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O QUE É A FILOSOFIA?

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com a possibilidade física, e que dá às posturas mais acrobáticas a força da verticalidade. Em contrapartida,<br />

tantas obras que aspiram à arte não se mantêm de pé um só instante. Manter-se de pé sozinho não é ter um<br />

alto e um baixo, não é ser reto (pois mesmo as casas são bêbadas e tortas), é somente o ato pelo qual o<br />

composto de sensações criado se conserva em si mesmo. Um monumento, mas o monumento pode<br />

sustentar-se em alguns traços ou em algumas linhas, como um poema de Emily Dickinson. Do croqui de um<br />

velho burro exausto, "que maravilha! é feito com dois traços, mas postos sobre bases imutáveis", onde a<br />

sensação melhor testemunha anos de "trabalho persistente, tenaz, desdenhoso"(1). O modo menor em<br />

música é uma prova tanto mais essencial, quanto lança ao músico o desafio de roubá-lo a suas combinações<br />

efêmeras, para torná-lo sólido e durável, auto-conservante, mesmo em posições acrobáticas. O som deve<br />

tanto ser mantido em sua extinção, quanto<br />

(1) Edith Wharton, Les metteurs en scène, Ed. 10-18, p. 263. Trata-se de um pintor acadêmico e mundano,<br />

que renuncia a pintar depois de ter descoberto um pequeno quadro de um contemporâneo desconhecido: "E<br />

eu, eu não tinha criado nenhuma de minhas obras, eu as tinha simplesmente adotado...".<br />

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em sua produção e seu desenvolvimento. Através de sua admiração por Pissaro, por Monet, o que Cézanne<br />

criticava, nos impressionistas, era que a mistura óptica das cores não bastava para fazer um composto<br />

suficientemente "sólido e durável como a arte dos museus", como "a perpetuldade do sangue" em Rubens(2).<br />

<strong>É</strong> uma maneira de falar, porque Cézanne não acrescenta algo que conservaria o impressionismo, ele procura<br />

uma outra solidez, outras bases e outros blocos.<br />

A questão de saber se as drogas ajudam o artista a criar esses seres de sensação, se fazem parte dos<br />

meios interiores, se nos conduzem realmente às "portas da percepção", se nos entregam aos perceptos e aos<br />

afectos, recebe uma resposta geral, na medida em que o que foi composto sob efeito de droga é o mais das<br />

vezes extraordinariamente friável, incapaz de se conservar por si mesmo, desfazendo-se ao mesmo tempo<br />

que se faz ou que o olhamos. Podemos também admirar os desenhos de crianças, ou antes comovermo-nos<br />

com eles; é raro que se mantenham de pé, e só parecem com coisa de Klee ou de Miro, se não os olhamos<br />

muito tempo. As pinturas dos loucos, ao contrário, sustentam-se quase sempre, mas sob a condição de<br />

serem saturadas e de não deixarem subsistir vazio. Todavia, os blocos precisam de bolsões de ar e de vazio,<br />

pois mesmo o vazio é uma sensação, toda sensação se compõe com o vazio, compondo-se consigo, tudo se<br />

mantém sobre a terra e no ar, e conserva o vazio, se conserva no vazio conservando-se a si mesmo. Uma<br />

tela pode ser inteiramente preenchida, a ponto de que mesmo o ar não passe mais por ela; mas algo só é<br />

uma obra de arte se, como diz o pintor chinês, guarda vazios suficientes para permitir que neles saltem<br />

cavalos (quando mais não seja, pela variedade de planos)(3).<br />

(2) Conversations avec Cézanne, Ed. Macula (Gasquet), p. 121.<br />

(3) Cf. François Cheng, Vide et plein, Ed. du Seuil, p. 63 (citação do pintor Huang Pin-Hung).<br />

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Pintamos, esculpimos, compomos, escrevemos com sensações. Pintamos, esculpimos, compomos,<br />

escrevemos sensações. As sensações, como perceptos, não são percepções que remeteriam a um objeto<br />

(referência): se se assemelham a algo, é uma semelhança produzida por seus próprios meios, e o sorriso<br />

sobre a tela é somente feito de cores, de traços, de sombra e de luz. Se a semelhança pode impregnar a obra<br />

de arte, é porque a sensação só remete a seu material: ela é o percepto ou o afecto do material mesmo, o<br />

sorriso de óleo, o gesto de terra cozida, o élan de metal, o acocorado da pedra romana e o elevado da pedra<br />

gótica. E o material é tão diverso em cada caso (o suporte da tela, o agente do pincel ou da brocha, a cor no<br />

tubo), que é difícil dizer onde acaba e onde começa a sensação, de fato; a preparação da tela, o traço do pêlo<br />

do pincel fazem evidentemente parte da sensação, e muitas outras coisas antes de tudo isso. Como a<br />

sensação poderia conservar-se, sem um material capaz de durar, e, por mais curto que seja o tempo, este<br />

tempo é considerado como uma duração; veremos como o plano do material sobe irresistivelmente e invade o<br />

plano de composição das sensações mesmas, até fazer parte dele ou ser dele indiscernível. Diz-se, neste<br />

sentido, que o pintor é pintor, e nada além de um pintor, "com a cor captada como sai fora do tubo, com a<br />

marca, um depois do outro, dos pêlos do pincel", com este azul que não é um azul de água mas "um azul de<br />

pintura líquida". E, todavia, a sensação não é idêntica ao material, ao menos de direito. O que se conserva,<br />

de direito, não é o material, que constitui somente a condição de fato; mas, enquanto é preenchida esta<br />

condição (enquanto a tela, a cor ou a pedra não virem pó), o que se conserva em si é o percepto ou o afecto.<br />

Mesmo se o material só durasse alguns segundos, daria à sensação o poder de existir e de se conservar em<br />

si, na eternidade que coexiste com esta curta duração. Enquanto dura o material, é de uma eternidade que<br />

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a sensação desfruta nesses mesmos momentos. A sensação não se realiza no material, sem que o material

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