onde se podia avistar<br />

imperfeitamente, à fraca luz da lua, um grupo de choupan<strong>as</strong> indígen<strong>as</strong><br />

rodead<strong>as</strong> por uma cerca de espinhos.<br />

O sueco chamou vári<strong>as</strong> vezes, antes que pudesse obter resposta da<br />

aldeia. Só lhe responderam porque era esperado, tão receosos são os indígen<strong>as</strong><br />

d<strong>as</strong> vozes que saem da escuridão da noite. Depois de ajudar Jane Clayton a


desembarcar com a criança, amarrou o bote a um pequeno arbusto, e<br />

apanhando os cobertores, conduziu-a para a cerca.<br />

No portão da aldeia foram recebidos por uma mulher do chefe que<br />

Anderssen tinha pago para auxiliá-lo. Ela os levou para a choupana do chefe,<br />

m<strong>as</strong> dizendo-lhe Anderssen que eles dormiriam do lado de fora, no chão, ela<br />

os deixou livres de agir como quisessem.<br />

O sueco, depois de explicar, com o seu modo rápido, que sem<br />

dúvida <strong>as</strong> choupan<strong>as</strong> eram suj<strong>as</strong> e chei<strong>as</strong> de vermes, estendeu os cobertores de<br />

Jane no chão para ela, e a uma pequena distância os seus, deitou-se para<br />

dormir.<br />

Decorreu algum tempo antes que a moça pudesse achar uma<br />

posição confortável sobre o chão duro, m<strong>as</strong> por fim, com a criança na curva<br />

do braço, adormeceu vencida pelo cansaço.<br />

Quando acordou já era dia claro.<br />

Ao redor dela havia um grupo de indígen<strong>as</strong> curiosos. A maior parte<br />

eram homens, pois entre os aborígenes é o varão que possui a curiosidade na<br />

sua forma mais exagerada. Instintivamente Jane Clayton puxou a criança para<br />

mais perto dela, embora visse logo que os negros não tinham intenção alguma<br />

de fazer o menor mal nem a ela nem à criança.<br />

De fato, um deles ofereceu-lhe uma cuia cheia de leite — cuia suja e<br />

enfumaçada, com a antiga nata de leite coalhado, de muito tempo, emp<strong>as</strong>tada<br />

em camad<strong>as</strong> por dentro. M<strong>as</strong> a boa intenção comoveu profundamente a<br />

moça. Seu rosto iluminou-se por momentos com um daqueles qu<strong>as</strong>e<br />

esquecidos sorrisos radiantes que tinham ajudado a fazer a sua beleza famosa,<br />

tanto em Baltimore, como em Londres.<br />

Tomou a cuia em uma d<strong>as</strong> mãos, evitando causar o menor desgosto<br />

a quem lhe fazia a gentil oferta, levou-a aos lábios, embora vencendo a custo a<br />

náusea que a <strong>as</strong>saltou ao aproximar a cuia fedorenta d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> narin<strong>as</strong>.


Foi Anderssen que veio em seu auxílio; tomando-lhe a cuia d<strong>as</strong><br />

mãos, bebeu uma boa porção, e devolveu-a ao indígena com um presente de<br />

cont<strong>as</strong> azuis.<br />

O sol já estava brilhando, e embora a criança ainda dormisse, Jane<br />

mal podia conter o seu desejo impaciente de lançar ao menos um breve olhar<br />

ao rosto querido. Os indígen<strong>as</strong> tinham-se retirado por ordem do seu chefe,<br />

que agora ficou falando com Anderssen, um pouco af<strong>as</strong>tado dela.<br />

Enquanto ponderava se era aconselhável perturbar o sono da<br />

criança, levantar o cobertor que agora lhe protegia o rosto dos raios do sol,<br />

notou que o cozinheiro conversava com o chefe na linguagem dos negros.<br />

Que homem maravilhoso! Até a véspera, considerava-o ignorante e<br />

estúpido, e agora, ness<strong>as</strong> últim<strong>as</strong> vinte e quatro hor<strong>as</strong>, estava vendo que ele<br />

falava não somente o inglês, m<strong>as</strong> o francês e até o dialeto primitivo da Costa-<br />

Ocidental.<br />

Julgara-o um velhaco, cruel e indigno de confiança; m<strong>as</strong> tanto<br />

quanto podia julgar, ele tinha provado ser o contrário disso tudo. Qu<strong>as</strong>e não<br />

lhe parecia crível que ele pudesse servi-la <strong>as</strong>sim, por motivos puramente<br />

cavalheirescos. Devia haver alguma intenção ou plano ulterior.<br />

Pensando nisto, olhou para ele, e estremeceu, observando-lhe os<br />

olhos muito juntos, os traços repulsivos d<strong>as</strong> feições. Estava convencida que<br />

nenhum sentimento elevado poderia ocultar-se atrás dum tão repugnante<br />

exterior.<br />

M<strong>as</strong> quando estava <strong>as</strong>sim pensando, e hesitando também se seria<br />

prudente descobrir o rosto da criança, ouviu um pequeno arrulho que saía do<br />

pequeno embrulho aconchegado ao colo, e então um grande contentamento<br />

alegrou o seu coração.<br />

A criança estava acordada! Agora ela poderia beijá-la à vontade.<br />

Descobriu rápido o rosto da criança. Anderssen, que lhe acompanhava todos<br />

os movimentos, viu-a vacilar, segurando a criança com os braços af<strong>as</strong>tados e


olhando horrorizada <strong>as</strong> facezinh<strong>as</strong> bochechud<strong>as</strong> e os olhinhos brilhantes.<br />

Ouviu-lhe então um grito doloroso. Os joelhos de Jane vergaram e ela caiu<br />

desmaiada no chão.


CAPÍTULO 10: O sueco<br />

Quando os guerreiros, apinhados ao redor de Tarzan e Sheeta,<br />

viram bem que era uma pantera, uma verdadeira pantera, que tinha<br />

interrompido a dança da morte, animaram-se um pouco, pois diante de tod<strong>as</strong><br />

est<strong>as</strong> lanç<strong>as</strong> mesmo a poderosa Sheeta estaria condenada.<br />

Rokoff incitava o chefe para mandar os lanceiros atirarem <strong>as</strong> su<strong>as</strong><br />

lanç<strong>as</strong>, e o negro ia naquele instante dar a ordem, quando os seus olhos<br />

p<strong>as</strong>saram além de Tarzan, seguindo o olhar do homem-macaco.<br />

Com um grito de terror o chefe fez meia volta e fugiu na direção do<br />

portão da aldeia, e quando o povo olhou para ver a causa do seu susto, todos<br />

também fugiram — pois descendo sobre eles, com os seus corpos enormes<br />

exagerados pelo reflexo da claridade da lua e da fogueira, vinham os<br />

hediondos macacos de Akut.<br />

No instante em que os indígen<strong>as</strong> viraram para fugir, o grito<br />

selvagem do homem-macaco soou acima dos gritos dos negros e, em resposta,<br />

Sheeta e os macacos saltaram rosnando atrás dos fugitivos. Alguns dos<br />

guerreiros voltaram-se para combater com os seus bravios antagonist<strong>as</strong>, m<strong>as</strong><br />

sucumbiram todos ante a fúria diabólica dos animais ferozes.<br />

Outros foram arr<strong>as</strong>tados na fuga. Só quando a aldeia se esvaziou e<br />

o último dos negros desapareceu na selva, foi que Tarzan pôde chamar de<br />

novo o seu bando para seu lado. Descobriu, porém, com grande pesar, que a<br />

nenhum deles, nem mesmo a Akut, que era mais ou menos inteligente, podia<br />

fazer compreender o seu desejo de que o solt<strong>as</strong>sem d<strong>as</strong> amarr<strong>as</strong> que o atavam<br />

ao poste.<br />

Naturalmente, no fim de algum tempo, a idéia acabaria por filtrar-se<br />

através dos seus crânios espessos; m<strong>as</strong>, entrementes, muit<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> poderiam<br />

acontecer! — Os negros poderiam voltar, reforçados, para retomarem a aldeia;<br />

os brancos poderiam matá-los todos com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> carabin<strong>as</strong>, ocultos pel<strong>as</strong><br />

árvores em volta; ele mesmo podia morrer de fome, antes que os macacos,


pouco inteligentes, cheg<strong>as</strong>sem a compreender que desejava que roessem <strong>as</strong><br />

cord<strong>as</strong> para ele <strong>as</strong> arrebentar.<br />

Quanto a Sheeta — essa compreendia menos do que os macacos;<br />

m<strong>as</strong> Tarzan admirava-se da inteligência maravilhosa que este animal tinha<br />

evidenciado. Que sentia afeição verdadeira por ele não havia dúvida, pois<br />

agora que os negros tinham sido derrotados, ela andava vagarosamente em<br />

volta do poste, roçando-se n<strong>as</strong> pern<strong>as</strong> do homem-macaco e arrulhando como<br />

uma criança que está contente. Que tinha ido por sua própria vontade buscar<br />

o resto do bando para salvá-lo, Tarzan não pôde duvidar. A sua Sheeta era<br />

uma verdadeira jóia entre os animais.<br />

A ausência de Mugambi consternou b<strong>as</strong>tante o homem-macaco,<br />

que procurou saber de Akut o que tinha acontecido ao negro. Receava que os<br />

animais, livres da sua presença, pudessem ter caído sobre o homem para<br />

devorá-lo; m<strong>as</strong> a tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> pergunt<strong>as</strong>, o grande macaco se limitava a responder<br />

apontando para trás na direção do lugar por onde eles tinham saído da selva.<br />

Tarzan p<strong>as</strong>sou a noite ainda amarrado ao poste. Pela madrugada os<br />

seus receios foram confirmados, ao avistar os vultos nus de alguns negros<br />

movendo-se sorrateiramente pelo mato, à volta da floresta que cercava a<br />

aldeia. Os negros estavam voltando.<br />

Com o amanhecer recobrariam ânimo para fazer uma carga sobre<br />

os animais que os tinham expulsado d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> moradi<strong>as</strong>. O resultado do<br />

encontro parecia certo, se os selvagens pudessem subjugar o seu terror<br />

supersticioso, pois contra o grande número deles, e su<strong>as</strong> lanç<strong>as</strong> comprid<strong>as</strong> e<br />

flech<strong>as</strong> envenenad<strong>as</strong>, não se podia esperar que a pantera e os macacos<br />

pudessem sobreviver a uma carga verdadeiramente séria.<br />

Que os negros estavam preparando uma carga, tornou-se evidente<br />

alguns minutos depois, quando começaram a mostrar-se em grande número,<br />

dançando e pulando, enquanto sacudiam <strong>as</strong> su<strong>as</strong> lanç<strong>as</strong> e berravam insultos<br />

ferozes e gritos guerreiros na direção da aldeia.


Tarzan sabia que est<strong>as</strong> manobr<strong>as</strong> continuariam até que os negros<br />

tivessem atingido um estado de coragem, suficiente para sustentá-los durante<br />

uma pequena carga na direção da aldeia, e embora duvid<strong>as</strong>se que eles a<br />

alcanç<strong>as</strong>sem na primeira tentativa, acreditava que na segunda ou terceira<br />

entrariam pelo portão. O resultado não poderia ser senão o extermínio dos<br />

defensores corajosos, porém, desarmados e indisciplinados, de Tarzan.<br />

Como tinha adivinhado, a primeira carga só levou os guerreiros que<br />

berravam a uma pequena distância no campo aberto — sendo necessário um<br />

grito agudo e estranho do homem-macaco para fazê-los voltar correndo para<br />

a selva. Durante meia hora pularam e gritaram para se encorajarem, voltando<br />

afinal mais uma vez à carga.<br />

Desta vez vieram até o portão da aldeia, m<strong>as</strong> quando Sheeta e os<br />

hediondos macacos investiram contra eles — os negros, gritando com terror,<br />

fugiram novamente para a selva.<br />

Repetiram, todavia, ainda uma vez, <strong>as</strong> danç<strong>as</strong> e os gritos. Desta vez<br />

Tarzan não duvidava que entr<strong>as</strong>sem na aldeia e complet<strong>as</strong>sem o trabalho que<br />

um punhado de homens brancos resolvidos teria conseguido na primeira<br />

tentativa.<br />

Ter estado tão perto da salvação e nada ter conseguido só porque<br />

não pôde fazer os seus pobres amigos selvagens compreenderem<br />

precisamente o que desejava que fizessem, irritava-o sobremodo, m<strong>as</strong> não<br />

tinha coragem de culpá-los. Tinham feito, o mais que podiam, e agora estava<br />

certo que, sem dúvida, morreriam ali com ele num esforço inútil para defendê-<br />

lo.<br />

Os negros já se estavam preparando para a carga. Alguns tinham<br />

avançado até uma pequena distância, em direção da aldeia, e dispunham-se os<br />

outros a segui-los. Dentro em pouco toda a horda selvagem estaria correndo<br />

sobre eles.


Tarzan só tinha um pensamento: a criança, que devia estar em<br />

algum lugar do deserto implacável. O seu coração estalava de dor com a idéia<br />

de que não poderia mais procurar nem salvar o filho. Isto, e a evocação do<br />

sofrimento de Jane, era o que pesava sobre o seu selvagem espírito, nestes<br />

instantes que considerava os últimos de sua vida. Socorro, tudo que ele podia<br />

esperar, tinha chegado no momento do seu aperto — e falhara. Não havia<br />

nada mais que esperar.<br />

Os negros já estavam a meio caminho quando a atenção de Tarzan<br />

foi atraída pelos gestos de um dos macacos. O animal olhava para uma d<strong>as</strong><br />

choupan<strong>as</strong>.<br />

Tarzan seguiu esse olhar. Teve um infinito alívio quando viu o<br />

corpo forte de Mugambi correndo em sua direção.<br />

O enorme negro ofegava de cansaço. Quando o primeiro selvagem<br />

chegou ao portão da aldeia, a faca do indígena cortava a última d<strong>as</strong> cord<strong>as</strong> que<br />

ainda amarravam Tarzan ao poste.<br />

Na rua, jaziam os corpos dos selvagens que tinham caído diante do<br />

bando na véspera. De um deles Tarzan apanhou uma lança e um pau, e com<br />

Mugambi a seu lado e o bando de macacos rosnando em volta, encontrou-se<br />

com os indígen<strong>as</strong> quando estes transpuseram o portão.<br />

Feroz e terrível foi a batalha que se seguiu, sendo afinal os<br />

selvagens derrotados; mais pelo terror, talvez, à vista de um negro e um<br />

branco brigando em companhia de uma pantera e dos enormes macacos<br />

ferozes de Akut, do que devido à incapacidade deles de subjugar a pequena<br />

força que se lhes opunha.<br />

Tendo caído n<strong>as</strong> mãos de Tarzan um prisioneiro, o homem-macaco<br />

interrogou-o para saber o que tinha acontecido a Rokoff e os seus<br />

companheiros. Tendo-lhe prometido a liberdade pela informação, o negro<br />

contou tudo o que sabia acerca dos movimentos do russo.


Parece que, cedo, naquela manhã, o seu chefe tinha procurando<br />

persuadir os brancos a voltarem com ele para a aldeia e com su<strong>as</strong> carabin<strong>as</strong><br />

destruir o bando feroz que se tinha apoderado da mesma; m<strong>as</strong> Rokoff parecia<br />

ter mais medo do gigantesco homem branco e dos seus estranhos<br />

companheiros, do que os próprios negros.<br />

Por preço algum consentiu em voltar ou aproximar-se da aldeia.<br />

Em vez disto levou o seu bando apressadamente para o rio, onde roubaram<br />

muit<strong>as</strong> cano<strong>as</strong> que os negros tinham escondido aí.<br />

Quando pela última vez o viram com os seus companheiros<br />

estavam eles remando com toda a força rio acima, com os seus carregadores<br />

da aldeia de Kaviri, manejando os remos.<br />

Assim, mais uma vez, Tarzan dos Macacos com o seu bando<br />

hediondo começou novamente a procurar o filho e a perseguir o seu raptor.<br />

Durante di<strong>as</strong> fatigantes seguiram por uma parte do país qu<strong>as</strong>e<br />

desabitado somente para chegar à triste conclusão de que estavam seguindo<br />

uma pista errada. O pequeno bando tinha ficado reduzido. Três dos macacos<br />

de Akut tinham morrido na luta na aldeia. Agora, com Akut, havia cinco<br />

grandes macacos; e com eles, Sheeta, Mugambi e Tarzan.<br />

O homem-macaco não ouviu mais boatos a respeito dos três que<br />

tinham precedido Rokoff — o homem branco a mulher e a criança. Quem<br />

eram o homem e a mulher não podia adivinhar; m<strong>as</strong> a idéia de que a criança<br />

fosse o seu filho b<strong>as</strong>tava para conservá-lo sempre na pista. Tinha certeza de<br />

que Rokoff estava seguindo estes três, e <strong>as</strong>sim sabia que enquanto ele pudesse<br />

seguir o r<strong>as</strong>tro do russo, ganharia tempo para conseguir arrebatar seu filho dos<br />

perigos e horrores que o ameaçavam.<br />

Retrocedendo, depois de ter perdido a pista de Rokoff, Tarzan a<br />

achou novamente num ponto onde o russo tinha deixado o rio e entrado no<br />

mato na direção do norte. Ele só podia explicar esta mudança admitindo que a<br />

criança tivesse sido levada pelos dois que agora a tinham em seu poder.


Em nenhum lugar, entretanto, ao longo do caminho, pôde receber<br />

informação definitiva que pudesse <strong>as</strong>segurá-lo positivamente de que estava na<br />

pista da criança. Nem um só indígena dos que interrogara tinha visto ou<br />

ouvido falar deste bando, embora qu<strong>as</strong>e todos tivessem estado em contato<br />

direto com o russo ou falado com outros em tais condições.<br />

Foi com dificuldade que Tarzan pôde achar meios de comunicar-se<br />

com os indígen<strong>as</strong>, pois quando estes viam os seus companheiros, fugiam<br />

precipitadamente para o mato. A sua única alternativa era ir adiante do seu<br />

bando e armar uma emboscada para algum selvagem que porventura se<br />

ach<strong>as</strong>se sozinho na selva.<br />

Um dia, enquanto estava <strong>as</strong>sim ocupado em perseguir um selvagem<br />

suspeito, encontrou um negro no ato de atirar uma lança contra um rapaz<br />

branco ferido, que se agachava por trás de um<strong>as</strong> árvores, ao lado do caminho.<br />

Tarzan reconheceu logo esse rapaz branco, pois já o tinha visto muit<strong>as</strong> vezes.<br />

No fundo da sua memória estavam implantados aqueles traços<br />

repulsivos — os olhos muito próximos um do outro, a expressão de velhaco,<br />

o bigode amarelo e decaído.<br />

Ocorreu-lhe logo que este rapaz não estava entre aqueles que<br />

haviam acompanhado Rokoff na aldeia onde Tarzan tinha estado prisioneiro.<br />

Ele os tinha visto todos, e este rapaz não estava lá. Somente poderia haver<br />

uma explicação — era ele quem tinha fugido diante do russo com a mulher e a<br />

criança, e a mulher era Jane Clayton. Agora compreendia a significação d<strong>as</strong><br />

palavr<strong>as</strong> de Rokoff.<br />

O homem-macaco empalideceu ao fitar os olhos no rosto branco e<br />

marcado de vícios do sueco. Na testa de Tarzan sobressaía-lhe o largo vinco<br />

vermelho que <strong>as</strong>sinalava a cicatriz, onde, anos antes, Terkaz lhe fendera a<br />

fonte na batalha feroz em que ele conquistara o direito de ser considerado o<br />

rei dos macacos de Kerchak.


O homem era a sua presa, o negro não a ganharia. Com este<br />

pensamento pulou sobre o selvagem ferindo-o com a lança antes que este<br />

pudesse alcançar o seu alvo. O negro, sacando a sua faca, voltou-se para<br />

combater este novo inimigo, enquanto o sueco, no mato, <strong>as</strong>sistia a um duelo,<br />

como nunca sonhara ver — um homem branco, seminu, lutando com um<br />

negro também seminu, braço a braço, com <strong>as</strong> arm<strong>as</strong> rudes do homem<br />

primitivo, no princípio da luta, e depois com <strong>as</strong> mãos e os dentes como os<br />

brutos, dos quais haviam saído os seus antep<strong>as</strong>sados.<br />

A princípio, Anderssen não reconheceu o branco; depois, porém,<br />

recordou-se de que já tinha visto aquele gigante, e seus olhos ficaram cheios<br />

de surpresa, imaginando que este animal, que rosnava e dilacerava, talvez fosse<br />

o bem trajado cavalheiro inglês, que tinha estado prisioneiro a bordo do<br />

Kincaid.<br />

Um nobre inglês! Ele soubera da identidade dos prisioneiros do<br />

Kincaid por Lady Greystoke durante a sua fuga pelo Ugambi. Antes, bem<br />

como os outros membros da tripulação do vapor, não sabia quem eram os<br />

dois.<br />

A luta tinha acabado. Tarzan foi forçado a matar o seu antagonista,<br />

porque este não quisera entregar-se.<br />

O sueco viu o homem branco levantar-se ligeiro ao lado do cadáver<br />

do inimigo e, colocando-lhe um pé sobre o pescoço partido, levantar a voz no<br />

desafio horrível do macaco vitorioso.<br />

Anderssen estremeceu. Então Tarzan virou-se para ele. N<strong>as</strong> feições<br />

contraíd<strong>as</strong>, no <strong>as</strong>pecto cruel, nos olhos cinzentos o sueco viu a vontade de<br />

matar.<br />

— Onde está a minha mulher? — perguntou <strong>as</strong>peramente o<br />

homem-macaco. — Onde está a criança?


Anderssen queria responder, m<strong>as</strong> um repentino acesso de tosse o<br />

eng<strong>as</strong>gou. Uma flecha atravessara-lhe o pulmão, e quando tossiu o sangue do<br />

órgão ferido golfou-lhe de repente da boca e d<strong>as</strong> narin<strong>as</strong>.<br />

Tarzan aguardou que a crise p<strong>as</strong>s<strong>as</strong>se. Como uma estátua de bronze<br />

— fria, dura e sem misericórdia — fitou ameaçadoramente o homem<br />

indefeso, esperando arrancar dele a informação de que precisava para então o<br />

matar.<br />

Logo que a tosse e a hemorragia cessaram, o homem ferido<br />

procurou falar novamente. Tarzan ajoelhou-se, aproximando o ouvido dos<br />

lábios que se moviam fracamente.<br />

com Rokoff?<br />

— A mulher e a criança? — repetiu. — Onde estão?<br />

Anderssen apontou para o r<strong>as</strong>tro acima.<br />

— O russo apanhou-<strong>as</strong> — murmurou.<br />

— Como vieste aqui? — continuou Tarzan. — Por que não estás<br />

— Eles nos apanharam — replicou Anderssen, numa voz tão baixa,<br />

que o homem-macaco mal podia distinguir <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>. — Eles nos<br />

apanharam. Eu lutei, m<strong>as</strong> os meus homens fugiram. Então me pegaram<br />

quando fui ferido. Rokoff ordenou que me deix<strong>as</strong>sem aqui, às hien<strong>as</strong>. Isto era<br />

pior do que me matar. Ele levou a sua mulher e seu filho.<br />

— Que estav<strong>as</strong> fazendo com eles? Para onde os conduzi<strong>as</strong>? —<br />

perguntou Tarzan, e, com fúria, saltando sobre o rapaz, com olhos ferozes a<br />

lhe chisparem ódio e vingança: Que mal fizeste à minha mulher ou à criança?<br />

Fala depressa antes que eu te mate! Faze <strong>as</strong> pazes com Deus! Dize-me tudo,<br />

ou eu te r<strong>as</strong>garei em pedaços com <strong>as</strong> mãos e os dentes. Já viste que sou capaz<br />

de fazer isto!<br />

Um olhar de grande surpresa apareceu no rosto de Anderssen.<br />

— Por quê? — murmurou. — Eu não os maltratei. Pelo contrário,<br />

procurei salvá-los do russo. Sua mulher foi boa para mim no Kincaid, e eu


ouvia às vezes a criança chorar. Tenho também mulher e filho em Cristiânia e<br />

eu não podia ver por mais tempo sua mulher e seu filho separados e n<strong>as</strong> mãos<br />

de Rokoff. Era somente isto. Por ac<strong>as</strong>o lhe parece que estou aqui para fazer-<br />

lhe mal? — continuou depois duma pausa, apontando para a flecha cravada<br />

no peito.<br />

Na voz e na expressão do homem havia algo de sincero que<br />

convenceu Tarzan da verdade d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> afirmações. O que mais o<br />

impressionava era o fato de que Anderssen evidentemente parecia mais<br />

magoado que <strong>as</strong>sustado. Sabia que ia morrer, por isso <strong>as</strong> ameaç<strong>as</strong> de Tarzan<br />

tinham pouco efeito sobre ele; m<strong>as</strong> era evidente o seu desejo de que o inglês<br />

soubesse a verdade e não lhe atribuísse o pensamento que su<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> e<br />

modos tinham indicado.<br />

O homem-macaco ajoelhou-se então ao lado do sueco.<br />

— Sinto muito — disse ele. — Esperava encontrar somente<br />

canalh<strong>as</strong> na companhia de Rokoff. Vejo que me enganei. Vamos deixar o<br />

resto para depois; agora tratemos do que é mais urgente: levá-lo<br />

imediatamente daqui, a fim de lhe cuidar d<strong>as</strong> ferid<strong>as</strong>. Precisamos tê-lo de pé<br />

outra vez, o mais depressa possível.<br />

O sueco, sorrindo, sacudiu a cabeça:<br />

— Vá adiante, e procure sua mulher e seu filho. Eu já estou qu<strong>as</strong>e<br />

morto; m<strong>as</strong>. . . — hesitou — Não gosto de pensar n<strong>as</strong> hien<strong>as</strong>. Por favor, me<br />

mate...<br />

Tarzan estremeceu. Um momento antes tinha estado a ponto de<br />

matar aquele homem. Agora não lhe tiraria a vida como não o faria aos seus<br />

melhores amigos.<br />

sua posição.<br />

Levantou a cabeça do sueco nos seus braços para mudar e aliviar a<br />

Mais uma vez vieram um acesso de tosse e a terrível hemorragia.<br />

Quando terminou Anderssen ficou com os olhos fechados.


Tarzan pensou que ele estava morto. M<strong>as</strong> de repente ele levantou<br />

os olhos para os do homem-macaco, suspirou e disse num murmúrio muito<br />

fraco e baixo:<br />

— Penso que vai ventar logo, e b<strong>as</strong>tante.<br />

E morreu.


CAPÍTULO 11: Tambudza<br />

Tarzan cavou um túmulo r<strong>as</strong>o para o cozinheiro do Kincaid, em<br />

cujo peito, sem embargo de um exterior repugnante, tinha batido um coração<br />

generoso. Era somente isto que podia fazer na selva cruel, pelo homem que<br />

tinha dado a vida em solidariedade ao seu filho e mulher.<br />

Então Tarzan continuou mais uma vez a perseguição de Rokoff.<br />

Agora, que tinha certeza de que a mulher que o precedera era em verdade<br />

Jane, e que ela tinha caído novamente n<strong>as</strong> mãos do russo, parecia-lhe que com<br />

toda a velocidade incrível dos seus músculos ligeiros e ágeis ele se movia<br />

como uma lesma.<br />

Foi com dificuldade que conservou a pista, pois havia nesse ponto<br />

muitos caminhos através da selva atravessando-a e retrocedendo, abrindo-se<br />

em encruzilhad<strong>as</strong> e com ramificações em todos os sentidos, pelos quais<br />

haviam p<strong>as</strong>sado inúmeros indígen<strong>as</strong>, indo e vindo. O cheiro dos homens<br />

brancos era prejudicado pelo dos carregadores indígen<strong>as</strong> que os tinham<br />

acompanhado e, além disso, havia ainda o de outros indígen<strong>as</strong> e animais<br />

selvagens.<br />

Era b<strong>as</strong>tante confuso; m<strong>as</strong> Tarzan continuou sem esmorecer,<br />

requintando o sentido da visão sobre o do olfato, de forma que melhor<br />

pudesse conservar a pista certa. M<strong>as</strong>, apesar de toda a sua diligência, sobreveio<br />

a noite justamente quando lhe pareceu que seguia uma pista errada.<br />

Sabia que o seu bando lhe seguiria a pista, e por isso teve o cuidado<br />

de fazê-la o mais distinta possível, roçando muit<strong>as</strong> vezes contra os cipós e<br />

trepadeir<strong>as</strong> que margeavam o caminho da selva e deixando de outros modos o<br />

seu odor perfeitamente perceptível.<br />

Com a noite começou a cair uma chuva forte, e ele não teve outro<br />

remédio senão esperar, sob o abrigo duma grande árvore, que rompesse a<br />

manhã; m<strong>as</strong> a madrugada não trouxe interrupção alguma à chuva torrencial.


Durante uma semana o sol ficou oculto, por gross<strong>as</strong> nuvens,<br />

enquanto chuv<strong>as</strong> violent<strong>as</strong> e tempestades de vento apagavam os últimos restos<br />

do odor que Tarzan procurava constantemente, embora em vão.<br />

Durante todo este tempo não viu nenhum sinal de indígen<strong>as</strong>, nem<br />

dos de seu próprio bando, os quais ele receava lhe teriam talvez perdido a<br />

pista durante a terrível tempestade. Como o lugar lhe era estranho, não pôde<br />

conhecer com exatidão o caminho, uma vez que não tivera nem o sol nem a<br />

lua ou <strong>as</strong> estrel<strong>as</strong> para orientá-lo.<br />

Quando finalmente o sol rompeu <strong>as</strong> nuvens na manhã do sétimo<br />

dia, o homem-macaco estava qu<strong>as</strong>e louco.<br />

Pela primeira vez na sua vida, Tarzan dos Macacos tinha estado<br />

perdido na selva. Que fosse essa a oc<strong>as</strong>ião em que tal lhe acontecesse, parecia-<br />

lhe por demais cruel.<br />

Em algum lugar, nesta terra selvagem, sua mulher e seu filho<br />

estavam n<strong>as</strong> garr<strong>as</strong> do bandido Rokoff.<br />

Que martírios horríveis não teriam suportado durante aqueles sete<br />

di<strong>as</strong> terríveis nos quais a natureza se tinha oposto aos esforços dele para<br />

encontrá-los! Tarzan conhecia o russo, em cujo poder eles estavam. Conhecia-<br />

o tão bem, que não pôde duvidar que o homem, enraivecido por Jane lhe ter<br />

escapado uma vez, e sabendo que Tarzan podia estar próximo, no seu r<strong>as</strong>tro,<br />

cumpriria sem perda de tempo qualquer vingança que a sua mente corrompida<br />

pudesse conceber.<br />

M<strong>as</strong> agora que o sol brilhava novamente, o homem-macaco ainda<br />

não sabia que direção deveria seguir. Sabia que Rokoff tinha deixado o rio<br />

para perseguir Anderssen; m<strong>as</strong> ignorava se ele continuaria na direção do<br />

interior ou voltaria ao Ugambi.<br />

O homem-macaco viu que o rio, no ponto onde o tinha deixado,<br />

estava ficando estreito e rápido, tanto que julgava que não podia ser navegável<br />

nem por cano<strong>as</strong> para qualquer distância considerável na direção do seu


manancial. Contudo, se Rokoff não tinha voltado ao rio, em que direção tinha<br />

prosseguido?<br />

Pela direção da fuga de Anderssen com Jane e a criança, Tarzan<br />

estava convencido que o russo tinha resolvido intentar o tremendo feito de<br />

atravessar o continente até Zanzibar. Teria mesmo Rokoff ousado<br />

empreender uma viagem tão perigosa?<br />

O medo poderia obrigá-lo a fazer a tentativa agora que conhecia a<br />

qualidade do bando terrível que estava na sua pista, e não ignorava que Tarzan<br />

dos Macacos o estava seguindo, para saciar a vingança que ele bem merecia.<br />

Finalmente o homem-macaco decidiu continuar para o nordeste, na<br />

direção da África Oriental Alemã, até que encontr<strong>as</strong>se indígen<strong>as</strong> de que<br />

pudesse obter informação a respeito do lugar onde se achava Rokoff. No<br />

segundo dia, depois que cessou a chuva, chegou a uma aldeia indígena, cujos<br />

habitantes fugiram para o mato quando o viram. M<strong>as</strong> Tarzan os perseguiu, e<br />

depois de uma breve corrida conseguiu alcançar um guerreiro jovem. O rapaz<br />

estava tão <strong>as</strong>sustado que não pôde se defender, deixando cair <strong>as</strong> arm<strong>as</strong> e<br />

atirando-se ao chão, com os olhos muito abertos, fitos em Tarzan. Com muita<br />

dificuldade tranquilizou o homem-macaco os receios do rapaz, conseguindo<br />

dele uma explicação coerente quanto à causa do seu inexplicável terror.<br />

Tarzan soube então que um bando de homens brancos tinha<br />

p<strong>as</strong>sado pela aldeia alguns di<strong>as</strong> antes. Estes homens tinham-lhes comunicado a<br />

próxima chegada de um terrível diabo branco que os perseguira, prevenindo<br />

<strong>as</strong>sim os indígen<strong>as</strong> contra o mesmo e o bando horrível de demônios que o<br />

acompanhava.<br />

O negro reconheceu Tarzan como o diabo branco pel<strong>as</strong> descrições<br />

dad<strong>as</strong> por aqueles e pelos seus criados negros. Atrás dele esperava o selvagem<br />

ver uma horda de demônios disfarçados como macacos e panter<strong>as</strong>.


