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O QUE É A FILOSOFIA?

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o contrário. A ordem mudou, do mesmo modo que a natureza dos conceitos ou que os problemas aos quais<br />

se supõe que eles respondam. Deixamos de lado a questão de saber que diferença há entre um problema na<br />

ciência e na filosofia. Mas, mesmo na filosofia, não se cria conceitos, a não ser em função dos problemas que<br />

se consideram mal vistos ou mal colocados (pedagogia do conceito).<br />

Procedamos sumariamente: consideremos um campo de experiência tomado como mundo real, não<br />

mais com relação a um eu, mas com relação a um simples "há...". Há, nesse momento, um mundo calmo e<br />

repousante. Surge, de repente, um rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo. Outrem não<br />

aparece aqui como um sujeito, nem como um objeto mas, o que é muito diferente, como um mundo possível,<br />

como a possibilidade de um mundo assustador. Esse mundo possível não é real, ou não o é ainda, e todavia<br />

não deixa de existir: é um expressado que só existe em sua expressão, o rosto ou um equivalente do rosto.<br />

Outrem é, antes de mais nada, esta existência de um mundo possível. E este mundo possível tem também<br />

uma realidade própria em si mesmo, enquanto possível: basta que aquele que exprime fale e diga "tenho<br />

medo", para dar uma realidade ao possível enquanto tal (mesmo se suas palavras são mentirosas).<br />

O "eu", como índice lingüístico, não tem outro sentido. E, mais ainda, não é indispensável: a China é<br />

um mundo possível, mas assume realidade logo que se fale chinês ou que se fale da China num campo de<br />

experiência dado. <strong>É</strong> muito diferente do caso em que a China se realiza, tornando-se o próprio campo de<br />

experiência. Eis, pois, um conceito de outrem que não pressupõe nada além da determinação de um mundo<br />

sensível como condição. Outrem surge neste caso como a expressão de um possível. Outrem é um mundo<br />

possível, tal como existe num rosto que o exprime, e se efetua numa linguagem que lhe dá uma realidade.<br />

Neste sentido, é um conceito com três componentes inseparáveis: mundo possível, rosto existente,<br />

linguagem real ou fala.<br />

Evidentemente todo conceito tem uma história. Este conceito de outrem remete a Leibniz, aos mundos<br />

possíveis de Leibniz e à mônada como expressão de mundo; mas não é o mesmo problema, porque os<br />

possíveis de Leibniz não existem no mundo real. Remete também à lógica modal das proposições, mas estas<br />

não conferem aos mundos possíveis a realidade correspondente a suas condições de verdade (mesmo<br />

quando Wittgenstein encara as proposições de medo ou de dor, não vê nelas modalidades exprimíveis numa<br />

posição de outrem, porque deixa outrem oscilar entre um outro sujeito e um objeto especial). Os mundos<br />

possíveis têm uma longa história(1). Numa palavra, dizemos de qualquer conceito que ele sempre tem uma<br />

história, embora a história se desdobre em ziguezague, embora cruze talvez outros problemas ou outros<br />

planos diferentes. Num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros<br />

conceitos,<br />

(1) Esta história, que não começa com Leibniz, passa por episódios tão diversos quanto a proposição de<br />

outrem como tema constante em Wittgenstein ("ele está com dor de dente..."), e a posição de outrem como<br />

teoria do mundo possível em Michel Tournier (Vendredi ou les limbes du Pacifique, Gallimard).<br />

que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito<br />

opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado.<br />

Mas, por outro lado, um conceito possui um devir que concerne, desta vez, a sua relação com<br />

conceitos situados no mesmo plano. Aqui, os conceitos se acomodam uns aos outros, superpõem-se uns aos<br />

outros, coordenam seus contornos, compõem seus respectivos problemas, pertencem à mesma filosofia,<br />

mesmo se têm histórias diferentes. Com efeito, todo conceito, tendo um número finito de componentes,<br />

bifurcará sobre outros conceitos, compostos de outra maneira, mas que constituem outras regiões do mesmo<br />

plano, que respondem a problemas conectáveis, participam de uma co-criação. Um conceito não exige<br />

somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes, mas uma encruzilhada de<br />

problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes. No caso do conceito de Outrem, como expressão<br />

de um mundo possível num campo perceptivo, somos levados a considerar de uma nova maneira os<br />

componentes deste campo por si mesmo: outrem, não mais sendo nem um sujeito de campo, nem um objeto<br />

no campo, vai ser a condição sob a qual se redistribuem, não somente o objeto e o sujeito, mas a figura e o<br />

fundo, as margens e o centro, o móvel e o ponto de referência, o transitivo e o substancial, o comprimento e a<br />

profundidade... Outrem é sempre percebido como um outro, mas, em seu conceito, ele é a condição de toda<br />

percepção, para os outros como para nós. <strong>É</strong> a condição sob a qual passamos de um mundo a outro. Outrem<br />

faz o mundo passar, e o "eu" nada designa senão um mundo passado ("eu estava tranqüilo..."). Por exemplo,<br />

Outrem basta para fazer, de todo comprimento, uma profundidade possível no espaço, e inversamente, a tal<br />

ponto que, se este conceito não funcionasse no campo perceptivo, as transições e as inversões se<br />

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