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O QUE É A FILOSOFIA?

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todos estes casos, por que dizer isso, já que a paisagem não é independente das supostas percepções dos<br />

personagens, e, por seu intermédio, das percepções e lembranças do autor? E como a cidade poderia ser<br />

sem homem ou antes dele, o espelho, sem a velha que nele se reflete, mesmo se ela não se mira nele? <strong>É</strong> o<br />

enigma (freqüentemente comentado) de Cézanne: "o homem ausente, mas inteiro na paisagem". Os<br />

personagens não podem existir, e o autor só pode criá-los porque eles não percebem, mas entraram na<br />

paisagem e fazem eles mesmos parte do composto de sensações. <strong>É</strong> Ahab que tem as percepções do mar,<br />

mas só as tem porque entrou numa relação com<br />

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Moby Dick que o faz tornar-se-baleia, e forma um composto de sensações que não precisa de ninguém mais:<br />

Oceano. <strong>É</strong> Mrs. Dalloway que percebe a cidade, mas porque entrou na cidade, como "uma lâmina através de<br />

tudo", e se tornou, ela mesma, imperceptível. Os afectos são precisamente estes devires não humanos do<br />

homem, como os perceptos (entre eles a cidade) são as paisagens não humanas da natureza. "Há um minuto<br />

do mundo que passa", não o conservaremos sem "nos transformarmos nele", diz Cézanne(6). Não estamos<br />

no mundo, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o. Tudo é visão, devir. Tornamo-nos<br />

universo. Devires animal, vegetal, molecular, devir zero. Kleist é sem dúvida quem mais escreveu por afectos,<br />

servindo-se deles como pedras ou armas, apreendendo-os em devires de petrificação brusca ou de<br />

aceleração infinita, no devir-cadela de Pentesiléia e seus perceptos alucinados. Isto é verdadeiro para todas<br />

as artes: que estranhos devires desencadeiam a música através de suas "paisagens melódicas" e seus<br />

"personagens rítmicos", como diz Messiaen, compondo, num mesmo ser de sensação, o molecular e o<br />

cósmico, as estrelas, os átomos e os pássaros? Que terror invade a cabeça de Van Gogh, tomada num devir<br />

girassol? Sempre é preciso o estilo — a sintaxe de um escritor, os modos e ritmos de um músico, os traços e<br />

as cores de um pintor — para<br />

(6) Cézanne, op. cit., p. 113. Cf. Erwin Straus, Du sens des sens, Ed. Millon, p. 519: "as grandes paisagens<br />

têm, todas elas, um caráter visionário. A visão é o que do invisível se torna visível... a paisagem é invisível<br />

porque quanto mais a conquistamos, mais nela nos perdemos. Para chegar à paisagem, devemos sacrificar<br />

tanto quanto possível toda determinação temporal, espacial, objetiva; mas este abandono não atinge somente<br />

o objetivo, ele afeta a nós mesmos na mesma medida. Na paisagem, deixamos de ser seres históricos, isto é,<br />

seres eles mesmos objetiváveis. Não temos memória para a paisagem, não temos memória, nem mesmo<br />

para nós na paisagem. Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos. Somos furtados ao mundo objetivo<br />

mas também a nós mesmos. <strong>É</strong> o sentir."<br />

se elevar das percepções vividas ao percepto, de afecções vividas ao afecto.<br />

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Insistimos sobre a arte do romance porque é a fonte de um malentendido: muitas pessoas pensam que se<br />

pode fazer um romance com suas percepções e suas afecções, suas lembranças ou seus arquivos, suas<br />

viagens e seus fantasmas, seus filhos e seus pais, os personagens interessantes que pôde encontrar e,<br />

sobretudo, o personagem interessante que é forçosamente ele mesmo (quem não o é?), enfim suas opiniões<br />

para soldar o todo. Invocam-se, para tanto, grandes autores, que só teriam contado sua vida, Thomas Wolfe<br />

ou Miller. Obtém-se geralmente obras compostas, em que alguém se agita muito, mas na procura de um pai<br />

que só poderia encontrar em si mesmo: o romance do jornalista. Nada nos poupam, na ausência de qualquer<br />

trabalho realmente artístico. Não precisamos alterar muito a crueldade do que se pôde ver, nem o desespero<br />

pelo qual se passou, para produzir, mais uma vez, a opinião que se tira geralmente das dificuldades de<br />

comunicação. Rossellini viu nisso uma razão para renunciar à arte: a arte deixou-se invadir demais pelo<br />

infantilismo e pela crueldade, tornando-se simultaneamente cruel e chorosa, gemebunda e satisfeita, de modo<br />

que era melhor renunciar(7). O mais interessante é que Rossellini via a mesma invasão na pintura. Mas é,<br />

antes de mais nada, a literatura que não parou de manter este equívoco com o vivido. Pode acontecer<br />

mesmo que se tenha um grande senso de observação e muita imaginação: é possível escrever com<br />

percepções, afecções e opiniões? Mesmo nos romances menos autobiográficos vemos confrontarem-se,<br />

cruzarem-se opiniões de uma multidão de personagens, cada opinião sendo função das percepções e<br />

afecções de cada um, segundo sua situação social e suas aventuras individuais, sendo o conjunto tomado<br />

numa vasta corrente que seria a opinião do autor, que se divide, para<br />

7 Rosselini, Le cinema révélé, Ed. de l'Etoile, p. 80-82.<br />

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recair sobre os personagens, ou se esconder, para que o autor possa formar a sua: é assim mesmo que<br />

começa a grande teoria do romance de Bakhtin (felizmente ele não fica aí, justamente na base "paródica" do<br />

romance...).<br />

A fabulação criadora nada tem a ver com uma lembrança mesmo amplificada, nem com um fantasma.

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