Nisto tudo Tarzan viu a mão <strong>as</strong>tuta de Rokoff, que estava<br />

procurando tornar-lhe a viagem o mais difícil possível, predispondo os<br />

indígen<strong>as</strong> contra ele, incutindo-lhes um medo supersticioso.<br />

O indígena contou ainda a Tarzan que o homem branco que<br />

comandava a expedição tinha-lhes prometido uma recompensa fabulosa se<br />

mat<strong>as</strong>sem o diabo branco. Isto pretendiam eles fazer, c<strong>as</strong>o a oportunidade se<br />

apresent<strong>as</strong>se; m<strong>as</strong> no momento que viram Tarzan, o sangue se lhes tinha<br />

tornado em água, como os carregadores dos homens brancos lhes tinham dito<br />

que aconteceria.<br />

Verificando que o homem-macaco não fazia nenhuma tentativa<br />

para prejudicá-lo, o indígena recobrou finalmente o ânimo, e, a pedido de<br />

Tarzan, acompanhou o diabo branco à aldeia, chamando pelo caminho os<br />

companheiros, para que volt<strong>as</strong>sem também, pois o diabo branco prometia não<br />

lhes fazer mal se regress<strong>as</strong>sem imediatamente e lhe respondessem às su<strong>as</strong><br />

pergunt<strong>as</strong>.<br />

Um por um foram os negros regressando à aldeia; m<strong>as</strong> que os seus<br />

receios não estavam inteiramente dissipados era evidente pelos olhares<br />

apreensivos que constantemente lançavam ao homem-macaco.<br />

O chefe achava-se entre os primeiros que regressaram à aldeia, e<br />

como era com ele que Tarzan estava ansioso por falar, não perdeu tempo em<br />

entabular conversa com o negro.<br />

Este era baixo e gordo, com uma cara extraordinariamente grosseira<br />

e abjeta, e tinha os braços como os de macaco. Sua expressão denotava<br />

falsidade.<br />

Somente o terror supersticioso produzido nele pel<strong>as</strong> históri<strong>as</strong><br />

post<strong>as</strong> nos seus ouvidos pelos brancos e negros do bando do russo impedia-o<br />

de saltar sobre Tarzan com os seus guerreiros e matá-lo aí mesmo, pois ele e o<br />

seu povo eram inveterados canibais. M<strong>as</strong> o receio de que o branco pudesse ser<br />

um diabo de verdade, e que, na selva atrás dele, os seus demônios ferozes


esperavam para executar o que ele lhes mand<strong>as</strong>se, impediu-o de pôr os seus<br />

desejos em ação.<br />

Tarzan interrogou demoradamente o negro, e comparando <strong>as</strong> su<strong>as</strong><br />

declarações com <strong>as</strong> do jovem guerreiro com quem primeiro falara, soube que<br />

Rokoff e o seu safari haviam se retirado amedrontados em direção da Costa<br />

Oriental.<br />

Muitos dos carregadores do russo já tinham desertado. Naquela<br />

mesma aldeia tinha ele enforcado cinco por tentativa de deserção e roubo. A<br />

julgar, todavia, pelo que os Waganwazans souberam de alguns negros do<br />

russo, que não recearam desvendar os planos de Rokoff, era evidente que este<br />

não viajaria grande distância, antes que o último dos seus carregadores,<br />

cozinheiros, portadores de barrac<strong>as</strong>, transportadores de carabin<strong>as</strong>, <strong>as</strong>karis e<br />

mesmo o seu feitor, o tivessem abandonado, deixando-o à mercê da floresta<br />

impiedosa.<br />

M’gamuazam negou que houvesse qualquer mulher ou criança entre<br />

o bando de brancos; m<strong>as</strong> Tarzan tinha certeza de que ele estava mentindo.<br />

Vári<strong>as</strong> vezes o homem-macaco falou sobre o <strong>as</strong>sunto de divers<strong>as</strong><br />

maneir<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> não pôde surpreender o canibal velhaco numa contradição<br />

direta de sua declaração original, isto é, não havia mulheres nem crianç<strong>as</strong> com<br />

o bando.<br />

Tarzan pediu comida ao chefe, e depois de uma longa discussão<br />

com ele, conseguiu obter uma refeição. Experimentou então fazer com que<br />

alguns outros da tribo fal<strong>as</strong>sem, especialmente o jovem que ele tinha<br />

capturado na selva; m<strong>as</strong> a presença de M’gamuazam fez com que eles se<br />

cal<strong>as</strong>sem.<br />

Finalmente, convencido que esta gente sabia muito mais do que lhe<br />

tinha contado acerca do lugar onde se achava o russo e o destino de Jane e da<br />

criança, Tarzan decidiu ficar toda a noite entre eles, na esperança de descobrir<br />

mais alguma coisa de importância.


Quando disse ao chefe o que tinha decidido fazer, ficou um tanto<br />

surpreso em ver a mudança repentina da atitude do mesmo para com ele. De<br />

aparente desgosto e suspeita M’gamuazam tornou-se um hospedeiro delicado<br />

e solícito.<br />

Instalou o homem-macaco na melhor choupana da aldeia, da qual<br />

expulsou a esposa mais velha, acomodando-se ele, o chefe, temporariamente,<br />

na choupana duma d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> consortes mais jovens.<br />

Se Tarzan tivesse adivinhado que uma recompensa principesca<br />

tinha sido oferecida aos negros, c<strong>as</strong>o eles conseguissem matá-lo, teria<br />

compreendido mais cedo a mudança repentina da atitude de M’gamuazam.<br />

Se conseguisse que o gigante branco dormisse despreocupadamente<br />

numa d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> própri<strong>as</strong> choupan<strong>as</strong>, muito facilitaria o negócio de ganhar a<br />

recompensa; por isso apressou-se o chefe em sugerir a Tarzan que, estando<br />

sem dúvida muito cansado depois d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> viagens, se retir<strong>as</strong>se cedo aos<br />

confortos da choupana nada convidativa.<br />

O homem-macaco que detestava dormir dentro de uma choupana<br />

indígena, decidira todavia ali dormir esta noite, na esperança de que pudesse<br />

persuadir um dos homens mais jovens a conversar com ele diante do fogo que<br />

ardia no centro da choupana cheia de fumaça, e daquele obter <strong>as</strong> verdades que<br />

procurava. Assim Tarzan aceitou o convite do velho M’gamuazam, insistindo,<br />

contudo, que preferia compartilhar uma choupana com alguns dos jovens a<br />

fim de não expulsar a velha mulher do chefe para o frio do relento.<br />

A velha desdentada sorriu com esta sugestão, e como o plano ainda<br />

melhor servia ao intento do chefe, pois lhe permitiria cercar Tarzan com um<br />

bando de <strong>as</strong>s<strong>as</strong>sinos escolhidos, consentiu prontamente, e logo Tarzan foi<br />

instalado numa choupana perto do portão da aldeia.<br />

Como ia haver uma festa naquela noite, em honra de um bando de<br />

caçadores recém-chegados, Tarzan ficou sozinho na choupana, pois os jovens,<br />

como M’gamuazam explicou, teriam de tomar parte n<strong>as</strong> danç<strong>as</strong>.


Logo que viu o homem-macaco seguramente instalado na<br />

armadilha, M’gamuazam reuniu ao redor de si os jovens guerreiros que<br />

escolheu para p<strong>as</strong>sar a noite com o diabo branco.<br />

Nenhum deles demonstrou muito entusi<strong>as</strong>mo pelo plano, pois que<br />

no fundo dos seus corações supersticiosos existia um medo exagerado do<br />

estranho gigante branco; m<strong>as</strong> como a palavra de M’gamuazam era lei entre o<br />

seu povo, nenhum ousou recusar cumprir <strong>as</strong> ordens do chefe.<br />

Enquanto M’gamuazam explicava o seu plano em voz baixa aos<br />

selvagens, agachados ao redor dele, a velha desdentada, que Tarzan não<br />

quisera expulsar da choupana, rodeou vári<strong>as</strong> vezes os conspiradores,<br />

ostensivamente, sob pretexto de renovar o fornecimento de lenha para a<br />

fogueira em volta da qual os homens se achavam agachados, realmente para<br />

ouvir do que tratavam.<br />

Tarzan tinha dormido talvez um<strong>as</strong> du<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> apesar do barulho<br />

selvagem dos que se divertiam, quando os seus sentidos penetrantes foram<br />

repentinamente despertados por um movimento suspeito e clandestino na<br />

choupana onde estava deitado. Do fogo só restavam algum<strong>as</strong> br<strong>as</strong><strong>as</strong>, que<br />

acentuavam ainda mais a escuridão que enchia o interior da choupana<br />

nauseabunda, m<strong>as</strong> os sentidos treinados do homem-macaco o avisavam da<br />

presença de alguém que se arr<strong>as</strong>tava silenciosamente em sua direção.<br />

Duvidava que fosse algum dos seus companheiros de choupana que<br />

volt<strong>as</strong>se da festa, pois ainda ouvia os gritos selvagens dos dançarinos e o<br />

barulho dos tambores lá fora, na rua da aldeia. Quem poderia ser, que tanto se<br />

esforçava para encobrir a sua chegada?<br />

Quando o vulto chegou ao seu alcance, o homem-macaco saltou<br />

rapidamente para o outro lado da choupana e empunhou a lança.<br />

— Quem é — perguntou ele — que se arr<strong>as</strong>ta na direção de Tarzan<br />

dos Macacos, como um leão faminto na escuridão?


— Silêncio, bwana! — respondeu uma velha voz rachada. — É<br />

Tambudza, cuja choupana você não quis aceitar, para não enxotar de sua c<strong>as</strong>a<br />

uma velha, nem expô-la ao frio da noite.<br />

— Que é que Tambudza quer de Tarzan dos Macacos?<br />

— Você foi bom para mim, para quem ninguém é bom agora, e<br />

vim avisá-lo em recompensa da sua bondade, respondeu a velha.<br />

— Avisar-me de quê?<br />

— M’gamuazam escolheu os jovens que têm de dormir na<br />

choupana com você — explicou Tambudza. — Eu estava perto quando ele<br />

estava falando com eles, e ouvi-o dar <strong>as</strong> su<strong>as</strong> instruções. Quando a dança<br />

estiver para acabar, de manhã, eles entrarão na choupana. Se você estiver<br />

acordado, fingirão que vêm dormir, m<strong>as</strong> se estiver dormindo, é ordem de<br />

M’gamuazam que o matem. Se não estiver dormindo, esperarão<br />

sossegadamente ao seu lado até que você durma, e então todos cairão em cima<br />

de você para matá-lo. M’gamuazam quer ganhar a recompensa que o homem<br />

branco lhe ofereceu.<br />

— Eu tinha esquecido da recompensa — disse Tarzan, como<br />

falando consigo mesmo, e acrescentou: — Como é que M’gamuazam espera<br />

receber a recompensa, se os homens brancos, que são os meus inimigos,<br />

saíram do país e ele não sabe para onde foram?<br />

— Oh, eles não foram para longe — respondeu Tambudza. —<br />

M’gamuazam sabe onde estão acampados. Os seus mensageiros poderiam<br />

facilmente alcançá-los, pois eles caminham vagarosamente.<br />

vez de responder.<br />

— Onde estão? — perguntou Tarzan.<br />

— Você quer ir até onde eles estão? — perguntou Tambudza em<br />

— Quero — confirmou Tarzan.<br />

— Não posso dizer-lhe onde estão, de forma que você pudesse<br />

sozinho ir até lá, m<strong>as</strong> posso guiá-lo, bwana.


Devido ao interesse de ambos na conversa, nem um nem outro<br />

tinha reparado em um pequeno vulto que entrara na escuridão da choupana<br />

atrás deles, nem o viram quando tornou a sair silenciosamente.<br />

Era o pequeno Buulaos, o filho do chefe com uma d<strong>as</strong> su<strong>as</strong><br />

mulheres mais jovens — um maroto vingativo e degenerado, que odiava<br />

Tambudza, e estava sempre procurando oportunidade de espiá-la e contar a<br />

menor falta ao pai.<br />

— Venha, então — disse Tarzan — vamos partir.<br />

Isto Buulaos não ouviu, porque já estava correndo pela rua da<br />

aldeia acima, indo ao encontro do pai, que estava bebendo cerveja indígena e<br />

apreciando <strong>as</strong> evoluções dos dançarinos frenéticos.<br />

Tarzan e Tambudza saíram ocultamente da aldeia e desapareceram<br />

na escuridão da selva.<br />

M<strong>as</strong>, na mesma direção, embora por outro caminho, saíram<br />

também dois mensageiros. Quando Tarzan e a velha já se achavam b<strong>as</strong>tante<br />

longe da aldeia, para poder falar um pouco alto um com o outro, Tarzan<br />

perguntou à velha se ela tinha visto na aldeia uma mulher branca e uma<br />

criança.<br />

— Sim, bwana — respondeu Tambudza. — Havia uma mulher<br />

com eles e uma criança — uma criança branca, que morreu de febre aqui em<br />

nossa aldeia, e eles a enterraram.


CAPÍTULO 12: Um patife negro<br />

Quando Jane Clayton recobrou os sentidos, viu Anderssen<br />

inclinado sobre ela, com a criança nos braços.<br />

Quando os seus olhos deram com eles, uma expressão de tristeza e<br />

horror cobriu-lhe o rosto inteiramente.<br />

pergunt<strong>as</strong>.<br />

diabo como o russo.<br />

— Que tem? — perguntou ele. — Está doente?<br />

— Onde está meu filho? — gritou ela, sem lhe responder às<br />

Anderssen ofereceu-lhe a criança, m<strong>as</strong> Jane sacudiu a cabeça.<br />

— Não é meu — disse ela. — Bem sabes que não é o meu. És um<br />

Os olhos azuis de Anderssen dilataram-se de surpresa.<br />

— Não é seu! — exclamou ele. — Pois não me disse que a criança<br />

que estava a bordo do Kincaid era seu filho?<br />

— M<strong>as</strong> não é este — respondeu Jane com tristeza. — O outro,<br />

onde está o outro? Haveria então dois? Eu não sabia que havia a bordo du<strong>as</strong><br />

crianç<strong>as</strong>.<br />

muito.<br />

— Não havia lá outra criança. Pensei que este era o seu filho. Sinto<br />

Anderssen ficou espantado, sem saber o que pensar de tudo isso. A<br />

Jane pareceu que ele era sincero nos seus protestos de ignorância a respeito da<br />

verdadeira identidade da criança. Esta começou logo a tagarelar e pular nos<br />

braços do sueco, estendendo ao mesmo tempo <strong>as</strong> mãozinh<strong>as</strong> na direção da<br />

moça.<br />

Jane não pôde resistir ao gesto da criança. Soluçando baixinho, pôs-<br />

se de pé e tomou-a nos braços.<br />

Durante alguns minutos ela chorou silenciosamente com o rosto<br />

enterrado no vestidinho sujo da criança. Ao convencer-se de que a criança não<br />

era o seu queridinho Jack, entrou a pensar que, afinal, bem podia ser que


algum milagre houvesse ocorrido para tirar o seu filho d<strong>as</strong> mãos de Rokoff,<br />

no último instante antes da partida do Kincaid da Inglaterra.<br />

A pobre mãe considerou também a súplica deste enjeitadinho<br />

desamparado no meio dos horrores da selva selvagem. Foi este pensamento,<br />

mais do que qualquer outro, que lhe infundiu no coração de mãe um<br />

sentimento de piedade para com este anjinho inocente, que não tinha culpa<br />

nenhuma da sua desgraça e do seu desapontamento.<br />

Anderssen.<br />

— Não tens idéia de quem seja esta criança? — perguntou ela a<br />

O homem sacudiu a cabeça:<br />

— Não sei — disse ele. — Se não é o seu filho, eu não sei de quem<br />

possa ser. Rokoff disse que era o seu, e pensei que ele dizia a verdade. E<br />

agora? Que iremos fazer dele? Não posso voltar para o Kincaid. Rokoff me<br />

mandaria matar; m<strong>as</strong> a senhora pode voltar. Eu a acompanharei até ao mar, e<br />

então alguns destes negros a levarão a bordo.<br />

— Não! Não! — gritou Jane. — Por nada deste mundo. Preferiria<br />

morrer a cair de novo n<strong>as</strong> mãos daquele homem. Não, não. Levaremos esta<br />

pobre criança conosco. Se Deus quiser, ele nos salvará de um modo ou de<br />

outro.<br />

Resolveram então continuar a fuga através da selva, levando com<br />

eles meia dúzia de Mosul<strong>as</strong>, para carregar mantimentos e <strong>as</strong> barrac<strong>as</strong>, que<br />

Anderssen tinha escondido dentro do pequeno bote.<br />

Os di<strong>as</strong> e <strong>as</strong> noites de tortura, que a jovem senhora sofria,<br />

entrelaçavam-se de tal modo num longo e horrível pesadelo, que logo perdeu<br />

a noção do tempo. Se tinham vagado por di<strong>as</strong> ou anos, não podia dizer. O<br />

único prazer naquela eternidade de horror e sofrimento, era a criancinha, cuj<strong>as</strong><br />

mãozinh<strong>as</strong> tinham já cerrado fortemente seus dedinhos macios em volta do<br />

seu coração de mãe.


De algum modo o pequenino tomou o lugar do outro e preencheu<br />

o vácuo dolorido que o sonho do próprio filho lhe tinha deixado. Nunca<br />

poderia ser igual, naturalmente; m<strong>as</strong>, <strong>as</strong>sim mesmo, dia após dia, ela sentiu que<br />

o seu amor de mãe estava acolhendo o enjeitado cada vez mais. Às vezes<br />

ficava sentada, de olhos fechados, a conjeturar que, afinal, bem podia ser que<br />

a criança, que ela trazia aconchegada ao peito, fosse realmente o seu próprio<br />

filho.<br />

Durante algum tempo a fuga foi extremamente lenta. De quando<br />

em quando eram informados pelos indígen<strong>as</strong> que p<strong>as</strong>savam reunidos da costa<br />

em expedições de caça, que Rokoff ainda não tinha atinado com a direção da<br />

fuga. Isto, e o desejo de fazer a viagem o mais suave possível para uma<br />

senhora tão delicadamente criada, fizeram com que Anderssen só avanç<strong>as</strong>se<br />

vagarosamente em caminhad<strong>as</strong> curt<strong>as</strong> e fáceis, com muito descanso.<br />

O sueco insistiu em carregar a criança quando viajavam,<br />

esforçando-se o mais que podia, para que Jane Clayton conserv<strong>as</strong>se <strong>as</strong> su<strong>as</strong><br />

forç<strong>as</strong>. Ficara muito acabrunhado quando descobriu o erro acerca da<br />

identidade da criança, m<strong>as</strong> tendo-se a pobre senhora convencido de que <strong>as</strong><br />

intenções do companheiro eram realmente nobres, não mais permitiu que ele<br />

se exprobr<strong>as</strong>se pelo erro que de maneira alguma poderia ter evitado.<br />

No fim de cada dia Anderssen arranjava um abrigo confortável para<br />

Jane e a criança! A sua barraca estava sempre colocada no lugar mais<br />

favorável. A cerca de espinhos ao redor era a mais forte e mais inexpugnável<br />

que os Mosul<strong>as</strong> podiam construir.<br />

A sua comida era a melhor que os parcos mantimentos e a carabina<br />

do sueco podiam fornecer, m<strong>as</strong> o que lhe impressionava mais era a<br />

consideração e cortesia delicad<strong>as</strong> com que ele sempre a tratava.<br />

Que tal nobreza de caráter pudesse existir por baixo de um exterior<br />

tão repulsivo, não deixava de ser motivo de admiração para ela. Até que enfim


a dignidade inata do homem, e a sua bondade e simpatia haviam modificado o<br />

juízo de Jane acerca do caráter de Anderssen.<br />

Tinham eles começado a progredir um pouco mais na fuga quando<br />

receberam o aviso de que Rokoff estava somente a alguns di<strong>as</strong> de marcha, e<br />

que tinha por fim descoberto a direção dos fugitivos. Anderssen voltou então<br />

para o rio, comprando uma canoa de um chefe, cuja aldeia ficava a pouca<br />

distância do Ugambi, na margem de um tributário.<br />

Daí em diante o pequeno grupo de fugitivos seguiu pelo Ugambi<br />

acima, e tão rápida tinha se tornado a fuga, que eles não mais recebiam<br />

notíci<strong>as</strong> dos seus perseguidores.<br />

Quando já não era possível navegar na canoa, abandonaram a<br />

embarcação e internaram-se na floresta. Aí <strong>as</strong> march<strong>as</strong> tornaram-se muito<br />

difíceis, vagaros<strong>as</strong> e perigos<strong>as</strong>.<br />

No segundo dia, depois de deixar o Ugambi, a criança caiu com<br />

febre. Anderssen sabia qual seria o fim, m<strong>as</strong> não teve a coragem de dizer a<br />

verdade a Jane Clayton, pois tinha notado que a jovem já amava a criança<br />

qu<strong>as</strong>e tanto como se esta fosse realmente o seu filho.<br />

Como o estado da criança não permitia que eles progredissem mais,<br />

Anderssen se af<strong>as</strong>tou um pouco do caminho principal que estava seguindo e<br />

fez o acampamento à margem de um pequeno rio.<br />

Aqui Jane dedicou todos os momentos em cuidar do entezinho<br />

sofredor; e como se a sua tristeza e ansiedade não fossem suficientes,<br />

sobreveio um outro golpe com o aviso repentino, que lhes trouxe um dos<br />

carregadores Mosul<strong>as</strong> que tinham ido explorar a selva adjacente, isto é, que<br />

Rokoff e o seu bando estavam acampados bem perto deles, e lhes tinham<br />

evidentemente seguido a pista até este pequeno recanto que a todos parecera<br />

um excelente esconderijo.<br />

Esta informação somente poderia significar uma coisa, e esta era<br />

que eles precisariam levantar o acampamento e fugir, não obstante o estado


grave em que se encontrava a criança. Jane Clayton conhecia b<strong>as</strong>tante o<br />

caráter do russo, para ter a certeza de que este a separaria da criança no<br />

momento em que os torn<strong>as</strong>se a encontrar, m<strong>as</strong> sabia também que a separação<br />

seria morte imediata para a criança.<br />

Enquanto caminhava para a frente, através da vegetação e qu<strong>as</strong>e<br />

encobertos pelo mato, os carregadores Mosul<strong>as</strong> foram desertando um por um.<br />

Os homens tinham sido b<strong>as</strong>tante fiéis em sua devoção e lealdade,<br />

enquanto não havia perigo de serem alcançados pelo russo e o seu bando. M<strong>as</strong><br />

tinham ouvido tant<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> acerca da crueldade de Rokoff, que se haviam<br />

acostumado a pensar nele com terror mortal, e agora que sabiam que se<br />

aproximava dos fugitivos, os seus corações tímidos não os fortaleciam mais, e,<br />

tão rápido quanto possível, desertaram.<br />

M<strong>as</strong> Anderssen e a moça ainda progrediam. O sueco foi adiante,<br />

para abrir um caminho pelo mato, pois a vereda estava completamente<br />

coberta. Nessa marcha foi necessário à jovem senhora carregar a criança.<br />

Caminharam o dia inteiro. À tarde, porém, verificaram que tinham<br />

errado o rumo. Logo atrás deles ouviram o barulho de um safari, que<br />

avançava pela vereda que eles tinham preparado, e agora servia aos seus<br />

perseguidores.<br />

Quando lhes pareceu evidente que, dentro em pouco, seriam<br />

alcançados, Anderssen escondeu Jane atrás duma árvore grande, cobrindo a<br />

moça e a criança com mato.<br />

— Há uma aldeia, cerca de uma milha mais adiante — disse ele. —<br />

Os Mosul<strong>as</strong>, antes de desertarem, me disseram onde era situada. Farei todo o<br />

possível para desviar o russo do nosso r<strong>as</strong>tro, e a senhora poderá então<br />

continuar até a aldeia. Penso que o chefe tem sido bom para os brancos — a<br />

julgar pelo que os Mosul<strong>as</strong> me disseram. Em todo c<strong>as</strong>o, só nos resta este<br />

recurso. Peça ao chefe que mande conduzi-la outra vez à aldeia dos Mosul<strong>as</strong>,<br />

onde, p<strong>as</strong>sado algum tempo, deverá aparecer um vapor na foz do Ugambi.


Então estará salva. Adeus, senhora, e que Deus a acompanhe é o que lhe<br />

desejo.<br />

— M<strong>as</strong> aonde vai, Sven? — perguntou Jane. Por que não se<br />

esconde aqui, para voltar depois à praia comigo?<br />

— Eu preciso dizer ao russo que a senhora morreu, a fim de que<br />

ele não a procure mais — disse Anderssen, e sorriu.<br />

insistiu a senhora.<br />

— Por que não me acompanh<strong>as</strong> depois de lhe teres dito isto?<br />

Anderssen sacudiu a cabeça.<br />

— Penso que não poderei acompanhar mais ninguém depois de<br />

dizer ao russo que a senhora está morta.<br />

— Não me queres dizer que julg<strong>as</strong> que ele te matará? perguntou<br />

Jane, posto que, no íntimo, bem sabia que era isto exatamente que faria<br />

Rokoff em vingança de ter sido logrado pelo sueco.<br />

Anderssen, sem responder à pergunta, aconselhou a moça a guardar<br />

silêncio e apontou para o caminho que acabavam de percorrer.<br />

— Já não me importa a vida — murmurou Jane Clayton. — Eu não<br />

te deixarei morrer, para me salvar, se eu puder evitá-lo de qualquer modo. Dá-<br />

me o teu revólver. Posso usá-lo, e juntos podemos defender-nos até acharmos<br />

alguma maneira de escapar.<br />

— Isto não adianta, senhora — respondeu Anderssen. — Eles nos<br />

aprisionariam a ambos, e então eu não poderia fazer mais nada. Pense na<br />

criança, e o que aconteceria se caísse n<strong>as</strong> mãos de Rokoff, mais uma vez. Em<br />

benefício dela precisa fazer o que digo. Leve a minha carabina e a munição<br />

podem ser-lhe úteis.<br />

Enfiou a carabina para baixo do abrigo de Jane, e af<strong>as</strong>tou-se.<br />

Ela acompanhou-o com o olhar, viu-o dirigir-se ao encontro do<br />

safari do russo, que chegava. Logo, uma curva no caminho escondeu-o de<br />

todo.


O primeiro impulso de Jane foi segui-lo. Com a carabina ela podia<br />

ser-lhe útil, e, ainda mais, ela não podia suportar a idéia de ficar sozinha, ali<br />

naquela terrível floresta, sem um amigo para auxiliá-la.<br />

Começou a arr<strong>as</strong>tar-se para fora do abrigo, com a intenção de<br />

correr atrás de Anderssen o mais ligeiro que pudesse. Puxando a criança para<br />

perto de si fitou os olhos no pequeno rosto inocente.<br />

febre.<br />

Com <strong>as</strong> facezinh<strong>as</strong> extremamente vermelh<strong>as</strong>, a criança ardia em<br />

Com um suspiro de terror Jane Clayton saiu do abrigo, deixando aí<br />

a carabina. Anderssen, Rokoff e o grande perigo a que estava exposta já não<br />

existiam para ela.<br />

O que lhe p<strong>as</strong>sava pelo cérebro, louco de terror, era a idéia horrível<br />

de que essa criança indefesa estava doente com a terrível febre da selva, e que<br />

ela, Jane, não podia fazer nada para aliviar os seus sofrimentos — sofrimentos<br />

que decerto chegariam.<br />

O seu único pensamento era achar alguém capaz de auxiliá-la,<br />

alguma mulher que tivesse sido mãe — e, com este pensamento, veio-lhe à<br />

lembrança a aldeia da qual Anderssen tinha falado. Se ainda pudesse alcançá-<br />

la!<br />

Não havia tempo a perder. Como um antílope <strong>as</strong>sustado, lançou-se<br />

a correr pelo caminho, na direção que Anderssen lhe tinha indicado.<br />

De longe, chegaram-lhe aos ouvidos gritos repentinos de homens, o<br />

barulho de tiros, e depois o silêncio. Julgou que Anderssen tinha encontrado o<br />

russo.<br />

Meia hora mais tarde chegava ela, exausta, a uma pequena aldeia<br />

com c<strong>as</strong><strong>as</strong> cobert<strong>as</strong> de capim. Imediatamente viu-se cercada por homens,<br />

mulheres e crianç<strong>as</strong>. Indígen<strong>as</strong> ávidos, curiosos e excitados fizeram-lhe cem<br />

pergunt<strong>as</strong>, nenhuma d<strong>as</strong> quais ela entendia, nem respondia.


