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O QUE É A FILOSOFIA?

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necessariamente, cada um só sendo criado por seus meios próprios — em cada caso um plano, elementos,<br />

agentes. <strong>É</strong> por isso que é sempre desagradável que os cientistas façam filosofia sem meio realmente<br />

filosófico, ou que os filósofos façam ciência sem meio efetivamente científico (e nós não pretendemos fazêlo).<br />

O conceito não reflete sobre a função, nem a função se aplica ao conceito. Conceito e função devem<br />

se cruzar, cada um seguindo sua linha. As funções riemannianas de espaço,<br />

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por exemplo, não nos dizem nada de um conceito de espaço riemanniano próprio à filosofia: é na medida em<br />

que a filosofia está apta a criá-lo, que temos o conceito de uma função. O número irracional, igualmente,<br />

define-se por uma função como limite comum de duas séries de racionais, das quais uma não tem máximo,<br />

ou a outra não tem mínimo; o conceito, em contrapartida, não remete a séries de números, mas a seqüências<br />

de idéias que se reencadeiam por sobre uma lacuna (em lugar de se encadear por prolongamento). A morte<br />

pode ser assimilada a um estado de coisas cientificamente determinável, como função de variáveis<br />

independentes, ou mesmo como função do estado vivido, mas aparece também como um acontecimento<br />

puro, cujas variações são coextensivas à vida: os dois aspectos muito diferentes se encontram em Bichat.<br />

Goethe construiu um grandioso conceito de cor, com as variações inseparáveis de luz e de sombra, as zonas<br />

de indiscernibilidade, os processos de intensificação que mostram até que ponto também em filosofia há<br />

experimentações, enquanto que Newton tinha contruído a função de variáveis independentes ou a freqüência.<br />

Se a filosofia precisa fundamentalmente da ciência que lhe é contemporânea, é porque a ciência cruza sem<br />

cessar a possibilidade de conceitos, e porque os conceitos comportam necessariamente alusões à ciência,<br />

que não são nem exemplos, nem aplicações, nem mesmo reflexões. Há inversamente funções de conceitos,<br />

funções propriamente científicas? E o mesmo que perguntar se a ciência, como acreditamos, precisa igual e<br />

intensamente da filosofia. Mas só os cientistas estão aptos a responder a esta questão.<br />

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Percepto, Afecto e Conceito<br />

O jovem sorri na tela enquanto ela dura. O sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher, e o vento<br />

agita um ramo, um grupo de homens se apressa em partir. Num romance ou num filme, o jovem deixa de<br />

sorrir, mas começará outra vez, se voltarmos a tal página ou a tal momento. A arte conserva, e é a única<br />

coisa no mundo que se conserva. Conserva e se conserva em si (quid júris}), embora, de fato, não dure mais<br />

que seu suporte e seus materiais (quidfacti}), pedra, tela, cor química, etc. A moça guarda a pose que tinha<br />

há cinco mil anos, gesto que não depende mais daquela que o fez. O ar guarda a agitação, o sopro e a luz<br />

que tinha, tal dia do ano passado, e não depende mais de quem o respirava naquela manhã. Se a arte<br />

conserva, não é à maneira da indústria, que acrescenta uma substância para fazer durar a coisa. A coisa<br />

tornou-se, desde o início, independente de seu "modelo", mas ela é independente também de outros<br />

personagens eventuais, que são eles próprios coisas-artistas, personagens de pintura respirando este ar de<br />

pintura. E ela não é dependente do espectador ou do auditor atuais, que se limitam a experimentá-la, num<br />

segundo momento, se têm força suficiente. E o criador, então? Ela é independente do criador, pela autoposição<br />

do criado, que se conserva em si. O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de<br />

sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos.<br />

Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam;<br />

os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por<br />

eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido.<br />

Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a<br />

tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e de afectos. A obra de arte é um ser<br />

de sensação, e nada mais: ela existe em si.<br />

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Os acordes são afectos. Consoantes e dissonantes, os acordes de tons ou de cores são os afectos de<br />

música ou de pintura. Rameau sublinhava a identidade entre o acorde e o afecto. O artista cria blocos de<br />

perceptos e de afectos, mas a única lei da criação é que o composto deve ficar de pé sozinho. O mais difícil é<br />

que o artista o faça manter-se de pé sozinho. Para isso, é preciso por vezes muita inverossimilhança<br />

geométrica, imperfeição física, anomalia orgânica, do ponto de vista de um modelo suposto, do ponto de vista<br />

das percepções e afecções vividas; mas estes erros sublimes acedem à necessidade da arte, se são os<br />

meios interiores de manter de pé (ou sentado, ou deitado). Há uma possibilidade pictural que nada tem a ver

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