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O QUE É A FILOSOFIA?

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(18) Como mostra Georges Didi-Huberman, a carne engendra uma "dúvida": ela é próxima demais do caos;<br />

donde a necessidade de uma complementariedade entre o "encarnado" e a "extensão", tema essencial de La<br />

peinture incarnée, retomada e desenvolvida em Devant 1'image, Ed. de Minuit.<br />

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exemplo, os planos horizontais fugidios diferem à direita e à esquerda e parecem se reunir na coisa (a carne<br />

da pequena maçã), mas como uma pinça que a puxaria para trás e a faria desaparecer, se um plano vertical,<br />

do qual só se vê o fio sem espessura, não viesse fixá-la, retê-la no último momento, dar-lhe uma existência<br />

durável, à maneira de um longo alfinete que a atravessa, e a torna filiforme por sua vez. A casa participa de<br />

todo um devir. Ela é vida, "vida não orgânica das coisas". De todos os modos possíveis, é a junção dos<br />

planos de mil orientações que define a casa-sensação. A casa mesma (ou seu equivalente) é a junção finita<br />

dos planos coloridos.<br />

O terceiro elemento é o universo, o cosmos. Não é somente a casa aberta que se comunica com a<br />

paisagem, por uma janela ou um espelho, mas a casa mais fechada está aberta sobre um universo. A casa<br />

de Monet se vê sempre aspirada pelas forças vegetais de um jardim incontrolável, cosmo das rosas. Um<br />

universo-cosmos não é carne. Nem mesmo plano, pedaços de planos que se juntam, planos diversamente<br />

orientados, embora a junção de todos os planos até o infinito possa constituí-lo. Mas o universo se apresenta,<br />

no limite, como o fundo da tela, o único grande plano, o vazio colorido, o infinito monocromático. A portajanela,<br />

como em Matisse, só se abre sobre um fundo negro. A carne, ou antes a figura, não mais é o<br />

habitante do lugar, da casa, mas o habitante de um universo que suporta a casa (devir). <strong>É</strong> como uma<br />

passagem do finito ao infinito, mas também do território à desterritorialização. <strong>É</strong> bem o momento do infinito:<br />

infinitos infinitamente variados. Em Van Gogh, em Gauguin, em Bacon hoje, vemos surgir a imediata tensão<br />

da carne e do fundo, dos derrames, de tons justapostos e da praia infinita de uma pura cor homogênea, viva e<br />

saturada ("em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento, eu pinto o infinito, faço um fundo<br />

simples do azul mais rico,<br />

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mais intenso...")(19). <strong>É</strong> verdade que o fundo monocromático é mais do que um fundo. E quando a pintura<br />

quer começar do zero, construindo o percepto como um mínimo antes do vazio, ou aproximando ao máximo<br />

do conceito, ela procede por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne. <strong>É</strong> notadamente o azul que<br />

se encarrega do infinito, e que faz do percepto uma "sensibilidade cósmica", ou o que há de mais conceituai<br />

na natureza, ou de mais "proposicional", a cor na ausência do homem, o homem mergulhado na cor; mas, se<br />

o azul (ou o negro ou o branco) é perfeitamente idêntico no quadro, ou de um quadro a outro, é a pintura que<br />

se torna azul — "Yves, o monocromo" — segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio, e<br />

não deixa mais nada por fazer ao pintor por excelência(20).<br />

O vazio colorido, ou antes colorante, já é força. A maior parte dos grandes monocromos da pintura<br />

moderna não mais têm necessidade de recorrer a pequenos buquês murais, mas apresentam variações sutis<br />

imperceptíveis (todavia constitutivas de um percepto), seja porque são cortados ou con-<br />

(19) Van Gogh, carta a Théo, Correspondance complete, Gallimard-Grasset, III, p. 165. Os tons justapostos e<br />

sua relação com o fundo são um tema freqüente da correspondência. Também Gauguin, carta a<br />

Schuffenecker, 8 de outubro de 1888, Lettres, Ed. Grasset, p. 140: "Eu fiz um retrato de mim para Vincent.. <strong>É</strong>,<br />

acredito eu, uma das minhas melhores coisas: absolutamente incompreensível (por exemplo) de tal maneira é<br />

abstrato... o seu desenho é inteiramente arbitrário, abstração completa... a cor é uma cor distante da<br />

natureza; imagine uma vaga lembrança de cerâmica retorcida pelo fogo forte. Todos os vermelhos, os<br />

violetas, rajados pelos clarões de fogo, como uma fornalha radiante aos olhos, sede das lutas do pensamento<br />

do pintor. O todo sobre um fundo cromo se meado de buquês infantis. Quarto de moça pura." <strong>É</strong> a idéia do<br />

"colorista arbitrário", segundo Van Gogh.<br />

(20) Cf. Artstudio, n° 16, "Monochromes" (sobre Klein, artigos de Geneviève Monnier, e de Denys Riout; e<br />

sobre os "avatares atuais do monocromo", artigo de Pierre Sterckx).<br />

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tornados de um lado por uma fita, um faixa, uma extensão de uma outra cor ou de um outro tom, que mudam<br />

a intensidade do fundo por vizinhança ou distanciamento, seja porque apresentam figuras lineares ou<br />

circulares, quase virtuais, tom sobre tom, seja porque são esburacados ou fendidos: são problemas de junção<br />

ainda, mas singularmente ampliados. Numa palavra, o fundo vibra, se enlaça ou se fende, porque é portador<br />

de forças apenas vislumbradas. <strong>É</strong> o que fazia de início a pintura abstrata: convocar as forças, povoar o fundo<br />

com as forças que ele abriga, fazer ver nelas mesmas as forças invisíveis, traçar figuras de aparência<br />

geométrica, mas que não seriam mais do que forças, força de gravitação, de peso, de rotação, de turbilhão,<br />

de explosão, de expansão, de germinação, força do tempo (como se pode dizer, da música, que ela faz ouvir

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