O mais que podia fazer era apontar, chorando, para a criança, que<br />

também chorava l<strong>as</strong>timosamente nos seus braços, e repetir divers<strong>as</strong> vezes: —<br />

Febre, febre, febre.<br />

Os negros não lhe entendiam <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> adivinharam a causa<br />

da sua aflição e logo uma mulher jovem a levou para dentro de uma choupana<br />

e com vári<strong>as</strong> outr<strong>as</strong> pôs-se a fazer tudo que podia para minorar o sofrimento<br />

da criança.<br />

Chamado o médico feiticeiro, fez este uma pequena fogueira, na<br />

qual cozinhou uma mistura estranha numa pequena panela de barro, fazendo<br />

p<strong>as</strong>ses por cima e murmurando melodi<strong>as</strong> estranh<strong>as</strong> e monóton<strong>as</strong>. Mergulhou<br />

depois o rabo duma zebra por dentro da mistura, e com alguns murmúrios e<br />

fórmul<strong>as</strong> mágic<strong>as</strong>, salpicou got<strong>as</strong> do líquido sobre o rosto da criança.<br />

Depois que ele se retirou <strong>as</strong> mulheres sentaram-se em volta, e<br />

gemeram, lamentaram tanto que Jane supôs que ficaria louca; m<strong>as</strong>, sabendo<br />

que faziam tudo isto por bondade dos seus corações, suportou o horripilante<br />

pesadelo daquel<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> terríveis de sofrimento mudo e paciente.<br />

Devia ser qu<strong>as</strong>e meia-noite quando ouviu um repentino rumor na<br />

aldeia: eram os indígen<strong>as</strong> que discutiam, m<strong>as</strong> ela não pôde entender <strong>as</strong><br />

palavr<strong>as</strong>. Depois ouviu p<strong>as</strong>sos que se aproximavam da choupana onde estava<br />

sentada diante de um fogo vivo, com a criança no colo. O pequenino, muito<br />

quieto agora, tinha <strong>as</strong> pálpebr<strong>as</strong> meio levantad<strong>as</strong>, mostrando os olhos<br />

horrivelmente vidrados.<br />

Jane Clayton fitou o rostinho com os olhos cheios de medo. Não<br />

era seu filho — não era seu sangue e sua carne — m<strong>as</strong> como já trazia<br />

entranhado no coração esse entezinho querido e indefeso, seu coração,<br />

privado do seu próprio filho, tinha-se inclinado para o pequeno enjeitado sem<br />

nome, e dera-lhe todo o amor que lhe tinha sido negado durante <strong>as</strong> comprid<strong>as</strong><br />

e amarg<strong>as</strong> seman<strong>as</strong> do seu cativeiro a bordo do Kincaid.


Viu que o fim estava próximo, e embora tremesse à idéia da sua<br />

perda, esperava que a morte viesse rápida para acabar com os sofrimentos da<br />

pequena vítima.<br />

Os p<strong>as</strong>sos que ouvia fora da choupana pararam diante da porta.<br />

Houve um colóquio aos cochichos, e um momento depois M’gamuazam, o<br />

chefe da tribo, entrou na cabana. Ainda não o tinha visto, porque <strong>as</strong> mulheres<br />

tinham tomado conta dela logo que penetrou na aldeia.<br />

M’gamuazam era um selvagem mal-encarado, com todos os sinais<br />

de degeneração brutal estampados na cara bestial. A Jane Clayton ele parecia<br />

mais gorila do que homem. Procurou conversar com ela, m<strong>as</strong> sem resultado;<br />

finalmente chamou alguém que estava do lado de fora.<br />

Em resposta ao seu chamado entrou outro negro — um homem de<br />

aparência muito diversa da de M’gamuazam, tão diferente, de fato, que Jane<br />

Clayton concluiu imediatamente que ele era de uma outra tribo. Este homem<br />

serviu de intérprete, e logo à primeira pergunta que M’gamuazam lhe fez,<br />

concluiu Jane que o selvagem procurava arrancar-lhe informações por algum<br />

motivo oculto.<br />

Parecia-lhe esquisito que ele se interess<strong>as</strong>se tanto por ela e por seus<br />

planos, <strong>as</strong>sim de repente, e sobretudo pelo destino de sua viagem.<br />

Não vendo motivo algum para calar a informação ela contou a<br />

verdade: m<strong>as</strong> quando lhe perguntou se esperava encontrar-se com o marido<br />

no fim da viagem, ela sacudiu negativamente a cabeça.<br />

Ele então lhe comunicou o fim de sua visita: — Acabo de saber,<br />

por alguns homens que moram n<strong>as</strong> margens da grande água, que seu marido a<br />

seguiu pelo Ugambi durante vários di<strong>as</strong>, quando por fim alguns indígen<strong>as</strong> e<br />

derrotaram e o mataram. Comunico-lhe isto para que não perca mais o seu<br />

tempo em uma tão grande viagem, com a esperança de encontrar afinal seu<br />

marido; aconselho-a que, em vez disto, regresse para a costa.


Jane agradeceu a M’gamuazam pela sua bondade, embora o coração<br />

lhe fic<strong>as</strong>se amargurado com o sofrimento deste novo golpe. Ela, que tinha<br />

sofrido tanto, já se achava conformada com os tormentos mais agudos da<br />

desgraça, pois os sentidos já se lhe haviam embotado.<br />

Com a cabeça baixa, ficou a olhar fixamente, m<strong>as</strong> sem ver, o rosto<br />

da criança que trazia ao colo. M’gamuazam retirou-se da choupana. Algum<br />

tempo depois ouviu ela o barulho de alguém que entrava na cabana. Um<strong>as</strong> d<strong>as</strong><br />

mulheres que se achavam sentad<strong>as</strong> a um canto atirou um pedaço de lenha,<br />

sobre <strong>as</strong> br<strong>as</strong><strong>as</strong> qu<strong>as</strong>e apagad<strong>as</strong>.<br />

por milagre.<br />

Com a chama repentina, iluminou-se o interior da choupana, como<br />

As cham<strong>as</strong> revelaram então ao olhar espantado de Jane Clayton que<br />

a criança estava morta.<br />

Um nó subiu-lhe à garganta, sufocando-a, a cabeça pendeu<br />

entristecida sobre o cadáver da criancinha, que apertou ainda mais de<br />

encontro ao peito.<br />

Por momentos o silêncio na choupana foi completo. Uma mulher<br />

indígena começou a chorar dem<strong>as</strong>iadamente.<br />

Nikol<strong>as</strong> Rokoff.<br />

Um homem tossiu perto de Jane Clayton, pronunciando seu nome.<br />

Com um salto levantou os olhos, encarando o rosto satânico de


CAPÍTULO 13: Fuga<br />

Durante um momento Rokoff ficou olhando para Jane Clayton<br />

com desprezo; depois os seus olhos caíram sobre o pequeno fardo que ela<br />

trazia ao colo. Jane tinha puxado uma ponta do cobertor para o rosto da<br />

criança, de modo que, para quem não conhecia a verdade, parecia que esta se<br />

achava dormindo.<br />

— Incomodou-se sem necessidade — disse Rokoff — para trazer<br />

esta criança a esta aldeia. Se tivesse tratado dos seus próprios interesses, eu<br />

mesmo a teria trazido aqui. Teria se poupado aos perigos e cansaço da viagem.<br />

Devo agradecer-lhe, porém, ter-me livrado dos incômodos de cuidar de uma<br />

criança pequena em viagem. Esta é a aldeia para a qual a criança era destinada<br />

desde o princípio. M’gamuazam a criará cuidadosamente, fazendo dela um<br />

bom canibal, e se porventura a senhora voltar à civilização sem dúvida lhe<br />

dará o que pensar quando comparar o luxo e conforto da sua vida, à vida que<br />

o seu filho estará levando na aldeia de M’gamuazam. Mais uma vez agradeço-<br />

lhe por tê-la trazido aqui. Agora, peço-lhe que a entregue, a fim de que eu<br />

possa dá-la aos que a vão criar. E Rokoff estendeu os braços para tomar a<br />

criança, com um sorriso sinistro e vingativo nos lábios.<br />

Viu, porém, com surpresa, Jane Clayton levantar-se e, sem uma<br />

palavra de protesto, entregar-lhe o pequeno embrulho.<br />

seu alcance.<br />

— Eis aqui a criança — disse ela. — Graç<strong>as</strong> a Deus ela está fora do<br />

Compreendendo o sentido dest<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, Rokoff puxou o<br />

cobertor do rosto da criança, para ter a confirmação dos seus receios. Jane<br />

Clayton fitou-o bem, para examinar-lhe a expressão.<br />

Tinha estado perplexa durante vários di<strong>as</strong>, cogitando no que faria<br />

Rokoff ao descobrir a identidade da criança. Tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> su<strong>as</strong> dúvid<strong>as</strong>, porém,<br />

desapareceram quando viu a cólera terrível do russo ao verificar que era outra


a criança e que no último momento o seu melhor desejo de vingança tinha<br />

sido frustrado por uma força maior.<br />

Atirando o corpo da criança novamente nos braços de Jane<br />

Clayton, Rokoff bateu fortemente com o pé no chão, e agitou no ar o punho<br />

fechado, praguejando horrivelmente. Por fim, parou diante da jovem senhora,<br />

e encarando-a de muito perto, trovejou:<br />

— Está rindo-se de mim? Pensa que me venceu, hein? Eu lhe<br />

mostrarei como tenho mostrado a esse miserável macaco a quem chama seu<br />

“marido”, o que significa intrometer-se nos planos de Nikol<strong>as</strong> Rokoff. — Já<br />

que me roubou a criança e eu não posso fazer dela o filho de um chefe<br />

canibal, vou fazer da senhora a mulher dum canibal, e isto eu o farei.<br />

Se julgou que ia arrancar com est<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> qualquer sinal de terror<br />

a Jane Clayton, enganou-se miseravelmente. O cérebro e os nervos da pobre<br />

senhora estavam amortecidos de tantos choques e sofrimentos.<br />

Com surpresa, um sorriso fraco m<strong>as</strong> qu<strong>as</strong>e alegre aflorou aos lábios<br />

de Jane. Estava ela pensando, com o coração agradecido, que este cadáver não<br />

era o do seu pequeno Jack, e que Rokoff evidentemente não sabia a verdade.<br />

Gostaria de lhe dizer isto mesmo, m<strong>as</strong> não seria aconselhável. Se ele<br />

continu<strong>as</strong>se a acreditar que essa criança fora realmente o filho dela, tanto mais<br />

seguro estaria o verdadeiro Jack, onde quer que estivesse. Naturalmente, não<br />

tinha idéia alguma do lugar onde o seu filho se achava — nem mesmo sabia se<br />

ainda vivia. Era bem possível.<br />

Era também provável que, sem o conhecimento de Rokoff, o seu<br />

Jack tivesse sido substituído por aquela criança por um dos companheiros do<br />

russo, e bem podia ser que seu filho pudesse estar a salvo, entre amigos, em<br />

Londres, onde havia muitos, que de boa vontade teriam pago qualquer resgate<br />

que o falso conspirador pudesse pedir, para restituir o filho de Lorde<br />

Greystoke.


Em tudo isto tinha ela pensado cem vezes, desde que descobriu que<br />

a criança que Anderssen lhe tinha colocado nos braços aquela noite no<br />

Kincaid não era o seu Jack.<br />

Não, o russo nunca deveria saber que este não era o seu filho. Bem<br />

sabia ela que a sua posição era sem esperança. Com Anderssen e seu marido<br />

mortos, não havia ninguém que soubesse onde ela se achava, e, portanto,<br />

pudesse socorrê-la. Compreendera que a ameaça de Rokoff não era<br />

brincadeira. Que faria ou tent<strong>as</strong>se fazer, tudo que havia prometido, ela tinha<br />

disso toda certeza; m<strong>as</strong> na pior hipótese somente isso queria dizer que ela se<br />

livraria um pouco mais cedo da angústia horrorosa, que estava suportando.<br />

Precisava achar um meio de acabar com a vida antes que o russo a fizesse<br />

ainda sofrer mais.<br />

Agora o que desejava era tempo para pensar e preparar o seu plano.<br />

Sentiu que não podia tomar a horrível resolução antes de se lhe esgotar toda e<br />

qualquer possibilidade de fuga. Não queria viver sem a companhia do seu<br />

filho. Por mais fraca que fosse a sua esperança, custava-lhe admitir que tivesse<br />

chegado a sua última hora; era-lhe, porém, forçoso encarar a horrível<br />

realidade, isto é, optar por uma dest<strong>as</strong> du<strong>as</strong> alternativ<strong>as</strong>: — Nikol<strong>as</strong> Rokoff de<br />

um lado e o suicídio de outro.<br />

— Retire-se! — disse ela para o russo. — Retire-se e deixe-me em<br />

paz com o meu filho. Não lhe b<strong>as</strong>tam ainda <strong>as</strong> tristez<strong>as</strong> e angústi<strong>as</strong> que me<br />

tem causado? Que mal lhe fiz, para que <strong>as</strong>sim persista em me atormentar?<br />

— Está sofrendo pelos pecados do macaco que escolheu, quando<br />

podia ter tido o amor de um cavalheiro como Nikol<strong>as</strong> Rokoff, — replicou ele.<br />

— M<strong>as</strong> de que serve discutir? Enterraremos a criança aqui; depois irá comigo<br />

para o meu acampamento. Amanhã eu a trarei de volta e entregá-la-ei ao seu<br />

novo marido — o belo M’gamuazam. Venha!<br />

voltou-se para ele.<br />

Estendeu os braços para a criança. Jane, que estava agora de pé,


— Eu mesma o sepultarei, disse ela. — Mande alguns homens<br />

cavarem uma sepultura fora da aldeia.<br />

Rokoff estava ansioso para acabar com tudo isto e voltar ao<br />

acampamento com a sua vítima. Julgou ver na apatia da moça uma resignação<br />

à sua sorte. Saindo da choupana, fez um sinal para que ela o seguisse e<br />

momentos depois, com os seus homens, conduziu Jane para fora da aldeia,<br />

onde, debaixo duma grande árvore, os negros cavaram uma sepultura r<strong>as</strong>a.<br />

Embrulhando carinhosamente o pequenino cadáver em um<br />

cobertor, Jane deitou-o com ternura na cova, e, virou a cabeça para não ver a<br />

terra cair sobre o pequeno morto, murmurou uma oração ao lado do túmulo<br />

do pequenino desconhecido, ao qual havia dado um lugar no seu coração de<br />

mãe.<br />

Depois, com os olhos enxutos, m<strong>as</strong> com o coração a sangrar,<br />

levantou-se e seguiu o russo pela escuridão da floresta, ao longo do caminho<br />

tortuoso coberto de folhagem que saía da aldeia de M’gamuazam, o canibal,<br />

até ao acampamento de Nikol<strong>as</strong> Rokoff, o diabo branco.<br />

Ao lado deles, nos bosques impenetráveis que margeavam o<br />

caminho, formando um arco de folhagem tão denso que encobria a lua, a<br />

jovem senhora podia ouvir os p<strong>as</strong>sos surdos e abafados, qu<strong>as</strong>e imperceptíveis,<br />

de grandes animais, e os berros horríveis de leões que andavam à caça.<br />

Os selvagens acenderam fachos, que agitavam de ambos os lados,<br />

para espantar <strong>as</strong> fer<strong>as</strong>. Rokoff pediu-lhes que se apress<strong>as</strong>sem, e pelo tom<br />

severo de sua voz, Jane Clayton percebeu que estava transtornado de medo.<br />

Os rumores da noite e da selva recordavam a Jane os di<strong>as</strong> e noites<br />

que tinha p<strong>as</strong>sado numa floresta semelhante com o seu deus d<strong>as</strong> selv<strong>as</strong> — o<br />

destemido e invencível Tarzan dos Macacos. Nesse tempo não lhe vinha à<br />

mente nenhum pensamento de medo, embora os barulhos da selva fossem<br />

novos para ela, e o urro do leão lhe tivesse parecido o som mais horrível da<br />

terra.


Quão diferente não seria agora se soubesse que ele estava em algum<br />

lugar aí na selva, procurando-a! Então, de verdade, haveria alguma coisa que<br />

lhe desse o gosto de viver, e teria razão para acreditar que o seu socorro estava<br />

perto. — M<strong>as</strong> Tarzan estava morto!<br />

Parecia não haver lugar na morte para aquele grande corpo e<br />

aqueles músculos poderosos. Se tivesse sido Rokoff que lhe cont<strong>as</strong>se a morte<br />

do marido, ela saberia ser mentira. M<strong>as</strong> não havia razão, pensava, para que<br />

M’gamuazam a engan<strong>as</strong>se. Ignorava que o russo tinha falado com o selvagem<br />

poucos minutos antes de contar-lhe o chefe a sua história.<br />

Finalmente chegaram à rude boma que os selvagens de Rokoff<br />

tinham feito em volta do acampamento. Aqui encontraram eles tudo em<br />

alvoroço. Jane não sabia o que isso significava, m<strong>as</strong> viu que Rokoff estava<br />

muito zangado, e, pela conversa que pôde entender, compreendeu que tinha<br />

havido mais deserções enquanto ele estivera ausente, e que os desertores<br />

tinham levado a maior parte dos mantimentos e d<strong>as</strong> munições,<br />

Quando acabou de desabafar a sua raiva sobre os que ficaram,<br />

Rokoff voltou para onde estava Jane sob a guarda de dois dos seus<br />

marinheiros brancos. Agarrou-a grosseiramente pelo braço e começou a puxá-<br />

la para a sua barraca. Ela debatia-se, lutando desesperadamente para livrar-se,<br />

enquanto os dois marinheiros ficaram de parte, rindo-se de tão raro<br />

espetáculo. Rokoff não hesitou em usar métodos brutais quando descobriu<br />

que ia ter dificuldade em alcançar os seus desígnios. Rapidamente esbofeteou<br />

Jane Clayton, que afinal, meio tonta, foi levada para dentro da barraca.<br />

O empregado de Rokoff, que tinha acendido a lâmpada,<br />

desapareceu a uma palavra do patrão. Jane caíra no chão. Rapidamente,<br />

porém, os seus olhos correram em volta do interior da barraca, notando cada<br />

detalhe de sua arrumação e conteúdo.<br />

O russo abaixou-se para levantá-la.


Os olhos de Jane Clayton fixaram-se no revólver que ele trazia no<br />

cinto. Seu primeiro pensamento foi ver se conseguia apoderar-se dessa arma.<br />

Fingiu porém que perdera novamente os sentidos; m<strong>as</strong> por entre <strong>as</strong> pálpebr<strong>as</strong><br />

meio fechad<strong>as</strong> esperou melhor oportunidade.<br />

Esta chegou logo. Um barulho na porta da barraca fez com que ele<br />

volt<strong>as</strong>se a cabeça. A coronha do revólver estava a menos de uma polegada ao<br />

alcance da mão de Jane. Com um movimento rápido como o relâmpago, ela<br />

tirou-lhe a arma da cintura. No mesmo instante Rokoff virou-se percebendo<br />

logo o perigo.<br />

Ela não ousou atirar com receio de que o tiro cham<strong>as</strong>se a atenção<br />

dos que estavam fora da barraca; e por considerar que morto Rokoff, ela cairia<br />

em mãos nada melhores do que <strong>as</strong> dele. A lembrança dos dois brutos que<br />

ficaram a rir-se quando Rokoff lhe batera, ainda estava bem viva na sua<br />

memória.<br />

Quando a cara enraivecida e cheia de medo do eslavo se virou para<br />

ela, Jane Clayton levantou o pesado revólver, e com toda a sua força deu uma<br />

terrível pancada entre os olhos do russo, o qual, sem dizer uma palavra, caiu,<br />

inerte e sem sentidos. A moça ficou de pé ao lado dele, livre, ao menos por<br />

momentos, da luxúria do monstro.<br />

Fora da barraca, mais uma vez ouviu o barulho que tinha distraído a<br />

atenção de Rokoff. O que seria, ela não sabia; m<strong>as</strong>, receando que o criado<br />

volt<strong>as</strong>se e descobrisse o que se havia p<strong>as</strong>sado, caminhou rapidamente para a<br />

mesinha onde estava colocada uma lâmpada a óleo, e apagou a chama<br />

nauseabunda.<br />

Na completa escuridão do interior, estacou imóvel por momentos,<br />

para se acalmar e planejar o que em seguida lhe cumpria fazer para<br />

reconquistar a liberdade.


Ao redor dela estava um acampamento de inimigos. Além destes<br />

inimigos um grande espaço enegrecido de selva selvagem, povoado de<br />

horríveis animais ferozes e animais humanos ainda mais horríveis.<br />

Havia pouca ou nenhuma esperança que ela pudesse sobreviver<br />

mesmo por poucos di<strong>as</strong> aos perigos constantes que a esperavam aí; m<strong>as</strong> a<br />

experiência que já tinha adquirido através de tantos perigos, e a idéia de que,<br />

em algum lugar no mundo, uma criancinha estava sem dúvida naquele mesmo<br />

momento chorando por ela, fizeram com que se resolvesse a executar o que<br />

lhe parecia impossível, isto é, atravessar aquela terra de martírios à procura do<br />

mar e da obscura esperança do socorro que pudesse encontrar aí.<br />

A barraca de Rokoff estava colocada qu<strong>as</strong>e no centro da boma. Ao<br />

redor estavam <strong>as</strong> tend<strong>as</strong> e abrigos dos seus companheiros brancos e dos<br />

indígen<strong>as</strong>. Para p<strong>as</strong>sar por entre estes e achar saída através da boma, parecia-<br />

lhe uma tarefa por demais cheia de obstáculos insuperáveis para lhe merecer a<br />

menor consideração, m<strong>as</strong> não havia outro caminho.<br />

Ficar na barraca até que fosse descoberta, seria, perder tudo que<br />

tinha arriscado para ganhar a sua liberdade, e, por isso, com p<strong>as</strong>sos silenciosos<br />

e todos os sentidos alert<strong>as</strong>, chegou ao fundo da barraca, a fim de encetar a<br />

primeira parte da aventura.<br />

Apalpando ao longo da parte tr<strong>as</strong>eira da barraca, descobriu que não<br />

existia nenhuma abertura. Voltou então para perto do russo, em cujo cinto os<br />

seus dedos encontraram o cabo duma comprida faca de caça, e com esta fez<br />

um buraco na parte tr<strong>as</strong>eira da barraca.<br />

Silenciosamente, saiu. Com imenso alívio viu que o acampamento<br />

estava aparentemente adormecido. À luz fraca e trêmula d<strong>as</strong> fogueir<strong>as</strong> que se<br />

extinguiam, viu uma única sentinela, que estava cochilando de cócor<strong>as</strong> no lado<br />

oposto da estacada.<br />

Conservando a barraca entre ambos, Jane atravessou por entre os<br />

pequenos abrigos dos carregadores indígen<strong>as</strong>, até além da boma.


Lá fora, da escuridão da espessa floresta, chegaram-lhe aos ouvidos<br />

os urros dos leões, os rugidos d<strong>as</strong> hien<strong>as</strong>, e os inumeráveis rumores sem nome<br />

da floresta à noite.<br />

Jane hesitou um momento, tremendo. A idéia dos animais lá fora<br />

na escuridão era horrível. Contudo, sacudindo corajosamente a cabeça,<br />

investiu contra a cerca de espinhos ferindo <strong>as</strong> mãos delicad<strong>as</strong>. Embora<br />

estivessem ferid<strong>as</strong> e ensangüentad<strong>as</strong>, trabalhou sem parar até fazer uma<br />

abertura pela qual pudesse p<strong>as</strong>sar. Finalmente viu-se do lado de fora da<br />

estacada.<br />

Atrás dela ficava uma sorte pior do que a morte, pel<strong>as</strong> mãos de<br />

seres humanos. Diante dela ficava uma morte qu<strong>as</strong>e certa — m<strong>as</strong> era apen<strong>as</strong> a<br />

morte — repentina e misericordiosa — e honrosa.<br />

Sem um tremor e sem arrependimento, fugiu do acampamento, e<br />

um momento depois a selva tinha-se fechado misteriosa em volta dela.


CAPÍTULO 14: Sozinha na selva<br />

Tambudza, conduzindo Tarzan dos Macacos na direção do<br />

acampamento do russo, movia-se vagarosamente ao longo do caminho<br />

tortuoso da selva, pois era velha e <strong>as</strong> su<strong>as</strong> pern<strong>as</strong> estavam endurecid<strong>as</strong> pelo<br />

reumatismo.<br />

Assim foi que os mensageiros, despachados por M’gamuazam para<br />

avisar Rokoff que o gigante branco estava em sua aldeia e que ele seria morto<br />

naquela noite, chegaram ao acampamento do russo antes que Tarzan e sua<br />

velha guia tivessem percorrido metade da distância.<br />

Os mensageiros encontraram o acampamento do homem branco<br />

em alvoroço. Rokoff tinha sido descoberto naquela manhã desacordado e<br />

ensangüentado dentro da sua barraca. Quando recobrou os sentidos e soube<br />

que Jane Clayton tinha fugido, a sua raiva foi sem limite.<br />

Correndo pelo acampamento com a sua espingarda, tentou matar<br />

os sentinel<strong>as</strong> indígen<strong>as</strong> que tinham deixado a jovem senhora escapar à sua<br />

vigilância; m<strong>as</strong> vários dos outros brancos, conhecendo que eles já estavam<br />

numa posição difícil, devido às numeros<strong>as</strong> deserções que a crueldade de<br />

Rokoff tinha causado, pegaram-no e desarmaram-no.<br />

Entretanto, chegaram os mensageiros de M’gamuazam; apen<strong>as</strong><br />

acabaram de contar a sua história, dispôs-se Rokoff a partir com eles para a<br />

sua aldeia. Eis senão quando, outros mensageiros, ofegando de cansaço pela<br />

corrida através da floresta, chegaram esbaforidos acercando-se da claridade da<br />

fogueira, gritando que o grande gigante branco tinha escapado de<br />

M’gamuazam e já estava em caminho para vingar-se dos seus inimigos.<br />

Imediatamente houve grande confusão dentro da boma. Os negros<br />

que pertenciam ao grupo de Rokoff, ficaram amedrontados quando souberam<br />

da proximidade do gigante branco que caçava na selva com um bando feroz<br />

de macacos e panter<strong>as</strong>.


Antes que os brancos <strong>as</strong>sent<strong>as</strong>sem no que havia de fazer, o receio<br />

supersticioso dos indígen<strong>as</strong> fez com que estes fugissem para a selva — tanto<br />

os seus próprios carregadores <strong>as</strong>sim como os mensageiros de M’gamuazam;<br />

— m<strong>as</strong>, apesar da pressa com que fugiram, não deixaram de levar com eles<br />

todos os artigos de valor que encontraram.<br />

no meio do mato.<br />

Rokoff e os sete marinheiros brancos ficaram <strong>as</strong>sim abandonados<br />

O russo, conforme seu costume, zangou-se com os seus<br />

companheiros, culpando-os pelos acontecimentos que antecederam a situação,<br />

qu<strong>as</strong>e sem esperança, em que se encontravam agora; m<strong>as</strong> os marinheiros não<br />

estavam dispostos a aturar os seus insultos e <strong>as</strong> su<strong>as</strong> prag<strong>as</strong>.<br />

No meio da altercação um dos marinheiros puxou um revólver e<br />

atirou no russo, errando, porém, o alvo. M<strong>as</strong> esse gesto de rebeldia <strong>as</strong>sustou<br />

de tal modo a Rokoff que ele fugiu, correndo para a sua barraca.<br />

Nessa corrida, os seus olhos, por ac<strong>as</strong>o, distinguiram além da boma,<br />

na orla da floresta, alguma coisa que estarreceu de pavor o seu vil coração, e<br />

tanto que ele qu<strong>as</strong>e esqueceu o terror dos sete homens, dos quais vinha<br />

fugindo e cujo ódio e vingança estavam prestes a explodir, liquidando-o.<br />

saindo da selva.<br />

O que ele viu foi a enorme figura de um homem branco, seminu,<br />

Arremessando-se para dentro da barraca, o russo não parou na<br />

fuga, m<strong>as</strong> continuou através da lona que ficava na retaguarda, aproveitando-se<br />

do corte que Jane Clayton tinha feito na véspera. Tarzan penetrou no<br />

acampamento pelo lado oposto, enquanto Rokoff desaparecia na selva.<br />

Quando o homem-macaco entrou na boma com a velha Tambudza<br />

ao seu lado, os sete marinheiros reconhecendo-o, voltaram-se e fugiram em<br />

direção oposta. Tarzan viu que Rokoff não estava no meio deles, e por isso<br />

deixou-os fugir. — O seu negócio era com o russo, que esperava encontrar<br />

em sua barraca. Quanto aos marinheiros, tinha certeza que a selva lhes exigiria


a expiação dos seus pecados, e sem dúvida não se enganava, pois os seus<br />

olhos foram os últimos a ver qualquer um deles.<br />

Encontrando a barraca de Rokoff vazia, Tarzan ia à procura do<br />

russo quando Tambudza sugeriu que a partida do homem branco só poderia<br />

ser em conseqüência de ter ele recebido aviso de M’gamuazam de que Tarzan<br />

estava em sua aldeia.<br />

— Sem dúvida apressou-se em ir lá — raciocinou a velha. — Se<br />

quiser encontrá-lo, vamos voltar imediatamente.<br />

Tarzan pensou que provavelmente seria isso mesmo; por isso não<br />

g<strong>as</strong>tou tempo em localizar a pista do russo; m<strong>as</strong>, em vez disto, partiu<br />

rapidamente na direção da aldeia de M’gamuazan, deixando Tambudza<br />

caminhar vagarosamente no seu r<strong>as</strong>tro.<br />

A sua única esperança era que Jane ainda estivesse em poder de<br />

Rokoff. Se <strong>as</strong>sim fosse, seria apen<strong>as</strong> uma hora ou pouco mais, até que pudesse<br />

arrancá-la d<strong>as</strong> mãos do russo.<br />

Sabia agora que M’gamuazam era traiçoeiro e que, por certo, teria<br />

de lutar para recuperar sua esposa. Gostava que Mugambi, Sheeta, Akut, e o<br />

resto do bando estivessem com ele, pois bem sabia que sozinho não seria fácil<br />

livrar Jane d<strong>as</strong> garr<strong>as</strong> de dois patifes como Rokoff e o velhaco M’gamuazam.<br />

Com surpresa, não encontrou nenhum sinal nem de Rokoff nem de<br />

Jane na aldeia, e como não podia confiar na palavra do chefe, não g<strong>as</strong>tou<br />

tempo em pergunt<strong>as</strong> inúteis. Tão repentino e inesperado foi o seu regresso, e<br />

tão rapidamente tinha ele desaparecido na selva depois de saber que aqueles<br />

que procurava não estavam entre os Waganwazans, que o velho M’gamuazan<br />

não teve tempo de evitar a sua partida.<br />

Balançando-se pel<strong>as</strong> árvores, voltou apressadamente ao<br />

acampamento abandonado, que tão recentemente tinha deixado, pois bem<br />

sabia que era ali o lugar mais lógico para descobrir a pista de Rokoff e Jane.


Chegando à boma, rodeou cuidadosamente o lado externo da<br />

estacada, até uma abertura na cerca de espinhos, onde notou indícios de que<br />

alguma coisa tinha p<strong>as</strong>sado recentemente para a selva. O seu agudo olfato<br />

dizia-lhe que amb<strong>as</strong> <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> que procurava tinham fugido do acampamento<br />

nesta direção. Momentos depois já tinha a certeza de estar na pista daqueles a<br />

quem buscava.<br />

Muito adiante dele uma jovem mulher, tomada de medo, andava<br />

furtivamente ao longo de um caminho estreito freqüentado por animais,<br />

receosa de que, a cada momento, tivesse de enfrentar algum animal ou<br />

homem igualmente selvagem.<br />

Sem estar muito certa de que estivesse palmilhando em direção do<br />

grande rio, ela chegou inesperadamente a um lugar conhecido.<br />

Para um lado do caminho, debaixo de uma grande árvore, estava<br />

um pequeno monte de mato frouxamente empilhado. Até a hora da sua morte<br />

aquele pedacinho de selva ficaria impresso indelevelmente na sua memória.<br />

Era o lugar onde Anderssen a tinha escondido — onde ele entregou a Deus a<br />

sua vida, num esforço inútil para salvá-la de Rokoff.<br />

À vista disto, lembrou-se da carabina e munição que ele lhe<br />

aconselhara a levar no último momento. Até então ela os tinha esquecido<br />

completamente. Trazia ainda na mão o revólver que tinha arrancado do cinto<br />

de Rokoff; m<strong>as</strong> essa arma só poderia conter, no máximo, seis bal<strong>as</strong> que não<br />

eram suficientes para fornecer-lhe comida e proteção na grande viagem para o<br />

mar.<br />

Com a respiração presa procurou por baixo do pequeno monte, mal<br />

ousando esperar que o tesouro ainda estivesse onde o tinha deixado; m<strong>as</strong>,<br />

com imenso alívio e alegria, a sua mão imediatamente encontrou o cano da<br />

pesada arma e logo depois a bandola de bal<strong>as</strong>.<br />

Ao colocar a arma no ombro, ao sentir o peso da grande<br />

espingarda, a pobre senhora experimentou uma repentina sensação de


segurança. Foi com novo alento e uma esperança de sucesso qu<strong>as</strong>e <strong>as</strong>segurado<br />

que, mais uma vez, se pôs a caminho.<br />

Aquela noite dormiu na forquilha de uma árvore, como Tarzan lhe<br />

tinha dito tant<strong>as</strong> vezes que costumava fazer. No dia seguinte, muito cedo,<br />

prosseguiu na viagem. Ao escurecer, quando ia atravessar um pequeno trecho<br />

limpo, ficou <strong>as</strong>sustada ao ver um enorme macaco saindo da selva ao lado<br />

oposto.<br />

O vento estava soprando diretamente na direção do animal. Jane<br />

não perdeu tempo em pôr-se contra o vento a fim de não ser percebida pela<br />

enorme criatura: escondeu-se num bosque fechado e ficou alerta segurando a<br />

carabina pronta para uso imediato.<br />

Vagarosamente o monstro avançou, farejando o chão de vez em<br />

quando, como se estivesse seguindo um r<strong>as</strong>tro. Mal dera, porém, o animal<br />

uma dúzia de p<strong>as</strong>sos, outro macaco saiu da selva, e depois outro e mais outro,<br />

até cinco desses animais ferozes. A moça continuava, estarrecida, agachada no<br />

seu esconderijo, com a pesada carabina pronta para o que desse e viesse.<br />

Com grande consternação sua viu que os macacos estacionavam na<br />

clareira. Formavam um pequeno grupo, e ficaram olhando para trás, como se<br />

estivessem à espera de outros de seu bando.<br />

Jane esperou imóvel que eles prosseguissem seu caminho, pois bem<br />

sabia que, a qualquer momento, algum pequeno ruído lhes poderia dar sinal de<br />

sua presença, e então de que serviria a proteção da sua carabina contra aqueles<br />

músculos gigantescos, aqueles dentes enormes?<br />

Os seus olhos moviam-se entre os macacos e a orla da selva, para<br />

onde eles estavam olhando, até que por fim percebeu porque haviam parado.<br />

Estavam sendo perseguidos.<br />

Disto teve ela a certeza, quando viu o corpo vigoroso e flexível de<br />

uma pantera sair silenciosamente da selva no ponto de onde os macacos<br />

tinham saído momentos antes.


Ligeiro, o animal atravessou a clareira, na direção dos antropóides.<br />

Jane admirou-lhe a aparente indolência, e grande foi a sua surpresa ao ver a<br />

pantera chegar bem perto dos macacos, que pareciam inteiramente<br />

indiferentes à sua presença, e <strong>as</strong>sentar-se de cócor<strong>as</strong> entre eles começando a<br />

lamber-se e alisar o pêlo, o que ocupa a maior parte d<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> aproveitáveis da<br />

vida dos felinos.<br />

Se a jovem senhora se admirou de ver estes inimigos naturais<br />

confraternizando, foi com ainda mais terror que viu um guerreiro alto,<br />

musculoso, sair do mesmo lugar e juntar-se ao grupo de animais selvagens.<br />

Logo que viu o homem, pareceu-lhe que ele ia ser despedaçado; e já<br />

se preparava para levar a carabina ao ombro, a fim de fazer o que pudesse<br />

para evitar a morte horrível do homem. Com <strong>as</strong>sombro, viu, porém, que ele<br />

parecia estar conversando com os animais — dando-lhes ordens.<br />

outro lado.<br />

Logo todo o bando atravessou a clareira e desapareceu na selva do<br />

Com um suspiro, misto de incredulidade e alívio, Jane Clayton<br />

levantou-se e fugiu do terrível bando que acabava de p<strong>as</strong>sar, enquanto meia<br />

milha atrás dela um outro indivíduo, seguindo o mesmo r<strong>as</strong>tro, ficou gelado<br />

de terror atrás de um cupinzeiro, quando o horrível bando p<strong>as</strong>sou bem perto<br />

dele.<br />

Este era Rokoff, que tinha reconhecido os membros do horrível<br />

grupo como sendo os aliados de Tarzan dos Macacos. Logo, portanto, que os<br />

animais desapareceram, levantou-se e fugiu pela selva tão ligeiro quanto podia<br />

correr, a fim de pôr a maior distância possível entre ele e estes terríveis<br />

animais.<br />

Assim aconteceu que quando Jane Clayton chegou à beira do rio,<br />

pelo qual esperava flutuar até o oceano e alcançar a liberdade, Nikol<strong>as</strong> Rokoff<br />

estava apen<strong>as</strong> a pequena distância, na sua retaguarda.


Junto da margem do rio viu ela uma grande embarcação puxada<br />

qu<strong>as</strong>e fora da água e amarrada fortemente a uma árvore próxima.<br />

Isto, pensou, resolveria a questão de transporte para o mar, se<br />

pudesse fazer flutuar a enorme e pesada embarcação. Desamarrando a corda<br />

com a qual estava presa à árvore, Jane empurrou com frenesi a proa do<br />

pesado barco, m<strong>as</strong> foi o mesmo que se tent<strong>as</strong>se empurrar a terra fora da sua<br />

órbita.<br />

Já estava qu<strong>as</strong>e exausta, quando lhe ocorreu que seria melhor<br />

experimentar fazer a embarcação sair carregando a popa com pedr<strong>as</strong> e depois<br />

balançar a proa de trás para diante, ao longo da margem, até a embarcação<br />

escorregar para dentro do rio.<br />

Não havia, porém, nem pedr<strong>as</strong>, nem rochedos à mão; ao longo da<br />

margem, achou uma quantidade de lenha amontoada e depositada pelo rio<br />

num lugar um pouco mais para cima. Esta ela ajuntou e empilhou bem na<br />

popa da canoa, até que finalmente, com imenso alívio, viu a proa desprender-<br />

se aos poucos da lama que ficava à margem e a popa flutuar vagarosamente<br />

com a correnteza até ficar, mais uma vez, presa a pequena distância um pouco<br />

mais abaixo.<br />

Jane começou então a correr para trás e para frente, da proa à popa,<br />

para que o barco se desprendesse novamente.<br />

Quando o sucesso do seu plano estava próximo de se realizar, ficou<br />

tão absorta nos seus esforços que não notou o vulto de um homem que estava<br />

por baixo de uma enorme árvore à beira da selva, de onde ela acabava de sair.<br />

Ele a vigiava com um sorriso cruel e malicioso no rosto trigueiro.<br />

Finalmente quando faltava pouco para a canoa se soltar da lama e<br />

da margem, Jane viu que podia acabar de empurrá-la para o rio com o auxílio<br />

de um dos remos que estavam no fundo da tosca embarcação. Com esta idéia,<br />

apanhou um deles e mergulhou-o no fundo do rio perto da margem, quando<br />

os seus olhos, por ac<strong>as</strong>o, se levantaram até a beira da selva. E um grito de


terror irrompeu-lhe dos lábios ao reconhecer o vulto do homem que olhava<br />

para ela. Era Rokoff.<br />

Este vinha correndo em sua direção, gritando que esper<strong>as</strong>se ou ele<br />

atiraria — m<strong>as</strong> como estava completamente desarmado, era difícil saber como<br />

poderia cumprir a sua ameaça.<br />

Jane Clayton nada sabia d<strong>as</strong> vári<strong>as</strong> desgraç<strong>as</strong> que tinham acontecido<br />

ao russo desde que fugira da sua barraca; por isso, julgou que os seus<br />

companheiros estavam próximos.<br />

Contudo, não era sua intenção cair novamente n<strong>as</strong> garr<strong>as</strong> desse<br />

homem. Preferiria morrer imediatamente. Mais um minuto e a canoa ficaria<br />

solta.<br />

Uma vez na correnteza do rio, estaria fora do alcance de Rokoff,<br />

pois não havia outra canoa na beira do rio e nenhum homem, e muito menos<br />

o covarde Rokoff — teria coragem de nadar naquel<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> chei<strong>as</strong> de<br />

crocodilos, num esforço para apanhá-la.<br />

Rokoff, da sua parte, estava mais interessado em salvar-se a si<br />

próprio do que qualquer outra coisa. Com muita satisfação renunciaria a<br />

qualquer desígnio que ainda pudesse ter para com Jane Clayton, c<strong>as</strong>o esta lhe<br />

permitisse compartilhar este modo de fuga que tinha descoberto.<br />

Prometeria seja o que for que ela desej<strong>as</strong>se se o recolhesse a bordo<br />

da embarcação; m<strong>as</strong> não julgava que fosse necessário fazer isto.<br />

Viu que podia facilmente alcançar a proa antes que a mesma<br />

deix<strong>as</strong>se a praia, e então não seria necessário fazer promess<strong>as</strong> de qualquer<br />

espécie.<br />

Já estava até antegozando os di<strong>as</strong> e <strong>as</strong> noites de vingança que teria<br />

enquanto a embarcação se dirigisse vagarosamente na direção do oceano.<br />

Jane Clayton, trabalhando furiosamente para empurrar a canoa,<br />

julgou que o conseguiria, pois com um pequeno desvio a embarcação p<strong>as</strong>sou<br />

ligeiramente para a correnteza, justamente no momento em que Rokoff


procurava colocar a mão na proa. M<strong>as</strong> os dedos do russo perderam o alvo,<br />

por menos de meia dúzia de polegad<strong>as</strong>. A moça qu<strong>as</strong>e caiu com a reação do<br />

horrível esforço mental, físico e nervoso, sob a qual tinha trabalhado, durante<br />

os últimos minutos. M<strong>as</strong>, graç<strong>as</strong> a Deus, estava finalmente livre!<br />

Enquanto rezava uma prece silenciosa, de agradecimento, viu,<br />

porém, uma expressão repentina de triunfo clarear os traços do russo que<br />

estava rogando prag<strong>as</strong>, e ao mesmo instante, se atirou repentinamente ao<br />

chão, agarrando com toda a força alguma coisa que se insinuava pela lama e<br />

para a água.<br />

Jane Clayton abaixou-se, com os olhos esbugalhados e tomada de<br />

espanto, no fundo da canoa quando compreendeu que no último momento o<br />

sucesso tinha falhado, e que, mais uma vez, ela estava em poder do maligno<br />

Rokoff.<br />

A coisa que o homem tinha visto e agarrado era a ponta da corda,<br />

com a qual a embarcação tinha sido amarrada à árvore.


CAPÍTULO 15: Descendo o rio Ugambi<br />

No meio do caminho, entre o Ugambi e a aldeia dos Waganwazans,<br />

Tarzan encontrou o bando que caminhava vagarosamente ao longo da sua<br />

antiga pista. Mugambi estava longe de pensar que o bando havia p<strong>as</strong>sado tão<br />

perto da pista do russo e da companheira do seu patrão selvagem.<br />

Parecia incrível que dois seres humanos cheg<strong>as</strong>sem tão perto deles<br />

sem que tivessem sido descobertos por alguns dos animais maravilhosamente<br />

espertos a alert<strong>as</strong>; m<strong>as</strong> Tarzan mostrou a pista dos dois que ele tinha seguido,<br />

e em certos pontos o negro poderia ver que o homem e a mulher deveriam ter<br />

estado escondidos quando o bando p<strong>as</strong>sou por eles, vigiando cada movimento<br />

d<strong>as</strong> ferozes criatur<strong>as</strong>.<br />

Tinha ficado claro a Tarzan, desde o princípio que Jane e Rokoff<br />

não estavam viajando juntos. A pista demonstrava claramente que a jovem<br />

senhora tinha estado, a princípio, a considerável distância diante do russo.<br />

Quanto mais o homem-macaco prosseguia ao longo do r<strong>as</strong>tro tanto mais claro<br />

lhe parecia que Rokoff estava rapidamente alcançando a sua presa.<br />

No princípio havia o r<strong>as</strong>tro de animais selvagens sobre <strong>as</strong> pegad<strong>as</strong><br />

de Jane Clayton; e por cima de todos eles o r<strong>as</strong>tro de Rokoff demonstrou que<br />

ele tinha p<strong>as</strong>sado por ali depois que os animais tinham deixado <strong>as</strong> su<strong>as</strong> marc<strong>as</strong><br />

no chão. M<strong>as</strong>, depois, havia cada vez menos pegad<strong>as</strong> de animais entre <strong>as</strong> de<br />

Jane e <strong>as</strong> do russo. Ao chegar ao rio, o homem-macaco ficou ciente de que<br />

Rokoff não podia ter estado mais que algum<strong>as</strong> cem jard<strong>as</strong> atrás da moça.<br />

Julgou então que eles deveriam estar agora pouco adiante e, com<br />

um leve tremor de esperança, tornou rapidamente à frente do seu bando.<br />

Balançando-se celeremente pel<strong>as</strong> árvores, saiu na margem do rio, no mesmo<br />

lugar onde Rokoff tinha alcançado Jane, quando esta procurava lançar na água<br />

a embarcação.


Na lama, ao longo da margem, o homem-macaco viu <strong>as</strong> pegad<strong>as</strong><br />

dos dois que procurava; m<strong>as</strong> não havia nem embarcação nem gente, nem, à<br />

primeira vista, qualquer sinal do r<strong>as</strong>tro deles.<br />

Era evidente que tinham impelido para o rio uma canoa indígena e<br />

embarcado nela. Quando o homem-macaco olhou ligeiramente pelo rio<br />

abaixo, através dos ramos d<strong>as</strong> árvores pendentes, viu ao longe, numa curva<br />

que lhe obstruía a vista, uma embarcação, na popa da qual estava o vulto de<br />

um homem. Justamente quando o bando de animais avistou o rio, viram eles<br />

o seu chefe correr agilmente, pulando de pedra em pedra, pela margem do<br />

terreno pantanoso que se estendia entre eles e um pequeno promontório que<br />

se erguia justamente onde o rio fazia uma curva para dentro.<br />

uma grande volta.<br />

Para segui-lo, era necessário aos pesados macacos e a Sheeta darem<br />

Mugambi seguiu atrás deles tão rapidamente quanto possível, na<br />

retaguarda do grande chefe branco.<br />

Uma viagem de meia hora através do terreno pantanoso e sobre o<br />

promontório levou Tarzan, por um pequeno atalho, à curva do rio, onde viu a<br />

embarcação na correnteza, e na popa Nikol<strong>as</strong> Rokoff.<br />

Jane não estava com o russo.<br />

Ao ver seu inimigo a larga cicatriz sobre a testa do homem-macaco<br />

ficou escarlate, e saiu dos lábios de Tarzan o grito horrível e brutal do macaco.<br />

seus ouvidos.<br />

Rokoff estremeceu quando o alarme estranho e terrível chegou aos<br />

Agachando-se no fundo da canoa os seus dentes começaram a bater<br />

de medo. Acompanhava com os olhos o homem, que temia mais do que tudo<br />

sobre a face da terra. Viu que Tarzan corria rapidamente para a beira da água.<br />

Embora o russo soubesse que estava a seguro do seu inimigo, o<br />

simples fato de o ver de longe fez que ele se tom<strong>as</strong>se de um terror covarde e


trêmulo, que se transformou em uma histeria frenética quando viu o gigante<br />

branco mergulhar n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do rio.<br />

Com braçad<strong>as</strong> firmes e poderos<strong>as</strong> o homem-macaco nadou na<br />

direção da embarcação. Rokoff apanhou então um dos remos que estavam no<br />

fundo da canoa, e com olhos cheios de terror mais fixos no vulto que o<br />

perseguia, fez todo o esforço possível para aumentar a velocidade da canoa<br />

pouco manejável.<br />

Entretanto, do lado oposto, um borbulhar sinistro, não visto por<br />

nenhum dos dois homens, movia-se firmemente na direção do nadador<br />

seminu.<br />

Tarzan tinha alcançado finalmente a popa da embarcação, e com a<br />

mão estendida para cima agarrou o alcatrate. Rokoff ficou estarrecido de<br />

medo, sem se poder mover, com os olhos fixos no rosto do seu Nêmesis.<br />

Nesse momento uma agitação repentina na água, atrás do nadador,<br />

chamou-lhe a atenção. Ele viu o movimento d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> e sabia o que o<br />

causava.<br />

No mesmo instante Tarzan sentiu uma queixada poderosa ferrar-<br />

lhe na perna direita. Tentou desvencilhar-se subindo para um dos bordos da<br />

canoa. Os seus esforços seriam bem sucedidos se esta interrupção inesperada<br />

não tivesse despertado o cérebro maligno do russo para uma ação imediata<br />

visando ao mesmo tempo a liberdade e a vingança.<br />

Como uma cobra venenosa Rokoff pulou para a popa da canoa e<br />

com o pesado remo desfechou vigorosa pancada na cabeça de Tarzan. Os<br />

dedos do homem-macaco desprenderam-se do alcatrate.<br />

Houve uma pequena luta na superfície, um reboliço na água, um<br />

pequeno redemoinho, e uma porção de bolh<strong>as</strong> afloraram e desfizeram-se na<br />

corrente, designando <strong>as</strong>sim o lugar onde Tarzan dos Macacos, Senhor da<br />

Selva, desapareceu da vista dos homens por baixo d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> turv<strong>as</strong> do Ugambi<br />

escuro e amaldiçoado.


Trêmulo de medo, Rokoff deixou-se cair no fundo da embarcação.<br />

Por momentos não pôde gozar da boa fortuna que, mais uma vez, lhe sorrira;<br />

tinha ainda diante dos olhos a visão de um homem branco debatendo-se n<strong>as</strong><br />

águ<strong>as</strong> e depois desaparecendo na superfície do rio.<br />

Aos poucos, tudo que isto significava foi despertando na mente do<br />

russo, e então um sorriso cruel de alívio e triunfo aflorou-lhe aos lábios; m<strong>as</strong><br />

foi de pouca duração, pois justamente quando se estava congratulando por<br />

essa inesperada liberdade para prosseguir na viagem para a costa sem ser<br />

molestado, um grande barulho levantou-se da margem do rio.<br />

Quando os seus olhos procuraram os autores de tal barulho viu de<br />

pé, na praia, fitando-o com os olhos fulgurantes de ódio, uma pantera cercada<br />

pelos medonhos macacos de Akut, e à frente do bando um gigante negro,<br />

sacudindo o pulso para ele, ameaçando-o com uma morte terrível.<br />

O pesadelo daquela fuga pelo Ugambi com o horrível bando de<br />

fer<strong>as</strong> a segui-lo pela margem dia após dia, agora juntos, outr<strong>as</strong> vezes perdidos<br />

nos labirintos da selva, para aparecer novamente sobre o seu r<strong>as</strong>tro,<br />

medonhos, inexoráveis, terríveis, reduziu o russo, de homem forte e robusto,<br />

a um homem magro, com cabelos brancos, tomado de terror, antes que<br />

pudesse ver a baía e o oceano.<br />

Ele tinha p<strong>as</strong>sado por aldei<strong>as</strong> bem populos<strong>as</strong>. Vári<strong>as</strong> vezes alguns<br />

guerreiros tinham subido em su<strong>as</strong> cano<strong>as</strong> para interceptar-lhe a p<strong>as</strong>sagem; m<strong>as</strong><br />

sempre o horrível bando tinha aparecido, amedrontando os indígen<strong>as</strong>, que<br />

fugiam da margem, internando-se na selva.<br />

Durante a fuga não mais vira sinal de Jane Clayton. Nem uma vez<br />

os seus olhos tornaram a vê-la desde aquele momento à beira do rio, quando<br />

agarrava a corda amarrada à proa da embarcação. E ele que pensara que ela<br />

estava novamente em seu poder!<br />

Que teria acontecido? Talvez a moça tivesse sido presa por<br />

guerreiros de uma d<strong>as</strong> vári<strong>as</strong> aldei<strong>as</strong>, por onde teria sido forçada a p<strong>as</strong>sar no


seu caminho para o mar. Enfim, ao menos, ele estava livre da maioria dos seus<br />

inimigos humanos.<br />

M<strong>as</strong>, como gostaria de tê-los ainda uma vez na terra dos vivos, se<br />

pudesse livrar-se da constante ameaça dos horríveis animais que o perseguiam<br />

com inexorável persistência, gritando e rosnando para ele, cada vez que o<br />

avistavam! De todos eles o que lhe causava maior pavor era a pantera — com<br />

os seus olhos flamejantes e com a sua face demoníaca, cuj<strong>as</strong> pres<strong>as</strong> se abriam<br />

para ele de dia, e cujos olhos vermelhos brilhavam perversamente através da<br />

escuridão da noite.<br />

A vista da foz do Ugambi trouxe a Rokoff alguma esperança, pois,<br />

aí, sobre <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> amarel<strong>as</strong> da baía, flutuava o Kincaid ancorado. Ele tinha<br />

ordenado que o pequeno vapor partisse para receber carvão enquanto ele<br />

subia o rio, deixando Paulvitch tomando conta. Ao avistar o navio, Rokoff<br />

chorou de alívio, pois o vapor tinha voltado a tempo de salvá-lo.<br />

Remou furiosamente na direção do vapor, erguendo-se e agitando o<br />

remo, gritando alto para atrair a atenção dos que estavam a bordo. M<strong>as</strong><br />

embora grit<strong>as</strong>se, os seus gritos não tiveram nenhuma resposta do tombadilho<br />

da embarcação silenciosa.<br />

Na praia, atrás dele, lá estava, seguindo-lhe os movimentos, o<br />

bando impertinente. — Ainda aqui — pensou — estes demônios com<br />

aparência de homens poderiam achar uma maneira de alcançá-lo, mesmo<br />

sobre o tombadilho do vapor, a não ser que tivesse alguém lá para repeli-los<br />

com arm<strong>as</strong>.<br />

Que poderia ter acontecido àqueles que ele tinha deixado no<br />

Kincaid? Onde estava Paulvitch? Seria possível que o vapor estivesse<br />

abandonado, e que, apesar de tudo, ele, Rokoff, se visse condenado a ser<br />

vencido pela horrível sorte da qual tinha escapado durante tantos di<strong>as</strong> e noites<br />

terríveis? A essa idéia, estremeceu como alguém sobre cuja fronte a morte já<br />

pusera o seu dedo viscoso.


Contudo não deixou de remar com força na direção do vapor.<br />

Finalmente, depois do que lhe parecia uma eternidade, a proa da embarcação<br />

bateu contra o costado do Kincaid. Do vapor pendia uma escada de corda;<br />

m<strong>as</strong> quando o russo começou a subir para o tombadilho, ouviu um grito<br />

ameaçador e olhando para cima, deu com o cano frio e implacável de uma<br />

carabina.<br />

Depois que Jane Clayton, com a carabina apontada para o peito de<br />

Rokoff, tinha conseguido af<strong>as</strong>tá-lo até que a embarcação em que ela se<br />

refugiou alcanç<strong>as</strong>se o meio do Ugambi, além do alcance do homem, ela<br />

ganhara tempo, remando na correnteza mais forte do canal. Durante longos<br />

di<strong>as</strong> e noites fatigantes conservou a sua embarcação na parte do rio onde<br />

podia avançar com mais rapidez; durante <strong>as</strong> hor<strong>as</strong> mais quentes do dia deixava<br />

a correnteza levá-la, ficando deitada no fundo da canoa, com o rosto<br />

protegido do sol por uma grande folha de palmeira.<br />

Somente desta maneira é que descansou na viagem; a maior parte<br />

do tempo continuamente procurou aumentar a marcha da embarcação<br />

manejando o pesado remo.<br />

Rokoff, ao contrário, tinha usado pouca ou nenhuma inteligência<br />

em sua fuga ao longo do Ugambi, tanto que a maior parte d<strong>as</strong> vezes a sua<br />

embarcação tinha ficado à mercê da correnteza; pois qu<strong>as</strong>e sempre procurou<br />

ficar perto da margem oposta àquela ao longo da qual o bando horrível d<strong>as</strong><br />

fer<strong>as</strong> o perseguia e ameaçava.<br />

Assim foi que, embora partindo pouco tempo depois da moça, esta<br />

chegou à baía du<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> antes dele.<br />

Quando avistou o vapor ancorado na água tranqüila, o coração de<br />

Jane Clayton bateu ligeiramente com esperança e agradecimento; m<strong>as</strong> quando<br />

chegou mais próximo à embarcação e viu que era o Kincaid, o seu prazer<br />

tornou-se em grande receio.


Era tarde demais, contudo, para voltar, pois a correnteza, que a<br />

tinha trazido para junto do vapor, era forte demais para os seus músculos.<br />

Não poderia conduzir a pesada embarcação contra a correnteza. O único<br />

recurso que lhe restava era tentar alcançar a praia sem ser percebida por<br />

aqueles que estavam a bordo do Kincaid, ou implorar-lhes clemência — de<br />

outra forma seria levada para o alto-mar.<br />

Sabia que a praia não lhe seria de grande utilidade, pois ignorava em<br />

que lugar ficava a boa aldeia Mosula, à qual Anderssen a tinha levado através<br />

da escuridão da noite, por oc<strong>as</strong>ião da sua fuga do Kincaid.<br />

Com Rokoff ausente do vapor, era possível oferecer aos<br />

marinheiros uma grande recompensa para que a lev<strong>as</strong>sem ao porto civilizado<br />

mais próximo. Valia a pena tentar, se pudesse alcançar o vapor.<br />

A correnteza continuava a conduzi-la rio abaixo, e era com muita<br />

dificuldade que podia dirigir a embarcação para onde estava o Kincaid. Tendo<br />

conseguido aproximar-se do vapor verificou com surpresa que os<br />

tombadilhos pareciam estar desertos, pois não viu nenhum sinal de vida a<br />

bordo.<br />

A embarcação aproximava-se cada vez mais da proa do vapor, sem<br />

que ela ouvisse a voz do vigia de bordo.<br />

Jane compreendeu que seria af<strong>as</strong>tada para longe do vapor e a não<br />

ser que de bordo arri<strong>as</strong>sem um bote para salvá-la, seria levada para o alto-mar<br />

pela correnteza.<br />

Gritou, pois, por auxílio, m<strong>as</strong> não obteve nenhuma resposta.<br />

Freneticamente Jane manejou o remo para levar a embarcação ao<br />

longo do costado do vapor.<br />

Houve um momento em que julgou perder o alvo por alguns pés,<br />

m<strong>as</strong> felizmente a canoa p<strong>as</strong>sou logo abaixo da proa do vapor e Jane conseguiu<br />

agarrar a corrente da âncora, sendo qu<strong>as</strong>e puxada da canoa pela força da<br />

correnteza. Viu então que do costado do navio pendia uma escada de corda.


Soltar a corrente e tentar subir a escada quando a canoa p<strong>as</strong>s<strong>as</strong>se por baixo<br />

não lhe parecia praticável; m<strong>as</strong> ficar agarrada à corrente da âncora parecia-lhe<br />

igualmente inútil.<br />

Afinal conseguiu fazer a canoa resvalar vagarosamente até ficar por<br />

baixo da escada. Um momento depois, com a carabina sobre os ombros,<br />

subiu com toda a segurança ao tombadilho abandonado.<br />

A sua primeira tarefa foi explorar o vapor e isto ela fez com a<br />

carabina pronta para uso imediato, c<strong>as</strong>o se lhe depar<strong>as</strong>se qualquer ameaça a<br />

bordo do Kincaid. Não demorou em descobrir a causa do aparente abandono<br />

do vapor: na proa, encontrou os marinheiros encarregados de vigiar o vapor,<br />

num sono profundo de embriaguez.<br />

Com um estremecimento de repugnância, subiu ao tombadilho e da<br />

melhor maneira possível fechou a escotilha por cima d<strong>as</strong> cabeç<strong>as</strong> da guarda<br />

sonolenta. Em seguida, procurou alimento; uma vez satisfeita, acomodou-se<br />

no tombadilho, resolvida a impedir a entrada de quem quer que fosse a bordo<br />

do Kincaid, sem primeiramente concordar com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> exigênci<strong>as</strong>.<br />

Decorrida uma hora, mais ou menos, sem que nada aparecesse<br />

sobre a superfície da água, viu ela chegando, pelo rio abaixo, uma canoa, na<br />

qual lhe pareceu que estava sentado um vulto humano. Alguns minutos<br />

depois, e ela reconheceu nesse vulto a pessoa de Rokoff.<br />

Quando este procurou abordar o vapor, encontrou pela frente o<br />

cano de uma carabina.<br />

Reconhecendo o russo a pessoa que lhe impedia a subida, ficou<br />

furioso, amaldiçoando, praguejando, ameaçando; m<strong>as</strong>, reconhecendo que est<strong>as</strong><br />

tátic<strong>as</strong> não <strong>as</strong>sustavam nem demoviam a moça, finalmente começou a suplicar<br />

e prometer.<br />

Jane só tinha uma resposta para tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> su<strong>as</strong> propost<strong>as</strong>, e esta era<br />

que nada a persuadiria a consentir que Rokoff subisse para o vapor. Que ela


faria o que ameaçava baleando-o c<strong>as</strong>o persistisse no seu intento de abordar o<br />

vapor, ele tinha a certeza.<br />

Desta maneira, como não havia outra alternativa, o grande covarde<br />

voltou novamente para a sua embarcação e, com o risco iminente de ser<br />

levado para o alto-mar, conseguiu desembarcar a uma grande distância, do<br />

lado oposto àquele onde o bando de animais estava rosnando e berrando.<br />

Jane Clayton sabia que Rokoff, sozinho e sem auxílio, não podia<br />

fazer a sua embarcação pesada voltar pela correnteza acima para o Kincaid e,<br />

<strong>as</strong>sim, não receava um outro ataque da parte dele. No bando horrível que lá<br />

estava na praia, julgou ela reconhecer como sendo o mesmo que tinha p<strong>as</strong>sado<br />

perto dela na selva, alguns di<strong>as</strong> antes, pois lhe parecia improvável que<br />

houvesse mais de um bando tão estranho; m<strong>as</strong> não podia imaginar o que o<br />

teria trazido até a foz do rio.<br />

Ao cair da noite a jovem ficou repentinamente <strong>as</strong>sustada com os<br />

gritos do russo do lado oposto do rio; e um momento depois, mais ainda se<br />

<strong>as</strong>sustou ao ver aproximar-se do vapor um bote, no qual, tinha certeza,<br />

vinham os outros membros da tripulação do Kincaid que faltavam, isto é,<br />

patifes refinados e perversos.


CAPÍTULO 16: Na escuridão da noite<br />

Quando Tarzan dos Macacos compreendeu que estava seguro pel<strong>as</strong><br />

enormes mandíbul<strong>as</strong> de um crocodilo, não se desesperou nem se resignou à<br />

sua sorte, como qualquer homem comum teria feito.<br />

Em vez disto, <strong>as</strong>pirando fortemente, encheu os pulmões com<br />

grande quantidade de ar antes que o enorme réptil o pux<strong>as</strong>se para o fundo do<br />

rio e então, com toda a força dos seus grandes músculos, lutou com o<br />

monstro. M<strong>as</strong> fora do seu elemento, o homem-macaco sentia-se com enorme<br />

inferioridade para desvencilhar-se do inimigo.<br />

Os pulmões de Tarzan já estavam qu<strong>as</strong>e arrebentando por falta de<br />

oxigênio. O seu corpo resvalava ao lado da carapaça viscosa do crocodilo. O<br />

homem-macaco procurou cravar-lhe a sua faca de pedra no couro rijo.<br />

Seus esforços, porém, serviam apen<strong>as</strong> para exacerbar a ferocidade<br />

do crocodilo. Tarzan compreendeu que tinha chegado ao limite de su<strong>as</strong> forç<strong>as</strong><br />

e sentiu que o seu corpo ia sendo puxado para o fundo do rio. Tudo em volta<br />

dele era escuro como um poço, e silencioso como um túmulo.<br />

Durante alguns momentos os dois ficaram <strong>as</strong>sim lutando, até que<br />

uma convulsão repentina do crocodilo, um tremor de todo o corpo e<br />

finalmente a imobilidade do monstro fizeram Tarzan compreender que ele<br />

estava morto. A faca tinha afinal encontrado um lugar vulnerável no corpo<br />

escamoso do bruto.<br />

Com <strong>as</strong> pern<strong>as</strong> vacilantes, e às apalpadel<strong>as</strong>, o homem-macaco<br />

compreendeu que estava preso em uma gruta subterrânea grande o b<strong>as</strong>tante<br />

para acomodar uma dúzia ou mais de outros animais enormes, como aquele<br />

que o tinha arr<strong>as</strong>tado até ali.<br />

O seu primeiro pensamento foi, naturalmente, de sair da gruta; m<strong>as</strong><br />

parecia-lhe improvável que pudesse regressar à superfície do rio e depois às<br />

margens. Poderia haver volt<strong>as</strong> e curv<strong>as</strong> na parte mais estreita da p<strong>as</strong>sagem, ou,<br />

o que mais receava, poderia encontrar outro dos habitantes da caverna.


Mesmo que alcanç<strong>as</strong>se a superfície do rio, havia ainda o perigo de<br />

ser novamente atacado antes que pudesse alcançar a margem. Enchendo de<br />

novo os pulmões com o ar abafado e nauseabundo da câmara, Tarzan dos<br />

Macacos mergulhou no buraco escuro que ele não pudera ver, m<strong>as</strong> tateara<br />

com os pés.<br />

A perna que fora agarrada pelo crocodilo estava b<strong>as</strong>tante ferida,<br />

m<strong>as</strong> o osso não estava quebrado, nem os músculos ou tendões b<strong>as</strong>tante<br />

machucados, para impedir-lhe os movimentos. Contudo, sofria horrivelmente:<br />

<strong>as</strong> dores eram atrozes.<br />

M<strong>as</strong> Tarzan dos Macacos estava acostumado a suportar a dor;<br />

verificou, pois, com alegria, que o uso d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> pern<strong>as</strong> não estava muito<br />

prejudicado pelos dentes agudos do monstro.<br />

Rapidamente, arr<strong>as</strong>tou-se e nadou pela p<strong>as</strong>sagem, que se inclinava<br />

para baixo e depois para cima, abrindo-se por fim no fundo do rio a poucos<br />

pés da margem. Quando o homem-macaco chegou à superfície, viu <strong>as</strong> cabeç<strong>as</strong><br />

de dois outros grandes crocodilos a pequena distância, que se dirigiam para<br />

ele. Com esforço sobre-humano o homem agarrou-se aos galhos pendentes de<br />

uma árvore próxima.<br />

E não foi sem tempo, porquanto mal se viu suspenso do galho,<br />

ouviu du<strong>as</strong> boc<strong>as</strong> abert<strong>as</strong> estalarem ameaçadoramente por baixo dele. Durante<br />

alguns minutos Tarzan descansou na árvore que fora a sua salvação. Os seus<br />

olhos examinaram o rio, tanto quanto lhe permitia o tortuoso canal, m<strong>as</strong> não<br />

viu nenhum sinal do russo ou da sua embarcação.<br />

Após breve descanso, que aproveitou para amarrar a perna ferida,<br />

saiu em perseguição da canoa em que viajava o seu inimigo.<br />

Com grande pesar, verificou, porém, que a sua perna estava muito<br />

mais machucada do que pensava, e que essa circunstância lhe dificultava<br />

seriamente a marcha. Era com enorme dificuldade que podia agora caminhar.


À mente de Tarzan veio a lembrança do que lhe contara a velha<br />

negra, Tambudza. Quanto esta lhe narrara a morte da criança, acrescentara<br />

que a mulher branca, embora entristecida, lhe tinha dito em segredo, que a<br />

criança não era seu filho.<br />

Tarzan não atinava com o motivo que teria levado Jane a ocultar a<br />

sua identidade e a da criança; a única explicação que podia dar era que, apesar<br />

de tudo, a mulher branca que tinha acompanhado o filho e o sueco para o<br />

interior da selva não era Jane.<br />

Quanto mais meditava neste problema, mais firmemente se<br />

convencia de que o seu filho estava morto, m<strong>as</strong> sua mulher estava salva em<br />

Londres, e ignorava ainda a horrível sorte do seu primogênito.<br />

Parecia-lhe então errônea a interpretação que dera à ameaça sinistra<br />

de Rokoff; tinha, pois carregado inutilmente o peso de uma dupla apreensão,<br />

ao menos <strong>as</strong>sim pensou o homem-macaco. Com este pensamento, sentiu<br />

pesar-lhe menos no coração a tristeza que a morte do seu filho lhe tinha<br />

causado.<br />

E que morte cruel! Até o animal selvagem que era o verdadeiro<br />

Tarzan, habituado aos sofrimentos e horrores da selva, estremecia quando<br />

imaginava a sorte horrível da inocente criança.<br />

Enquanto caminhava a muito custo na direção da costa, ocupava-<br />

lhe a mente a idéia dos crimes horríveis que o russo tinha cometido contra os<br />

seus entes queridos, e a grande cicatriz que tinha na fronte tornava-se<br />

vermelha e saliente, como lhe sucedia sempre que se enraivecia. Era tão<br />

grande a sua cólera, que às vezes ele próprio se <strong>as</strong>sustava com os rugidos<br />

irreprimíveis de ódio, que lhe irrompiam da garganta a ponto de até os<br />

pequenos animais da selva correrem <strong>as</strong>sustados para os seus esconderijos.<br />

Ah! se ele pudesse colocar su<strong>as</strong> mãos no russo!<br />

Du<strong>as</strong> vezes, no caminho para a costa, indígen<strong>as</strong> guerreiros correram<br />

ameaçadoramente d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> aldei<strong>as</strong> para evitar que ele continu<strong>as</strong>se no seu


caminho; m<strong>as</strong> quando o horrível grito do homem-macaco lhes soava nos<br />

ouvidos, e o grande gigante branco se atirava aos berros para cima deles,<br />

voltavam <strong>as</strong> cost<strong>as</strong> e fugiam para a selva, e só saíam dali depois que ele tinha<br />

se af<strong>as</strong>tado.<br />

Embora lhe parecesse que caminhava morosamente, Tarzan chegou<br />

à baía qu<strong>as</strong>e ao mesmo tempo que a canoa que conduzia Rokoff, isto é, pouco<br />

depois do escurecer, no mesmo dia em que Jane Clayton e o russo chegaram<br />

ao Kincaid.<br />

A escuridão caiu tão pesadamente sobre o rio e a selva que o<br />

cercava, que Tarzan, cujos olhos estavam acostumados a ver no escuro, não<br />

podia reconhecer nada, nem mesmo a pouc<strong>as</strong> jard<strong>as</strong> dele. A sua idéia era de<br />

examinar a praia naquela noite para descobrir sinais do russo e da mulher, que<br />

tinha certeza deveria ter precedido Rokoff pelo Ugambi abaixo. Que o<br />

Kincaid, ou outro vapor, estivesse ancorado a cem jard<strong>as</strong> dele, era o que não<br />

podia imaginar, pois não havia nenhuma luz a bordo.<br />

No momento em que ia começar a pesquisa, a sua atenção foi<br />

atraída repentinamente, pelo que não havia percebido — o mergulhar<br />

cauteloso de remos na água, a alguma distância da praia, mais ou menos do<br />

lado oposto ao ponto onde estava. Imóvel como uma estátua, ficou escutando<br />

o barulho qu<strong>as</strong>e imperceptível dos remos na água. Pouco depois, aos ouvidos<br />

treinados do homem-macaco chegou outro rumor que interpretou como o<br />

arranhar de pés calçados de couro sobre os degraus de uma escada de vapor.<br />

Enquanto <strong>as</strong>sim permanecia imóvel, procurando varar com os<br />

olhos a escuridão da noite, chegou-lhe o barulho de tiros e logo depois o grito<br />

de uma mulher.<br />

Ferido como estava, e ainda com a memória bem fresca de sua<br />

recente e horrível experiência, Tarzan dos Macacos não hesitou, ao ouvir<br />

aquele grito <strong>as</strong>sustado de mulher, no ar quieto da noite. De um pulo, atirou-se<br />

à água, e com poderos<strong>as</strong> braçad<strong>as</strong> nadou para onde lhe parecia ter partido o


grito, embora pudesse ainda ter por companheiros os horríveis moradores de<br />

um rio equatorial.<br />

A canoa que tinha atraído a atenção de Jane, quando estava de<br />

guarda sobre o tombadilho do Kincaid, tinha sido também percebida pelo<br />

russo que se achava em uma d<strong>as</strong> margens do rio. Aos gritos de Rokoff a<br />

embarcação aproximou-se do lugar onde ele estava, e após breve conferência,<br />

virou novamente de bordo, na direção do Kincaid. Antes porém que pudesse<br />

cobrir metade da distância entre a praia e o vapor, do tombadilho deste uma<br />

carabina fez fogo sobre ela, atingindo um dos marinheiros que ia na proa, o<br />

qual caiu na água. Como a canoa continu<strong>as</strong>se a avançar, agora mais devagar, a<br />

carabina de Jane atirou à água outro membro do grupo. A canoa retirou-se<br />

então para a praia, onde ficou até a madrugada.<br />

O bando selvagem que rosnava na praia, do lado oposto, tinha sido<br />

dirigido, na sua perseguição, pelo guerreiro negro Mugambi, chefe dos<br />

Wagambis. Só ele sabia quem era amigo ou inimigo do seu chefe perdido.<br />

C<strong>as</strong>o eles pudessem ter alcançado ou a canoa ou o Kincaid, teriam<br />

liquidado qualquer outra pessoa que aí tivessem encontrado.<br />

Mugambi sabia alguma coisa dos acontecimentos que precederam o<br />

desembarque de Tarzan na Ilha da Selva e a perseguição dos brancos pelo<br />

Ugambi. Sabia também que o chefe selvagem procurava a esposa e o filho,<br />

que tinham sido roubados pelo homem branco malvado, ao qual tinham<br />

seguido para o interior e agora, de volta, para o mar.<br />

Julgava que o homem malvado tinha matado o grande gigante<br />

branco que ele, Mugambi, tinha aprendido a respeitar e estimar, como nunca<br />

estimara os maiores chefes do seu próprio povo. E <strong>as</strong>sim, no peito selvagem<br />

de Mugambi havia o desejo ardente de alcançar o russo, a fim de vingar-se da<br />

morte do homem-macaco.<br />

Quando viu a canoa descer o rio, apanhar Rokoff, e em seguida<br />

partir na direção do Kincaid, compreendeu que somente com o auxílio de


uma canoa é que poderia transportar os animais do bando, para o lugar onde<br />

seria possível c<strong>as</strong>tigar o seu inimigo.<br />

Assim, mesmo antes de Jane Clayton fazer o primeiro disparo<br />

contra a canoa de Rokoff, os animais de Tarzan desapareceram na selva.<br />

Depois que o russo e os seus homens — isto é, Paulvitch e os<br />

marinheiros do Kincaid, encarregados de proverem de carvão o navio — se<br />

retiraram para fugir à fuzilaria, Jane compreendeu que isso seria apen<strong>as</strong> uma<br />

trégua aos seus cuidados e apreensões.<br />

Determinou, pois fazer uma última tentativa corajosa para<br />

conquistar a liberdade, e ver-se livre d<strong>as</strong> ameaç<strong>as</strong> do malvado Rokoff.<br />

Com esta idéia, entrou em negociações com os dois marinheiros<br />

que tinha aprisionado na escotilha da proa, e tendo conseguido o<br />

reconhecimento deles aos seus planos, sob pena de morte, c<strong>as</strong>o tent<strong>as</strong>sem<br />

alguma traição, soltou-os quando começou a escurecer.<br />

Com o revólver pronto a fazer-se obedecer, deixou-os subir um por<br />

um examinando-os cuidadosamente para ver se traziam arm<strong>as</strong> escondid<strong>as</strong>,<br />

enquanto eles ficavam com <strong>as</strong> mãos para o ar. Verificando que não estavam<br />

armados, mandou-os cortar o cabo que prendia o Kincaid à ancora, pois o seu<br />

plano era nada menos do que deixar o vapor flutuar à mercê d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>, até o<br />

alto-mar, confiando o seu destino à misericórdia d<strong>as</strong> ond<strong>as</strong>, que ela tinha<br />

certeza seriam menos cruéis do que Nikol<strong>as</strong> Rokoff, se este a captur<strong>as</strong>se de<br />

novo.<br />

Havia também a probabilidade de poder o Kincaid ser avistado por<br />

algum vapor, que o socorresse. E como o navio estava bem provido de<br />

mantimentos e água, e o período de tempestades já houvesse terminado, tinha<br />

ela toda a razão de esperar pelo bom êxito do seu plano.<br />

selva e o rio.<br />

A noite estava escura. Nuvens pesad<strong>as</strong> p<strong>as</strong>savam baixo sobre a<br />

Era, pois, uma noite propícia aos fins que Jane tinha em vista.


Os seus inimigos não podiam ver a atividade a bordo do vapor nem<br />

tampouco o rumo que ele tomaria quando a correnteza o lev<strong>as</strong>se para o<br />

oceano. Antes do amanhecer a maré vazante teria levado o Kincaid na direção<br />

da corrente de Benguela que corre para o norte, ao longo da costa da África, e,<br />

como estava soprando o vento do sul, Jane esperava estar longe e fora de vista<br />

da foz do Ugambi, antes que Rokoff soubesse da partida do vapor.<br />

De pé, ao lado dos marinheiros que trabalhavam, a jovem senhora<br />

soltou um suspiro de alívio, vendo partir-se o último fio do cabo a que estava<br />

preso o vapor.<br />

Com os dois prisioneiros ainda sujeitos à influência coerciva da sua<br />

carabina, ela mandou-os para o convés, com a intenção de prendê-los<br />

novamente na proa; atendendo, porém, aos seus rogos e promess<strong>as</strong> de<br />

lealdade, e vendo que eles podiam ser úteis, permitiu que fic<strong>as</strong>sem em cima,<br />

no tombadilho.<br />

Durante alguns minutos o Kincaid andou rapidamente, levado pela<br />

correnteza; m<strong>as</strong>, pouco depois parou no meio do rio: tinha encalhado em um<br />

banco de areia, que cortava o canal cerca de um quinto de milha do mar. Aí<br />

ficou algum tempo, até que, ajudado pela correnteza, se foi safando aos<br />

poucos, virando de bordo; desprendendo-se afinal, completamente, pôs-se de<br />

novo a caminho do mar.<br />

Nesse instante, justamente quando Jane Clayton se congratulava<br />

consigo mesma por ver que o vapor estava livre mais uma vez, ouviu ela,<br />

partindo mais ou menos do ponto onde estava ancorado o Kincaid, o barulho<br />

de tiros e o grito de uma mulher — agudo, penetrante, angustioso.<br />

Os marinheiros julgaram que esses tiros com certeza anunciavam a<br />

chegada do seu chefe, e como não lhes agradava o plano que os consignara ao<br />

convés de um navio abandonado, começaram a conspirar sobre o modo de<br />

vencer a jovem e chamar Rokoff e os seus companheiros para liberta-los.


Parecia que a sorte os ajudava, pois com os estrondos d<strong>as</strong> arm<strong>as</strong>, a<br />

atenção de Jane Clayton distraiu-se dos seus ajudantes, e, em vez de vigiá-los<br />

como pretendia, correu para a proa do Kincaid, para observar melhor o que se<br />

p<strong>as</strong>sava na escuridão.<br />

Vendo-a distraída, os dois marinheiros arr<strong>as</strong>taram-se<br />

sorrateiramente, por trás de Jane.<br />

O arranhar, porém, dos sapatos de um deles no tombadilho<br />

<strong>as</strong>sustou a moça que se voltou imediatamente. M<strong>as</strong>, era tarde. Os dois homens<br />

saltaram sobre ela e atiraram-na ao chão. Jane viu, então, o vulto de um<br />

homem que escalava o costado do Kincaid.<br />

Depois de todo o seu trabalho, a sua luta heróica pela liberdade<br />

tinha falhado. Com um soluço abafado ela rendeu-se.


CAPÍTULO 17: No tombadilho do Kincaid<br />

Quando Mugambi voltara para a selva com o bando de animais<br />

tinha em mente um plano. Era obter uma embarcação na qual pudesse<br />

transportar os animais de Tarzan até o costado do Kincaid. E não levou muito<br />

tempo em achar o que procurava. Ao escurecer deparou-se com uma canoa<br />

amarrada à margem de um pequeno tributário do Ugambi, num ponto onde<br />

ele tinha a certeza que iria achá-la.<br />

Sem perda de tempo, reuniu os seus selvagens companheiros<br />

dentro da embarcação e empurrou-a para a correnteza. M<strong>as</strong> com tanta pressa<br />

ele se tinha apoderado da canoa, que não reparara que ela já estava ocupada.<br />

Um vulto agachado, que dormia no fundo da canoa, tinha escapado<br />

inteiramente à sua vista, na densa escuridão da noite.<br />

Logo que começaram a navegar, o grunhido selvagem de um dos<br />

macacos atraiu a sua atenção para uma figura trêmula, que se agachava e<br />

tremia entre ele e o grande macaco.<br />

Mugambi, admirado, viu que era uma mulher indígena. Com<br />

dificuldade conseguiu que o macaco não se atir<strong>as</strong>se à garganta da mulher, a<br />

acalmou os receios desta.<br />

Disse ela que tinha fugido da aldeia, para não se c<strong>as</strong>ar com um<br />

velho a quem odiava; para não p<strong>as</strong>sar a noite no mato, ela se refugiara na<br />

canoa, que encontrara à beira do rio.<br />

Mugambi não desejava a sua presença, m<strong>as</strong>, para não perder tempo<br />

em voltar com ela à praia, o negro permitiu que ela fic<strong>as</strong>se na canoa.<br />

A embarcação, à força de remos, começou a deslizar pela<br />

correnteza abaixo, na direção do Kincaid. Foi com dificuldade que Mugambi<br />

pôde distinguir a forma escura do vapor.<br />

Ao aproximar-se do navio ficou admirado de ver que este parecia<br />

recuar à medida que a canoa avançava. Afinal verificou que o vapor estava<br />

navegando pela correnteza abaixo. Justamente quando ia incitar o seu bando a


maiores esforços, para alcançar o vapor, surgiu-lhe repentinamente pela proa<br />

outra embarcação.<br />

No mesmo instante os tripulantes da outra canoa descobriram a<br />

proximidade do bando de Mugambi, m<strong>as</strong>, a princípio, não reconheceram a<br />

natureza da horrenda tripulação. Um homem, na proa da canoa que ia<br />

chegando, chamou à fala os tripulantes da embarcação de Mugambi. Como<br />

resposta, chegou-lhe aos ouvidos o rosnar ameaçador da pantera e o homem<br />

descobriu que o estavam fitando os olhos flamejantes de Sheeta, que se tinha<br />

levantado com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> pat<strong>as</strong> dianteir<strong>as</strong> sobre a proa da canoa, pronta a voltar-<br />

se sobre o pessoal da outra embarcação.<br />

Imediatamente Rokoff viu o perigo que o aguardava e mais aos seus<br />

companheiros. Rápido, deu ordem para atirar sobre os tripulantes da outra<br />

canoa. Foi este tiroteio e o grito da indígena amedrontada, na canoa de<br />

Mugambi, que Tarzan e Jane ouviram.<br />

Antes que os remadores, mais vagarosos e menos hábeis, da canoa<br />

de Mugambi pudessem forçar a voga e p<strong>as</strong>sar-se para a outra canoa, os outros<br />

viraram ligeiramente pela correnteza abaixo, remando, para salvar <strong>as</strong> su<strong>as</strong><br />

vid<strong>as</strong>, na direção do Kincaid, que lhes estava agora visível.<br />

O vapor, depois de bater no banco de areia, soltou-se outra vez<br />

para dentro do redemoinho, que se movia vagarosamente, e se estendia pela<br />

correnteza acima, perto da praia ao sul do Ugambi, onde fazia novamente<br />

outro círculo antes de ganhar a correnteza inferior a cem jard<strong>as</strong> ou mais para<br />

baixo. Desta maneira o Kincaid estava devolvendo Jane Clayton diretamente<br />

às mãos dos seus inimigos.<br />

Quando Tarzan se atirou ao rio, o vapor não lhe era visível, nem ele<br />

poderia imaginar que um vapor estivesse tão próximo. Deixou-se, pois, guiar<br />

pelos sons que lhe vinham d<strong>as</strong> du<strong>as</strong> cano<strong>as</strong>.


Enquanto nadava, acudiam-lhe viv<strong>as</strong> <strong>as</strong> recordações d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

traiçoeir<strong>as</strong> do Ugambi, e um estremecimento repentino sacudiu o corpo do<br />

gigante.<br />

M<strong>as</strong> embora sentisse por du<strong>as</strong> vezes alguma coisa roçar-lhe <strong>as</strong><br />

pern<strong>as</strong>, no fundo lamacento do rio, nada o agarrou. De repente esqueceu-se<br />

completamente dos crocodilos, ao ver com grande admiração aparecer-lhe<br />

pela frente a m<strong>as</strong>sa escura de um navio onde esperava achar o rio aberto.<br />

Tão próximo estava que, com mais algum<strong>as</strong> braçad<strong>as</strong>, a sua mão<br />

estendida tocou no costado do vapor.<br />

Quando o ágil homem-macaco saltou por cima da amurada do<br />

vapor, chegou aos seus ouvidos o barulho de uma luta do outro lado do<br />

tombadilho.<br />

Silenciosamente, correu através do espaço intermediário.<br />

A lua estava agora alta, e conquanto o céu estivesse ainda cheio de<br />

nuvens, podiam-se distinguir na sombra os objetos. Os seus olhos penetrantes<br />

viram os vultos de dois homens lutando com uma mulher.<br />

Que esta era a mulher que tinha acompanhado Anderssen para o<br />

interior ele o ignorava embora o suspeit<strong>as</strong>se. De uma coisa tinha agora a<br />

certeza: é que este era o tombadilho do Kincaid, sobre o qual o ac<strong>as</strong>o o tinha<br />

conduzido.<br />

G<strong>as</strong>tou, porém, pouco tempo em especulação inútil, pois havia uma<br />

mulher em perigo, que estava sendo maltratada por dois patifes, e isto era o<br />

b<strong>as</strong>tante para o homem-macaco pôr em ação os seus fortes músculos, sem<br />

mais investigação.<br />

O primeiro aviso que os dois marinheiros tiveram de que havia<br />

outra pessoa pronta para a luta, foi a queda de uma mão poderosa sobre o<br />

ombro de cada um. Como se estivessem n<strong>as</strong> garr<strong>as</strong> de uma grande roda,<br />

viram-se retirados repentinamente de cima da sua presa.


agressores.<br />

— Que quer dizer isto? — perguntou ele, em voz baixa, aos dois<br />

Ao som daquela voz a jovem levantou-se rápida e com um pequeno<br />

grito de alegria saltou na direção do seu salvador.<br />

— Tarzan! — exclamou ela.<br />

O homem-macaco atirou os dois marinheiros ao tombadilho, onde<br />

eles rolaram, atordoados, amedrontados, indo cair dentro dos embornais do<br />

lado oposto, e com uma exclamação de incredulidade tomou a jovem nos<br />

braços.<br />

Foram breves, contudo, os momentos para a sua saudação.<br />

Mal se tinham os dois reconhecido, quando <strong>as</strong> nuvens, abrindo-se<br />

no céu, deixaram ver os vultos de meia dúzia de homens que subiam pelo<br />

costado do Kincaid, para o tombadilho.<br />

À frente do bando estava o russo.<br />

Quando os raios vivos da lua equatorial iluminaram o tombadilho,<br />

viu ele que estava diante de Lorde Greystoke. Gritou então ordens histéric<strong>as</strong><br />

aos seus companheiros para que atir<strong>as</strong>sem sobre os dois.<br />

Tarzan empurrou Jane para dentro do camarote, junto do qual eles<br />

tinham parado, e com um pulo rápido foi sobre Rokoff. Dois dos homens que<br />

estavam atrás do russo levantaram <strong>as</strong> su<strong>as</strong> carabin<strong>as</strong> e atiraram sobre o<br />

homem-macaco; m<strong>as</strong> os outros estavam ocupados de outra maneira — pois<br />

pela escada acima, na sua retaguarda, vinha subindo um bando horrível.<br />

Na frente vinham cinco macacos rosnando, animais enormes,<br />

parecidos com homens, com os dentes à mostra e babando; após eles, um<br />

enorme guerreiro negro, com a comprida lança brilhando ao luar.<br />

Atrás deste vinha uma outra criatura, e de todo o bando era esta<br />

que eles mais receavam. Sheeta, a pantera, com <strong>as</strong> pres<strong>as</strong> a mostra e os olhos<br />

flamejantes, fitando-os com ódio e cobiça de sangue.


Os tiros desfechados contra Tarzan erraram o alvo, e ele teria<br />

saltado sobre Rokoff se o grande covarde não se tivesse escapulido por entre<br />

os seus companheiros, fugindo aterrorizado e aos gritos em direção ao c<strong>as</strong>telo<br />

de proa.<br />

M<strong>as</strong> a atenção de Tarzan fora distraída para os dois homens que<br />

estavam em sua frente, e por isso não pôde perseguir o russo. Ao redor dele<br />

os macacos e Mugambi estavam lutando com os outros marinheiros.<br />

Fugindo à ferocidade terrível dos animais, os homens correram<br />

logo em tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> direções — aqueles que ainda podiam correr, pois os<br />

grandes dentes dos macacos de Akut e <strong>as</strong> garr<strong>as</strong> dilacerantes de Sheeta já<br />

tinham feito mais de uma vítima.<br />

Contudo, quatro deles escaparam e desapareceram no c<strong>as</strong>telo de<br />

proa, onde esperavam entrincheirar-se contra novo ataque. Aí encontraram<br />

Rokoff; e, enraivecidos pela deserção no momento de perigo, e também pelo<br />

tratamento brutal com que era o seu costume tratá-los, aproveitaram-se da<br />

oportunidade que se lhes apresentava para vingar-se em parte do patrão<br />

odiado.<br />

Sem atender-lhe aos rogos de pedidos humildes, eles o atiraram<br />

para fora, sobre o tombadilho, entregando-o à mercê dos ferozes animais dos<br />

quais acabavam de escapar.<br />

Tarzan viu o homem sair do c<strong>as</strong>telo de proa, viu-o e reconheceu<br />

nele o seu inimigo; m<strong>as</strong> alguém o viu também tão depressa quanto ele.<br />

Era Sheeta. Com <strong>as</strong> pres<strong>as</strong> sedent<strong>as</strong> de sangue o poderoso animal<br />

marchou silenciosamente em direção do homem amedrontado.<br />

Quando Rokoff viu quem lhe vinha ao encontro, encheu o espaço<br />

com os seus gritos de socorro, e com os joelhos a lhe vergarem de terror,<br />

ficou como paralisado, prevendo a morte horrível que vinha a seu encontro.


Tarzan caminhou também em direção ao russo, já forjando no<br />

cérebro um plano de vingança. Até que enfim tinha n<strong>as</strong> mãos o <strong>as</strong>s<strong>as</strong>sino de<br />

seu filho.<br />

Era seu o direito de vingar-se.<br />

Da primeira vez, Jane fizera que ele suspendesse o c<strong>as</strong>tigo quando<br />

procurava vingar-se por su<strong>as</strong> própri<strong>as</strong> mãos, dando a Rokoff a morte que este<br />

merecia há tanto tempo; m<strong>as</strong> desta vez ninguém o faria recuar.<br />

Os seus dedos crisparam-lhe esp<strong>as</strong>modicamente quando se<br />

aproximou do russo, que tremia de pavor.<br />

Ao ver que Sheeta ia tomar o seu lugar, roubando-lhe a vítima do<br />

seu grande ódio, Tarzan falou zangado com a pantera. M<strong>as</strong> su<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>,<br />

como se tivessem quebrado o feitiço que paralisava o russo, fizeram que este<br />

fic<strong>as</strong>se ativo de repente; com um grito ele voltou-se e fugiu na direção da<br />

ponte.<br />

Atrás dele, porém, pulou Sheeta, a pantera, sem atender à voz de<br />

advertência de seu mestre.<br />

Tarzan ia correr atrás dos dois, quando sentiu que lhe tocavam<br />

levemente no braço. Voltando-se, viu Jane ao seu lado.<br />

— Não me deixes — murmurou ela. — Eu tenho medo.<br />

Ao redor dela estavam os macacos horríveis de Akut. Alguns já se<br />

aproximavam até da moça, com os dentes à mostra e gritos ameaçadores.<br />

O homem-macaco ordenou que eles recu<strong>as</strong>sem. Tinha-se esquecido<br />

que estes eram animais, e não podiam distinguir entre os amigos e inimigos. A<br />

sua natureza selvagem tinha sido despertada pela recente batalha com os<br />

marinheiros, e agora toda a carne, a não ser a do bando, era carne para eles.<br />

Tarzan voltou-se de novo na direção do russo, resignado por ter de<br />

ceder à fera o prazer de vingança pessoal a não ser que Rokoff pudesse<br />

escapar às garr<strong>as</strong> de Sheeta; m<strong>as</strong> isto lhe pareceu impossível. O russo tinha<br />

corrido até a extremidade da ponte, onde agora estava tremendo e com olhos


arregalados encarando o animal que caminhava vagarosamente em sua<br />

direção.<br />

A pantera arr<strong>as</strong>tava-se com a barriga no chão, rosnando cois<strong>as</strong><br />

estranh<strong>as</strong>. Rokoff estava como petrificado, com os olhos a lhe saltarem d<strong>as</strong><br />

órbit<strong>as</strong>, a boca aberta, e um suor frio de terror a lhe escorrer pela testa.<br />

No tombadilho, estavam os grandes antropóides, que o impediam<br />

de escapar naquela direção. De fato, nesse mesmo instante, um dos brutos<br />

estava escalando a amurada a fim de dirigir-se para o lado do russo.<br />

Diante deste estava a pantera, silenciosa e agachada.<br />

Rokoff não se podia mexer. Os joelhos tremiam-lhe, a voz saía-lhe<br />

em sons inarticulados; soltando um grito agudo, caiu de joelhos — e Sheeta<br />

saltou-lhe em cima, atirando-o de cost<strong>as</strong> no chão.<br />

Quando os dentes da fera começaram a dilacerar a garganta e o<br />

peito da sua vítima, Jane Clayton virou-se com horror; m<strong>as</strong> o mesmo não fez<br />

Tarzan dos Macacos, em cujos lábios aflorou um sorriso frio de satisfação. A<br />

cicatriz da testa, que era escarlate, empalideceu até ficar da cor natural da sua<br />

pele requeimada.<br />

Rokoff lutou furiosa m<strong>as</strong> inutilmente com a fera que o tinha<br />

colhido. Por todos os seus crimes inumeráveis foi afinal c<strong>as</strong>tigado com aquela<br />

morte horrível.<br />

A pedido de Jane, Tarzan aproximou-se de Sheeta, para arrancar<br />

d<strong>as</strong> garr<strong>as</strong> o cadáver do russo e dar ao que dele restava enterro decente e<br />

humano; m<strong>as</strong> o grande gato levantou-se rosnando de modo tão selvagem, que,<br />

para não ter que matar o seu amigo da selva, Tarzan viu-se forçado a<br />

abandonar-lhe o que restava do seu inimigo.<br />

Toda aquela noite, Sheeta, a pantera, rep<strong>as</strong>tou-se sobre os restos<br />

informes daquele que tinha sido Nikol<strong>as</strong> Rokoff. A ponte do Kincaid estava<br />

escorregadia de sangue. Ao luar fulgurante dos trópicos o grande animal


egalou-se até ao romper do sol, no dia seguinte, quando somente restavam do<br />

grande inimigo de Tarzan ossos roídos e quebrados.<br />

Do bando do russo, todos foram contratados, menos Paulvitch.<br />

Quatro estavam prisioneiros no c<strong>as</strong>telo de proa. Os outros tinham sido<br />

mortos.<br />

Com esta tripulação preparou-se Tarzan para partir, e com o<br />

conhecimento do segundo em comando, que por ac<strong>as</strong>o foi um dos<br />

sobreviventes, planejou ir à procura da Ilha da Selva; m<strong>as</strong> com o amanhecer<br />

sobreveio uma ventania do oeste que agitou tanto o mar que o segundo do<br />

Kincaid não se aventurava a partir. Todo aquele dia o vapor ficou abrigado na<br />

foz do rio; e, conquanto à noite a ventania diminuísse, julgaram preferível<br />

esperar a claridade do dia antes de intentar a navegação do canal tortuoso para<br />

o mar.<br />

Sobre o tombadilho do vapor o bando selvagem vagou sem<br />

impedimento ou empecilho durante o dia, pois logo aprenderam por meio de<br />

Tarzan e Mugambi que eles não podiam maltratar ninguém a bordo do<br />

Kincaid; m<strong>as</strong> à noite ficaram presos embaixo, no convés.<br />

A alegria de Tarzan foi sem igual quando Jane lhe comunicou que a<br />

criança que tinha morrido na aldeia de M’gamuazam não era seu filho. Quem<br />

poderia ser aquela pobre criança, ou o que teria acontecido ao filho deles, não<br />

podiam imaginar, e tendo Rokoff e Paulvitch desaparecido, não haveria<br />

maneira alguma de descobrir.<br />

Havia, contudo, uma certa sensação de alívio por verem que ainda<br />

podiam ter esperança. Até que recebessem uma prova concreta da morte do<br />

filho, sempre haveria a animá-los um resquício de esperança. O que lhes<br />

parecia evidente é que o seu pequeno Jack não tinha sido trazido para bordo<br />

do Kincaid. Anderssen teria sabido se <strong>as</strong>sim fosse; ele, porém, <strong>as</strong>segurara a<br />

Jane muit<strong>as</strong> vezes que o pequeno que trouxera ao seu camarote na noite em


que a auxiliara a fugir do navio era a única criança que tinha estado a bordo do<br />

Kincaid desde que este esteve ancorado em Dover.


CAPÍTULO 18: Paulvitch planeja vingança<br />

Enquanto Jane e Tarzan estavam parados no tombadilho do vapor,<br />

contando um ao outro, os detalhes d<strong>as</strong> vári<strong>as</strong> aventur<strong>as</strong> pel<strong>as</strong> quais tinham<br />

p<strong>as</strong>sado desde que saíram de Londres, um observador oculto na margem do<br />

rio, olhava para eles com <strong>as</strong> sobrancelh<strong>as</strong> franzid<strong>as</strong>.<br />

Arquitetava um plano pelo qual pudesse obstar a fuga do inglês e da<br />

sua senhora, pois enquanto funcion<strong>as</strong>se o cérebro vingativo de Alexander<br />

Paulvitch, ninguém que tivesse despertado o ódio do russo poderia julgar-se<br />

inteiramente salvo.<br />

Engendrou plano sobre plano, m<strong>as</strong> a todos desprezou ou por<br />

impraticáveis ou por indignos da vingança que os seus males pediam.<br />

E rejeitando todos os seus planos, Paulvitch chegava sempre à<br />

mesma conclusão: nada poderia fazer enquanto <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do Ugambi o<br />

separ<strong>as</strong>sem do objeto do seu ódio.<br />

Como poderia atravessar o rio cheio de crocodilos? O lugar mais<br />

próximo, onde poderia encontrar uma canoa, era a aldeia mosula, e Paulvitch<br />

não tinha certeza se o Kincaid ainda estaria ancorado no rio quando volt<strong>as</strong>se,<br />

c<strong>as</strong>o pudesse atravessar a selva até a aldeia distante e voltar com uma canoa.<br />

M<strong>as</strong> não havia outro recurso; e <strong>as</strong>sim, convencido que somente desta maneira<br />

podia alcançar a sua presa, Paulvitch, lançando mais um olhar rancoroso aos<br />

dois vultos no tombadilho do Kincaid, af<strong>as</strong>tou-se do rio.<br />

Andando ligeiro pela densa selva, pensando unicamente no seu<br />

ídolo — a vingança — esqueceu até seu terror do mundo selvagem pelo qual<br />

estava p<strong>as</strong>sando.<br />

Frustrado e vencido a cada volta da roda da fortuna, Paulvitch<br />

ainda era tão cego que imaginava que sua maior felicidade consistia na<br />

continuação d<strong>as</strong> conspirações e maldades que tinham causado a desgraça dele<br />

e de Rokoff, e infligido a este último, finalmente, uma morte horrível.


Enquanto caminhava, tropeçando pela selva, em direção à aldeia<br />

mosula, cristalizou-se no seu cérebro um plano que parecia mais praticável do<br />

que qualquer dos outros que já tinha arquitetado.<br />

Iria de noite ao costado do Kincaid, e, uma vez a bordo, procuraria<br />

os membros da tripulação do vapor que tinham sobrevivido aos terrores desta<br />

horrível expedição, e iria alistá-los numa tentativa de arrancar o navio a Tarzan<br />

e às su<strong>as</strong> fer<strong>as</strong>.<br />

No camarote havia arm<strong>as</strong> e munições ocult<strong>as</strong>, num lugar secreto e<br />

na mesa do camarote existia uma daquel<strong>as</strong> máquin<strong>as</strong> infernais, cuja construção<br />

lhe tinha ocupado muito do tempo, quando desempenhava um cargo de<br />

confiança dos niilist<strong>as</strong> em sua terra natal.<br />

Isso fora antes que ele os tivesse vendido à policia de Petrogrado. E<br />

Paulvitch alegrou-se ao recordar a denúncia que tinha saído dos lábios de um<br />

dos seus antigos companheiros, antes que o pobre diabo expi<strong>as</strong>se os seus<br />

pecados políticos na ponta de uma corda de linho.<br />

M<strong>as</strong> era na máquina infernal em que ele agora pensava. Esta podia<br />

ser-lhe então muito útil se lhe pudesse pôr <strong>as</strong> mãos em cima. Dentro da caixa<br />

de madeira de lei, oculta na mesa do camarote, estava o material destrutivo<br />

suficiente para acabar, em um segundo, com todos os seus inimigos a bordo<br />

do Kincaid.<br />

Paulvitch lambeu os lábios de alegria, e deu às su<strong>as</strong> pern<strong>as</strong> cansad<strong>as</strong><br />

maior velocidade, a fim de não chegar tarde demais ao vapor, para conseguir<br />

os seus desígnios.<br />

Isso dependia, naturalmente, de surpreender o Kincaid antes da<br />

partida. O russo compreendeu que nada poderia ser feito à luz do dia.<br />

Somente na escuridão da noite poderia aproximar-se do costado do vapor,<br />

pois se fosse pressentido por Tarzan ou Lady Greystoke tudo estaria perdido.<br />

A ventania que soprava era, pensava ele, a causa da demora da<br />

partida do Kincaid; se continu<strong>as</strong>se a ventar até o anoitecer, então tod<strong>as</strong> <strong>as</strong>


esperanç<strong>as</strong> estavam a seu favor, pois bem sabia que havia pouca probabilidade<br />

do homem-macaco tentar navegar pelo tortuoso canal do Ugambi enquanto a<br />

escuridão pousava sobre a superfície da água, ocultando os muitos bancos de<br />

areia e <strong>as</strong> numeros<strong>as</strong> ilh<strong>as</strong> pequen<strong>as</strong> que estão espalhad<strong>as</strong> em toda a extensão<br />

da foz do rio.<br />

Já tinha p<strong>as</strong>sado do meio-dia quando Paulvitch chegou à aldeia<br />

mosula, à margem do tributário do Ugambi. Aí foi recebido com suspeita e<br />

inimizade pelo chefe indígena, pois todos que se punham em contato com<br />

Rokoff ou Paulvitch tinham sido vítim<strong>as</strong>, de algum modo, da avidez,<br />

crueldade, ou cobiça dos dois russos.<br />

Quando Paulvitch pediu emprestado uma canoa, o chefe<br />

murmurou uma resposta rabugenta e mandou o homem branco retirar-se da<br />

aldeia. Cercado por guerreiros mal-encarados, que resmungavam e pareciam<br />

estar à espera de algum pretexto para atravessá-lo com su<strong>as</strong> lanç<strong>as</strong><br />

ameaçador<strong>as</strong>, só restava ao russo retirar-se.<br />

Uma dúzia de homens guerreiros o conduziram à entrada da<br />

clareira, prevenindo-o que nunca mais aparecesse n<strong>as</strong> vizinhanç<strong>as</strong> da aldeia.<br />

Sopitando a cólera, Paulvitch dirigiu-se para a selva: m<strong>as</strong>, uma vez<br />

fora de vista dos guerreiros, estacou o p<strong>as</strong>so e pôs-se a escutar atentamente.<br />

Pôde ainda ouvir <strong>as</strong> vozes da escolta, que regressava à aldeia. Quando se<br />

certificou de que eles já estavam longe, arr<strong>as</strong>tou-se pelo mato até a margem do<br />

rio, resolvido a arranjar uma canoa de qualquer maneira.<br />

A sua própria vida dependia de chegar ao Kincaid e aliciar os<br />

sobreviventes da tripulação, para que o ajud<strong>as</strong>sem no seu plano, pois ficar<br />

abandonado ali no meio dos perigos da selva africana, onde ele tinha<br />

granjeado a inimizade dos indígen<strong>as</strong>, equivalia, bem o sabia, a uma sentença de<br />

morte.<br />

O desejo de vingança servia-lhe de poderoso incentivo para incitá-<br />

lo a entrar na zona do perigo, a fim de pôr em execução o seu plano.


Escondeu-se, pois, entre o mato, à beira do pequeno rio,<br />

procurando com olhos ávidos algum sinal de uma pequena canoa, que<br />

pudesse ser manejada por um único remador.<br />

Não teve de esperar muito tempo: uma d<strong>as</strong> pequen<strong>as</strong> embarcações,<br />

que os Mosul<strong>as</strong> constroem para seu uso, apareceu dentro em pouco, no meio<br />

do rio. Dirigia-a um rapaz remando vagarosamente, auxiliado pela correnteza.<br />

Quando chegou ao canal, o rapaz deixou que a correnteza indolente lev<strong>as</strong>se<br />

por si só a embarcação enquanto permanecia inerte no fundo da canoa.<br />

Completamente ignorante da presença do inimigo invisível à beira<br />

do rio, a piroga deslizava vagarosamente pela correnteza abaixo, enquanto<br />

Paulvitch a seguia ao longo do caminho da selva pouc<strong>as</strong> jard<strong>as</strong> atrás.<br />

Uma milha abaixo da aldeia, o negro mergulhou o remo na água e<br />

dirigiu a embarcação para a margem.<br />

Paulvitch exultou de alegria com o ac<strong>as</strong>o que levara o rapaz para o<br />

mesmo lado do rio em que se achava, e não para o lado oposto, onde teria<br />

ficado fora do seu alcance.<br />

Igualmente indolentes eram os movimentos do rapaz ao puxar a<br />

embarcação para baixo de uma grande árvore, que se abaixava para dar um<br />

beijo de despedida na água que se retirava, acariciando-a com su<strong>as</strong> folh<strong>as</strong><br />

verdes.<br />

Como uma cobra, no meio da folhagem traiçoeira, estava o russo<br />

malévolo. Seus olhos cruéis e <strong>as</strong>tutos seguiam com alegria a canoa cobiçada,<br />

medindo ao mesmo tempo a estatura do rapaz, para o c<strong>as</strong>o de tornar-se<br />

necessário um encontro físico com o negro.<br />

Somente a extrema necessidade levaria Alexander Paulvitch a um<br />

conflito pessoal; m<strong>as</strong> era a extrema necessidade que o incitava agora a agir.<br />

Havia tempo b<strong>as</strong>tante tempo para chegar ao Kincaid ao anoitecer.<br />

Seria que o negro não queria sair da embarcação? Paulvitch remexia-se e<br />

impacientava-se. O rapaz bocejava e continuava dentro da canoa, examinando


com irritante gravidade <strong>as</strong> flech<strong>as</strong> de sua aljava, experimentando o arco e a<br />

lâmina da faca de caça, enfiada na sua tanga.<br />

Mais uma vez ele se estendeu, bocejando, olhou para a margem do<br />

rio, sacudindo os ombros, e deitou-se no fundo da canoa para um sono breve,<br />

antes de entrar na selva atrás da presa que tinha vindo caçar.<br />

Paulvitch soergueu-se um pouco, e com os músculos tesos ficou<br />

olhando para a sua descuidada vítima. As pálpebr<strong>as</strong> do rapaz decaíram e<br />

fecharam-se. Pouco depois, o peito arfava-lhe suavemente, com <strong>as</strong> respirações<br />

profund<strong>as</strong> do sono. Tinha chegado a hora!<br />

O russo arr<strong>as</strong>tou-se mais perto. Um galho estalou com o seu peso e<br />

o rapaz remexeu-se no seu sono. Paulvitch sacou do revólver e apontou-o<br />

para o negro. Este continuava imóvel, imerso em profundo sono.<br />

O homem branco chegou-se ainda para mais perto: precisava ter<br />

certeza de que não erraria o tiro. Inclinou-se sobre o Mosula, aproximando<br />

cada vez mais do peito incauto da vítima o aço frio do revólver, detendo-se<br />

afinal à distância de algum<strong>as</strong> polegad<strong>as</strong> por cima do coração que batia com<br />

força. No rosto do rapaz estampava-se a juventude, e um sorriso entreabria-<br />

lhe os lábios imberbes. Paulvitch fez um gesto de desprezo e pressionou o<br />

dedo sobre o gatilho do revólver. Houve uma grande detonação. Um pequeno<br />

furo apareceu por cima do coração do rapaz adormecido — um pequeno furo<br />

de bord<strong>as</strong> negr<strong>as</strong> de carne queimada com pólvora.<br />

O pobre Mosula soergueu-se, na posição de quem se senta. Os<br />

lábios risonhos distenderam-se ao choque nervoso de uma rápida agonia, e o<br />

corpo recaiu, sem força, para trás, no mais profundo dos sonos, do qual nunca<br />

mais se acorda.<br />

O <strong>as</strong>s<strong>as</strong>sino pulou rapidamente para dentro da embarcação,<br />

arr<strong>as</strong>tou para uma d<strong>as</strong> bord<strong>as</strong> o cadáver e, com um empurrão, atirou-o ao rio.<br />

A água borbulhou em redor, e, imediatamente, do fundo lamacento, emergiu<br />

um corpo escuro e escamoso.


A canoa cobiçada estava agora em poder do homem branco —<br />

mais selvagem do que o pobre habitante da selva cuja vida acabava de tirar.<br />

Desatando a corda que prendia a canoa à árvore e apanhando o<br />

remo, Paulvitch entregou-se ao trabalho de conduzir a embarcação, a toda<br />

velocidade, na direção do Ugambi.<br />

Tinha anoitecido quando a proa da embarcação ensanguentada<br />

entrou na correnteza do rio maior. O russo se esforçava para ver através da<br />

escuridão, buscando dev<strong>as</strong>sar <strong>as</strong> espess<strong>as</strong> sombr<strong>as</strong> que se estendiam entre ele<br />

e o ancoradouro do Kincaid.<br />

O vapor ainda estaria ancorado n<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> do Ugambi? Ou o<br />

homem-macaco teria prosseguido viagem, aventurando-se com a tempestade?<br />

Enquanto a canoa deslizava veloz pela correnteza, dirigia o russo est<strong>as</strong><br />

pergunt<strong>as</strong> a si mesmo, e outr<strong>as</strong> mais, relativ<strong>as</strong> à vida que o aguardaria se por<br />

ac<strong>as</strong>o o Kincaid já tivesse partido, deixando-o entregue aos horrores bárbaros<br />

da selva selvagem.<br />

Na escuridão parecia ao remador que ele estava voando sobre a<br />

água, parecendo-lhe que o vapor já tinha deixado o ancoradouro e que já tinha<br />

p<strong>as</strong>sado do lugar onde hor<strong>as</strong> antes estivera o Kincaid. Súbito, numa volta do<br />

rio, avistou, longe, a luz trêmula de uma lanterna do vapor.<br />

Alexander Paulvitch mal pôde conter uma exclamação de triunfo.<br />

O Kincaid ainda não tinha partido!<br />

Cessou de remar no momento em que viu o lume brilhante de<br />

esperança adiante dele. Silenciosamente, flutuou pel<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> lamacent<strong>as</strong> do<br />

Ugambi abaixo, mergulhando de vez em quando o remo brandamente na<br />

correnteza, a fim de guiar a rude embarcação para o costado do vapor.<br />

Enquanto se aproximava, foi-se aos poucos acentuando diante dele,<br />

na escuridão da noite, o vulto do vapor. Não havia movimento nenhum a<br />

bordo. Paulvitch chegou, sem ser visto, próximo ao costado do Kincaid.


Somente o arranhar momentâneo da proa da canoa contra <strong>as</strong> tábu<strong>as</strong> do vapor<br />

quebrou o silêncio da noite.<br />

Trêmulo e nervoso, o russo ficou sem se mexer durante alguns<br />

minutos, m<strong>as</strong> não lhe veio de cima nenhum rumor indicativo de que lhe<br />

tinham notado a chegada.<br />

Furtivamente, impulsionou a embarcação para a frente, até que <strong>as</strong><br />

escor<strong>as</strong> do gurupés lhe ficaram diretamente por cima da cabeça. E ele mal<br />

podia alcançá-l<strong>as</strong>. Amarrou a canoa, e começou a guindar-se cautelosamente<br />

pelo costado acima.<br />

Um momento depois, punha ele, cuidadosamente, os pés no<br />

tombadilho. Lembranç<strong>as</strong> do bando horrendo que estava no vapor causavam-<br />

lhe tremores frios ao longo da espinha; m<strong>as</strong> a sua própria vida dependia do<br />

sucesso desta aventura, e <strong>as</strong>sim procurou fortalecer-se para enfrentar <strong>as</strong><br />

dificuldades que lhe deparavam.<br />

Nenhum som ou sinal de vigia no tombadilho do vapor. Paulvitch<br />

arr<strong>as</strong>tou-se silenciosamente na direção do c<strong>as</strong>telo da proa. Tudo em silêncio.<br />

A escotilha estava levantada. Paulvitch olhou para baixo, e viu um dos<br />

membros da tripulação do Kincaid lendo à luz de uma lanterna enfumaçada,<br />

pendente do teto, na sala de descanso da tripulação.<br />

Conhecia bem esse homem — um <strong>as</strong>s<strong>as</strong>sino carrancudo, com quem<br />

ele contava para a execução do plano que tinha concebido. Vagarosamente o<br />

russo abaixou-se, ganhando pela abertura os degraus da escada que conduzia<br />

ao c<strong>as</strong>telo da proa.<br />

Conservou por instantes os olhos sobre o homem que estava lendo,<br />

a fim de avisá-lo que se cal<strong>as</strong>se, logo que o homem levant<strong>as</strong>se os olhos que se<br />

arregalaram um momento ao reconhecerem o antigo aliado de Rokoff.<br />

— Oh! diabos! — exclamou ele. — De onde vieste? Nós todos<br />

pensávamos que estav<strong>as</strong> liquidado e que já tinh<strong>as</strong> ido para onde devi<strong>as</strong> ir há<br />

muito tempo. Sua Alteza ficará muito satisfeito se te vir.


Paulvitch aproximou-se do marinheiro com um sorriso benigno nos<br />

lábios, e a mão direita estendida num cumprimento, como se fossem amigos<br />

velhos que não se viam há muito tempo. O marinheiro recusou a mão<br />

estendida, e não retribuiu ao sorriso do outro.<br />

— Eu venho auxiliar-vos — explicou Paulvitch. — Venho auxiliar-<br />

vos a vos livrardes do inglês e d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> fer<strong>as</strong>. Podemos entrar furtivamente<br />

enquanto dormem, isto é, Greystoke, sua mulher, e aquele patife do negro<br />

Mugambi. Depois será fácil acabar com <strong>as</strong> fer<strong>as</strong>. Onde estão?<br />

— Estão embaixo — respondeu o marinheiro; m<strong>as</strong> deixa-me dizer-<br />

te, Paulvitch, que não tem direito de fazer com que nos revoltemos contra o<br />

inglês. Já estávamos fartos de ti e daquele outro bandido, que já está morto; e<br />

se não me engano, também não demorará muito a encontrar com ele no<br />

inferno; ambos sempre nos trataram como se fôssemos cachorros.<br />

Paulvitch.<br />

— Quer dizer que vai se voltar contra mim? — perguntou<br />

O outro confirmou; e depois de uma pequena pausa, durante a qual<br />

uma idéia pareceu ter-lhe ocorrido, prosseguiu:<br />

— A não ser que — disse ele — me recompenses bem para deixar-<br />

te sair antes que o inglês te encontre aqui.<br />

— Não tenciona fazer que eu volte para a selva, não é? —<br />

perguntou Paulvitch. — Eu morreria lá numa semana.<br />

— M<strong>as</strong> ainda <strong>as</strong>sim teria alguma probabilidade de viver —<br />

respondeu o marinheiro. — Aqui, não terá nenhuma. Se eu acord<strong>as</strong>se os meus<br />

companheiros eles provavelmente arrancariam o seu coração antes que o<br />

inglês pudesse acudir-te. Tem muita sorte por ser eu e não algum outro, o<br />

único homem acordado neste momento.<br />

— Está louco? — disse Paulvitch. — Não sabe que o inglês<br />

mandará enforcar todos vocês tão logo esteja em um lugar onde tenha a lei à<br />

seu lado, acha que ele não mandará prende-los?


— Não, ele não fará uma dest<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> — respondeu o marinheiro.<br />

— Ele já disse que nenhum de nós é culpado, senão você e Rokoff — eu e os<br />

outros fomos apen<strong>as</strong> instrumentos dos dois.<br />

Durante meia hora o russo suplicou ou ameaçou. Às vezes, estava a<br />

ponto de chorar, outr<strong>as</strong> vezes prometia ao rapaz recompens<strong>as</strong> fabulos<strong>as</strong> ou o<br />

devido c<strong>as</strong>tigo. M<strong>as</strong> o outro que era teimoso, fez-lhe ver que só havia du<strong>as</strong><br />

alternativ<strong>as</strong>: ou consentir em ser entregue imediatamente a Lorde Greystoke<br />

ou entregar-lhe, para poder sair do Kincaid sem ser molestado, todo o<br />

dinheiro e objetos de valor existentes em seu poder e no seu camarote.<br />

— É preciso que decida agora — rosnou o homem — pois desejo<br />

deitar-me. Escolhe logo: ou sua Alteza ou a selva.<br />

— Irá se arrepender disto — disse o russo.<br />

— Cala a boca — admoestou-o o marinheiro. — Se você se acha<br />

muito esperto, talvez eu possa mudar de idéia, e prender-te aqui.<br />

Paulvitch não tinha desejo algum de cair n<strong>as</strong> mãos de Tarzan dos<br />

Macacos; e conquanto os terrores da selva o apavor<strong>as</strong>sem, eram, em sua<br />

opinião, infinitamente preferíveis à morte certa, que, bem sabia, o aguardaria<br />

n<strong>as</strong> mãos do homem-macaco.<br />

— Há alguém dormindo no meu camarote? perguntou ele.<br />

— Não — informou o marinheiro, sacudindo a cabeça. — Lorde e<br />

Lady Greystoke estão no camarote do comandante. O primeiro oficial está no<br />

camarote dele, e não há ninguém no seu.<br />

Paulvitch.<br />

— Então vou lá buscar tudo o que tenho de valor — disse<br />

— Eu te acompanharei para que não faça qualquer coisa de esperto<br />

— disse o marinheiro. E seguiu o russo pela escada até o tombadilho.<br />

À entrada do camarote o marinheiro parou para vigiar, permitindo<br />

que Paulvitch penetr<strong>as</strong>se sozinho. Aí, reuniu o russo os poucos objetos que<br />

lhe pertenciam e que iriam <strong>as</strong>segurar-lhe a retirada de bordo. Enquanto estava


parado ao lado da pequena mesa sobre a qual ele os tinha empilhado,<br />

procurou atinar com algum plano que lhe <strong>as</strong>segur<strong>as</strong>se a vitória, ou, pelo<br />

menos, extermin<strong>as</strong>se os seus inimigos. Lembrou-se então da pequena caixa<br />

negra que estava oculta em um lugar secreto por baixo do fundo falso da mesa<br />

onde a sua mão descansava.<br />

O rosto do russo iluminou-se com um ar sinistro de satisfação<br />

malévola quando, abaixando-se, p<strong>as</strong>sou a mão por baixo do fundo da mesa e<br />

retirou do seu esconderijo o que procurava.<br />

Tinha acendido a lanterna que pendia do teto a fim de que pudesse<br />

ver os objetos que lhe pertenciam. Aos raios da lanterna, examinou a caixa<br />

negra, procurando nervoso o fecho que abria a tampa. Esta, uma vez<br />

levantada, revelou dois compartimentos: num deles havia um mecanismo<br />

semelhante ao de um relógio pequeno e uma pequena bateria de du<strong>as</strong> pilh<strong>as</strong>.<br />

Um fio ligava o mecanismo a um dos pólos da bateria, e do outro pólo,<br />

p<strong>as</strong>sando para o outro compartimento, um segundo fio voltava diretamente<br />

para o mecanismo.<br />

O que havia dentro do segundo compartimento não era visível, pois<br />

estava tampado e parecia betumado com <strong>as</strong>falto. No fundo da caixa, ao lado<br />

do mecanismo, havia uma chave, que Paulvitch retirou e ajustou ao<br />

mecanismo, para dar-lhe corda. Foi girando vagarosamente a chave, abafando<br />

o rumor da operação com algum<strong>as</strong> peç<strong>as</strong> de roupa post<strong>as</strong> por cima da caixa.<br />

Todo este trabalho, fizera-o sempre de ouvido atento a qualquer barulho que<br />

pudesse indicar que o marinheiro ou outra qualquer pessoa se estivesse<br />

aproximando do camarote; m<strong>as</strong> ninguém veio interromper o seu trabalho.<br />

Quando acabou de dar corda ao maquinismo, o russo acertou o<br />

ponteiro de um pequeno relógio ao lado do dispositivo, tornou a fechar<br />

cuidadosamente a tampa da caixa negra, e repôs a máquina no seu<br />

esconderijo, por baixo da mesa.


Um sorriso sinistro aflorou aos lábios barbados do homem quando,<br />

reunindo o que era de valor, apagou a lâmpada, e saiu do camarote para junto<br />

do marinheiro que o esperava.<br />

embora.<br />

— Aqui estão <strong>as</strong> minh<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> — disse o russo; agora deixa-me ir<br />

— Primeiramente vou p<strong>as</strong>sar-te uma revista nos bolsos — replicou<br />

o marinheiro. Pode ter esquecido neles alguma coisa, que não te seja de<br />

utilidade na selva, m<strong>as</strong> que servirá a um pobre marinheiro em Londres. Ah! eu<br />

não dizia? — exclamou, retirando um pacote de not<strong>as</strong> de banco do bolso<br />

interno do c<strong>as</strong>aco de Paulvitch.<br />

O russo fez uma carranca, praguejando; m<strong>as</strong> como não ganharia<br />

nada em resistir, resignou-se ao confisco, sabendo que o marinheiro nunca<br />

chegaria a Londres para gozar o resultado do seu roubo.<br />

Foi com dificuldade que Paulvitch conteve um grande desejo de<br />

comunicar-lhe o c<strong>as</strong>tigo que a sorte lhe reservava, bem como aos outros<br />

membros do Kincaid; m<strong>as</strong> receando despertar suspeit<strong>as</strong> no rapaz, atravessou<br />

o tombadilho e desceu em silêncio para dentro da canoa.<br />

Minutos depois, estava ele remando em direção da praia, engolido<br />

pela escuridão da noite, e antevendo os terrores da existência horrível que o<br />

aguardava, — tão horrível que fora preferível não ter fugido à morte certa no<br />

alto-mar, a suportar tudo o que lhe estava reservado.<br />

O marinheiro, depois de certificar-se que Paulvitch tinha realmente<br />

partido, voltou ao c<strong>as</strong>telo da proa, onde escondeu os objetos roubados e foi<br />

deitar-se na cama, enquanto no camarote, que pertencera ao russo, girava<br />

continuamente, no silêncio da noite, o pequeno mecanismo dentro da caixa<br />

negra, que encerrava, para <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> que dormiam a bordo do mal-<br />

afortunado Kincaid, a vingança do russo vencido.


CAPÍTULO 19: Os destroços do Kincaid<br />

Logo depois do amanhecer, Tarzan estava no tombadilho<br />

observando <strong>as</strong> condições do tempo. O vento acalmava. O céu estava sem<br />

nuvens. Tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> condições pareciam favoráveis para iniciar a viagem de volta<br />

à Ilha da Selva, onde iam deixar <strong>as</strong> fer<strong>as</strong>. E depois, para c<strong>as</strong>a.<br />

O homem-macaco despertou o oficial e deu instruções para o<br />

Kincaid partir o mais cedo possível. Os outros membros da tripulação,<br />

confiantes na palavra de Lorde Greystoke de que não seriam processados pela<br />

parte que haviam tomado n<strong>as</strong> infâmi<strong>as</strong> dos dois russos, apressaram-se<br />

contentes para tratar d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> vári<strong>as</strong> obrigações.<br />

As fer<strong>as</strong>, livres da prisão do porão, vagavam pelo tombadilho, não<br />

sem um certo mal-estar da tripulação que tinha ainda bem presente à memória<br />

o quadro vivo da ferocidade desses animais, no conflito com aqueles que<br />

tinham morrido debaixo dos seus grandes dentes e de su<strong>as</strong> garr<strong>as</strong>. Mesmo<br />

agora, pareciam desejar ainda a carne macia de outr<strong>as</strong> pres<strong>as</strong>.<br />

Sob os olhos vigilantes de Tarzan e Mugambi, entretanto, Sheeta e<br />

os macacos de Akut refrearam os seus desejos, tanto que os homens<br />

trabalhavam no tombadilho entre eles, com muito mais segurança do que<br />

imaginavam.<br />

Finalmente o Kincaid desceu o Ugambi e ganhou <strong>as</strong> águ<strong>as</strong><br />

cintilantes do Atlântico. Tarzan e Jane Clayton olharam para a praia coberta<br />

de relva, que desaparecera na esteira do vapor. Desta vez, o homem-macaco<br />

deixava a sua terra natal sem um único pensamento de tristeza.<br />

Nenhum vapor que naveg<strong>as</strong>se os sete mares poderia tê-lo levado da<br />

África, para continuar a busca pelo filho, com menos pressa, pois o Kincaid se<br />

movia vagarosamente, mal podendo mexer-se aos olhos impacientes do pai<br />

despojado.<br />

M<strong>as</strong> o vapor avançava, mesmo quando parecia estar parado, e logo<br />

os morros baixos da Ilha da Selva surgiram bem visíveis no horizonte.


No camarote de Alexander Paulvitch, o relógio dentro da caixa<br />

negra batia sem parar; de segundo a segundo, um pequeno braço que saía da<br />

periferia de uma d<strong>as</strong> rod<strong>as</strong> se aproximava cada vez mais de outro pequeno<br />

braço que saía do ponteiro que Paulvitch tinha acertado Quando estes dois<br />

braços toc<strong>as</strong>sem um no outro, o bater do mecanismo acabaria para sempre.<br />

Jane e Tarzan estavam na ponte, olhando para a ilha. Os homens<br />

contemplavam-na também, vendo-a surgir aos poucos no horizonte. As fer<strong>as</strong><br />

tinham procurado a sombra da cozinha, onde estavam deitad<strong>as</strong>, dormindo.<br />

Tudo estava calmo, e reinava paz no vapor e sobre <strong>as</strong> águ<strong>as</strong>.<br />

De repente, o teto do camarote voou pelos ares. Uma nuvem de<br />

fumaça apareceu sobre o Kincaid, ao mesmo tempo em que uma explosão<br />

violenta sacudiu o vapor de popa à proa.<br />

Instantaneamente houve um pandemônio a bordo. Os macacos de<br />

Akut, <strong>as</strong>sustados pelo barulho, corriam para todos os lados, rosnando e<br />

grunhindo. Sheeta pulava freneticamente, dando vazão ao seu terror em gritos<br />

horríveis que amedrontavam a tripulação do Kincaid.<br />

Mugambi, também, estava tremendo. Somente Tarzan dos Macacos<br />

e sua mulher conservavam-se calmos.<br />

P<strong>as</strong>sado o primeiro instante de terror, o homem-macaco dirigiu-se<br />

para o meio d<strong>as</strong> fer<strong>as</strong>, tranqüilizando-<strong>as</strong>, falando com el<strong>as</strong> em tom baixo e<br />

amável, alisando-lhes os corpos felpudos, tranquilizando-<strong>as</strong> como só ele podia<br />

fazer, dando-lhes a compreender que o perigo imediato já tinha p<strong>as</strong>sado.<br />

Um rápido exame demonstrou que o maior perigo, agora, era o<br />

incêndio, pois <strong>as</strong> cham<strong>as</strong> começavam a devorar avidamente a madeira l<strong>as</strong>cada<br />

do camarote despedaçado, e já tinham achado uma entrada no tombadilho de<br />

baixo por um grande rombo que ali se abrira com a explosão.<br />

Por um milagre, nenhum dos membros do pessoal de bordo tinha<br />

sido alcançado pela explosão, cuja origem parecia a todos um mistério —<br />

todos, menos um — o marinheiro que sabia que Paulvitch tinha estado a


ordo do Kincaid e penetrara no seu camarote, na véspera. Esse adivinhou<br />

logo a verdade; m<strong>as</strong> a prudência selou-lhe os lábios. Sem dúvida, <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> não<br />

correriam muito bem para o homem que permitira ao inimigo de todos eles<br />

subir a bordo do vapor, n<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> de vigilância da noite, dando-lhe tempo<br />

para que pudesse armar uma máquina infernal, a fim de levá-los todos para o<br />

outro mundo. Por isso, o homem decidiu guardar consigo este segredo.<br />

Enquanto <strong>as</strong> cham<strong>as</strong> avançavam, tornou-se claro a Tarzan que a<br />

explosão tinha espalhado alguma substância altamente inflamável sobre o<br />

madeiramento, pois a água que saía da bomba parecia espalhar <strong>as</strong> cham<strong>as</strong> em<br />

vez de apagá-l<strong>as</strong>.<br />

Quinze minutos depois da explosão grandes nuvens negr<strong>as</strong> de<br />

fumaça estavam saindo do porão do vapor condenado. As cham<strong>as</strong> tinham<br />

alcançado a c<strong>as</strong>a d<strong>as</strong> máquin<strong>as</strong>, e o vapor não andava mais em direção da<br />

praia. A sua sorte era tão certa como se <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> já se tivessem aberto para lhe<br />

tragar os restos queimados e negros de fumaça.<br />

— É inútil ficar a bordo mais tempo — observou o homem-<br />

macaco à sua companheira. — Não temos certeza de que não haverá outr<strong>as</strong><br />

explosões, e como não podemos esperar salvar o navio, o que nos resta a<br />

fazer é descermos para os botes sem mais perda de tempo, e desembarcar.<br />

Não havia, de fato, outra alternativa. Somente os marinheiros<br />

podiam levar bagagem, pois o incêndio, que ainda não chegara ao c<strong>as</strong>telo da<br />

proa, tinha consumido tudo na vizinhança do camarote que a explosão não<br />

tinha destruído.<br />

Dois botes foram abaixados, e como o mar estava calmo o<br />

desembarque foi feito com relativa facilidade. Ávid<strong>as</strong> e ansios<strong>as</strong>, <strong>as</strong> fer<strong>as</strong> de<br />

Tarzan <strong>as</strong>piraram o ar familiar da sua ilha natal quando os pequenos botes<br />

chegaram à praia, e mal <strong>as</strong> quilh<strong>as</strong> tocaram na areia, Sheeta e os macacos de<br />

Akut saltaram pela proa, correndo imediatamente na direção da selva.


os viu partir.<br />

Um sorriso de tristeza curvou os lábios do homem-macaco quando<br />

— Adeus, meus amigos — murmurou ele. — Vocês foram meus<br />

bons e fiéis aliados, e sentirei muita falta de vocês.<br />

estava ao seu lado.<br />

— Eles voltarão, não é, querido? — perguntou Jane Clayton, que<br />

— Talvez sim e talvez não — replicou o homem-macaco. — Eles<br />

não têm estado à vontade, desde que foram forçados a aceitar tantos seres<br />

humanos em sua companhia. Apen<strong>as</strong> Mugambi e eu os aceitamos da forma<br />

como são, porque ambos somos apen<strong>as</strong> meio homens. M<strong>as</strong> você e os<br />

membros da tripulação são civilizados demais para <strong>as</strong> minh<strong>as</strong> fer<strong>as</strong>. É de<br />

vocês que el<strong>as</strong> estão fugindo. Sem dúvida sentem que não podem confiar em<br />

si próprios, à vista de alimento tão bom, sem ceder à tentação de provarem<br />

um bocado por engano.<br />

Jane riu-se.<br />

— Acho que el<strong>as</strong> estão fugindo de você — disse ela. — Está<br />

sempre ralhando com el<strong>as</strong>, para que não façam alguma coisa, e acho que não<br />

compreendem por que motivo não devem fazer. São como crianç<strong>as</strong>, sem<br />

dúvida, encantad<strong>as</strong> com esta oportunidade de fugir à disciplina paterna. Se<br />

voltarem, espero, porém, que não venham de noite.<br />

— Ou com fome? — disse, sorrindo, Tarzan.<br />

Durante du<strong>as</strong> hor<strong>as</strong>, depois de desembarcar, os náufragos ficaram<br />

contemplando o vapor que tinham abandonado. Súbito ouviram fracamente o<br />

som de uma segunda explosão: o Kincaid inclinou-se rapidamente, afundando<br />

dentro de poucos minutos.<br />

A causa da segunda explosão era mais explicável do que a primeira;<br />

o oficial atribuiu-a à explosão d<strong>as</strong> caldeir<strong>as</strong>, alcançad<strong>as</strong> finalmente pel<strong>as</strong><br />

cham<strong>as</strong>; m<strong>as</strong> o que tinha causado a primeira explosão continuava um mistério<br />

para os náufragos.


CAPÍTULO 20: A Ilha da Selva<br />

O primeiro cuidado de Tarzan e seus companheiros foi procurar<br />

água fresca e construir o acampamento, pois todos imaginaram que o período<br />

de existência na ilha poderia estender-se por meses, ou até anos.<br />

Tarzan sabia onde havia água, e imediatamente conduziu o bando<br />

para lá. Aí, os homens começaram a construir abrigos e móveis toscos,<br />

enquanto Tarzan foi para a selva à procura de alimento, deixando o fiel<br />

Mugambi e a mulher Mosula para cuidarem de Jane, cuja guarda nunca<br />

confiaria a qualquer membro da tripulação.<br />

Lady Greystoke sofreu muito mais do que qualquer dos náufragos.<br />

O golpe n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> esperanç<strong>as</strong> e ao seu coração de mãe, já cruelmente lacerado,<br />

foi para ela mais cruel que <strong>as</strong> privações anteriores. Parecia-lhe que agora,<br />

talvez nunca mais viesse a saber o que tinha acontecido ao seu primogênito.<br />

Que poderia fazer para descobrir onde ele estava, ou melhorar-lhe a<br />

existência — existência que à sua imaginação naturalmente se apresentava sob<br />

<strong>as</strong> form<strong>as</strong> mais horríveis?<br />

Durante algum<strong>as</strong> seman<strong>as</strong> o bando dividiu o tempo entre <strong>as</strong> vári<strong>as</strong><br />

obrigações que tinham sido distribuíd<strong>as</strong> a cada um. Uma sentinela diurna foi<br />

mantida desde madrugada até o pôr do sol sobre uma colina perto do<br />

acampamento, num promontório de roch<strong>as</strong> que ficava defronte o mar.<br />

Aí, pronta para ser acesa, foi acumulada uma grande pilha de galhos<br />

secos, enquanto de um poste alto, fincado no chão, flutuava um sinal de<br />

socorro, improvisado de uma camisa vermelha que pertencia ao oficial do<br />

Kincaid.<br />

M<strong>as</strong> nenhum ponto no horizonte, de vela ou fumaça, recompensou<br />

os olhos cansados que, nessa vigília interminável, sem esperança, investigavam<br />

diariamente a v<strong>as</strong>ta extensão do oceano.<br />

Foi Tarzan quem sugeriu, finalmente, a idéia de construírem uma<br />

embarcação que os lev<strong>as</strong>se de novo ao continente. Ele podia ensinar-lhes


como se fabricavam ferrament<strong>as</strong> rudes. Todos aceitaram a idéia, e ficaram<br />

ansiosos de pôr mãos à obra, para começar o trabalho.<br />

P<strong>as</strong>sado, porém, algum tempo e quando os trabalhos já estavam<br />

muito adiantados, começaram entre os operários <strong>as</strong> disput<strong>as</strong> e discórdi<strong>as</strong>. De<br />

modo que agora, além dos outros perigos, havia descontentamento e suspeita.<br />

Mais do que nunca, Tarzan receava deixar agora Jane entre os<br />

brutos da tripulação do Kincaid; m<strong>as</strong> precisava caçar, pois nenhum outro<br />

podia voltar com tanta caça quanto ele. Às vezes Mugambi o auxiliava; m<strong>as</strong> a<br />

lança e <strong>as</strong> flech<strong>as</strong> do negro não eram tão certeir<strong>as</strong> como a corda e a faca do<br />

homem-macaco.<br />

Finalmente os homens abandonaram o trabalho, indo para a selva<br />

aos pares, para explorar e caçar. Todo este tempo não avistaram Sheeta nem<br />

Akut e os outros grandes macacos, embora Tarzan os tivesse encontrado às<br />

vezes na selva enquanto caçava.<br />

Enquanto <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> iam de mal a pior no acampamento dos<br />

náufragos do Kincaid, sobre a costa leste da Ilha da Selva, outro<br />

acampamento era levantado na costa do norte.<br />

Aí, numa pequena enseada, estava um pequeno navio, o Cowrie,<br />

cujos tombadilhos poucos di<strong>as</strong> antes foram encharcados de sangue dos seus<br />

oficiais e outros membros de sua tripulação, pois o Cowrie tivera pouca sorte<br />

quando recebeu a bordo homens como Gust e Momula, o Maori, e aquele<br />

demônio Kai Shang, de Fachan.<br />

Havia ainda outros, também, dez ao todo — a canalha dos portos<br />

do mar do sul; m<strong>as</strong> Gust e Momula e Kai Shang eram os cabeç<strong>as</strong> diabólicos<br />

do bando.<br />

Eram eles que tinham incitado a revolta da guarnição, a fim de se<br />

apoderarem da remessa de pérol<strong>as</strong>, que constituía a riqueza da carga do<br />

Cowrie.


Fora Kai Shang que <strong>as</strong>s<strong>as</strong>sinara o comandante quando este dormia<br />

no seu camarote, enquanto Momula, o Maori, atacava o oficial da guarda.<br />

Gust, como era seu costume, achara meios de delegar aos outros o<br />

direito de matar. Não que tivesse escrúpulos, m<strong>as</strong> porque zelava muito pela<br />

sua própria segurança pessoal. Há sempre algum perigo para o <strong>as</strong>s<strong>as</strong>sino, pois<br />

<strong>as</strong> su<strong>as</strong> vítim<strong>as</strong> pouc<strong>as</strong> vezes estão dispost<strong>as</strong> a se deixar matar sem reação.<br />

Às vezes até chegam ao ponto de inverter o resultado contra o<br />

<strong>as</strong>s<strong>as</strong>sino. Era esta possibilidade de reação que levava Gust a ceder aos seus<br />

companheiros o direito que eles se atribuíam sobre a vida alheia.<br />

M<strong>as</strong> agora que o serviço já estava feito, o sueco pretendia adquirir a<br />

posição do supremo comando entre os amotinados. Chegou mesmo ao ponto<br />

de se apoderar de cert<strong>as</strong> peç<strong>as</strong> de roupa que pertenciam ao comandante<br />

<strong>as</strong>s<strong>as</strong>sinado do Cowrie — peç<strong>as</strong> que ainda conservavam <strong>as</strong> divis<strong>as</strong> e <strong>as</strong><br />

insígni<strong>as</strong> da autoridade. Este fato desagradou a Kai Shang, que não suportava<br />

nenhuma autoridade e não pretendia submeter-se ao predomínio de um vulgar<br />

marinheiro sueco.<br />

As sementes de discórdia já haviam sido, portanto, plantad<strong>as</strong> no<br />

acampamento dos amotinados do Cowrie, situado ao norte da Ilha da Selva.<br />

M<strong>as</strong> Kai Shang entendeu que devia agir com cautela; pois, de todo o bando,<br />

somente Gust possuía suficiente conhecimento de navegação, para tirá-los do<br />

Atlântico Sul e dar volta ao cabo, a fim de alcançarem águ<strong>as</strong> mais agradáveis,<br />

onde pudessem achar um mercado para aquela riqueza mal ganha, e sem<br />

serem interrogados.<br />

Na véspera de avistarem a Ilha da Selva e descobrirem a pequena<br />

baía cercada de terr<strong>as</strong> onde o Cowrie estava ancorado, avistara a sentinela a<br />

fumaça e <strong>as</strong> chaminés de um navio de guerra.<br />

A possibilidade de serem descobertos e terem de entrar em<br />

comunicação com um navio de guerra, não agradou a nenhum deles, e por<br />

isso se ocultaram durante alguns di<strong>as</strong> até que o perigo já tivesse p<strong>as</strong>sado.


Gust não desejava agora aventurar-se ao mar outra vez. Era até<br />

possível, conjeturou ele, que aquele vapor estivesse mesmo à procura deles.<br />

Kai Shang contraveio que isto não podia ser, visto como era impossível que<br />

qualquer ser humano, a não ser eles mesmos, pudesse ter conhecimento do<br />

que havia acontecido a bordo do Cowrie.<br />

M<strong>as</strong> Gust não se deixava persuadir. No seu coração malvado nutria<br />

um plano, que lhe pudesse duplicar a parte que lhe tocara no roubo. Somente<br />

ele podia manobrar o Cowrie; portanto, sem ele, os outros não podiam sair da<br />

Ilha da Selva. M<strong>as</strong> o que poderia impedir Gust, dispondo de homens<br />

suficientes para manobrar o navio, de abandonar Kai Shang, Momula e<br />

metade da tripulação, quando se lhe depar<strong>as</strong>se ensejo favorável?<br />

Era por esta oportunidade que Gust esperava. Algum dia chegaria o<br />

momento em que Kai Shang, Momula e três ou quatro dos outros estariam<br />

ausentes do acampamento explorando e caçando. O sueco deu tratos ao<br />

cérebro para atinar com algum plano que pudesse af<strong>as</strong>tar do vapor ancorado<br />

aqueles que tinha decidido abandonar.<br />

Para este fim organizou vári<strong>as</strong> excursões de caça: m<strong>as</strong> sempre o<br />

diabo parecia avisar a alma de Kai Shang, porquanto este nunca ia caçar senão<br />

na companhia de Gust.<br />

Um dia Kai Shang falou secretamente com Momula, dizendo-lhe os<br />

motivos por que suspeitava da lealdade do sueco. Momula ofereceu-se para ir<br />

imediatamente enterrar uma faca no coração do traidor.<br />

É verdade que Kai Shang fundava apen<strong>as</strong> a sua suspeita contra<br />

Gust na própria <strong>as</strong>túcia natural da sua alma de velhaco — suspeitava apen<strong>as</strong><br />

d<strong>as</strong> intenções de Gust, imaginando o que ele mesmo gostaria de fazer contra<br />

aquele, c<strong>as</strong>o tivesse à mão meios necessários para isso.<br />

M<strong>as</strong> não teve coragem de deixar Momula matar o sueco, única<br />

pessoa com quem eles contavam para libertá-los daquela dificuldade.<br />

Decidiram, entretanto, que não seria bom nem tentar <strong>as</strong>sustar Gust, para que


acedesse aos seus desejos. Assentado isto, o Maori procurou o comandante,<br />

nomeado por si mesmo, do bando de pirat<strong>as</strong>.<br />

Quando Momula tocou no <strong>as</strong>sunto da partida imediata, Gust mais<br />

uma vez contrapôs a sua primitiva objeção de que o navio de guerra poderia<br />

estar vigiando o mar diretamente no seu caminho do sul, esperando que eles<br />

tent<strong>as</strong>sem alcançar outr<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>.<br />

Momula zombou dos receios do companheiro, demonstrando que,<br />

como ninguém a bordo de qualquer navio de guerra sabia do recente motim,<br />

não havia razão para que eles fossem suspeitos.<br />

— Ah! — exclamou Gust. — É justamente aí que você está errado.<br />

É por isso que você deve se sentir feliz em ter ao seu lado um homem<br />

educado como eu, para te dizer o que deve fazer. É um pobre negro<br />

ignorante, Momula, e por isso não conhece nada do rádio.<br />

— Eu não sou ignorante! — exclamou o Maori, pondo-se logo de<br />

pé e levando a mão ao cabo da faca.<br />

— Eu estou brincando — explicou o sueco. — Nós somos velhos<br />

amigos, Momula; não podemos brigar; pelo menos agora, que Kai Shang está<br />

planejando roubar tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> pérol<strong>as</strong>. Se ele pudesse achar um homem para<br />

dirigir o Cowrie, nos abandonaria de um momento para o outro. Toda essa<br />

conversa acerca de sair daqui, é justamente porque ele tem algum plano na<br />

cabeça, para se livrar de nós.<br />

— M<strong>as</strong> e o rádio? — perguntou Momula. — Que tem o rádio com<br />

a nossa permanência aqui?<br />

— Oh, sim — respondeu Gust, coçando a cabeça. Ele perguntava a<br />

si mesmo se o Maori seria realmente tão estúpido para acreditar na mentira<br />

impossível que iria lhe dizer. — Oh, sim! Como sabe, todo o navio de guerra<br />

tem a bordo o que se chama de aparelho de rádio, o que permite à gente falar<br />

com outros vapores a muit<strong>as</strong> milh<strong>as</strong> de distância, e permite ouvir tudo que se<br />

diz nos outros vapores. Agora já pode perceber o que aconteceu: quando


estavam brigando a bordo do Cowrie, gritando e fazendo barulho, aquele<br />

navio de guerra, que estava ao sul de nós, ouviu tudo que estava se p<strong>as</strong>sando a<br />

bordo. Naturalmente eles podem não ter identificado o nome do vapor, m<strong>as</strong><br />

ouviram o b<strong>as</strong>tante para saber que a tripulação de algum vapor se havia<br />

revoltado, matando seus oficiais. Portanto, eles ficarão aqui, para revistar todo<br />

vapor que avistarem durante algum tempo, e pode ser que não estejam muito<br />

longe agora.<br />

Enquanto dizia ao outro est<strong>as</strong> cois<strong>as</strong>, o sueco procurava <strong>as</strong>sumir<br />

um ar de tranqüilidade para que o Maori não fic<strong>as</strong>se desconfiado quanto a<br />

verdade d<strong>as</strong> declarações que lhe acabava de fazer.<br />

Momula ficou algum tempo silencioso, olhando para Gust.<br />

Finalmente, levantou-se.<br />

— Você é um grande mentiroso — disse ele. — Se não conseguir<br />

nos tirar daqui amanhã, nunca mais terá oportunidade para mentir, porque<br />

ouvi dois homens dizerem que gostariam de enterrar uma faca no seu coração<br />

e que se os prendesse por mais tempo neste buraco, eles executariam esse<br />

desejo.<br />

— Pergunte a Kai Shang se não existe, de fato, o rádio — replicou<br />

Gust. — Ele te dirá que existe e que os vapores podem se comunicar uns com<br />

os outros a muit<strong>as</strong> milh<strong>as</strong> de distância. E dize aos dois homens que desejam<br />

matar-me que, se fizerem isto, eles não poderão gozar a parte que lhes coube<br />

do roubo, porque somente eu posso conduzi-los com segurança a qualquer<br />

porto.<br />

Momula foi então conversar com Kai Shang e perguntou-lhe se<br />

existia o tal aparelho de rádio, por meio do qual os vapores podiam conversar<br />

uns com os outros a grande distância. Kai Shang disse-lhe que sim, que havia<br />

esse aparelho.


Momula ficou embaraçado; m<strong>as</strong> ele queria deixar a ilha, e estava<br />

disposto a aventurar-se ao alto-mar, preferindo os seus perigos a ficar por<br />

mais tempo ali, sofrendo o tédio do acampamento.<br />

disse Kai Shang.<br />

— Se tivéssemos outra pessoa que soubesse dirigir um navio! —<br />

Naquela tarde Momula fora caçar com dois outros Maoris.<br />

Achavam-se na direção do sul, e não muito longe do acampamento, quando<br />

foram surpreendidos pelo som de vozes que vinham da selva.<br />

Eles sabiam que nenhum de seus homens os havia precedido, e<br />

como todos estavam convencidos de que a ilha era desabitada, amedrontaram-<br />

se e tiveram vontade de fugir, supondo que o lugar era mal-<strong>as</strong>sombrado —<br />

possivelmente pelos espíritos dos oficiais <strong>as</strong>s<strong>as</strong>sinados do Cowrie.<br />

M<strong>as</strong> Momula era ainda mais curioso do que supersticioso, e <strong>as</strong>sim<br />

refreou o seu desejo de fugir ao que lhe parecia sobrenatural.<br />

Fazendo um sinal para que os companheiros lhe seguissem o<br />

exemplo, caiu de mãos e joelhos no chão, arr<strong>as</strong>tando-se furtivamente pela<br />

selva na direção de onde vinham <strong>as</strong> vozes d<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> invisíveis que falavam.<br />

Pouco adiante, à entrada de uma clareira, estacou, soltando um grande suspiro<br />

de alívio, pois viu claramente dois homens de carne e osso, que conversavam<br />

um com o outro, sentados sobre o tronco de uma árvore caída.<br />

chamado Schmidt.<br />

Um era Schneider, oficial do Kincaid e o outro um marinheiro<br />

— Eu acho que podemos fazer isto — dizia Schneider ao<br />

companheiro. — Uma boa canoa não seria difícil de construir, e três de nós,<br />

em um dia, podíamos remá-la até o continente, c<strong>as</strong>o o vento fosse favorável e<br />

o mar razoavelmente calmo. Não vale a pena esperarmos que os homens<br />

construam uma canoa b<strong>as</strong>tante grande para levar todo o bando; além disso,<br />

eles estão descontentes e enjoados de trabalhar como escravos o dia inteiro.<br />

Não temos obrigação de salvar o inglês. Ele que cuide de si, e que se arranje


como puder. — Calou-se um momento, encarando o outro para notar o efeito<br />

d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, e, em seguida acrescentou: — M<strong>as</strong> podíamos levar a mulher.<br />

Seria pena deixarmos uma mulher tão bonita como ela em um lugar<br />

abandonado como esta ilha.<br />

Schmidt olhou para cima e sorriu.<br />

— Então é isto que está pensando? — perguntou ele. — Por que<br />

não disse logo? Quanto ganharei se te ajudar nesse plano?<br />

— Ela deve nos pagar bem para auxiliá-la a voltar para a civilização<br />

— explicou Schneider. — Digo-te o que farei: combinarei com dois para me<br />

ajudarem. Ficarei com a metade e eles podem dividir a outra metade — tu e<br />

algum outro, quem quer que seja. Estou farto deste lugar; quanto mais cedo<br />

puder ver-me livre daqui, melhor. Então, que acha?<br />

— Aceito — replicou Schmidt. — Eu não saberia chegar sozinho<br />

ao continente e sei que nenhum dos outros rapazes saberia também. Você é o<br />

único que conhece alguma coisa de navegação e com quem se pode tratar.<br />

Momula, o Maori, ouviu atentamente a conversa. Sabia um pouco<br />

de cada língua que se fala sobre os mares, e tinha viajado muit<strong>as</strong> vezes em<br />

vapores ingleses. Ergueu-se, penetrou na clareira. Schneider e o companheiro<br />

deram um pulo como se um espírito se houvesse levantado diante deles, e<br />

levaram a mão aos seus revólveres. Momula ergueu a mão direita, com a<br />

palma à mostra, como sinal d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> intenções pacífic<strong>as</strong>.<br />

— Eu sou um amigo — disse ele. — Ouvi toda a conversa, m<strong>as</strong><br />

não tenham receio porque não revelarei o que disseram. Posso auxiliá-los, e<br />

vocês também podem auxiliar-me. — E, dirigindo-se a Schneider. — Você<br />

pode dirigir um navio, m<strong>as</strong> não tem navio. Nós temos um, m<strong>as</strong> não temos<br />

ninguém para dirigi-lo. Se quiser vir conosco, sem nada perguntar, deixaremos<br />

levar o navio para onde quiser, depois que nos tiver desembarcado num certo<br />

porto, cujo nome diremos mais tarde. Podem levar a mulher a que há pouco<br />

se referiram. Nós também nada perguntaremos. Concordam?


Schneider desejava mais algum<strong>as</strong> informações e obteve tant<strong>as</strong><br />

quant<strong>as</strong> Momula julgou conveniente dar-lhe. Então o Maori lhe sugeriu que<br />

fal<strong>as</strong>se com Kai Shang. Os dois membros do bando do Kincaid seguiram<br />

Momula e seus dois companheiros até um ponto na selva próximo ao<br />

acampamento dos amotinados. Então Momula disse-lhes que se escondessem<br />

enquanto procurava Kai Shang, tendo tido antes o cuidado de avisar aos seus<br />

outros companheiros para tomarem conta dos dois marinheiros c<strong>as</strong>o estes<br />

mud<strong>as</strong>sem de idéia e tent<strong>as</strong>sem escapar. Schneider e Schmidt estavam<br />

virtualmente prisioneiros, embora não o soubessem.<br />

Pouco depois Momula regressou com Kai Shang, a quem ele tinha<br />

narrado ligeiramente os detalhes do encontro que tivera na selva. O chinês<br />

falou muito tempo com Schneider, até que se convenceu de que este era,<br />

realmente, tão velhaco como ele mesmo e que o rapaz estava ansioso para<br />

deixar a ilha.<br />

Não fossem estes dois fatos, haveria pouca probabilidade de que<br />

Schneider fosse digno de confiança de se ver investido no comando do<br />

Cowrie; além disso, Kai Shang sabia que sempre acharia meios de fazer o<br />

homem sujeitar-se aos seus desejos futuros.<br />

radiantes de alegria.<br />

Schneider e Schmidt regressaram ao próprio acampamento<br />

Agora finalmente tinham um plano praticável de deixarem a ilha, e<br />

tinham embarcação em condições de navegar. Não haveria mais trabalho<br />

forçado na construção de uma canoa problemática, nem haveria necessidade<br />

de arriscar <strong>as</strong> su<strong>as</strong> vid<strong>as</strong> numa embarcação rudemente construída, que era bem<br />

capaz de ir ao fundo antes que alcanç<strong>as</strong>se o continente.<br />

Também, iam ter auxílio para capturar a mulher, ou mulheres,<br />

porque quando Momula soube que havia uma mulher de cor no outro<br />

acampamento, insistiu para que ela fosse trazida juntamente com a mulher<br />

branca.


Quando Kai Shang e Momula voltaram ao acampamento, levavam<br />

a convicção de que eles não precisavam mais de Gust. Caminharam<br />

diretamente para a barraca na qual supunham que o encontrariam àquela hora<br />

do dia, pois conquanto fosse mais agradável permanecerem todos a bordo do<br />

Cowrie, haviam mutuamente decidido que estariam mais seguros se fizessem<br />

o acampamento na praia.<br />

Cada um sabia que no coração dos outros havia b<strong>as</strong>tante traição, de<br />

modo que se tornava perigoso para qualquer deles desembarcar deixando os<br />

outros de posse do Cowrie. Somente a dois ou três homens era permitido ir a<br />

bordo do navio ao mesmo tempo a não ser que todos os outros estivessem lá<br />

também.<br />

Quando os dois caminhavam na direção da barraca de Gust, o<br />

Maori p<strong>as</strong>sou a mão pela lâmina da sua comprida faca. O sueco teria ficado<br />

b<strong>as</strong>tante intrigado se tivesse visto o gesto do companheiro ou pudesse ler o<br />

que se estava p<strong>as</strong>sando no cérebro cruel do negro.<br />

Aconteceu que Gust estava naquele momento na barraca ocupada<br />

pelo cozinheiro, a qual ficava a pouca distância da sua própria.<br />

Por ac<strong>as</strong>o, olhara Gust para fora da barraca do cozinheiro no<br />

mesmo instante que Kai Shang e Momula se aproximavam da entrada da<br />

barraca dele, e notara que os seus movimentos pareciam furtivos, não<br />

denotando intenções amigáveis ou benign<strong>as</strong>. Além disso, justamente quando<br />

os dois entravam para dentro da barraca, Gust viu a comprida faca que<br />

Momula ocultava atrás d<strong>as</strong> cost<strong>as</strong>. O sueco arregalou os olhos, sentindo ao<br />

mesmo tempo um estranho arrepio n<strong>as</strong> raízes do cabelo. E empalideceu, sem<br />

saber o que pensar; m<strong>as</strong>, adivinhando <strong>as</strong> intenções dos companheiros, saiu<br />

rapidamente da barraca do cozinheiro.<br />

Como se tivesse ouvido a conspiração dos dois, ele sabia que Kai<br />

Shang e Momula tinham vindo para matá-lo.


O fato de ser somente ele quem poderia dirigir o Cowrie tinha sido<br />

até então a sua salvação. Era evidente que acontecera alguma coisa, que ele<br />

ignorava, m<strong>as</strong> que impelia agora os dois a quererem eliminá-lo. Gust correu,<br />

sem parar, até a praia, internando-se na selva. Tinha medo da selva, cujos<br />

rumores estranhos eram para ele verdadeiramente horrorosos.<br />

M<strong>as</strong>, se tinha medo da selva, tinha muito mais medo ainda de Kai<br />

Shang e Momula. Os perigos da selva eram mais ou menos incertos, enquanto<br />

que o perigo que o ameaçava às mãos dos seus companheiros era constante,<br />

podendo, de um momento para outro, tornar-se realidade, com algum<strong>as</strong><br />

polegad<strong>as</strong> de aço frio, ou um pedaço de corda leve. Ele tinha visto Kai Shang<br />

estrangular um homem em Pai-Sha num beco escuro atrás do estabelecimento<br />

de Loo Kai. Receava, por isto, mais a corda de Kai Shang do que a faca do<br />

Maori; m<strong>as</strong>, como quer que fosse, era para ele grande perigo ficar ao alcance<br />

de qualquer um deles. Escolheu, portanto, a selva impiedosa.


CAPÍTULO 21: A lei da selva<br />

No acampamento de Tarzan, por meio de ameaç<strong>as</strong> e promessa de<br />

recompens<strong>as</strong>, o homem-macaco tinha finalmente conseguido construir, qu<strong>as</strong>e<br />

que por completo, o c<strong>as</strong>co de uma grande embarcação, auxiliando ele e<br />

Mugambi, com <strong>as</strong> própri<strong>as</strong> mãos, o trabalho dos marinheiros, quando não<br />

andavam pela floresta em busca de carne para alimento do pessoal.<br />

Schneider, o oficial, tinha-se queixado do trabalho, até que,<br />

finalmente, deixou abertamente de trabalhar, internando-se na selva com<br />

Schmidt, sob pretexto de irem caçar. Disse que precisava descansar, e Tarzan<br />

para não agravar ainda mais a vida no acampamento, a qual já se ia tornando<br />

insuportável, consentiu que os dois homens partissem para a caça.<br />

No dia seguinte, porém, Schneider fingiu arrepender-se do seu<br />

procedimento e voltou a trabalhar com animação.<br />

O mesmo fez Schmidt simulando boa vontade, o que muito alegrou<br />

Lorde Greystoke, por ver que finalmente os homens compreendiam a<br />

necessidade do trabalho que lhes era pedido e d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> obrigações para com<br />

os outros do bando.<br />

Foi, pois, com uma sensação de alívio que ele saiu ao meio-dia para<br />

caçar, na floresta, uma manada de pequenos veados que Schneider dissera ter<br />

visto na véspera indo para o sudoeste.<br />

O homem-macaco encaminhou-se para lá, varando facilmente a<br />

folhagem entrelaçada da floresta.<br />

Enquanto se aproximava do norte, meia dúzia de homens mal-<br />

encarados caminhavam furtivamente pela selva, como quem se prepara para<br />

praticar alguma ação criminosa.<br />

Julgavam eles que estavam caminhando sem serem percebidos; m<strong>as</strong>,<br />

atrás deles, qu<strong>as</strong>e desde o momento em que haviam deixado o acampamento,<br />

um homem alto seguia-lhes a pista. Nos olhos desse homem havia ódio e<br />

receio, e, ao mesmo tempo, grande curiosidade. Por que Kai Shang, Momula e


os outros iriam <strong>as</strong>sim furtivamente para o sul? Que esperavam encontrar lá?<br />

Gust sacudiu perplexo a cabeça. Iria descobrir. Ele os seguiria, surpreenderia<br />

os seus planos, e então, se pudesse, iria frustrá-los de boa vontade.<br />

Julgou, primeiramente, que eles o procuravam; m<strong>as</strong>, pensando<br />

melhor, viu que isto não podia ser, pois que eles tinham feito tudo para o<br />

enxotarem do acampamento. Nunca Kai Shang ou Momula se dariam ao<br />

trabalho de matá-lo, ou a qualquer outro, a não ser para roubar; como Gust<br />

não tinha dinheiro, era evidente que estavam procurando outra pessoa.<br />

Dentro em pouco, o grupo que ele seguia parou, ocultando-se<br />

todos na folhagem, à beira do r<strong>as</strong>tro da caça, que tinham acompanhado. Gust<br />

para observar melhor, trepou nos galhos duma árvore, atrás deles, tendo o<br />

cuidado de esconder-se bem entre <strong>as</strong> folh<strong>as</strong>, de modo que não pudesse ser<br />

percebido pelos seus antigos companheiros.<br />

Não esperou muito tempo. Pouco depois, viu um homem branco,<br />

estranho, que se aproximava cautelosamente do lado do sul.<br />

À vista do recém-chegado, Momula e Kai Shang levantaram-se dos<br />

seus esconderijos e o cumprimentaram. Gust não pôde ouvir o que se<br />

conversaram, m<strong>as</strong> viu que o homem voltara na direção de onde tinha vindo.<br />

Era Schneider. Chegando ao acampamento, dirigiu-se para o lado<br />

oposto e apareceu correndo esbaforido. Nervoso, gritou para Mugambi: —<br />

Rápido! Aqueles seus macacos apanharam Schmidt e o matarão se não<br />

correrem em seu auxílio. Sigam o r<strong>as</strong>tro de caça mais ou menos uma milha<br />

para o sul. Eu ficarei aqui, pois estou muito cansado da corrida que dei. Não<br />

posso voltar com vocês, e o oficial do Kincaid atirou-se no chão ofegando<br />

como se estivesse exausto.<br />

Mugambi hesitou. Tinha ordem de guardar <strong>as</strong> du<strong>as</strong> mulheres. Não<br />

sabia o que fazer. Jane Clayton, que ouvira a história de Schneider, juntou os<br />

seus rogos aos do oficial:


— Vá, Mugambi, vá depressa — disse ela. — Ficaremos bem aqui.<br />

O senhor Schneider ficará conosco. Vá, Mugambi. O pobre rapaz precisa ser<br />

salvo.<br />

Schmidt que estava escondido no mato, à beira do acampamento,<br />

achou graça. Mugambi, obedecendo às ordens de sua patroa, conquanto ainda<br />

duvidoso da prudência do seu ato, correu na direção do sul, com Jones e<br />

Sullivan atrás dele.<br />

Logo que ele desapareceu Schmidt levantou-se e correu na direção<br />

do norte. Alguns minutos depois, a face de Kai Shang, de Fachan, apareceu à<br />

margem da clareira. Schneider viu o chinês, e indicou-lhe que podia agir.<br />

Jane Clayton e a mulher Mosula estavam sentad<strong>as</strong> à entrada da<br />

barraca da primeira, com <strong>as</strong> cost<strong>as</strong> para os patifes que estavam se<br />

aproximando. O primeiro sinal que tiveram da presença de estranhos no<br />

acampamento, foi o aparecimento repentino de meia dúzia de patifes ao redor<br />

del<strong>as</strong>.<br />

— Venham! — disse Kai Shang às du<strong>as</strong> mulheres, ordenando-lhes<br />

que se levant<strong>as</strong>sem e o seguissem.<br />

Jane Clayton ergueu-se de um salto, e olhou para Schneider, que<br />

estava de pé, atrás dos recém-chegados com um sorriso nos lábios. Ao lado<br />

dele estava Schmidt. Imediatamente a moça compreendeu que tinha sido<br />

vítima de uma conspiração.<br />

oficial.<br />

— Que quer dizer isto? — perguntou ela dirigindo-se ao primeiro<br />

— Quer dizer que encontramos um navio, e podemos agora dizer<br />

adeus à Ilha da Selva — replicou o homem.<br />

perguntou ela.<br />

Mosula.<br />

— Por que mandou Mugambi e os outros para a selva? —<br />

— Eles não vêm conosco — somente a senhora e eu, e a mulher


— Venha! — repetiu Kai Shang, e agarrou Jane Clayton pelo pulso.<br />

O Maori agarrou também a mulher negra pelo braço e quando esta<br />

quis gritar, deu-lhe um soco na boca.<br />

Mugambi correu pela selva na direção do sul. Jones e Sullivan iam<br />

muito atrás. Correu cerca de uma milha sem ver nenhum sinal do homem que<br />

tinha desaparecido ou de qualquer dos macacos de Akut.<br />

Finalmente, parou e chamou, como ele e Tarzan estavam<br />

acostumados a chamar os grandes antropóides. Não obteve resposta. Jones e<br />

Sullivan chegaram perto do guerreiro negro quando este ainda estava soltando<br />

o seu grito estranho.<br />

quando.<br />

Por mais de meia milha o negro procurou, chamando de vez em<br />

Finalmente, percebeu a verdade; e então, como um coelho<br />

<strong>as</strong>sustado, voltou-se regressando a correr para o acampamento. Chegando aí<br />

percebeu num momento que eram fundados os seus receios. Lady Greystoke<br />

e a mulher Mosula tinham partido. E Schneider também.<br />

Quando Jones e Sullivan se juntaram a Mugambi ele qu<strong>as</strong>e os<br />

matou, tal a sua raiva, julgando-os também conspiradores; m<strong>as</strong> eles<br />

conseguiram convencê-lo de que nada sabiam da conspiração.<br />

Enquanto estavam meditando sobre o lugar provável onde se<br />

achariam <strong>as</strong> mulheres e o seu raptor, bem como o fim para que Schneider <strong>as</strong><br />

tinha af<strong>as</strong>tado do acampamento, Tarzan desceu dos galhos de uma árvore e<br />

atravessou a clareira na direção deles.<br />

Os seus olhos penetrantes viram imediatamente que havia<br />

acontecido alguma coisa de anormal. Quando ouviu a história de Mugambi,<br />

seus queixos entraram a bater de raiva e uma ruga lhe franziu a testa.<br />

Que esperaria obter o oficial raptando Jane Clayton de um<br />

acampamento em uma pequena ilha, na qual ele não podia escapar à vingança


de Tarzan? O homem-macaco não podia acreditar que o sujeito fosse tão tolo;<br />

e então começou a lobrigar uns longes de verdade.<br />

Schneider só teria praticado semelhante coisa porque tinha a certeza<br />

de que havia um meio de fugir da Ilha da Selva com os seus prisioneiros. M<strong>as</strong><br />

por que levara também a mulher negra? Ele devia ter cúmplices, um dos quais<br />

desejava a indígena.<br />

lhes a pista.<br />

— Vamos! — disse Tarzan. — Só temos uma coisa a fazer: seguir-<br />

Quando acabou de falar, um vulto alto e desairoso saiu da selva, ao<br />

norte do acampamento, caminhando ao encontro dos quatro homens.<br />

Nenhum deles podia pensar que qualquer outro ser humano, a não ser os do<br />

seu próprio acampamento, habit<strong>as</strong>se <strong>as</strong> prai<strong>as</strong> da Ilha da Selva.<br />

Era Gust. Ele foi diretamente ao ponto em discussão.<br />

— As su<strong>as</strong> mulheres foram raptad<strong>as</strong> — disse ele. — Se quiserem<br />

vê-l<strong>as</strong> novamente, venham depressa comigo. Se não nos apressarmos o<br />

Cowrie terá partido, antes que cheguemos ao seu ancoradouro.<br />

— Quem é você? — perguntou Tarzan. — Que sabe do rapto da<br />

minha mulher e da mulher negra?<br />

— Eu ouvi Kai Shang e Momula, o Maori, conspirarem com dois<br />

homens do seu acampamento. Eles me expulsaram do acampamento e<br />

queriam matar-me. Agora vou ajustar cont<strong>as</strong> com eles. Venham.<br />

Gust conduziu os quatro homens do Kincaid, a p<strong>as</strong>so rápido, pela<br />

selva, na direção do norte. Chegariam ainda a tempo? Mais alguns minutos e<br />

eles iriam verificar.<br />

Quando finalmente o pequeno grupo saiu da selva fechada, e os<br />

homens viram diante deles a baía e o oceano, pareceu-lhes que a sorte tinha<br />

sido excessivamente cruel para com eles, pois o Cowrie já estava navegando e<br />

se movia vagarosamente, para fora do porto, demandando o alto-mar.


Que iriam fazer? O peito largo de Tarzan arfava com a força d<strong>as</strong><br />

su<strong>as</strong> emoções. O último golpe parecia ter-lhe sido desfechado e se alguma vez<br />

na sua vida Tarzan pudesse perder a esperança, seria agora que via o navio<br />

levando a esposa para algum destino horrível, movendo-se graciosamente<br />

sobre <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> encrespad<strong>as</strong>, tão perto, e ao mesmo tempo tão horrivelmente<br />

longe. Ele ficou em silêncio olhando para o navio. Viu-o tomar a direção do<br />

leste e finalmente desaparecer na curva do promontório. Para onde? Não<br />

sabia. E Tarzan caiu sentado, enterrando o rosto n<strong>as</strong> mãos.<br />

Foi depois do escurecer que os cinco homens voltaram para o<br />

acampamento, na praia do leste. A noite era quente e abafada. Nenhuma brisa<br />

agitava a folhagem d<strong>as</strong> árvores ou encapelava a superfície do oceano que<br />

parecia um espelho.<br />

Tarzan nunca tinha visto o grande Atlântico tão sossegado. Estava<br />

parado à beira da praia, olhando para o mar na direção do continente, a alma<br />

cheia de tristeza e desespero, quando da selva, por trás do acampamento,<br />

chegou-lhe o lamento duma pantera.<br />

Havia uma nota conhecida no grito estranho. Qu<strong>as</strong>e<br />

mecanicamente Tarzan voltou a cabeça e respondeu ao grito. Um momento<br />

depois, o vulto de Sheeta surgiu maciamente à frouxa claridade da praia. Não<br />

havia lua, m<strong>as</strong> o céu estava recamado de estrel<strong>as</strong>. Silenciosamente a fera se<br />

aproximou do homem. Havia já muito tempo que Tarzan não via o seu velho<br />

companheiro de combates; m<strong>as</strong> o rosnar suave era suficiente para certificá-lo<br />

de que o animal ainda se lembrava dos laços que os tinham unido a ambos no<br />

p<strong>as</strong>sado.<br />

O homem-macaco deixou os dedos cair sobre o pêlo do animal, e<br />

quando Sheeta se esfregou contra a sua perna, ele lhe acariciou e alisou a<br />

cabeça, enquanto os seus olhos continuaram fitos na escuridão d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>.<br />

Súbito, estremeceu. Que era aquilo? Forçou ainda mais a vista.<br />

Voltou-se e chamou em voz alta os homens que estavam fumando, sentados


nos seus cobertores, no acampamento. Acorreram todos; m<strong>as</strong> Gust hesitou ao<br />

ver a natureza do companheiro de Tarzan.<br />

— Olhem! — gritou Tarzan. — Uma luz! A luz de um navio! Deve<br />

ser o Cowrie paralisado pela calmaria. — E, com uma exclamação de<br />

renovada esperança: — Podemos ainda alcançá-los! A nossa canoa nos levará<br />

até lá facilmente.<br />

Gust advertiu:<br />

— Eles estão bem armados. Nós não poderíamos <strong>as</strong>saltar o navio<br />

com cinco homens somente.<br />

— Há seis agora, — replicou Tarzan, apontando para Sheeta, — e<br />

podemos ter ainda mais em meia hora. Sheeta equivale a vinte homens, e os<br />

outros, que posso reunir, juntarão ao menos cem à nossa força combatente.<br />

Você não os conhece.<br />

O homem-macaco voltou-se, levantou a cabeça na direção da selva,<br />

e soltou dos lábios, por divers<strong>as</strong> vezes, o grito horroroso do macaco que<br />

chama os companheiros.<br />

Logo da selva veio um grito em resposta, e outro e mais outro.<br />

Gust estremeceu. Em meio de que criatur<strong>as</strong> a sorte o tinha jogado? Não eram<br />

Kai Shang e Momula preferíveis a este grande gigante branco que alisava com<br />

a mão o pêlo de uma pantera e chamava os animais da selva?<br />

Em poucos minutos os macacos de Akut vieram rompendo com<br />

estrondo, do mato para a praia, enquanto os cinco homens lutavam com o<br />

vulto pouco manejável do c<strong>as</strong>co da embarcação.<br />

Com esforços hercúleos conseguiram trazê-la até a beira da água.<br />

Os remos dos dois pequenos botes do Kincaid, que tinham sido levados à<br />

praia pelo vento, na mesma noite que o pessoal desembarcou, e haviam sido<br />

utilizados para sustentar a lona d<strong>as</strong> barrac<strong>as</strong>, foram logo requisitados. Quando<br />

Akut e os seus companheiros chegaram à praia, tudo estava pronto para o<br />

embarque. Mais uma vez o bando horrendo entrou ao serviço do seu chefe, e


tomaram os seus lugares na embarcação. Os quatro homens, pois não houve<br />

meio de convencer Gust a acompanhar o pessoal, pegaram nos remos,<br />

enquanto alguns dos macacos seguiram o seu exemplo; logo a embarcação<br />

desajeitada começou a mover-se vagarosamente na direção da luz, que<br />

levantava e descia suavemente com a ondulação do mar.<br />

Um marinheiro sonolento, vigiava preguiçosamente o tombadilho<br />

do Cowrie, enquanto no camarote, embaixo, Schneider andava de um lado<br />

para outro discutindo com Jane Clayton. A moça tinha achado um revólver na<br />

gaveta de uma mesa, no quarto onde estivera presa, e ameaçava agora o oficial<br />

com a arma.<br />

A mulher Mosula estava ajoelhada atrás dela, enquanto Schneider<br />

p<strong>as</strong>seava diante da porta, ameaçando, rogando e prometendo, m<strong>as</strong> tudo sem<br />

resultado. Súbito, do tombadilho em cima, veio um grito de alarme, e em<br />

seguida, um tiro. Nesse instante Jane Clayton descuidou-se da sua vigilância,<br />

erguendo os olhos para a clarabóia do camarote. Simultaneamente Schneider<br />

saltou em cima dela.<br />

A primeira suspeita que o vigia teve de que havia outra embarcação<br />

em redor de mil milh<strong>as</strong> do Cowrie foi quando ele viu a cabeça e os ombros de<br />

um homem aparecerem sobre o costado do navio. Imediatamente, pondo-se<br />

de pé, soltou um grito e apontou o revólver para o intruso. Foi este grito e o<br />

estampido subseqüente do revólver que desviaram a atenção de Jane Clayton.<br />

No tombadilho, ao sossego que reinara até esse momento, sucedeu<br />

um pandemônio horrível. Os membros da tripulação do Cowrie correram<br />

para cima armados com revólveres, cutelos e <strong>as</strong> fac<strong>as</strong> comprid<strong>as</strong> que muitos<br />

deles usavam habitualmente; m<strong>as</strong> o alarma fora dado tarde demais. Já os<br />

animais estavam no tombadilho do navio, com Tarzan, Mugambi e os dois<br />

homens da tripulação do Kincaid. Dando de rosto com <strong>as</strong> horríveis fer<strong>as</strong>, a<br />

coragem dos amotinados vacilou e fugiu. Os que tinham revólver atiraram às


ceg<strong>as</strong> e correram buscando um lugar seguro. Alguns subiram pelos m<strong>as</strong>tros,<br />

m<strong>as</strong> os macacos de Akut estavam mais acostumados a isso do que eles.<br />

Soltando gritos de terror, eles foram puxados dos seus altos<br />

poleiros. Os animais, sem o comando de Tarzan, que tinha ido à procura de<br />

Jane, desencadearam toda a fúria da sua natureza selvagem sobre os<br />

miseráveis que lhes caíam n<strong>as</strong> garr<strong>as</strong>.<br />

Sheeta, neste conflito, já tinha sentido os seus grandes dentes<br />

afundar numa veia jugular, e divertia-se em despedaçar um cadáver quando<br />

viu Kai Shang descer a escada para refugiar-se no seu camarote. Com um grito<br />

agudo Sheeta foi atrás dele — um grito que despertou outro, igualmente<br />

estranho, na garganta do chinês aterrorizado.<br />

Kai Shang alcançou o seu camarote uma fração de segundo antes da<br />

pantera, e pulando para dentro bateu a porta — m<strong>as</strong> era tarde. O grande<br />

corpo de Sheeta caiu contra a porta antes que fech<strong>as</strong>se, e um momento depois<br />

Kai Shang falava ininteligivelmente, gritando, subido em um leito superior.<br />

Com um salto macio Sheeta pulou atrás da sua vítima. Instantes<br />

depois, os maus di<strong>as</strong> de Kai Shang, de Fachan, estavam terminados e Sheeta<br />

devorava gulosamente sua carne dura e fibrosa.<br />

Mal se p<strong>as</strong>sara um momento, depois que Schneider pulara sobre<br />

Jane Clayton, tirando-lhe o revólver da mão, quando a porta do camarote se<br />

abriu e apareceu um homem seminu, que silenciosamente caminhou até ao<br />

fundo do camarote. Schneider sentiu mãos musculos<strong>as</strong> apertarem-lhe a<br />

garganta. Voltando a cabeça, para ver quem o atacava, deu de rosto com o<br />

homem-macaco.<br />

Cruelmente os dedos de Tarzan apertaram a garganta do oficial.<br />

Este queria gritar, implorar, m<strong>as</strong> não conseguia soltar nenhuma palavra. Os<br />

olhos saltavam-lhe d<strong>as</strong> órbit<strong>as</strong> enquanto ele lutava para se libertar daquel<strong>as</strong><br />

garr<strong>as</strong>, respirar, viver ainda.


Jane Clayton tentou afrouxar <strong>as</strong> mãos do marido, procurando tirá-<br />

l<strong>as</strong> de sobre a garganta do homem moribundo: m<strong>as</strong> Tarzan sacudiu a cabeça.<br />

— Nunca mais — exclamou ele, tranquilamente. — Tenho<br />

concedido a vida a muitos patifes. Somente para depois sofrer e fazer você<br />

sofrer, devido à minha misericórdia. Desta feita vamos liquidar de vez este<br />

patife — para termos a certeza de que ele nunca mais nos prejudicará ou a<br />

qualquer outro. — E, com um puxão repentino, torceu o pescoço do oficial<br />

traidor. Ouviu-se um estalo, e o corpo do desgraçado logo amoleceu, sem<br />

movimento, n<strong>as</strong> mãos do homem-macaco. Com um gesto de nojo Tarzan<br />

atirou o corpo para um lado, e voltou para o tombadilho, seguido por Jane e a<br />

mulher Mosula.<br />

A batalha aí já havia terminado. Somente Schmidt e Momula e dois<br />

outros sobreviveram de toda a tripulação do Cowrie, porque haviam se<br />

refugiado no c<strong>as</strong>telo da proa. Os demais tinham morrido, horrivelmente e<br />

como mereciam, sob os dentes e garr<strong>as</strong> d<strong>as</strong> fer<strong>as</strong> de Tarzan. De manhã, os<br />

primeiros raios do sol iluminaram os destroços da cena medonha, que se havia<br />

p<strong>as</strong>sado no tombadilho do mal-afortunado Cowrie; m<strong>as</strong> desta vez o sangue<br />

que lhe tingia o <strong>as</strong>soalho branco era o de traidores e bandidos e não o de<br />

inocentes.<br />

Tarzan fez vir para fora os homens que tinham se escondido no<br />

c<strong>as</strong>telo da proa, e sem promess<strong>as</strong> de imunidade de c<strong>as</strong>tigo forçou-os a auxiliar<br />

<strong>as</strong> manobr<strong>as</strong> do navio sob pena de morte imediata.<br />

Tinha-se levantado com o sol um vento forte. Com <strong>as</strong> vel<strong>as</strong><br />

estendid<strong>as</strong> o Cowrie partiu para a Ilha da Selva, onde, algum<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> depois,<br />

Tarzan apanhou Gust e disse adeus a Sheeta e aos macacos de Akut; pois ele<br />

desembarcou aí <strong>as</strong> fer<strong>as</strong>, para que est<strong>as</strong> continu<strong>as</strong>sem a sua vida selvagem e<br />

natural de que tanto gostavam; e não perderam um momento; desapareceram<br />

logo n<strong>as</strong> profundidades fresc<strong>as</strong> da sua selva querida.


Que eles ignoravam que Tarzan ia deixá-los, parece o mais provável<br />

— a não ser talvez o mais inteligente, Akut, o único que ficou na praia quando<br />

o pequeno bote regressou ao navio, levando o seu amo selvagem.<br />

E enquanto os seus olhos puderam alcançar, Jane e Tarzan, no<br />

tombadilho, viram o vulto solitário do macaco felpudo, imóvel, na praia,<br />

batida pelo rebentar d<strong>as</strong> ond<strong>as</strong> da Ilha da Selva.<br />

Três di<strong>as</strong> mais tarde o Cowrie encontrou o navio de guerra<br />

Shorewater, e pelo rádio Lorde Greystoke logo estabeleceu ligação com<br />

Londres. Dentro em pouco recebia ele uma notícia que encheu de alegria o<br />

seu coração e o de sua mulher: — o pequeno Jack estava salvo, e com boa<br />

saúde, na c<strong>as</strong>a de Lorde Greystoke.<br />

M<strong>as</strong> somente ao chegar a Londres foi que eles souberam os<br />

detalhes d<strong>as</strong> circunstânci<strong>as</strong> memoráveis que tinham conservado a criança ilesa.<br />

Rokoff, receando levar a criança para bordo do Kincaid durante o<br />

dia, tinha-a escondido num antro vil, onde <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> sem nome eram<br />

guardad<strong>as</strong>. Sua intenção era levá-la para o navio quando escurecesse.<br />

O seu aliado e secretário Paulvitch, fiel aos longos anos de ensino<br />

do seu <strong>as</strong>tuto chefe, aprendera finalmente a traição e avidez, que sempre<br />

tinham distinguido o seu superior. Calculando o resgate enorme que poderia<br />

ganhar se devolvesse a criança ilesa, divulgara o segredo do parentesco à<br />

mulher que mantinha o <strong>as</strong>ilo d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> enjeitad<strong>as</strong>. Por intermédio dessa<br />

mulher arranjou a substituição por uma outra criança, prevendo muito bem<br />

que Rokoff jamais descobriria a peça que acabavam de lhe pregar.<br />

A mulher prometeu ficar com a criança até que Paulvitch volt<strong>as</strong>se<br />

para a Inglaterra, m<strong>as</strong> também ela, por sua vez, foi tentada a trair o seu cargo<br />

pela atração do ouro, e <strong>as</strong>sim abriu negociações com os advogados de Lorde<br />

Greystoke para a restituição da criança.


Esmeralda, a velha ama negra estava de féri<strong>as</strong> na América, por<br />

oc<strong>as</strong>ião do rapto do pequeno Jack. A pobre ama, que atribuíra à sua ausência a<br />

causa dessa calamidade, tinha voltado e identificado positivamente a criança.<br />

O resgate foi pago, e dez di<strong>as</strong> depois de ter sido roubado, o futuro<br />

Lorde Greystoke foi restituído a c<strong>as</strong>a do seu pai.<br />

E <strong>as</strong>sim o último e o maior dos muitos crimes de Nikol<strong>as</strong> Rokoff,<br />

somente malogrou pela traição que ele tinha ensinado ao seu único amigo,<br />

como ainda resultou da morte do patife, e trouxe para Lorde e Lady<br />

Greystoke uma tranqüilidade de espírito que eles nunca teriam experimentado<br />

enquanto um resquício de vida anim<strong>as</strong>se o corpo do russo e o seu cérebro<br />

maligno estivesse livre para tramar nov<strong>as</strong> crueldades contra eles.<br />

Rokoff estava morto, e embora a sorte de Paulvitch fosse<br />

desconhecida, tinham motivos para acreditar que ele tivesse sucumbido aos<br />

perigos da selva, onde o tinham visto pela última vez — instrumento perverso<br />

do seu chefe.<br />

E <strong>as</strong>sim, pelo que sabiam, eles estariam livres para sempre da<br />

ameaça destes dois homens — os únicos inimigos que Tarzan teve oc<strong>as</strong>ião de<br />

temer, porque lhe armavam golpes covardes, ferindo-o na pessoa daqueles a<br />

quem amava.<br />

Foi uma reunião feliz de amigos a que se ajuntou na c<strong>as</strong>a dos<br />

Greystoke no dia em que Lorde Greystoke e sua esposa desembarcaram do<br />

tombadilho do Shorewater, para pisar de novo o solo inglês.<br />

Acompanhando-os estavam Mugambi e a mulher Mosula, que ele<br />

tinha encontrado no fundo da canoa naquela noite, à margem do pequeno<br />

tributário do Ugambi.<br />

A mulher tinha preferido ficar com o seu novo patrão a voltar para<br />

sua terra, onde a esperava o c<strong>as</strong>amento a que ela tinha escapado.


Tarzan propôs-lhes que fossem habitar <strong>as</strong> su<strong>as</strong> v<strong>as</strong>t<strong>as</strong> fazend<strong>as</strong><br />

african<strong>as</strong> na terra dos Waziris, para onde embarcariam na primeira<br />

oportunidade.<br />

Provavelmente, ainda os veremos todos lá, vivendo a vida selvagem<br />

da selva e em meio d<strong>as</strong> grandes planícies onde Tarzan dos Macacos prefere<br />

viver.<br />

Quem sabe?<br />

AS AVENTURAS DE TARZAN CONTINUAM<br />

NO LIVRO O FILHO DE TARZAN.


SÉRIE TARZAN<br />

Tarzan dos Macacos (Tarzan of the Apes, 1912)<br />

A Volta de Tarzan (The Return of Tarzan, 1913)<br />

Tarzan e <strong>as</strong> Fer<strong>as</strong> (The Be<strong>as</strong>ts of Tarzan, 1914)<br />

O Filho de Tarzan (The Son of Tarzan, 1915)<br />

Tarzan e <strong>as</strong> Jói<strong>as</strong> de Opar (Tarzan and the Jewels of Opar, 1916)<br />

Tarzan e os Contos da Selva (Jungle Tales of Tarzan, 1917)<br />

Tarzan, o Indomável (Tarzan, The Untamed, 1919)<br />

Tarzan, o Terrível (Tarzan, The Terrible, 1921)<br />

Tarzan e o Leão de Ouro (Tarzan and the Golden Lion, 1922)<br />

Tarzan e os Homens Formig<strong>as</strong> (Tarzan and the Ant Men, 1924)<br />

Tarzan, o Rei da Selva (Tarzan, Lord of the Jungle, 1927)<br />

Tarzan e o Império Perdido (Tarzan and the Lost Empire, 1929)<br />

Tarzan no Centro da Terra (Tarzan at the Earth's Core, 1930)<br />

Tarzan, o Invencível (Tarzan, The Invincible, 1930)<br />

Tarzan Triunfante (Tarzan Triumphant, 1932)<br />

Tarzan e a Cidade de Ouro (Tarzan and the City of Gold, 1932)<br />

Tarzan e o Homem Leão (Tarzan and the Lion Man, 1933)<br />

Tarzan e os Homens Leopardos (Tarzan and the Leopard Men 1935)<br />

A Busca de Tarzan (Tarzan's Quest, 1935)<br />

Tarzan, o Magnífico (Tarzan, The Magnificent, 1936)<br />

Tarzan e a Cidade Proibida (Tarzan and the Forbidden City, 1938)<br />

Tarzan e a Legião Estrangeira (Tarzan and the Foreign Legion, 1947)<br />

Tarzan e o Louco (Tarzan and the Madman, 1964)<br />

Tarzan e os Malditos (Tarzan and the C<strong>as</strong>taways, 1965)

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